A Biblia_ Um Diario de Leitura - Horta, Luiz Paulo

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Luiz Paulo Horta

A Bíblia:Um Diário de

Leitura

Ao Grupo da Bíblia

Sumário

Apresentação

1. Quem escreveu a Bíblia?2. Gêneros literários: o

Gênesis3. Teofania4. Eva5. O pecado original6. Abraão

7. A prova8. Jacó, o esperto9. Israel no Egito

10. Moisés e o faraó11. O milagre12. No deserto13. A Lei14. Débora15. Sansão16. O trono e o Templo17. Davi e Golias

18. A Arca em Jerusalém19. A queda20. Absalão, Absalão…21. Salmos: luz e sombra22. Salomão23. Erotismo na Bíblia24. Profetas25. O maior de todos26. O segundo Isaías27. Sabedoria tranquila: o

Eclesiástico

28. Jó29. O precursor30. Maria31. O Cristo32. Sentimentos33. Reflexões34. O processo35. A Paixão36. Ressurreição37. Pentecostes

Referências bibliográficas

Sobre o autor

Apresentação

Este livro surgiu a partir de um grupode leitura da Bíblia que se reunia emBotafogo, Rio de Janeiro, em meadosdos anos 1990. Éramos vinte, trintapessoas, e nos encontrávamos àssegundas-feiras para ler e discutir, sempressa, um capítulo depois do outro,essa pequena biblioteca que se chama aBíblia. E assim descobrimos avitalidade inesgotável deste que é olivro-texto da civilização ocidental.Descobrimos, sobretudo, que estávamosdiante de uma coisa viva que, a partir de

certo ponto, começa a dialogar comvocê, a desafiar você.

É essa coisa viva, e esse longodiálogo, que se tentou reproduzir naspáginas seguintes. A intenção eramostrar o maravilhoso contraponto queexiste entre o Antigo e o NovoTestamento; o modo como um remeteconstantemente ao outro. Nenhumapretensão, aqui, de apresentar umacristologia consistente – o que fugiria àsdimensões do livro e à capacidade doautor. Mas nos pareceu que chegar aoCristo depois de uma viagem peloAntigo Testamento joga uma luz novasobre a figura central dessa história.

Para o leitor comum, a Bíblia, a umaprimeira abordagem, pode ser difícil.

Uma “leitura dinâmica” como aqui sepropõe talvez diminua essa dificuldade;e, nesse vol d’oiseau, fica mais fácilenxergar a unidade do conjunto. Issotambém torna (esperamos) futurasleituras mais enriquecedoras.

NaBíbliasentimos

1. Quem escreveua Bíblia?

A Bíblia não foi escrita por um anjo –ao contrário, por exemplo, do Alcorão,livro sagrado dos muçulmanos, queacreditam ter sido ditado ao profetaMaomé pelo arcanjo Gabriel (o mesmoque aparece na tradição cristã).

Na Bíblia, que é olivro sagrado dos judeuse dos cristãos (comdiferenças de texto,óbvio), sentimos a todo

apresençadoredatorhumano,que sesentoupararelatarumahistóriaque elesabia

momento a presença doredator humano – doescriba, humilde ouelevado, que se sentou,uma pena na mão, pararelatar uma história queele sabia não ser parecidacom nenhuma outra.

São Paulo estápresente em suasEpístolas; são João, noEvangelho que eleescreveu. Pensando noque os cristãos chamamde Antigo Testamento,temos livros históricoscomo os de Esdras eNeemias – que eles

não serparecidacomnenhumaoutra.

Onarradorbíblicoestá láe, derepente,

redigiram; podemosimaginar os escribas deDavi narrando ashistórias do grande rei;podemos facilmenteimaginar (mesmo semconhecer o seu nome) afigura do sábio judeu queescreveu o Eclesiástico.

Muitas e muitas vezessentimos essa presençahumana – o suor que éconsequência do esforço;a tensão de um redatorque está escrevendo algoinusitado.

Mas o que é que faz aBíblia ser o que ela é? O

é comose ochãolhefugissedebaixodos pése elecomeçassea voar.

fato de, tanto quanto essapresença humana,sentirmos a manifestação,aqui e ali, de um soproque é o que, à falta demelhor termo, chamamosde inspiração(etimologicamente, “aentrada do ar nospulmões”). O narradorbíblico está lá – uns commais talento que outros –cumprindo a sua vocação;e, de repente, é como se ochão lhe fugisse debaixo

dos pés e ele começasse a voar.Um bom exemplo disso se encontra

no começo do Evangelho de são Lucas –

um Evangelho mais pesquisado, maistrabalhado que os de seus antecessores,Marcos e Mateus. Lucas foi buscar osantecedentes da história de Jesus; e,assim, começa contando o nascimento deJoão Batista, o precursor.

O pai de João Batista, Zacarias, erasacerdote no Templo – e chega o dia emque, numa escala de revezamentos, lhecabe oferecer o sacrifício no altar dosperfumes.

Zacarias entra no santuário paraoferecer o perfume, enquanto o povoaguarda lá fora (só os sacerdotesentravam no âmago do Templo). E éentão que um anjo aparece, à direita doaltar, e lhe faz revelaçõesextraordinárias. Embora ele fosse velho,

NaqueleIsraelqueantecedeo inícioda eracristã,o céuestava

como sua mulher, Isabel, um menino lhesnascerá, que será “grande diante doSenhor” e que “desde o ventre de suamãe será cheio do Espírito Santo”.Muitas outras coisas diz o anjo.

Era demais paraZacarias. Naquele Israelque antecedeimediatamente o início daera cristã, o céu estavasilencioso há séculos,desde que se calara a vozdo último profeta.Esperando o Messiasprometido, Israelprocurava manter-se fiel,na medida do possível, àsprescrições da Lei

silenciosoháséculos,desdeque secalara avoz doúltimoprofeta.

mosaica, enquanto ialevando a vida debaixodo jugo pesado dosromanos.

Zacarias duvida.“Como posso ter certezadisso? Pois sou velho, eminha mulher é de idadeavançada.” O anjoresponde: “Eu souGabriel, que assistodiante de Deus, e fuienviado para te trazeresta notícia. Eis queficarás mudo e não poderás falar até odia em que essas coisas acontecerem,visto que não deste crédito às minhaspalavras, que se hão de cumprir a seu

tempo.”Zacarias fica mudo, e a narração

prossegue, passando agora para aAnunciação do anjo à Virgem Maria.Maria engravida; mas Isabelengravidara antes – de Zacarias, contratoda probabilidade.

