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FACULDADE ALFREDO NASSER INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO
CURSO DE LETRAS
A AVENTURA DA COMPREENSÃO DO MEDO: apontamentos em O
coração Delator e O enterro prematuro de Edgar Allan Poe
Julyana Doutor
APARECIDA DE GOIÂNIA DEZEMBRO DE 2010
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JULYANA DOUTOR
A AVENTURA DA COMPREENSÃO DO MEDO: apontamentos em O
coração Delator e O enterro prematuro de Edgar Allan Poe
Artigo apresentado ao Instituto Superior de Educação da Faculdade Alfredo Nasser, sob orientação do Prof. Mestranda. Meire Lisboa, como parte dos requisitos para a conclusão do curso de Letras.
APARECIDA DE GOIÂNIA DEZEMBRO DE 2010
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FOLHA DE AVALIAÇÃO DA PRODUÇÃO DO TRABALHO
A AVENTURA DA COMPREENSÃO DO MEDO- apontamentos em O coração
Delator e O enterro prematuro de Edgar Allan Poe
Aparecida de Goiânia __ de dezembro de 2010.
EXAMINADORES
Orientador - Prof.(a) Mestranda Meire Lisboa- Nota:___ / 60
Primeiro examinador - Prof.(a) ________________________________________ - Nota:___ / 60
Segundo examinador - Prof.(a) ________________________________________ - Nota:___ / 60
Média parcial - Avaliação da produção do Trabalho: ___ / 60
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A AVENTURA DA COMPREENSÃO DO MEDO- apontamentos em O coração
Delator e O enterro prematuro de Edgar Allan Poe
Julyana Doutor
RESUMO: Este artigo propõe fazer uma análise do medo nos contos O Enterro Prematuro e O Coração Delator de Edgar Allan Poe, buscando discutir e descrever as fisionomias que ele adquire nos contos do referido autor. Haja vista que o medo passou por um processo de internalização que pode ser descrito, na atualidade, a partir de algumas configurações caracterizadas como o medo patológico, tal qual ocorre à chamada síndrome do pânico. A busca do prazer através do medo e as precauções em torno da segurança pessoal; tais modalidades acham-se associadas ao chamado mal-estar contemporâneo, relacionados aos traços da cultura em que vivemos. O suporte usado neste trabalho vem dos contos de Edgar Allan Poe, A dinâmica do medo de Alberto Montalvão, dicionário de filosofia e psicologia e de alguns fragmentos de outros autores como Adriano Gama Cury, Freud, Nádia Gotlib, entre outros. PALAVRAS-CHAVES: Medo, suspense, angústia e morte.
INTRODUÇÃO
Embora toda a pesquisa difundida na obra de Poe o enalteça com parâmetros
que o deslumbra como uma imaginação desbordante e o define como o pai do
policial analítico, questiona-se sobre a distinção entre o comportamento e
capacidade intelectual genial e/ou uma disfunção de caráter psicótico do autor em
produzir obras referentes a tão somente histórias de relações macabras.
Dentre os vários contos do autor, no referido artigo apresentaremos para
análise os contos O enterro prematuro e O coração delator, focando na temática do
medo, que é descrito em diferentes momentos e sob diferentes formas de
manifestações. Tem-se como intuito perceber a abrangência do medo nos contos
citados, relacionando-o às imaginações depressivas, muitas vezes, retratadas
nestes. Também analisar como o medo pode ser expresso, refletindo tanto nas
personagens como nos leitores, que são levados a este mundo.
A reflexão sobre o medo excessivo que os personagens demonstram sentir
no decorrer dos seus contos, embora esteja entre as emoções consideradas básicas
no homem, é tomado por Tatiane Belink (2002), como um sentimento básico, que
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faz parte de um desenvolvimento emocional das pessoas, é constituído também
socialmente dentro da modernidade literária.
O medo é, então, um tema que está na atualidade e pode ser percebido na
quantidade de informações vinculada em diversas matérias, em jornais, revistas,
indústrias de filmes, dos livros e da internet que apontam acerca do terror, do pânico
e da adrenalina que provoca em um público que não se preocupa com os efeitos
que estes mecanismos podem causar em seus comportamentos. Para ele, tudo é
válido quando se trata de emoções fortes, indescritivas, insaciáveis e banais. Nestas
situações, o medo é visto sem importância, apenas como diversão e excitação.
Para tratar, então, dessa temática, dividir-se-á o trabalho em momentos: No
primeiro, far-se-á uma contextualização histórica e literária do escritor Edgar Allan
Poe. No segundo momento, apresentar-se-á as concepções e definições de medo,
de acordo com a psicologia, filosofia e outras abordagens relevantes. Depois, a
representação do medo nos contos Enterro Prematuro e Coração Delator de Edgar
Allan Poe. Por fim, serão feitas as considerações finais.
1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E LITERÁRIA: EDGAR ALLAN POE.
O período em que se inicia o romance dos ensaístas e poetas tem início no
século XX, entre 1820-1860. Este movimento origina-se na Alemanha, estendendo à
Inglaterra, França, chegando até à América, representando a expansão do
Romantismo. Deste movimento nascem as obras-primas e a descoberta de uma
distinta voz americana.
Os românticos afirmam que a arte poderia expressar a verdade universal mais
que a ciência, pois as idéias românticas giravam em torno da arte como inspiração
através de suas expressões para o indivíduo e a sociedade.
Ralph Waldo Emerson (apud VANSPANCKEREN, 1994, p. 26.) era um dos
escritores mais influentes da era romântica, em O poeta, acerca desse movimento
estético, afirma que: “Todos os homens vivem pela verdade e precisam expressar-se
no amor, na arte, na natureza, na política, no trabalho, nos jogos e nos estudos bem
como exprimir nossos dolorosos segredos. O homem é apenas uma metade, a outra
é a sua expressão”. O homem vive em busca de algo que o ajude a si definir, dentro
da sociedade. Parte em andanças para se reencontrar. Uma vez certo do seu
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destino, este se mergulha em profundos ideais, explora seu potencial e sente
cumpridor de sua missão. É isto que os grandes poetas do Romantismo viviam em
busca, tornando-os famosos, seguros e disciplinados na arte da criação.
