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CIDADE DOS URUBUS
Drama
Texto de: JULIO CARRARA
Escrita em 2001
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PERSONAGENS:
KILL
MALU
ÁGUIA
DEAD
e outros personagens do submundo marginal
ÉPOCA: Atual
CENÁRIO: Um ferro velho. Ao fundo do palco, um muro de concreto.
Encostada ao muro, uma porta toda pichada que conduz para um cômodo.
Diversos objetos como latões, colchões e uma velha banheira, além de outras
sucatas que estão espalhadas pelo palco ou empilhadas em cima da outra.
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PRÓLOGO
(Música ambiente deverá criar um clima de suspense. Somente a lua cheia ilumina a
cena vazia. A lua deve estar brilhando desde o momento em que as portas do teatro
forem abertas. Após o toque do terceiro sinal, ouve-se um rock pesado. Entram pela
plateia diversas figuras de preto, com sprays nas mãos. Sobem ao palco e vão direto
para o muro, ficando de costas para os espectadores. Picham palavras de ordem.
Quando terminam a tarefa, afastam-se um pouco e, ainda de costas, leem o que
escreveram. Ouvem-se sirenes de polícia. Os jovens escondem os sprays e saem
correndo. Black-out. Cessa música.)
CENA 1
(Foco em Kill. Ele está com uma garrafa de vinho numa mão e um embrulho na outra.
Anda tropeçando nas coisas e resmungando.)
KILL
Que belo aniversário você teve, hein, ô infeliz? Ninguém se lembrou.
Nem mesmo seus pais, irmãos, tios, primos e o caralho... Ninguém... Foda-se.
(Furioso.) Foda-se! Eu não preciso de vocês, ouviram? Não preciso. Eu posso
muito bem comemorar o meu aniversário sozinho.
(Desembrulha o pacote. É um bolo de aniversário, desses de padaria. O rapaz pega
duas velinhas, deposita no bolo, acende e canta, batendo palmas.)
KILL
Parabéns pra você, nessa data querida, muitas felicidades, muitos anos
de vida...
(Durante o canto, o rapaz fica com a voz embargada. Quando assopra as velinhas, Kill
cai num choro profundo. Foco sobre ele cai em resistência. Do outro lado do palco, foco
sobe sobre Malu que traz uma mala nas mãos.)
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MALU
Podem ficar sossegados porque vocês não vão me ver mais. Tô indo
embora. Agora o que vocês querem que eu faça, eu nunca vou fazer! Se o
Michel não foi homem o suficiente para assumir a responsabilidade sobre a
criança, eu assumo. (Acaricia a barriga e fala com o bebê.) A gente vai ser feliz,
meu filho. Muito feliz... (Canta.) Nana, neném, que a cuca vem pegar...
(Para de cantar e fica acariciando a barriga. Tempo. Lentamente pega a mala que havia
depositado no chão e sai de cena. Foco sobre ela cai em resistência ao mesmo tempo em
que outro foco sobe sobre Águia. Ele tem um canivete nas mãos e um comportamento
de quem tomou exctasy.)
AGUIA
Todos me conhecem por Águia. Nunca tive nada nesta vida. Já nasci
fodido. Matei minha mãe no parto, não sei do meu pai e fui parar num
orfanato. Ninguém quis me adotar. Cresci, fugi de lá e fui buscar meu sustento
na rua, vendendo meu corpo. Traço tudo: mulher, viado, traveco, não ligo,
não... Pagando, tá limpo! Mas o que eu mais gosto de fazer é roubar. Porra,
como é maneiro roubar. (Lambe a lâmina do canivete e fala com o objeto.) Ao
trabalho, companheiro. Vamos apavorar os mané.
(Sai.)
CENA 2
(Kill está na mesma marcação da primeira cena. Luz geral sobe em resistência
revelando o ferro velho. O garoto pega uma faca e corta o bolo. Lentamente começa a
comê-lo. Malu entra assustada. Está ofegante e tem-se a impressão de que correu
muito. Para, sem perceber a presença de Kill. Senta-se num tambor, tira suas botas e
massageia os pés. Kill olha para ela, esboçando um sorriso.)
