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4
Ordem constitucional brasileira e o meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
4.1
O meio ambiente ecologicamente equilibrado e a exploração dos
potenciais de energia hidráulica.
Cumpre à norma constitucional, como lei fundamental, delinear os limites
e o conteúdo da ordem jurídica, razão pela qual é nela que devemos encontrar o
fundamento primeiro da proteção ao meio ambiente.
A priori, então, somente através de uma análise detida e acurada do texto
constitucional é que se torna possível visualizar um novo paradigma ético-jurídico
presente na questão ambiental, que pretende fugir da “compreensão coisificadora,
exclusivista, individualista e fragmentária da biosfera.”1 Este novo paradigma,
sensível à saúde coletiva, às expectativas das gerações futuras, à manutenção das
funções ecológicas e ao adequado uso dos recursos naturais, permite a defesa de
uma nova ordem pública que valoriza a responsabilidade da coletividade em
relação aos problemas do planeta Terra.2
Neste passo, partiremos do pressuposto da existência de um Estado de
Direito Ambiental, introduzido pela Constituição Federal de 1988. Além de ser
um Estado de Direito Democrático e Social é também regido por princípios de
natureza ambiental. Esse novo Estado de Direito Ambiental aponta para formas
novas de participação democrática na adoção das políticas públicas, sejam elas
ambientais ou não.34
1 BENJAMIN, Antonio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 66. 2 Ibid. p. 66. 3 No mesmo sentido, doutrinadores brasileiros e estrangeiros. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional Ambiental Português e da União Européia. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 5, trata da ”ecologização da ordem jurídica portuguesa” e defende a existência de um “Estado de Direito Ambiental e Ecológico”. Ver, ainda, BENJAMIN. Antonio Herman. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato (org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 121-124; MORATO LEITE. José Rubens. AYALA, Patrick. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 24.
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Tal ordem, incorporada pelo Estado de Direito Ambiental, é assim
considerada: atribui organicidade, coerência interna, coercitividade externa e uma
direção finalística; integra, em um só sistema, imposições de natureza positiva
(obrigação de fazer) e negativa (obrigação de não fazer); e indica a limitação
estatal a atividades privadas, especialmente aquelas associadas ao direito de
propriedade e à livre iniciativa. Ela é pública por vincular toda a coletividade,
inclusive o próprio poder público, não podendo ser ditada pelo mercado ou pela
autonomia da vontade individual, além de exprimir, também, um conjunto de
regras de interesse público. E, por último, é ambiental, no sentido de que seus
componentes não podem ser analisados de forma fragmentada e isolada, mas, sim,
apreciados e salvaguardados a partir do todo.
Algumas consequências5 podem, assim, ser extraídas da adoção desse
entendimento. Podemos elencar as seguintes: 1) o reconhecimento de um dever
constitucional genérico de não degradar, base do regime de exploração limitada e
condicionada; 2) a proteção ambiental como direito fundamental; 3) a legitimação
constitucional da função de intervenção do Estado na economia; 4) a redução da
discricionariedade administrativa; 5) a ampliação da participação pública e a
imposição de limites ao direito de propriedade, reconhecendo a sua dimensão
ambiental; e 6) a conformação das políticas públicas no sentido da vedação ao
retrocesso ambiental. No presente estudo não nos preocuparemos em dar enfoque
a todas elas, buscando, no decorrer do trabalho, examinar somente alguns desses
aspectos.
O Estado de Direito Ambiental pressupõe uma concepção ampla ou
integrada6 de meio ambiente e, consequentemente, uma concepção também ampla
4 O doutrinador português Vasco Pereira da Silva, tratando da dimensão histórica dos direitos humanos, defende que o direito humano ao meio ambiente surge no chamado Estado Pós-social, através do qual se retorna à idéia de proteção do indivíduo contra o poder, de ameaças tanto de entidades públicas como privadas. No Estado Pós-social, há uma alteração da lógica da atividade administrativa, que deixa de ser orientada em função da resolução pontual de conflitos, para se tornar uma atividade conformadora da realidade social. In SILVA, Vasco Pereira. Verde Direito: o direito fundamental ao ambiente. DAIBERT, Arlindo ( org ). Direito Ambiental Comparado. Belo Horizonte: Fórum, 2008, pp. 21-24. 5 BENJAMIN. Antonio Herman. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 69-76. O autor trata de tais conseqüências como “benefícios materiais da constitucionalização”. 6 CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado Constitucional Ecológico e Democracia Sustentada. In FERREIRA, Heline Silvini. LEITE, José Rubens Morato. ( org ). Estado de Direito Ambiental: Tendências. Aspectos Constitucionais e Diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 8.
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e integrada do direito ambiental. O meio ambiente deve ser considerado em seus
vários aspectos. Embora este conceito seja pertencente a uma daquelas “categorias
cujo conteúdo é mais facilmente intuído que definível, em virtude da riqueza e
complexidade do que encerra.”7 , adotaremos a posição, entre nós, exposta por
José Afonso da Silva.
O referido autor8 parte da idéia de um conceito unitário e globalizante de
meio ambiente, abrangente de toda a natureza original e artificial, bem como dos
bens culturais correlatos, compreendendo o solo, a água, o ar, a flora, as belezas
naturais, o patrimônio histórico, artístico, paisagístico, turístico e arqueológico.
Afirma, assim, ser o meio ambiente “a interação do conjunto de elementos
naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da
vida em todas as suas formas.”
Em decorrência, sinaliza para a existência de três aspectos do meio
ambiente: o artificial, constituído pelo espaço urbano construído (conjunto de
edificações e dos equipamentos públicos, tais como praças, ruas, áreas verdes,
espaços livres), o cultural, integrado pelo patrimônio histórico, artístico,
paisagístico, turístico e arqueológico (caracterizado como sendo fruto da obra do
homem, mas distinguindo-se do primeiro pelo valor especial que adquiriu ou de
que se impregnou), e o natural ou físico, constituído pela flora, fauna, água, ar (ou
seja, pela interação dos seres vivos e de seu meio).9
Portanto, no âmbito jurídico, adotaremos a perspectiva mais ampla de
meio ambiente, tal qual exposta acima, que abrange não só o meio natural ou
físico, mas também o artificial e os bens culturais correlatos.10 11
7 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 109. 8 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 20-23. 9Aliás, é em consonância com este último aspecto que surge o conceito legal de meio ambiente constante do art. 3º da Lei n. 6938/81, segundo o qual, para os fins previstos na referida lei de política nacional do meio ambiente, “entende-se por meio ambiente o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.” 10 É bom lembrar que a Declaração do Meio Ambiente elaborada em Estocolmo, em 1972, já mencionava a existência dos dois aspectos relevantes do meio ambiente, senão vejamos: “Os dois aspectos do meio ambiente, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do Homem e para que ele goze de todos os direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida mesma” e, mais adiante, “a proteção e melhora do meio ambiente é uma questão fundamental que afeta o bem-estar dos povos e o desenvolvimento econômico do mundo inteiro; é desejo urgente dos povos de todo o mundo e um dever de todos os governos.” 11 Válido também destacar o disposto na Lei n. 9795/1999 que institui a Política Nacional de Educação Ambiental, em seu art. 5º, inciso I, que apresenta como um dos objetivos fundamentais da educação ambiental “o desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em
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Ora, a concepção de um Estado de Direito Ambiental leva em conta
também a existência de um direito ambiental integrativo12 que enseja uma
significativa alteração no modo de regulação das atividades e projetos, pois não
busca, de forma isolada, fiscalizar uma determinada atividade ou instalação, mas
acompanhar todo o processo produtivo e de funcionamento desta sob o ponto de
vista ambiental. Além disso, essa nova forma proposta de direito ambiental não
apresenta preocupação monotemática, mas sim pluritemática, pois busca, em uma
avaliação de impacto ambiental, por exemplo, analisar não só os projetos
ambientais em sentido estrito, como também os de natureza urbanística ( planos
diretores, planejamento urbano ). Isto implica uma notável alteração das relações
de direito ambiental e urbanístico.
Por fim, esta idéia de um direito ambiental integrativo produz
conseqüências também na forma de atuação dos instrumentos jurídicos do Estado
de Direito Ambiental. Neste, diante da complexidade e conflituosidade subjacente
à ponderação dos interesses e direitos em uma perspectiva pluritemática, faz-se
necessário compatibilizar os instrumentos legais de direito ambiental e
urbanístico.
Assim, passemos ao exame do texto constitucional pátrio.
A Constituição Federal de 1988 define, no art. 225, caput13, o meio
ambiente ecologicamente equilibrado como direito de todos e lhe confere a
natureza de bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo uma co-responsabilidade entre o cidadão e o poder público pela sua
defesa e preservação.
Podemos dizer que, contrariamente às constituições brasileiras
anteriores14, a Constituição Federal de 1988 detém uma peculiaridade em relação
suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos”. 12 Esta expressão foi utilizada pelo autor português CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado Constitucional Ecológico e Democracia Sustentada. In FERREIRA, Heline Silvini. LEITE, José Rubens Morato. ( org ). Estado de Direito Ambiental: Tendências. Aspectos Constitucionais e Diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pp. 08-09. 13 Constituição Federal de 1988. Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. 14 A Constituição de 1824 não fez qualquer referência à matéria ambiental, prevendo apenas a proibição de indústrias que causassem mal à saúde do cidadão ( art. 179, n. XXIV ). O texto republicano de 1891 trazia competência legislativa à União para legislar sobre minas e terras ( art.
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ao tratamento específico e global dado ao tema do meio ambiente, dedicando-lhe
capítulo próprio, além das regras esparsas, o que tornou o direito ao ambiente
sadio como um direito fundamental do indivíduo.
A Carta Magna de 1988, em seu art. 3º, estabelece, ainda, os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, assegurando a construção de
sociedade livre, justa e solidária, em que seja garantido o desenvolvimento, com a
promoção do bem estar de todos. Paralelamente, ratifica a necessidade de
erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades
sociais e regionais.
Fica evidente, desta maneira, a preocupação do legislador constituinte com
a ordem social, especialmente por não ser olvidada a realidade fática de nosso
país, ainda em desenvolvimento, em que a desigualdade social e a pobreza (além
de outros fatores de exclusão) estão presentes.
Como se pode observar da leitura do texto constitucional, o capítulo do
meio ambiente (Capítulo VI) está inserido no título relativo à ordem social (Título
VIII), que tem, como base, o primado do trabalho e, como objetivo, o bem-estar e
a justiça sociais ( art. 193 da CF/88 ). Assim, o social constitui a grande meta de
toda a ação do poder público e da sociedade e deve estar presente tanto na análise
das questões ambientais como econômicas15. A ordem econômica, por seu turno,
subordina-se à ordem social, o que faz com que o desenvolvimento econômico só
ocorra, realmente, se acompanhado do próprio desenvolvimento social.
34, n. 29). A Carta de 1934, por sua vez, se preocupou com a proteção às belezas naturais, ao patrimônio histórico, artístico e cultural (arts. 10, III, e 148) e estabeleceu a competência da União para as matérias de riquezas do subsolo, mineração, águas, florestas, caça, pesca e sua exploração ( art. 5º, XIX, f ). A Constituição de 1937 também apresentou preocupação com a proteção dos monumentos históricos, artísticos e naturais, bem como das paisagens e locais com características de natureza peculiar ( art. 134 ), conferindo competência à União para legislar sobre minas, águas, florestas, caça, pesca e sua exploração ( art.16, XIV ); tratou também da competência sobre o subsolo, águas e florestas no art. 18, a e e, onde também cuidou da proteção das plantas e rebanhos contra moléstias e agentes nocivos. Já a Constituição de 1946 manteve a defesa do patrimônio histórico, cultural e paisagístico ( art. 175 ) e a competência da União para legislar sobre normas gerais de defesa da saúde, riquezas do subsolo, das águas, florestas, caça e pesca. A proteção ao patrimônio histórico, cultural e paisagístico foi mantida pela Constituição de 1967 ( art. 172, parágrafo único ) e previu como competência da União legislar sobre normas gerais de defesa da saúde, sobre jazidas, florestas, caça, pesca e águas ( art. 8º, XVII, h ). A Constituição de 1969, constituída por emenda outorgada pela Junta Militar à Constituição de 1967, também manteve a defesa ao patrimônio histórico, cultural e paisagístico ( art. 180, parágrafo único ) e, no que diz respeito à competência, manteve as disposições da Constituição emendada. Trouxe, ainda, uma disposição inovadora sobre o aproveitamento agrícola de “terras sujeitas a intempéries e calamidades”, prevendo que a lei regulamentaria este aproveitamento, mediante prévio levantamento ecológico e que o “mau uso da terra” impediria o proprietário de receber incentivos e auxílio do governo ( art. 172 ). 15 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 149
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No caso do meio ambiente, como fator diretamente ligado ao bem-estar da
coletividade, as atividades econômicas não poderão ser desempenhadas de forma
a atentar, indiscriminadamente e sem aplicação de medidas mitigadoras ou
compensatórias, contra a qualidade ambiental e impedir o pleno alcance dos
escopos sociais.
A seu turno, a ordem econômica (Título VII da Constituição Federal de
1988) pressupõe a observância de vários princípios16, a fim de atender aos ditames
da justiça social, assegurando a todos existência digna. Dentre eles, a defesa do
consumidor e do meio ambiente, bem como a redução das desigualdades regionais
e sociais. (art. 170, incisos V, VI, VII da CF/88). Tais dispositivos também
sinalizam para o desenvolvimento da ordem econômica não ficar dissociado do
desenvolvimento social e da qualidade ambiental.
A avaliação de impacto ambiental (AIA), por exemplo, que será melhor
examinada em capítulo próprio, concebida como instrumento de implementação
da Política Nacional do Meio Ambiente, requer a análise tanto dos impactos
ambientais quanto sociais causados pela atividade econômica, sejam eles positivos
ou negativos17. Tal preocupação quanto à observância dos interesses sociais na
busca da preservação ambiental encontra-se também presente em outros diplomas
legais – Lei n. 9985/2000 e Lei n. 9433/97, por exemplo - razão pela qual reputa-
se necessária uma visão socioambiental, em que as duas vertentes – social e
ambiental – estejam interconectadas.
O chamado “socioambientalismo” aparece, por sua vez, na esfera
internacional e nacional como uma concepção teórica da questão ambiental
diferente e alternativa àquela gerada pelo ambientalismo clássico em que se
16 Constituição Federal de 1988. Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. 17 Art. 9º, inciso III, da Lei n. 6938/81 e art. 1º da Resolução CONAMA 01/86.
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preconiza a conservação ou preservação do ambiente, pura e simplesmente, sem a
preocupação social.18
Santilli19 afirma que o conceito foi construído com a idéia de que as
políticas públicas ambientais devem incluir e envolver as comunidades locais,
detentoras de conhecimentos e de práticas de manejo ambiental. E, mais do que
isso, estruturou-se com base na concepção de que, em um país desfavorecido
economicamente, com tanta desigualdade social, um novo paradigma de
desenvolvimento deveria promover não só a sustentabilidade ambiental (proteção
das espécies, dos ecossistemas e dos processos ecológicos), como também a
social, ou seja, deve contribuir para a redução da desigualdade social e da
pobreza, Concomitantemente, promoverá valores como justiça social e equidade.
Esse novo paradigma de desenvolvimento deve, ainda, promover e valorizar a
diversidade cultural e a própria consolidação do processo democrático no país,
com ampla participação social na gestão ambiental.
Ora, o socioambientalismo, tal qual acima afirmado, encontra pleno
respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, sendo esta concepção fundamental
para o processo interpretativo das normas. A preocupação do legislador
constituinte em inserir o meio ambiente na ordem social - cujos objetivos
expressamente positivados são o alcance do bem-estar e da justiça social -
demonstra que não se pode tratar de forma separada os problemas ambientais e
sociais. Tal diretriz de matriz constitucional informa, assim, toda a legislação
infraconstitucional, ainda que não haja disposição expressa neste sentido.
18 Neste ponto, válido trazer a lição de Martínez-Alier, Joan, in O Ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto, 2007, p. 21-39. Segundo o autor, há pelo menos três correntes relativas à preocupação e ativismo ambientais: 1) a chamada “ culto ao silvestre” ou “ à vida selvagem”, mais preocupada com a conservação da natureza silvestre, sem se pronunciar sobre a indústria ou a urbanização, mantendo-se indiferente ou em oposição ao crescimento econômico, muito preocupada com o crescimento populacional e respaldada cientificamente pela biologia conservacionista; 2) a corrente intitulada “ credo da ecoeficiência”, voltada para o uso sustentável dos recursos naturais e com o controle da contaminação, não se restringindo aos contextos industriais, mas também incluindo em suas preocupações a agricultura, pesca e a silvicultura. Tal corrente se apóia na crença de que as novas tecnologia e a “ internalização das externalidades” constituem instrumentos decisivos da modernização ecológica; e está respaldada pela ecologia industrial e pela economia ambiental; e 3) a última corrente, identificada como movimento pela justiça ambiental, ecologismo popular ou ecologismo dos pobres, preocupada com os impactos ambientais causados pela expansão da atividade econômica capitalsita especialmente sobre as camadas mais desfavorecidas da população. Essa terceira corrente recebe apoio da agroecologia, da etnoecologia, da ecologia política e, em alguma medida, da ecologia urbana, da economia ecológica e de alguns sociólogos ambientais. 19 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. Proteção Jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo. Peirópolis, 2005, p. 34-41..
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Além das referências explícitas existentes ao meio ambiente no texto
constitucional, antes já mencionadas, podemos citar também as referências não
expressas ou implícitas, importantes para o desenvolvimento do tema proposto.
A Constituição Federal define como bens da União lagos, rios e quaisquer
correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um estado,
sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou
dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais20, os
potenciais de energia hidráulica21, dentre outros.
Compete à União, então, explorar diretamente, ou mediante concessão,
permissão ou autorização, o aproveitamento energético dos cursos de água, em
articulação com os Estados, onde se situam os potenciais hidroenergéticos22;
instituir o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e definir
critérios de outorga de direito de seu uso23. Nesse ponto, a norma constitucional se
refere à forma de uso de um dos recursos ambientais e, ao mesmo tempo,
estabelece regras sobre um instrumento de controle da qualidade das águas.
No que diz respeito à competência para legislar, prevê a Constituição
Federal que cabe à União, privativamente, legislar sobre água, energia, jazidas,
minas e outros recursos minerais e metalurgia, atividades nucleares de qualquer
natureza, propaganda comercial24.
Já a norma sobre competência comum entre União, Estados, Distrito
Federal e Municípios, contida no art. 23, incisos III e IV da CF/88, traz consigo
valores ambientais, como os relativos à proteção histórica, cultural, artística e
paisagística. Além disso, tem-se a competência concorrente para legislar sobre
proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico e paisagístico25, registrar,
acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de
recursos hídricos e minerais em seus territórios26.
Mencionem-se, ainda, as normas sobre a cultura27, que trazem,
implicitamente, uma proteção aos bens ambientais, através da garantia das
manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, bem como dos 20 CONSTITTUIÇÃO FEDERAL. Art. 20, iinciso III. 21 CONSTITTUIÇÃO FEDERAL. Art. 20, iinciso VIII. 22 CONSTITTUIÇÃO FEDERAL Art. 21, inciso XII, alínea b. 23 CONSTITTUIÇÃO FEDERAL Art. 21, inciso XIX. 24 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 22, incisos IV, XII e XXVI. 25 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 24, inciso VII. 26 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 24, inciso XI. 27 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Artigos 215 e 216.
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bens de natureza material e imaterial, portadores de referência à identidade, à ação
e memória de tais grupos, dentre os quais se inclui o meio ambiente.
Após a leitura dos dispositivos acima mencionados, observa-se que a
Constituição Federal distingue dois tipos de titularidade: a dos recursos hídricos,
que pode ser tanto da União como dos Estados, e a da exploração de seus
potenciais energéticos – aproveitamento de energia hidráulica -, que pertence
somente à União. Cabe a esta, mediante concessão ou autorização, no interesse
nacional, repassar a brasileiros ou empresas constituídas sob as leis brasileiras,
com sede e administração no país, a exploração de tal potencial. Isto é o que se
extrai do art. 176, caput, e parágrafo 1º da CF/88.
Não prevê a Constituição Federal a possibilidade de aproveitamento ou
exploração dos potenciais energéticos hidráulicos pelos Municípios, porém a estes
é assegurada uma compensação pela exploração dos recursos hídricos, quando
estiverem localizados em seu território. De igual forma, esta compensação está
assegurada também aos Estados e à União.28
Importante estabelecer que, no tocante à natureza do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, este constitui direito fundamental29,
assegurado constitucionalmente e, portanto, dotado de aplicação imediata,
conforme art. 5º, parágrafo 1º da CF/88.
Neste sentido, Ingo Sarlet30, enfrentando a controvérsia a respeito da
delimitação conceitual dos direitos fundamentais, parte da idéia de distinção
conceitual entre direitos fundamentais e direitos humanos, apesar de reconhecer
que, corriqueiramente, tais expressões são usadas como sinônimas. Esclarece o
autor que aqueles são reconhecidos ou positivados pelo direito constitucional
interno de cada Estado, enquanto estes são os direitos positivados na esfera do
28 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 20, parágrafo 1º da CF/88. 29 De uma maneira geral, a doutrina reconhece a existência de um direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Porém, não há consenso sobre a valoração dogmática de tal direito, sendo que uns entendem ser direito da personalidade e, ao mesmo tempo, direito e garantia constitucional; outros, o caracterizam como direito e princípio, ou ainda apresentam uma concepção de direito humano ou direito subjetivo ao meio ambiente. Tudo cf. BENJAMIN, Antonio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 97. Esta distinção é apresentada para demonstrar a diversidade de entendimento, porém não aprofundaremos o assunto por não ser o objeto da pesquisa. 30 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, pp.35 – 41.
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direito internacional (dizem respeito a todos os seres humanos,
independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional).
No entanto, apesar dessa distinção, admite o doutrinador a existência de
uma estreita relação entre direitos humanos e fundamentais, já que a maior parte
das Constituições do pós-guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de
1948 quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que a sucederam,
de maneira que é possível vislumbrar aproximação e harmonização entre tais
direitos, rumo ao que parte da doutrina vem chamando de Direito Constitucional
Internacional.
No que diz respeito às dimensões31 dos direitos fundamentais, insere-se o
meio ambiente e a qualidade de vida entre os direitos de solidariedade e
fraternidade – os chamados direitos fundamentais de terceira dimensão -,
juntamente com os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao
desenvolvimento e à conservação do patrimônio histórico e cultural e o direito de
comunicação.32 No entanto, a despeito de tal consideração, que marca a natureza
difusa do meio ambiente, deve ser considerado também o viés individual de tal
direito, pois a proteção ambiental objetiva, ao final e ao cabo, a proteção da vida e
da qualidade de vida do homem no âmbito de sua individualidade.33
Aliás, quanto a este aspecto, a Declaração do Meio Ambiente, adotada pela
Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, em junho de 1972, com seus
vinte e seis princípios, foi importante no sentido de influenciar as constituições
posteriores para o reconhecimento do direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado como um direito fundamental entre os direitos sociais do homem,
tanto na dimensão positiva como negativa.
Ainda neste sentido, José Afonso da Silva chama a atenção para a
consciência que se deve ter de que o direito à vida, como matriz de todos os
31 O autor reconhece a controvérsia também na nomenclatura usada, aduzindo que discorda daqueles que usam o termo “gerações de direitos fundamentais” por conferir a falsa idéia de substituição gradativa de uma geração por outra, porém afirma haver convergência de opiniões no sentido de admitir que os direitos fundamentais tiveram sua trajetória existencial inaugurada com o reconhecimento formal nas primeiras constituições escritas dos clássicos direitos de matriz liberal-burguesa. Mas se encontram em processo constante de transformação, o que culminou com a recepção, nos textos constitucionais e no Direito Internacional, de múltiplas e diferenciadas posições jurídicas, de conteúdo tão variável quanto às transformações ocorridas na realidade social, política, cultural e econômica ao longo dos tempos. In SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, pp. 52-53. 32 Ibid. pp. 56-57. 33 Ibid. p. 62.
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outros direitos fundamentais, é que deve orientar todas as atuações na tutela
ambiental, estando, portanto, acima de quaisquer outras considerações como as de
desenvolvimento, as de respeito ao direito de propriedade e as da iniciativa
privada, apesar de todos eles encontrarem guarida também no texto constitucional.
Assevera: “É que a tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no
sentido de que, através dela, o que se protege é um valor maior: a sadia qualidade
de vida.”.34
A fundamentalidade do direito ao meio ambiente se justifica: 1) pela
estrutura normativa do art. 225, caput, da CF/88, que traz, como sujeito, “todos”;
2) pelo fato de que nem todos os direitos fundamentais estão previstos no art. 5º
da Carta Magna, e, ainda, 3) por ser uma extensão do direito à vida, assegurado
pelo referido art. 5º, recebendo, por via reflexa, o seu abrigo jurídico.
Outro aspecto importante a ser examinado é quanto à natureza jurídica do
meio ambiente como bem juridicamente tutelado pela Constituição Federal.
Nesse passo, concordamos com Antonio Herman Benjamin35, para quem o
meio ambiente é caracterizado como um macrobem36, de natureza pública, não
porque pertença ao Estado, mas sobretudo por se apresentar no ordenamento,
constitucional e infraconstitucional, como "direito de todos" (satisfazendo suas
necessidades coletivas). É bem público em sentido objetivo e não em sentido
subjetivo, integrando uma dada "dominialidade coletiva", desconhecida do direito
tradicional público. É incapaz de apropriação exclusivista, porque destinado à
34 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 70. 35 BENJAMIN, Antonio Herman V.In Função Ambiental. Acessível em http://bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/8754/1/Fun%C3%A7%C3%A3o_Ambiental.pdf Último acesso em 26 de maio de 2008. 36 No mesmo sentido, LEITE, Jose Rubens. AYALA, Patrick de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2002, pp. 50-51. Afirmam os autores que o meio ambiente “ além de bem incorpóreo e imaterial, configura-se como bem de uso comum do povo “ e que, não obstante, o ordenamento jurídico brasileiro qualificar o meio ambiente como res communes omnium , não legitimou, de forma exclusiva, o poder público para sua tutela jurisdicional civil, como interesse difuso. Assim o fazendo, apartou o meio ambiente de uma visão de bem público stricto sensu, mas, por outro lado, elencou o bem ambiental como disciplina autônoma e a título jurídico autônomo. Acentuam a questão do caráter da indenização pelos danos ambientais causados, que se destina a um fundo que não é gerido e nem administrado exclusivamente pelo poder público. Por outro lado, a primeira finalidade do processo reparatório é a recuperação do bem ambiental degradado e, em segundo, a compensação pecuniária à coletividade que foi subtraída da qualidade ambiental deste bem, e não a reparação para seu proprietário, seja ele público ou privado. Assim, concluem que o bem ambiental (“macrobem”) é de interesse público, afeto à coletividade, entretanto, a título autônomo e como disciplina autônoma.
127
satisfação de todos e por isso mesmo, de domínio coletivo, o que não quer dizer
de domínio estatal.
