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7/23/2019 2012 Livro Como Expressoes Referenciais Referem
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Draft 1/1/2012 - Claudio F. Costa, ppgfil/UFRN
COMO
EXPRESSESREFERENCIAIS
REFEREM?
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A filosofia perene, mas tambm efmera. Est constantemente sendoconfundida e destruda e transformada em algo que no ela mesma, de modo
que se desejamos filosofar estaremos continuamente fazendo face tarefa deredescobri-la e restaur-la.ThomasProffen
A filosofia fantasmolgica triunfa porque mundos possveis elegantementeestruturados so to mais agradveis de explorar do que a realidade de carne esangue que nos cerca aqui na terra... Uma tradio filosfica que sofreendemicamente do vcio do horror mundi condena-se futilidade.
Kevin Mulligan, Peter Simons, Barry Smith
No se deve confundir a importncia com a dificuldade. Um conhecimento podeser difcil sem ser importante. Por isso a dificuldade no decide nem pr nemcontra o valor de um conhecimento. Esta depende da magnitude e pluralidade desuas conseqncias.
Immanuel Kant
No existe uma qualidade refinada de conhecimento que se possa obter dofilsofo.
Bertrand RussellTudo est bem como est.Wittgenstein
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PREFCIO
Meu primeiro encontro com as teorias filosficas dos nomes prprios aconteceu
h mais de vinte anos, quando me encontrava na Alemanha escrevendo uma tese
sobre a concepo de significado na ltima filosofia de Wittgenstein. Como erade se esperar, a melhor resposta parecia-me ser a teoria do feixe de descries,
tal como fora defendida por Wittgenstein na seo 79 de suas Investigaes
Filosficas. Por contraste, as poucas leituras que fiz na poca sobre a concepo
causal-histrica da referncia dos nomes prprios proposta por Kripke me
deixaram escandalizado. O recurso ao batismo e s cadeias causais soava-me
como uma explicao mgica da referncia. No que eu me sentisse vontadecom a teoria do feixe. Minha opinio era a de que seria necessrio impor uma
ordem ao apanhado arbitrrio de descries constitutivas do feixe, e que isso s
poderia ser feito pelo recurso a alguma regra-descrio de ordem superior, capaz
de estabelecer o papel e a fora das regras-descries a ele pertencentes. Mas
logo me esqueci do assunto.
S voltei a me interessar pela questo dos nomes prprios em 2006, por
razes acidentais. Lembrei-me ento de meu antigo projeto. Escrevi um breve
esboo no qual propunha a existncia de uma regra cognitiva meta-descritiva
para nomes prprios, capaz de conferir papel e valor aos diversos tipos de
descrio pertencente aos feixes de descries a eles associados a partir de uma
demanda fundamentadora de localizao e/ou caracterizao. Apresentei esse
esboo em vrias ocasies, sempre surpreso com a forte reao de rejeio dos
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ouvintes. Contudo, como ningum me apontava um erro de princpio e como um
pouco de reflexo me mostrava que as objees seriam facilmente refutveis,
prossegui. A teoria resultante o metadescritivismo causal encontra-seexposta no captulo 9 do presente livro, sendo ela o que posso oferecer de mais
interessante. Embora ela seja uma teoria mista, incorporando inovaes
provenientes da concepo causal-histrica, ela s condiciona s categorias
descritivistas, o que faz com que ela se deixe mais propriamente classificar
como uma refinada elaborao da velha teoria do feixe de descries. Embora
inevitavelmente mais complexo, o metadescritivismo causal possui maior poder
explicativo do que as teorias anteriores, sendo capaz de vrios feitos que o
recomendam: ele capaz de explicar melhor a maneira como o contedo
cognitivo (sentido) do nome prprio contribui para a identificao do seu
portador (referncia), de gerar a idia de que nomes prprios so designadores
rgidos do prprio interior do descritivismo, de explicar de dentro do prprio
descritivismo porque se d o contraste entre a rigidez dos nomes prprios e a
flacidez das descries definidas e, finalmente, de responder mais eficazmente
aos contra-exemplos apresentados teoria do feixe.
Uma vez que me encontrava investigando a funo dos nomes prprios, meu
interesse alargou-se para a histria das teorias descritivistas e tambm para a
necessidade de alcanar um entendimento crtico da concepo causal-histrica
que fizesse justia ao trabalho genial de Kripke. Disso resultaram os captulos 7
e 8 desse livro.
A investigao do funcionamento dos nomes prprios inevitavelmente me
levou a considerar outras expresses referenciais, como descries definidas,
termos indexicais e mesmo termos gerais, onde a mesma disputa entre
cognitivismo e referencialismo se repete. Minha pergunta foi irreprimvel. Se
havia obtido to bons resultados defendendo uma espcie de cognitivismo
metadescritivista para o caso dos nomes prprios, por que semelhante maneira
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de ver no poderia produzir resultados igualmente interessantes quando aplicada
s outras expresses referenciais? A tarefa me parecia imensa, mas a intuio
era boa, de modo que decidi considerar tambm essas questes. O objetivo eraduplo. De um lado, queria demonstrar as limitaes das teorias referencialistas
aplicadas s outras expresses referenciais; de outro, considerando as objees,
queria desenvolver melhores explicaes cognitivistas (neo-descritivistas ou
neo-fregeanas) para os modos como descries definidas, indexicais e termos
gerais referem. Foi isso o que tentei fazer nos captulos 5, 6, 10, 11 e 12 desse
livro. Alguns resultados me parecem memorveis. Entre eles est a
compatibilizao do descritivismo de Russell como de Frege, a defesa da
irrelevncia das incongruncias parciais no resgate descritivista do contedo dos
indexicais, a tese da elasticidade do pensamento, a crtica ao externalismo
semntico de Putnam e a proposta de regras meta-descritivas parcialmente
anlogas s dos termos singulares na constituio de regras de aplicao dos
termos gerais. Muito do que escrevi, porm, no passa de esboos rudimentares,
que lano na expectativa de que venham a ser mais adequadamente
desenvolvidos por outros. Assim deve poder ser, dado que a filosofia work in
progresspor definio.
Finalmente, senti a necessidade de esclarecer as assunes filosficas que me
conduziram a abordar as expresses referenciais da maneira como fiz. Meus
heris so Frege e Wittgenstein. A meu ver no h nada na filosofia da
linguagem contempornea comparvel obra desses dois filsofos. Ombreados
por Russell, eles foram at o osso das questes filosficasno que concerne
amplitude e profundidade de seus insights, longe de permanecerem na
exterioridade dos problemas, ou na discusso de hipteses sobre hipteses, to
comum filosofia contempornea (uma razo para tal seria que a filosofia um
produto cultural e porque as filosofias de Frege e Wittgenstein foram produzidas
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em um tempo no qual a cultura ainda era a principal fonte de valor, ao invs da
cincia, como veio a se tornar o caso).
Escrevi os captulos 1, 2 e 3 desse livro com o objetivo de aclararpressupostos geralmente motivados pelas concepes semnticas desses dois
grandes filsofos. Foi luz de meu entendimento de Frege que procurei definir,
nos trs primeiros captulos desse livro, o meu desiderato como sendo o de fazer
uma defesa sustentada de uma concepo que pelo menos to antiga quanto a
doutrina aristotlica dos conceitos e a doutrina estica das lekta: o ponto de vista
de senso comum, segundo o qual uma expresso referencial s capaz de referir
devido a um elo intermedirio, que no pertence nem a ela mesma nem ao que
ela se refere. Procurei esclarecer essa tese geral interpretando o elo intermedirio
em termos de sentidos (modos de apresentao), que s diferem dos sentidos
fregeanos por serem incapazes de existir fora de suas instanciaes cognitivas.
Esses sentidos, por sua vez, so analisveis em termos de regras e/ou
combinaes de regras semntico-cognitivas, determinadoras dos usos
referenciais das expresses correspondentes uma idia de inspirao
wittgensteiniana.
Ao fazer isso percebi, em retrospecto, que aquilo que eu estava tentando
fazer poderia ser entendido como a retomada de um programa deixado
inconcluso por Ernst Tugendhat em seu livro de 1976. Esse programa poderia a
meu ver ser fregeanamente concebido como sendo, para o caso fundamental da
frase predicativa singular, o de analisar o sentido epistmico (Erkenntniswert)
do termo singular como a sua regra de identificao, do termo geral como a sua
regra de aplicao e da frase predicativa completa como a sua regra de
verificao. Essa ltima regra seria a resultante da aplicao combinada das
duas primeiras, o que foi visto por Tugendhat como uma forma analiticamente
aprofundada de se falar da condio de verdade identificada ao significado. Por
conseguinte, meu desiderato nesse livro deixa-se tambm explicar como sendo o
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de justificar e analisar em maiores detalhes cada uma dessas regras em sua
natureza, subdivises e relaes, alm de esclarecer atributos a elas
relacionados, como os de existncia e verdade.Reconheo que a minha tentativa de produzir uma elaborao geral dessas
assunes nos trs primeiros captulos permaneceu inevitavelmente esquemtica
e em alguns momentos selvagemente especulativa. Mas o prprio sucesso do
tratamento posterior das expresses referenciaisque depende apenas do que h
de mais bem fundado nessas assunesem certa medida tambm as vindica.
Essas so as estaes do presente texto, que foi escrito na inteno de ser
entendido por leitores sem conhecimento especializado de filosofia da
linguagem, pois como a entendo ela deve servir antes de tudo aos que se
interessam pela filosofia em geral.
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AGRADECIMENTOS
Devo agradecer ao CNPq por uma bolsa de ps-doutorado na Universidade de
Konstanz junto ao professor Wolfgang Spohn, onde permaneci no perodo de
2009/2 a 2010/1 e onde pude desenvolver uma primeira verso completa do
presente texto. Tenho muito a agradecer a muitas pessoas, mas em especialgostaria de agradecer ao professor Wolfgang Spohn por ler e discutir comigo
verses em ingls e em alemo de minhas idias sobre nomes prprios e termos
gerais. Tambm gostaria de agradecer ao professor Joo Branquinho pelas
discusses sobre nomes prprios e verificacionismo em seus colquios na
Universidade de Lisboa. Outras pessoas a quem sou grato so ao professor
Manuel Garcia-Carpintero, que em 2006 me incentivou a dar incio a essapesquisa, assim como aos professores Nelson Gomes, Andr Leclerc e Daniel
Durante, por objees e estmulos. Devo tambm agradecimentos ao professor
John Searle, que me recebeu como pesquisador em Berkeley em 1999 e que em
termos de metodologia e idias , junto com Ernst Tugendhat, o filsofo vivo
que mais me influenciou no desenvolvimento das idias aqui expostas.