De acordo com Vanspanckeren (1994), a partir do Romantismo, há o
desenvolvimento do próprio ser, que toma consciência da sua capacidade e seu
conhecimento. Conforme a teoria romântica, ser e natureza são um, então, o auto-
conhecimento não é um beco sem saída egoísta, mas uma forma de conhecimento
que abre as portas do universo. Se o ser está em sintonia com a humanidade, o
indivíduo tem o dever moral de reformar as desigualdades sociais e aliviar o
sofrimento humano.
É evidente que com a descoberta do homem como ser único, imensa é a sua
capacidade de criação. O movimento romântico expande, então, outras divisões,
Como na psicologia, onde existem técnicas e efeitos especiais, descobrindo o
sublime como efeito de beleza, criando sentimento de admiração e respeito e um
poder que vai além da compreensão humana.
Este movimento também se torna um alicerce para a democracia americana,
valorizando o homem como pessoa comum, que cobiçava uma imaginação voltada
para seus valores morais e éticos, de um artista harmonioso e belo. Com isso, atrai
os transcendentalistas da Nova Inglaterra, um grupo de pessoas com poderes
supremos, que estão acima das idéias e conhecimentos ordinários, que foram
recebidos de braços abertos. (VANSPANCKEREN, 1994).
O movimento transcendentalista fundamenta-se na crença e na unidade entre
Deus e o mundo. Espalhou-se na América, principalmente, na pequena cidade de
Concord, na Nova Inglaterra, esse lugar muito bonito, tranqüilo e rodeado de flores.
Alguns dizem que Concord foi a primeira colônia rural de artistas, por possuir esses
adjetivos. (VANSPANCKEREN, 1994)
Como afirma a teórica, a América daquela época vivia em movimentos
perseverantes de imigração com línguas e costumes diferentes. Em razão disso, os
romancistas tornaram-se pessoas solitárias, favorecendo, então, a exploração
fictícia do mais profundo de sua alma. E um dos principais autores românticos a
manifestar essa característica é Edgar Allan Poe, que dá sinais dessa vida longe da
comunidade, expressando visões solitárias, do túmulo e encontra o “demônio”
caminhando nas florestas, através do surgimento dos seus primeiros contos.
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Então, Poe, no mais profundo dos sonhos e devaneios, enriquece o mundo
literário com uma obra sombria e ameaçadora, cujas personagens são protagonistas
solitárias que enfrentam destinos desconhecidos e tenebrosos e que, de modo
misterioso, surgem de seus inconscientes mais profundos. Estas conspirações
simbólicas revelam as ações escondidas de um espírito cheio de tribulações.
Vejamos um pouco mais deste autor.
1.1 Poe: Símbolo de vivência e convivência atribulada.
Falar de Edgar Allan Poe é, o no mínimo uma singularidade, pois a biografia,
as notas, os costumes, o hábito, o estilo do artista, a nitidez de suas ideias, o censo
estético, os ecos desesperados da melancolia, a imaginação tão erradia e tão
ambiciosa fazem dele um poeta que representa quase sozinho o movimento
romântico americano.
É o primeiro americano que propriamente falando, faz do seu estilo uma ferramenta. Sua poesia gemente e, não obstante, trabalhada, pura, correta e brilhante como uma jóia de cristal; mas também uma poesia grotesca, gótica que despertou os ardores da curiosidade dos leitores. (VANSPANCKEREN, 1994, s/p).
O gênio visionário de Poe, poeta de amplos recursos e contista conhecido,
sobretudo, por suas histórias de mistério e horror, constitui uma fonte de inspiração
direta para renovação literária européia no final do século XIX.
Em geral, seus contos abordam temas como a morte, o horror sobrenatural e
os devaneios da mente humana, expressos numa linguagem a um só tempo precisa
e alucinada, que reflete os tormentos do autor. Os contos de horror apresentam
invariavelmente personagens doentias, obsessivas, fascinadas pela morte,
vocacionadas para o crime, dominadas por maldições hereditárias, seres que
oscilam entre a lucidez e a loucura, vivendo numa espécie de transe, espectros
assustadores de um terrível pesadelo.
Poe, por outro lado, possui grande capacidade analítica, que assentou as
bases do gênero policial e de mistério que se difundiu no século XX. Poe também
deixou textos nos campos da estética, da crítica e da teoria literária, como
“Philosophy of composition “(1845; “Filosofia da Composição”) e o “The Poetic
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Principle” (1850; “Princípio poético”), nos quais expôs sua concepção da elaboração
racional do poema e o sentido estético da poesia.
Edgar Allan Poe nasceu em 19 de janeiro de 1807 em Boston,
Massachusetts. Filho de David Poe, ator medíocre e alcoólatra, a mãe Elizabeth
Arnold, mulher altiva, franzina, tísica e esgotada pelos sucessivos partos, fica viúva
após o nascimento da terceira filha Rosálie. Nesta ocasião, encontra-se na mais
extrema miséria na cidade de Boston.
Já com a saúde debilitada, parte para o sul deixando o filho mais velho Henry
com sua cunhada Maria Clemm. Após algum tempo, morre Elizabeth, os filhos ficam
aos cuidados da companhia de teatro, onde a mãe um dia trabalhara. Começa,
então, uma vida sem amparo e segurança para os pequenos que se vêem no mundo
estranho, sozinhos. O medo e a solidão começa então a reinar naquelas duas almas
inocentes.