Apesar de apresentar uma terminologia distinta, José Afonso da Silva37
apresenta posicionamento praticamente no mesmo sentido: os bens ambientais
devem ser incluídos em nova categoria, os de interesse público. Nesta, inserem-se
tanto bens pertencentes a entidades públicas como bens de sujeitos privados,
subordinados a um regime jurídico particular, com a finalidade de consecução de
um fim público. Em função deste regime peculiar, o gozo e a disponibilidade dos
bens ambientais ficam subordinados a um peculiar regime de polícia de
intervenção e de tutela pública. Afirma, então, que “...essa disciplina condiciona a
atividade e os negócios relativos a esses bens, sob várias modalidades, com dois
objetivos: controlar-lhes a circulação jurídica ou controlar-lhes o uso, de onde as
duas categorias de bens de interesse público: os de circulação controlada e os de
uso controlado.”
Tais conceituações a respeito do bem ambiental apresentam relevância na
compreensão do seu real significado no contexto constitucional brasileiro,
especialmente quando se trata da ordem econômica. Isto porque, para que as
atividades econômicas, potencialmente poluidoras ou em que seja necessária a
apropriação (ou uso) de recursos naturais, possam ser desempenhadas, faz-se
necessário atender ao mandamento constitucional da preservação ambiental.
Por esta razão, impõe-se a adoção de instrumentos de controle e prevenção
de tais danos, quando se trata de implantação de atividades econômicas de tal
natureza. A avaliação e estudo de impacto ambiental, bem como o licenciamento
ambiental, cada um com suas particularidades, são exemplos de tais
instrumentos.38
Ora, quando se fala em apropriação de um bem ambiental para sua
exploração, ainda que haja a permissão, autorização ou concessão do poder
público, há de se ter em mente, sempre, que tal forma de apropriação deve
cumprir duas finalidades distintas, que importam, de um lado, na apropriação
privada dos atributos econômicos dos recursos apropriáveis e, de outro, na
satisfação das necessidades coletivas. Esta segunda dimensão da apropriação, de
natureza social, condiciona o comportamento dos titulares desses interesses,
37 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 83. 38 O item 4.4 deste capítulo analisará mais detalhadamente tais instrumentos.
128
impondo a todos a obrigação de destinação e de uso do bem segundo finalidades
socioambientais.
Este ponto é de fundamental importância no processo decisório para a
implantação de hidrelétricas, seja quando a geração de energia se dá no regime de
autopromoção ou de produção independente, ou, ainda para o consumo coletivo.
Nessas hipóteses, é de suma importância que o uso e a apropriação dos recursos
hídricos, pela iniciativa privada harmonize-se com as finalidades socioambientais
previstas para tais bens.
A Constituição Federal contempla dois tipos de regimes de exploração de
recursos naturais: o regime de acesso a recursos renováveis e o de domínio e
detenção de recursos não renováveis.39
A exploração do potencial energético dos recursos hídricos encontra-se na
categoria de recursos renováveis, sendo que, na referida situação, a Constituição
Federal prevê um regime de dominialidade particularmente complexo, que atribui
à União a titularidade sobre a água. Reconhecendo, todavia, a autonomia jurídica
em relação ao solo e permite a exploração pelos agentes econômicos, mediante
autorização ou concessão. 40
A exploração dos recursos hídricos para geração de energia, no entanto,
não está relacionada meramente a uma atividade econômica, pois constitui
atividade empreendida na condição de serviço público. Assim, revela-se presente,
também, em tal atividade, a perspectiva social. Portanto, mesmo tendo havido
menção expressa da Constituição Federal quanto ao interesse econômico atrelado
ao potencial hidráulico, com a finalidade de exploração de energia, tais recursos
ambientais não deixam de estar condicionados ao regime especial de apropriação
a que estão sujeitos, devendo atender à dimensão social.41
Assim, sendo a água o recurso que será objeto de exploração econômica
por agentes específicos, importante trazer determinadas reflexões sobre o
exercício do direito a seu uso. 42 Este se caracteriza por ser um direito de
significado múltiplo, pois traz em si a variedade dos conflitos entre os interesses
relacionados ao modo da apropriação hídrica e uso. Por outro ângulo, proporciona
39 AYALA, Patrick. Deveres Ecológicos e regulamentação da atividade econômica na Constituição brasileira. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 264.. 40 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 176, parágrafo 1º . 41 AYALA, Patrick. op.cit, p. 290. 42 Ibid. p. 293.
129
uma composição de diversos outros direitos, envolvendo aspectos econômicos,
sociais, culturais, de saúde, de proteção ambiental, entre outros.
É necessária, desta forma, uma gestão integrada das múltiplas
necessidades da água43, em virtude justamente de seus valores múltiplos – social,
econômico e cultural. A conseqüência de tal afirmação é que, para toda e qualquer
decisão sobre o assunto, deve haver a garantia de que todos aqueles que forem
atingidos sejam ouvidos no decorrer do processo.
Outro ponto a ser considerado diz respeito ao fundamento ético que
entendemos ser adequado para tratar da questão ambiental na Constituição
Federal.
Extrai-se do texto constitucional uma leitura que prioriza o chamado
“antropocentrismo alargado”, embora reconheçamos que o tema é bastante
discutível, havendo aqueles que defendem a existência de uma visão estritamente
antropocentrista44 e outros que são adeptos do biocentrismo45 ou do
ecocentrismo46.
43 Ibid. p.292. 44 O antropocentrismo revela-se como uma concepção teórica que faz do homem o centro do universo, ou seja, a referência máxima e absoluta de valores e vincula a proteção ecológica aos benefícios que trará exclusivamente ao homem. Isto o coloca sempre em uma situação de anterioridade e superioridade em relação à própria existência da sociedade. Tal corrente teve bastante força por ocasião do pensamento racionalista presente na modernidade ocidental, em que havia a primazia da visão da natureza-objeto versus homem-sujeito. É com Descartes que essa oposição homem-natureza, espírito-matéria, sujeito-objeto se consolidará. O homem, instrumentalizado pelo método científico, pode penetrar os mistérios da natureza e, assim, torna-se “senhor e possuidor da natureza” ( DESCARTES, R. Discurso sobre o Método. Coleção Os Pensadores, São Paulo: Editora Abril ). O antropocentrismo e a visão pragmático-utilitarista presente no pensamento cartesiano, que vigoraram a partir do Renascimento no século XVI, não podem ser vistos de forma dissociada do mercantilismo. Esta idéia do homem não-natural e fora da natureza se consolida com a civilização industrial inaugurada pelo capitalismo, estando presente até os dias de hoje. Cf. GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (dês) caminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto 2005, pp. 28-35. Na doutrina jurídica brasileira, vide FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 20. 45 O biocentrismo constitui concepção diferente em que o valor da vida passa a ser o referencial inovador para as intervenções do homem no mundo natural. O autor inglês Keith Thomas elaborou estudo sobre a relação do homem com a fauna e flora, especialmente na sociedade inglesa, durante o período compreendido entre os séculos XVI e XIX, tendo afirmado que por volta de 1800, o antropocentrismo na Inglaterra tinha dado lugar a um sentimento de questionamento nesta relação homem-natureza, em que se negava a afirmativa de que o mundo não mais podia ser visto como feito somente para o homem, pois a própria natureza teria seu valor espiritual intrínseco. Já no século XVII, conta o autor inglês, havia manifestações religiosas em que se defendia que “Deus está em todas as criaturas, homens e animais, peixes e aves, e tudo o que é verde.” In THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais ( 1500-1800 ). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 356-357. 46 Na lição de MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 105-106 ecocentrismo é uma “cosmovisão” que não diz respeito somente à seara jurídica, que pretende ver o meio ambiente como “patrimônio da humanidade”, conferindo o valor intrínseco ao mundo natural, que deve ser preservado, pois tem um valor em si mesmo. Afirma o autor: “A
130
A idéia de um antropocentrismo diferenciado que se infere da normativa
constitucional encontra respaldo no princípio da solidariedade entre gerações, que
impõe o dever de preservação ambiental e de desenvolvimento sustentável em
prol das presentes e futuras gerações.47
A questão de fundo relacionada à ética ambiental, que vai informar e
orientar o direito, é assunto de extrema importância para a concretização do
Estado de Direito Ambiental.
Há entre o homem e a natureza uma inegável relação de interdependência,
pois o homem precisa da natureza para sobreviver. Assim é que a noção de meio
ambiente integra tanto homem como natureza, ou seja, não estão em mundos
separados e estanques, sujeitos à dominação e à subordinação.
Falamos, entretanto, em proteção do meio ambiente do tipo
antropocêntrico alargado, pois ela está menos centrada no homem e mais voltada
para outros elementos naturais, não sujeitos à atividade antrópica, cujo valor
intrínseco deve ser reconhecido. Além da proteção à capacidade de
aproveitamento do meio ambiente, simultaneamente, busca-se tutelá-lo, para se
manter o equilíbrio ecológico e sua capacidade funcional, como proteção
específica e autônoma, independente do benefício direto - econômico ou não - que
advenha ao homem.
A concepção ampla de meio ambiente, já acima exposta, como bem de uso
comum do povo, de natureza difusa, indica o seu valor intrínseco e, em
conseqüência, de preservação necessária para se atingir a própria qualidade de
vida humana48.
natureza vale sempre, para além das suas gerações humanas, porque tem um valor em si mesma e vale pó si.”. Acrescenta, ainda, ao tratar das perspectivas globais para a ética ambiental, que a natureza, personificada na Terra, volta a ser chamada para seu grande papel de mediadora dos homens entre si e com o Planeta que é, a um só tempo, casa e sustento da sociedade humana. Cita Leonardo Boff, que ao cuidar da universalização do discurso ético, conclui pela existência de uma ética ecocentrada, em que são retomados valores éticos e princípios da Carta da Terra, documento aprovado na UNESCO, em Paris, em 14/03/2000, envolvendo 46 países, como: respeito e cuidado da comunidade de vida; integridade ecológica; justiça social e econômica; democracia, não-violência e paz; um ethos e muitas morais. ( pp. 137-139 ) 47 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 225. 48 Sobre a qualidade de vida no ordenamento jurídico brasileiro, vide DERANI, Cristiane. Afirma a autora que abrange dois aspectos concomitantes: o do nível de vida material e do bem-estar físico e espiritual, basendo-se na premissa de que um mínimo material é sempre necessário ao deleite espiritual. Às expressões sinônimas qualidade de vida e bem estar, a autora acrescenta a expressão usada por Aristóteles em “Política”, “bem viver”, quando trata do dinheiro e da insuficiência da sua conquista para a realização de um “bem viver”, que seria a possibilidade efetiva de um cidadão desenvolver suas potencialidades. Portanto, conclui a autora que o conceito de qualidade de vida pode ser desmembrado em dois níveis, uma mais geral, básico, e outro,
131
Neste sentido, François Ost pondera49:
Passo a passo, o direito faz, assim, a aprendizagem do ponto de vista global. Num século, a evolução é significativa, conduzindo de uma posição estritamente antropocêntrica a uma maior tomada de consideração da lógica natural em si mesma, a evolução que é, também, a do ponto de vista local para o ponto de vista planetário, e do ponto de vista concreto e particular ( tal flor, tal animal ) para a exigência abstrata e global ( por detrás da flor ou do animal, o patrimônio genético ). Se nos primeiros tempos da proteção da natureza, o legislador se preocupava exclusivamente com tal espécie ou tal espaço, beneficiado dos favores do público ( critério simultaneamente antropocêntrico, local e particular ), chegamos hoje à proteção de objetos infinitamente mais abstratos e mais englobantes, como o clima e a biodiversidade.
Na doutrina brasileira, Paulo Leme Affonso Leme Machado50 adota tal
posicionamento. Vejamos:
O terceiro caminho coloca o homem como centro das preocupações do desenvolvimento sustentado. Onde há centro, há periferia. O fato de o homem estar no centro das preocupações, como afirma o mencionado princípio 1, não pode significar um homem desligado e sem compromissos com as partes periféricas ou mais distantes de si mesmo. Não é o homem isolado, ou fora do ecossistema, o agressor desse ecossistema.
Avançando um pouco mais na tutela constitucional ambiental, entendemos
como J. J. Gomes Canotilho51 que a força normativa da chamada constituição
ambiental dependerá da concretização do programa jurídico-constitucional, pois
qualquer constituição do ambiente só poderá lograr tal força se os vários agentes
públicos e privados, que atuem sobre o ambiente, colocarem-no como fim e como
medida das suas decisões.
particular, histórico. O basilar consiste no seu ideal ético, assentado em valores de dignidade e bem-estar. O particular é dado pela análise dos elementos da realidade que historicamente informam esses princípios, que vão informar o que é materialmente necessário para que esses ideais se concretizem. O segundo aspecto, histórico-material, deve abranger aspecto físico ( condições mínimas do meio físico e também as sensações psicológicas, estéticas ou estudos anímicos, beleza da paisagem, tranqüilidade do entorno, equilíbrio natural); a referência antropológica ( a verificação de como o acesso aos recursos naturais se dá e com que abundância eles servem às sociedades humanas, no momento presente e também futuro ); a tutela do bem-estar ( o conceito de qualidade de vida deve prever a obtenção de fatores necessários ao atendimento das necessidades básicas – alimentação, habitação, saúde e educação ). Cf. DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 77. 49 OST, François. A natureza á margem da lei: a ecologia à prova do direito pondera. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 112 50 MACHADO, Paulo Leme Affonso. Estudos de Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros, 1994, p.18. 51 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional Ambiental Português e da União Européia. In CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, Jose Rubens Morato ( org ). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 5.
132
Diferentemente do que ocorre com os outros direitos sociais, que tratam de
criar ou realizar o que ainda não existe, o direito ambiental tem como objetivo
garantir o que já existe e recuperar o que foi degradado52.
Esta concretização da Constituição Federal está relacionada, em última
análise, à cidadania participativa, que compreende uma ação conjunta do poder
público e da sociedade na proteção ambiental. Para se estruturar e edificar um
Estado de Direito Ambiental, imprescindível é uma democracia ambiental que
imponha a participação de todos na defesa e preservação ambientais.
A seu turno, a participação no processo decisório ambiental, seja em que
esfera de poder for – Executivo, Legislativo ou Judiciário – acarreta transparência
e legitimidade da decisão proferida, contribuindo sobremaneira para a
conscientização da problemática ambiental.
Importante observar-se que a Carta Magna não fechou os olhos para tal
imperativo, ao prever no já citado art. 225, a necessária participação de todos, os
mais diversos atores sociais – grupos de cidadãos, ONG’s, cientistas, setor
privado, poder público, entre outros – na gestão ambiental.
A questão da cidadania ambiental, a ser abordada de forma mais específica
em capítulo próprio, é de fundamental relevância para a discussão a respeito das
decisões tomadas no processo de decisão da implantação das hidrelétricas. O que
se reclama, via de regra, em tais processos, é a existência de um deficit
democrático constante, com a priorização, no âmbito decisional, da vontade do
poder público e de setores privados da economia.
4.2
Direito Humano ao Meio Ambiente. Direitos econômicos, sociais e
culturais.
O desenvolvimento econômico subjacente à expansão do setor de geração
de energia hidrelétrica, a preservação ambiental e, ainda, o respeito aos direitos
sociais e culturais dos atingidos pelas barragens hidrelétricas são temas que
suscitam, naturalmente, o debate a respeito dos direitos humanos.
52 Cf. CANOTILHO, José. J. Gomes. MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. 3ª Ed. Revisada. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp. 282 e 349.
133
Como já mencionado anteriormente, a doutrina jurídica contemporânea
distingue os direitos humanos dos direitos fundamentais, reconhecendo estes
últimos como aqueles já consagrados pelo Estado como regras
constitucionalmente escritas.
A Declaração Universal de Direitos Humanos53, aprovada pela Assembléia
Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, retomando os ideais da
Revolução Francesa, representou a manifestação histórica do reconhecimento, em
âmbito universal, dos valores supremos da igualdade, liberdade e fraternidade
entre os homens, conforme determinado pelo art. I.54
Os três princípios axiológicos fundamentais, portanto, em matéria de
direitos humanos são a igualdade entre os homens, a liberdade e a fraternidade,
sendo que esta última hoje é tratada na concepção de “solidariedade”. Daremos
enfoque, então, a esse último.
O princípio da solidariedade está na base dos direitos econômicos e sociais
afirmados nos artigos XXII a XXVI da Declaração de 1948 e compreende os
direitos à seguridade social, ao trabalho e respectiva remuneração, ao lazer e
repouso, ao bem estar e saúde e à educação.
Após essa breve abordagem sobre os princípios relativos aos direitos
humanos, ateremo-nos ao conteúdo do Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, por representar o conjunto de direitos relativo à
proteção das classes ou grupos sociais menos favorecidos, contra a dominação
socioeconômica exercida pela minoria rica e hegemônica, sem perder de vista a
noção acerca da indivisibilidade dos direitos humanos.
Diversamente do que ocorre na defesa dos direitos civis e políticos em que
normalmente a violação a tais direitos se deve a uma ação abusiva do Estado, nos
direitos econômicos, sociais e culturais, a antijuridicidade consiste na inércia
estatal, ou seja, na recusa ou inação dos órgãos públicos em limitar ou controlar o
53 Embora tecnicamente seja a Declaração Universal dos Direitos Humanos uma recomendação da Assembléia Geral das Nações Unidas a seus membros, já que foi concebida como uma etapa preliminar à adoção posterior de um pacto ou tratado internacional sobre o assunto, hoje, abstraindo-se do excesso de formalismo, reconhece-se amplamente que a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituição, leis e tratados internacionais. Isto se justifica pois as previsões constantes da referida Declaração dizem respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não. Cf. COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 226-227 54 Art. I – Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
134
poder econômico privado. Em razão disso, os direitos declarados neste pacto tem,
por objeto, políticas públicas ou programas de ação governamental; ou políticas
públicas coordenadas entre si.55
Os direitos econômicos, sociais e culturais priorizam a igualdade entre os
grupos ou classes sociais, no acesso a condições dignas de vida. Isto pressupõe a
constante e programada interferência do Poder Público na esfera privada, para a
progressiva eliminação das desigualdades sociais. Por tal razão, tais direitos
devem obediência ao princípio da solidariedade, o qual impõe a repartição das
vantagens ou encargos sociais em função das carências de cada grupo ou classe
social. Essa é, aliás, uma das dificuldades para a efetivação de tais direitos
previstos no pacto.56
Busca-se, portanto, através da garantia dos direitos econômicos, sociais e
culturais, o reforço da atuação do Poder Público, através da implementação de
políticas públicas com vistas à eliminação da dominação das classes proprietárias
e à realização da justiça social.
O art. 12 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais estabelece “o direito de toda pessoa de desfrutar do mais elevado nível
de saúde física e mental”, determinando aos Estados-Parte a adoção de medidas
com o fim de assegurar esse direito, o que inclui a tomada de providências para a
melhoria dos aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente. ( item 2, alínea
b do dispositivo citado )
Outros diplomas legais nacionais e internacionais fazem referência ao
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito humano. A
Declaração de Estocolmo, de 1972, por exemplo, embora não tenha declarado o
direito humano ao meio ambiente, de maneira expressa concebeu a relação entre
direitos humanos e meio ambiente. Isto é o que se percebe da leitura do
preâmbulo, segundo o qual:
“O homem é ao mesmo tempo criatura e criador do meio ambiente, que lhe dá sustento físico e lhe oferece a oportunidade de desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente. A longa e difícil evolução da espécie humana no planeta levou-a a um estágio em que, com o rápido progresso da Ciência e da Tecnologia, conquistou o poder de transformar, de inúmeras maneiras e em escalas sem precedentes, o meio ambiente. Natural ou criado pelo homem é o meio ambiente
55 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Vol. I, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, pp. 446-447. 56 COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 337.
135
essencial para o bem-estar e para gozo dos direitos humanos fundamentais, até o direito à própria vida.”
O principio I da referida Declaração também estabelece uma ligação clara
entre meio ambiente e direitos humanos civis e políticos, bem como com os
econômicos, sociais e culturais, ao prever que o homem tem direito fundamental
ao “desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade
tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar e é portador solene
de obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações
presentes e futuras.”
Outro diploma legal que merece ser citado, nesse âmbito, é a Declaração
sobre o Direito ao Desenvolvimento, datada de 1986, que é bastante clara ao
eleger o foco do desenvolvimento humano: “Artigo 2º. 1. A pessoa humana é o
sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativa e beneficiária
do direito ao desenvolvimento.” Orienta o desenvolvimento à realização plena dos
direitos humanos, atribuindo, aos Estados, a responsabilidade primária de criarem,
nacional e internacionalmente, as condições para a redução das desigualdades e a
garantia da paz;
Por sua vez, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - Protocolo de
San Salvador, de 1988, ratificado pelo Brasil em 21 de agosto de 1996, explicita
em seu “Artigo 11: Direito a um meio ambiente sadio. 1. Toda pessoa tem direito
a viver em meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básicos. 2.
Os Estados-partes promoverão a proteção, a preservação e o melhoramento do
meio ambiente.”
Podemos citar, ainda, a Declaração do Rio de Janeiro e outros documentos
aprovados pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, quando se consolidou
internacionalmente o reconhecimento de que a proteção ambiental é indissociável
da redução da pobreza.
Importante, também, a Convenção nº 169, da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), relativa aos povos indígenas e tribais, adotada pela ONU em
Genebra, em 1989, ratificada pelo Brasil em 25 de julho de 2002, tendo entrado
em vigor no país doze meses depois, e finalmente, promulgada pelo Decreto nº
5051, de 19 de abril de 2004. Ela estabelece o dever de os Estados respeitarem a
136
importância especial que, para as culturas e valores espirituais dos povos
tradicionais, possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos,
conforme o caso, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e,
particularmente, os aspectos coletivos dessa relação (art. 13.1). A Convenção
proíbe o deslocamento compulsório, salvo em situações excepcionais, desde que
obedecidas uma série de condições, como possibilidade de retorno. Sendo
impossível, prevê-se recuperação das condições de vida anteriores, o direito de as
populações escolherem suas terras, controlar seu desenvolvimento e participar das
decisões políticas.
Além disso, como já dito no capítulo anterior, a respeito da abordagem
constitucional do meio ambiente, a Constituição Federal de 1988, conhecida como
“Constituição Cidadã”, já apresentava o quadro institucional e os substratos
jurídicos que permitiam promover, no país, o direito ao meio ambiente, trazendo
diversos dispositivos que procuravam estabelecer um diálogo permanente entre a
ordem social e econômica, na busca da efetivação do Estado democrático de
Direito.
Não é sem razão: a dignidade humana e a cidadania são tidas como
fundamento da República já no artigo 1º da CF/88 (incisos II e III) e, no artigo 3º,
coloca-se, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,
construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento
nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (incisos I a IV)..
A relação, portanto, entre o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a
dignidade da pessoa humana é umbilical, já que a existência de um ambiente sadio
foi e continua sendo sempre essencial para a manutenção e perpetuação da vida
humana57.
57 Essa relação é reconhecida por um número crescente de órgãos da ONU, valendo ressaltar que a Subcomissão sobre a Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias da ONU adotou várias resoluções relativas a essa matéria, dentre elas a intitulada Direitos Humanos e Meio Ambiente, que indica um relator especial para estudar a conexão entre os dois temas, tendo a relatora especial, Fatma Zohra Ksentini, apresentado relatórios em que se destacava a relação existente entre direito humano ao meio ambiente saudável e os problemas introduzidos pelo desenvolvimento, bem como a preocupação com os povos indígenas e com a efetivação de outros direitos humanos. O relatório final da Subcomissão, concluído em 1994, incluiu uma minuta de declaração, tendo este sido o primeiro instrumento internacional a tratar do assunto. A minuta descreve a dimensão ambiental dos direitos humanos consagrados, como o direito à vida e à cultura, e os direitos à informação, à participação e aos remédios jurídicos necessários à defesa do
137
A partir da constatação dessa estreita relação, surgiram três abordagens
diferentes no direito internacional: a primeira concepção reivindica a consagração
do direito ao meio ambiente saudável como fundamental para o gozo e o exercício
do direito à vida e dos demais direitos humanos; a segunda concepção reconhece a
superposição da proteção ambiental e dos direitos humanos em algumas situações
específicas, porém não acredita que o simples reconhecimento do direito
substantivo ao ambiente seja a melhor alternativa, preferindo apostar em que os
esforços para a preservação ambiental devam ser concentrados no
aperfeiçoamento dos direitos ambientais de ordem procedimentais. A terceira
concepção, de natureza moral, por sua vez, defende a mudança de paradigma para
o reconhecimento de um valor intrínseco do ambiente.58
Tal diversidade de entendimentos demonstra a grande controvérsia que
existe no campo do direito internacional sobre a relação entre meio ambiente e
direitos humanos59.
Os conflitos se estabelecem entre os próprios ambientalistas e entre estes e
os defensores de direitos humanos quanto à afirmação do direito ao meio
ambiente como direito humano. Entre os ambientalistas, há aqueles que defendem
a noção do meio ambiente em uma visão antropocêntrica dilargada, e que receiam,
portanto, que a atuação dos grupos de direitos humanos seja excessivamente
antropocêntrica, sem considerar a importância e o valor das outras espécies além
meio ambiente pelo cidadão. Cf. CARVALHO, Edson Ferreira. Meio Ambiente e Direitos Humanos. Curitiba: Juruá Editora, 2006, p. 146 58 Ibid. p. 48. 59 Ibid. pp. 157-162. Segundo o autor, dois importantes diplomas internacionais na área ambiental deixaram de mencionar o direito ao meio ambiente como direito humano. A Carta Mundial para a Natureza (1982) não fez qualquer referencia neste sentido, tendo procurado conciliar a preocupação com os seres humanos e o reconhecimento do valor intrínseco da natureza na preservação ambiental. Seu preâmbulo reconhece que a espécie humana e parte da natureza e que a vida depende do funcionamento ininterrupto dos sistemas naturais que asseguram o suprimento energia e nutrientes. Ao mesmo tempo, sustenta que toda a forma de vida deve ser respeitada, qualquer que seja a sua utilidade para o homem, devendo o homem guiar-se por um código de ação moral para reconhecer o valor intrínseco dos demais seres vivos. O outro diploma legal constitui o conjunto de documentos resultante da Conferencia das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, celebrada no Rio de Janeiro, em 1992, que inclui a Declaração do Rio e a Agenda 21, onde houve apenas algumas referências isoladas a direitos humanos: a conclamação do fim da violação aos direitos humanos contra jovens; a previsão de que os povos indígenas e suas comunidades devem gozar, em toda a sua plenitude, dos direitos humanos e liberdades fundamentais sem constrangimento ou discriminação; e a previsão também da proteção ao direito à moradia, direito humano básico expressamente previsto na Declaração Universal de Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O autor prossegue para dizer que a ausência da previsão do direito ao meio ambiente como direito humano não foi decorrente de esquecimento involuntário, mas, em verdade, não houve consenso sobre a questão, tendo a Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento se concentrado nas questões referentes ao desenvolvimento econômico e a proteção global do ambiente.