Finalmente, gostaria de agradecer aos professores Raul Landin e Guido Antnio
de Almeida por me terem, h muitos anos, tornado consciente da importncia de
uma aproximao sistemtica das questes filosficas atravs do exemplo
incomparvel dos grandes clssicos.
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SUMRIO
PREFCIO
PARTE I: SEMNTICA FILOSFICA
1.
INTRODUO2. SEMNTICA WITTGENSTEINIANA3. FREGE: PARFRASES SEMNTICAS
PARTE II: TERMOS SINGULARES
4.
CLASSIFICANDO OS TERMOS SINGULARES5.
A SEMNTICA DOS TERMOS INDEXICAIS6.
A SEMNTICA DAS DESCRIES DEFINIDAS7.
NOMES PRPRIOS (I): TEORIAS DESCRITIVISTAS8.
NOMES PRPRIOS (II): TEORIAS CAUSAIS-HISTRICAS
9.
NOMES PRPRIOS (III): META-DESCRITIVISMOCAUSAL
PARTE III: TERMOS GERAIS
10.INTRODUO: DESCRITIVISMO VERSUSCAUSALISMO11.PUTNAM, A TERRA GMEA E A FALCIA
EXTERNALISTA12.AS IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL
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PARTE I: SEMNTICA FILOSFICA
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1. INTRODUO
Explicar os mecanismos pelos quais as expresses referenciais referem tem sido
o problema seminal de toda a filosofia da linguagem iniciada com Frege. Mas o
que so expresses referenciais? Ora, elas so todas as expresses (palavras,combinaes de palavras) capazes de referir (designar, denotar). Tais expresses
so chamadas de categoremticas, distinguindo-se das expresses
sincategoremticas, de palavras como e, no, se... ento, alguns, cuja
funo na linguagem meramente estrutural.
Em frases h duas espcies mais gerais de expresso referencial: os termos
singulares e os termos gerais. Os assim chamados termos singulares soexpresses cuja funo a de especificar um objeto (um particular)especfico,
ao indicar qual ele dentre todos. Eles referem no sentido mais estrito da
palavra, sendo a forma mais distintiva a dos nomes prprios. Os termos gerais,
por sua vez, so expresses que designampropriedades de objetos ou relaes
entre eles, podendo por isso serem predicados de maisdeumobjeto. Nas frases
predicativas singulares os termos singulares comparecem como sujeitos e os
termos gerais como predicados. Tais frases so tipicamente capazes de ser
verdadeiras ou falsas. caracterstico dos termos gerais que eles possam se
aplicar a uma variedade indefinida de objetos, identificados pelos termos
singulares aos quais se associam. Assim, o termo geral planeta se aplica ao
objeto Vnus, mas tambm se aplica a Marte e a Saturno, enquanto o termo
singular Vnus s pode ser aplicado ao planeta Vnus. O tema desse livro
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sero os termos singulares e gerais em suas vrias formas e os variados
mecanismos atravs dos quais eles so capazes de alcanar as suas referncias.
A metafsica da referncia
Uma grande parte do contedo desse livro ser, todavia, crtico. Em minha
opinio, a filosofia da linguagem contempornea se encontra assolada pelo que
eu gostaria de chamar de metafsica da referncia. So idias primafacie
contra-intuitivas, como o caso da sugesto de Saul Kripke, Keith Donnellan,
Michael Devitt e outros, de que o mero recurso a cadeias causais externas
ligando o objeto ao seu nome possa bastar para explicar a sua funo referencial,
independente do que possamos ter em mente com esses nomes, ou da tese de
Hilary Putnam, Tyler Burge, John McDowell e outros, segundo a qual os
significados das palavras, os seus entendimentos, os pensamentos, e mesmos as
prprias mentes, possam existir no mundo externo (fsico ou social) fora de
nossas cabeas, ou ainda, da posio de David Kaplan, John Perry, Nathan
Salmon e outros, segundo a qual muitas de nossas sentenas contm elementos
do prprio mundo como constituintes daquilo que esto a dizer. No obstante o
fato de semelhantes idias ofenderem as mais elementares intuies semnticas
de qualquer pessoa que no tenha sido filosoficamente iniciada, elas so hoje
vistas por muitos especialistas como resultados slidos da reflexo filosfica.
Quero nesse livro tornar plausvel o insucesso das doutrinas mais
propriamente metafsicas desses filsofos. Isso no o mesmo que rejeitar o
interesse filosfico de muitos dos argumentos por eles desenvolvidos. Se tal
interesse no existisse, no haveria porque perder tempo com a sua discusso.
Pois insights filosficos equvocos, na medida em que forem sugestivos, so
indicadores de alguma coisa importante, possuindo um potencial esclarecedor
em filosofia, onde o progresso costuma ser dialtico. Sem o criativo e ousado
revisionismo desses filsofos, sem os desafios e problemas por eles criados,
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idias concorrentes dificilmente seriam providas do combustvel intelectual
necessrio para levantarem vo.
O primado do saber comum
Para combater a metafsica da referncia so necessrias algumas armas. A
primeira delas diz respeito deciso metodolgica de levar a srio o um tanto
esquecido princpio fundamental da filosofia da linguagem ordinria admitido
por filsofos como J.L. Austin e G.E. Moore, segundo o qual ao menos o ponto
de partida de nossas investigaes deve residir em nossas intuies pr-
filosficas de senso comum, refletidas nos usos das expresses em nossa
linguagem corrente. A idia subjacente a isso conhecida: os usos correntes das
palavras sedimentam a experincia milenar das comunidades humanas, e uma
ateno excrupulosa a esses usos pode ser capaz de revelar distines categoriais
importantes e prevenir confuses. Exemplos de princpios do senso comum que
foram selecionados por filsofos como Moore so Sabemos com certeza que
existe um mundo externo, Sabemos que existem outras pessoas, Sabemos
que o mundo tem um passado, Sabemos que o preto no branco e ainda
Sabemos que uma coisa ela mesma.1
O problema que parece claro que ao menos alguns dos princpios do senso
comum foram falseados, quer pela cincia, quer por alteraes em nossa prpria
concepo de mundo (Weltanschauung). Para exemplificarmos o primeiro caso,
basta nos lembrarmos que crenas de senso comum de que o sol gira em torno
da terra e de que os corpos mais leves caem mais lentamente foram refutadas por
Galileu. E para exemplificarmos o segundo caso basta nos lembrarmos das
crenas de que um Deus pessoal existe e de que temos uma alma que pode
1 Ver G.E. Moore: A Defense of Common Sense.
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existir fora do corpo. Houve tempo em que essas crenas poderiam ser
consideradas verdades de senso comum.
Uma resposta a essa dificuldade consiste na alternativa de muitos dosfilsofos que defenderam o senso comum, que consistiu na adoo do assim
chamadosensismo comum crtico(criticalcommonsensism)1,segundo o qual os
princpios de senso comum so altamente confiveis, mas no so indubitveis.
Contudo, essa opo enfraquece a prpria posio de quem defende o senso
comum como ponto de partida, pois se os princpios do senso comum podem ser
falsos, ento parece que precisamos de um critrio para distinguir os princpios
verdadeiros dos falsos. Esse critrio, porm, no pode se basear no senso
comum, sob pena de circularidade.
No pretendo, nos argumentos que se seguem, garantir os princpios do senso
comum contra toda e qualquer objeo. Mas quero demonstrar que a fora das
objees contra a confiabilidade dos princpios de senso comum advindas do
progresso da cincia e das mudanas de concepo do mundo como as recm-
consideradas aparente e deriva da confuso entre formas de senso comum
inautnticas com a forma mais autntica, que gostaria de chamar de forma
modesta.
Comecemos com as objees vindas da cincia. Quanto cincia emprica,
considere os enunciados
(a)
O sol circunda a terra diariamente,(b)Os corpos mais pesados caem mais rapidamente, mesmo descontando a
resistncia do ar,(c)O tempo flui igualmente, mesmo quando um corpo se desloca a
velocidades prximas s da luz.
1
C.S. Peirce: Critical-Commonsensism; ver tambm Roderick Chisholm: Theory ofKnowledge, p. 64.
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Esses pretensos enunciados do senso comum foram todos corrigidos pela
cincia. Galileu demonstrou que (a) e (b) so enunciados falsos, o primeiro
porque a terra que circunda o sol e o segundo porque no vcuo todos os corposcaem com a mesma acelerao. E Einstein demonstrou que (c) falso, pois a
passagem do tempo torna-se exponencialmente mais lenta conforme o corpo se
aproxima da velocidade da luz. O filsofo Bertrand Russell, por exemplo,
procurou tornar claro que a teoria da relatividade veio a demonstrar que no s
essa, mas vrias outras crenas de senso comum no resistem a uma
considerao mais acurada.1
Meu ponto, porm, que nenhum dos enunciados acima legitimamente
pertencente ao senso comum no sentido prprio da expresso, que chamei de
modesto. Esses enunciados so na verdade extrapolaes radicadas nos
enunciados do senso comum mais modesto, feitos no interesse da cincia por
cientistas e mesmo por filsofos. Os verdadeiros enunciados do senso comum,
dos quais (a), (b) e (c) so extrapolaes, podem ser versados respectivamente
como se segue:
(d)O sol cruza os cus diariamente,(e)A pedra cai mais rpido do que a pluma,(f)O tempo flui igualmente para todos ns, estejamos em movimento ou
parados.