Chega a hora da doação. Enfim, separam-se as duas figurinhas que sobraram
daquela família desajustada, problemática, uma família que, se teve momentos
felizes, não foi conhecido pelos leitores e admiradores de suas obras. Rosálie foi
adotada por um comerciante rico e Edgar Poe por Jonh Allan. John Allan batiza
Edgar na igreja presbiteriana e dá-lhe seu nome ao filho adotivo, mima-o de
cuidados e carinhos. Aos 6 anos, ele já sabe ler, desenhar e cantar.
Entre 1815 e 1820, recebeu esmerada educação clássica na Escócia e na
Inglaterra. No período em que freqüentou a Universidade da Virgínia, aderiu ao jogo
e álcool. Rompeu relações com seu tutor e, no mesmo ano, publicou, em Boston,
seu primeiro livro de poesia, Tamerlane and other poems (1827), ao qual se seguiu
Al Aaraaf, Tamerlane and minor Poems (1829).
Expulso da academia militar de West Point, decidiu dedicar-se por completo à
literatura e começou a publicar contos em revistas. Fixou-se então em Baltimore com
uma tia e, em 1833, recebeu um prêmio em dinheiro por seu Manuscript Found in a
Bottle. Tornou-se editor literário do Southern Literary Messenger, de Richmond, em
1835, e no mesmo ano casou-se com a prima Virgínia Clemm, de 13 anos de idade.
Mas outro golpe duro está por vir, com a morte da esposa, em 1847, aumenta
ainda mais sua dependência ao álcool. Após vários dias de excessivos abusos
alcoólicos, Poe morre em Baltimore, Maryland, em 7 de outubro de 1849.
É necessário acentuar estes dias de infortúnio para que se possa
compreender em parte a existência dramática e o gênero incomum de Poe, que traz
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o estigma de um alcoolismo hereditário, sendo que toda sua existência foi uma
árdua batalha sem fim entre dois instintos antípodas: de um lado a firme resolução
de não beber, e, de outro, a depressão, o mutismo que o assaltava freqüentemente,
a morbidez funesta que o intoxicava de complexos e a irresistível volúpia de procurar
na bebida um estimulante que lhe atenuava a diversidade que via em tudo
entregando-se à morbidez, sendo então protagonista das cenas mais humilhantes e
asquerosas que um ser humano pode ser submetido.
2. AS CONCEPÇÕES DO MEDO: DEFINIÇÕES E CONSIDERAÇÕES.
A partir dessas informações, conhecer-se-á um sentimento vivido por todos
ou quase todos os seres viventes do planeta. Sentimento este percebido em grande
parte nos contos de Edgar Allan Poe, que quando são lidos, provocam uma
sensação estranha, como calafrios, arrepios, suor frio, taquicardia entre outros. Este
sentimento ou emoção é o medo, que é encontrado no interior de suas obras em
que se percebe o perigo ou ameaça sobre a preservação do indivíduo.
O medo pode ser encontrado em sua obra sob três prismas: o medo
(universal), o medo de (cometer algo) e o medo (da morte). O medo universal vem
de tudo e de todos, é aquele sentimento ou emoção que todos sentem ao receber ou
imaginar certas informações sobre algo que é certo ou que às vezes nem chegue a
acontecer. Este tipo de medo vem de várias dimensões como é ensinado
caprichosamente ao longo de nossa vida.
Em o medo de cometer algo, pode-se exemplificar ao sentido pelos grandes
empresários que visam somente lucros e que a qualquer deslize tudo pode vir
abaixo. Estes não conseguem confiar em ninguém quando se vê perante a um
perigo, e se acaso o pior acontecer é tamanho o seu desespero que chegam a
encher bancos de igrejas, tornando-se religiosos do dia para a noite. Tamanha é a
sua penúria e tristeza, a falta de abundância fazem os homens procurarem de tudo e
colocarem a culpa em tudo.
O medo da morte, este é considerado terrível, pois, é sabido que é uma
realidade na vida de todos, embora nunca aceitável, na maioria dos casos. Pois
vidas são ceifadas todos os dias e a morte parece triunfar, indo com ela um amigo,
um parente, um irmão, um companheiro, um sorriso, um gesto, deixando marcas,
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tristeza, soluços, dor e lágrimas. Neste ideal, o medo vem antecipadamente, invade
corações sofridos, incapacitando os de qualquer atitude.
Para entrar neste cenário de diferentes sensações e fortes emoções é
necessário buscar alternativas teóricas em outros campos, como na filosofia e na
psicologia entre outros, que venham enriquecer muito mais o conceito de medo que
Poe introduz na mente humana, a partir de quando o público torna-se conhecedor de
suas obras.
Assim, deve-se ter em mente que ao lançar mão do grande trabalho dele,
deve-se estar ciente que ali encontra-se constantemente a presença de morte,
horror, crime e repugnância, elementos estes que fazem parte das adjetivações do
medo.
Segundo Montalvão (1987), em “A força dinâmica do medo”, o medo está
relacionado a uma energia, uma força, um impulso a escapar do perigo. Diz também
que o medo provém de uma série de causas diferentes como o medo de
desagradar, medo do ridículo, da incompreensão e de muitas outras coisas. Para
ele, o medo é:
(...)Despertado pelo perigo. Um homem se assusta se descobre um perigo para seus filhos, seus pais, sua saúde, seus bens,... se o propósito do medo é assegurar a sobrevivência, então o medo se manifesta quando está em perigo(...) (MONTALVÃO, 1987, p.59).
Ainda neste sentido, o autor esclarece que a maioria das pessoas considera e
relaciona o medo com causas do cotidiano. “(...) A maioria das pessoas parece
considerar o medo relacionado sempre com acidentes, enfermidades, fome,
assaltos, etc. (...)” (MONTALVÃO, 1987, p.60).