João Batista, portanto, é algunsmeses mais velho que o Menino Jesus.Quando ele nasce (Zacarias continuamudo), a família marca a circuncisãosegundo a tradição judaica, e todosquerem que ele se chame Zacarias, emhomenagem ao pai. Mas o pai faz sinalque não, pede uma tabuinha e escreve,de acordo com o que lhe dissera o anjo:“João é o seu nome.” Espanto geral; e,imediatamente, desata-se a língua de

Zacarias. Ele irrompe num cântico quetraz essa marca da inspiração na Bíblia.Diz o Zacarias libertado da mudez:

“Bendito seja o Senhor, Deus deIsrael, porque visitou e resgatou o seupovo, e suscitou-nos um poderosoSalvador, na casa de Davi, seu servo –como havia anunciado, desde osprimeiros tempos, mediante os seussantos profetas –, para nos livrar dosnossos inimigos e das mãos de todos osque nos odeiam. Assim exerce a suamisericórdia com os nossos pais, e serecorda de sua santa aliança, segundo ojuramento que fez a nosso pai Abraão:de nos conceder que, sem temor,libertados de mãos inimigas, possamosservi-lo em santidade e justiça, em sua

presença, todos os dias da nossa vida.“E tu, menino, serás chamado

profeta do Altíssimo, porque precederáso Senhor e lhe prepararás o caminho,para dar a seu povo conhecer asalvação, pelo perdão dos pecados,graças à ternura e misericórdia do nossoDeus, que nos vai trazer do alto a visitado sol nascente, que há de iluminar osque jazem nas trevas e na sombra damorte e dirigir os nossos passos nocaminho da paz.”

Jorro de inspiração que é uma dasmarcas registradas da Bíblia e quedificilmente se poderia atribuir aotalento literário ou ao simples gêniopoético.

É muito diferente você ler um

Shakespeare, por exemplo, ou umTolstoi, sabendo, pelo texto, que estáconversando com um gênio. Na Bíblia, ogênero narrativo pode seguir o seu ritmotranquilo, às vezes quase prosaico, até omomento em que sentimos que o tommudou e que alguma coisa misteriosaestá por trás das palavras.

Nesse mesmo comecinho de sãoLucas, é o que acontece com a VirgemMaria quando ela visita sua primaIsabel. Ao encontrarem-se as duas(ambas grávidas), diz o texto que,“apenas Isabel ouviu a saudação deMaria, a criança estremeceu no seuventre; e Isabel ficou cheia do EspíritoSanto”. Ela se dirige à prima com aspalavras que encontrariam lugar na Ave-

Maria: “Bendita és tu entre as mulherese bendito é o fruto do teu ventre.”Respondendo, Maria se lança aoverdadeiro hino que é o “Magnificat”,contraponto do “hino” de Zacarias:“Minha alma engrandece ao Senhor, meuespírito exulta em Deus, meu Salvador,porque olhou para a humildade da suaserva; de ora em diante, todas asgerações me chamarão de bem-aventurada.”

Nos Evangelhos, essa presença dainspiração é constante, porque ela semanifesta a cada palavra do Cristo –palavras que quebram, por exemplo, otom quase relatorial de um são Mateus.Mas no Antigo Testamento dos cristãos(que é a Bíblia judaica), está lá a mesma

O

presença, de maneira muito forte, nosescritos proféticos.

Estes servem de exemplo perfeitopara a questão da inspiração. Porque oprofeta, por definição, é alguém que é“convocado” para passar uma mensagemespecífica num tempo específico –normalmente, momentos de grandeangústia da vida de Israel.

O profeta não é exatamente aqueleque prediz o futuro, segundo a convicçãocorrente, e sim o porta-voz de umamensagem urgente. Para cumprir essafunção, ele é como que “apanhado nolaço”. “O leão ruge… O Senhor Javéfala. Quem não profetizará?”, diz Amós.

Há casos em que essaconvocação é dramática –

profetanão éexatamenteaquelequepredizofuturo,e sim oporta-voz deumamensagem

a de Moisés, porexemplo, o primeiro e omaior de todos osprofetas. Chamado aliderar a saída do povojudeu do Egito, ele tentade todas as maneirasesquivar-se daincumbência,argumentando, porexemplo, que é gago, quenão sabe falar. Tudo emvão: é ele o escolhido.

Ainda mais dramáticaé a história de Jeremias,porque aquele era omomento mais escuro dahistória de Israel, com os

urgente.babilônios chegando paradestruir o Templo e levaro povo para o exílio. OLivro de Jeremias abre com um toque declarim:

“Palavras de Jeremias, filho deHelcias, um dos sacerdotes que viviamem Anatot, na terra de Benjamim.

“A palavra do Senhor foi-lhedirigida no tempo de Josias, filho deAmon, rei de Judá, no décimo terceiroano do seu reinado. Foi-lhe aindadirigida no tempo de Joaquim, filho deJosias, rei de Judá, até o fim do décimoprimeiro ano do reinado de Sedecias,filho de Josias, rei de Judá, até adeportação dos habitantes de Jerusalém,no quinto mês.” (Tudo isso para marcar

exatamente as circunstâncias dochamado – que não foi o delírio de umsonhador, ou de um visionário; bem queele queria escapar ao seu destino.)

E começa o texto principal:“Foi-me dirigida nestes termos a

palavra do Senhor: ‘Antes que no seiofosses formado, eu já te conhecia; antesde teu nascimento, eu já te haviaconsagrado, e te havia designado profetadas nações.’

“E eu respondi: ‘Ah, Senhor Javé, eunem sei falar, pois que sou apenas umacriança.’

“Replicou, porém, o Senhor: ‘Nãodigas: sou apenas uma criança;porquanto irás procurar todos aquelesaos quais te enviar, e a eles dirás o que

E assimJeremiasvai atéo seufimobscuro,provavelmentetrágico.Mas,nessaescuridão,

eu te ordenar. Não deverás temê-los,porque estarei contigo para livrar-te –oráculo do Senhor.’”

E, daí em diante,seguimos as peripécias deJeremias – talvez o livromais patético da Bíblia,porque ele é um homemcomum, e não uma grandepersonalidade comoMoisés, e deve dizer oque não gostaria de dizera um povo que queriaouvir coisas totalmentediferentes; e assim ele vaiaté o seu fim obscuro,provavelmente trágico.Mas, nessa escuridão, há

há apromessadaaurora.

a promessa da aurora –uma voz tão forte queajudou Israel a atravessaro seu tempo maissombrio.

2. Gênerosliterários: oGênesis

Poucas coisas são tão importantes, naBíblia, quanto a distinção entre osgêneros literários – os diferentes estilosem que os seus vários capítulos foramescritos. Nessa vasta coleção de textos,há os que pertencem ao gênero histórico– o Livro dos Reis, o Livro de Esdras, ode Neemias, o dos Macabeus; há oslivros de sabedoria – Provérbios,

Jáhouvequemperdessea fé

Eclesiástico; os que são verdadeirospoemas – Jó, o Cântico dos Cânticos, acoleção de Salmos; os LivrosProféticos; os que pretendem contarhistórias edificantes – Ruth, Tobias.