Vemos que o senso comum cientificamente ou especulativamente motivadohistoricamente interpretou esses enunciados de senso comum como implicando
respectivamente (a), (b) e (c). No obstante, os enunciados que foram
efetivamente originados de nossas prticas lingsticas ordinrias so como (d)
(e) e (f), os quais continuam perfeitamente confiveis, mesmo aps Galileu e
1 Ver Bertrand Russell:ABC of Relativity, cap. 1
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Einstein. Afinal, bvio que (d) um enunciado verdadeiro, pois ele anterior
distino entre o movimento real e aparente do sol e tudo o que ele afirma que
aquele crculo luminoso cruza o cu a cada dia, o que ningum discutiria.
1
Mesmo tendo sido provado que os corpos caem em velocidades diferentes no
vcuo (e) tambm um enunciado indiscutvel, pois tudo o que ele diz que a
pluma cai mais lentamente do que a pedra em circunstncias normais.
Finalmente, mesmo tendo sido demonstrado que a passagem do tempo se torna
mais lenta com o aumento da velocidade, o enunciado (f) correto, pois ele no
foi pensado sob a considerao de medidas impossivelmente acuradas da
passagem do tempo, uma vez que para as diferenas de velocidade dos corpos ao
nosso redor a dilatao do tempo to insignificante que seria absurdo no
desprez-la.2O que esses exemplos demonstram que no foram as verdades do
senso comum modesto, radicadas em nossa forma de vida cotidiana que foram
refutadas pela cincia, mas extrapolaes do senso comum fora de seu lugar
prprio, produzidas por cientistas e filsofos. Fora isso no h nenhum conflito
entre as descobertas da cincia e as afirmaes do homem comum.
Esse mesmo raciocnio se aplica ao conhecimento a priori do senso comum,
como o de que um enunciado no pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo,
de que o branco no preto ou de que no existem frases sem verbos. Considere
o caso de enunciados como (g) O bem admirvel, que gramaticalmente
idntico a enunciados como (h) Scrates sbio. Ambos tm a mesma forma
gramatical sujeito-predicado. Como no primeiro caso o sujeito no designa
nenhum objeto visvel, Plato teria concludo que esse sujeito precisa designar O
1 Esse um enunciado como o de Herclito, que notou que o sol tem o tamanho de um phumano. Como notou um intrprete, basta que nos deitemos no cho e levantemos o p contrao sol para nos certificamos da verdade desse enunciado.2
Mesmo para as misses espaciais a fsica usada a newtoniana. Como ento supor que taispreocupaes pudessem pertencer ao campo semntico do senso comum modesto.
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Bem em si mesmo, a idia do bem, existente apenas no reino inteligvel das
idias eternas e imutveis.
Para chegar a sua concluso, Plato se baseou em intuies da linguagemordinria concernentes distino gramatical entre sujeito e predicado. Todavia,
a introduo da lgica quantificacional por Frege no final do sculo XIX
demonstrou que frases como (d) se deixam analisar como dizendo que tudo o
que bom admirvel ou Para todox, sex bom, entox admirvel, onde a
palavra bem passa funo dopredicado bom, deixando de se referir a um
objeto, o que diminui a presso para a aceitao da idia platnica do bem.
Contudo, a sugesto de que o sujeito O Bem se refere a um objeto abstrato, a
idia, no pertence ao senso comum e nem se encontra inscrita na linguagem
ordinria. Embora ela seja uma extrapolao especulativa feita por filsofos por
apelo implcito gramtica da linguagem ordinria, seria injusto responsabilizar
esta ltima por isso. Afinal, o advento da lgica quantificacional no refutou a
gramtica da linguagem ordinria, mas adicionou a essa linguagem uma nova e
fundamentalmente diversa dimenso de anlise.
O que todos esses exemplos demonstram a falsidade da freqente afirmao
de que o desenvolvimento da cincia veio a contradizer o senso comum. O que o
desenvolvimento da cincia veio a contradizer foram extrapolaes
especulativas que cientistas e filsofos fizeram com base no senso comum e na
linguagem ordinria, como a sugesto de que o sol gira em torno da terra e a de
que existe um outro mundo formado por objetos abstratos. Pois nada disso tem a
ver com a aplicao do senso comum modesto e da linguagem ordinria no
contexto em que essas intuies emergiram.1
Consideremos agora alteraes do senso comum que foram colocadas em
questo por alteraes em nossa concepo do mundo, como a crena de que
1Ver C.F. Costa:Filosofia da Mente, pp. 22-23.
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Deus existe ou de que temos mentes independentes de nossos corpos.
Praticamente em todas as culturas humanas a crena em Deus e na alma foi
admitida inquestionvel, mesmo na cultura europia, at dois ou trs sculosatrs. Mas hoje no se pode dizer que essas crenas sejam mais universalmente
obtidas. Assim, parece que o senso comum pode se alterar com a alterao de
nossa concepo do mundo.
Minha reao a essa objeo no difere muito da que tenho para a objeo
proveniente do progresso da cincia. Essas crenas no pertenceram
propriamente ao cerne que chamo de senso comum modesto. Elas resultaram do
senso comum modesto adicionado ao wishfulthinking. Era certamente mais fcil
acreditar na existncia de um Deus pessoal ou de uma alma independente do
corpo h dois mil anos atrs, na falta de informaes divergentes produzidas
pelo progresso cientfico; contudo, mesmo assim sempre foi aqui adicionado um
elemento de f, de crena para alm dos fatos, ao que foram aduzidas razes.
Isso se demonstra linguisticamente: uma pessoa comum geralmente no diz que
sabeque uma alma independente do corpo ou que sabeque Deus existe:
ela prefere dizer que acreditanessas coisas, enquanto ela mesma em momento
algum recusa a admitir que sabe que existe um mundo externo, que o mundo
existia antes de ela ter nascido etc., mas no que apenas acredita nisso.
Espero ter com isso tornado plausvel a idia de que o mais alto tribunal da
razo realmente o senso comum modesto. Afinal, como a prpria cincia s
pode ser construda sob a assuno de conhecimentos de senso comum modesto,
no parece ser sequer em princpio possvel destruir o senso comum sem que
com isso se destrua os prprios fundamentos da racionalidade. No pretendo,
contudo, considerar sequer o senso comum modesto necessariamente constitudo
de princpios indubitveis, mas apenas mostrar que nem a cincia nem as
alteraes em nossa concepo do mundo foram suficientes para desfazer a
fora dos princpios do senso comum adequadamente considerado.
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Uma concluso resultante da comparao entre senso comum e cincia que
quando consideramos a razo natural dentro de seus despretenciosos limites
prprios, a cincia no se revela como oposio, mas como extensodo sensocomum. Essa concluso refora nossa confiana em que no comeo de tudo se
encontram as verdades do senso comum, adequadamente escolhidas e
interpretadas. (Com isso no estou defendendo que elas sejam suficientes contra
os argumentos filosficos que as contestam, como pretendia um filsofo como
Reid. O que quero dizer que elas servem como pontos de apoio confiveis.
Assim, tomando um exemplo de P.M.S. Hacker concernente ao ponto de vista
de Wittgenstein, embora a resposta de senso comum ao paradoxo de Zeno seja a
de que Aquiles pode vencer a tartaruga colocando um p diante do outro no nos
satisfaz, pois no pe descoberto a fonte de confuso apesar de ser uma
indubitvel verdade de senso comum que Aquiles pode vencer a tartaruga1.
Tambm um princpio de senso comum modesto, como o de que o mundo
externo existe, pode a meu ver ser justificado contra argumentos filosficos2
Contudo, nada disso pode ser feito sem base em outros princpios de senso
comum.)
Diversamente do que possa parecer, no acho que devamos nos restringir ao
senso comum ingnuo e ao seu reflexo nas intuies da linguagem comum.
Quero estender a base daquilo que serve de fundamento para nossas atitudes
diante das idias filosficas ao senso comum informado pela cincia o que
gostaria de chamar de saber comum. Melhor dizendo: tanto a cincia formal
quanto a emprica (o que inclui a fsica, a biologia, a psicologia, a lingstica...)
so capazes de adicionar ao conhecimento de senso comum modesto novas
verdades, como a de que o bem na frase O bem admirvel no deve ser
interpretado como um sujeito lgico, ou de que a frase O sol atravessa o cu
1
G.H. Baker & P.M.S. Hacker: Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1, p. 303.2Ver minha prova do mundo externo no artigo Critrios de realidade.
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diariamente no implica em que ele circunda a terra. O que chamo de saber
comum , pois, a extenso daquilo que inclui o senso comum ingnuo e o
conhecimento cientfico lhe foi adicionado. Esse saber comum no precisa,certamente, ser compartilhado por todas as pessoas. Mas ele comum no sentido
de que passvel desse compartilhamento: ele aquele conhecimento com o
qual qualquer pessoa razovel ir por-se de acordo, caso esteja habilitada a
compreend-lo e avali-lo. Assim, minha proposta a de que aquilo que capaz
de possibilitar um juzo adequado sobre a razoabilidade de nossas teses
filosficas o senso comum cientificamente informado, nomeadamente, nosso
saber comum. Podemos construir a respeito o seguinte esquema:
Teoria filosfica
Princpios do senso Conhecimento cientfico
comum modesto (saber comum)
Os vetores sugerem que no a filosofia que corrige o senso comum modesto
nem o conhecimento cientfico, mas, pelo contrrio, ela deve harmonizar-se a
eles. No se trata, pois, de equilbrio reflexivo, mas de harmonizao com a base
do saber comum. O ponto a ser acentuado o da necessidade de coerncia das
teorias filosficas com o saber comum. As nossas teorias filosficas tornam-serazoveis quando alcanam essa espcie de coerncia. Quanto s teorias que no
alcanam essa coerncia, elas podem ser admitidas como propostas interessantes
e mesmo instigantes do ponto de vista especulativo, mas nem por isso merecem
ser seriamente consideradas em sua face de valor. Esse , em meu juzo, o caso
das metafsicas da referncia.
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Essas consideraes tambm oferecem uma soluo para o problema que
surge quando a razo (filosfica) e o senso comum colidem. Minha suspeita
que a razo (quando adequadamente seguida e suficientemente explicitada) e osenso comum (em seu lugar prprio e devidamente reconciliado com o
conhecimento cientfico) nunca colidem, a no ser na aparncia, uma vez que a
prpria racionalidade da teoria filosfica decorre de seu equilbrio reflexivo com
o saber comum. Assim, quando uma pretensa contradio emerge, cabe ao
filsofo trat-la como um paradoxo do pensamento, buscando argumentos que
conciliem a teorizao filosfica com o senso comum e a informao cientfica.
