A arte na rua -Senhora da Saúde, Subidouro, Maia,...

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A arte na rua - Senhora da Saúde, Subidouro, Maia, Portugalexpressões religiosas e artísticas na preservação do património cultural local *

*Esta e-Exposição é uma versão traduzida e revista de um trabalho publicado na revista Diálogos com a Arte – revista de arte, cultura e educação, nº 6, 2016, pp. 221-230, com o título, “A ind of street art – Artistic and religious expressions in the preservation of the local cultural heritage (Maia)”.

Pedro PereiraCAPP-ISCSP (Universidade de Lisboa) / IPVC Clube UNESCO da Maia

Mário João BragaCEMRI / Universidade Aberta

Revista MEMORIAMEDIA 2. e-Expo. 1. 2017

ISSN 2183-3753http://review.memoriamedia.net/

Silêncio.A rua está deserta e nua, mas falta pouco para se encher de pessoas e flores.

O culto mariano é inegavelmente uma marca indelével do património culturalportuguês, evidente nas quase mil invocações da Virgem, traduzidas na sua expressãoarquitetónica em milhares de lugares de culto, atraindo milhões de crentes e turistas(Aguiã, 1996; Almeida, 1979; Azevedo, 2001; Dias, 1987; Lima, 1997; Pereira, 2003; Pimentel, 1899; Reis 1967; Sanchis, 1977, 1992; Santa Maria, 1716; Santo, 1990). O Subidouro(Maia) é um dos mais de trezentos lugares onde todos os anos se realiza um ritualfestivo dedicado à Senhora da Saúde.

Ancorado no trabalho de cariz antropológico desenvolvido sobre os lugares de culto àSenhora da Saúde em Portugal (Pereira, 2014-a, 2014-b, 2014-c, 2016), particularmente no Subidouro, opresente artigo recorre à fotografia etnográfica para retratar o dispositivo artístico a queos autóctones recorrem, para, através de práticas religiosas que encerram em sidinâmicas performativas e experienciais, contribuir para a preservação de umpatrimónio cultural local.

Ainda que esta prática de culto se revista, evidentemente, de dimensões religiosascatólicas, o ritual festivo encerra em si uma dinâmica performativa que convoca acomunidade para o desenvolvimento material, social e simbólico de práticas coletivasde cariz artístico, nomeadamente a construção de tapetes de flores e de um altar.Assim, por um lado, os atores locais recorrem a dinâmicas sociais para manter certostraços culturais identitários; por seu turno, o público participa numa experiência,sensorial e emotiva, multifacetada.

Ano após ano, crentes e turistas, autóctones e visitantes, alimentam a ativação damemória coletiva do lugar do Subidouro, e encenam a preservação do seu patrimóniocultural.

Na rua deserta restam apenas vestígios de flores, de odores, de emoções e a esperança de quepara o ano tudo voltará a nascer das pedras.Silêncio.

________________________________A rua

Silêncio. A rua está deserta e nua, mas falta pouco para se encher de pessoas e flores.

SILÊNCIO

QUEBRA O SILÊNCIO

A Fanfarra de Gondomar quebra o silêncio, anunciando que o dia será de festa. Mais tarde, há de voltar anunciando que o dia será da Senhora da Saúde.

________________________________A cruz

HOJE COMO HÁ CERCA DE CINQUENTA ANOS

Faltam alguns minutos para as nove da manhã. Um homem escava um buraco no lugar onde se há de aprumar uma cruz, hoje como há cerca de cinquenta anos.

UM HOMEM NÃO CHEGA PARA CARREGAR A CRUZ

Um homem não chega para carregar a cruz. A cruz é nova, mas o gesto é antigo, ocaminho é breve. À frente vem o Zé, atrás o Victor. A rua separa-os, a rua une-os. Deum lado, mora o Victor, neto do Francisco, do outro lado morou o Zé, genro do João.Entre o Francisco e o João separa-os a vida e a morte. O primeiro morreu há vinteanos, o segundo vive há setenta e oito anos.

DOIS HOMENS NÃO CHEGAM PARA APRUMAR A CRUZ

Dois homens não chegam para aprumar a cruz, faceada com uma das ruas daencruzilhada. Em seguida, outros dois observarão a cruz do fundo da rua, pela qual eladeve ficar alinhada, e chegarão outras pessoas, e outras sugestões de alinhamento.

CRISTO NAS MÃOS

Uma mulher traz um Cristo nas mãos para colocar na cruz. Mais tarde, trará uma velha fotografia sua, vestida de branco.