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KILL
Ei...
(Malu se vira num susto.)
MALU
(Em pânico.) Olha cara, eu entrei aqui porque um cara tava me
seguindo... Foi mal.
KILL
(Desencanado.) Relaxa! Como é teu nome?
MALU
Malu.
KILL
De Maria Lúcia ou Maria Luiza?
MALU
De maluca mesmo... (Riem.) Acho que cheguei numa hora errada, né?
KILL
(Corta mais um pedaço do bolo.) Toma. Pra você.
MALU
Pra mim???
KILL
(Enxuga rapidamente as lágrimas do seu rosto.) É. Pega aí. É o meu bolo de
aniversário. Hoje fiz dezoito anos.
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MALU
(Faminta, pega o bolo da mão de Kill e devora-o.) Bem-vindo à maioridade...
Espero que todos os seus sonhos de liberdade se realizem.
KILL
(Rindo, remedando a garota.) “Espero que todos os seus sonhos de liberdade se
realizem.” Bah! Que coisa mais estúpida! Não tem nada mais original pra me
dizer não, em vez de ficar ditando frases feitas, porra? Tá me achando com
cara de otário? Tá tirando uma da minha cara, pirralha? Vá embora, vá... Some
da minha frente. Prefiro ficar sozinho do que tá com alguém que não é capaz
de expressar os próprios sentimentos.. (Malu fica parada, perplexa, olhando para
Kill.) Não ouviu, não? Cai fora...
MALU
(Pega o bolo que está em sua mão e joga na cara de Kill.) Toma. Enfia no cu
essa porcaria... Não é à toa que tá passando o aniversário sozinho. Com certeza
ninguém deve suportar um cara escroto, idiota e mal-educado como você. (Vai
saindo.)
KILL
(Levanta-se e segura a garota.) Você não devia falar assim comigo. Sabe
como é meu apelido? Kill... (Saboreia a palavra.) Kill... Você sabe o que essa
palavra quer dizer? (Tira uma faca da cintura e aponta para o rosto da garota.)
Matar, exterminar... Eu adoro ver sangue escorrendo garota. Sinto um tesão
enorme. Apesar da minha pouca idade, eu já retalhei muita gente na faca,
sacou?, e sem dó. Quem brinca comigo, quem me sacaneia, se fode. Acaba com
a boca cheia de formiga e vira ceia de urubu.
MALU
(Sem medo algum, enfrenta o rapaz.) Vai, acaba logo comigo. Vamos, o que
tá esperando? Você não é o matador, o exterminador, bonitão?... É nada. Você
não passa de um moleque mimado que ainda mija nas fraldas por fazer coisa
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errada e com medo de apanhar da mamãe... Vai, me mata, Kill. Eu não tenho
mais nada a perder mesmo. Tô mais fodida que você, seu desgraçado. E o pior
é que dentro de algum tempo o meu bebê vai nascer e aí eu tô fodida de vez
mesmo. Anda logo, seu porco, acaba logo com isso...
(Kill, impotente, abaixa a faca até derrubá-la no chão.)
MALU
(Com ódio nos olhos, gritando.) Vai, Kill, me mata!
KILL
(Cobre o rosto com as mãos.) Eu não consigo.
MALU
Fracote. O que você sabe sobre a vida, Kill? Por quais sofrimentos já
passou pra se sentir assim tão vivido? O que te faz tão seguro de si? (Pausa.)
Você não sabe o que é ser abandonada por um homem que te deixa um filho
na barriga. Eu amei muito o Michel. No entanto ele só quis se aproveitar de
mim: comeu, chupou, gozou, e depois feito laranja, jogou fora o bagaço. É
assim que eu me sinto, Kill: um bagaço... Por isso achei melhor sumir do
mapa. Estamos na mesma situação, só que existe uma diferença. Você é
homem e pode refazer sua vida. Eu não... Que homem vai querer uma mulher
que espera um filho de outro cara?