O filosofar por exemplos
Quero complementar esse princpio do primado do saber comum com o que j
foi chamado de mtodo de filosofar por exemplos preconizado por Avrum
Stroll.1 Trata-se do mtodo wittgensteiniano de proceder atravs do exame
minucioso e comparativo de uma variedade de exemplos de usos de uma
expresso lingstica, possivelmente imaginando novas situaes de uso, na
inteno de elucidar os seus sentidos, o quanto isso nos for necessrio. Assim,
com base na aplicao do princpio da priorizao do saber comum
(nomeadamente, do senso comum informado pela cincia) e com o mtodo do
filosofar por exemplos, pretendo exercitar aqui uma crtica da linguagem, cujo
desiderato o de demonstrar que as teses positivas mais audaciosas da
metafsica da referncia, mesmo que inovadoras e capazes de apontar para
fenmenos de fundamental importncia, se tomadas apenas em sua face de valor
no passam de sofisticadas iluses conceituais.
A noo de uma crtica da linguagem teve proeminncia na filosofia
teraputica do ltimo Wittgenstein. O que ele pretendia era, no seu dizer, trazer
1
Este o mtodo preconizado por Avrum Stroll em seu livro Sketches of Landscapes:Philosophy by Examples, pp. x-xi.
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a linguagem de suas frias especulativas para o seu labor cotidiano. E isso era
para ser feito mostrando, atravs de exemplos, os modos como realmente
usamos as expresses, com o resultado de que os absurdos encobertos dametafsica acabariam por se demonstrar absurdos evidentes.1 Parece-me que
disso que muito da presente metafsica da referncia e de resto muito da
prpria filosofia contemporneanecessita.2
Essa tarefa especialmente importante em um tempo como o nosso, em que
o veio da filosofia do senso comum e da linguagem ordinria, que vem de
Thomas Reid a G.E. Moore e do ltimo Wittgenstein a J.L. Austin, parece ter se
extinguido, dando lugar ao cientismo e a filosofias compartimentadas, que
servem curiosidade especulativa de especialistas nesse ou naquele domnio
cientfico mesmo que ao preo de colocar entre parnteses o saber comum.
Como conseqncia disso estamos a meu ver assistindo, na filosofia da
linguagem, a um entulhamento com efeitos potencialmente obscurantistas do
que Wittgenstein chamou de castelosde areia conceituaisresultantes de ns
do pensamento, bem urgidos equvocos semnticos resultantes do desejo de
inovao acompanhado de uma desconsiderao das sutis diferenas de
significao ganhas pelas expresses em seus diversos contextos de uso, o que
conduz a uma sucesso de debates entre teorias cada uma mais implausvel do
que a outra, em uma forma de escolasticismo filosfico.
Contra a filosofia teraputica de Wittgenstein observou que no plausvel a
idia de que a filosofia no possa nem deva ser tambm teortica e sistemtica,
no sentido de conter generalizaes abrangentes e substantivas. Eu concordo
1Ludwig Wittgenstein:Philosophische Untersuchungen, sec. 109, 111, 122, 125, 129.2 No h mais hoje quem concorde com a tese sugerida por certas passagens dos textos deWittgenstein, segundo a qual toda a filosofia se reduz a confuses lingsticas. Apesar disso, um fato que a prtica filosfica quase inevitavelmente produtora de confuses lingsticas,mesmo que contenha algum insightsubstancial por trs do que pretende sugerir. Da que uma
ateno crtica prvia aos sentidos ordinrios dos conceitos usados propedeuticamentedesejvel e ser aqui metodologicamente empregada.
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com isso. Mas discordo que essa tenha sido verdadeiramente a posio de
Wittgenstein. Pois ele mesmo era consciente de que por trs das confuses
conceituais, como explicao de seu carter de profundidade, h insightteortico legtimo para cuja expresso falta uma conceitologia adequada. Com
efeito, qualquer que seja a crtica da linguagem que venhamos a fazer, a sua
eficcia se deve ao fato de que ela se encontra inevitavelmente impregnada de
pressupostos tericos, que podem ser ou no ser explicitamente trabalhados.
Como o prprio Wittgenstein percebeu, possvel e mesmo necessrio o
estabelecimento de apresentaes panormicas (bersichtliche Darstellungen)
da estrutura lgico-gramatical dos conceitos constitutivos dos ncleos mais
centrais de nosso entendimento. Como ele escreveu em uma famosa passagem:
Uma fonte principal de nossa incompreenso que no temos uma visopanormica dos usos de nossas palavras falta carter panormico nossagramtica. A representao panormica permite a compreenso, que consiste
justamente em ver as conexes. Da a importncia de encontrar e inventar
articulaes intermedirias.1
interessante notar que as articulaes intermedirias no precisam se encontrar
j prontas. Aqui entra o elemento teortico. A articulao intermediria pode ser
simplesmente a regra geral, o elo comum relacionando uma variedade de casos.
Esse elo comum ser mais propriamente chamado de descritivo se ele j se
encontrar manifesto na linguagem; mas ele ser melhor chamado de teortico se
tiver de ser descoberto como uma maneira de dar conta da unidade na
diversidade daquilo que fazemos com a linguagem. verdade que ao propor
1L. Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, I, sec. 122. Como notaram G.P. Baker eP.M.S. Hacker, Wittgenstein no rejeita o engajamento em teorizaes filosficas quando elasse fazem necessrias. Ver desses autores Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1,cap. XI. Alm disso, Wittgenstein tambm usa a palavra teoria para qualificar o seu prprio
procedimento terico, no sentido de um sistema orgnico ao invs de arquitetnico. VerWittgenstein: Wittgensteins Lectures, Cambridge 1932-35, p. 43.
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essas coisas, Wittgenstein tambm afirmava que a filosofia deve ser descritiva e
no-teortica. Mas como notaram G.P. Baker e P.M.S. Hacker, o que
Wittgenstein quis atravs disso foi rejeitar o cientismo, entendido como aassimilao do trabalho filosfico ao modelo de teoria da cincia particular e
teoretizao metafsica que mimetiza a cincia1o cientismo, que hoje em dia
redutivo no s no sentido de abandonar a mediao do senso comum, mas at
mesmo do saber comum, quando se encontra comprometido com o que
pensado em alguma rea especfica da cincia. Contra isso, o que desejamos
encontrar e expor as regras que governam a aplicao de nossos termos
filosoficamente relevantes, sem para tal comprometer o equilbrio reflexivo com
o nosso saber comum.
O conhecimento tcito do significado: a explicao tradicional
Tambm assumimos o fato bvio de que uma linguagem um sistema de signos
governados por regras e que essas regras so convencionais. Uma conveno
lingustica uma regra que os participantes da comunidade lingustica
geralmente seguem e esperam que os outros participantes tambm sigam,
mesmo que lhes falte conscincia dessas regras.2 devido a esse carter
compartilhado das convenes que governam a linguagem que somos capazes
de us-la de maneira a comunicar verbalmente o que pensamos. Uma das
assunes mais conhecidas da filosofia da linguagem tradicional a de que no
temos conscincia das regras semnticas que governam os usos que fazemos de
expresses centrais de nossa linguagem. Essas regras encontram-se geralmente
automatizadas em ns, de modo que ao usarmos uma expresso no precisamos
tomar conscincia do complexo entrelaado de acordos tcitos envolvidos. Uma
razo disso encontra-se no prprio modo como as expresses geralmente so
1
G.P. Baker & P.M. Hacker: Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. II, p. 260.2David Lewis: Conventions, cap. 1.
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aprendidas. Filsofos analticosde Wittgenstein a Gilbert Ryle, P.F. Strawson,
Michael Dummett e Ernst Tugendhat sempre apontaram para o fato de que
nosso aprendizado do significado das palavras, a saber, das regras convencionaisque determinam os seus usos, no costuma se dar atravs de definies verbais,
mas de modo no-reflexivo, atravs de exemplificaes positivas e negativas
realizadas em contextos interpessoais nos quais esses usos costumam ser
confirmados ou desconfirmados e corrigidos por outros falantes.1
Se considerarmos que esse aprendizado no-reflexivo inclui termos
filosficos centrais como conhecimento, conscincia, causalidade, bem, e
mesmo termos da filosofia da linguagem como significado, referncia e
verdade, que por sua estrutura conceitual supostamente muito complexa so
particularmente elusivos, torna-se claro que essa falta de conscincia semntica
pode se tornar uma grande fonte de confuses quando o filsofo procura
esclarecer o que esses termos queremdizer, especialmente se ele estiver sob a
presso de alguma finalidade generalizadora extrnseca s demandas do prprio
objeto de sua investigao. A amplitude e fora dessa idia foi aceita por
Wittgenstein do incio ao fim de sua trajetria filosfica:
A linguagem ordinria parte do organismo humano e no menoscomplicada do que este. (...) As convenes implcitas para o entendimentoda linguagem ordinria so enormemente complicadas.2
Nosso esforo pela generalidade tem outra origem maior. Filsofos tm os
mtodos da cincia natural sob os olhos e so inevitavelmente tentados aperguntar e responder questes ao modo da cincia. Essa tendncia aprpria fonte da metafsica e deixa o filsofo em completa escurido.3
1Afora Wittgenstein, ver especialmente M. Dummett: What is a Theory of Meaning? (I) eWhat is a Theory of Meaning? (2).2
Ludwig Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus, 4.002.3Wittgenstein: The Blue and Braun Books, p. 18
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Os homens no se do conta dos verdadeiros fundamentos de suas pesquisas.A menos que uma vez tenham se dado conta disto.E isso significa: no nosdamos conta daquilo que, uma vez visto, o mais marcante e o mais forte.1
A filosofia uma luta contra o enfeitiamento de nosso intelecto pelos meiosde nossa linguagem.2
Muitos e talvez o prprio Wittgenstein, pensaram no procedimento de
explicitao das convenes implcitas da linguagem ordinria como um
procedimento revolucionrio. Mas parte artifcios como aquilo que Quine
chamou de ascese semntica (semanticaccent) o uso de uma metalinguagem
de maneira a descrever o contedo do que se encontra sob anlise3
e acuidadosa considerao dos usos lingsticos demonstrando conscincia das
sutis diferenciaes semnticas no h nada de verdadeiramente
revolucionrio nesse procedimento. Pois a anlise do significado de termos
filosoficamente relevantes dentro do escopo de uma metafsica descritiva
(dedicada, como a definiu Strawson, a descrever a verdadeira estrutura de
nosso pensamento sobre o mundo4
) no mais do que uma retomada, com aadio de novos mtodos de anlise e de uma mais rigorosa ateno s sutilezas
da linguagem, de um projeto que perpassou toda a histria da filosofia ocidental
e que j havia tomado a forma de anlise conceitual nos dilogos de Plato.