Como se vê, o medo é presente e perceptível em várias situações
psicológicas, é do ser humano essa insegurança e apavoramento antes mesmo do
pior acontecer. Situações que às vezes até poderiam ser evitadas. Mas, o medo não
é só isso, a maioria das pessoas relaciona-o com o mais extremo que se observa
nos indivíduos, o medo que os incapacita totalmente, não por minutos ou horas, mas
por meses ou anos, é o “medo do domínio”. (MONTALVÃO, 1987, p.60).
O medo também pode estar ligado a uma situação confortável. Na psicologia,
confortável não é o que é agradável, mas o que nos ameaça com mudanças. Daí
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vem o medo de tudo: do desconhecido, do novo e até da felicidade. Também do
escuro, da altura, de solidão, do outro, etc.
O medo tem, então, a ver com encarar o imprevisível e com coragem para
enfrentar o que não lhe é confortável. Mas, que fique claro, de acordo com o teórico
citado, ter medo não é sinal de fraqueza, porque ninguém precisa ser corajoso para
passar pela vida de peito aberto para tudo. A questão é quando se começa a
declinar demais e sem perceber coleciona-se uma série de desistências. E isso, ao
logo do caminho, gera uma frustração, insegurança e mais medo, e pode até abalar
o que é tão caro: a auto-confiança.
Há mesmo o medo de coisas que vem da fantasia de cada um. A imaginação
constrói, avoluma e, por vezes, aprisiona. Mas não se deve negar que o medo é
acionado por um instinto de preservação. Esse é o seu parceiro.
De acordo com a psicanálise, existe uma relação entre a evolução da
moderna teoria literária e a agitação política e ideológica no século XX. Essa
agitação, porém, nunca é apenas uma questão de guerras, de depressões
econômicas e de revoluções: ela é sentida pelos que nela estão envolvidos também
de maneira profundamente pessoal. Ela é tanto uma crise das relações humanas e
da personalidade humana quanto uma convulsão social.
Isso não quer dizer que a ansiedade, o medo da perseguição e a
fragmentação do eu sejam experiências peculiares a um determinado período, elas
persistem por toda história conhecida. O que talvez seja significativo é o fato de que
nesses períodos, tais experiências constituem-se de uma maneira nova, como um
campo sistemático do conhecimento. Esse campo é chamado de psicanálise e foi
desenvolvido por Sigmund de Freud, na Viena de fins do século XIX.
Freud (1894) afirma que a origem do medo e da angústia está no instinto da
morte. Questões filogenéticas, ocorrências durante a gestação e depois, durante a
vida (otogenéticas), podem reforçar ou reduzir esse instinto de morte. Em
psicanálise, medo é angústia, uma ambivalência feita ao mesmo tempo de desejos e
temor. “A filosofia existencial, desde Kierkegaard, nela vê um sentimento ontológico
capaz de nos revelar não apenas nossa liberdade, mas também a insegurança
diante do nada e o caráter absurdo da vida”. (DUROZOI, 1942, p.29). Portanto, o
medo assume diversas nuances, dependendo das ameaças que se apresentam,
internas ou externas.
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Já o perigo potencial aponta o medo aos fatores de riscos reais, em que uma
relação de alarme e medo é desencadeado por um estímulo-signo indicativo de que
o indivíduo encontra-se em provável situação de risco. Já o medo (ou angústia) está
relacionado à pulsão de morte e a ansiedade de origem sexual, diz Freud (1894).
O acúmulo de energias psíquicas libidinal é proveniente do instinto de morte
que intensificam a angústia, uma vez que esse medo não pode ser extravasado com
agressividade. Esse tipo de angústia, o medo por projeção no objeto, no entanto,
não corresponde ao conceito de medo inato – este é um medo desencadeado por
motivos determinados por adaptação filogenética.
Nos dizeres de José Anastácio (2008), o medo, na filosofia, é visto como
alteração do equilíbrio emocional, que ocasiona um sinal de alerta, por alguma
causa. Ele cita Baruc de Espinosa, um dos maiores filósofos, que assegura ser o
medo originado de uma idéia equivocada, sobre algo que só nos libertaria somente
com conhecimento. Espinosa traz ainda como resumo de sua ética o seguinte:
Compreender o universo é estar liberto dele, compreender tudo é estar liberto de tudo, pois só tememos o que não conhecemos e só amamos o que conhecemos, o que a toda evidência, está implícito no próprio conceito de filosofia – amor à sabedoria. (apud ANASTÁCIO, 2008, s/p)
Sendo esta a ética espinozista, o medo então é uma questão de não ter
experiência, experimentar ou ter noção do que é novo aos sentidos humanos. Entra
aí a questão da dúvida, ser ou não ser. É sabido também que todos seres humanos,
em algum momento da vida, passam pela experiência do medo. E o próprio coloca o
indivíduo em tal situação que a razão acaba perdendo espaço para a emoção. O
medo também faz com que se procure alternativas para superá-lo ou esquecê-lo,
sendo algo ruim para permanecer na lembrança.
O medo na filosofia vem através dos dizeres de Aristóteles que diz: “O medo
é uma dor ou uma agitação produzida pela perspectiva de um mal futuro, que seja
capaz de produzir morte ou dor”. (ABBAGNANO, 1998, p.311).
Essa afirmação retrata a emoção sobre olhar da filosofia que afirma ser
emoção qualquer estado, movimento ou condição que provoca no animal ou no
homem a percepção do valor que determinada situação tem para sua vida, suas
necessidades, seus interesses.
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Em razão desses dizeres, fica evidente que o medo é concebido como uma
emoção-choque devido à percepção de perigo presente e urgente no indivíduo,
provocando uma série de efeitos no organismo, tornando-o apto a uma reação de
defesa como fuga. O medo também pode provocar diferentes reações em uma
mesma pessoa: aceleramento ou diminuição dos batimentos cardíacos, respiração
rápida ou lenta, contração o dilatação dos vasos sanguíneos, constipação ou
diarréia, entre outros. Nos casos limites, pode-se resultar numa tempestade de
movimentos desatinados e inadaptados, característico de pânico.