138
dos limites impostos pelos processos ecológicos. Porém, há outros ambientalistas,
adeptos da ecologia profunda, que criticam duramente o enfoque essencialmente
antropocêntrico dos direitos humanos, defendendo uma mudança de paradigma na
qual o foco estaria no ecossistema, independente dos benefícios trazidos ao
homem. Por outro lado, os defensores dos direitos humanos criticam os
ambientalistas por desconsiderarem as necessidades humanas básicas imediatas,
em prol da defesa do meio ambiente natural e dos interesses das futuras
gerações.60
Ora, se é correto que o Direito Ambiental, apesar da existência de suporte
normativo amplo e da previsão de diversos instrumentos para sua proteção,
interna ou externamente, carece de efetividade, a pergunta que se faz é se o
reconhecimento do meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito
humano tornaria a proteção ambiental mais efetiva.
Constatamos que sim.
Se o Direito Ambiental é marcadamente um ramo do direito
interdisciplinar, esta vinculação entre direitos humanos e meio ambiente torna-se
plenamente compatível, podendo a legislação internacional sobre direitos
humanos ser adotada para os casos em que houver sobreposição das duas
especialidades do direito.
Em verdade, embora sejam ramos distintos - Direito Ambiental e Direitos
Humanos - com características próprias e diferenciadas, podemos afirmar a
existência de um núcleo comum, na medida em que a melhoria da qualidade de
vida das pessoas depende de um ambiente preservado e sadio, capaz de prover
alimentos, abrigo e preservar os recursos naturais necessários à subsistência dos
seres vivos.
No entanto, a relação entre meio ambiente e direitos humanos não deixa de
ser ampla e complexa, podendo assumir formas diversas e também sofrer
influência da dimensão global das questões em jogo.
Neste sentido, quando fatores de violação ao direito ambiental envolvem
também questões de igualdade ao acesso e uso dos recursos naturais61, como no
60 Ibid. pp. 152-154. 61 CARVALHO, Edson Ferreira. Meio Ambiente e Direitos Humanos. Curitiba: Juruá Editora, 2006, p.140. O autor cita Jhonston ( 2000, p. 99), segundo o qual “ as crises ambientais, quando envolvem questões de igualdade ao acesso e uso dos recursos ou à exposição a condições
139
caso do desenvolvimento de atividade hidrelétricas, em que o direito à vida e à
saúde das pessoas atingidas pela construção das barragens são também violados,
estamos tratando de questões de direitos humanos.
É Michel Prieur62 quem afirma que o desenvolvimento sustentável não
quer dizer apenas uma adoção (a) de uma nova política econômica e social em
relação aos recursos naturais e (b) de uma visão, longo prazo, da salvaguarda dos
direitos das gerações futuras - ele exige a consideração de haver um direito
humano ao meio ambiente sadio. O autor francês faz referência à Declaração do
Rio- 1992 (Princípio I) para salientar que houve o reconhecimento do direito
humano ao meio ambiente como uma condição necessária para alcançar o
desenvolvimento sustentável. Acrescenta, ainda, que apesar da Conferência de
Johannesburgo (2002) não ter sido assim expressa, o referido elo entre meio
ambiente e direitos humanos já seria uma realidade.
Assim, a despeito dos obstáculos teóricos e práticos na abordagem dos
direitos humanos em relação à proteção ambiental, os objetivos do Direito
Ambiental e dos Direitos Humanos convergem quando a degradação ambiental
ameaça o direito à vida, à saúde, ao bem-estar, ao trabalho e ao
desenvolvimento.63 Essa convergência, portanto, apóia-nos para aliar o direito
humano ao meio ambiente, cuja observância se faz de extrema relevância para o
alcance de sociedades sustentáveis do ponto de vista social, econômico, ambiental
e cultural.
degenerativas, tornam-se questões de direitos humanos no momento em que a experiência social da crise é diferenciada.” 62 PRIEUR, Michel. Droit de l’homme à l’environnement et développement durable, Acessível pelo site: http://www.francophonie-durable.org/documents/colloque-ouaga-a5-prieur.pdf. Último acesso em 28 de maio de 2008. No original: Mais le développement durable n’implique pas seulement une nouvelle politique économique soucieuse dês ressources naturelles et d’une vision à long terme sauvegardant les droits des générations futures. Il exige une prise en compte des droits fondamentaux de l’homme et plus particulièrement du droit nouveau de l’homme à un environnement sain. Comme l’a énoncé la Déclaration de Rio en 1992 dans son Principe 1 : « Les êtres humains sont au centre des préoccupations relatives au développement durable ». Il en résulte que la reconnaissance du droit de l’homme à lénvironnement est une condition nécessaire à la mise en oeuvre de l’objectif du développement durable (…)Bien que la Conférence de Johannesburg de 2002 n’ait pas été marquée par dês avancées notables mais plutôt par une stagnation des idées environnementales, le Plan d’application du sommet mondial pour le développement durable fait néanmoins référence aux liens entre environnement et droits de l’homme dans son paragraphe 169 en mentionnant quést entrain d’être examinée léxistence possible d’un rapport entre environnement et droits de l’homme. En réalité ce rapport est déjà une réalité, certes non pas à l’échelle universelle mais à l’échelle régionale et nationale.
63 CARVALHO, Edson Ferreira. Meio Ambiente e Direitos Humanos. Curitiba: Juruá Editora, 2006, p. 175.
140
No caso das hidrelétricas, apesar dos benefícios à coletividade, trazidos em
razão do aumento da expansão da oferta de energia, em contrapartida, há custos
socioambientais graves que envolvem, especialmente, a remoção compulsória das
populações atingidas pelas barragens e a perda da biodiversidade, que merecem
ser analisados sob o prisma dos direitos humanos. Constata-se a ausência de uma
política governamental que garanta, minimamente, a observância dos direitos
básicos à população atingida.
Nesse sentido, o direito humano ao meio ambiente protege as bases
materiais de reprodução da vida, para garantir a sobrevivência com qualidade. Tal
proteção beneficia a todos indistintamente, na medida em que a manutenção
dessas bases e o equilíbrio ecológico mostram-se fundamentais a todos. Porém, a
proteção deve se dar de modo especial aos grupos populacionais dependentes
mais diretos do acesso a recursos naturais para sobrevivência. É o meio ambiente
sadio e a possibilidade de sua fruição que garantem às populações tradicionais,
por exemplo, certo nível de realização de direitos.
Assim, vinculando a proteção dos recursos naturais aos aspectos humanos
que os envolvem, com o reconhecimento do direito humano ao meio ambiente,
podemos afirmar que o acesso aos bens ambientais deve ser eqüitativo e atender
aos princípios de inclusão e justiça social.
Sob a ótica dos direitos humanos, então, devem ser verificadas as possíveis
formas, intensidade e finalidade da apropriação dos recursos naturais para se
implementarem opções mais favoráveis à sua realização. Nesse sentido,
considerando-se a água um bem fundamental para a sobrevivência e o sustento de
muitas populações locais ribeirinhas, a concessão de uso dos recursos hídricos
para a implantação de hidrelétricas deve ser analisada com cautela, sob pena de
violação grave aos direitos humanos de tais grupos populacionais.
4.3
Os Princípios de Direito: sua importância no processo de
interpretação jurídica.
Necessário destacar, primeiramente, a função dos princípios no
ordenamento jurídico, pois estes constituem as idéias centrais de um determinado
141
sistema jurídico, dando-lhe um sentido lógico, harmônico, racional, coerente e de
unidade.
Enquanto alguns autores identificam os princípios com o direito natural,
outros o aproximam da equidade, corporificando o sentimento do justo no caso
concreto.64
Importa mencionar que, com a doutrina pós-positivista, a idéia da
normatividade definitiva dos princípios foi reconhecida, ou seja, os princípios
passam, de maneira expressa, a constituir o Direito. Neste particular, é de extrema
relevância a contribuição dada por Ronald Dworkin65, distinguindo regras e
princípios, e também pelo jurista alemão Robert Alexy66.
64 FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. 5ª Ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.247.
65 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously, Cambridge: Harvard University Press, 1978, p. 70 e ss; Law’s empire, Cambridge: Harvard University, 1986, p. 220-226. O autor explica que os princípios, em sentido genérico, representam o conjunto de standards que não são normas. Estes podem ser subdivididos em: princípios em sentido estrito e diretrizes políticas. Enquanto as diretrizes políticas são modelos de standards que propõem um objetivo coletivo a ser alcançado, geralmente uma melhora no âmbito social, político ou econômico; os princípios em sentido estrito justificam uma decisão judicial, demonstrando que tal decisão assegura algum direito, individual ou coletivo, ou seja, são standards que devem ser observados por questões de justiça, equidade ou por alguma outra questão de dimensão moral. Ao distinguir os princípios das normas, R. Dworkin aponta como traços distintivos os seguintes: as regras são normas concretas, já determinadas para uma aplicação específica, enquanto os princípios são gerais e carentes de interpretação; os princípios têm uma dimensão de peso ou importância que falta às normas; os princípios se impôem pelo seu conteúdo moral, diferentemente da lei, que deve seguir suas formalidades; as regras ditam decisões, ao passo que os princípios ditam razões para decidir; no caso de existência de conflito entre normas, deve-se fazer um juízo de validez destas, a fim de saber qual norma será aplicada, por ser aquela dotada de validez. Assim, vale a regra do “ tudo ou nada”, em outras palavras, ou a regra será aplicada ou não. Já no caso de conflito entre princípios, este esquema lógico-formal não tem aplicação, devendo o juiz se valer de um processo de ponderação dos princípios relativos ao caso. Desta forma, segundo o autor, um princípio pode ter primazia sobre outro, porém não a ponto de anular a validade dos princípios que cedem o lugar.
66 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 86 e ss. Para o referido autor, os princípios são normas que exigem que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes, ao passo que as regras são normas que podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é valida, ela deve ser cumprida na sua integralidade, sem mais nem menos. Enquanto as regras contêm determinações em um âmbito fático e juridicamente possível, os princípios podem ser realizados em diferentes graus, de acordo com as possibilidades jurídicas e fáticas, dadas pelos princípios opostos. Assim, em caso de conflito entre princípios, através da consideração de pesos entre eles, deve ser elaborado um juízo de ponderação no caso concreto para verificar qual deve prevalecer.
142
Os princípios dão coesão ao sistema normativo. Neles repousa a
obrigatoriedade jurídica de todo o repertório normativo.67 São considerados
normas de hierarquia superior às demais regras jurídicas do sistema.
Além disso, definem e cristalizam valores culturais, concepções ou
critérios que devem orientar a compreensão e a aplicação das regras diante do
caso concreto.68 Em virtude disso, estas “estão condicionadas pelo valor atribuído
à realidade por aqueles”69. Assim, não basta uma análise da lei em abstrato,
devendo o seu significado ser precisado em face da realidade e dos casos
concretos. O exame do desempenho da norma na prática fornece ao intérprete a
“possibilidade de relacionar os princípios com uma outra dimensão de significado
normativo, viabilizando uma compreensão critica da norma em uma perspectiva
concreta.”70 71
Dessa forma, CANARIS (2002), ao desenvolver a idéia do ordenamento
jurídico como um sistema, já indicava os princípios gerais do Direito como
elementos de conexão que, juntamente com as regras, contribuem para conferir
unidade e adequação à ordem jurídica. Ressalta o referido autor quatro
características dos princípios gerais do direito: 1) não valem sem exceção e podem
entrar em conflito ou em contradição entre si; 2) não têm a pretensão da
exclusividade; 3) eles ostentam o seu sentido próprio em uma combinação de
complementação e restrição recíprocas; e, por fim, 4) necessitam para a sua
realização de subprincípios e de valorações singulares com conteúdo material
próprio.72
Em decorrência, os princípios, na sociedade contemporânea, são fruto do
pluralismo e marcados pelo seu caráter aberto73, razão pela qual não se submetem
às mesmas diretrizes existentes em relação às regras e à hierarquização. Portanto,
abstratamente, não há hierarquia entre princípios, sendo que, no exame dos casos
67 FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. 5ª Ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.247. 68 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Madrid: Trotta, 2003, p. 110. 69 MARINONI. Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. Vol. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 49. 70 Charles E. Clarck e David M. Trubek, The creative role of the judge: restraint na freedom in the common Law tradition, Yale Law Journal, v. 71, p. 255 apud MARINONI. Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. Vol. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 49. 72 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 88 e ss. 73 MARINONI. Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. Vol. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 52.
143
concretos, deve se utilizar uma metodologia74 que permita a sua aplicação,
compatibilizando eventual tensão entre princípios ou levando um a prevalecer
sobre o outro.
Podemos destacar, ainda, na doutrina brasileira, o conceito de princípios
fomentado por José Afonso da Silva, segundo o qual os princípios são verdadeiros
mandamentos nucleares de um sistema.75
Neste passo, entendemos, como fonte normativa dos princípios, não
somente o texto constitucional, como as leis infraconstitucionais mas também as
Declarações Internacionais, de que são exemplo, no campo do direito ambiental, a
Declaração da ONU de Estocolmo de 1972 e a Declaração do Rio de Janeiro de
1992. Quanto às declarações internacionais, cumpre ressaltar que embora estas
não estejam ainda incluídas entre as fontes tradicionais do direito internacional e
não tenham a imperatividade própria dos tratados e convenções internacionais,
devem ser reconhecidas como instrumentos dotados de relevância jurídica.
Constituem importante método de cristalização de novos conceitos e princípios
gerais, o que influencia toda a sistemática do direito, tanto no plano internacional
como interno.76
Assim, passemos ao exame dos princípios de desenvolvimento sustentável
e da gestão democrática na tutela ambiental, sem desconsiderar as diretrizes do
Estatuto da Cidade.
Lembremos, ainda, a importância de outros princípios de Direito
Ambiental e Urbanístico que, todavia, não serão objeto de análise nesta
Dissertação. O princípio da função social da propriedade ( art. 5º, inciso XXIII e
art. 170, III da CF/88) e da cidade ( art. 182 da CF/88 e art. 2º do Estatuto da
Cidade - Lei 10.257/2001), os princípios da prevenção e da precaução (
74 Esta metodologia pode ser tanto a ponderação proposta por ALEXY, R. In Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 86 e ss; como a aplicação do principio da proporcionalidade, conforme afirma HABERLE. Peter. In La garantia del contenido esencial de los derechos fundamentales. Madrid, Editorial Dykinson, 2003; ou, ainda, o método do Diálogo das Fontes proposto por Erik Jayme, apud MARQUES, Claudia Lima. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil: do “diálogo das fontes” no combate às cláusulas abusivas. Revistas dos Tribunais, São Paulo, v. 45, jan.2003 (versão especial para as Jornadas “Québec-Brasil sobre Direito e Sociedade”, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da UFRS, dia 07 de maio de 2003, do artigo publicado na Revista de Direito do Consumidor) 75 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1992, p. 95. 76 MIIRRA, Alvaro Luiz Valery. Princípios Fundamentais do Direito Ambiental. Revista de Direito Ambiental, Vol. 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 52-53.
144
Declaração do Rio/92, - princípio 15), princípio do poluidor-pagador ( Declaração
do Rio/92 – princípio n. 16 e art. 225, parágrafo 3º da CF/88) e o princípio da
solidariedade entre gerações ( art. 225, caput, da CF/88) são alguns deles.
4.3.1
O princípio do desenvolvimento sustentável.
Não há como falar de planejamento e gestão ambiental sem tratar do
princípio do desenvolvimento sustentável. Necessariamente as duas noções estão
intimamente vinculadas. A garantia de que uma política de planejamento e de
gestão ambiental seja eficaz é a adoção, como princípio, e também como meta, do
chamado desenvolvimento sustentável.
Mas logo vem a pergunta: O que podemos considerar como
desenvolvimento sustentável? Qual seria realmente o modelo de desenvolvimento
sustentável mais adequado para a realidade brasileira? Para nortear as respostas, é
preciso indagar, antes de tudo, em favor de quê ou de quem tal desenvolvimento
econômico se aproveita.
Nesse sentido, a expressão “desenvolvimento sustentável”, tanto abstrata
como ambígua, vem despertando diversas interpretações. Algumas são otimistas,
com a idéia de inauguração de um novo paradigma da sensatez, da justiça social,
de espírito de fraternidade entre os povos do mundo e, sobretudo, de uma
convivência harmônica. Outras, em contrapartida são pessimistas: consideram,
nas propostas incorporadas pela Rio 92, um novo estágio do neocolonialismo,
com a prevalência dos interesses hegemônicos dos países do hemisfério Norte
para dominar a biodiversidade e os recursos naturais e genéticos presentes no
hemisfério Sul.77
Pretendemos, então, nesse Capítulo, empreender uma abordagem
interdisciplinar da questão do desenvolvimento sustentável, trazendo, além dos
aspectos jurídicos, o ponto de vista da teoria econômica.
77 HERCULANO, Selene. Do desenvolvimento (in)suportável à sociedade feliz. In GOLDENBERG, Mirian (coord.). Ecologia, Ciência e Política, Rio de Janeiro: Editora Revan, 1992, pp. 9 – 48.
145
Inicialmente, é preciso dizer que há diversas teorias para explicar o
fenômeno tanto do desenvolvimento quanto da sustentabilidade. Daí, poder-se
inferir que tal noção não apresenta contornos precisos e bem definidos.
Mas, a despeito de tal imprecisão, podemos destacar uma certeza. A
propalada oposição entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental não se
verifica quando se considera o principio do desenvolvimento sustentável, já que
este concretiza a relação harmônica e integrativa que deve existir entre a
economia e a natureza.78 É a partir dessa noção que as questões tanto
econômicas79 como socioambientais se reúnem para serem debatidas de maneira
global e não fragmentada.
A - Algumas teorias econômicas sobre o desenvolvimento
sustentável.
A noção de desenvolvimento sustentável procura, assim, compatibilizar
duas outras idéias - a de crescimento econômico contínuo e de preservação
ambiental - e tem, por finalidade, buscar um novo modo de desenvolver
determinada região, estado ou país, com a utilização racional dos recursos naturais
para a satisfação das presentes e futuras gerações.
Para compreender a vinculação existente entre os dois temas, alguns
conhecimentos são fundamentais e eles se dão basicamente em três âmbitos, que
se relacionam, interagem e se sobrepõem, condicionando-se mutuamente. São
eles: o dos comportamentos humanos, econômicos e sociais, objeto da teoria
econômica e das demais ciências sociais; o da evolução da natureza, objeto das
ciências biológicas, físicas e químicas; e o da configuração social do território,
que é objeto da geografia humana, das ciências regionais e da organização do
espaço.80
Foi o canadense Maurice Strong quem, pela primeira vez, usou em 1973 o
conceito de “ecodesenvolvimento” para caracterizar uma concepção alternativa de
78 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p.86. 79 A economia se preocupa com duas grandes ordens de problemas: a questão de que as necessidades humanas, na atual sociedade de consumo, tendem a multiplicar-se; e, por outro lado, os limites e a escassez dos recursos naturais existentes no mundo para o atendimento das necessidades que se impõem. 80 SUNKEL, Oswaldo ( 2001 ) apud VEIGA, JOSÉ ELI DA. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, pp. 187-188.
146
política de desenvolvimento, mas coube a Ignacy Sachs formular os princípios
básicos desta nova visão, com base em seis aspectos: 1) satisfação das
necessidades básicas; 2) solidariedade com as gerações futuras; 3) participação da
população envolvida; 4) a preservação dos recursos naturais e do meio ambiente
em geral; 5) a elaboração de um sistema social garantindo emprego, segurança
social e respeito a outras culturas; e 6) programas de educação. Este trabalho
sobre ecodesenvolvimento capitaneado, entre outros, pelo autor precedeu a noção
de desenvolvimento sustentável.81
Em 1987, na esfera internacional, com o Relatório Brundtland, intitulado
Nosso Futuro Comum82, a proposta de um “desenvolvimento que satisfaz as
necessidades da geração presente sem comprometer as possibilidades das futuras
gerações para satisfazer as suas” veio a lume. Neste documento, o conceito de
desenvolvimento sustentável foi caracterizado como um “conceito político” e um
“conceito amplo para o progresso econômico e social”. Este relatório foi
deliberadamente um documento político que procurou estabelecer alianças
políticas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, para a consolidação
de entendimentos que seriam decisivos para a realização da Rio-92.83
A Agenda 21, um dos documentos resultantes da Rio-92, afirma ter
consagrado o “conceito de sustentabilidade ampliada e progressiva”. Ampliada,
no sentido de abranger todas as dimensões da vida: econômica, social, territorial,
científica e tecnológica, política e cultural. Progressiva, porque significa não
reforçar os conflitos a ponto de torná-los inegociáveis, mas sim fragmentá-los em
porções menos complexas, para administrá-los melhor no tempo e no espaço.
Mas, observando a definição trazida pela legislação internacional, há de se
perguntar: quais são as necessidades das gerações presentes e quem as define?
Quando se fala em desenvolvimento sustentável é preciso estar atento para
as escolhas que se situam no nível das finalidades e dos instrumentos constantes
das políticas públicas. Três questões aparentemente simples, mas que envolvem
81 BRÜSEKE, Franz Josef. O problema do desenvolvimento sustentável. In CAVALCANTI, Clóvis (org) Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003, p.31. 82 83 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p. 191.
147
temas complexos, devem ser formuladas: O que produzir? Como produzir? E para
quem produzir?84
Neste sentido, as relações de produção da sociedade é que vão determinar
como o meio ambiente será apropriado e como se vai gerar riqueza, através dele,
pois não há produção sem recursos naturais. E a destruição das bases naturais de
reprodução do sistema econômico não é um privilégio do capitalismo, pois ela se
verificou ainda na Baixa Idade Média, com a destruição de florestas primárias
européias; no período do mercantilismo, com a exploração incessante dos recursos
naturais das colônias pelos países europeus; e, também, com a destruição das
florestas de cedro pelos navegadores fenícios. 85
Leroy86 critica a forma como vem sendo desempenhada a noção de
desenvolvimento sustentável. Afirma que, de forma implícita, a Agenda 21, ao
anunciar no Capítulo I, intitulado “Cooperação Internacional para acelerar o
desenvolvimento sustentável dos países em desenvolvimento e políticas internas
correlatas”, reconhece que o desenvolvimento sustentável é entregue ao mercado,
sendo este o responsável por definir quais são as necessidades, seguindo critérios
como o da redução da pobreza e a melhoria do meio ambiente. Assim, afirma ele:
se o mercado objetiva o lucro e orienta o desejo dos consumidores, de um modo
geral, o conceito de desenvolvimento sustentável acaba por manter as bases do
modelo de produção e consumo atuais, sabidamente inadequado para enfrentar os
desafios ambientais deste século. Assim, o chamado “desenvolvimento
sustentável” seria uma mera mudança terminológica para retratar um fenômeno
antigo: o do crescimento econômico.
Reputamos, assim, a crítica acima bastante válida, porém, dissentimos, na
medida em que reconhecemos haver diversas formas de entendimento do que seja
desenvolvimento sustentável, sendo a da hegemonia do mercado apenas uma
dentre outras. Ora, há que se distinguir, nesse ponto, entre aquilo que a lei
preconiza e sua aplicação efetiva. O fato da inadequação prática dos princípios e
regras relativas ao tema não leva a crer que a idéia não seja eficaz e positiva para
o objetivo do desenvolvimento econômico, social e ambiental. Aliás, como
84 NUSDEO, Fábio. Economia do Meio Ambiente. In PHILIPPI JR, Arlindo. ALVES, Alaor Caffé ( org ). Curso Interdisciplinar de Direito Ambiental. p. 197 85 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 73. 86 LEROY, Jean Pierre. Prefácio. BERMANN, Celio. ( org ) As novas energias no Brasil. Dilemas da Inclusão social e programas de governo. Rio de Janeiro: FASE, 2007, p. 13.
148
assinalado também pela Agenda 21, a sustentabilidade certamente não é algo
dado, mas uma construção social, um projeto a construir: o projeto de uma nova
sociedade, baseada na democracia e em outros valores, que não os vigentes no
mercado capitalista. A sustentabilidade não é - e nunca será - uma noção de
natureza precisa, discreta, analítica ou aritmética.87
Assim, somos no sentido de que a institucionalização da noção de
desenvolvimento sustentável foi um avanço positivo na legislação internacional
ambiental, ao revelar a tomada de consciência explícita de um problema ambiental
global relativo às limitações dos recursos naturais. Mas nem por isso o conceito
parece ser idealmente concebido para a solução de todos os problemas
socioambientais e econômicos. Um maior avanço em relação ao tema é preciso,
para se extrair maiores conclusões sobre a política de desenvolvimento válida a
ser adotada no contexto brasileiro, em especial quanto à questão energética.
Há diversas teorias econômicas para explicar o conceito de
desenvolvimento sustentável. Não há consenso, contudo, em relação à
classificação destas na esfera ambiental.88 Porem, não faz parte do objetivo desta
Dissertação expor e analisar todas as correntes existentes sobre o tema. Ateremo-
nos somente àquelas que reputamos mais adequadas para fornecer suporte ao
desenvolvimento do tema proposto.
Para abordagem das teorias econômicas sobre desenvolvimento
sustentável, vamo-nos valer do estudo realizado por José Eli da Veiga (2006) que
bem demonstra a diversidade de correntes de pensamento para explicar tal
fenômeno.89
Afirma o autor brasileiro que podemos identificar pelo menos três grandes
vertentes teóricas para explicar o desenvolvimento: uma que pretende o
desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico, o qual vem sendo
87 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p. 165. 88 Várias são as tentativas de sistematização. Alguns teóricos, como AMAZONAS (2002) visualizam três blocos: neoclássicas, institucionais e ecológicas. Outros, como ROMEIRO (2003) preferem considerar dois campos: o da sustentabilidade “fraca” e “forte”, que opõem, respectivamente, os economistas neoclássicos e os que se dizem ecológicos. Há também quem destaque, como MUELLER(2001), a oposição entre economia ambiental neoclássica e a economia ecológica, mas subdividem esta última em cinco variantes: “fundamentalismo socioambiental”, “ambientalismo cepalino”, “ambientalismo dos pobres”, “marxismo verde” e “economia de sobrevivência”. Por último, há quem, como MONTIBELLER-FILHO, fale da corrente neoclássica, da ecológica e da “ecomarxista”. 89 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
149
monitorado há várias décadas pelo aumento do PIB90; outra, situada no extremo
oposto, chamada de “pós-desenvolvimento”, cujos adeptos são absolutamente
contrários ao crescimento econômico, baseia-se em cinco dimensões básicas:
revalorização das sociedades não desenvolvidas, desvalorização da idéia de
progresso, critica dos vetores de desenvolvimento, critica das práticas
desenvolvimentistas e elogio dos modos de resistência dos perdedores que estão
abrindo para a “era do pós-desenvolvimentismo”91; e, por fim, uma terceira, que
seria o que chama de ”caminho do meio”, cujo expoente máximo é o Prêmio
Nobel de Economia Amartya Sem - que considera o crescimento econômico como
um fator histórico necessário, mas não perfeito com o qual a humanidade acabou,
mal ou bem, expandindo sua liberdade.92
Também no sentido desta terceira corrente, de evitar os extremos, está o
pensamento de Ignacy Sachs93. A idéia de que este autor parte não é o
desenvolvimento como o resultado da livre interação das forças do mercado, já
que este é somente uma dentre várias outras instituições envolvidas no processo.