KILL
Você sabe o que é acordar todo o dia ouvindo as discussões dos seus
pais? Ouvir da boca deles que eu era um estorvo, que nasci porque a
camisinha furou? Eu cresci com a consciência de que não era bem-vindo...
(Mais calmo.) É tudo mentira. Não passei ninguém na faca, não. Você tem
razão, eu não sei nada sobre a vida...
(Malu está sentada no chão. Kill deposita a cabeça no colo da menina.)
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KILL
Por favor, fica aqui comigo. Tô tão perdido, tão confuso...
MALU
Tudo bem, eu fico. Eu não tenho mesmo pra onde ir. Eu só preciso de
um tempo pra decidir que rumo dar à minha vida.
KILL
(Começa a observar a lua e fica refletindo.) Olhe a lua, que linda! É uma
pena que essa cidade perdeu sua beleza, se transformando num antro poluído
e fedorento. A desesperança está no ar e muitas vezes faz a gente esquecer que
estamos vivos...
(Os dois se abraçam e ficam olhando para a lua no céu.)
CENA 3
(Um corredor sobe em resistência no proscênio, revelando pessoas que se alojaram
debaixo do Minhocão: andarilhos procurando comida no lixo; homens, mulheres e
crianças consumindo crack; catadores de papel ou de latinhas. Está evidente a
desesperança dessas pessoas em cada olhar, em cada gesto. No áudio, ouve-se a música-
tema do espetáculo: “Cidade dos Urubus”, composta por Carlos Ribeiro, que ilustrará
a cena.)
MÚSICA:
A cidade não é feia, debaixo de lua cheia
Todos os morcegos cegos, insetos, inseticidas
E os corpos dos suicidas, tão nadando pelo ar
A cidade não é feia, a cidade é uma teia
A cidade é uma aranha pronta pra te pegar
Ou largar ou pegar, ou pegar ou largar
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A cidade é uma ferida, uma infecção de vida
A cidade é uma teta, prostituta que te pariu
A cidade não é feia, mas também não é bonita
A cidade é uma ceia posta para os urubus
(Durante a música, as personagens vão interagindo entre si. Águia aparece e encosta-
se num dos pilares de sustentação. Entra um senhor. Águia prostra-se à sua frente,
anuncia o assalto e rouba-lhe a carteira. O homem, assustado, grita: “pega ladrão”,
mas ninguém se importa. Águia dá um murro nele que sai cambaleando e em seguida
corre para o lado oposto.)
CENA 4
(Amanhece. Malu está deitada num colchão, sozinha. Entra Kill com um embrulho e
uma garrafa térmica. Prepara uma mesa improvisada para o café da manhã.)
KILL
Ei... acorda, preguiçosa...
MALU
(Resmungando.) Que horas são?
KILL
Oito e meia. (Kill fica olhando para ela.)
MALU
(Intimidada.) Não fica me olhando que eu tô parecendo um monstro...
(Kill sorri.)
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KILL
Fui à padaria comprar esses sanduíches e essa garrafa de suco pro nosso
café da manhã.
MALU
(Sentando-se à mesa.) Tô morrendo de fome... (Come.) Ainda mais agora
que eu tenho que me alimentar por dois.
KILL
(Depois de uma pausa.) Posso te fazer uma pergunta?
MALU
Não sendo escatológica, pode sim.
KILL
O que você pretende fazer da sua vida?
MALU
Não sei. Tô mais perdida que cega em tiroteio... (Longa pausa.) E você, o
que vai fazer?
KILL
Também não sei... Eu só sei que preciso muito de você. (Termina de comer
o sanduíche e fica quieto num canto.)
MALU
O que foi?
KILL
(Embaraçado.) Eu não quero que você vá embora.