E há o caso muito especial doGênesis – logo o primeiro livro dasérie, atribuído a Moisés, e talvez o quemaiores dificuldades coloque ao leitormoderno.

Já houve quemperdesse a fé porque nãoconseguiu estabelecer arelação entre a história deAdão e Eva e ascontínuas descobertas daciência relacionadas como homem primitivo. Nos

porquenãoconseguiuestabelecerarelaçãoentre ahistóriadeAdão eEva easdescobertas

Estados Unidos,recentemente, chegaram aocorrer conflitos deopinião entre osdefensores da tese“criacionista” – o mundocomeçando num momentodado, a partir do fiatdivino – e a teoria daevolução.

É um choque que nãodeveria existir. A Igrejacatólica, por exemplo, hámuito tempo deixou dediscutir com a ciênciasobre os primórdios dogênero humano. Vocêpode acreditar no fiat, ou

daciência.

pode achar que osprimeiros homens foramsurgindo aos poucos, dedentro da cadeia

evolutiva – contanto que você admitaque, num determinado momento dessacadeia, a ação divina introduziu um“princípio”, um fato novo, que não podeser explicado pelo simplesencadeamento de fenômenos naturais.

A confusão vem de se querer tomaros primeiros capítulos da Bíblia comose fossem uma reportagem sobre ocomeço do mundo, o que eles não são –assim como o Apocalipse não pareceuma narração “realista” sobre o finaldos tempos (e é significativo que, naBíblia, tanto o começo como o fim

estejam envolvidos nesse halo demistério).

Voltando ao Gênesis: aquelasnarrativas de abertura compõem o quese pode chamar de uma história sagrada– tão ou mais verdadeira do que a“outra” história, mas narrada num tomabsolutamente peculiar. Esse tom separece com o das cosmogonias –histórias da criação – vindas de outrasculturas. Estamos pisando, ao menos emparte, no território do mito.

Essa palavra talvez sugira, para oleitor moderno, o mesmo que umainvenção, uma ficção, uma lenda. Assimela foi encarada ao longo de todo oséculo XIX, quando uma escola deestudos bíblicos procurou separar, nas

AsnarrativasdoGênesiscompõemo quese podechamar

Escrituras, o que, ali, seria a verdadereligiosa da simples imaginação depovos primitivos. Foi o que se chamoude “desmitologização” da Bíblia, e queculminou, mais recentemente, na exegesealemã de Rudolf Bultman.

Mas, no século XX,surgiram outros caminhos,a partir do trabalho deestudiosos como MirceaEliade, que devolveu aomito o seu sentidooriginal. Explica Eliade( e m O sagrado e oprofano): “O mito contauma história sagrada –isto é, um acontecimentoprimordial que teve lugar

de umahistóriasagrada.Estamospisando,aomenosemparte,noterritóriodomito.

no começo do Tempo.Mas contar uma históriasagrada equivale arevelar um mistério.Narrar um mito éproclamar o que sepassou ‘nas origens’. E,uma vez revelado, o mitoestabelece uma verdadeabsoluta. ‘É assim porquefoi dito que é assim’,dizem os esquimósNetsalik para defender osfundamentos da suahistória sagrada e dassuas tradiçõesreligiosas.”

De novo Eliade: “O

Contarumahistóriasagradaequivalearevelarummistério.

mito proclama a apariçãode uma nova situaçãocósmica, ou de umacontecimentoprimordial. É, assim, anarrativa de uma criação:ele conta como algumacoisa começou a ser. Eisporque o mito é solidárioda ontologia (a ciência doser): ele só fala derealidades, daquilo queaconteceu realmente (masnum plano superior de

realidade que acaba introduzindo umestilo diferente de narração).”

Ainda Eliade: “O mito revela asacralidade absoluta, porque ele

descreve a atividade criadora dosdeuses. Em outras palavras, o mitoenumera as diversas e às vezesdramáticas irrupções do sagrado nomundo. Por essa razão, em muitos cultosprimitivos os mitos não podem serrecitados em qualquer época ou emqualquer situação, mas somente nasestações ritualmente propícias ou nosintervalos de cerimônias religiosas.”

É a irrupção do sagrado no mundo,descrita pelo mito, que funda realmenteo mundo. E é por isso que o mito,descortinando esse impulso de energiacriadora, torna-se o modelo exemplar detodas as atividades humanas.

É esse mistério original que constituia “história sagrada” e que foge aos

condicionamentos do pensamentoracional, ou científico (na verdade, elenão cabe nessas formas tradicionais denarrativa). Parece um terreno totalmenteestranho à mentalidade moderna – que,de fato, fez todo o esforço para pensar“racionalmente”, “objetivamente”.

Mas esse esforço nunca foitotalmente coroado de êxito. Amodalidade do mito ficou escondida nosdesvãos da nossa consciência; e não foipor acaso que Freud (para não falar emJung) jogou sondas nessa direção –mesmo acreditando, como homemnascido no miolo do século XIX, queestava apenas contribuindo para oavanço da ciência.

É só recuar um pouco na nossa

O mito,descortinandoesseimpulsodeenergiacriadora,torna-se omodeloexemplardetodas

história pessoal: se vocêteve um avô, ou um tio,contador de históriasinfantis, jamais as teráesquecido. E por quê?Não será porque elasfalavam ao coração, àimaginação, passando porcima (ou por baixo) dasbarreiras da lógica? E,nessa liberdade, quantacoisa elas diziam! Talveznão precisemos chegaraos irmãos Grimm, queachavam serem os contosde fadas resíduos develhos mitos, mas ométodo é parecido.

asatividadeshumanas.

Se vocêteve umavô,contadordehistóriasinfantis,jamaisas teráesquecido.E porquê?Não

Acriaturalógica queestá em nósquereriamais. Masnão é esse o processo daRevelação primordial.Ela não caminha pordemonstrações; mostrapor partes, e às vezesmais esconde do quemostra. Por exemplo, nasvelhas escrituras (e nãosó cristãs), aimpossibilidade de olharpara o rosto de Deus.Moisés vê o Altíssimo

seráporqueelasfalavamaocoração?

“pelas costas”. Quemolhar de frente, morre (naGrécia antiga, esse é opadrão de várias históriassobre Júpiter, como alenda de Sêmele). Seriamais verdade/realidadedo que o ser humano podesuportar. Pensem noCristo, na facilidade com

que ele desliza para a parábola – a dosede verdade/realidade que uma pessoacomum pode assimilar.

Quando você abandona os mitos“originais”, acaba desembocando nosmitos de substituição, de que a históriamoderna está repleta. Querendo ser aapoteose da razão, a Revolução

Francesa apelou para mitos – decurtíssima duração. Mitos do séculoXIX foram a Ciência, o Progresso, aEvolução. Não é que não exista algumacoisa por trás dessas palavras; mas elasforam infladas na tentativa de criar umavisão de mundo que estava faltando.