Ignacy Sachs, portanto, não é contrário ao desenvolvimento, já que
enfatiza seus aspectos qualitativos. Além disso, para ele, o desenvolvimento pode
permitir que cada indivíduo revele suas capacidades, seus talentos e sua
imaginação na busca da auto-realização e da felicidade, mediante esforços
coletivos e individuais, combinação de trabalho autônomo e heterônomo e de
tempo gasto em atividades não econômicas. Nessa concepção, maneiras viáveis de
produzir meios de vida não podem depender de esforços excessivos e extenuantes
90 Desde 1990, no âmbito do PNUD ( Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ), porém, foi desenvolvido o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano - , índice capaz de fornecer a seus usuários uma espécie de medida do desenvolvimento, não alheia em relação aos aspectos sociais da vida humana. Os critérios utilizados para medir o progresso mundial na realização do bem-estar humano são quatro: vida longa e saudável, conhecimento, acesso aos recursos necessários para um padrão de vida digno e participação na vida da comunidade. Para se chegar ao cálculo do referido índice é realizada a soma aritmética dos três índices mais específicos que captam renda, escolaridade e longevidade. Embora não seja ainda o ideal, como o próprio PNUD reconhece, o IDH é um ponto de partida para avalizar o processo de desenvolvimento, tema característico pela complexidade e diversidade de seus fatores. 91 VEIGA, José Eli da. A emergência socioambiental.. São Paulo: Editora Senac, 2007, p.93. 92 Ibid. p. 94. 93 O autor é economista, nascido na Polônia, naturalizado francês, tendo vivido por quatorze anos no Brasil, onde graduou-se na Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas do Rio de Janeiro. Obteve doutoramento na Universidade de Delhi, na Índia. Lecionou de 1968 a 2004 na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais ( EHESS ), em Paris. Dirigiu o programa de doutorado em Pesquisas Comparativas sobre o Desenvolvimento. Fundou e dirigiu o Centro Internacional de Pesquisas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CIRED) e o Centro de Estudos sobre o Brasil Contemporâneo (CRBC). Foi também assessor do Secretário Executivo da Cúpula da Terra realizada no Rio de Janeiro em 1992
150
por parte de seus produtores, de empregos mal remunerados exercidos em
condições insalubres, da prestação inadequada de serviços públicos e de padrões
subumanos de moradia.
No tocante à sustentabilidade, José Eli da Veiga (2006) também identifica
outras três grandes correntes teóricas:
A primeira, mais otimista, não acredita existir um dilema entre
conservação ambiental e crescimento econômico: prefere sustentar que é factível
combinar essa dupla exigência. Entre estes, estão os adeptos do “fundamentalismo
de mercado”. Para eles, os males sociais e ambientais são “o preço inevitável do
progresso econômico”, ou seja, são questões inerentes ao próprio sistema
capitalista (desigualdade social, desemprego, degradação ambiental, etc), mas que
seriam compensados pela eficiência da economia capitalista de mercado e pela
produção de bens públicos, tais como a redução da pobreza e a proteção
ambiental. 94
Neste ponto vale destacar a teoria de R. Solow que, seguindo a tradição
econômica neoclássica, afirma que a natureza jamais constituirá um verdadeiro
obstáculo à expansão da atividade econômica, pois, a qualquer momento,
elementos naturais da biosfera serão substituídos em razão de mudanças na
combinação de seus três ingredientes: trabalho humano, capital produzido e
recursos naturais. O progresso científico-tecnológico sempre conseguirá introduzir
as necessárias alterações que substituam eventual escassez, ou comprometimento
dos recursos naturais, através de inovações dos outros dois ou de algum deles. A
sustentabilidade para Solow mostra-se como um requisito que devemos legar às
futuras gerações. Afirma, então, que a sustentabilidade é “O que quer que seja
necessário para gerar um padrão de vida pelo menos tão bom como o que temos e
para cuidar de maneira semelhante da próxima geração”95.
Esta sustentabilidade é considerada fraca, pois assume que, no limite, o
estoque de recursos naturais pode até ser exaurido, desde que esse declínio seja
progressivamente compensado por acréscimos proporcionais dos outros dois
fatores-chaves – trabalho e capital produzido -, muitas vezes agregados na
94 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, pp. 109-111. 95 SEN, Amartya. “Por que é necessário preservar a coruja-pintada”, Folha de São Paulo, 13.03.2004, “Caderno Mais”, p. 18.
151
expressão “capital produtível”.96 Aqui, portanto, ignora-se tudo o que gira em
torno do valor de existência atribuído aos recursos naturais.
Esta lógica procura maximizar as compensações comerciais para uma
destruição do ambiente e não assegurar que o modo de desenvolvimento se faça
com prudência ecológica.97
Outra vertente dos economistas neoclássicos não concorda com a postura
de Solow, mas não traz definições mais precisas sobre o que é ser sustentável.
Esta segunda escola se diferencia da primeira, por ser menos otimista em relação
às possibilidades de “troca-troca” entre os fatores de produção, preferindo
propugnar o que chamam de “sustentabilidade forte”. Em geral, seguem a Escola
de Londres e os ensinamentos de David William Pearce. Entendem que o critério
de justiça entre gerações não deve ser a manutenção do capital total, mas sim sua
parte não reprodutível, que chamam de “capital natural” e pelo fato de saberem
que grande parte deste “capital natural” é exaurível, propõem que os danos
ambientais provocados por certas atividades sejam de alguma forma
compensados. Assim, para lidar com a referida problemática, esta escola se vale
de um sistema de preços ou de técnicas de valoração, capaz de exprimir a escassez
relativa dos bens e serviços, incorporados aos mercados relativos aos direitos de
poluir ou de cotas de emissões.98
Os esquemas de compensação, portanto, justificam-se na medida em que
haja uma equivalência, do ponto de vista do bem estar, entre bens ambientais e
produtos industriais de consumo ou que haja uma substituição recursos/capital,
que permita compensar as perdas de recursos naturais impostas às gerações
futuras.99
Os economistas ecológicos, porém têm uma visão diferente dos demais,
não baseada no uso de técnicas de valoração, mas, sim, na crítica básica de
Georgescu-Roegen à tese de R. Solow, segundo a qual os recursos naturais e
capitais são geralmente complementares e não substitutos. A substituição
preconizada por R. Solow contraria as duas leis da termodinâmica.
96 VEIGA, José Eli da. op.cit, p. 123. 97 TOLMASQUIM, Mauricio Tiommo. Economia do meio ambiente: forcas e fraquezas. In In CAVALCANTI, Clóvis (org) Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003, p.336. 98 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p. 125. 99 TOLMASQUIM, Mauricio Tiommo. op.cit, p.337.
152
A segunda grande corrente no debate da sustentabilidade, mais fatalista,
tem nuances diversas e autores com teses distintas, como a do romeno Nicholas
Georgescu-Roegen e a de Herman Daly.
Nicholas Georgescu-Roegen, com base na lei da termodinâmica, assinalou
que as atividades econômicas gradualmente transformam energia em formas de
calor tão difusas que são inutilizáveis. A energia está sempre passando de forma
irreversível e irrevogável, da condição de disponível para não disponível. Quando
utilizada, uma parte da energia de baixa-entropia ( livre ) se torna de alta entropia
( presa ). Assim, para poder manter o seu próprio equilíbrio, a humanidade tira da
natureza os elementos de baixa entropia que permitem compensar a alta entropia
por ela causada. Isto faz com que o crescimento econômico moderno tenha
exigido a extração da baixa entropia contida no carvão e no petróleo. Acrescentou,
em atenção ao segundo princípio da termodinâmica, que a humanidade deverá
apoiar a continuidade de seu desenvolvimento na retração do crescimento.100
Para Herman Daly, entretanto, somente se pode falar em sustentabilidade
na chamada “condição estacionária”, que não corresponde ao crescimento zero.
Na citada condição, a economia continuaria a melhorar em termos qualitativos,
substituindo, por exemplo, energia fóssil por energia limpa. Mas, nas sociedades
mais avançadas, seria abolida a obsessão pelo crescimento do produto, que o autor
considera uma mania101.
Estes dois autores são apontados como adeptos da chamada economia
ecológica, que busca estabelecer uma conexão entre o sistema econômico e o
ambiente natural, através da integração de componentes do sistema econômico
com os do sistema ecológico, procurando, assim, compreender seu funcionamento
comum. Desse modo, distinguindo-se tanto da economia convencional quanto da
ecologia convencional, a Economia Ecológica pode ser definida como um campo
interdisciplinar que procura a integração entre as disciplinas da economia e da
ecologia com as demais disciplinas correlacionadas, para uma análise integrada
dos dois sistemas. Neste sentido, a Economia Ecológica não rejeita os conceitos e 100 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p.121. 101 Para ilustrar sua teoria a respeito da condição estacionaria, Herman Daly apresenta a analogia entre economias de ponta – como a dos EUA e Japão – e o exemplo de uma biblioteca que está cheia de livros, sem espaço para novos exemplares. A melhor solução é a de estabelecer que um livro novo só poderá ser incluído na biblioteca se outro for retirado, em uma troca que somente poderia ser aceita se o novo livro fosse melhor do que o substituído. Ver em VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p.112.
153
instrumentos da economia convencional e nem os da ecologia convencional, e irá
utilizá-los sempre que se fizerem necessários, mas reconhece sua insuficiência
para o propósito de uma análise integrada, apontando para a necessidade do
desenvolvimento de novos conceitos e instrumentos.102 103
A terceira corrente sobre sustentabilidade, de natureza intermediária, seria
algo ainda em construção, com Ignacy Sachs como um de seus defensores.
Segundo ele, a noção de desenvolvimento sustentável deve ser harmonizada com
objetivos sociais, ambientais e econômicos. A sustentabilidade verifica-se em suas
oito dimensões: social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica
política nacional e internacional. No que diz respeito à sustentabilidade ecológica
e ambiental, os objetivos se assentam sobre um tripé: 1) preservação do potencial
da natureza para a produção de recursos renováveis; 2) limitação do uso de
recursos não renováveis; e 3) respeito e estimulo para a capacidade de
autodepuração dos ecossistemas naturais.
Para ele, então, o crescimento econômico é uma condição necessária, mas
não suficiente para “alcançar a meta de uma vida melhor, mais feliz e mais
completa para todos” 104. A dimensão da sustentabilidade ambiental, acrescida à
sustentabilidade social, é baseada em “um duplo imperativo ético de solidariedade
sincrônica com a geração atual e de solidariedade diacrônica com as gerações
futuras”105.
Isto posto, realizada a apresentação das principais teorias econômicas para
explicar o desenvolvimento sustentável, entendemos que - levando em
consideração a realidade brasileira, de um país ainda em desenvolvimento, em que
fatores como a forte desigualdade econômica e a intensa exclusão social
encontram-se presentes - uma tradução jurídica de alguns pontos acima enfocados
102 VEIGA, José Eli da. A emergência socioambiental.. São Paulo: Editora Senac, 2007, p. 96. 103 Segundo CAVALCANTI ( 2003 ), de acordo com os adeptos da chamada economia ecológica, parte-se da premissa de que não é possível aceitar a existência de uma “rota de colisão” entre os seres humanos e o mundo natural. Assim, busca esta corrente expressar a noção de desenvolvimento econômico como fenômeno cercado por certas limitações físicas que ao homem não é dado elidir. Em outras palavras, “existe uma combinação suportável de recursos para realização do processo econômico, a qual pressupõe que os ecossistemas operam dentro de uma amplitude capaz de conciliar condições econômicas e ambientais”. In CAVALCANTI, Clóvis. Breve Introdução ã economia da sustentabilidade. In CAVALCANTI, Clóvis (org) Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003, p. 17. Vide também o site da internet http://www.ecoeco.org.br/. 104 SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentável e sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p. 13. 105 Ibid. p. 15.
154
pode ser realizada, privilegiando a necessidade de integração de conceitos
econômicos e ecológicos para melhor delinear o campo de atuação do princípio do
desenvolvimento sustentável.
B - Economia e Meio Ambiente: uma relação de não oposição cuja
proteção é papel do direito ambiental.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que a economia deve ser considerada
como um sistema sustentado por dois parâmetros: o ambiental e o ético106. O
primeiro demonstra as medidas a serem tomadas do ponto de vista biofísico e
social, enquanto que o ético indica o que é moralmente permitido fazer. Sachs107,
citando Amartya Sen (1990), também afirma que a economia e ética estariam
interligadas, desde Aristóteles, por duas questões centrais - a motivação humana (
como deveríamos viver ) e a avaliação das conquistas sociais - . Entretanto, com o
tempo, a outra origem da economia, constituída nas chamadas questões logísticas,
passou a ser preponderante, a ponto de fazer com que a ética fosse esquecida.
Portanto, deve haver uma reaproximação da economia com a ética, sem relegar a
política.
Para a tomada de decisões que envolvam a implantação de hidrelétricas,
por conseguinte, não se deve levar em consideração nem uma visão
unidimensional e nem a economicidade pode ser o único critério decisional. Ao
revés, importa considerar também as dimensões ética, política e ambiental.
Nesse sentido, é preciso também ficar atento à tendência avassaladora do
capitalismo de transformar tudo, inclusive as próprias condições de sua produção,
como, por exemplo, a natureza, em mercadoria108. Os bens ambientais possuem
106 CAVALCANTI, Clóvis. Sustentabilidade da economia: Paradigmas alternativos de realização econômica. In CAVALCANTI, Clóvis (org) Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003, p. 155. 107 SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentável e sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p. 13 108 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2006, p. 44. O autor considera que o capitalismo é constituído por uma dupla contradição: a taxa de exploração que evidencia o poder social e político do capital sobre o trabalho e a tendência do capital para as crises de sobre-producão; e por outro lado, a segunda contradição, envolvendo as condições de produção, ou seja, tudo aquilo que é considerado mercadoria apesar de não ser produzido como tal, como a natureza, consiste na tendência de o capital destruir as suas próprias condições de produção., sempre que estiver presente uma crise de custos
155
valor intrínseco e não devem ser encarados como uma moeda de troca, mas, sim,
como bens que devem ser protegidos pelo valor de sua existência.
Outro aspecto de determinados bens ambientais que merece ser destacado
é a irreversibilidade, quando se trata de recursos não renováveis e seu
esgotamento mostra-se irreversível.
No caso do processo decisório para a implantação de hidrelétricas, deve-se
priorizar o valor de existência dos bens ambientais em jogo: os rios, as florestas
que terão de ser desmatadas para a construção do empreendimento, a fauna e flora
atingidas pelo desmatamento. Além disso, a irreversibilidade de determinados
bens ambientais deve ser sopesada na decisão a respeito da viabilidade do
empreendimento.
O Direito tem, assim, a capacidade de “assimilar normas de diferentes
sistemas como as leis econômicas e as leis da natureza, digeri-las e reapresentá-las
na sistemática própria do ordenamento jurídico”109, assumindo, com isso,
comprometimento com a prática social. Afastando-se do sistema fechado de sua
origem, as leis, agora traduzidas pelo Direito, submetem-se a outras variáveis que
lhe proporcionam um movimento diferenciado.
Portanto, as leis econômicas, após a tradução revelada pelo Direito (por
meio de uma interpretação sistemática das regras e princípios constitucionais,
infraconstitucionais e da normativa internacional) devem ser relativizadas pela
proteção do meio ambiente como bem jurídico protegido constitucionalmente e
internacionalmente, como direito humano.
Por outro lado, é de se destacar a vocação redistribuitiva do Direito
Ambiental110, já que uma das suas metas é corrigir as deficiências apresentadas
pelo sistema de preços, vigente no mercado, de maneira a incorporar os custos das
externalidades negativas111.
109 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 266. 110 ALSINA, Jorge Bustamante. Derecho Ambiental. Fundamentacion y normativa. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995, pp. 50-51 111 Segundo Fábio Nusdeo, externalidades negativas são os custos e benefícios obtidos com a produção de determinada atividade econômica, não computados pelo mercado e, portanto, que sem qualquer preço ou valor a eles associado. Em razão disso, os tais custos e benefícios são desconsiderados pelo mercado, o que influencia no valor final do custo de produção. Constituem, portanto, os chamados custos sociais. NUSDEO, Fábio. Economia do Meio Ambiente. In PHILIPPI JR, Arlindo. ALVES, Alaor Caffé ( org ). Curso Interdisciplinar de Direito Ambiental. p. 209.
156
Dentro do contexto econômico-ambiental, faz-se importante ter em mente
que o ordenamento jurídico constitucional pátrio buscou compatibilizar a questão
da livre iniciativa econômica e da liberdade das presentes (e futuras) gerações
com um ambiente ecologicamente equilibrado. Imprescindível considerar que
“sob o ponto de vista do direito, existem liberdades que não podem se anular, uma
vez que se encontram sob o mesmo grau de imperatividade”.112 Tal
imperatividade se consubstancia na própria existência digna, posto que tanto a
ordem econômica como o respeito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
buscam atingir essa finalidade. Assim, o direito brasileiro não permite que um
princípio seja anulado em detrimento do outro.
Portanto, vislumbra-se como fundamental o desenvolvimento sustentável
nesta compatibilização entre a ordem econômica e a proteção ambiental,
funcionando como liame entre as questões econômicas e socioambientais.
Sob o ponto de vista jurídico, o desenvolvimento sustentável é tratado, por
vezes, como direito113, como princípio114, como critério básico para a gestão do
meio ambiente e de aplicação das normas legais destinadas a proteger ou
preservar os ecossistemas e os recursos naturais115. Pode ser encarado, ainda,
como uma política, um objetivo, uma meta ou diretriz. A despeito disso, há uma
idéia mais ou menos bem definida de que ele revela a necessidade de garantia da
preservação dos recursos naturais não renováveis, a fim de que não se esgotem, e
de um uso racional dos recursos naturais renováveis, para as presentes e futuras
gerações.
Adotaremos, assim, o desenvolvimento sustentável como princípio, na
forma proposta por Michel Prieur116, e tal qual prevista na Declaração do Rio-92,
que estabelece as condições para sua realização, quais sejam: a) eliminar a
112 DERANI,Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 233. 113 DERANI,Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, pp. 169-171. A autora fala em “direito do desenvolvimento sustentável” sem com isso querer dizer se tratar de ramo autônomo do direito, mas sim que há um “enfoque novo e inovador que assume necessariamente a coordenação das normas de direito econômico com os preceitos que visam uma utilização sustentável dos recursos naturais”. Conceitua este direito como o “conjunto de instrumentos “preventivos”, ferramentas de que se deve lançar mão para conformar, constituir, estruturar políticas, que teriam como cerne práticas econômicas, cientificas, educacionais, conservacionistas, voltadas à realização do bem-estar generalizado de toda uma sociedade.” 114 PRIEUR, Michel. Droit de lénvironnement. Paris: Dalloz, 2004, pp. 68-69. 115 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 71. 116 Na doutrina brasileira, podemos citar os seguintes autores que dão ao desenvolvimento sustentável expressamente o tratamento como princípio: MIRRA, Alvaro Luiz Valery. Princípios Fundamentais do Direito Ambiental. Revista de Direito Ambiental, Vol. 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 58-59
157
pobreza (princípio 5); b) reconhecer uma responsabilidade comum, mas
diferenciada entre os diversos Estados quanto à degradação ambiental (princípio
7); c) reduzir e eliminar os modos de produção e consumo não viáveis (princípio
8) e, sobretudo, d) integrar o ambiente a todas as outras políticas de
desenvolvimento (principio 4).
Analisando o texto constitucional, podemos dizer que tal princípio restou
contemplado, através do exame conjunto do art. 225 e do art. 170, inciso VI.
Ressalte-se, todavia, que a legislação infraconstitucional já previa a
compatibilização da preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico
com o desenvolvimento econômico-social, conforme art. 4ª, inciso I, da Lei
6938/81.
Em decorrência, a relação existente entre o art. 225 e o art. 170 da CF/88
não é apenas “intranormativa”, mas uma relação entre os “elementos do mundo da
vida” presentes em cada um dos dispositivos normativos117.
Assim, a relação entre economia e meio ambiente não se apresenta como
sendo de oposição, ou seja, não há incompatibilidade entre produção econômica e
natureza, o que, todavia, não significa a existência de conflitos ou tensões entre os
dois campos.
Ora, a relação de não oposição deve ser interpretada no sentido de que a
atuação humana é uma só: as bases naturais, mesmo quando colocadas em
extinção, e a degradação decorrente de atividade econômica fazem parte de um
mesmo processo de atividade humana. Não podem ser tratadas como dois mundos
distintos e separados.
Para a efetivação do princípio do desenvolvimento sustentável, nos moldes
propostos pela legislação internacional já mencionada e pelos dispositivos
constitucionais pátrios (levando em consideração a premissa de que este possui
como finalidade última a preservação da existência digna), devemos ter em mente
o uso adequado dos recursos naturais.
Neste sentido, toda política pública deve considerar três fatores: a
preservação do ambiente, na mesma razão do incentivo à ordem econômica
fundada na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano.
117 DERANI,Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, pp. 239-240
158
Tomando estes fatores como norte, algumas diretrizes118 podem ser
traçadas no sentido de um planejamento ambiental estratégico, com vistas à
efetivação do desenvolvimento sustentável:
I) A integração de elementos ecológicos à “economia social de mercado”,
afastando a falsa idéia de oposição entre economia e meio ambiente119;
II) O desenvolvimento econômico do Estado Brasileiro deve pressupor um
aquecimento da economia limitado ao uso racional dos recursos naturais, com o
objetivo de aumentar a qualidade de vida. Nesse sentido, a prática econômica
deve ser pautada pela precaução contra os danos ambientais, busca da efetividade
da preservação ambiental, através da avaliação e do planejamento, a fim de
manter o equilíbrio dos ambientes naturais e, ao mesmo tempo, fomentar a
melhoria da qualidade de vida da sociedade – deve ser considerado, contudo, que
qualidade de vida não significa aumento do poder de consumo, mas um consumo
consciente;
III) Somente podem ser admitidos os danos ambientais reversíveis, ou seja,
passiveis de reparação;
IV) As atividades econômicas passiveis de aceitação são somente aquelas
necessárias e úteis à sociedade (relação do custo-beneficio social com o impacto
ambiental causado);
V) O desenvolvimento de atividades econômicas deve servir como garantia de um
melhor nível de vida, com distribuição de renda aliada a condições de vida mais
saudáveis (acesso à alimentação sadia, condições dignas de trabalho e de moradia,
etc), as quais compreendem outros benefícios além daqueles proporcionados pelos
bens de consumo, como, por exemplo, o exercício da liberdade de fruição dos
bens de uso comum, como áreas verdes, paisagens, lugares de recreação, praias120;
VI) O desenvolvimento de novas tecnologias deve estar afinado com a
preservação dos recursos naturais e com uma melhoria da qualidade de vida da
população;
118 Ibid. pp. 239-240 e nota de rodapé 366 119 Ibid. p. 242.. 120 DERANI,Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 239.
159
VII) A procura da efetivação da justiça distributiva para as presentes e futuras
gerações;121
VIII) A busca da equidade social, assegurando-se que nenhum grupo de pessoas,
seja étnico, racial ou de classe, “suporte uma parcela desproporcional de
degradação do espaço coletivo.”122
Se, por um ângulo, o regime jurídico pátrio adotou a economia capitalista,
com base em relações de mercado (na medida em que protege como direito
fundamental a autonomia privada para a atividade econômica, a propriedade
privada e a livre iniciativa); de outro, o texto constitucional também busca dar
uma dimensão social a estes direitos, por meio do princípio da função social da
propriedade, da promoção pelo Estado da defesa do consumidor, do dever de
preservação ambiental, da busca da redução das desigualdades socais. Para tanto,
devemos falar em uma economia não só baseada no mercado, mas também no
planejamento estatal, ou seja, de uma “economia social de mercado” ou
“economia ecológica social de mercado”123. Não se pode aceitar, em decorrência,
a afirmação de que o ordenamento jurídico pátrio adotou o regime econômico
liberal.
C- O principio do desenvolvimento sustentável aplicado ao setor
energético.
Sob a perspectiva de que não se pode falar em desenvolvimento
sustentável sem pensar nas várias vertentes desta sustentabilidade, especialmente
a social e a ambiental, além da econômica - já que a relação estabelecida entre a
sociedade e o ambiente constitui a base da sustentabilidade – deve-se levar em
consideração a diversidade de formas sociais de apropriação e uso do ambiente;
de seus recursos e da conflituosidade existente entre elas.
121 Stober. R. Hunderbuch des Wirtschafts – Verwaltungs – und Umweltrechts. Stuttgart, Verlag W. Kohlhammer, 1989, apud DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, PP. 242-243. 122 ACSELRAD, Henri. HERCULANO, Selene. PADUA, Jose Augusto. A justiça ambiental e a dinâmica das lutas socioambientais no Brasil – uma introdução. In ACSELRAD, Henri. HERCULANO, Selene. PADUA, Jose Augusto. ( org ). Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2004, p. 10. 123 As duas expressões são usadas por Derani ao trazer a doutrina alemã capitaneada por autores como R. Stober, M. Kloepfer e E. Rehbinder que reflete uma preocupação do Estado na orientação das políticas públicas. Vide DERANI,Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 242.
160
Assim, sob o ponto de vista do setor energético, desenvolvimento
sustentável significa buscar uma política energética que integre a necessidade de
expansão da produção de energia e a indispensável preservação ambiental, aliada
à justiça social.
Nesse contexto, uma discussão sobre mudanças nos padrões de produção e
consumo torna-se fundamental. Inexiste desenvolvimento realmente sustentável,
se há manutenção das mesmas bases que privilegiam o aumento da produção e
consumo capitalistas, com a manifestação de um tipo de “ambientalismo”,
sustentado na tecnologia para gerir as questões ambientais.124
O desenvolvimento de um paradigma de “adequação ambiental”125 que
aposta na “modernização ecológica”126, próprio da lógica economicista e do
pensamento neoliberal, motiva decisões políticas que atribuem ao mercado a
capacidade de solucionar o problema da degradação ambiental. Este paradigma
vem na contramão da construção de um “paradigma transformador”127 para a
sustentabilidade que, por intermédio de mecanismos de participação, retire as
questões ambientais de um ambiente estritamente técnico e o traga para o debate
político.
Isso significa incorporar, ao planejamento energético, os princípios e
regras de direito ambiental, como a necessária participação pública no processo
decisório resultado de tal planejamento.
A questão energética não deve ser mais tratada separadamente,
desvinculada da questão socioambiental. Como articulador entre estes dois
campos, surge a gestão ambiental como um “complexo processo de tomada de
124 Sobre o referido tema, ZHOURI, LACHESFSKI e PEREIRA, (2005) esclarecem que a critica da ecologia ao desenvolvimento industrial cedeu lugar ao chamado “ambientalismo de resultados”, ou seja, o ambientalismo inserido na perspectiva economicista hegemônica que torna a natureza passível de ser “ manejada, administrada e gerida, de modo a não impedir o desenvolvimento”. ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA, Doralice Barros. Desenvolvimento, sustentabilidade e conflitos socioambientais. In ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros (org) A insustentável leveza da política ambiental. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, pp. 13-15. 125 Ibid. p. 17. 126 ACSELRAD, Henri. Justiça Ambiental – ação coletiva e estratégias argumentativas. In ACSELRAD, Henri. HERCULANO, Selene. PADUA, Jose Augusto. ( org ). Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2004, pp. 23-24 127 Ibid. p.