Afinal, nesses dilogos Scrates tipicamente aparecia com uma questo do tipo
O que X?, onde X estava no lugar de termos como conhecimento, justia,
beleza, seguindo-se da as tentativas geralmente aporticas de se encontrar
uma definio capaz de resistir a objees e contra-exemplos.
Duas objees explicao tradicional
1Wittgenstein:Philosophische Untersuchungen, seo 129.2Wittgenstein:Philosophische Untersuchungen, seo 109.3
W.V.O. Quine: Word and Object, cap. VII, seo 56.4P.F. Strawson:Individuals: An Essay on Descriptive Metaphysics, p. 9.
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A idia de que possumos cognies implcitas das convenes que determinam
os significados de nossas expresses lingsticas foi desafiada por defensores do
externalismo semntico. Segundo o externalismo, os significados das expressespodem residir fora do domnio do psicolgico, no mundo fsico e social,
dependendo assim apenas de seus objetos de referncia, assim como,
eventualmente, de processos neurofisiolgicos envolvendo mecanismos causais
autnomos. Em apoio a essa idia pode ser aduzido o prprio carter no-
reflexivo das regras semnticas que determinam nossos usos lingsticos: se no
temos conscincia do significado, ento por que ele no pode ser simplesmente
no-psicolgico, dependente apenas da maquinaria neuronal? Mas nesse caso
no seria em princpio sequer necessrio o envolvimento de elementos
cognitivos no significado. Ele poderia envolver apenas mecanismos causais
autnomos, irresgatveis para a conscincia. John McDowell ilustra essa
posio ao observar contra Michael Dummett que
Podemos ter a habilidade de dizer que um objeto visto o portador de umnome familiar sem ter a menor idia de comoo reconhecemos. O presumvelmecanismo de reconhecimento pode ser maquinaria neural [e no
psicolgica] suas operaes sendo totalmente desconhecidas de quem aspossui.1
Para McDowell a funo referencial dos nomes prprios no para ser
explicada com base em regras cognitivas implcitas de identificao do objeto, a
serem descritivamente resgatadas, pois:
As opinies dos falantes sobre as suas susceptibilidades evidenciaisdivergentes com respeito a nomes so produtos de auto-observao, tanto
1John McDowell: On the Sense and Reference of a Proper Name, p. 178. O contedo entre
colchetes repete as palavras do autor em sua nota de rodap sobre essa passagem. McDowellv na posio de Dummett uma recada no psicologismo justificadamente rejeitado por Frege.
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quanto isso acessvel, de um ponto de vista externo. Elas no sointimaes vindas do interior, de uma teoria normativa implicitamenteconhecida, uma receita para o discurso correto, que guia o comportamento do
lingista competente. (grifo nosso)
1
Essas consideraes encontram-se em oposio ao que pretendo defender
nesse livro. Quero vir a demonstrar que alguma instanciao de regra semntico-
cognitiva interna acaba por ser indispensvel funo referencial, se esta for
entendida em seu sentido prprio. Veremos que para haver referncia um
elemento cognitivo geralmente no-consciente associado a nossas expresses
deve precisar ser instanciado em alguma medida, em algum momento e em
algum de seus usurios, ainda que isso no costuma ser necessrio em toda
medida, a todo momento e para todo usurio.
Eis como podemos argumentar contra McDowell. Uma diferena entre a
opinio dos falantes resultante da auto-observao do ponto de vista externo
sugerida por McDowell e a opinio resultante da auto-observao do ponto de
vista interno pretendida por Dummett a de que o resultado da primeira deveriaser gradualmente reforado pela considerao de uma multiplicidade de
exemplos, diversamente do resultado da segunda. Mas no parece que esse
reforo indutivo acontea do modo esperado. Considere, por exemplo, o
significado de uma palavra como cadeira. Todos ns sabemos o significado
dessa palavra, mas normalmente no nos damos conta de qual seria a
explicitao analtica atravs de uma definio. Assim, seguindo o mottowittgensteiniano de que o significado aquilo que a explicao do significado
explica eis uma definio perfeitamente razovel a explicar o significado da
palavra cadeira:
1John McDowell: On the Sense and Reference of Proper Names, p. 190.
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(C) Cadeira (Df.) = banco provido de encosto.1
Quando ouvimos essa definio pela primeira vez ela se nos afiguraimediatamente como algo que parece ser correto. Depois que a ouvimos,
podemos tentar imaginar uma cadeira sem encosto, percebendo que no
conseguimos. Mas s isso j basta. No precisamos ir alm, imaginando toda
sorte de cadeiras (cadeiras de balano, cadeiras de lona, cadeiras de rodas,
poltronas...) de modo a irmos reforando indutivamente nossa crena na
definio. Mas se McDowell estivesse certo, nosso conhecimento acerca do
significado de um nome comum como cadeira fosse resultado da auto-
observao de um ponto de vista externo, ento parece que ganharamos maior
certeza de que cadeiras so bancos com encosto na medida em que isso fosse
indutivamente confirmado pela considerao de um nmero de exemplos cada
vez maior. Mas no isso o que acontece e a explicao bvia que a definio
apenas recupera a conveno semntica resultante de um acordo tcito entre os
falantes que governa o uso da palavra cadeira em identificaes de cadeiras.
Mas se o que temos uma conveno, ento um elemento psicolgico precisa
estar envolvido, mesmo que de modo no-consciente, mesmo que constitudo
apenas do que poderia ser chamado de uma cognio no-reflexiva.
Confirmando a explicao tradicional, a definio torna explcita uma
conveno que se instancia em cognies implcitas, no-reflexivas, no-
conscientes.
1 difcil objetar contra. Podemos sempre imaginar casos limtrofes, como o banco com umencosto de apenas dois centmetros de altura ( banco ou cadeira?) ou a cadeira cujo encostofoi retirado por alguns minutos (ela se transformou em uma cadeira sem encosto ou
provisoriamente virou um banco?). Casos limtrofes so inevitveis, posto que nossosconceitos empricos so inevitavelmente vagos. O que justifica um conceito a sua utilidade
nas inmeras vezes nas quais ele pde ser aplicado sem dificuldades e no os poucos casosnos quais ele deixa de ser til.
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Outro argumento que vai contra a idia de que temos acesso cognitivo
implcito s convenes semnticas que governam nossas expresses foi
desenvolvido por Gareth Evans, o filsofo que mais diretamente influenciouMcDowell. Evans pede-nos para contrastar a crena que um ser humano tem de
que certa substncia venenosa com a disposio de um rato de evit-la. No
caso do ser humano trata-se de uma cognio no sentido de uma crena genuna
envolvendo conhecimento proposicional; j no caso do rato trata-se de uma
simples disposio para reagir a certo odor, e no propriamente de uma crena.
A diferena se mede no fato de que
da essncia de um estado de crena que ele esteja a servio de muitosdistintos projetos, e que sua influncia sobre qualquer projeto seja mediada
por outras crenas.1
Assim, se temos a crena de que certa substncia venenosa podemos com
ela tentar matar um rato na expectativa de que ele venha a ingerir o venenou ou,
digamos, ingerir o veneno na inteno de nos suicidarmos. Ns relacionamos
inferencialmente o contedo cognitivo-proposicional da crena de que algo seja
venenoso a uma diversidade de outras crenas, como no caso de algum que
acredita que se tornar imune a um veneno ao digerir diariamente uma pequena
quantidade dele e ir aumentando gradativamente a dose. Como nosso
conhecimento das regras semnticas no susceptvel de tais inferncias,
raciocina Evans, ele no constitudo de estados de crena reais, mas de estados
insulares, semelhantes disposio do rato. Eles no so, pois, estados
psicolgicos propriamente cognitivos.2
A caracterizao da crena proposta por Evans interessante e correta.
Minha dificuldade com o seu argumento, porm, que ele nos fecha os olhos
1
Gareth Evans: Semantic Theory and Tacit Knowledge, p. 337.2Evans: ibid.p. 339.
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para a imensa distncia que existe entre nosso conhecimento das regras
semnticas e a mera regularidade disposicional que leva o rato a evitar o veneno.
Considere, como analogia, o caso de nosso conhecimento das regras dagramtica portuguesa. Considere o caso simples das regras gramaticais de
concordncia verbal. Uma criana as aplica sem conscincia do que faz. Mas
tais regras j permitem criana realizar uma diversidade de aplicaes a verbos
muito diferentes em contextos muito distintos. Noam Chomsky manteve, creio
que corretamente, que mesmo no sendo consciente o conhecimento da
gramtica envolve conhecimento proposicional e crena, tanto quanto o
conhecimento ordinrio, sendo o conhecimento tcito que o falante tem da
gramtica inferencialmente avalivel na interao com os seus outros sistemas
de conhecimento e crena, sendo sempre capazes de ser trazidos para a
conscincia quando sob circunstncias apropriadas.1
A concluso clara que h uma gradao entre o estado mental inconsciente
mais primitiva e outras mais sofisticadas, que incluem crenas e pensamentos. O
problema o do status da regra semntica implcita. Contudo, se o que
consideramos regras semnticas so aquelas que tm como exemplo mais
simples o caso da regra semntico-criterial (C) para identificar cadeiras como
bancos com encosto, ento devemos rejeitar posies como a de Evans e
McDowell. Afinal, (C) tambm nos permite fazer inferncias simples, como a de
que uma cadeira no um banco, tendo assim muito maior proximidade com as
regras da gramtica portuguesa do que com a regularidade disposicional
demonstrada por um rato de evitar alimentos com certos odores. Parece que em
tais casos, diversamente do caso da disposio do rato, inferncias implcitas
para outras cognies encontram-se disponveis, ainda que elas sejam limitadas
e que no se possua uma disponibilidade to ampla quanto aquilo que possui o
1
Noan Chomsky: Rules and Representations, pp. 92-93, ver tambm seu livro Knowledgeand Language, pp. 261-265.