A angústia é também sinônimo do medo, como já foi citada e é vista dentro da
filosofia, como: “Fenômeno afetivo constituído de uma viva inquietação e de temor
sem objeto determinado – ao contrário do medo que se refere a um objeto mais ou
menos preciso – é acompanhado de modificações neuro vegetativas, como
sensações de opressão ou sufocamento, transpiração, problemas digestivos.
(DUROZOI, 1942, p. 28-29).
Em fim, como foi mostrado, é amplo o cenário que resguarda e adjetiva a
história do medo. Em todos os ramos seguidos foi possível perceber que as reações
provocadas por ele são incontroláveis e deixam rastros de prejuízos no que se refere
ao sistema emocional. Ver-se-á no próximo tópico como este é retratado nos contos
de Edgar Allan Poe.
3. A REPRESENTAÇÃO DO MEDO NOS CONTOS O ENTERRO PREMATURO E
O CORAÇÃO DELATOR DE EDGAR ALLAN POE
Antes de adentrar no cenário dos contos de Edgar Allan Poe, é interessante
definir o que é um conto e quais suas características. Massaud Moises diz a respeito
do que é o “conto” na literatura: “É empregado como história, narração, historieta,
fábula, “caso”. (MASSAUD, 1997, p. 15). Este afirma ainda que o conto é do ângulo
dramático, unívoco, univalente e que constitui uma fração dramática a mais
importante e decisiva. É isso e muito mais que se vê nos contos que serão
analisados. A presença do drama, terror e medo são constantes, levando o leitor a
uma angústia e a uma ansiedade extremas, mas incapaz de interromper a leitura.
Ainda, segundo Massaud (1997), o conto é uma forma narrativa, em prosa, de
menor extensão (no sentido estrito de tamanho). São suas características a
concisão, a precisão, a densidade, a unidade de efeito ou impressão total. Apresenta
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somente um núcleo dramático; exigindo tensão constante. São poucas personagens,
a narrativa e tempo são reduzidos. “O conto precisa causar um efeito singular no
leitor; muita excitação e emotividade”. (POE, 1965, p. 27)
De acordo com Nádia Battella Gotlib,
a história do conto [...] pode se esboçar a partir deste critério de invenção, que foi se desenvolvendo. Antes, a criação do conto e sua transmissão oral. Depois, seu registro escrito. E posteriormente, a criação por escrito de contos, quando o narrador assumiu esta função: de contador-criador-escritor de contos, afirmando, então, seu caráter literário. (GOTLIB, 1995, p. 13)
Para Edgar Allan Poe (1965, p. 32), "no conto breve, o autor é capaz de
realizar a plenitude de sua intenção, seja ela qual for. Durante a hora de leitura
atenta, a alma do leitor está sob o controle do escritor. Não há nenhuma influência
externa ou extrínseca que resulte de cansaço ou interrupção”.
Poe mostra-se um homem idealizado, sabe o que quer, o que pretende ao
criar suas obras, por isso, foca assuntos que interessam e que prendem o leitor,
assim ele tem certeza do sucesso de seu trabalho. É um autor que viaja e adentra a
mente humana, este é seu estilo literário. Para o crítico e escritor Júlio Cortázar
Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta (...) o tempo e o espaço do conto têm de estar como que condensados, submetidos a uma alta pressão espiritual e formal para provocar essa abertura”. (CORTÁZAR, 1974, p. 497-498)
É por este e outros motivos que se entende o arranjo e o caráter do artista,
quando ele constrói com todos os cuidados suas obras, focando sempre em algo
novo capaz de manter presa a atenção do leitor.
Assim, são também os contos de Edgar Allan Poe, uma narrativa reduzida,
mas envolvente, que mantém sempre um suspense. Apresenta um número reduzido
de personagens, geralmente, o personagem principal é o próprio narrador. O tempo
e o espaço são limitados.
Entre tantos contos deste grande artista foram escolhidos para análise neste
artigo, O enterro Prematuro e O coração Delator. O primeiro trata-se de um conto de
horror escrito e publicado em julho do ano de 1844, no jornal The Philadelphia Dollar
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Newspaper. O segundo é um conto publicado pela primeira vez pela revista de
Boston The Pionner, em janeiro de 1843.
Em O enterro Prematuro, percebe-se que o medo ao enterro em vida era
muito comum na época e Poe obteve proveito literário disso. Neste conto, o narrador
anônimo descreve em primeira pessoa, o que parece ser um ensaio científico sobre
a catalepsia. Ao meio do texto, ele deixa o estilo de ensaio e passa a narrar com
muita facilidade como se fosse um depoimento pessoal.
Para o autor, interessava sempre as experiências que propunham um limite
entre a consciência e a inconsciência, e o limite que, na vida, oferecia uma visão
perturbadora de algo além dela. O enterro prematuro é algo que atrai, aparecendo
várias vezes em sua obra, com o sentido de criar um obstáculo apavorante ou
desencadear uma surpresa terrível.
Sobre a doença que é relatada e caracterizada no conto – a catalepsia, diz-se
que leva com freqüência à perda de consciência muito similares à morte, o que
conduz o personagem a um terror, um pânico de ser enterrado vivo em algumas
circunstâncias.
Sabemos que há doenças em que ocorre total sensação de todas as aparentes funções da vitalidade, mas, de fato, essas sensações são meras suspensões, propriamente ditas. Não passam de pausas temporárias no incompreensível mecanismo. (POE, 1974, s/p.)
A catalepsia patológica é uma doença rara em que os membros tornam-se
moles, mas não há contrações, embora os músculos apresentem-se mais ou menos
rijos, e quem passa por ela pode ficar horas nesta situação. A catalepsia patológica
ocorre em determinadas doenças nervosas, debilidade mental, histeria, intoxicação
e alcoolismo. No passado, já existiram casos de pessoas que foram enterradas vivas
e, na verdade, estavam passando pela catalepsia patológica.