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MALU
(Pisando em ovos.) Kill, eu sei o quanto você tá sofrendo, mas vamos ser
realistas, vai. Não vai dar certo. Põe a mão aqui... (Ele põe a mão em sua barriga.)
Eu carrego um bebê, Kill, de um homem. Um homem que me jurou amor e
quando conseguiu o que queria, saltou fora. Desculpa, mas eu acho que você
tá misturando as coisas...
KILL
(Surpreso, com um sorriso.) Mexeu Malu. Mexeu... (Gargalhando.) Ele gosta
de mim... Não me importa que esse bebê seja filho de outro homem, mas eu
quero ser o pai dele. (Beija a barriga de Malu e fala com o bebê.) Ei moleque, você
não tá sozinho, não. Eu vou cuidar de você.
MALU
Como você pode assumir uma criança, sendo que nem você nem eu
temos onde cair mortos? Vamos viver do quê? Roubando, matando?
KILL
Eu encaro qualquer coisa, mas essa criança não vai ficar desamparada.
MALU
Como a gente vai amparar alguém se não temos nenhuma estrutura pra
isso? (Pausa.) E quem vai dar emprego pruma mulher grávida? Sem emprego,
sem casa, sem comida... Se for pra viver assim, o melhor a fazer é não deixar
esse bebê nascer mesmo...
KILL
(Irado.) Nunca mais repita essa besteira... (Mais calmo.) Malu... me dá
uma chance. Vamos tentar...
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MALU
Você não acha que seria loucura assumir uma criança de uma mulher
que acabou de conhecer? Eu também mal te conheço. E não acredito mais em
amor. (Embaraçada.) Obrigada por tudo, mas eu vou embora. É o único jeito
que encontrei de sair limpa dessa história. Vou tentar reconstruir minha vida.
Faça o mesmo, Kill... Cada vez que olhar para a lua no céu, vou me lembrar de
você. (Beija o rapaz no rosto. Kill está inerte.) A gente se vê...
(Pega a mala e sai. Kill sente-se a pior das criaturas. Chuta um tambor e chora.)
CENA 5
(Águia entra.)
ÁGUIA
E aí, Kill? (Percebe que o rapaz está melancólico.) Qualé, cara, curtindo uma
deprê? Sai dessa, maluco... O que aconteceu?
KILL
Problema meu.
ÁGUIA
Olha só o que eu descolei pra gente... (Joga o dinheiro para Kill.) Uma
graninha que eu roubei de um velhinho pra gente passar a semana.
KILL
Foi roubar justo um velhinho, cara?
ÁGUIA
Ihh, tá dando uma de cristão, é? Logo você?
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KILL
É que eu não acho legal roubar um velho.
ÁGUIA
Tô te estranhando. Por que tá bancando o bonzinho agora?
KILL
Deixa pra lá. O que manda?
ÁGUIA
Antes de qualquer coisa, queria te desejar um feliz aniversário atrasado.
KILL
Vá se foder. (Depois de uma pausa.) Tem pó aí?
ÁGUIA
Tá na mão.
(Tira um pino de cocaína. Kill pega o pó e cheira.)
KILL
Isso é pra esquecer...
ÁGUIA
O quê?
KILL
A vida desgraçada que eu levo e também uma garota que conheci...
ÁGUIA
E aí, fodeu?
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KILL
Que nada! Séria pra caralho.
ÁGUIA
Não existe mulher séria, cara... Mas, e aí? O que rolou?
KILL
Só trocamos uma ideia. Ela dormiu aqui essa noite e de manhã foi
embora. Por que as mulheres são assim, hein?...
ÁGUIA
Porque são todas falsas, cara. Vêm com aquele papinho sedutor, faz a
gente gamar e depois tira o cu da seringa. Elas tem o hábito de dizer “eu te
amo” como quem diz um “bom dia”. Atiram pra todo o lado, são verdadeiras
metralhadoras giratórias e só sossegam quando acertam o alvo. Oportunistas
que vivem atrás um babaca pra se encostar e ficar dependendo dele o resto da
vida... Mas e aí? Conta mais!