O caso mais recente, e maisimpressionante, é o do marxismo:sempre afirmando estar fazendo ciência(o “socialismo científico”), Marx lançouas bases para o que seria o mais famoso“mito de substituição” dos temposmodernos. A visão marxista postulavaum agente messiânico – a classeoperária; um “final dos tempos” (asociedade sem classes) e um novoparaíso terrestre, em que

desapareceriam os conflitos e atémesmo a necessidade de Estado.

Que essa visão messiânica tenha,durante tanto tempo, fascinado amplasparcelas da mentalidade moderna é umademonstração expressiva de que apossibilidade e a própria necessidadedo mito continuam embutidas em nossomundo interior.

3. Teofania

Já se inventaram muitas explicaçõespara a origem das religiões. Uma dasmais comuns é a de que o homemprimitivo criava deuses para compensaro seu temor (ou terror) diante dosfenômenos naturais. Explicação bempobre: o “homem primitivo” tinha, danatureza, um conhecimento e umentendimento muito maiores que onosso. E se podia levar um susto comum raio (quem não leva?), no mais dasvezes estava pronto para admirar umUniverso físico ainda intato – como se

Aorigemdasreligiõesvem do

pode ver estudando a saga dos índiosnorte-americanos, penetrada de poesia ereligiosidade, ou assistindo a um filmecomo Dersu Uzala, de Akira Kurosawa.A origem das religiões é bem outra: vemdo desejo do “outro lado” decomunicar-se conosco, através deepisódios presentes em todos os tempose culturas. É o que os entendidoschamam de “teofania” – a manifestaçãodivina.

Um bom exemplodisso, na Bíblia, vemlogo no começo doÊxodo, onde se conta ahistória de Moisés.Hebreu educado na cortedo faraó, depois de ter

desejodo“outrolado”decomunicar-seconosco.É amanifestaçãodivina.

sido milagrosamente“salvo das águas”, elesurpreende um egípciomaltratando cruelmenteum escravo hebreu.Furioso, Moisés mata oegípcio. Em consequênciadisso, deve fugir para odeserto, onde acaba secasando com a filha deum misterioso sacerdote(Jetro, patriarca dosdrusos).

Um dia, ele estáapascentando o rebanhode Jetro e, tomando

distância, chega perto do monte que elenão sabia ser um lugar sagrado.

“O anjo do Senhor apareceu-lhenuma chama que saía do meio de umasarça. Moisés olhava: a sarça ardia, masnão se consumia. ‘Vou me aproximar’,disse ele consigo, ‘para contemplar esseespetáculo e saber por que a sarça nãose consome.’”

É então que o Senhor lhe dirige apalavra de dentro da sarça. “Moisés,Moisés…” “Eis-me aqui”, ele responde.E Deus: “Não te aproximes. Tira assandálias dos teus pés, porque o lugarem que te encontras é uma terra santa.”E continua: “Eu sou o Deus de teu pai, oDeus de Abraão, o Deus de Isaac, oDeus de Jacó. … Vi a aflição do meupovo, que está no Egito, … E desci paralibertá-lo e fazê-lo subir do Egito para

uma terra fértil que mana leite e mel, láonde habitam os cananeus, os amorreus,os ferezeus, os jebuseus. … Vai, eu teenvio ao faraó, para tirar do Egito osisraelitas.”

Pânico de Moisés: “Quem sou eupara ir ter com o faraó e tirar do Egitoos israelitas?” Deus responde: “Euestarei contigo, e eis aqui um sinal deque sou eu que te envio: quando tiverestirado o povo do Egito, servireis a Deussobre esta montanha” (o futuro Sinai).

Moisés diz a Deus: “Quando eu forpara junto dos israelitas e lhes disserque o Deus de seus pais me enviou aeles, que lhes responderei se meperguntarem qual é o seu nome?” Deusresponde a Moisés: “Eu sou aquele que

sou. Eis como responderás aosisraelitas: (Aquele que se chama) EuSou envia-me para junto de vós.” Eacrescenta: “É Javé, o Deus de vossospais, o Deus de Abraão, de Isaac e deJacó, quem me envia para junto de vós.Este é o meu nome para sempre, e éassim que me chamarão de geração emgeração.”

Conversa fundadora de toda ahistória de Israel – essa história únicanos anais da civilização ocidental. Apartir da primeira resposta de Deus,houve quem interpretasse essa histórianum sentido “aristotélico”, traduzindo afala de Deus como “Eu sou aquele queÉ”. Seria uma afirmação “ontológica”,na linha da filosofia do Ser.

ABíblia éumlonguíssimodiálogo,umlivro

Mas é mais comum interpretar queDeus quis apenas fugir da atribuição deum nome que, em comunidades antigas,servia para tornar esse deus maleável apedidos e sacrifícios. Saber o nome deum deus, para esses povos, era começara manipulá-lo.

No entanto, o Deus daBíblia não se presta amanipulações, comoIsrael aprenderia umpouco depois, à custa demuito sofrimento. Emcompensação, ele é oDeus do diálogo, queconversa com ospatriarcas – com Moisés,com Abraão, mais tarde

vivo, enão umcompêndiodefilosofia.

com os profetas. Etambém nisso Israel éúnico; e este talvez seja overdadeiro segredo daBíblia, a fonte da suaforça e do seu fascínio: aBíblia é um longuíssimodiálogo, um livro vivo, enão um compêndio de filosofia.

4. Eva

Os primeiros capítulos do Gênesis,que tratam da criação do mundo e daaparição dos seres humanos, estãomergulhados na atmosfera do mito.Assim aconteceu, também, com as outrascivilizações (inclusive na velha Grécia)quando quiseram decifrar o mistério dasorigens. O mito é o tom apropriado paraesses relatos. E essas histórias dormemlá no fundo do nosso inconsciente (o queJung chamou de “inconscientecoletivo”).

O homem moderno, racionalista e

ABíbliacomeçacom

cientificista, pode fingir que acha graçanesses relatos coloridos; mas são coisasque mexem com a gente – como sepudéssemos programar um retorno aoventre de nossa mãe.

A Bíblia começa com históriasmajestosas e belas – a progressivaaparição dos seres, a descrição doparaíso (outra saudade que dorme nofundo de nós mesmos: a intuição de umestado de inocência, do que seria afelicidade sem limites).

Até que aparece aserpente – e uma sombrase estende sobre o mundovisível. Porque a serpente(seja ela, ou não, simplesrepresentação do

históriasmajestosase belas,até queapareceaserpentee umasombraseestendesobre omundo

demônio) encarna oprincípio da negação, aquebra da harmoniaoriginal.