Ninguém suspeitava, na verdade, nem tinha razão de suspeitar, que ela não estivesse totalmente morta. Apresentava todos os sinais habituais de morte. O rosto tomava o usual contorno cadavérico, os lábios tinham a habitual palidez marmórea, os olhos estavam sem brilho. Não havia calor. (POE, 1974, s/p).
Segundo Nogueira (2010), a catalepsia provoca: a) anestesia: o corpo do
indivíduo permanece inerte, imóvel; b) mudez: o indivíduo fica mudo, sem vontade
de falar; c) surdez: o indivíduo fica surdo a estímulos externos.
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É um distúrbio que impede o doente de se movimentar, apesar de continuarem funcionando os sentidos e as funções vitais (só um pouco desaceleradas). A pessoa fica parecendo uma estátua de cera. Se ela estiver sentada e alguém posicionar seu braço para cima, ela permanecerá assim enquanto durar o surto, afirma o neurocientista Ivan Izquierdo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O ataque cataléptico pode durar de minutos a alguns dias e o que mais aflige quem sofre da doença é ver e ouvir tudo o que acontece em volta, sem poder reagir fisicamente. As causas, porém, ainda são um mistério, apesar de não faltarem hipóteses e especulações. A origem do problema pode ser tanto externa como um traumatismo craniano , quanto congênita má formação em alguma região cerebral, diz o neurologista Vanderlei Cerqueira Lima, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. (NOGUEIRA, 2010, s/p)
A catalepsia pode ocorrer de forma espontânea ou provocada; na forma
espontânea, pode ocorrer fixação contínua do olhar, usando sugestão de peso,
cansaço do corpo e de sono. O fenômeno cataléptico também pode aparecer como
conseqüência de intoxicação ou envenenamento por certos narcóticos.
A mais emocionante particularidade desses incidentes, contudo, consiste no
que o próprio senhor Stapleton, narrador-personagem do conto em análise, afirma
que “em nenhuma ocasião esteve totalmente invisível; que vaga e confusamente
tinha consciência de tudo quanto lhe acontecia, desde o momento em que foi
declarado morto pelos médicos até aquele que desmaiou no assoalho do hospital”.
(POE, 1974, s/p).
A catalepsia não é uma doença. O mecanismo fisiológico dela é mostrado
pelo estado de inibição no analisador motor, cuja função profundamente perturbada,
não permite, a análise dos estímulos que vem dos órgãos. (AKSTEIN, 1960). “Tendo
passado ao seu lado alguns anos infelizes, ele morreu; pelo menos, seu aspecto se
assemelhava tão de perto a morte que enganasse a qualquer que a visse”. (POE,
1974, s/p).
Verifica-se, então, que o narrador-personagem do referido conto diz que
durante vários anos esteve sujeito a ataques da doença, mesmo sem posses de
muitos conhecimentos das causas e do diagnóstico, ele já sentia os sintomas
pertinentes da doença. O infeliz já sofria do medo e do pânico de ser enterrado vivo.
Por muito tempo esteve sujeito a ataques da estranha moléstia que os médicos concordavam chamar catalepsia, na falta de denominação mais definida. Embora tantas causas imediatas e predisponentes como o verdadeiro diagnóstico desta doença ainda sejam misteriosas, seu caráter claro e evidente já está bastante compreendido. Às vezes o paciente faz,
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durante um dia só, ou mesmo durante curto período, uma espécie de exagerada letargia. (POE, 1974, s/p).
Verifica-se que a origem do medo no narrador parte, então, de sua doença.
Ele teme o desconhecido, o que poderá acontecer a ele, caso seja enterrado sob o
transe cataléptico. Por isso, ele tenta armar-se de diferentes artifícios para escapar
do que lhe causa angústia.
Os acessos tornam-se, sucessivamente, cada vez mais distintos, prolongando-se cada um mais do que o anterior. Nisto jaz a principal garantia contra a inumação. O infeliz cujo primeiro ataque for de caráter extremo, como ocasionalmente se vê, estará quase sem remédio condenado a ser enterrado vivo. (POE, 1974, s/p).
O narrador do conto dá sinais de medo, desde os exemplos citados como
reais no começo da obra, é o caso do constante uso de palavras como horror, pavor,
terror, que é definido no dicionário de língua portuguesa, como “susto ou medo, um
grande horror, pânico” e completa dizendo que é aquilo que “receia o temor, aquilo
que inspira horror. (RIOS, 1999, p.417). Neste sentido, é possível relatar que o
narrador sofre de um medo mortal.
No conto em análise, é evidente a presença de morte, caixão e enterro, essas
palavras são de origens assustadoras e lembram algo de destruição, desgosto, ruína
e tudo que lembram morte causa dor e as pessoas sentem medo da dor, medo da
perda, medo da destruição.
O narrador sofria e torturava-se em pensamento, ou seja, tinha medo de ser
enterrado vivo, tinha medo das conseqüências que poderia sofrer após o suposto
enterro. Uma agonia tomava conta de seu ser enquanto imaginava que poderia fazer
parte do mundo dos vermes, das trevas, da terra gelada.
O horrendo perigo a que estava sujeito assombra-me dia e noite. De dia, a tortura da meditação era excessiva; de noite suprema. Quando a disforme escuridão inundava a terra com todo horror do pensamento, eu tremia, tremia como as plumas palpitantes que adornam os carros fúnebres. (POE, 1974, s/p).
Ainda se isso não fosse o bastante, ele deixa visíveis sinais em relação ao
mundo dos espíritos perdidos e perturbados, provocando no leitor, medo do invisível,
do desconhecido, uma vez que este seja leigo na literatura espiritual. Há momentos
no conto que o autor chega a dialogar com seres que não podem ser vistos, veja:
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- Levanta-te! Não te ordenei que te levantasses? - Quem és tu? - Perguntei. - Não tenho nome nas regiões onde habito – respondeu a voz fúnebre. (POE, 1974, s/p).