KILL
Ela saiu de casa porque engravidou e o namorado dela não queria
assumir a bronca.
ÁGUIA
E você ia assumir o filho de outro cara?
KILL
O que é que tem?
ÁGUIA
Cê é muito idiota mesmo. Cai na real.
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KILL
Eu tava disposto a cuidar do bebê e da garota.
ÁGUIA
Trouxa... (Pausa.) Pelas minhas contas devo ter um montão de filhos
espalhados por aí.
KILL
E não assumiu nenhum?
ÁGUIA
Não sou tonto. Não quero estragar a minha vida. Como vou ter certeza
que o filho é meu? Como vou saber se a mina não dá pra outros caras? Eu,
não. Quero curtir minha vida, comer todas as menininhas... Já imaginou ter
que ficar aguentando choro a noite inteira e me fodendo pra sustentar a infeliz
da criança? Já não basta a quantidade de crianças que tem por aí, andando
peladas no meio do fogo cruzado, sujando o pé na rede de esgoto e morrendo
de fome? Pra mim, deviam castrar esse povo todo para parar de nascer tanto
noia.
KILL
Você seria o primeiro a ficar sem pau.
ÁGUIA
Por que eu? Não tenho culpa se as mulheres abrem as pernas pra mim.
E elas é que são culpadas se não tomam pílulas.
KILL
E você por não usar camisinha.
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ÁGUIA
Chupar bala com papel?! (Pausa.) Ih, o cara, meu. Cheio de moral. Esse
papo tá pior que teatrinho de igreja. Ninguém pode dar lição de moral em
ninguém, porque ninguém presta. Essa é a nossa vida, meu irmão... (Pausa.)
Mas vamos mudar de assunto. Eu tenho uma proposta pra você.
KILL
Que proposta?
ÁGUIA
Mas acho que você não vai aceitar, porque agora tá seguindo o caminho
do bom cristão.
KILL
Não torra, porra. Fala logo.
ÁGUIA
Tô de olho num sobrado há algum tempo. Descobri que os moradores
saíram de viagem e a casa tá sozinha... Hoje à noite a gente entra na casa e faz
uma limpeza lá. Topa?
KILL
Mas a casa deve ter alarme, câmeras, vigia...
ÁGUIA
Que se foda. A gente bola um esquema... Então?
KILL
Eu não sei.
ÁGUIA
Isshhh! Você mudou hein, Kill?
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KILL
(Pausa seguida de um suspiro.) Beleza. Eu topo. Já tamo fodido mesmo. O
que a gente tem a perder?
ÁGUIA
É isso aí.
(Ambos realizam um cumprimento e saem.)
CENA 6
(Malu entra com a mala.)
MALU
(Chamando.) Kill. Kill... Eu voltei. Pensei melhor e quero ficar com você.
Você também é muito importante pra mim e eu quero que o Michel se dane.
(Percebe que Kill não responde.) Kill, você tá aí? Kill... Deve ter saído. Mas não faz
mal. Eu espero o tempo que for necessário.
(Nesse momento aparece um rapaz vestido de preto. Está com um colete aberto, e uma
calça esfarrapada. Atende por Dead. Malu se assusta.)
MALU
Quem é você?
DEAD
Dead.
MALU
O que você quer?
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DEAD
(Aperta o pau.) Isso responde a sua pergunta?
MALU
Você acha que eu sou o quê, hein?
DEAD
Uma putinha muito da gostosa que vai dar pra mim.
MALU
Não se aproxime. Não chegue perto.
DEAD
Sabia que essa sua voz aumenta ainda mais o meu tesão?
MALU
Vou chamar meu namorado. (Grita como se Kill estivesse ali.) Kill...
DEAD
Não tem ninguém aqui. Eu vi seu macho saindo com um cara... (Segura a
garota.)
MALU
Me larga!
DEAD
Que pele macia, cheirosa, gostosa... Não adianta fingir. Eu sinto que
você treme toda...