161
decisão no qual a opinião técnica não possui primazia sobre os argumentos dos
leigos”.128
Nesse sentido, a ampliação do debate dará ensejo ao reconhecimento da
luta social existente entre os diferentes modos de apropriação material e simbólica
dos recursos ambientais.129 Os grandes interlocutores desta luta social são os
movimentos e organizações sociais e ambientais, cuja participação mostra-se
imprescindível na discussão a respeito de sustentabilidade, através da
apresentação e discussão de modelos alternativos de desenvolvimento energético.
Importante, também, a atuação dos membros da academia para discutir o
fundamento de decisões tomadas pelo poder público, possibilitando a ampliação
da informação e, com isso, a crítica necessária ao processo de formulação das
políticas públicas energéticas.
Nesse contexto, a posição central - tomada pelo mercado e pelos interesses
econômicos na implantação dos grandes projetos hidrelétricos - deve ser
relativizada para dar lugar a outras manifestações (sociais, políticas, técnicas,
ambientais, culturais) com propostas diversas de desenvolvimento energético.
Inerente a tais propostas, procede-se ao debate político sobre as formas
alternativas de produção energética.
Na perspectiva do princípio do desenvolvimento sustentável, as propostas
de desenvolvimento do setor energético brasileiro devem, antes, priorizar a
diversidade socioambiental, bem como o aspecto qualitativo da geração de energia
elétrica (e não meramente quantitativo), por meio da reformulação da matriz
energética brasileira, objetivando outra, mais apropriada às condições físicas,
econômicas e socioambientais do país.
A matriz energética deve ser, ao mesmo tempo, limpa, econômica e capaz
de crescer de forma equilibrada, sempre orientada por dados reais e concretos para
o ajuste da necessidade de seu incremento.
A construção desenfreada de novas usinas hidrelétricas é, no mínimo,
discutível, diante dos graves prejuízos socioambientais e dos altos custos que
128 LIMA, Maira Luisa Milani de. O conflito entre leigos e peritos na gestão de riscos: o caso do licenciamento ambiental da usina hidrelétrica de Barra Grande. Direito, sociedade e riscos: A sociedade contemporânea vista a partir da idéia de risco: Rede Latino-Americana e Européia sobre Governo dos Riscos. VARELLA, Marcelo Dias. ( org ). Brasília: UniCEUB, UNITAR, 2006, p. 397. 129 O referido assunto já foi abordado no Capítulo 2, item 2.4, quando da abordagem a respeito dos conflitos socioambientais.
162
acarreta. Outro ponto polêmico diz respeito ao destino final da energia gerada
pelas hidrelétricas, muitas vezes voltado para a autoprodução ou produção
independente de energia, e não para a coletividade em geral. Nesse caso, a falta de
um interesse público mais evidenciado (já que não há a prestação de um serviço
público pelo empreendimento) torna ainda mais problemática a ampliação da
matriz energética pautada nas referidas bases.
Faz-se necessária, pois, a busca de consensos em determinadas situações
como quanto ao reconhecimento de interesses divergentes que devem ser
incorporados e considerados no processo de decisão da política energética.
Práticas como essa, todavia, impõem a necessidade de um tempo maior para a
decisão, que não se coaduna com argumentos revelados no sentido de que há um
risco freqüente de deficit de energia,130 ou seja, trata-se da prudência ecológica de
que fala Ignacy Sachs.131
Nessas situações, a persistência das populações atingidas pelo
empreendimento e a resistência demonstrada pelos movimentos sociais e
ambientais, por ONG’s e associações, são tidas como uma ação contrária à
vontade de uma “maioria que quer energia”.
Por outro lado, medidas alternativas, de natureza técnica, como a
repotenciação das usinas hidrelétricas com mais de vinte anos de operação,
poderiam ensejar o aumento da capacidade hidrelétrica no pais em cerca de 12%,
otimizando, assim o potencial das usinas já existentes e aumentando a eficiência
na geração. A complementação da motorização de algumas usinas já instaladas,
em que a capacidade instalada não chega a atingir o limite da capacidade prevista
para o empreendimento (Usinas de Porto Primavera- SP, de Xingo e de Itaparica,
no Rio São Francisco, por exemplo); e a construção de Pequenas Centrais
Hidrelétricas (PCH’s)132 133, também são outras medidas alternativas que
poderiam ser estimuladas no processo de expansão energética brasileiro.134
130 BERMANN, Celio. Impasses e controversias da hidreletricidade. Acessível em: http://www.fem.unicamp.br/~seva/ArtCelioBERMANN_EstudAvan_ABRIL07.pdf. Ultimo Acesso em 25 de agosto de 2008. 131 VIEIRA, Paulo Freire ( org ). Ignacy Sachs. Rumo a ecossocioeconomia. Teria e prática do desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2007, p. 80. 132 Apesar de terem sido concedidos alguns benefícios pelo órgão regulador no sentido de incentivar a geração de eletricidade a partir das PCH’s como, por exemplo, a concessão de um desconto de 50% nas tarifas de transporte da eletricidade gerada por este tipo de usina, deve-se atentar para a necessidade de observância dos mesmos cuidados socioambientais exigidos para as centrais hidrelétricas de grande porte, já que as PCH’s, por vezes, podem gerar impactos socioambientais mais graves do que uma grande central.
163
Logo, para incentivar a utilização de fontes alternativas de energia foi
criado, em 26 de abril de 2002, pela Lei nº 10.438, o Programa de Incentivo às
Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa)135, que previa, até dezembro de
2006, a instalação de 1.100 MW através de PCH’s. Este programa foi revisado
pela Lei nº 10.762, de 11 de novembro de 2003, que assegurou a participação de
um maior número de estados no Programa, o incentivo à indústria nacional e a
exclusão dos consumidores de baixa renda do pagamento do rateio da compra da
nova energia.
Ademais, a substituição de recursos naturais não-renováveis (por outros
renováveis) constitui princípio que deve orientar as opções energéticas136. O
incentivo e a implementação de políticas públicas para a diversificação da matriz
energética, com a adoção de energias alternativas coma a eólica, a solar137 e a
decorrente da produção de combustível a partir da biomassa, são hoje medidas
extremamente necessárias, dependendo do desenvolvimento de tecnologias
apropriadas, além, por óbvio, de condições climáticas e fisico-geográficas das
133 As PCH’S foram definidas pela Resolução 394 da ANEEL como centrais de potência instalada total de até 30.000 kW (30 MW) para aumentar a capacidade de geração privilegiando projetos de geração para sistemas isolados e atendimento às comunidades e propriedades urbanas ou rurais ainda não energizadas. 134 BERMANN, Célio. Impasses e controvérsias da hidreletricidade. Acessível em: http://www.fem.unicamp.br/~seva/ArtCelioBERMANN_EstudAvan_ABRIL07.pdf. Ultimo Acesso em 25 de agosto de 2008; VAINER. Carlos B. Recursos hidráulicos: questões sociais e ambientais. Revista Estudos Avançados n 59, Dossiê Energia. São Paulo: Instituto de Estudos avançados da USP, 2007. Disponível em < http://www.fem.unicamp.br/~seva/artVAINER_EstudAvan_abril07.pdf -> Último acesso em 31 de janeiro de 2009.
135 De acordo com o Ministério de Minas e Energia ( MME ) “O PROINFA é um importante instrumento para a diversificação da matriz energética nacional, garantindo maior confiabilidade e segurança ao abastecimento. O Programa, coordenado pelo Ministério de Minas e Energia (MME), estabelece a contratação de 3.300 MW de energia no Sistema Interligado Nacional (SIN), produzidos por fontes eólica, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), sendo 1.100 MW de cada fonte.” Disponível em: http://www.mme.gov.br/programs_display.do?prg=5. Ultimo acesso em 24 de novembro de 2008.
136 VIEIRA, Paulo Freire ( org ). Ignacy Sachs. Rumo a ecossocioeconomia. Teria e pratica do desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2007, p. 104. 137 Segundo Sachs, “as perspectivas da energia solar vão depender do progresso técnico na produção de células solares. As primeiras células, produzidas em escala comercial, surgiram nos anos 1950. Tinham um coeficiente de conversão de energia solar em eletricidade de 2% apenas. Com esse coeficiente, um metro quadrado de célula solar produz 20 watts. O coeficiente chegou a 33% no ano 2000 (330 watts por metro quadrado). A nova célula supereficiente, desenvolvida nos Estados Unidos, chega a um coeficiente superior a 40%. É possível que em poucos anos a eletricidade por energia solar venha a competir com a gerada em usinas termelétricas (Veja, 24.1.2007)”. In SACHS, Ignacy. A revolução energética do século XXI. Disponível em www.econ.fea.usp.br/nesa/artigo_SACHS.pdf. Ultimo acesso em 24 de novembro de 2008.
164
regiões onde serão implantadas. Levando-se, inclusive, em consideração as
condições climáticas do Brasil e a grande ênfase na economia agrícola, observa-se
ser este um terreno fértil para uma adaptação a um modelo de promoção das
bioenergias e a substituição indireta das energias fósseis por bioprodutos.
No entanto, não bastam somente as condições naturais favoráveis, mas,
sim, incentivos financeiros e também de pesquisa para a adequação dos sistemas
integrados de produção de energia e alimentos adaptados aos diversos biomas.138
Refoge ao tema do presente estudo a análise aprofundada de cada uma das
alternativas, valendo apenas pontuar que essas são alternativas viáveis, já
amplamente discutidas pela comunidade científica139, e condizentes com o
princípio do desenvolvimento sustentável na esfera energética, conforme aqui
exposto.
Para melhor visualização do quadro energético no Brasil, seguem
abaixo os gráficos sobre a matriz energética brasileira.
138SACHS, Ignacy. A revolução energética do século XXI. Disponível em www.econ.fea.usp.br/nesa/artigo_SACHS.pdf. Ultimo acesso em 24 de novembro de 2008. 139 BERMANN, Celio. Impasses e controversias da hidreletricidade. Acessível em: http://www.fem.unicamp.br/~seva/ArtCelioBERMANN_EstudAvan_ABRIL07.pdf. Ultimo Acesso em 25 de agosto de 2008; VAINER. Carlos B. Recursos hidráulicos: questões sociais e ambientais. Revista Estudos Avançados n 59, Dossiê Energia. São Paulo: Instituto de Estudos avançados da USP, 2007. Disponível em < http://www.fem.unicamp.br/~seva/artVAINER_EstudAvan_abril07.pdf -> Último acesso em 31 de janeiro de 2009; TOLMASQUIM, Mauricio Tiomno. ( coord ). Alternativas Energéticas sustentaveis no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumara; COPPE; CENERGIA, 2004; SCHEER, Hermann. A solar manifesto, Earthscan/James & James, 2005; Relatório Wind Force 10, elaborado em conjunto por Greenpeace International, Fórum for energy and Developmento e European Wind Energy Agency. JACOBSON, Mark Z.. Review of solutions to global warming, air pollution, and energy security. Energy and Environmental Science. 2009, 2, 148 – 173.
165
Figura 3: Capacidade de geração do Brasil
Capacidade de Geração do Brasil
O Brasil possui no total 1.767 empreendimentos em operação , gerando 102.236.110 kW de potência. » Matriz de Energia Elétrica
» Fontes de energia exploradas no Brasil
» Usinas e Centrais Geradoras
» Co-geração Qualificada
Tipo Quantidade
Potência
Outorgada (kW)
Potência
Fiscalizada (kW) %
CGH 227 120.009 119.387 0,12
EOL 17 272.650 272.650 0,27
PCH 320 2.399.598 2.339.404 2,29
SOL 1 20 20 0
UHE 159 74.632.627 75.051.031 73,41
UTE 1.041 25.202.520 22.446.618 21,96
UTN 2 2.007.000 2.007.000 1,96
Total 1.767 104.634.424 102.236.110 100
Tipo Quantidade
Potência
Outorgada (kW) %
CGH 1 848 0,01
EOL 22 463.330 6,26
PCH 67 1.090.070 14,73
UHE 21 4.317.500 58,34
UTE 19 1.528.898 20,66
Total 130 7.400.646 100
Tipo Quantidade
Potência
Outorgada (kW) %
CGH 74 50.189 0,15
CGU 1 50 0
EOL 50 2.401.523 7,21
PCH 166 2.432.568 7,3
UHE 18 15.865.300 47,64
UTE 165 12.552.801 37,69
Total 474 33.302.431 100
CGH
CGU
EOL
PCH
SOL
UHE
UTE
UTN
Fonte: Pesquisa realizada em 10/11/2008 no www.aneel.gov.br
Usina Termonuclear
Legenda
Pequena Central Hidrelétrica
Central Geradora Solar Fotovotaica
Usina Hidrelétrica de Energia
Usina Termelétrica de Energia
Está prevista para os próximos anos uma adição de 40.703.077 kW na capacidade de geração do País,
proveniente dos 130 empreendimentos atualmente em construção e mais 474 outorgadas.
Central Geradora Hidrelétrica
Central Geradora Undi-Elétrica
Central Geradora Eolielétrica
Empreendimentos Outorgados entre 1998 e 2008
(não iniciaram sua construção)
Os valores de porcentagem são referentes a Potência Fiscalizada. A Potência Outorgada é igual a considerada no Ato de
Outorga. A Potência Fiscalizada é igual a considerada a partir da operação comercisl da primeira unidade geradora.
Empreendimentos em Operação
Empreendimentos em Construção
Fonte: Aneel. Disponível em: www.aneel.gov.br
Figura 4: Gráfico sobre a distribuição (%) de mercado pelos principais segmentos
de consumo de energia
Fonte: EPE – período referência ano 2007. Disponível em: http://www.epe.gov.br/BoletimMensal/20071031_1.pdf
166
Figura 5: Gráfico sobre a distribuição (%) de mercado pelos sub-sistemas elétricos
Fonte: EPE – período referência ano 2007. Disponível em: http://www.epe.gov.br/BoletimMensal/20071031_1.pdf
Figura 6: Gráfico sobre a distribuição (%) de mercado pelas regiões geográficas
Fonte: EPE – período referência ano 2007. Disponível em: http://www.epe.gov.br/BoletimMensal/20071031_1.pdf
167
4.3.2
O princípio da gestão democrática140 na proteção ambiental e na
tomada de decisões no planejamento energético.
Se é reconhecida a indispensável e obrigatória intervenção do poder
público na defesa do meio ambiente, com a interferência, inclusive, no domínio
econômico para cumprir o mandamento constitucional em prol do ambiente, não
se pode afirmar que haja uma monopólio do Estado na gestão da qualidade
ambiental, já que ela deve ocorrer sempre com a participação direta da sociedade.
Trata-se de uma exigência para a consecução do Estado de Direito
Ambiental, tal qual já analisamos no item 4.1 deste capítulo.
A gestão democrática na tutela ambiental, por meio da participação
pública, está prevista no princípio 10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento de 1992141. Também na esfera internacional, é fundamental a
menção à Convenção sobre acesso à informação, à participação pública no
processo de tomada de decisões e o acesso à Justiça em matéria ambiental,
elaborada em 1998, em Arhus, na Dinamarca (mas em vigor somente a partir de
outubro de 2001). Sua relevância se destaca pelo fato de ter estabelecido
princípios gerais a serem adotados não somente para a Comunidade Européia e
seus Estados-membros, mas para toda a comunidade internacional dos países. O 140 Cabe aqui uma explicação quanto à adoção desta nomenclatura. Embora a doutrina especializada em Direito Ambiental utilize nomenclatura diversa para acentuar a necessidade da participação democrática na tutela ambiental, tais como “principio da participação pública”, “principio da participação popular”, “principio da participação comunitária”, usaremos, neste trabalho, a nomenclatura “princípio da gestão democrática”, por estar mais consentâneo com a noção de gestão ambiental, que procuraremos enfatizar e, especialmente, por ser a nomenclatura adotada pelo Estatuto da Cidade – Lei. 10.257/2001, a ser interpretado juntamente com o texto constitucional e a legislação ambiental, em uma perspectiva urbano-ambiental necessária para a compreensão da complexidade da sociedade contemporânea.
141 Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. “Princípio 10 - A melhor maneira de tratar questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve Ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar em processos de tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito à compensação e reparação de danos.
168
objetivo da Convenção142 foi o de garantir o amplo acesso às informações em
matéria ambiental, para que todos possam melhor ser informados e, desta forma,
promover de forma mais adequada a proteção ambiental. A referida Convenção,
desde que alcance a plena vigência, fará com que a Comunidade Européia seja a
primeira organização internacional a adaptar regras juridicamente vinculativas
relacionadas ao direito à informação ambiental.143
No âmbito constitucional interno, a gestão democrática na preservação
ambiental possui fundamentação genérica assentada no art. 1º, parágrafo único, da
CF/88, que estabelece o exercício do poder político pelo povo, intermediado por
representantes eleitos, ou diretamente, nos termos da própria constituição.
A fundamentação específica vem revelada no art. 5º, incisos XIV e
XXXIII da CF/88, que tratam do direito de todos à informação e do dever dos
órgãos públicos de prestar informações de interesse particular do cidadão ou de
interesse coletivo ou geral (com a garantia constante do art. 5º, XXXIV da
CF/88); no art. 37, parágrafo 3º, inciso II, da CF/88, que versa sobre o direito à
participação do usuário na administração pública (direta e indireta), a ser regulado
por lei específica e, além disso, há, também, o disposto no art. 225, caput e incisos
IV e VI da CF/88, que impõem ao poder público e à coletividade:
1) O dever de defesa e preservação do meio ambienta ecologicamente e
equilibrado;
2) Estudo prévio de impacto ambiental em caso de instalação de obra ou
atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental; e
3) Promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização pública ambiental.
142 Segundo a Convenção, constituem “ informações sobre o ambiente” qualquer informação sob a forma escrita, visual, oral, eletrônica ou qualquer outra forma material sobre: a) o estado dos elementos do meio ambiente; b) os fatores como substancias, energia, o ruído, as radiações ou os resíduos e outras liberações que afetem ou possam afetar o meio ambiente; c) medidas ( incluindo medidas administrativas ), políticas, legislação, planos, programas, acordos ambientais e atividades que afetem ou possam afetar de igual forma o meio ambiente e também medidas ou atividades concebidas para proteger tais os elementos ambientais; d) os relatórios sobre a aplicação da legislação ambiental; e) as análises de custos/benefícios e outras análises e pressupostos econômicos usados na esfera das medidas antes mencionadas; e f) o estado de saúde da população, a segurança desta, as suas condições de vida, os sítios e construções de interesse cultural. O acesso a informações, todavia, encontra limitações definidas também por ato normativo, conforme Diretiva 2003/4 CE, que estabelece em seu art. 4º as exceções ao dever de informar. 143 COUTO, Oscar da Graça. Alguns aspectos da “Lei da Transparência Ambiental”- Lei. N 10650/2003 em face do setor produtivo e, em especial, da Indústria do Petróleo (ou, ainda, “Adivinhe quem vem para Jantar?”)
169
Já o art. 216, parágrafo 2º, da CF/88, que trata da proteção do patrimônio
cultural, também prevê o dever do poder público quanto à gestão da
documentação governamental, prevendo a permissão de consulta por aqueles que
dela necessitem.
Assim, de forma clara, a Constituição Federal optou pela adoção do
princípio da gestão democrática nas questões ambientais. Tais normas foram, no
mais das vezes, reproduzidas nas constituições estaduais.
Em se tratando de legislação infraconstitucional, por sua vez, menciona-se,
em termos de direito à informação e garantia de participação pública, as seguintes
leis: a) Lei 8159/91: instituidora da Política Nacional de Arquivos Públicos e
Privados e do respectivo Decreto 4073/2002; b) Lei 6938/81, sobre Política
Nacional do Meio Ambiente; c) Lei 9051/95, sobre a expedição de certidões para
a defesa de direitos; d) Lei 9433/97, pela instituição da Política Nacional de
Recursos Hídricos e, por fim, e) Lei 10.650/2003, sobre o acesso público aos
dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do SISNAMA.
Merecem ser ressaltados, ainda, alguns aspectos positivados pelas leis
anteriormente mencionadas, como a legitimidade conferida a todo e qualquer
interessado para obter informações do poder público (arts. 1º, 4º e 7º da Lei
8159/91), bem como a legitimidade das organizações sociais (art. 15 do Decreto
4073/2002); a garantia do acesso público à informação ambiental, salvo nas
hipóteses expressas de sigilo legal (art. 4º, V, art. 6º, parágrafo 3º; art. 9º, VII, X e
XI da Lei 6938/81 e art. 2º, parágrafo 1º da Lei 10650/2003) ou, também, o fato
de que todo cidadão é, em princípio, pessoa legitimamente interessada para
requerer informações pela natureza difusa do próprio bem ambiental (art. 2º, I da
lei 6938/81). Criou-se o Sistema de Informação sobre Recursos Hídricos (art. 25,
parágrafo único da Lei 9433/97) e fomentou-se a necessidade de dar publicidade
aos pedidos de licenciamento, renovação e respectiva concessão (art. 10,
parágrafo 1º da lei 6938/81 e art. 4º da lei 10650/2003).
Concomitante ao direito de exigir a defesa e preservação ambiental, a
coletividade tem também o dever de atuar diretamente nesse sentido. Três
mecanismos de participação, reconhecidos pelo Direito brasileiro144, colaboram
com tal atuação, incentivando a participação:
144 Ibid. Pp. 57-58
170
1) no processo de criação do direito ambiental, com a iniciativa popular na
elaboração de projetos de leis145, a realização de referendos146 e a atuação
de representantes da sociedade civil em órgãos colegiados de poderes
normativos147;
2) na formulação e na execução de políticas ambientais, por intermédio da
atuação de representantes da sociedade civil (em órgãos colegiados
responsáveis pela formulação de diretrizes) e do acompanhamento da
execução de políticas públicas, por ocasião da discussão de estudos de
impacto ambiental em audiências públicas148 e nos casos de plebiscito149;
3) por meio do Poder Judiciário, com a utilização de instrumentos
processuais para obtenção da tutela jurisdicional em defesa do meio
ambiente.150
Nosso estudo dará enfoque mais relevante à participação pública na
formulação e na execução de políticas ambientais.
Neste ponto, é crucial partir da observação de que, para a solução dos
diversos problemas ambientais, torna-se fundamental que as estruturas sociais
sejam mobilizadas para uma participação efetiva nas políticas ambientais e nas
normas de organização das forças políticas, sociais e econômicas presentes na
sociedade. A sociedade civil, de forma direta (ou através de associações),
sindicatos e organizações não-governamentais, somente para citar alguns órgãos,
deve participar ativamente desse processo, exigindo um comprometimento das
funções do Estado e uma maior flexibilidade do mercado, com a finalidade de
assentar objetivos coerentes com um novo padrão de relacionamento com o
ambiente. 151
Neste sentido, a participação social nos programas decisórios, de
planejamento e de licenciamento de atividades econômicas, geradoras de impactos
145 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 61, caput, e parágrafo 2º 146 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 14, inciso II. 147 Um exemplo desta é a atuação no CONAMA, conforme previsto no art. 6º, inciso II, da Lei n. 6938/81, com redação dada pela Lei n. 7804/89 e alterada pela Lei. 8028/90. 148 CONAMA Resolução 001/86, art. 11, parágrafo 2o. 149 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art.14, inciso I. 150 Neste ponto, destacamos entre os instrumentos a ação civil pública, prevista no art. 129, inciso III da CF/88 e na Lei 7347/85. 151 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 89.
171
ambientais, revela-se como um avanço na busca da democratização da realização
de políticas para a preservação ambiental.
Importante também mencionar que a participação pública efetiva depende
do maior número de informação previamente obtido, sobre os fatos e dados
existentes tanto nos setores públicos como privados. E, também, que tal
informação seja de qualidade. Daí, quanto maior a qualidade e a quantidade de
informação, maior será a intensidade da participação pública e, por conseguinte,
mais concretizados a democracia e o Estado de Direito. A informação deve ser
vista, sob dois ângulos: ao mesmo tempo em que cabe ao Estado promover a
transmissão de todo e qualquer tipo de informação, há um dever, por parte dos
cidadãos que agem no espaço público, de informá-lo e de transmitir diretamente
os dados aos usuários e consumidores152.
Visto sob outro prisma, o dever de informação denota a relação de
lealdade entre parceiros, permitindo que a legitimidade impere sobre a legalidade.
Paulo Leme A. Machado (2006) assevera que a proteção ao meio ambiente
somente será efetiva na medida em que “dois direitos caminharem juntos: o
direito à informação e o direito à participação.”153
Para gerar participação eficaz, a informação154 necessita ser contínua,
verídica, tempestiva e completa. Aliás, o dever de prestar informação adequada e
torná-la pública são exigências da observância de uma administração pública
transparente.
A seu turno, a idéia da gestão democrática está intimamente ligada à noção
de cidadania.
152 MACHADO, Paulo Leme Affonso. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 50. 153 Ibid, p. 265. 154 O direito à informação pode ser observado na ordem jurídica internacional já no século XVIII, mas foi a partir da década de 70 que passou a se acentuar a tendência de zelar pela relação entre particular e Administração, o que ensejou a criação de mecanismos para tutelar esta forma de relacionamento. Assim, o direito à informação passou a ser considerado direito universal do homem, após sua consagração na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que no art. 19, previu que “todo homem tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.” Vide In COUTO, Oscar da Graça. Alguns aspectos da “Lei da Transparência Ambiental”- Lei. N 10650/2003 em face do setor produtivo e, em especial, da Indústria do Petróleo (ou, ainda, “Adivinhe quem vem para Jantar?”)
172
O conceito ora sob crivo – “cidadania” - assumiu diferentes concepções
durante os vários períodos da história. 155
Na era moderna, surge a figura do Estado, cuja justificativa na visão de
Hobbes, é a garantia do direito de liberdade dos homens que se encontram em um
estado de “luta de todos contra todos”. Aqui, o direito à liberdade pré-existe ao
próprio Estado: trata-se de um direito considerado natural. Diante da presença do
Estado e do Governo, o individuo passa a ser sujeito de direitos civis, não apenas
como cidadão, mas também como homem.
No entanto, o conceito de cidadania, como o direito a ter direitos, tem
dado margem a inúmeras interpretações.
Há a concepção que se notabilizou afirmando que a cidadania é composta
por direitos civis, políticos e sociais156. Também há a distinção entre cidadania
ativa e passiva. Por fim, devemos mencionar, ainda, uma concepção mais restrita
de cidadania relacionada à nacionalidade.
Após este breve relato, adotaremos, para os fins da presente dissertação, a
noção contemporânea e ampliada de cidadania teorizada por José Maria
Gomez157, para quem cidadania é:
155 Na Grécia Antiga, por exemplo, os cidadãos atenienses participavam das assembléias, tinham plena liberdade de palavra e votavam leis que governavam a cidade (a polis), tomando decisões políticas. Neste período, estavam excluídos da cidadania os estrangeiros, os escravos e as mulheres. É bom lembrar o quão peculiar foi este período no que diz respeito aos direitos do homem, como cidadão em atuação na vida pública, e como membro da sociedade, na esfera privada. Os homens viviam juntos na família e a isso eram compelidos pela necessidade de sobreviver. Essa era a esfera privada, na qual imperavam as desigualdades naturais, já que os seres humanos eram diferentes entre si e se sujeitavam uns aos outros, em razão da necessidade vital. Por outro lado, na esfera pública, havia o domínio da liberdade, na qual imperavam a igualdade perante as normas ou a isonomia. Segundo a concepção grega, portanto, o ser político e integrante da polis significava que todas as decisões eram obtidas mediante palavras e persuasão – discurso - e não pela força ou violência: Estas últimas, entretanto, eram atributos inerentes à vida fora da polis, característicos do lar e da vida em família. Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 36. Já em Roma, a cidadania é um estatuto unitário, através do qual todos os cidadãos são iguais em direitos. Diferentemente da concepção grega, ser cidadão em Roma era ter direitos civis, políticos e de acesso à justiça, é ser membro de pleno direito da cidade. Por outro lado, ser cidadão implicava na possibilidade de votar e de ser votado, participando ativa ou passivamente do processo político, embora se reconheça que naquele período não houve uma democracia verdadeira. Cf. VIEIRA, Lizt. BREDARIOL, Celso. Cidadania e política ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 16. 156 MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967 apud VIEIRA, Lizt. BREDARIOL, Celso. Cidadania e política ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 22. 157 GÓMEZ, José Maria. Direitos Humanos, Desenvolvimento e Democracia na América Latina. In: Revista Praia Vermelha, Rio de Janeiro: UFRJ, n.º 11, 2005, p. 02.