Curioso que ela váprocurar a mulher e não ohomem. A Eva elapergunta: “É verdade queDeus vos proibiu comerdo fruto de toda árvore dojardim?” A mulherresponde: “Podemoscomer do fruto dasárvores do jardim; masnão podemos tocar nofruto da árvore que estáno meio do jardim,porque então

visível.morreremos.” “Não”, diza serpente, “nãomorrereis. Deus sabe que,no dia em que dele comerdes, vossosolhos se abrirão, e sereis como deuses,conhecedores do bem e do mal.”

Era verdade; era a perda dainocência. Todo pai, ou mãe, gosta deestabelecer limites para as experiênciasdo filho. Com a idade, sabemos quealgumas dessas experiências nãocompensam; trazem amargura, desgaste,e em alguns casos podem até ser fatais.Mas o filho sente o chamado datransgressão, do “ir além dos limites”.

É o que a cena bíblica retrata comperfeita eficiência. “A mulher, vendoque o fruto da árvore era bom para

comer, de agradável aspecto e muiapropriado para abrir a inteligência[aqui, Eva já está se louvando do quedisse a serpente], tomou dele, comeu e oapresentou a seu marido, que comeuigualmente.” Logo adiante, o Senhorperguntará à mulher: “Por que fizesteisso?” E ela responde: “A serpente meenganou.” Seguem-se as palavrasseveríssimas de Deus, que amaldiçoa aserpente e diz: “Porei ódio entre ti e amulher, entre a tua descendência e adela. Ela te ferirá a cabeça, e tu lheferirás o calcanhar.” Imagem que pareceremeter ao Apocalipse, o último livroda Bíblia, e que já faz sonhar com aVirgem Maria. Mas sobram tristezaspara a mulher: “Darás à luz com dores,

Assim,oprimeirocasal

teus desejos te impelirão para o teumarido e estarás sob o seu domínio.” Epara o homem: “Comerás o teu pão como suor do teu rosto, até que voltes à terrade onde foste tirado; porque és pó, e empó te hás de tornar.”

Para não deixar dúvidas sobre agravidade do que tinha acontecido, oSenhor “colocou a leste do Édenquerubins armados de uma espadaflamejante, para guardar o caminho daárvore da vida”.

E assim o primeirocasal vai abalar-se pelasestradas da vida, numahistória que, em mais deum sentido, se prolongaaté hoje, à medida que

vaiabalar-se pelasestradasda vida,numahistóriaque seprolongaatéhoje, àmedidaque

tentamos, por todos osmeios, recuperar aqueleparaíso que ficou perdidona distância.

Dos dois, talvez sejaEva a que provoca emnós uma carga maior deafetividade – tenha elaexistido ou seja simplesveículo para uma históriaimortal. Tanto por sermulher – a mãe de todosos homens! – quantoporque é ela (escolhidapela serpente) que põe emmarcha osacontecimentos, quemodifica a paz

tentamosrecuperaroparaísoperdido.

sobrenatural do paraíso.Na verdade, ela se

deixa levar. Isso é tãomais fácil do que dizer:não! Não conhecemos, atéhoje, esse declive?Deixar correr o fio davida, com os seusatrativos, o senso da aventura, o gostodo perigo…

Em sentido contrário, não parecemmonótonos aqueles que, a todo momento,invocam uma noção deresponsabilidade, de ter de fazer isto ouaquilo?

A mulher, na Bíblia, é personagemprincipal em cenas maravilhosas. Dizerque ela aparece sempre como inferior é

fazer uma leitura grosseira do textobíblico. Mas será despropositada a cenado Gênesis, ao menos como recursoliterário? A sedução da mulher nãodepende, muitas vezes, da atitude que osfranceses chamam de insouciance, umadespreocupação que beira a frivolidade,uma conduta mais emotiva, maisimpulsiva, que a do homem?

Sim, esses papéis podem se inverter.No correr da vida, não é a mulher que,tantas vezes, assume a chefia da casa, osenso da realidade, enquanto o homemborboleteia?

É o que o próprio Evangelho mostra.Mas isso não será próprio da mulhermadura? Da mulher jovem será que nãofaz parte essa carga de insouciance, de

amor ao risco, à aventura? Não foiassim que Henry James, grandeconhecedor da psicologia feminina,pintou a sua maravilhosa Isabel Archerd o Portrait of a Lady? Não é o queacontece, em Guerra e paz, com aextraordinária Natasha?

No tempo da Bíblia, com seu viéspatriarcal, a mulher se prestava mais àconstrução dessa imagem. Mas, homemou mulher, esta é uma eterna matriz daexperiência humana, e por isso a cena étão pungente, tão profunda.

Assim é que nós somos na vida(lembra-se da sua juventude?). Um ladode você raciocina: por que ficar comtantos pensamentos e com tantaprudência? Vamos ao risco, à aventura!

E se apuraaventuraé umaeternatentação,talvez

Não é isso espetacularmente “de hoje”?Mas um outro lado diz: não, isso que

está aí não existe só para o prazerinconsequente. É o lado que pensa, quereflete, que constrói. É o lado que écapaz de altruísmo, de dedicação, deabnegação.

E se a pura aventura,numa linha nietzschiana, éuma eterna tentação,talvez se possa mostrar,com algum esforço, que a“outra vida” é maisconsistente e maisverdadeira. Porque é elaque permite odesenvolvimento daconsciência mais ampla.

sepossamostrarque a“outravida” émaisconsistentee maisverdadeira.

E no fundo dessaconsciência dorme omistério divino.

5. O pecadooriginal

Deixando o território da linguagemmítica, a teologia moderna se debruçasobre o que é, ou pode ter sido, opecado original. Uma das melhoresinterpretações é a do padre FrançoisVarillon, ilustre jesuíta francês falecidohá duas décadas, que passo a historiarpoupando o leitor de muitas aspas.

Por que falar do pecado original?Jesus nunca disse uma palavra sobreisso, e o Evangelho também não trata

Por quefalar dopecadooriginal?Jesusnuncadisse

disso, pelo menos diretamente.As referências estão em são Paulo –

por exemplo, na Epístola aos Romanos:“… por um só homem entrou o pecadono mundo, e pelo pecado a morte; eassim a morte passou a todo o gênerohumano, porque todos pecamos…”

E mais adiante: “…como pelo pecado de umsó a condenação seestendeu a todos oshomens, assim por umúnico ato de justiçarecebem todos os homensa justificação que dá avida.”

São Paulo foi oprimeiro teólogo – o

umapalavrasobreisso, eoEvangelhotambémnãotratadisso,pelomenosdiretamente.

maior de todos. Mas eletambém pode estarrecorrendo, aqui, àlinguagem mítica, queparece a mais apropriadapara a narrativa dasorigens. Com issoconcorda um importanteteólogo moderno, KarlRahner, quando diz: “Ahistória bíblica sobre opecado da primeirapessoa, ou das primeiraspessoas, de modo algumdeve ser entendida comoum relato histórico.”