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carter de ser conscientemente colocado a servio de muitos e diferentes
projetos, como pretende Evans.1A razo dessa confuso se encontra a meu ver
no fato de que as regras semnticas em questo no tm sido nem seriamentenem suficientemente investigadas em si mesmas, diversamente do que espero
fazer no curso da presente investigao.
Cognies semnticas no-reflexivas
Em apoio ao modo de ver recm-sugerido quero apelar para as teorias reflexivas
da conscincia. A idia introduzida na discusso contempornea por D.M.
Armstrong2 a de que existem basicamente dois sentidos da palavra
conscincia. O primeiro o do que ele chama de conscincia perceptual, que
consiste no organismo estar acordado, percebendo, reconhecendo os objetos ao
seu redor e a si mesmo. Esse nvel de conscincia compartilhado com espcies
inferiores: dizemos que um hamster sedado com ter perdeu a conscincia
porque ele deixou de perceber o mundo. Claro que nesse nvel j existe
mentalidade e cognio! Mas ao perceber o mundo o organismo no percebe que
percebe, no tem conscincia de sua percepo. O rato percebe o gato, mas
discutvel se ele capaz de tomar conscincia disso no sentido prprio; quando
ameaada, uma serpente deve sentir raiva, mas certamente no tem conscincia
da raiva que tem, pois ela no possui autoconscincia... Quando ento temos
conscincia de que percebemos, sentimos, pensamos? A resposta dada pela
introduo de um segundo e verdadeiramente importante sentido da palavra
1Freud distinguia a representao inconsciente, mas apta a associar-se a outras em processosde pensamento inconscientes, da representao inconsciente verdadeiramente insulada, noassocivel a outras, que para ele emergia em estados psicticos e cujo mecanismo derepresso ele chamou de excluso (Verwerfung). Evans trata o estado mental de domnio daregra semntica no melhor dos casos como se fosse um contedo excludo no sentidofreudiano. Ver S. Freud: Die Verneinung.2
Ver o artigo clssico de D.M. Armstrong: What is Consciousness?, pp. 55-67. Vertambm seu livroMind and Body: An Opinionated Introduction, cap. 10.
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conscincia, que Armstrong chamou de conscincia introspectiva e que ns,
seguindo Locke, chamaremos de conscincia reflexiva (responsvel pela
autocosncincia). A conscincia reflexiva nasce quando os estados mentais deprimeira ordem, incluindo os da prpria conscincia perceptual, se tornam
objetos de cognies de ordem superior, a saber, de metacognies,as quais so
reflexivas do que se processa no primeiro nvel (o que D.M. Rosenthal chamou
de higher order thoughts1). S quando temos a conscincia reflexiva de um
estado perceptual que podemos dizer que ele se tornou consciente (por isso,
quando dizemos que uma sensao ou sentimento ou pensamento
consciente, estamos querendo dizer que ele se tornou objeto de metacognies).
Isso demonstra que a conscincia dita perceptual na verdade uma conscincia
inconsciente, posto que sendo no-reflexiva, nada sabe de si mesma.
Provavelmente s os seres humanos e alguns mamferos superiores so capazes
de conscincia reflexiva.
Frente ao que acabamos de considerar podemos distinguir entre duas formas
de cognio:
(i)cognio no-reflexiva: essa cognio prpria da conscinciaperceptual, ela uma cognio que enquanto tal inconsciente, nadasabendo de si mesma.(ii)cognio reflexiva: trata-se da metacognio de estados mentais deordem inferior, os quais se tornam por esse meio conscientes no sentidoimportante da palavra. Entre seus objetos esto cognies no-reflexivascomo as que ocorrem na prpria conscincia perceptual, que podem entoser chamadas de cogniesreflexivas, por serem objetos de reflexo.
1 Mesmo Armstrong concordaria que h um elemento cognitivo na reflexo de estadosmentais de primeira ordem. Ver David Rosenthal: Consciousness and Mind, parte I. Para a
origem da noo de conscincia reflexiva, ver John Locke: An Essay Concerning HumanUnderstanding, livro II, cap. 1, 19.
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Podemos agora aplicar a distino proposta ao entendimento do status dos
modos de uso de nossas expresses. Quando dizemos que as regras
determinantes de nossos usos das expresses, inclusive as regras criteriaisdeterminantes de seus usos referenciais, no so em geral conscientes, no
estamos querendo dizer que suas instanciaes so realmente no-cognitivas,
que lhes falta qualquer forma de mentalidade, ou que elas se encontram
verdadeiramente insuladas ou excludas. O que queremos dizer apenas que as
cognies que instanciam psicologicamente essas regras so de um tipo pr-
reflexivo (ou seja, elas no aparecem na forma de cognies reflexivas, falta-
lhes conscincia no sentido importante da palavra).1 Mais ainda: parece ser
sempre em princpio possvel que essas cognies no-reflexivas envolvidas em
nossos usos significativos das palavras se transformem para ns em cognies
reflexivas, conscientes, na medida em que as tornamos objetos de
metacognies reflexivas, e que isso nos sirva de base para a compreenso
consciente e a explicao verbal de sua decomposio analtica. Proponho ser
esse o caminho pelo qual nos tornamos conscientes das regras semnticas
envolvidas nos usos das expresses lingsticas.
Ainda preciso fazer uma observao a respeito da sugesto de que a
conscincia de um estado mental possa ser o resultado da simples integrao
inferencial desse estado mental com os outros estados mentais constitutivos do
sistema. Sob essa perspectiva, uma cognio inconsciente seria aquela que
permanecesse em maior ou menor medida dissociadade outros estados mentais
(embora no insulada, no excluda). Isso pode ser correto. Contudo, por que
pensar que essa maneira de ver incompatvel com uma teoria reflexiva da
1Desconsidero aqui a idia tradicional de que os estados mentais de primeira ordem geramautomaticamente metacognies, o que tornaria impossvel termos conscincia perceptualsem o acompanhamento de conscincia introspectiva. No s essa idia retira muitas
vantagens explicativas das teorias reflexivas da conscincia, como parece faltar a ela umabase intuitiva convincente.
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conscincia? Afinal, parece razovel pensar que a propriedade de um estado
mental de ser objeto de reflexo metacognitiva seja tambm uma condio
talvez fundamental para que esse estado mental possa ser mais extensamente,claramente e refletidamente integrado aos outros estados mentais constitutivos
do sistema.
Essas consideraes vm em apoio tese geral desse livro porque nos
permitiro admitir a existncia de ocorrncias semntico-cognitivas, mesmo
para os casos nos quais no temos conscincia das convenes semnticas que
estamos seguindo. As regras criteriais envolvidas no uso referencial das
expresses no precisam ser usadas de forma verdadeiramente no-cognitiva,
como mecanismos causais irresgatveis para a conscincia reflexiva, como
alguns pretenderam. Elas podem ser consideradas como sendo sempre, de um ou
de outro modo, cognitivamente aplicadas. S que essas cognies, mesmo sendo
eventos psicolgicos, por nunca terem se tornado objetos de metacognies
capazes de torn-las cognies reflexivas, no se fazem conscientes, por isso
mesmo no se tornando facilmente integrveis a outros estados mentais
constitutivos do sistema. Por isso, a falta de conscincia do que est envolvido
no uso significativo das expresses no basta para fazer-nos rejeitar a eventual
indispensabilidade semntica de um elemento psicolgico-cognitivo.
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2. SEMNTICA WITTGENSTEINIANA
Quero nesse captulo esboar uma apresentao panormica do conceito de
significado em nossa linguagem representativa, com base principalmente em
uma leitura reconstrutiva de sugestes feitas por Wittgenstein. No prximocaptulo irei aplicar os resultados dessa proposta semntica fregeana, no
intento de produzir uma anlise filosoficamente esclarecedora de suas principais
distines.
1. O elo semntico-cognitivo
O ponto de vista que pretendo sustentar nesse livro o de que uma expressoreferencial, seja ela qual for, s capaz de referir devido a algum elo
intermedirio que a vincula a sua referncia. Quero defender que esse elo
intermedirio de natureza semntico-cognitiva no sentido de que ele pode ser
considerado sob duas perspectivas: umasemnticae outrapsicolgica. Sob uma
perspectiva semntica ele chamado de sentido ou significado, uso, intenso,
conotao, conceito, contedo informativo e ainda modo de uso, critrio ou
regra semntico-criterial. J sob a perspectiva psicolgica esse memo elo pode
ser chamado de idia, representao, inteno, concepo e cognio. Eis um
esquema:
ELO SEMNTICO-COGNITIVOa) sentido, significado, contedo,
EXPRESSO intenso, modo de uso, critrio, REFERNCIA
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LINGUSTICA regra criterial, proposio...b) idia, representao, pensamento,
cognio, inteno, concepo...
Quais so as denominaes mais adequadas? Quais as que devem ser
excludas? Devemos excluir os tens psicolgicos, de modo a no confundir
semntica com psicologia? Ou devemos abandonar as abstraes semnticas
vazias em troca das concretudes empricas?
Essas so maneiras comuns, mas em meu juzo incorretas, de se colocar as
questes. Quero sugerir que as perspectivas semntica e psicolgica no so
alternativas que se excluem, mas que se complementam. Isso assim pelo fato
de que o elo intermedirio entre as palavras e as coisas pode ser aproximado de
dois modos. Enquanto elo cognitivo ele possui natureza psicolgica, consistindo
de elementos que devem ser no final remetidos a tokensmentais em indivduos
concretos; mas enquanto o elo semntico de natureza semitica, devendo ser
remetidos a typesconsiderados na abstrao de suas instanciaes em indivduos
concretos, no sendo assim psicolgicos, mesmo no possuindo nenhuma
realidade fora dessas instanciaes. Essa maneira de ver parece confirmar-se
quando notamos a correspondncia aproximada que alguns sub-tens de (a) e (b)
demonstram entre si. Eis algumas:
Perspectiva semntica Perspectiva psicolgica:
Sentido, significado idiaConceito concepo, idiaConfiguraes criteriais representaes, imagens mentaisdemandadas
proposies ocorrncias de pensamento
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No que se segue quero buscar alguma elucidao para esses sub-itens e para as
relaes entre eles vigentes, usando como fio condutor sugestes feitas por
Wittgenstein.