173
simultaneamente individual e social, passiva – como condição legal de proteção de direitos à igualdade e à diferença – e ativa – como prática desejante participativa e deliberativa nas decisões comuns -, cujo exercício abrange espaços locais, nacionais, transnacionais e global, de modo tal que assegure aos cidadãos a condição de membro pleno das comunidades políticas às quais pertencem (sejam elas infra-estatais, estatais ou supra-estatais).
Hoje, a construção de uma cidadania plena exige um equilíbrio entre os
dois espaços – o público e o privado – pois o predomínio excessivo de um pólo
pode inviabilizar o outro.
VIEIRA e BREDARIOL158 afirmam, então, que:
A prática da cidadania depende de fato da reativação da esfera pública onde indivíduos podem agir coletivamente e se empenhar em deliberações comuns sobre todos os assuntos, que afetam a comunidade política. Em segundo lugar, a prática da cidadania é essencial para a constituição da identidade política baseada em valores de solidariedade, autonomia e do reconhecimento da diferença. Cidadania participativa é também essencial para obtenção da ação política efetiva, desde que ela habilite cada indivíduo para ter algum impacto nas decisões que afetam o bem-estar da comunidade.(...) Amartya Sen fala da importância do “cidadão ecológico”159que, movido
por uma sensibilidade social e por uma reflexão ponderada, amplia suas
responsabilidades cívicas para lidar com os desafios ambientais.
E a cidadania ambiental é um importante pilar da sustentabilidade
socioambiental, compatível com a proposta de implantação do Estado de Direito
Ambiental, pois cumpre duas funções: a de advertência quanto ao déficit
democrático e a de compromisso em relação à constituição de uma nova
cidadania, não meramente formal, mas real e efetiva.
Para que esta cidadania ambiental se concretize, é preciso, pois, construir
uma nova racionalidade ambiental ou ecológica que fundamente o conceito de
cidadania ambiental, a partir de uma retomada do sentido republicano e pluralista
de uma sociedade. Esta nova racionalidade exige a participação efetiva e
compartilhada dos sujeitos políticos potencialmente afetados pelas decisões, não
só na fiscalização do procedimento como na própria formação da vontade
decisória. Assim, não é satisfatória a mera garantia de intervenção dos sujeitos
políticos no procedimento, mas, ao revés, devem ser criadas as condições para que
158 VIEIRA, Lizt. BREDARIOL, Celso. Cidadania e política ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 29. 159 DOBSON, Andrew. Citizenship and the Environment. Oxford. apud SEN, Amartya. “Por que é necessário preservar a coruja-pintada”, Folha de São Paulo, 13.03.2004, “Caderno Mais”, p. 18.
174
o cidadão possa se posicionar como agente de colaboração na prestação de
informações, dados e elementos necessários à formulação da decisão.160
Esta cidadania ambiental, que difere substancialmente da cidadania
decorrente do modelo de democracia representativa, somente pode tornar-se
possível na medida em que se estabelece a conexão entre democracia e ecologia,
ou seja, em que se fixam as bases de uma verdadeira democracia ambiental, na
qual os direitos ambientais estejam em uma posição de interdependência com os
direitos políticos (ambos como parte integrante dos direitos relativos à cidadania)
e em que os direitos e interesses das gerações futuras sejam preservados através da
“reserva da decisão à participação de seus legítimos interessados”161.
Tal concepção de cidadania exige, por outro lado, uma cooperação entre
Estados e cidadãos e, ainda, a mudança de paradigma em relação à própria
conduta do poder público, menos capitalista e com enfoque predominante na
esfera social, produzindo transformações no modo de produção, do conhecimento
científico e de consumo, de forma a incentivar um consumo sustentável, solidário
e consciente com relação às futuras gerações.162
Importante remarcar a necessidade de superação do modelo de democracia
representativa, em que a população se manifesta somente através de seus
representantes, para que se possa implantar a verdadeira democracia ambiental.
No Estado de Direito Ambiental, é preciso haver, por conseguinte, uma cidadania
ativa, permanente e direta - sem intermediários. Para isso impõe-se, em
contrapartida, a abertura de canais de comunicação entre poder público e
sociedade, possibilitando o diálogo constante entre estes e outros atores sociais
envolvidos também na questão energética.
No Estado de Direito Ambiental, não é possível ignorar ( ou minimizar )
os interesses coletivos ou de grupos, pois isto seria “desconhecer a natureza
humana e lutar contra o inevitável”163, cabendo ao Estado, legítimo representante
do interesse público latu sensu, aceitar a coexistência de interesses privados e
160 LEITE, José Rubens Morato. AYALA, Patrick de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pp. 311-312. 161 Ibid. p. 316. 162 Ibid. pp. 321-322. 163 MANCUSO, Rodolfo Camargo. Interesses Difusos. Conceito e legitimação para agir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 43.
175
coletivos na gestão da coisa pública, de maneira que todos esses interesses
interajam e se influenciem mutuamente.164
Nesse ponto, a Constituição Brasileira parece ter atendido a este reclamo
jurídico-sociológico, quando acenou para uma democracia participativa (e não
apenas representativa) permitindo aos modernos grupos intermediários
(sindicatos, associações, órgãos de classe) integrarem-se na gestão da coisa
pública, atuando tanto nas instâncias primárias (cf. o disposto nos arts. 1º, V e
parágrafo único; 205, 216, parágrafo 1º, e 225 todos da CF/88), como na via
judicial, pelo ajuizamento de ações coletivas, em que se tem um alargamento da
legitimação ativa para a defesa dos interesses transindividuais (arts. 5º, XXI e
LXX; 103, VII, VIII e IX, 129, III e parágrafo 1º da CF/88).165
O reconhecimento de um conceito de cidadania ampliado pressupõe, antes,
um conceito mais amplo também de legitimidade democrática. Nesse sentido,
Pierre Rosanvallon166 propõe, na obra La légitimité démocratique. Impartialité,
réflexivité, proximité, uma legitimidade tal que abranja novas formas de
manifestações democráticas na sociedade ocidental contemporânea, para além da
legitimidade eleitoral representativa - baseadas nos valores da imparcialidade, da
pluralidade, da compaixão ou da proximidade.
164 Ibid. p. 43. 165 Ibid. p. 43. 166 Pierre Rosanvallon é historiador e intelectual francês, nascido em 1948. Professor do Collège de France (titular da cadeira de Historia moderna e contemporânea da política). É diretor de estudos na École des hautes études en sciences sociales, e também presidente do ateliê intelectual international La République des idées. Seus trabalhos de historia e filosofia política são desenvolvidos em três direções: a historia intelectual da democracia de longa duração, com as obras Le Sacre du citoyen. Histoire du suffrage universel en France, 1992 ; Le Peuple introuvable. Histoire de la représentation démocratique en France, 1998 ; La Démocratie inachevée. Histoire de la souveraineté du peuple en France, 2000; a historia do modelo político francês e das relações entre o Estado e a sociedade com as obras Le Moment Guizot, 1985 ; L'État en France de 1789 à nos jours, 1990 ; Le Modèle politique français. La société civile contre le jacobinisme de 1789 à nos jours, 2004; e o problema da justiça social no mundo contemporâneo, com as seguintes publicações: La Crise de l'État-providence, 1981 ; La nouvelle question sociale. Repenser l'État-providence, 1995 ; Le nouvel âge des inégalités, (en collaboration avec J. P. Fitoussi), 1996. Seus trabalhos atuais são sobre as transformações da democracia contemporânea, em uma perspectiva comparada com os espaços não-ocidentais. Informações obtidas na pagina do autor junto acessível em http://www.college-de-france.fr/default/EN/all/his_pol/biographie.htm. Ultimo acesso em 26 de dezembro de 2008.
176
4.3.2.1
A legitimidade democrática segundo Pierre Rosanvallon:
Para que possamos melhor entender a dinâmica das manifestações
democráticas no Estado de Direito contemporâneo, antes é preciso admitir que ele
é construído sobre as bases de uma “generalidade social”167 essencialmente plural,
que sugere que há inúmeras maneiras de agir ou de falar em nome da sociedade e
de ser representativo.
Isto significa dizer que o processo eleitoral e a legitimidade através das
urnas são relativizados e assumem uma função mais reduzida dentro do processo
democrático como um todo, já que as eleições têm o papel de validar um modo de
designação de governantes.
Trata-se de uma legitimação a priori dos políticos eleitos que, para se
consolidar posteriormente, precisa atender a outros valores, expectativas e
práticas. As eleições não garantem mais que um governo esteja a serviço do
interesse geral que se espera ver realizado. E, dentro desse contexto, a noção de
povo deve ser tida não mais como uma massa homogênea de indivíduos, mas
como uma “sucessão de histórias singulares” - uma “soma de situações
específicas”. Assim, a compreensão da sociedade contemporânea se faz, cada vez
mais, a partir da idéia da minoria, pois esta não é mais a “pequena parte”, mas
uma das múltiplas expressões fragmentadas da totalidade social. A noção de povo,
assim reconfigurada, passa a ser também o “plural de minoria”168.
Portanto, um poder, para ser considerado como plenamente democrático,
deve ser submetido a testes de controle e de validação, instrumentos concorrentes
e complementares ao da expressão através das urnas, de natureza majoritária.
Por outro lado, no contexto contemporâneo, o poder executivo perde
legitimidade, muito em função da retórica neoliberal que retira a respeitabilidade
do Estado, priorizando o mercado como novo instituidor do bem estar coletivo.169
É possível, então, identificar diferentes maneiras de expressão da
“generalidade social”: 1) uma generalidade positiva, manifestada não só pelo
sufrágio universal como também por meio dos serviços públicos; 2) uma
167 ROSANVALLON, Pierre. La légitimité démocratique. Impartialité, reflexivité, proximité. Paris, Seul, 2008, p. 13. 168 Ibid. p. 14. 169 Ibid. Pp. 14 e 15.
177
“generalidade negativa” (assim nominada por não ser possível a ninguém dela se
apropriar), caracterizada por uma identificação das particularidades sociais e pela
distância que deve haver entre as várias partes envolvidas em uma questão - o fato
de ser independente e de manter a distância e o equilíbrio define a posição das
instituições170 e as distingue do poder eleito -; 3) a “géneralité de
démultiplication”171, uma generalidade que se realiza por meio indireto, através da
pluralização das expressões da soberania social - para corrigir as imperfeições
decorrentes da adoção do regime eleitoral representativo, em que a vontade geral
de uma maioria de eleitores predomina sobre as minorias; e 4) a “generalidade de
atenção à particularidade”172, em que se leva em conta a multiplicidade de
singularidades sociais, com o reconhecimento das particularidades dos indivíduos,
para que se possa ter uma maior abrangência possível das situações existentes.
A “géneralité de démultiplication” se verifica, de uma forma concentrada,
na atuação de instituições como as cortes constitucionais ( que exercem o
chamado controle de constitucionalidade) e, de uma maneira mais disseminada,
pela própria sociedade.
Por via de conseqüência, três novas figuras de legitimidade começam a se
desenhar, cada uma associada à evidência de um dos aspectos da generalidade
social: a legitimidade da imparcialidade (ligada à evidência de uma generalidade
negativa); a legitimidade da reflexividade (associada à generalidade de
démultiplication) e a legitimidade da proximidade (ligada à generalidade da
atenção à particularidade). Esta revolução da legitimidade participa de um
movimento global de descentralização das democracias. Coloca nesse terreno a
perda de centralidade da expressão eleitoral já observada dentro da ordem da
atividade cidadã. O poder político deve-se dobrar a este triplo imperativo.173
170 Segundo o autor francês, as instituições dotadas no sistema francês de tais características seriam as chamadas Autorités de Surveillance ou de Régulation. ROSANVALLON, Pierre. La legitimité democratique. Impartialité, reflexivité, proximité. Paris, Seul, 2008, p. 17. 171 A expressão démultiplication não possui correspondente na língua portuguesa, mas o seu sentido é de aumento da potência de qualquer coisa pela multiplicação dos meios utilizados. Cf. Dicionário Le Petit Larousse Illustré,, 2005, verbertes démultiplication e démultiplier. No contexto acima, significa dizer que a pluralização das expressões de soberania social se vê potencializada pela atuação tanto de certas instituições como da própria sociedade. 172 ROSANVALLON, Pierre. La légitimité démocratique. Impartialité, reflexivité, proximité. Paris, Seul, 2008, pp. 17 e 18. No texto original, a expressão “generalidade de atenção à particularidade” é encontrada da seguinte forma: généralité d’attention à la particularité”. 173 Ibid. p. 18.
178
Essas novas figuras refogem à concepção clássica, bastante presente no
século XX (até meados da década de 80), que distingue a legitimidade derivada do
reconhecimento social de um poder político (procedimental) e a legitimidade
como adequação a uma norma e a valores (substancial).174As mencionadas
legitimidades de imparcialidade, de reflexividade e de proximidade, por seu
caráter híbrido superpõem-se às duas dimensões. Derivam das características das
instituições, de sua capacidade de apreender os valores e princípios, mas, ao
mesmo tempo, ficam dependentes da necessidade de serem socialmente
percebidas como tal.
Vão, em decorrência, complementando-se por este sistema para definir de
forma “mais exigente o ideal democrático”.175
A legitimidade, como a confiança entre indivíduos, é uma instituição
invisível. Ela permite o estabelecimento sólido da relação entre governantes e
governados, tecendo ligações mais construtivas entre o poder e a sociedade, sua
função mais exigente. Ela contribui para dar corpo àquilo que faz a essência
mesmo da democracia: a apropriação social dos poderes. A legitimidade
democrática produz um movimento de adesão dos cidadãos, indissociável de um
sentimento de valorização deles mesmos. Condiciona a eficácia da ação pública e
determina, ao mesmo tempo, a maneira como se apreende a qualidade
democrática do país em que se vive. Ela é uma instituição invisível e um
indicador sensível das atenções políticas da sociedade e da maneira como isto é
respondido. Como resultado, uma definição mais ampla e mais exigente de
legitimidade exige um aprofundamento das democracias.176
Um duplo dualismo se forma na complexidade da noção de democracia na
sociedade contemporânea: um dualismo entre as instituições eleitorais
representativas e as da democracia indireta177, estruturando a democracia como
174 Ibid. pp. 13 e 14. 175 ROSANVALLON, Pierre. La legitimité democratique. Impartialité, reflexivité, proximité. Paris, Seul, 2008, p. 19. 176 Ibid. p. 21. 177 A democracia indireta, nos termos do pensamento do autor citado, forma-se, paralelamente, à democracia eleitoral representativa, através da atuação de organismos da estrutura do sistema administrativo Francês, as chamadas “autoridades independentes de controle e regulação” (no original autorités independantes de surveillance et regulatio ) e também das cortes constitucionais. No sistema da administração pública francesa foram criadas no final dos anos 70 as chamadas autoridades administrativas independentes, refletindo a adoção de um modelo de descentralização da administração pública que estava sendo implantado. O objetivo da nova sistemática era dotar a administração pública de organismos céleres e técnicos para permitir o desenvolvimento
179
regime, de um lado; e de outro, o dualismo existente entre o universo dos
procedimentos e das condutas e aquele das decisões, formando a chamada
democracia como governo. Estes dois, em conjunto, superpõem-se à tensão entre
democracia eleitoral e contra-democracia, organizando a esfera da atividade dos
cidadãos. Este conjunto forma, assim, a nova ordem democrática
contemporânea.178
Dentro deste novo panorama, apresentado pelo autor francês, importa, de
forma específica para o desenvolvimento da presente Dissertação, trazer a
abordagem das três formas de legitimidade democrática - pela imparcialidade,
pela reflexividade e pela proximidade -, que demonstram que a cidadania
ambiental, de caráter mais ampliado (e que se busca ver efetivada) está em estreita
consonância com este aporte teórico. Embora não seja possível fazer uma
correlação adequada e clara entre a atuação das instituições francesas e as
brasileiras, (e também não configura objeto deste estudo) torna-se importante,
para abalizar, mais adequadamente, a idéia de cidadania ambiental e democracia
no Estado de Direito Ambiental, trazer as noções da doutrina francesa acima
referidas, que contextualizam a nova ordem democrática contemporânea,
indicando um novo caminho a ser seguido.
A - A legitimidade por imparcialidade:
Além da característica de imparcialidade exigida das autoridades
independentes, há no mundo, atualmente, uma demanda social cada vez mais
exigente quanto a uma sociedade imparcial, preocupada em tomar distância das
posições partidárias, dos interesses particulares e na qual os indivíduos não sejam
prejulgados pelo seu passado. Esta imparcialidade recusa as posições fechadas,
econômico do Estado face às exigências internacionais. Elas equivalem às chamadas Non-departemental Public Bodies (Reino Unido) ou Independent Regulatory Agencies (Estados Unidos). Note-se que a razão do legislador francês para a criação das AAI se assemelha com as justificativas dadas para instituir no Brasil as agências reguladoras. Assim, a idéia principal é de fornecer tratamento mais adequado a certas matérias estruturais técnicas e politicamente sensíveis, por meio de entidades que não estejam submetidas à hierarquia clássica tradicional da Administração direta e que tenham uma grande autonomia de funcionamento e de decisão. Vide maiores detalhes In DIREITO, Carlos Gustavo. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 113-119, 2007. Acessível em http://www.ugf.br/files/editais/Vol%2013%20n2-art4.pdf. Ultimo acesso em 26 de dezembro de 2008. 178 Ibid. pp. 26-30.
180
esforça-se para superar as deficiências, busca dar consistência ao projeto de uma
igualdade dos possíveis e adquire, assim, uma significação política e democrática.
Ela é considerada, assim, como um promessa aberta, como “histórica”, o que
redefine a liberdade como um “direito permanente à liberdade de escolha”179.
Esta abordagem propriamente política da imparcialidade possui um
conteúdo diretamente democrático, pois dá sentido e forma à antiga noção de
sociedade democrática. A idéia de igualdade de condições - entre cidadãos,
presente no estado democrático de direito - remete à circunstância de não estar
fechado quanto ao destino ou, à possibilidade de nele mudar determinadas
condições. Mas a característica mais importante da sociedade imparcial é que ela
consiste também em redefinir o sentido mesmo da ação social como intervenção
preventiva, evitando que as desigualdades de capacidade ocorram, garantindo
instrumentos para o futuro dos indivíduos.
A referida categoria se impõe na ordem política como o vetor de uma
pretensão à formação de um espaço público mais fundamentado e mais
transparente. Ela é uma das chaves do novo pensamento social que exprime uma
profunda mutação na forma de apreender a emancipação e na vontade de
transformar o mundo. É possível, portanto, falar-se em uma perspectiva mais
abrangente de imparcialidade como verdadeira política.180
É essa imparcialidade que precisa ditar as relações entre poder público,
setor privado e sociedade civil na discussão das políticas, programas e planos que
tenham grande repercussão no destino dos cidadãos, sejam eles maioria ou
minoria. Por via de conseqüência, deve a imparcialidade também guiar a tomada
de decisões no plano político-administrativo para a implantação de políticas
energéticas que envolvam a implantação de usinas hidrelétricas.
179Ibid. p. 169. 180 Ibid. pp. 171-172. No original: “La categorie d’impartialité n’est donc desormais plus seulement refereé à l’ordre judiciaire. Elle s’est imposée dans l’ordre politique comme le vecteur d’une aspiration à la formation d’un space public plus argumenté et plus transparent. Elle est aussi dorénavant l’une des clefs d’une nouvelle pensée du social. Bien loin de correspondre restrictivemente à une < juridicisation du monde >, la montée em puissance de la demande d’impartialité exprime une profonde mutation dans la façon d’apprehender l’emancipation. Elle est pour cela au coeur de la formation d’une nouvelle culture indissociablement politique et sociale. Cette impartialité s’inscrit dans un souci du monde et dans une volonté de lê transformer. Il est possible de parler dans cette perspective elargie de l’impartialité comme véritable politique.”
181
B - A legitimidade por reflexividade
A legitimidade por reflexividade está, como já mencionado antes,
associada à generalidade de démultiplication. A reflexividade é considerada,
assim, como uma qualidade da democracia que consiste em corrigir a
incompletude da democracia eleitoral representativa, instaurando mecanismos de
correção e de compensação da falsidade dos três pressupostos sobre os quais
repousa esta última: como a identificação da escolha eleitoral à expressão da
vontade geral, a assimilação dos eleitores pelo povo e a inscrição durável da
atividade política e parlamentar na continuidade do momento eleitoral. Estes são,
então, os contornos da généralité de démultiplication. Busca-se, por meio dela,
multiplicar as abordagens particulares, implementando uma estratégia de
pluralização da generalidade social.181 Devem, portanto, ser levadas em conta as
expressões plurais do bem comum. Neste sentido, é preciso considerar uma
complicação das formas e dos sujeitos da democracia.
A soberania, como “forma política adequada de uma expressão bem fiel do
povo, porque funcionalmente e materialmente potencializada”182, somente se
manifesta como uma potência em três espécies distintas: a do povo eleitoral, a do
povo social e a do povo princípio183, cada um com uma dimensão limitada de
atuação.
Assim, a vontade geral, manifestada pelo povo, nessas diferentes vertentes,
caracteriza-se como duplamente complexa. Longe de ser um dado preexistente à
atividade política, ela resulta de um processo de interação contínua entre o povo e
seus representantes e, por isso, passa a ser redefinida.
Ora, enquanto o chamado “povo eleitoral” se manifesta imediatamente nas
urnas, na divisão de uma maioria e de uma minoria, o social se apresenta como
uma sucessão ininterrupta de minorias, ativas ou passivas, em que estão presentes
as formas de protestos e as iniciativas de toda natureza; ‘”é um povo-fluxo, um
povo-história, um povo-problema”.184 Caracteriza-se com uma força vital, uma
contradição em movimento, sendo seu campo de expressão natural o contra-
democrático.
181 Ibid. pp. 195-196. 182 Ibid. pp. 203-205. 183 Ibid. p. 206. 184 Ibid. p. 207
182
Já o povo princípio não é de ordem substancial: sustenta-se na igualdade
includente de todos e se manifesta na proteção dos direitos fundamentais. É nos
direitos fundamentais que se ligam o todo e as partes. O sujeito de direito
materializa-se como a figura representativa do povo-princípio e sensível a todos
os que são discriminados, excluídos e esquecidos. É ele que dá visibilidade à idéia
de comunidade política.
A redefinição da vontade geral passa pela “apreensão aritmética” conferida
pelo povo eleitoral, fazendo com que a generalidade seja apenas um número. A
seu turno, o povo princípio lhe dá consistência sob o modo de uma igualdade
includente, fundada na possibilidade de cada indivíduo ser plenamente
considerado na sua existência e dignidade. Aqui, a generalidade significa o
acolhimento de todos, que corresponde a um trabalho da sociedade sobre ela
mesma, para fazer reduzir tudo o que discrimina e o que exclui.
Outro aspecto a ser ressaltado quanto à caracterização da vontade geral é
que ela não pode ser considerada de uma forma imediatista. A vontade geral
resulta de uma construção do tempo, do fruto de uma experiência, da expressão de
uma projeção do ser. Ela é um dado da existência e não uma categoria imediata da
ação. Assim, deve-se insistir na pluralização da temporalidade da democracia,
articulando e confrontando os vários tempos – tempo da memória, da constituição,
tempo limitado pelo mandato parlamentar, tempo da opinião – de forma a dar
consistência ao ideal democrático.
A pluralização do tempo da política configura uma segunda dimensão
essencial da formação de uma généralité de démulitplication.185
Importante ressaltar que a reflexividade se manifesta de uma maneira
generalizada através da atuação das numerosas organizações da sociedade civil no
momento em que denunciam o descompasso existente entre a realidade e o ideal
de democracia. Respalda também movimentos sociais que reintroduzem
permanentemente as figuras do povo princípio e do povo social dentro do jogo
político. Há, ainda, as múltiplas expressões de uma “representação de
conhecimento”, de ordem mais científica, que contribuem para este movimento de
reflexividade no seio da sociedade. Esta concerne aos experts que devem, através
de seu conhecimento, proporcionar às sociedades contemporâneas uma
185 Ibid. p. 211.
183
compreensão mais adequada das decisões públicas, questionando a vantagem da
ação dos governantes. 186
No entanto, essa perspectiva somente atende ao ideal democrático se ela é
inserida em uma visão mais abrangente em relação à participação cidadã e
deliberação pública. A exigência de reflexividade não pode se limitar a uma
intervenção maior de peritos. Ela deve levar em conta, também, as incertezas que
contornam a formulação mesma de sua expertise. Ela implica, sobretudo, que
estas expertises saiam do lugar fechado de sua produção. Daí a necessidade de se
multiplicarem os fóruns híbridos de discussão entre os cientistas e cidadãos para
debater as questões essenciais e incentivar novos tipos de expressão cidadã, por
meio do desenvolvimento de agências públicas e “cidadãos de avaliação” que
possam analisar as leis e as políticas públicas.187
C - A legitimidade por proximidade:
Um terceiro ponto que merece ser destacado diz respeito à questão da
proximidade que deve haver entre os governantes e governados. Os cidadãos são
cada vez mais sensíveis ao comportamento dos governantes. Eles desejam ser
ouvidos e também que seu ponto de vista seja considerado e validado. Esperam
que o poder seja atento à suas dificuldades, estando verdadeiramente preocupado
com o modo como vivem as pessoas comuns.
Sempre associada à idéia de participação, articulada com uma valorização
do local, a proximidade é o sintoma de uma preocupação crescente havida entre os
cidadãos. Demonstra que a linguagem e os conceitos políticos usuais não são mais
tidos como adequados para exprimir as demandas de tais cidadãos.
Sob a variável de posição, ser próximo define uma postura do poder em
relação à sociedade, manifestando-se, por intermédio da presença, da atenção, da
empatia, da compaixão, mesclando dados físicos e elementos psicológicos. Sob a
ótica da interação, a proximidade corresponde a uma qualidade da relação entre
governados e governantes, sendo que cabe a estes últimos a conduta de ser
acessível, receptivo, estar em situação de escuta. Mas é também ser reativo,
aceitando se explicar sempre que demandado, sem usar de subterfúgios; é estar
186 Ibid. p. 237. 187 Ibid. pp. 236-238.
184
preparado para se expor e agir de maneira transparente sob o olhar do público; é
um retorno dado à sociedade sobre a possibilidade de entender sua voz, de levá-la
em consideração. Já sob o aspecto da intervenção, a proximidade evoca uma
atenção à particularidade de cada situação. Ser próximo significa agir levando em
conta a diversidade dos contextos, preferir o arranjo informal à aplicação
mecânica da lei.188
A proximidade, em todas estas vertentes, evoca o reconhecimento de todas
as singularidades presentes na sociedade. A conduta - revelada na aproximação
física e solicitude do governante -, após o pleito eleitoral, oferece consistência
imediata e efetiva à atuação deste, indicando que os governantes compreendem
como vivem os governados.