O narrador do conto em questão sofria tão forte agonia que chegava a
planejar seu próprio caixão, parecendo ter certeza absoluta do seu enterro
prematuro, os detalhes e os recursos usados deixam sinais de uma vigilância
constante acerca do medo.
O caixão estava quente e maciamente acolchoado e provido de uma tampa construída de acordo com o sistema da porta do jazigo, com acréscimo de molas tão engenhosas que o mais fraco movimento do corpo seria suficiente para abri-lo, além de tudo isso havia suspenso do teto do túmulo, um grande sino, cujo a corda como determinei deveria ser enfiada por um buraco do caixão e amarrada há uma das mãos do cadáver. Mas, há! De que vale a vigilância contra o destino do homem? Nem mesmo aquelas tão engenhosas seguranças bastaram para salvar da extrema agonia do ser enterrado vivo, um desgraçado condenado de antemão a essas mesmas agonias! (POE, 1974, s/p).
Finalizando a análise, percebe-se que o narrador sonhou ou teve um
pesadelo em uma noite mal dormida, atribulada e sem conforto, após uma viagem
muito exaustiva e, como em sonhos, a pessoa fica sem coordenar suas faculdades
mentais, precisa primeiro livrar-se de tudo que lhe causa pensamentos horrendos.
Feito isso, sente-se um novo homem, e vive como um homem, como afirma Freud
(1894), é a passagem de um novo estágio da sua vida.
Arranjamos melhor que podemos para passar a noite a bordo. Adormeci em um dos dois beliches duma chalupa de sessenta ou setenta toneladas quase não precisavam ser descritos. Aquele que eu ocupava não tinha colchão de espécie alguma. Sua largura era de dezoito polegadas... fora com excessiva dificuldade que me apertara dentro dele. Apesar de tudo, adormeci profundamente. (POE,1974, s/p).
Portanto, o medo da personagem em relação à morte, ao medo de morrer e
ser sepultado prematuramente serviu para que ele atingisse um novo estágio em
sua vida, agora, mais desprendido, pois ele enfrentou o que lhe causava angústia,
ele foi capaz de reagir e progredir impulsionado pelo medo que sentiu.
Nas obras de Poe, é percebido constantemente a presença de dor, morte,
sangue e policiais. O conto investigado a partir de agora, O coração delator, tratará
diretamente destes suspenses, contemplando também elementos como a noite, o
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terror e alguns objetos que aguçam a imaginação e colocam em dúvida as crenças
culturais de cada leitor.
O conto Coração delator, conhecido também como o Coração revelador, foi
publicado pela primeira vez no jornal literário The Pioneer, em janeiro de 1843. Mais
tarde foi publicado por Edgar Allan Poe em seu jornal The Broadway em sua edição
de 23 de agosto de 1845.
A história apresenta um narrador anônimo obcecado por um olho doente
(“olho de abultre”) de um idoso com o qual convive. Finalmente, decide assassiná-lo.
O crime é estudado cuidadosamente e depois de ser executado o corpo e
despedaçado e escondido debaixo das tábuas do solo da casa. “Chegara a hora do
velho! Com um berro, abri por completo a lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele
deu um grito agudo- um só. Num instante, arrastei-o para o chão e derrubei sobre
ele a cama pesada”. (POE, 1974, s/p).
O conto está escrito em primeira pessoa. O narrador insiste desde o primeiro
momento que é uma pessoa normal, ainda que seus sentidos são muito agudos. O
idoso com quem ele convive tem um olho velado por um filme pálido e azulado como
os olhos do abutre. Isso causa ansiedade, enchendo-o de um medo constante,
levando o narrador a tomar uma atitude para solucionar esse sentimento, sua
angústia é tamanha que um dia decide matá-lo. Faz tanta questão dos cuidados com
o senhor que põe em precisão todos os seus atos, por exemplo o de observar o
idoso dormir por uma rendija da porta.
E fiz isso por sete longas noites,todas as noites à meia-noite em ponto, mas eu sempre encontrava o olho fechado, e então era impossível fazer o trabalho, porque não era o velho que me exasperava, e sim o olho maligno. (POE,1974, s/p.).
Percebe-se que o narrador via o olho azulado do velho, mas o velho não via o
olho deste. E porque ele espiava só a noite? À meia-noite respectivamente? Kury
(2001, p.535) diz que “a meia-noite revela figuras de trevas; causa cegueira,
ignorância, tristeza e sofrimento. Significa noite eterna, a morte”. Isso retrata as
setes noites de agonia e planejamento da morte do velho senhor. Se era o olho que
o incomodava tanto, com certeza, o narrador tinha medo, mas o medo não era de
outra coisa era do olho coberto pelo véu azulado, retratando remorso, repugnância.
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Por isso, o narrador deseja livrar-se não do velho, mas do olho dele, pelo
medo que este desperta em seu ser. Como poderia arrancá-lo do corpo? A única
solução encontrada seria a morte como fim de toda aquela agonia.
Segundo o dicionário de símbolos, “o olho está estreitamente ligado ao
simbolismo da luz, do sol e do espírito. Simboliza a visão espiritual, mas é também –
como espelho da alma – instrumento da expressão psico-espiritual. (...) O olho
simboliza a visão ampla, a onisciência” (LEXIKON, 1978, p. 148). Quando o olho
está inscrito no delta ou triângulo luminoso, cuja origem se encontra na arte católica
barroca, simboliza o Sol visível, fonte de luz e da vida; simboliza igualmente o Verbo,
o princípio criador, a presença omnisciente de Deus, omnisciência da razão superior,
omnisciência do dever e da consciência. Corretamente desenhado, o olho não deve
ser direito e nem esquerdo, mas sim impessoal e abstrato.