2. Porque o significado no pode ser a prpria referncia
As palavras que mais facilmente nos ocorrem so sentido e significado (em
geral usadas como sinnimas), alm de termos cognatos mais tcnicos como
contedo ou intenso. O que o significado? Uma primeira resposta
oferecida pelo referencialismo semntico, concepo segundo a qual o
significado de uma expresso a sua prpria referncia ou extenso. Essa
concepo nega a existncia ou a importncia de um elo intermedirio.
Wittgenstein considerou essa maneira de ver em sua forma mais primitiva, que
ele chamou de teoria agostiniana da linguagem:
As palavras da linguagem denominam objetos frases so ligaes de tais
denominaes. Nessa imagem da linguagem encontramos as razes da idia:cada palavra tem um significado. O significado correlacionado palavra.Ele o objeto para o qual a palavra aponta.1
O principal objetivo de Wittgenstein nessa passagem foi o de objetar contra o
seu prprio referencialismo semntico dos nomes de objetos simples defendido
em seu primeiro livro, o Tractatus Logico-Philosophicus. Esse modo de ver tem
um apelo natural. Afinal, comum que ao esclarecermos o significado de umapalavra ns apontemos para um objeto que exemplifique o que ela quer dizer.
Explicamos o que queremos dizer com o nome Fido apontando para o co que
leva esse nome. Isso faz parecer que o significado da palavra seja o prprio
objeto referido: aqui est o nome, l est o seu significado. Contudo, essa foi por
1Ludwig Wittgenstein:Philosophische Untersuchungen, parte 1, sec. 1.
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muitos apontada como uma idia primitiva e enganosa, que tem sido apontada
como uma sria fonte de equvocos em filosofia da linguagem1, ainda que a sua
influncia at hoje perdure.
2
H uma variedade de argumentos que parecem tornar evidente a falsidade da
concepo referencialista do significado. Um deles que muitos termos
singulares tm a mesma referncia, mas sentidos (significados) claramente
diversos: os termos singulares Scrates e o marido de Xantipa tm
significados claramente diferentes, embora se refiram a um mesmo homem. E o
oposto acontece usualmente com termos gerais: o predicado ... rpido na frase
Bucfalo rpido se refere a uma propriedade de Bucfalo e na frase Silver
rpido se refere a uma outra propriedade, pertencente a Silver. Mas embora se
referindo a diferentes propriedades, o termo geral guarda certamente o mesmo
significado ao ser aplicado a um e ao outro cavalo. Assim, parece que o
significado no pode ser confundido com a referncia nem dos termos singulares
nem dos termos gerais.
O principal argumento contra a concepo referencialista do significado,
contudo, mais bsico e em meu juzo o mais destrutivo: trata-se do fato de que
quando uma expresso referencial no tem referncia, ela no parece perder
nada do seu significado. O termo singular Eldorado e o termo geral flogisto
no tm nenhuma referncia, mas nem por isso deixam de ser significativos.
Consciente dessas dificuldades, Bertrand Russell decidiu defender a
concepo referencialista do significado em uma forma minimalista,
concernente apenas aos supostos elementos atmicos da linguagem e do mundo.
Ele deu a entender que ao menos o significado de alguns termos designadores de
1 Ver especialmente Gilbert Ryle em The Theory of Meaning.2 Ainda hoje existem defesas sofisticadas, embora pouco plausveis, do referencialismo
semntico, a mais clara sendo talvez a apresentada por Nathan Salmon em seu livro FregesPuzzles.
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objetos simples, por ele chamados de nomes prprios lgicos, seria o prprio
objeto referido; essepoderia ser o caso de uma palavra como vermelho. Afinal,
um cego no capaz de aprender o seu significado.
1
Contudo, um pouco de reflexo demonstra ser insustentvel a idia de que o
significado de uma palavra possa em algum caso se reduzir a sua referncia tout
court. Suponha que algum aplique demonstrativamente a palavra vermelho a
uma ocorrnciado vermelho (seja ela uma ocorrncia no mundo externo, como
no caso da propriedade espao-temporalmente singularizada de um objeto de ser
vermelho (o tropo), seja ela uma ocorrncia interna, como seria o caso de
perceptos (sense data) de vermelho presentemente experienciados, como queria
Russell. Poderia ser essa ocorrncia o significado da palavra?
H uma razo bvia para pensarmos que no, que a falta de critrios de
identidade. Isso se nota quando consideramos que a ocorrncia de vermelho
seja ela fisicamente ou fenomenalmente pensada ser sempre outra a cada
nova experincia. Assim, se o significado de vermelho for apenas o vermelho -
como-ocorrncia, cada nova ocorrncia de vermelho poder ser um novo e
distinto significado.
Russell tinha como se defender dessa acusao, mas s ao preo de cair em
uma dificuldade muito pior. Ele sugeriu que o objeto-significado do nome
prprio lgico fosse umsense datumreferido por um demonstrativo como isso
apenas pelo tempo em que possussemos conscincia do sensedatum. Claro est
que tal soluo conduz diretamente ao solipsismo. Como inserir um nome
prprio assim pensado na linguagem? Que regras de correo poderiam ser
1 Bertrand Russell: The Philosophy of Logical Atomism, pp. 194-5, 201-2. Como notouMark Sainsbury, a concepo referencialista do significado pelo menos implicada em certostextos de Russell. Ver M. Sainsbury:Russell, pp. 15-16. A mesma posio foi aceita de forma
explcita pelo primeiro Wittgenstein: O nome significa seu objeto . O objeto seusignificado. Tractatus Logico-Philosophicus, 3.203.
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aplicadas ao seu uso se nem a sua prpria reutilizao no mesmo sentido pode
ser considerada?1
Com efeito, conhecer o significado de uma palavra como vermelho naverdade saber reconhecer uma ocorrncia do vermelho como sendo ao menos
igual a outras ocorrncias do vermelho. Mas esse reconhecimento no est
incluido na idia de que o significado da palavra se reduz prpria coisa a qual
ela se refere. A noo de significado de um termo exige essencialmente que este
unifique mltiplas ocorrncias daquilo a que se refere sob um mesmo
significado. Mas essa unificao deixa de ser possvel para a palavra vermelho
se o seu significado for reduzido a sua prpria ocorrncia.
verdade que uma concepo realista do significado, segundo a qual o
significado de uma palavra como vermelho seria um vermelho-type, entendido
como uma entidade abstrata, comum a todas as ocorrncias (tokens), resolveria
esse problema. Mas essa soluo nos comprometeria com alguma forma de
platonismo, levantando a justificada suspeita de uma reificao ininteligvel do
typeem um topos atopos.
Uma alternativa seria considerar o vermelho-typeem questo como sendo o
conjunto das ocorrncias idnticas entre si. Isso diminui o risco do platonismo,
mas no o elimina, pois conjuntos so entidades abstratas aparentemente
irredutveis. Alm disso, conjuntos podem ser maiores ou menores, aumentando
ou diminuindo, enquanto o significado da palavra vermelho no tem tamanho e
nem aumenta nem diminui.
A seguinte alternativa parece ser mais vivel. Podemos considerar o
significado de vermelho como sendo qualquer ocorrncia considerada igual a
1 Ver objeo j na discusso de The Philosophy of Logical Atomism, p. 203. Tambm,como notou Ernst Tugendhat, um termo singular tem a funo de especificar um objeto, masse a conscincia se refere somente a um sensedatumpresente, a concluso que a palavra
isso no tem mais nenhuma funo. Ver Vorlesungen zur Einfhrung in diesprachanalytische Philosophie, p. 382.
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uma ocorrncia que estejamos usando como modelo. Assim, se reconheo aquilo
que me est sendo atualmente dado como sendo uma ocorrncia de vermelho,
pode ser porque percebo que essa ocorrncia igual a outra que j me foi dadaantes como vermelho o modelo do qual guardo memria o que me faz
ganhar a conscincia de que se trata de uma cor igual a que experienciei da outra
vez. Assim, chamando as diversas ocorrncias experienciadas de vermelho de
{V1, V2... Vn} e a ocorrncia que serve de modelo de Vm, posso dizer que V1=
Vm, que V2= Vm... e que Vn= Vm, e que por isso {V1= Vm= V2}, sem recorrer
a uma entidade platnica ou sequer noo de conjunto. O que chamamos de
significado da palavra vermelho pode, sob esseprisma, ser identificado com a
conexo referencial, a saber, com a regracognitivaque relaciona a ocorrncia
experienciada ocorrncia-modelo de maneira a produzir a conscincia do que
est sendo experienciado como sendo uma cor vermelha. Como essa regra
cognitiva requer modelos intersubjetivamente experienciados ou a memria
desses modelos, fica explicado porque o significado da palavra vermelho no
pode ser aprendido por um cego. Parece, pois, que o significado da palavra
vermelho deve ser dado por uma regra semntico-cognitiva dependente de
ocorrncias-modelos para a identificao de novas ocorrncias como sendo
instncias de vermelho. Contudo, tal regra independente dessa ou daquela
ocorrncia particular do vermelho. Enfim: ao refletirmos sobre a questo,
mesmo para uma coisa to simples como a cor vermelha, acabamos por ir alm
de uma concepo propriamente referencialista do significado.