MALU
Se eu tremo é de nojo.
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DEAD
De desejo... de tesão.
MALU
(Começa a gritar.) Socorro! (Esperneia.)
DEAD
(Segurando fortemente a garota.) Cala a boca. Será que eu vou precisar te
amordaçar? (Deita em cima dela.)
MALU
Me solta, eu tô grávida!
DEAD
Se não pode dar a bucetinha, eu soco no teu cuzinho.
(Malu consegue se desvencilhar, mas Dead, por ser mais ágil e mais forte, prende-a
novamente. Ela arranca o brinco dele. Gritando de dor, o rapaz esbofeteia a garota e
começa a se despir com uma mão e com a outra segura Malu. Em seguida, despe a
garota que, desesperada, chora, grita, implora e Dead, cada vez mais alucinado, tenta
penetrá-la, sem êxito. Malu encontra uma barra de ferro, e sem pensar duas vezes,
acerta na cabeça do cara, que se contorce de dor, sangra e cai desmaiado.)
MALU
(Espantada.) O que foi que eu fiz? Merda...
(Chega perto dele. Quando vai tocá-lo, Dead recupera os sentidos e vem pra cima de
Malu, se esvaindo em sangue. Ainda mais desesperada, ela desfere um novo golpe, bem
mais violento, na nuca do rapaz que desta vez, cai morto.)
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MALU
(Chega perto de Dead e constata sua morte.) Eu matei o cara... (Cai em si.) Eu
matei o cara, porra! E agora, o que faço?
(Desesperada, pega uma banheira velha e com grande esforço coloca em cima do rapaz.
Tem uma crise de choro e sai correndo.)
CENA 7
(Foco sobre o proscênio. É noite. Entram Kill e Águia. Olham para todos os lados,
mijam na parede e param à porta do sobrado.)
ÁGUIA
Tá limpo?!
KILL
Tá. Vai fundo que eu fico aqui vigiando e pulo logo em seguida.
(Kill faz escadinha para Águia, que pula o muro. Em seguida, Kill também pula.
Tempo. Ouvem-se latidos de um cachorro enfurecido seguido de um alarme. Em off, as
vozes de Kill e de Águia.)
KILL
Tamo fodido. Sujou. Vamos embora.
ÁGUIA
Não me empurra, caralho. Eu sei o que eu faço.
KILL
Vamos embora, maluco...
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ÁGUIA
Não...
KILL
Você disse que não tinha ninguém aqui. O vigia tá seguindo a gente
armado.
(Ouve-se um tiro. Kill pula o muro.)
KILL
(Gritando.) Corre Águia...
(Quando Águia está em cima do muro, ouve-se outro tiro. Águia se contorce de dor e
com muito esforço, pula o muro. A bala acertou a sua perna.)
KILL
Corre, cara.
ÁGUIA
Não consigo. O desgraçado me acertou...
(Kill pega Águia no colo.)
KILL
Vamos pro hospital.
ÁGUIA
Nem fodendo.
KILL
Vamos pra onde, então?
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ÁGUIA
Pro ferro velho. Lá a gente se vira. AAAAAAiiiiii....
(Black-out rápido. Luz sobe sobre o ferro velho. Kill põe Águia num colchão, pega uma
camiseta branca, rasga-a fazendo dela uma atadura que põe sobre o ferimento.)
KILL
Vamos ver se isso consegue estancar essa porra...
ÁGUIA
Eu vou morrer Kill.
KILL
Vai nada. A bala só pegou de raspão.
(Kill está ajoelhado com a cabeça de Águia no colo.)
ÁGUIA
Kill, você é o irmão que eu nunca tive. Eu é que fui um filho da puta
com você, fazendo você brigar e romper com sua família e...
KILL
Não é hora de fazer dramalhão mexicano...
ÁGUIA
Ainda bem que o tiro pegou em mim. Se pegasse em você eu não ia me
perdoar.
KILL
O que tiver que acontecer, acontece. E depois da cagada feita, a bosta
não volta pro cu.