Adverte o padreVarillon: houve

pensadores do século XIX que quiseramexplicar o cristianismo a partir dopecado original, como se a Queda deque fala o Gênesis fosse a pedra detoque sobre a qual se ergueu ocristianismo.

Ele comenta: então, pode-se atéformar uma ideia meio caricata daestrutura do Universo. Deus, o supremoeletricista, tinha fabricado o mundo comuma fiação que funcionavaperfeitamente. O ser humano tratou deembaralhar essa fiação. Daí a decisãodo supremo eletricista de enviar o seufilho para consertar os erros, de modoque tudo passou a andar melhor que noplano primitivo.

Essa é a visão com a qual o padre

Varillon definitivamente não concorda.É preciso – diz ele – abandonar a ideia,ou melhor, a mitologia de um tempo emque o primeiro homem teria vivido,antes de ter pecado, num estado debeatitude e de perfeição. Não há nenhumdogma que imponha essa interpretação.

Vale a pena lembrar que o gêneroliterário dos começos do Gênesis é ogênero sapiencial, em que se exprimema reflexão e a experiência de um sábio.Em Gênesis 2/3, estamos diante não deuma narrativa histórica, como a epopeiade Davi ou de Salomão, mas de umescrito de sabedoria, cuja ponta é aresolução de um enigma, o maior enigmada condição humana.

O que o autor desses capítulos quis

Éprecisoabandonara ideiade queoprimeirohomemteriavividonumestadode

Amaiorparte

nos mostrar é, antes detudo, a situação dohomem, o do século XXou de qualquer outrotempo, em relação a Deuse em relação ao pecado.Etimologicamente, otermo hebreu “adama”significa a terra, o solo, aargila vermelha. “Adam”é o terroso, o argiloso,aquele que vem da terra.

Prossegue Varillon:“Com o

risco deespantarvocês, euafirmo, não

beatitudee deperfeição.

dosteólogoscontemporâneosadmitequeAdão éahumanidadeinteira.

comoopiniãopessoal,mas emnome daIgreja: se a

Igreja diz que a causa dopecado é Adão, ela nuncadefiniu quem é Adão. Amaior parte dos teólogoscontemporâneos admiteque Adão é a humanidadeinteira. E, emconsequência, a históriade Adão, que nos foi contada, é tambéma nossa história: o pecado de Adão é onosso pecado.”

“É verdade”, ele prossegue, “que

essa história nos diz que Adão foicriado num estado de santidade e dejustiça. Seria preciso, a partir daí,concebê-lo como um homem de umainteligência e de uma liberdadeperfeitas, uma espécie de super-homemem relação aos homens que nósconhecemos? Isso não corresponde àdescrição que a ciência nos dá dosprimeiros homens emergindo lentamenteda animalidade.”

O que a Bíblia nos apresenta é o fimpara o qual Deus encaminhou o homem:a sua divinização. A perfeição doprimeiro homem está em que ele não écomo os outros seres da natureza,animais ou vegetais, mas é chamado porDeus, desde o início, a uma finalidade

Aperfeiçãodohomemé aperfeiçãode umavocaçãoe nãode umasituação.

propriamente divina: um apelo paraentrar no amor de Deus, para partilhareternamente a própria vida de Deus.

Dito de outramaneira: a perfeição dohomem é a perfeição deuma vocação e não deuma situação. É o que aBíblia nos ensina quandodiz que o homem foicriado à imagem esemelhança de Deus.

“Deus não fabricouuma liberdade, pois cabeao homem, criado com apossibilidade daliberdade, tornar-se livreele mesmo. Deus cria o

É o quea Bíblianosensina.

homem como alguém queé capaz de criar a simesmo. É por isso que eu[Varillon] não gosto daexpressão ‘Deus criou ohomem livre’. Pois issoimplica dois erros:

colocar a criação no passado e estimularo sentimento de que a liberdade é umpresente, uma coisa pronta, quando averdade é que a liberdade é o contráriode uma coisa pronta. Ela só é liberdadequando nós mesmos a tornamos real.

“Isso é o que Deus quer: ele cria ohomem como um ser divinizável. Essa éa definição mais profunda que se possadar do ser humano, para além de tudo oque nos dizem as ciências humanas. Mas

Supondoque oprimeirohomemnãotivessepecado,o que é

o homem não pode divinizar-se sozinho:é preciso que ele acolha o dom de Deus,pois é Deus quem diviniza. Não é ohomem, por si mesmo, que vai suplantaro abismo infinito que existe entre ele eDeus, porque sua origem é terrestre.

“Essa origem terrestreé, para o homem, umafonte de dessemelhançaem relação a Deus. Pois avoz da natureza fazressoar constantemente nohomem um apelo paraviver não para Deus, oupara os outros homens,mas para si mesmo,egoisticamente, como osoutros seres da natureza

que nosgaranteque osegundonãopecaria?

que vivem segundo o seuinstinto. Eis o que é opecado original: não setrata de uma origemcronológica, mas daorigem da naturezahumana, da própria raizda existência.”

Enfatiza o padreVarillon:

“Fazemos começar a nossa históriaantes do pecado, e temos a impressão deque o estado de Adão, antes do pecado,não tinha nada de comum com o estadoque os seres humanos conheceramdepois. E nos pomos a perguntar, umpouco ingenuamente: se Adão nãotivesse feito essa besteira, se ele fosse

um pouco mais razoável, um pouco maisfirme com sua mulher, muitas catástrofesteriam sido evitadas, teríamos ficado nafelicidade perfeita, firmementeestabelecidos na virtude. Francamente, oque é que nós sabemos disso? Isso épura imaginação, terreno fértil para oinfantilismo.

“Supondo que o primeiro homemnão tivesse pecado, o que é que nosgarante que o segundo não o faria? E porque não o terceiro, ou o quarto? Edepois, eis o essencial: assim sechegaria à ideia de uma humanidade queteria atingido a glória perfeita da suadivinização dispensando totalmente oCristo. Chega-se a imaginar que, seAdão não tivesse pecado, ele teria tido

o poder de conduzir sozinho toda a suadescendência humana para adivinização. Infelizmente, ele fez umabesteira, e foi preciso que Jesus Cristoviesse consertar essa falta…

“Pensando melhor”, concluiVarillon, “basta ler o Novo Testamentopara descobrir que há uma única fontede divinização, que é o Cristo. Desde oinício, Cristo foi querido por Deus, e,como diz são Paulo, nós fomos criadosnele. A nossa humanidade, desde asorigens, está destinada a entrar nafiliação divina através do Cristo.