Portanto, a forma de manifestação popular centralizada no depósito do
voto nas urnas, já não se mostra mais suficiente. Os cidadãos assumem a direção
de um “processo permanente de expressão e de reação”189. Sua participação se
constitui, de outra parte, por um modo de atuação “contra-democrático” de
controle, veto e julgamento e, também, por uma demanda de informações,
constrangendo o poder a se explicar e a justificar sua ação, assumindo o papel de
uma testemunha sempre atenta e pronta para contestar ou validar as decisões
tomadas.
Essas formas difusas de participação possuem basicamente duas funções
políticas: a de um trabalho de justificação que se realiza no confronto das
explicações dadas pelo poder em relação às intervenções da sociedade e a de uma
troca de informações entre poder e sociedade, o que encurta a distância entre as
duas instâncias, fazendo com que os cidadãos se sintam ouvidos e que a sociedade
seja menos imprevisível para os governantes. Esta dinâmica informal tem um
efeito positivo, de natureza não só cognitiva como também psicológica.190
Estes dois processos interativos - trabalho de justificação e troca de
informações - desenham um relação muito mais forte, densa e permanente que
aquela que é estabelecida em um mandato. Uma certa apropriação social do poder
se opera pela exigência de justificação do próprio poder e pela troca de
informações, aproximando-o este da sociedade. Por outro lado, o cidadão se sente
188 Ibid. pp. 268-269. 189 Ibid. p. 328. 190 Ibid. pp. 329 e 330.
185
igualmente mais forte quando ele compreende melhor o mundo, os desafios do
momento, ou seja: um poder onde os objetivos são claros, mais apropriáveis, é
menos arrogante, mais transparente. Quando os cidadãos se sentem mais
engajados no círculo de informações e de conhecimento, eles estabelecem uma
nova relação com os governantes.
Em decorrência, uma decisão pública somente será legitima se ela tiver,
antes, sido discutida, testada e preparada em um quadro público de tal natureza.
4.3.2.2
A concretização da cidadania ambiental fora dos limites da
democracia representativa.
Como já dito anteriormente, nosso ordenamento jurídico, especialmente na
esfera de direito ambiental, previu a possibilidade do exercício de uma cidadania
ambiental, com legítimos e ampliados poderes de atuação, que não simplesmente
através de seus representantes eleitorais, na busca da preservação ambiental.
De acordo com a doutrina acima referenciada, essas outras formas de
legitimidade democrática não se restringem, no entanto, à esfera ambiental. Cabe
em todo (e qualquer) processo decisório que importe na tomada de providências
pelo poder público que afetem substancialmente o destino da sociedade.
As formas de legitimidade caracterizadas como de imparcialidade, de
reflexividade e de proximidade dão ensejo à formação, não somente de uma
cidadania cada vez mais forte, firme e esclarecida, mas, de outra parte, a um poder
político mais acessível, aberto ao diálogo, sujeito a interferências através das
manifestações sociais, imparcial, mais presente e menos distante da sociedade.
Assim, para que programas, planos e políticas de governo, especialmente
na área de energia sejam eficientes, de fato, (incluindo-se aí a discussão acerca da
implantação de novos empreendimentos hidrelétricos) faz-se necessário que o
poder público seja imparcial, tomando distância de posições já consolidadas a
respeito da prevalência da hidroeletricidade como matriz energética. Deve levar
em conta, também, os interesses de determinados grupos, reabrindo a discussão,
para evitar futuros erros, como os já acontecidos no passado191 e, ainda, as
191 A construção da hidrelétrica de Balbina é apenas um exemplo.
186
injustiças sociais que vem ocorrendo com a remoção compulsória de populações
ribeirinhas afetadas por tais empreendimentos.
Ademais, em tais discussões, devem-se multiplicar as abordagens
particulares e não manter a posição hegemônica no sentido de priorizar a
implantação de usinas hidrelétricas, sem que interesses - configurados como
minoritários - sejam considerados. A idéia é implementar uma estratégia de
pluralização da generalidade social, caracterizando, assim, a chamada sociedade
reflexiva, que deve levar em conta as expressões plurais do bem comum.
A referida característica da reflexividade, no contexto brasileiro, revela-se
pela atuação dos movimentos sociais – Movimento dos Atingidos por Barragens-
MAB, Movimento dos Sem Terra – MST, Comissão Pastoral da Terra – CPT
(entre outros), além de organizações não governamentais, de associações e de
comissões formadas por membros da academia e de outros segmentos da
sociedade. São eles os responsáveis por fazer o contraponto, questionar as
decisões tomadas, argumentar e criticar o poder público e exigir a apresentação de
argumentos transparentes e convincentes para justificar a conduta dos
governantes.
Em uma sociedade reflexiva, também é relevante a discussão das decisões
ambientais em relação a gerações futuras, em respeito ao princípio da
solidariedade entre gerações. Neste ponto, fundamental é o aperfeiçoamento do
conhecimento sobre as questões complexas que afetem as presentes e futuras
gerações além da maior publicidade em torno das informações obtidas. Deve-se
incentivar, pois, a formação de fóruns híbridos, interdisciplinares e em matéria
ambiental, com a presença de acadêmicos e de cidadãos (como os fóruns sociais,
em nível local), a fim de exigir do poder público uma prestação de contas
antecipada e uma melhor argumentação acerca das escolhas públicas realizadas,
com a apresentação de diversas hipóteses sobre as conseqüências futuras.
Assim, para que providências sejam tomadas em relação ao distanciamento
existente entre os tomadores de decisões político-administrativas e os cidadãos,
nos processos de implantação de barragens hidrelétricas, o requisito da
proximidade, em todas as suas vertentes, é de fundamental observância. Através
da proximidade, o poder público demonstra necessário o reconhecimento de todas
as singularidades presentes na sociedade, compreendendo o modo como vivem os
cidadãos e a forma como cada decisão afetará sua vida. Os órgãos responsáveis
187
pelo licenciamento ambiental precisam revelar, ainda, a plena acessibilidade,
abertura, receptividade ao outro. Esta proximidade pressupõe uma certa
imediatidade na relação e uma ausência de formalismo. Ao mesmo tempo, o poder
político instituidor dos programas, planos e políticas que envolvam a esfera
ambiental e energética não pode ser dito próximo se ele 1) mantiver-se isolado e
fechado em suas prerrogativas e competências; 2) não aceitar a discussão e a
crítica; 3) não solicitar a opinião pública; e 4) não instaurar um estilo de relação
mais direto com os cidadãos.
A proximidade também deve ser considerada sob o ponto de vista do
cidadão. Para a formação de um ser social mais próximo das questões ambientais,
este deve buscar a participação tanto individual, pelos diversos canais, como
através da participação em fóruns de discussão, associações e outros organismos
de natureza coletiva e social, em um processo permanente de expressão e reação,
imprimindo manifestações de demanda por informações e de constricção do poder
a se explicar e a justificar sua ação.
Não deve o cidadão ficar restrito à participação em audiências públicas, no
processo de licenciamento ambiental, pois tal atuação - como ato isolado e único -
não tem o condão de tornar efetiva a proximidade.
Essas formas difusas de participação cumprem a função de exigir a
justificação das decisões tomadas pela administração pública e, também, de trocar
informações entre poder e sociedade, o que encurta a distância entre eles,
tornando a relação mais informal: certa apropriação social do poder opera-se neste
esquema, ora mais transparente, acessível e aberta. Em contrapartida, forma-se um
cidadão mais forte e mais participativo, por compreender melhor as questões
complexas e os desafios do momento.
Por conseguinte, qualquer decisão pública a ser tomada quanto à
implantação de hidrelétricas somente será legítima se observados tais requisitos de
legitimidade, que incluem discussão, testes e preparação.
Para finalizar, a cidadania ambiental necessita além de uma postura
diferenciada por parte dos cidadãos, mais reflexiva, participativa e próxima,
também de uma conduta por parte do poder público que priorize a imparcialidade,
a abertura à reflexividade da sociedade e a proximidade para com os cidadãos.
Sem essas duas condições, o seu pleno exercício resta prejudicado.
188
4.4
Instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente.
4.4.1
O Licenciamento ambiental sua abrangência e procedimento.
Neste tópico, buscaremos refletir sobre a articulação dos instrumentos
previstos na legislação ambiental, tais como o licenciamento, o estudo de impacto
ambiental, a avaliação de impacto ambiental, bem como sua utilização na
implantação das hidrelétricas, visando demonstrar sua relevância para a aplicação
do planejamento estratégico ambiental.
O licenciamento e a avaliação de impacto ambiental são instrumentos
previstos na legislação brasileira de importância induvidosa no desenvolvimento
das políticas públicas ambientais e, por outro lado, são também mecanismos
eficazes para a concretização do desenvolvimento sustentável.
Ora, embora não tenha havido referência expressa no texto constitucional
acerca do licenciamento ambiental, podemos inferir, por meio de interpretação
sistemática (entre os princípios e as regras constitucionais em matéria ambiental),
que tal instituto tem plena consagração constitucional.
Essa afirmação se justifica na medida em que, em um Estado de Direito
Ambiental, a atuação do poder público se caracteriza por uma necessidade de
intervenção na economia. O objetivo será limitar as atividades econômicas
potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental, com vistas à
obtenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado e uma sadia qualidade
de vida para as presentes e futuras gerações.
Aliás, o licenciamento ambiental, apontado por muitos doutrinadores como
o mais importante instrumento de gestão ambiental utilizado pelo poder
público192, contribui para a efetividade dos valores consagrados
constitucionalmente na referida esfera, especialmente os constantes do art. 225 da
CF/88.
Importante ressaltar que o licenciamento guarda relação – direta ou
indireta – com o estabelecido nos incisos do parágrafo único do art. 225 da CF/88,
192 A afirmação consta de FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental. Aspectos teóricos e práticos. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 36.
189
pois constitui mecanismo fundamental para o controle preventivo das atividades
econômicas potencialmente causadoras de impactos ambientais.
Por outro lado, a expressa menção constitucional à necessidade de estudo
prévio de impacto ambiental para a instalação de obra ou atividade potencialmente
capaz de gerar significativa degradação do ambiente (art. 225, parágrafo 1º, inciso
IV) é a manifestação cabal de que o legislador constituinte voltou sua atenção para
o licenciamento, já que o EIA costuma ser elaborado dentro de tal procedimento.
A referência feita à defesa do meio ambiente, como princípio da ordem
econômica, condicionando o exercício de atividade econômica à observância
deste (art. 170,, inciso IV da CF/88) - e também aos casos expressos em lei (art.
170, parágrafo único da CF/88) - abre espaço para a aplicação da Lei 6938/81 que
previu o licenciamento e, de igual forma, coroa a afirmação acima no sentido do
respaldo constitucional desse instrumento.
Ora, o licenciamento ambiental193 é obrigatório para as atividades
potencial (ou efetivamente) causadoras de impacto ambiental, desde 1981,
conforme dicção do art. 9º, inciso IV e art. 10 da Lei 6938/81.
Aliás, o não cumprimento da referida exigência para o estabelecimento de
obra ou serviço potencialmente poluidor, quando a licença ou autorização for
necessária, constitui crime previsto no art. 60 da Lei 9605/98.
Além disso, a Resolução CONAMA 237/97, que dispõe expressamente
sobre o licenciamento ambiental, estabeleceu que localização, construção,
instalação, ampliação, modificação e operação de empreendimentos e atividades
utilizadoras de recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente
193 Sobre o assunto, foi editada Medida Provisória n°. 366/07, convertida na Lei Federal 11.516/07, que introduziu mudanças relacionadas à responsabilidade técnica, administrativa e judicial no que refere à emissão de licenças ambientais. A referida MP dispõe sobre a criação do Instituto Chico Mendes, sob a forma de autarquia vinculada ao MMA, tendo recebido proposta para incluir novo artigo, abordando a responsabilidade técnica, administrativa e judicial sobre o conteúdo de parecer técnico conclusivo visando à emissão de licença ambiental pelo IBAMA. O novo dispositivo tratou da transferência exclusiva dessa responsabilidade para órgão colegiado, no âmbito do próprio IBAMA, o que parecer ser importante medida para despersonalizar pareceres técnicos imprescindíveis à emissão das licenças. Tal medida – que penaliza menos os técnicos e mais o Instituto – será aplicada aos licenciamentos ambientais e estabelecida em regulamento próprio. Outra proposta da MP é incumbir aos órgãos públicos responsáveis pelo licenciamento ambiental nas distintas esferas de governo (federal, estadual e municipal) a tarefa de estabelecerem prazos para manifestação pública, elaboração de pareceres e emissão de licenças ambientais, visando aprimorar o processo de licenciamento. Em 28 de agosto de 2007, a Medida Provisória foi convertida na Lei Federal 11.516. Com efeito, a partir da regulamentação dessa lei, a responsabilidade técnica, administrativa e judicial sobre o conteúdo de parecer técnico conclusivo visando à emissão de licença ambiental prévia por parte do IBAMA será exclusiva de órgão colegiado do IBAMA.
190
poluidoras - bem como os empreendimentos capazes, sob qualquer forma, de
causar degradação ambiental - dependerão de prévio licenciamento do órgão
ambiental competente, sem prejuízo de outras licenças legalmente exigíveis (art.
2º), tendo previsto no Anexo I da resolução os empreendimentos e as atividades
sujeitas ao licenciamento. (art. 2º, parágrafo 1º).
Dentre as atividades elencadas no referido anexo da resolução CONAMA
237/97 e na Resolução CONAMA 01/86194, que estão sujeitas ao licenciamento
ambiental, encontra-se a construção de barragens hidrelétricas sendo, portanto,
obrigatório o licenciamento de tal empreendimento.
Cumpre ressaltar que, hoje, no Brasil, o licenciamento é composto de uma
seqüência de fases, porém, embora possa ser segmentado, não se deve perder de
vista a noção de seu conjunto e que a etapa anterior sempre condiciona a posterior.
Ele deve ser precedido do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do respectivo
Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) sempre que a obra ou atividade possa
causar significativo impacto ambiental, conforme estabelecido na Constituição
Federal. O art. 19 do Decreto Federal n° 99.274/90, complementado pela
Resolução CONAMA n° 237/97 ( art. 8º ), estabeleceu o processo de emissão de
licenças195 em três fases, a saber: a) a fase preliminar da licença prévia (LP), onde
194 Art. 2º da Resolução CONAMA 01/86. Dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto ambiental - RIMA, a serem submetidos à aprovação do órgão estadual competente, e do IBAMA e1n caráter supletivo, o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, tais como: (...) VII- obras hidráulicas para exploração de recursos hídricos - barragem para fins hidrelétricos, acima de 10MW, de saneamento ou de irrigação, abertura de canais para navegação, drenagem e irrigação, retificação de cursos d'água, abertura de barras e embocaduras, transposição de bacias, diques. ( Art. 2º, inciso VII )
195 A utilização do termo licença ambiental será feita em consonância com o que dispõe a Resolução CONAMA 237/97, que trata do licenciamento ambiental. Não faz parte do presente estudo, a controvérsia sobre a natureza jurídica de tal ato administrativo, se autorização ou licença, assunto este já amplamente debatido na doutrina jurídica, valendo mencionar, todavia, que há autores que defendem ser a licença ambiental uma autorização administrativa, outros que falam em licença administrativa e, por fim, os que sustentam que a licença ambiental constitui uma nova espécie de ato administrativo, com características tanto de autorização quanto de licença. Compartilhamos do entendimento de que a licença ambiental é um ato administrativo próprio, podendo ser vinculado ou discricionário, já que possui características de ambos os institutos. A discricionariedade se vê estampada na medida em que ao decidir sopesando os impactos ambientais positivos e negativos, a distribuição do ônus e benefícios sociais e tantos outros aspectos inerentes ao licenciamento, a decisão está baseada na conveniência do projeto, o que o aproxima mais da autorização neste aspecto. Por outro lado, não há como admitir, sob pena de se criar um quadro de extrema insegurança jurídica, que a licença ambiental, como autorização administrativa, possa ser revogada a qualquer momento. Também não se pode admitir que a preservação ambiental reste prejudicada com a idéia de que, uma vez concedida a licença, esta tenha caráter definitivo, não podendo ser revogada, independentemente das conseqüências ao meio
191
são aprovados a localização e concepção do projeto e, também, atestada a sua
viabilidade ambiental; b) a da licença de instalação (LI), em que se autoriza a
instalação do empreendimento de acordo com as especificações dos planos,
programas e projetos aprovados na fase anterior, incluindo as medidas de controle
ambiental; e c) a da licença de operação (LO), em que é finalmente autorizada a
operação do empreendimento.
Como acima mencionado, uma licença está necessariamente vinculada à
emissão da licença anterior, ou seja, a licença de instalação somente poderá ser
deferida caso tenham sido efetivamente cumpridas as condicionantes constantes
da licença prévia.
No entanto, ainda se discute, na doutrina a natureza jurídica do
licenciamento ambiental, entendendo alguns que seria um mero procedimento
administrativo, conforme já descrito pela própria resolução CONAMA; outros,
um processo administrativo, pautado por “alto grau de complexidade e de
litigiosidade”196, necessitando, para tanto, em atenção ao disposto no art. 5º, inciso
LV da CF/88, atender aos princípios do contraditório e ampla defesa. Somos do
entendimento, portanto, que o licenciamento ambiental tenha natureza de
verdadeiro processo administrativo, já que dada à sua grande complexidade,
necessita de ampla participação pública e do implemento do contraditório e ampla
defesa das partes envolvidas e dos interessados, tais como movimentos sociais e
ambientais, Ong’s, associações, sociedades civis e Ministério Público.
Especialmente no tocante ao licenciamento de hidrelétricas, em que questões
extremamente conflituosas são decididas, como as relativas à remoção
compulsória da população, não há como entender de modo diverso197.
Cumpre ressaltar, ainda, que o licenciamento ambiental de
empreendimentos do setor elétrico recebeu disciplina específica através das
resoluções CONAMA 01/86 e 06/87, do art. 225, parágrafo 1º, IV da Constituição
Federal, da Lei n. 6938/81 e do Decreto 99.274/90.
ambiente. Neste sentido, FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental. Aspectos teóricos e práticos. Belo Horizonte: Fórum, 2007, pp. 234-235. 196 FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental. Aspectos teóricos e práticos. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 189. 197 Neste sentido, também MEDAUER, Odete. Direito Administrativo moderno. 12ª Edição revista e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 171, que na apresentação de uma tipologia dos processos administrativos, classifica o licenciamento ambiental expressamente como processo administrativo de outorga.
192
Após a crise energética ocorrida em 2001, foram estabelecidas novas
regras para licenciamento ambiental de empreendimentos que objetivavam
reforçar o setor elétrico brasileiro, a fim de permitir maior celeridade ao processo
de licenciamento. Isto posto, editaram-se a Medida Provisória 2198 e a Resolução
CONAMA 279/2001 e, a partir da vigência de tais atos normativos, passam a
existir dois sistemas de licenciamento: um “comum”198, não simplificado, em que
devem ser obedecidas todas as formalidades do processo de licenciamento
previstas na Resolução CONAMA 06/87; e outro, “especial”199 ou simplificado,
para o licenciamento dos empreendimentos do setor elétrico de impacto ambiental
de pequeno porte ou de pequeno potencial de impacto ambiental. Por seu
intermédio, admite-se a dispensa pelo órgão ambiental da realização de
EIA/RIMA e da audiência pública. Neste segundo caso, o EIA/RIMA e a
audiência pública dão lugar ao Relatório Ambiental Simplificado (RAS) e à
Reunião Técnica Informativa, respectivamente, com prazo máximo de sessenta
dias para a tramitação do processo.
Assim, de acordo com o disposto no art. 2º, VI, VII e XI da Resolução
01/86, nas hipóteses de usinas hidrelétricas com potencial acima de 10 MW, o
licenciamento ambiental deverá ser precedido de EIA/RIMA, garantida a
realização de audiência pública.
Em verdade, nessa nova sistemática, não se deve perder de vista os
parâmetros constitucionais para exigência do estudo prévio de impacto ambiental.
Nesse sentido, a Constituição Federal previu a necessidade de se exigir tal estudo,
na instalação de “obra ou atividade potencialmente causadora de significativa
degradação do meio ambiente”200. Por sua vez, as novas regras introduziram novo
conceito, o de “empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental”,
que produziriam “impacto ambiental de pequeno porte”.
Como se percebe, o texto constitucional não estabeleceu nenhuma
categorização relativa aos impactos ambientais para fins de realização do
EIA/RIMA. Portanto, seria obrigatória a realização do EIA/RIMA em todos os
empreendimentos de significativa degradação ambiental, independentemente do
porte do impacto da obra ou atividade. O mandamento constitucional fixa-se no
198 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2008, p. 154. 199 Ibid. p. 155. 200 Constituição Federal de 1998. Art. 225, parágrafo 1º, inciso IV.
193
sentido de que - se a atividade ou obra for potencialmente impactante - estará
sujeita ao EIA/RIMA e, portanto, a interpretação mais consentânea com a norma
constitucional seria entender que o procedimento não simplificado se aplica à
usinas hidrelétricas com potência acima de 10 MW: há presunção absoluta de que
são empreendimentos potencialmente causadores de significativa degradação
ambiental. A seu turno, somente estarão sujeitos ao procedimento simplificado de
licenciamento ambiental previsto no art. 8º, parágrafo 3º, da Medida provisória
2198 e da Resolução CONAMA 279/2001 os empreendimentos do setor elétrico,
não identificados como impactantes na Resolução CONAMA 01/86, ou seja, as
hidrelétricas de 10 MW ou menos que, todavia, no caso em espécie, não sejam
potencialmente causadores de significativa degradação ambiental.
Importante esclarecer, igualmente que, na presente dissertação,
setorizaremos nosso interesse somente nos casos de implantação de hidrelétricas
em que se dê o licenciamento ambiental comum, com a exigência de Estudo de
Impacto Ambiental ( EIA/RIMA ) e conseqüente audiência pública.
4.4.2
O Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental.
Na primeira fase do licenciamento ambiental, após apresentação do
Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental
chega-se à concessão da licença prévia pelo órgão licenciador.201Neste momento,
o empreendedor manifesta perante o órgão ambiental sua vontade de realizar tal
obra, apresentando sua concepção e localização do projeto, bem como alternativas
ao projeto. Após a análise, discussão e aprovação dos dados analisados, a
autoridade administrativa responsável atestará a viabilidade ambiental do projeto e
concederá (ou não) a licença ambiental.
201 O órgão licenciador será o IBAMA, o órgão estadual competente ou o Município, conforme disposto no art. 5º, Parágrafo Único, in verbis: Ao determinar a execução do estudo de impacto ambiental o órgão estadual competente, ou o IBAMA ou, quando couber, o Município, fixará as diretrizes adicionais que, pelas peculiaridades do projeto e características ambientais da área, forem julgadas necessárias, inclusive os prazos para conclusão e análise dos estudos. Não abordaremos aqui a enorme controvérsia existente em torno da competência para o licenciamento municipal, por não fazer parte do escopo do presente trabalho.
194
Aliás, tal exigência decorre do próprio texto constitucional que determina
a realização do EIA e sua aprovação antes da instalação de uma obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação ambiental. Esta observação
é necessária para os casos de realização de obras sem o referido estudo, em que o
empreendedor providencia o EIA posteriormente, com o intuito de legitimar o
empreendimento, procurando garantir que as conclusões do estudo sejam
favoráveis à implantação do projeto, utilizando-se da conhecida “estratégia do fato
consumado”202.
Logo, para a implantação de projetos de usinas hidrelétricas, exige-se a
apresentação do correspondente EIA/RIMA no licenciamento ambiental. O estudo
de impacto ambiental para fins de licenciamento constitui, pois, uma ferramenta203
imprescindível ao próprio licenciamento ambiental. Está previsto no art. 225,
parágrafo 1º, inciso IV da CF/88 e no art. 9º, inciso III da Lei 6938/81,
caracterizando-se como verdadeiro mecanismo de planejamento de obras e
atividades potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental e de
prevenção quanto aos danos ambientais causados por estas.
Dessa forma o EIA deve ser exigido, elaborado e aprovado antes da
expedição da licença prévia, como condição desta, pois, nesta primeira fase, em
que se realizam os estudos de viabilidade do projeto, nenhum outro estudo é mais
adequado para tal finalidade do que o EIA. Para a sua elaboração, o órgão
licenciador deve emitir o termo de referência que norteará o empreendedor quanto
aos requisitos a serem observados na confecção de tal documento.204
Antonio Herman Benjamin205 preleciona com bastante clareza o papel do
EIA na atuação da administração pública:
O EIA, como veremos, atua, fundamentalmente, na esfera de discricionariedade da Administração Pública. Seu papel é limitar, no plano da decisão ambiental, a liberdade de atuação do administrador. Se o EIA é limite da decisão administrativa, não se confunde, pois, com a decisão administrativa em si. Sendo momento preparatório da decisão, o EIA a orienta, informa, fundamenta e restringe, mas, tecnicamente falando, não a integra como um dos seus elementos
202 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2008, p.45. Sobre a referida teoria, uma abordagem mais minuciosa será realizada quando da análise do caso-referência de Barra Grande. 203 OLIVEIRA, Antonio Inagê de Assis. Introdução ä Legislação Ambiental Brasileira e Licenciamento Ambiental. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 427. 204 Ibid. p. 49. 205BENJAMIN, Antônio Herman. Os princípios do estudo de impacto ambiental como limites da discricionariedade administrativa. Revista Forense 317/25 e ss, Rio de Janeiro, Forense, 1992.
195
internos. É parte do procedimento decisório mas não é componente interior da decisão administrativa.
Deve realizar, então, uma série de análises e avaliações, seguindo algumas
diretrizes de caráter geral, além de outras que o órgão ambiental julgue
pertinentes, em conformidade com o que dispõe o art. 5º da Resolução CONAMA
01/86, a saber:
1 - Contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização de projeto,
confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto;206
2 - Identificar e avaliar sistematicamente os impactos ambientais gerados nas fases
de implantação e operação da atividade207.
3 - Definir os limites da área geográfica a ser direta ou indiretamente afetada pelos
impactos, denominada área de influência do projeto, considerando, em todos os
casos, a bacia hidrográfica na qual se localiza.208 Deve ser levada em
consideração, especialmente, em projetos de hidrelétricas, devendo haver um
planejamento coordenado das ações de todos os órgãos de governo envolvidos
tanto no licenciamento como na gestão das bacias209.
4 - Considerar os planos e programas governamentais, propostos e em
implantação na área de influência do projeto, bem como sua compatibilidade210.
Além das referidas diretrizes, o EIA, assim como o RIMA, deve conter um
conteúdo mínimo, definido por lei, sem o qual o poder público não pode aceitá-lo
validamente211 para análise e discussão no licenciamento ambiental.