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(Sai. Logo em seguida, Kill volta com uma caixinha de primeiros socorros e faz um
curativo em Águia.)
KILL
Pronto... Tá melhor?
ÁGUIA
Tô... Valeu, cara...
KILL
(Pega Águia nos braços.) Vou te levar lá pro quarto. Você precisa
descansar...
(Leva o amigo para o quarto, nos bastidores. Volta. Senta-se sobre a banheira e acende
um cigarro. Olha para um canto e vê a mala de Malu.)
KILL
(Estranha.) A mala da Malu? Eu devo tá delirando!
(Suspira profundamente, pensativo.)
CENA 8
(Luz sobre o proscênio. Entra Malu. Ela está perdida, indo para lugar nenhum e já não
consegue mais raciocinar. Para no centro e senta-se no chão, de cabeça baixa. Seus
olhos estão cheios de lágrimas. Nesse momento ouve-se no áudio a sua própria voz,
dizendo: “assassina”. Começa num sussurro. Essa frase é repetida inúmeras vezes,
num crescendo e com um ritmo mais acelerado. Sua voz é mesclada com as vozes de
outras pessoas. Pouco a pouco as vozes tornam-se ininteligíveis, uma verdadeira
poluição sonora. Malu, no seu limite, grita com todas as forças, fazendo cessar as
vozes. Black-out.)
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EPÍLOGO
(Malu entra correndo no ferro velho. Kill ao vê-la, corre até ela e se abraçam.)
MALU
Que bom que eu te encontrei! Kill, você me perdoa?
KILL
Perdoar o quê?
MALU
A minha atitude. Eu não devia te deixar. Agora eu tenho certeza que é
você quem quero... Por favor, me abrace forte.
(Kill abraça Malu e os dois se entregam num longo e apaixonado beijo.)
KILL
(Percebe que Malu está nervosa.) O que foi? Por que você tá tremendo?
MALU
Eu tô fodida...
KILL
Por quê?
MALU
Eu matei um cara, Kill.
KILL
Matou?
MALU
Matei.
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KILL
Como foi isso?
MALU
Eu vou te explicar desde o começo... Desde que saí daqui, eu pensei
muito sobre a gente e, depois de analisar friamente algumas questões, decidi te
dar uma chance. Quando cheguei aqui, você tinha saído e aí... (Não consegue
mais falar.)
KILL
E aí, o que?
MALU
E aí um maluco entrou aqui, me agarrou e tentou me violentar... Pra me
defender, peguei uma barra de ferro e quebrei na cabeça do desgraçado...
KILL
E onde escondeu o corpo?
MALU
(Aponta a banheira.) Debaixo daquela banheira.
(Kill levanta a banheira e vê o corpo de Dead.)
MALU
Você conhecia ele?
KILL
Era um noia que vivia vagando por aí. (Fala com o cadáver.) Viu só, noia?
Virou comida de urubu...
MALU
Onde vamos enterrar ele?
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KILL
Enterrar dá muito trabalho. Vamos colocar ele no porta-malas do meu
carro e jogar na represa. Pronto!
MALU
E a família dele? Podem dar queixa na polícia!
KILL
E um cara como ele tem família? Ele era um vagabundo miserável que
vivia de pau duro correndo atrás das garotinhas... Me ajuda aqui, Malu.
(Malu e Kill pegam o cadáver e o colocam no carro que está fora de cena. Voltam e
lavam as mãos.)
KILL
Agora é só jogar o desgraçado na represa.
MALU
Não sei se vou suportar viver com esse peso a vida inteira.
KILL
(Docemente segura o rosto da garota.) Você agiu em legítima defesa.
Coloque isso na sua cabeça. (Beija a garota.) Melhorou?
MALU
Acho que sim. (Olha para a lua no céu, que está praticamente coberta pelas
nuvens.)