“Mas eu peço encarecidamente aoscristãos que não sejam triunfalistas, quenão se apresentem diante dos incréduloscomo alguém que pode fornecer uma

explicação. Por que é que o homem épecador? Não existe resposta. O pecadoestá na origem da nossa existência, e nósestamos, desde a origem, nos braços deDeus como nos braços de um pai queperdoa. Esse é o significado, mas não éuma explicação. A resposta de Deus nãoé uma resposta teórica: Ele entra nomundo do pecado e ali encontra a morte.Esta é a Sua humildade.”

6. Abraão

Se, mesmo no começo da Bíblia, já hácrises e tensões, resultado dessa coisaincrivelmente complexa que é o serhumano, a história de Abraão – que estána origem de três grandes religiões – é aoportunidade para encontrarmos umapersonalidade majestosa, um verdadeiropatriarca. E entre Deus e Abraão seestabelece uma espécie de intimidadeque é o que distingue a Bíblia de outrastradições religiosas.

O Senhor toma a iniciativa e fala aAbrão (a primeira forma do seu nome):

EntreDeus eAbraãoseestabeleceumaespéciedeintimidadeque é oquedistinguea Bíblia

“Deixa tua terra, tuafamília e a casa de teupai, e vai para a terra queeu te mostrar. Farei de tiuma grandenação; eu teabençoarei e exaltarei oteu nome; e tu serás umafonte de bênçãos.”

Abrão morava em Ur,na Caldeia, nas planíciesférteis da Mesopotâmia.A partir desse chamado,sem nenhuma hesitação,ele se põe em movimento,executando umsemicírculo, de leste paraoeste, que o conduz nadireção do que é hoje a

deoutrastradiçõesreligiosas.

Palestina.Quando ele está nas

proximidades do Neguev,sobrevém a fome naregião, e, “sendo grande amiséria, Abrão desceu aoEgito para aí viver”.Segue-se uma cena famosa. “Quandoestava para entrar no Egito, ele disse aSarai, sua mulher: ‘Escuta, sei que ésuma mulher formosa. Quando osegípcios te virem, dirão: ‘É sua mulher’,e me matarão, conservando-te a ti emvida. Dize, pois, que és minha irmã,para que eu seja poupado por causa deti, e me conservem a vida em atenção ati.’” Assim é feito; assim acontece. “Osgrandes da corte, vendo-a, elogiaram-na

diante do faraó, e a mulher foiintroduzida no seu palácio. Por causadela, Abrão foi bem tratado, e recebeuovelhas, bois, jumentos, servos e servas.O Senhor, porém, feriu com grandespragas o faraó e a sua casa, por causa deSarai, mulher de Abrão.” (Mais tarde, opróprio Senhor mudaria esses nomespara Sara e Abraão.)

O faraó mandou chamá-lo e lhedisse: “Que me levaste a fazer? Por quenão me disseste que era tua mulher? Porque disseste que era tua irmã? Masagora toma-a, e vai-te.” E o faraó deuordem a seus homens para reconduzirAbrão e sua mulher com tudo o que lhepertencia.

História que nos conduz a um tempo

remotíssimo. Não são os costumes nem amoralidade de hoje. A vida era umabatalha constante. Abrão era o chefe doclã. Com a sua morte, tudo acabaria.Parece mais simples ceder a mulher aofaraó. São saltos mentais a que temos denos acostumar, antes que as históriasbíblicas cheguem mais perto de nós.

Abrão volta do Egito para o Neguev(que hoje é um deserto) e instala-secomo um verdadeiro patriarca. Tem umsobrinho, Lot, com quem às vezes sedesentende. Para evitar novos atritos,resolvem se separar. “Lot escolheu todaa planície do Jordão e foi para o oriente.… Abrão fixou-se na terra de Canaã, eLot nas cidades da planície, ondelevantou suas tendas até Sodoma. Ora,

os habitantes de Sodoma eram perversose grandes pecadores diante do Senhor.”

E o Senhor diz a Abrão: “Levanta osolhos e, do lugar onde estás, olha para onorte e para o sul, para o oriente e parao ocidente. Toda a terra que vês, eu adarei a ti e a teus descendentes parasempre. Tornarei tua posteridade tãonumerosa como o pó da terra; se alguémpuder contar os grãos do pó da terra,então poderá contar a tua posteridade.”

Grandes promessas que seconfirmaram, se pensarmos nas geraçõese gerações que se consideram “filhos deAbraão”, entre judeus, cristãos emuçulmanos – sim, porque o primeirofilho a nascer de Abraão é Ismael, filhoda escrava Agar, e pai dos ismaelitas

Grandespromessasseconfirmaram,sepensarmosnasgeraçõesegeraçõesque seconsideram

(outro nome para os muçulmanos).Isso aconteceu porque

Sarai, mulher de Abrão,não engravidava, e,segundo os costumes daépoca, deu a Abrão umaescrava – Agar – paraque a linhagem não seinterrompesse. Um poucomais adiante, Saraimorreria de ciúmes deAgar, do que resultaria aexpulsão da escrava euma coleção de históriascoloridas.

Mas ficava apergunta: se Abrão ia teruma enorme

“filhosdeAbraão”,entrejudeus,cristãosemuçulmanos.

descendência, a esposalegítima seria deixada delado?

E acontece então umdaqueles episódios emque a vida de Abrãotraduz um maravilhoso àvontade com o Divino:

“O Senhor apareceu aAbraão nos carvalhos deMambré, quando eleestava sentado na entrada

de sua tenda, no maior calor do dia.”Abraão levantou os olhos e viu trêshomens de pé diante dele. Levantou-se,veio-lhes ao encontro e se prostrou porterra (a famosa hospitalidade do Orienteantigo). “Meus senhores”, disse ele, “se

encontrei graça diante de vossos olhos,não passeis adiante sem vos deter emcasa de vosso servo. Vou buscar umpouco de água para vos lavar os pés.Descansai um pouco sob esta árvore. Euvos trarei um pouco de pão, e assimrestaurareis as vossas forças paraseguirdes o caminho.”

Eles concordaram. Abrão tomoutodas as providências, mandou prepararum novilho e serviu aos peregrinos,conservando-se de pé junto deles,debaixo das árvores, enquanto comiam.

Depois disseram: “Onde está Sara,tua mulher?” “Está lá na tenda.” E eledisse (de repente, em vez de três, é umsó): “Voltarei à tua casa dentro de umano, nessa época, e Sara, tua mulher,

terá um filho.” “Ora, Sara ouvia tudopor detrás da tenda. Abraão e Sara eramvelhos, e Sara já tinha passado da idade.Ela pôs-se a rir secretamente, pensando:‘Velha como sou, conhecerei ainda oamor? E o meu senhor também já éentrado em anos.’” O Senhor disse aAbraão (e agora a Bíblia diz que é oSenhor): “Por que se riu Sara, dizendo:‘Será verdade que eu teria um filho,velha como sou?’ Será isso porventurauma coisa tão difícil para o Senhor? Emum ano, a esta época, voltarei à tua casa,e Sara terá um filho.” Ela agora pareceassustada e diz: “Eu não ri.” Mas oSenhor confirma: “Sim, tu riste.”