Mesmo que o referencialismo estrito jamais se sustente, h uma lio a ser
aprendida. Nossa ltima sugesto de entendimento salva do referencialismo
russelliano uma sugesto importante, que a da necessria existncia de algum
objeto de referncia para os supostos nomes de objetos simples. Mesmo
entendendo a expresso objeto simples em um sentido que no absoluto,
restringindo-se a uma entidade no-decomponvel em certa prtica lingustica,
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como bem poderia ser o caso de um percepto de vermelho ou do vermelho como
uma propriedade singularizada dada experincia (um tropo), a concluso a
de que para que tais nomes tenham significado eles precisam ter referncia. Eisporque, em um sentido importante, um cego no pode saber o significado da
palavra vermelho. Pois no podendo ter contato sensorial com coisas
vermelhas, ele no pode construir a regra semntico-cognitiva constitutiva do
significado da palavra. Ao menos no caso de nomes de objetos simples,
referidos por algum subrogado dos nomes prprios lgicos restrito a certa
prtica lingustica, necessrio que exista alguma referncia. Mas isso no quer
dizer que o significado do nome seja a prpria referncia. Isso quer dizer apenas
que a referncia necessria constituio da regra semntica atravs da qual o
nome do objeto admitido como simples ganha referncia.
3. Significado, uso, regra semntica
Passemos agora a outro candidato a elo semntico: o uso ou aplicao.
Wittgenstein sugeriu que o significado de uma expresso lingstica o seu uso
(Gebrauch) ou aplicao (Verwendung). Como ele escreve em uma famosa
passagem dasInvestigaes Filosficas:
Pode-se, para uma grande classe de casos de utilizao da palavrasignificado seno para todos os casos de sua utilizaoexplic-la assim:o significado de uma palavra o seu uso na linguagem.1
Essa sugesto se aplica tanto a palavras quanto a frases. Ela se aplica
claramente aos usos performativos das expresses, como o do verbo pedir em
proferimentos do tipo Peo que p.Esses usos constituem tipos de interao
entre o falante e o ouvinte chamadas de foras ilocucionrias.
1Wittgenstein:Philosophische Untersuchungen,seo 43.
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Contudo, a identificao do significado com o uso no se aplica to somente
ao significado descritivo, representacional ou semntico-cognitivo das
expresses, que aquele que est em causa quando tratamos da referncia. Osignificado da frase descritiva O cu est azul no parece se reduzir aos seus
usos. Uma soluo consiste em se fazer uma extenso justificada do conceito de
uso. Podemos dizer que aquilo que est em causa nesses casos o uso
referencial de termos e frases: o uso envolvido no ato de tornar pblica uma
descrio de como as coisas so. Podemos entender o uso referencial de
expresses como aquele em que um falante comunica a cognio de como as
coisas so ao ouvinte. Assim, no proferimento O cu est azul estou usando a
assero de modo constatativo, para comunicar o contedo por ela descrito.1
Contudo, o que dizer da compreenso de um proferimento pelo ouvinte? O
ouvinte afinal no o est usando ao compreender o seu significado (quando leio
um livro tenho acesso ao significado das frases, mas no as estou usando). Aqui
precisamos recorrer a uma segunda extenso da palavra uso. Posso dizer que
tambm uso as expresses em pensamento. Quando penso que o cu est azul,
uso a linguagem no pensamento. E o pensamento , como o definiu Plato, um
dilogo da alma consigo mesma.Se concordo com algo, se me pergunto algo,
se constato algo para mim mesmo, trata-se de usos internalizados de expresses
determinados por regras tambm envolvidas na comunicao.
Tambm importante perceber que no se trata simplesmente de uso no
sentido de uma mera ocorrncia espao-temporal (token) da expresso
lingstica, pois uma ocorrncia difere sempre da outra em sua localizao
espao-temporal. Se fosse assim o significado seria um outro a cada nova
1A linguagem no possui apenas uma funo comunicacional, mas tambm organizativa, nosentido de que a usamos para pensar, para organizar nossas idias e planejar nossa ao. A
primeira vista a identificao do significado com o uso no parece fazer juz funo
organizativa. Mas isso no verdade. Se penso que a Torre Eiffel de metal, estou usandoesse nome referencialmente, em um dilogo comigo mesmo, ou seja, em pensamento.
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ocorrncia, o que tornaria o nmero de significados de cada expresso ilimitado.
A alternativa plausvel entender o uso no sentido de modo de uso
(Gebrauchsweise) ou modode aplicao (Verwendungsweise), pois uma mesmapalavra pode ser usada muitas vezes do mesmo modo. Mas o que o modo de
uso? Ora, ele no parece ser outra coisa seno algo do tipo de uma regra (etwas
Regelartiges). O prprio Wittgenstein chegou a essa concluso em uma
passagem menos quotada de Sobre a Certeza:
Um significado de uma palavra um modo de sua aplicao (Art derVerwendung)... Da que existe uma correspondncia entre os conceitossignificado e regra.1
Com efeito: usar uma expresso de modo significativo us-la de acordo
com o seu modo de uso. us-la corretamente, a saber, segundo as regras de
significao apropriadas. A correspondncia entre modo de uso e regra fica clara
atravs de uma ilustrao: imagine que voc compre uma cmara de vdeo e que
na embalagem encontre um livreto no qual est escrito modo de uso. O que
vem a seguir so instrues que nada mais so do que regras para a correta
utilizao do aparelho. O significado s pode ser aproximado do uso se for
entendido no sentido de modo de uso, de algo do tipo de uma regra, que
determina os usos-ocorrncias singulares. E o uso referencial uma forma
particularmente importante de modo de uso.
Mas por que ento no podemos identificar o significado de nossas
expresses lingsticas com regras simpliciter? A resposta tambm foi
aproximada por Wittgenstein com a sua analogia da linguagem com um
clculo.2As expresses lingsticas em seu uso geralmente envolvem clculos,
1Wittgenstein: ber Gewissheit, sees 61-62.2
Ver Wittgenstein: Ludwig Wittgenstein und der Wiener Kreis, p. 168, ver tambmWittgensteins Lectures: Cambridge 1930-1932,pp. 96-97.
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os quais nada mais so do que combinaes ou concatenaes de regras. E os
significados que elas possuem parecem constituir-se dessas combinaes de
regras que so convenes automatizadas, mais ou menos compartilhadas entreos falantes. isso o que justifica a comparao da linguagem com um clculo. A
multiplicao 12 . 30 = 360, por exemplo, pode para certa pessoa resultar da
combinao de trs regras, uma multiplicando 10 . 30, outra multiplicando 2 .
30, e ainda outra somando os resultados 300 + 60, de modo a obter 360. O
sentido epistmico da multiplicao 12 . 30 = 360 se encontraria ento dado por
essa e por outras calculaes equivalentes, pois tal proposio no faria sentido
se tais clculos no pudessem ser realizados. O que havamos chamado de algo
do tipo de uma regra parece esclarecer-se, pois, como uma combinao de
regras. O significado de uma expresso lingstica deve ser o mesmo que certas
regras ou combinaes de regras que eventualmente determinam usos-
ocorrncias corretos, quer pragmticos, quer referenciais, quer na linguagem
falada, quer na linguagem pensada. Nesse livro usarei o termo regra de
maneira a incluir combinaes de regras, o que no final das contas uma
extenso justificada do termo, posto que uma combinao de regras no mais
do que uma regracomposta, que embora no seja ela prpria convencional (o
seu compartilhamento pelos falantes no pressuposto), costuma ser
convencionalmente fundada, a saber, constituda com base em convenes.
H ao menos duas espcies de regras de significao que no podem deixar
de ser distinguidas. A primeira a das regras cognitivo-criteriais responsveis
pelo significado epistmico das sentenas declarativas. Critrios so, no dizer de
Wittgenstein, aquilo que confere s nossas palavras os seus significados
comuns.1 Para ele essas regras so baseadas em critrios, que so condies
que precisam ser independentemente dadas para que tenhamos a cognio de
1Ludwig Wittgenstein: The Blue and the Brown Booksp. 57.
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que algo o caso. Usando um exemplo do prprio Wittgenstein, se algum
afirma Est chovendo, isso envolve a aplicao de uma regra criterial, uma
regra que demanda que sejam dadas certas condies, como a de gotas de guacaindo das nvens, para que haja a cognio, a tomada de conscincia do fato de
que est chovendo. A segunda espcie de regras de significao a ser mencinada
a das regras ilocucionrias, determinadoras do sentido ilocucionrio, ou seja,
estabelecedoras da espcie de interao que deve ocorrer entre falante e ouvinte.
Se ao fazer um pedido digo Por favor, feche a porta, essa frase no ser
verdadeira ou falsa, mas bem sucedida ou no, sendo a regra ilocucionria
aquilo que nela tematizado. As regras ilocucionrias esto fora do mbito de
investigao desse livro, sendo mencionadas apenas no intuito de prevenir
confuses.
Contudo, se uma anlise do apelo ao uso termina por apontar para regras
cognitivas semntico-criteriais, ento por que comear pelo uso? Por que no
comear logo pela investigao dessas regras e de suas combinaes? A resposta
que comear pelo uso tem para Wittgenstein uma importncia heurstica. As
ocorrncias de uso correto, devidamente interpretadas, devem constituir-se nos
hard data semnticos: evidncias pblicas e indiscutveis da aplicao das
regras de significao, pois a linguagem primeiramente um instrumento de
ao e as regras cognitivo-criteriais esto inevitavelmente associadas a funes
ilocucionrias. Ademais, o apelo ocasies de uso torna patentes as sutis
variaes semnticas que uma mesma expresso pode sofrer ao ocorrer em
diferentes contextos (prticas, jogos de linguagem), o que permite desfazer
equvocos surgidos de usos filosficos da linguagem, que venham a confundir
essas variaes.
4. Significados e prticas lingsticas
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H mais a se dizer sobre o significado como funo do uso: que uma expresso
lingstica normalmente usada dentro de um sistema de regras. Podemos
comparar uma expresso lingstica com uma pea de um jogo de xadrez e o seuuso com um lance no jogo. Quando movemos a pea de xadrez, o significado do
movimento no dado somente pela regra segundo a qual movemos a pea. Ele
mais completamente dado pela estratgia, pelo clculo das combinaes
possveis de regras na previso de possveis movimentos do adversrio e das
respostas que poderiam se seguir. Esse clculo prprio para o jogo de xadrez e
ser diferente, digamos, no jogo de damas. Algo semelhante se d com um
proferimento lingstico. As regras lingstico-gramaticais de superfcie so
como as que permitem os movimentos das peas de xadrez. No so elas