KILL
(Pausa.) Malu, depois que você foi embora, eu não tinha ideia do que
fazer. Até que apareceu o Águia e me chamou pra assaltar um sobrado aqui
perto. Quando pulamos o muro da casa, o alarme disparou e o vigia saiu
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correndo atrás da gente com um revólver na mão. Eu pulei o muro primeiro,
mas o Águia ficou atrás e foi atingido por um tiro na perna... Foi foda.
MALU
E onde ele tá agora?
KILL
Tá lá dentro. Vou chamar ele. (Chama Águia.) Águia, vem cá, cara. Quero
te apresentar a minha garota...
(Malu está de frente para o público e de costas para Águia. O rapaz entra e Kill o
apresenta para a garota.)
KILL
Malu, Águia. Águia, Malu!
(Malu vira-se e ambos levam um grande susto.)
AGUIA
(Incrédulo.) Não acredito!
MALU
Você?
KILL
(Sem entender.) Peraí, vocês já se conhecem?
MALU
Infelizmente.
KILL
De onde?
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ÁGUIA
Da cama...
MALU
...onde ele tirou minha virgindade, me engravidou e depois me deu um
pé na bunda.
KILL
Então você é...?
MALU
É, Kill. O Michel é esse verme!
ÁGUIA
Verme é você, sua arrombada!
KILL
(Explode.) Arrombada é a sua mãe... Como é que eu ia saber que você era
o Michel, não é mesmo? Como você teve coragem de fazer isso, seu
desgraçado? (Com desprezo.) Meu melhor amigo. Amigo... Vai tomar no cu, seu
filho da puta.
(Kill, furioso, acerta um soco na cara de Águia, que cai no meio de uns latões. Malu
tenta acalmar Kill.)
MALU
Calma, Kill.
KILL
Não se mete Malu. Levanta, seu bosta. Levanta e vem lutar comigo.
Vem...
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MALU
Deixa quieto, Kill. Ele tá ferido...
(Águia pega uma faca afiada e vai em direção de Kill sem que ele veja.)
MALU
Cuidado, Kill...
(Há uma luta violenta entre Kill e Águia. Águia tenta esfaqueá-lo de qualquer
maneira. Num momento de distração de Kill, Águia desfere um golpe no braço do
rapaz, abrindo um talho gigante. Kill cai no chão e Águia vai em direção de Malu,
apontando a faca para ela.)
KILL
(Berra.) Corre Malu...
(Águia joga a faca no chão.)
ÁGUIA
Não, Malu. Eu não vou te matar. Se você morresse, como eu ia tirar um
barato da sua cara, hein, vagabunda? Eu vou te deixar viver, piranha. Mas sem
essa criança...
KILL
Não mexa com meu filho.
ÁGUIA
Esse filho é meu. Infelizmente essa porra que tá aí dentro saiu do meu
saco. E você vai tirar Malu.
MALU
Não vou!
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ÁGUIA
Vai sim...
MALU
Nunca...
(Pausa tensa. Águia fica olhando para Malu e, lentamente, fecha os punhos.)
MALU
(Sussurra, muito tensa.) Não, Michel... Não, Michel...
KILL
(Grita.) Cuidado, Malu...
(Águia dá um soco violento na barriga de Malu, que se contorce de dor e cai no chão.
Águia pega o carro de Kill e sai em disparada. Malu começa a sangrar. Kill se levanta e
caminha até a garota.)
MALU
Eu tô perdendo o bebê.
KILL
Não, não tá... (Começa a chorar.)
MALU
Tô. (Com dores agudas.) Ai, que dor...
KILL
Fica calma, Malu, eu vou te levar pro hospital...
MALU
Não dá mais tempo... Eu tô abortando. O nosso bebê morreu, Kill.
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(Kill abraça Malu e ambos choram. Luz e contraluz descem em resistência ficando
apenas um foco silhuetando as duas figuras. Foco desce em resistência até o black-out.
No ciclorama, como no início do espetáculo, a mesma lua cheia, só que agora, encoberta
pelas nuvens.)
FIM
Junho/2001