Considerando a simbologia que o olho adquire, percebe-se que para o
narrador em análise, o olho refletia a si mesmo, era o “espelho de sua alma”, não
muito boa, por sinal. Por isso, ele tinha medo de olhar o olho do velho, pois este
representa o pior dele, é como se a todo momento o olho o acusasse e o
denunciasse.
O conto não deixa claro qual era a relação de convivência entre a vítima e o
assassino. O idoso pode representar a figura paterna como também o narrador pode
ser o seu mordomo, uma vez que ambos dividiam o mesmo teto e o narrador tinha a
obrigação de cuidar do pobre velho. De qualquer maneira, a relação entre as
personagens é algo secundário; o principal é o empenho na comissão do crime
perfeito.
No conto em análise, é visível o nervosismo e a preocupação exagerada por
parte do narrador. Quando ele está na presença dos policiais e o coração do
suposto defunto começa a bater e bater cada vez mais forte; ele, então começa a
falar muito alto e andando de um lado para o outro impaciente e aquelas batidas,
que só ele ouvia, o incomodava, como o olho o perturbava em vida. A morte do
velho não foi suficiente para a tranqüilidade do assassino. “Falei mais depressa,com
mais intensidade,mas o barulho continuava a crescer.Levantei-me e discute sobre
ninharias,num tom alto e gesticulando com ênfase,mas o barulho continuava a
crescer”. (POE,1974, s/p).
Neste momento, pode-se perceber novamente a presença do medo vivida
pelo personagem, essa inquietação que ele apresenta é o medo que ele tinha dos
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policias ouvir o som que vinha das batidas do coração e descobrir sua façanha,
assim ele seria pego em flagrante. O desespero e a agonia tomam conta dele,
obrigando-o a confessar aos policiais que ele era o mentor e o assassino do senhor
idoso.
Senti que precisava gritar ou morrer! - E agora – de novo – ouça! Mais alto! Mais alto! mais alto! mais alto! - Miseráveis! Berrei- não disfarcem mais!Admito o que fiz! Levantem as pranchas! – Aqui, Aqui! – São as batidas do horrendo coração! (POE,1974,s/p).
Verifica-se também que o medo também não é só o de ser descoberto, mas
de que o velho venha o atormentar novamente, agora, não mais pelo olho, mas
pelas batidas do coração. Daí, coração delator, pois é por suas batidas que ele se
denuncia.
Por fim, entende-se que em cada conto analisado, o medo processou-se de
uma maneira em cada um dos narradores, porém, continua mantendo uma
característica principal que é a de ser inerente a cada ser humano, às vezes para o
seu crescimento, saindo de um estágio de agonia para o de equilíbrio, como ocorre
no conto O enterro prematuro ou pelo lado negativo, provocando um desequilíbrio
emocional, com em O coração delator. Assim, em cada conto estudado percebeu-se
a presença incondicional do medo que horrorizava os narradores, projetando-se aos
leitores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se que Poe, em seus contos, apresenta rastros da vida atribulada
que vivia. Os aspectos assustadores de suas obras têm relações com a solidão que
o acompanhava num mundo sombrio e cheio de incertezas. Suas primeiras obras
surgem através de visões solitárias que ele tinha, retratando a morte, o horror e o
crime.
Quanto às características temáticas do medo, verifica-se, segundo os teóricos
citados no trabalho, que medo vem das emoções sofridas ao se deparar com algo
que ameaça a vida do indivíduo, ocorrendo sensações estranhas que envolvem o
sistema emocional e psicológico do ser humano.
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Para Montalvão (1987), não é diferente, pois ele designa medo como algo que
está ligado ao temor que, para ele, é uma inquietação constante, surgida da idéia de
um mau futuro. Ou seja, aquilo que o autor relata através dos personagens de seus
contos.
Nos contos analisados neste artigo, verificou-se que todas as ações envolvem
um clima de medo, uma das características marcantes das obras de Allan Poe. Em
O enterro prematuro, o medo é focado de forma antecipada, uma vez que o narrador
sofre ao pensar que assim como aquelas pessoas que ele relata no início da obra
sofreram do mal da catalepsia, ele também poderia sofrer. Convive com esse medo
perturbador por muito tempo ao ponto de sonhar, planejar seu caixão e ainda se
sentir dentro dele, mas sem o conforto que ele havia planejado.
Em O coração delator, o medo é visto de maneira mais clara e certeira, pois,
o narrador sente-se incomodado ao ver o olho doente do velho senhor, que faz com
que planeje sua morte com muito cuidado, e nesta execução é visto o medo que o
senhor sentiu ao perceber ruídos na porta do seu quarto e o medo que o narrador
teve quando os policiais chegaram para investigar o crime. Neste momento, a
angústia que ele sofre é tamanha que ele mesmo se entrega, confessando a
tamanha façanha realizada.
Portanto, pode-se afirmar que o medo sempre existiu e está em toda parte,
embora um tanto banalizado pelo avanço tecnológico. Hoje, o medo é visto como
uma questão de diversão e até de adrenalina e, muitas vezes, se faz desmerecer o
negativismo que tudo isso é lançado no comportamento humano.
ABSTRACT: This essay proposes to analyse the fear in the short stories The premature burial and The tell-tale heart written by Edgar Allan Poe, discussing and describing the physiognomies that it acquires in the mentioned short stories. It is perceived that fear goes through an internalization process that can be described, nowadays, from some considerations that characterize it as pathological fear as it occurs in panic disorder. The search for pleasure and the precautions around personal security are modalities that are linked to a contemporary malaise, related to culture traces where we live in. The base for this work comes from the short stories of Edgar Allan Poe, A dinâmica do medo by Alberto Montalvão, philosophy and psychology dictionaries and some fragments of other authors as Adriano Gama Cury, Freud, Nádia Gotlib, and others.
KEY WORDS: Fear, suspense, anguish and death.
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