CRISTO DE BRAÇOS ABERTOS

Um homem segura as pernas de um Cristo de braços abertos,até que ele fique preso à cruz.

________________________________O altar

ESCADA DE TRÊS NÍVEIS NUM ALTAR

Algumas tábuas, umas soltas, outras presas por um ou outro prego, foram-seacomodando junto à cruz. Não tarda, adultos e crianças transformarão esta escada detrês níveis num altar.

SOBRE UM CETIM AZUL CÉU

Algumas toalhas de renda branca, sobreum cetim azul céu, desenham os trêsníveis da estrutura de madeira que agoracomeçam a ganhar dignidade de altar.

SOBRE O ALTAR E SOBRE OUTRA COISA AINDA

O altar começa a compor-se. Sobre o altar, sobre outra coisa ainda, um outro Cristo alinha-se com o outro corpo divino composto por uma mão humana.

PERFUMANDO O CROMÁTICO ALTAR

Rosas brancas, orquídeas rosa etambém vermelhas, deitadas numacama de fetos, debruçam-se nas jarrasperfumando o cromático altar.

BRANCO NO BRANCO

Branco no branco, passado no presente.No segundo degrau do altar, ladeada pordois círios, equilibra-se uma velhafotografia a preto e branco de uma jovemvestida de branco à frente do altar, ontemcomo hoje, vestido de branco.

_______________________________ As flores

CORAÇÃO DE PAPEL

Numa folha arrancada a um caderno, criam-se planos e intenções, esboçam-se linhas ecódigos, desenham-se círculos dentro de círculos e no centro um coração de papel que,em breve, se encherá de flores.

CORAÇÃO DE FLORES

O coração de flores já está desenhado no chão. Agora, alinham-se as últimas flores do tempo, fechando-se um círculo, envolto noutro círculo ainda maior.

OS NOMES DAS FLORES

Gerbérias, cravinas, orquídeas, rosas, íris, jarros, frésias, coroas de rei, dálias, antúrios...

CAMINHO DOS ESQUADROS

O caminho dos esquadros leva-nos atéao coração de flores. Um esquadro é ummolde sobre o qual não se inventamlinhas nem formas, mas criam-secombinações de cores, texturas e odores.Em breve, os esquadros retiram-se,discretamente, deixando o caminho paraas flores.

CAMINHO DAS FLORES

O caminho das flores abre-se a partir do eixo do coração de flores, guardado numcírculo, e fecha-se com dois quadrados que antecipam outros cinco guardando a saúde.Duas cruzes em posições inversas junto ao coração de flores, dão um sentido aocaminho das flores.

SETE MENINAS

Sete cestos de flores, cor de rosa e brancas, aguardam nas mãos de sete meninas,vestidas de cor de rosa e branco, ordenadas pelo seu tamanho, que aguardam peloandor da Senhora da Saúde.

PEQUENOS BOMBEIROS

Alguns pequenos bombeiros acomodam-se atrás da grade. Já não falta muito parachegar a procissão e repetirem, ano após ano, o mesmo sinal de continência, masainda dará tempo para repetirem, ano após ano, um breve lanche.

________________________________A procissão

O TROTE DOS CAVALOS DA GUARDA

O trote dos cavalos da Guarda precede os sons da fanfarra, abrindo o caminho a longoséquito de religiosos, políticos, músicos, promitentes, crentes, andores e meninasvestidas de santas.

MENINAS VESTIDAS DE SENHORA DA SAÚDE

Meninas vestidas de Senhora da Saúde percorrem o chão de flores,ladeadas por adultos, e antecipam a chegada da Senhora da Saúde.

SENHORA DA SAÚDE CHEGA AO CORAÇÃO

Finalmente, o andor da Senhora da Saúde chega ao coração de flores. Uma ligeiravénia é suficiente para espoletar a sirene dos bombeiros e fazer soltar os foguetes, aspétalas de rosas das mãos das meninas, as pombas das gaiolas e lágrimas dos olhosde algumas crentes.

TODOS FLUEM DAS MARGENS PARA O LEITO

No fim da procissão, todos fluem das margens para o leito da rua, devotando com os pés e repetindo o caminho da Senhora da Saúde.

________________________________A rua

SILÊNCIO

Na rua deserta restam apenas vestígiosde flores, de odores, de emoções e aesperança de que para o ano tudo voltaráa nascer das pedras.

Silêncio.

Bibliografia

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