206 Art. 5º, I da Res. CONAMA 01/86. Essa discussão acerca das alternativas tecnológicas e de localização é fundamental no EIA, pois, com isso é possível que se discuta a melhor opção para o projeto, inclusive a de sua não-execução, em função dos custos sociais e ambientais elevados. 207 Art. 5º, II da Res. CONAMA 01/86. 208 Art. 5, III da Res. CONAMA 01/86. 209 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 382. 210 Art. 5, IV da Res. CONAMA 01/86. 211 Segundo MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2008, pp. 100-101, com base em posicionamento adotado pela jurisprudência dos tribunais administrativos franceses, a inadequada realização do EIA, da mesma forma que sua ausência, gera vício de natureza insanável no licenciamento ambiental, acarretando a possibilidade de invalidação de todo o processo de licenciamento, em andamento ou já concluído. Consequentemente, gera vicio na instalação, operação ou funcionamento da obra ou atividade licenciada. No mesmo sentido, PRIEUR, Michel. Droit de l’environnement. Paris: Dalloz, 2004, pp. 94-95, ressaltando, inclusive, jurisprudência francesa que anulou ato administrativo no curso do licenciamento por insuficiência do estudo de impacto ambiental.
196
Basicamente, deve o EIA apresentar os seguintes requisitos técnicos212
indispensáveis à correta avaliação de impactos ambientais sujeitos a essa
modalidade de estudo: 1) o diagnóstico ambiental da área de influência do projeto,
apresentando os aspectos ecológicos - que englobam tanto o meio físico como o
meio biológico e os ecossistemas naturais -, e os sócio-econômicos, como o uso e
ocupação do solo, os usos da água e as atividades econômicas exercidas na área;
2) a análise dos impactos socioambientais do projeto e de suas alternativas,
através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos
prováveis impactos relevantes; 3) a definição das medidas mitigadoras dos
impactos negativos, avaliando a eficiência de cada uma delas; e 4) a elaboração do
programa de acompanhamento e monitoramento dos impactos positivos e
negativos, indicando os fatores e parâmetros a serem considerados.
A confusão entre o Estudo de Impacto Ambiental e a Avaliação de
Impacto Ambiental é freqüente, o que é atribuído especialmente à imprecisão
terminológica constante da legislação, que acabou tratando de forma expressa
apenas do estudo de impacto ambiental e de seu referido relatório213. O EIA é
espécie do gênero “avaliação de impacto ambiental” e esta é um dos instrumentos
da Política Nacional de Meio Ambiente. O EIA, portanto, é bem mais restrito que
a AIA, mais abrangente. Serve como instrumento aglutinador de todas as
informações obtidas, após a AIA, e a partir da utilização dos métodos desta, para
que o órgão ambiental possa decidir sobre o licenciamento do empreendimento.
Assim, o escopo jurídico do EIA é mais específico.
Para cumprir o objetivo preventivo de evitar a ocorrência de degradação
ambiental e social, sujeita-se o EIA a três condicionantes básicos: a transparência
administrativa, a consulta aos interessados e a motivação da decisão ambiental.214
Assim, a transparência administrativa considera os efeitos ambientais de
um determinado projeto e é revelada no momento em que o órgão licenciador e o
empreendedor liberam todas as informações sobre o projeto.
A consulta aos interessados, de sua vez, significa a efetiva participação
pública e fiscalização da atividade administrativa pela sociedade, dotando-a do
212 Art. 6º da Res. CONAMA 01/86 e art. 17 do Decreto 99274/90. 213 FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental. Aspectos teóricos e práticos. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 83; MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 355 a 358 e 360 a 363. 214 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.365.
197
direito de influenciar no processo decisório, manifestando-se sobre o EIA/RIMA,
expondo suas dúvidas e críticas.
Já a motivação da decisão do órgão ambiental decorre do princípio de que
o poder público deve motivar todo ato que dê ensejo à situação desfavorável ao
administrado. Em verdade, a idéia é que o EIA sirva de base para a decisão a ser
proferida pelo órgão licenciador, devendo, de maneira necessária e efetiva, influir
no processo decisório, sob pena de se transformar em mera formalidade a ser
cumprida pelo empreendedor. “Sua vocação é alterar o espírito mesmo da decisão
administrativa.”215 E essa meta somente será atingida por meio da motivação da
decisão ambiental, em que o poder público demonstrará se levou em conta a
preocupação com a preservação ambiental.
Por conseguinte, o objetivo preventivo final do EIA é alcançado de duas
formas: por um lado, ao obrigar-se o administrador, em seu processo decisório, a
considerar os valores ambientais; e, de outro, ao propiciar-se ao público e a certos
órgãos de representação de interesses transindividuais — através de divulgação de
seu conteúdo e facilidade de intervenção — instrumental hábil de controle dos
atos da Administração Pública com repercussão ambiental.216
Quanto à participação pública, importante mencionar, ainda, que, no
processo de licenciamento ambiental, ela se verifica em dois momentos distintos:
o da consulta pública e o da audiência pública217. No primeiro, o Relatório de
Impacto Ambiental ( RIMA ) fica à disposição dos interessados em lugar de fácil
acesso público e no órgão licenciador, podendo haver a manifestação por escrito
dos interessados. Esgotada esta fase, é convocada a audiência pública,
oportunidade oferecida à sociedade para poder influir na gestão ambiental, em
resposta à consulta formulada.
A realização de audiência pública vem regulada pela Resolução
CONAMA 09/1987 e é instrumento de informação e consulta da população a
respeito de atividade sujeita ao estudo de impacto ambiental. Não pode, assim, ser
usada como forma de induzir a população a aceitar o empreendimento, pois, nesse
215 PRIEUR, Michel. Droit de l’environnement. Paris: Dalloz, 2004, apud BENJAMIN, Antônio Herman. Os princípios do estudo de impacto ambiental como limites da discricionariedade administrativa. Revista Forense 317/25 e ss, Rio de Janeiro, Forense, 1992. 216 BENJAMIN, Antônio Herman. Os princípios do estudo de impacto ambiental como limites da discricionariedade administrativa. Revista Forense 317/25 e ss, Rio de Janeiro, Forense, 1992. 217 CONAMA. Resolução n. 09/87.
198
caso, haverá desvio de finalidade, vício que compromete o processo de
licenciamento como um todo.218
A convocação da audiência pública para discussão do estudo de impacto
ambiental ocorre nos casos em que o órgão ambiental “julgar necessário” ou
quando houver solicitação de entidade civil, do Ministério Público ou de mais
cinqüenta cidadãos219.
4.4.3
Críticas ao licenciamento ambiental das hidrelétricas no Brasil.
Feitos os principais apontamentos sobre o funcionamento do licenciamento
ambiental no ordenamento jurídico brasileiro - e reconhecida a sua relevância para
a concretização da política nacional do meio ambiente ( lei n. 6938/81 ) - forçoso
reconhecer a existência de falhas e contradições no uso de tal instrumental para a
implantação de projetos hidrelétricos no Brasil.
Estudos específicos, como o de Carlos B. Vainer220, no âmbito da
sociologia do ambiente, criticam o modelo de licenciamento ambiental adotado
até os dias de hoje, afirmando que os relatórios de impacto ambiental não são
capazes de prever o surgimento de movimentos de resistência, de lutas e
organização das populações atingidas pelas barragens. Haveria um “ponto cego”
no instrumental teórico-conceitual que ambientaliza ou naturaliza as populações,
tornando-as sujeitos incapazes de se conceberem como portadores de direitos e
interesses e, em decorrência, de se constituírem em atores em condições de atuar
de forma autônoma “na transformação do ambiente de implantação das barragens
em arena de conflito social e político.” As populações atingidas, “naturalizadas,
reificadas, destituídas de subjetividade e, consequentemente, impossibilitadas de
se constituírem em sujeitos” não podem ser pensadas como agentes sociais
coletivos, portadores de reivindicações e ativos politicamente.
218 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2008, pp. 126-127. 219 CONAMA. Resolução n. 009/1987, Art. 2º, caput. 220 VAINER, Carlos B. Água para a vida, não para a morte. Notas para uma história do movimento de atingidos por barragens no Brasil. In: ACSELRAD, Henri (org). Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 185-208.
199
Portanto, a falta do reconhecimento de tal subjetividade específica provoca
uma assimetria no tocante à posição tomada pela população atingida em relação
aos empreendedores para efetivarem suas vontades políticas.
Embora esteja o licenciamento ambiental mais vinculado a análises técnicas,
as decisões tomadas no referido processo tem natureza tanto técnica quanto
política, sendo certo que a decisão sobre a concessão (ou não) da licença
ambiental é, em verdade, uma decisão política, baseada em argumentos técnicos
que servem para fundamentá-la.221
Todavia, para a tomada de tal decisão política não são observados (e
garantidos) métodos e procedimentos que assegurem de maneira efetiva a
participação das populações atingidas, principais interessadas na causa.
Ao revés, em alguns casos, ocorre verdadeiro “processo de oligarquização”
do poder deliberativo do órgão licenciador, caracterizado por um controle de
ingresso de novos membros e pela concentração de poder decisório nas mãos de
uma minoria, que estabelece uma visão hegemônica do que sejam as
possibilidades de uso dos recursos naturais a partir da lógica do mercado. Essa é a
análise elaborada por Andréa Zhouri et al222 quanto à atuação do órgão licenciador
de Minas Gerais223 – COPAM ( Conselho de Política Ambiental ), nos
licenciamentos ambientais de hidrelétricas naquele estado.
Além disso, frequentemente observa-se uma ausência de avaliação de
sustentabilidade socioambiental da obra hidrelétrica, pautando-se o licenciamento
ambiental pelo “paradigma da adequação”, ou seja, restringindo o desempenho do
licenciamento ambiental à discussão sobre as melhores medidas mitigadoras e
compensatórias necessárias para adaptação do projeto às exigências do órgão
licenciador.224
Por outro lado, a falta de participação pública efetiva, tanto na elaboração
dos termos de referência para a preparação do EIA/RIMA (que contribui para a
ausência de transparência durante a sua confecção), bem como após a sua entrega
221 REZENDE, Leonardo Pereira. Avanços e Contradições do Licenciamento Ambiental de Barragens Hidrelétricas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, pp. 69-70. 222 ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros. Uma sociologia do licenciamento ambiental: o caso das hidrelétricas em Minas Gerais. In ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros (org) A insustentável leveza da política ambiental. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, pp. 89/113. 223 No estado de Minas Gerais, encontram-se três das maiores bacias hidrográficas do Brasil, sendo o estado alvo da política de expansão de hidroletricidade. 224 Ibid. pp. 99-101.
200
ao órgão licenciador, é sempre salientada como um dos pontos mais críticos do
processo de licenciamento ambiental. Outros pontos problemáticos são a
dificuldade de acesso físico do público às informações constantes do RIMA e de
entendimento da linguagem técnica utilizada nos estudos.225
Como já mencionado, a falta de participação e informação adequadas
prejudica a transparência que deve ficar evidente no processo de licenciamento
ambiental. Muitas vezes, quando a população interessada toma conhecimento do
projeto, aquele já está em fase avançada de análise, o que acaba por inviabilizar a
efetividade da participação pública.
No que diz respeito à fase da consulta pública, de absoluta importância para
que a população em geral tome conhecimento do teor do projeto hidrelétrico, esta
fica limitada ao depósito dos estudos ambientais nos órgãos públicos, sem que
haja uma conduta mais específica, através da formulação do chamado “plano de
comunicação social”.226
Com relação às audiências públicas propriamente ditas, momento em que o
projeto hidrelétrico será exposto à comunidade e que estará sujeito a
questionamentos, críticas, sugestões e novas informações, o que se verifica nos
processos de licenciamento ambiental, é que a participação deixa de ser
incorporada efetivamente ao processo. O ato da audiência pública passa a
configurar-se como modo de cumprimento de normas legais.227
Ademais, não há, no modelo institucional de licenciamento ambiental
existente, uma fase exclusiva para a discussão acerca da viabilidade do projeto e
outra para, após a demonstração da sua viabilidade, o debate sobre as medidas
mitigadoras e compensatórias necessárias, já que, na fase preliminar, estas duas
questões, em princípio, contraditórias, devem ser discutidas paralelamente. Não
há, também, previsão sobre a constituição de espaços institucionais próprios de
participação após a fase da concessão de licença prévia - o que seria bastante
225 Ibid. pp. 103-106. 226 REZENDE, Leonardo Pereira. Avanços e Contradições do Licenciamento Ambiental de Barragens Hidrelétricas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 75. 227 ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros. Uma sociologia do licenciamento ambiental: o caso das hidrelétricas em Minas Gerais. In ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros (org) A insustentável leveza da política ambiental. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, pp. 106-107.
201
oportuno, considerando que os conflitos socioambientais se intensificam nas fases
de instalação e operação do projeto.228
Outro ponto que merece ser registrado é a baixa qualidade dos estudos
ambientais, revelada por informações superficiais ou, mesmo, pela falta de
informações necessárias, em que é constante a exigência de complementação de
informações. Isto gera uma demora no deslinde do processo de licenciamento, em
razão das idas e vindas entre pedido de complementação de informações pelo
órgão licenciador, entrega de estudos/informações complementares pelo
empreendedor e a realização de nova análise pelo órgão ambiental.229
A partir das observações acima, conclui-se que o processo de licenciamento
ambiental e o conjunto de regras e princípios que o amparam não têm cumprido a
finalidade para a qual foram previstos. Constata-se apenas o cumprimento formal
das normas e não o atendimento substancial da finalidade das normas.
Com efeito, as críticas realizadas ao licenciamento ambiental não o
descredenciam como instrumento de grande relevância na prevenção de impactos
causados por atividades potencialmente poluidoras, fato este que deve ser
enaltecido230. Arriscamos afirmar que a ausência de um debate amplo e
participativo nas fases anteriores ao próprio licenciamento - abrangendo as etapas
dos estudos hidrelétricos e de viabilidade técnica e ambiental - sobrecarregam a
fase de licenciamento ambiental. Tal circunstância, somada à existência de
imperfeições no aludido processo, gera as incongruências e contradições
apontadas pela doutrina.
O pano de fundo de tais críticas, em grande medida, diz respeito à falta de
eficácia social da norma. No dizer de Rosângela Cavallazzi, a eficácia social das
normas está diretamente vinculada ao alcance do direito instituído e “designa a
capacidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular,
desde logo, as situações, relações e comportamentos nela indicados.”231 Norteada
pelos critérios da legitimidade, incidência e finalidade, a eficácia social da norma
228 REZENDE, Leonardo Pereira. op.cit. p. 241. 229 Ibid, p. 236. 230 É bom lembrar que, em meio à lógica mercantilista, que prioriza o crescimento econômico a qualquer custo e enfatiza a necessidade de aumento da produção energética, o licenciamento ambiental de hidrelétricas é visto como verdadeiro “entrave burocrático”. 231 CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Novas fronteiras do Direito Urbanístico. In: TEPEDINO, Gustavo. FACHIN, Luiz Edson. ( Coord )O Direito e o Tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas. Estudos em homenagem ao professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 691.
202
está relacionada à necessária aplicabilidade das normas jurídicas pelos indivíduos
destinatários das mesmas e, também, à capacidade de garantir os direitos dos
cidadãos.232
Nas situações acima apontadas, o direito posto não alcança plenamente a
sua finalidade, que é a de garantir que a participação da sociedade influencie no
processo decisório, pois, por força de mandamento constitucional233, cabe à
coletividade, juntamente como o poder público, o dever de preservar o meio
ambiente.
Assim, questões como a da falta de informação adequada, de participação
pública efetiva - especialmente nas fases anteriores ao licenciamento ambiental e
posteriores à licença prévia – da motivação da licença com base em informações
trazidas pelo público por ocasião da audiência pública, ou em qualquer outra fase
do processo, não dependem da proteção formal de instrumentos para sua garantia,
mas, sim, do estabelecimento de condições concretas de eficácia desses
instrumentos.234
A seu turno, na fase de planejamento energético, não se verifica uma
articulação com o setor ambiental.
De fato, o aparato administrativo governamental no setor energético
construiu um modelo energético altamente centralizado e inflexível a outras
interferências.235 Daí, certos questionamentos, como, por exemplo, quanto à
manutenção da matriz energética baseada na implantação de fontes hidrelétricas
ou quanto à definição do aproveitamento ótimo do potencial hídrico, que
deveriam ser realizados na etapa de planejamento, somente serão abordados
formalmente no processo de licenciamento ambiental. Na fase anterior a este,
quando decisões importantes são tomadas pela administração pública, a
participação pública, obrigatória na política ambiental, não se verifica.
232 Ibid, p. 691. 233 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 225. 234 AYALA, Patryck de.Araújo. O princípio da transparência e a participação pública no procedimento administrativo ambiental. Problemas e perspectivas no Direito brasileiro. Revista Jurídica do Ministério Público do Mato Grosso. Cuiabá: Entrelinhas, Ano 2, Vol. 3, jul/dez, 2007, p. 89. 235 ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros. Uma sociologia do licenciamento ambiental: o caso das hidrelétricas em Minas Gerais. In ZHOURI. Andréa. LASCHEFSKI. Klemens. PEREIRA. Doralice Barros (org) A insustentável leveza da política ambiental. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 102.
203
A partir das próximas páginas, buscaremos, através do estudo da avaliação
ambiental estratégica, explicitar tal problemática e examinar em que medida este
instrumento pode contribuir, de forma decisiva, para reduzir os obstáculos gerados
pela burocracia inerente ao processo de licenciamento ambiental.
4.4.4
A Avaliação de Impacto Ambiental
Dentre os instrumentos de gestão ambiental instituídos pela lei 6938/81,
encontra-se a avaliação de impacto ambiental (art. 9º, inciso III), instrumento este
que materializa uma ação preventiva a cargo do poder público.
Como já dito anteriormente, o campo de aplicação da AIA é bem mais
amplo do que o do EIA/RIMA, pois além do controle preventivo da atividade ou
obra efetiva (ou potencialmente causadora de degradação ambiental): a AIA
também constitui importante instrumento para o planejamento nesta área.
Influenciada pelo direito norte-americano (National Environmental Policy
Act – NEPA), a AIA foi introduzida no Brasil pela lei 6.803/1980, que dispõe
sobre as diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas críticas de
poluição. De acordo com este diploma legal, a AIA somente seria exigível na
aprovação de limites e autorizações de implantação de zonas de uso estritamente
industrial destinadas à localização de pólos petroquímicos, cloroquímicos,
carboquímicos, bem como de instalações nucleares.
Todavia, após a luta dos movimentos sociais e ambientais desenvolvida no
decorrer das décadas de 70 e 80, foi editada a lei 6938/81 que forneceu mais
relevo à AIA, apontando-a como um dos instrumentos para consecução da política
nacional do meio ambiente, sem, no entanto, indicar qualquer tipo de limitação ou
condicionante, pois é exigível tanto nos projetos públicos como nos privados,
industriais (ou não), urbanos (ou rurais), em áreas já degradadas (ou não). Hoje, a
AIA ganha o nível constitucional, ao ser apresentada no art. 225, parágrafo 1º,
inciso IV da CF/88.
O Decreto n. 88.351, de 01 de junho de 1983, depois substituído pelo
Decreto n. 99274/1990, vinculou a avaliação de impactos ambientais aos sistemas
de licenciamento, outorgando, ao CONAMA, competência para “fixar os critérios
básicos segundo os quais serão exigidos estudos de impacto ambiental para fins de
204
licenciamento”236, com poderes para baixar resoluções necessárias à tal
regulamentação.
A partir daí, o CONAMA criou normas para o licenciamento ambiental de
obras e atividades mediante avaliação de impacto ambiental, estabelecendo, para
cada caso, um tipo de estudo capaz de aferir o meio mais adequado e correto de
tornar visíveis as interferências negativas no ambiente. Editou, assim, as
Resoluções 001/86, 006/87, 009/87 e 237/97, regulamentadoras, respectivamente,
do estudo de impacto ambiental, do licenciamento de obras ou atividades
potencialmente poluidoras, da realização de audiências públicas e da alteração do
licenciamento ambiental.
O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA (
UNEP, 1987 ), por sua vez, define a AIA como “uma investigação, análise e
avaliação de atividades planejadas com vistas a assegurar um desenvolvimento
sustentável ambientalmente sadio.”
A Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento também consagrou a adoção da AIA, estabelecendo em seu
princípio 17 que “A avaliação de impacto ambiental deve ser empreendida para as
atividades planejadas que possam vir a ter impacto negativo considerável sobre o
meio ambiente, e que dependam de uma decisão de autoridade nacional
competente.”
Ressalte-se que a definição de AIA, constante do vocabulário básico do
meio ambiente237, é a seguinte:
Instrumento de política ambiental, formado por um conjunto de procedimentos capaz de assegurar, desde o início do processo, que se faça um exame sistemático dos impactos ambientais de uma ação proposta (projeto, programa, plano ou política) e de suas alternativas, e que os resultados sejam apresentados de forma adequada ao público e aos responsáveis pela tomada de decisão, e por eles considerados. Além disso, os procedimentos devem garantir a adoção das medidas de proteção ao meio ambiente determinadas, no caso de decisão sobre a implantação do projeto.
Após a análise das definições fornecidas pela legislação, podemos inferir
que a AIA é instrumento técnico de análise de impactos socioambientais, mas,
para que seja considerada eficiente, possui outros quatro papéis complementares,
236 Art. 48. 237 Vocabulário Básico do Meio Ambiente. Rio de Janeiro. Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente, 1990, p. 33.
205
servindo como instrumento 1) de ajuda à tomada de decisão política; 2) de
concepção de projetos e de planejamento; 3) de negociação social e, por fim, 4) de
gestão ambiental.238
Assim, a AIA pode ser efetivada no interior do processo de licenciamento
ambiental ou fora dele, o que já não ocorre com o EIA/RIMA, que está atrelado ao
referido processo. Isto é o que fica bastante claro com a resolução CONAMA
237/97, que chama de “estudos ambientais” aquilo que, em verdade, é a AIA. A
AIA é gênero de que são espécies todos e quaisquer estudos relativos aos aspectos
ambientais apresentados como subsídios para a análise da licença ambiental, tais
como o relatório ambiental, plano e projeto de controle ambiental, relatório
ambiental preliminar, diagnóstico ambiental, plano de manejo, plano de
recuperação de área degradada e análise preliminar de risco. 239
Portanto, a AIA tem extrema relevância como medida de planejamento
ambiental240, já que auxilia o poder público na tomada de decisões, ao levar em
consideração a variável ambiental em qualquer ação ou decisão que possa causar
qualquer efeito negativo ao meio ambiente. E como qualquer instrumento de
planejamento, possui - entre suas características - lidar com a incerteza tanto da
variabilidade do ambiente natural, como das próprias condições sócio-
econômicas.
Diante do fator da incerteza, deve se considerar a AIA como um processo
contínuo241 que não termina com a simples aprovação do projeto ou atividade,
238 SÁNCHEZ, L. E. ( 1991 ) Apud VIEIRA, Paulo Freire. Gestão Patrimonial de Recursos Naturais: Construindo o Ecodesenvolvimento em Regiões Litorâneas. In CAVALCANTI, Clóvis (org) Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003, p.303. 239 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 361-362. 240 “Planejar para um desenvolvimento sustentável, nos ensina Archibugi, significa essencialmente um gerenciamento de recursos, pelo qual a direção e qualidade das condições ambientais são permanentemente monitoradas, de modo a obter a mais completa quantidade de informações para uma resposta política efetiva. O planejamento para sustentabilidade requer uma mudança no modo de pensar o desenvolvimento. Há uma necessidade evidente para um pensamento mais estratégico, mais coeso e mais multidimensional, a fim de assegurar a compatibilidade dos interesses econômicos e ambientais. Localizo nesta descrição o “espírito” da Avaliação de Impacto Ambiental: um processo que comporta planejamento para a sustentabilidade das atividades econômicas, integrado por um conjunto de ações estratégicas visando uma melhoria e melhor distribuição da qualidade de vida.” Cf. DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, pp. 172-173. 241 A AIA inclui as seguintes etapas: A) o procedimento de avaliação inicial (screening) para identificar se um projeto pode resultar, em sua implementação, em impactos socioambientais significativos e, assim, merecer ser objeto de avaliação de impacto ambiental; B) a identificação de aspectos econômicos, sociais e ambientais significativos do projeto para a elaboração de uma AIA
206
mas que esteja sempre sendo reavaliada242, através de monitoramento e auditoria
ambiental, como forma de aprimoramento sistemático da gestão ambiental.
No entanto, após mais de trinta anos da implantação da AIA por diversos
países como instrumento de política do meio ambiente, apesar dos inúmeros
resultados positivos, algumas deficiências são identificadas, mesmo onde o
processo de AIA é considerado como adequadamente implantado e utilizado. Entre
essas deficiências, a mais importante é que o processo de AIA tende a ocorrer muito
tarde no processo de planejamento e de desenho de um empreendimento, o que torna
difícil assegurar que todas as alternativas possíveis e relevantes ao projeto sejam
adequadamente consideradas. Uma razão para isso é detectar que o processo de AIA
não seja compatível com a prática de planejamento dos empreendimentos.243
Para superar essas deficiências e outras, tais como a não consideração dos
impactos cumulativos e sinergéticos, além dos impactos regionais e globais, diversos
autores estrangeiros244 e organizações internacionais – Banco Mundial e Comissão
Econômica Européia - têm apoiado o uso da Avaliação Ambiental Estratégica – AAE.
Nesse contexto, apresentaremos o exame mais detalhado da AAE no
Capítulo a seguir.
(scoping); C) a preparação de Estudo de Impactos Ambientais – EIA, que deve conter a descrição do empreendimento e suas diferentes alternativas, o ambiente passível de ser afetado, a natureza dos efeitos no ambiente e os meios para minimizar os efeitos (impactos) negativos; D) a revisão do EIA por agências governamentais e, normalmente, o público, por meio de um processo participativo de representatividade democrática; E) a preparação de um relatório final, que deve incluir as respostas e soluções apresentadas durante o processo de revisão do EIA; e F) a implementação de um sistema de monitoramento para verificar se as medidas de mitigação foram implementadas e averiguar como se comportará o ambiente após a implantação do empreendimento. 242 MACEDO, Ricardo Kohn de. A importância da avaliação ambiental. In TAUK-TORNISIELO, Sâmia Maria; GOBBI, Nivar; FOWLER, Harold Gordon ( org ). Análise Ambiental: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista-UNESP, 1995, p. 16. 243 EGLER, Paulo César Gonçalves. Perspectivas de uso no Brasil do processo de Avaliação Ambiental Estratégica. 2002. Disponível em: http://www.mct.gov.br/CEE/revista/rev11.htm . Último acesso em 19 de outubro de 2008. 244EGLER, Paulo César Gonçalves. Perspectivas de uso no Brasil do processo de Avaliação Ambiental Estratégica. 2002. Disponível em: http://www.mct.gov.br/CEE/revista/rev11.htm. Último acesso em 19 de outubro de 2008. O autor cita como autores estrangeiros especialistas no tema os seguintes: Thérivel e Partidário, 1996; Lee e Hughes, 1995; Sheate e Cerny, 1993; Lee e Walsh, 1992; Wood e Dejeddour, 1992; Thérivel et al, 1992; e Sadler e Verheem, 1996)