7. A prova

Nasce o filho tão desejado – Isaac. Nodia em que foi desmamado, diz a Bíblia,Abraão fez uma grande festa. “Sara viuque o filho nascido a Abraão de Agarescarnecia de seu filho Isaac.” Em doistempos, ela usa o privilégio de esposaoficial para expulsar a escrava e o seufilho. Mas Agar e Ismael, perdidos nodeserto, serão socorridos por um anjo.O que não impediu que, daquela cenabíblica, nascesse a milenar hostilidadeentre os árabes – de que Ismael é opatriarca – e os judeus.

AAbraãoestavareservadaa maiordetodas

O menino cresce. A promessa feita aAbraão – de que ele seria pai de umagrande nação – parece garantida comessa filiação que contornara todas asregras da natureza. Mas a Abraão estavareservada a maior de todas as provas, epor causa disso cristãos e judeus dizemque ele é “nosso pai na fé”.

O Senhor chamaAbraão e lhe diz: “Tomao teu filho, teu únicofilho, a quem tanto amas,e vai à terra de Moriá,onde o oferecerás emholocausto sobre um dosmontes que eu te indicar.”

“Teu único filho, aquem tanto amas…”

asprovas,e porcausadissocristãosejudeusdizemque eleé“nossopai na

Parece um modo derevirar a faca na ferida.Mas Abraão não dissepalavra. Selou o seujumento, tomou consigodois servos e Isaac, seufilho, e, tendo cortado alenha para o holocausto,partiu para o lugar queDeus lhe havia indicado.“Ao terceiro dia,levantando os olhos, viu olugar de longe.” O que eleterá pensado, ao longodesses três dias? “Ficaiaqui com o jumento, elediz aos servos, eu e omenino vamos mais

fé”.adiante para adorar, edepois voltaremos.”

“Abraão tomou alenha do holocausto e a pôs nos ombrosde seu filho Isaac, levando ele mesmo ofogo e a faca. Enquanto caminhavamjuntos, Isaac disse ao pai: ‘Meu pai!’‘Que há, meu filho?’ ‘Temos aqui o fogoe a lenha, mas onde está a ovelha para oholocausto?’ Abraão respondeu: ‘Deusprovidenciará ele mesmo uma ovelhapara o holocausto, meu filho.’” E amboscontinuaram seu caminho.

Chegando ao local indicado, Abraãoedificou um altar. Colocou nele a lenhae amarrou Isaac, seu filho, e o pôs sobreo altar em cima da lenha. Depois,estendendo a mão, tomou a faca para

imolar o filho. O anjo do Senhor, porém,gritou-lhe do céu: “‘Abraão! Abraão!Não estendas a mão contra o menino,não lhe faças nada. Agora eu sei quetemes a Deus, pois não me recusaste teupróprio filho, teu filho único.’ Abraão,levantando os olhos, viu atrás dele umcordeiro preso pelos chifres entre osespinhos, e, tomando-o, ofereceu-o emholocausto em lugar de seu filho.”

É das cenas mais fortes da Bíblia,das que fazem passar um frio pelaespinha; e, não por acaso, sobre ela jáse escreveram montanhas de livros.Trata-se de uma situação-limite – malcomparando, alguém diria que é uma“escolha de Sofia”. E um momento deescuridão total: não há parâmetros que

encaminhem uma solução racional.Pode-se, claro, simplificar as

coisas. Dizer, por exemplo, que naqueletempo pais sacrificavam filhos paraobter o favor dos deuses. Era comum navelha Cartago, que os romanosesmagaram. Abraão seria, assim, umprimitivo, ou um fanático, que agecegamente na suposição de que estácumprindo a vontade de Deus.

Mas nenhuma dessas categorias seaplica a Abraão. Não é a imagem quetransparece das muitas histórias, noGênesis, em que ele é o personagemcentral. Então, afastadas as soluçõesfáceis, desembocamos diretamente nomistério da fé.

A Igreja ensina que a fé é um dom de

A fépodevacilarmuitasvezes.

Deus – é uma das “virtudes teologais”,juntamente com a esperança e acaridade. O que quer dizer que Deus tema iniciativa, ao colocar esta semente nocoração do homem. É como na parábolado Semeador: “Saiu o semeador asemear.” De nossa parte, tem de haveruma resposta, como está na parábola.Senão a semente seca, ou é comidapelos pássaros.

A fé pode vacilarmuitas vezes. Pode até seapagar, como uma velasoprada pelo vento. Atentação do desesperopode ser muito grande,quase irresistível. Opróprio Cristo passou por

Podeaté seapagar,comoumavelasopradapelovento.OpróprioCristopassou

uma angústia profunda, echegou a dizer: “MeuDeus, meu Deus, por queme abandonaste?” (Jesusestá citando o Salmo 21,que fala em morte eressurreição.)

Mas essas sãosituações-limite. De ummodo geral, não somossubmetidos a essesextremos. Temos asnossas vidas, queprocuramos tocar dentrodo que é razoável. E,mesmo assim, chega ahora da prova. Deus secompraz, às vezes, em

porumaangústiaprofunda.

embaralhar as cartas. Oque tínhamos comoseguro, garantido, mostra-se frágil, precário. Ecertas provas são tãofortes que a fé pode seratingida em seusalicerces.

Nesse sentido, Abraão é umsímbolo. Como pedir a um pai quesacrifique o próprio filho? É um testeque ultrapassa todas as medidas. Mas,antes que isso acontecesse, ele tivera umcontato igualmente excepcional com arealidade divina. Ali, certamente, é quea sua fé deitava raízes. Dali deve tervindo uma força que, para nós, éincompreensível.

Comopedir aum paiquesacrifiqueoprópriofilho? Éumtestequeultrapassatodas

Ficou o exemplo,envolvido no mais densomistério. Nuncasaberemos como cada umde nós reagirá nos limitesda condição humana.

asmedidas.

8. Jacó, o esperto

De Isaac, filho de Abraão, a Bíblia nãofala muito. Um espírito maldoso diriaque, depois do susto que ele levou,faltou-lhe ânimo para correr novosriscos. (Mas Jesus e os profetas sereferiam ao “Deus de Abraão, de Isaac ede Jacó”.) Seu filho Jacó, ao contrário, édas figuras mais pitorescas da Bíblia – opai dos doze filhos que formarão asdoze tribos de Israel. Ele aparece numadaquelas equações de irmãos com que aBíblia às vezes trabalha – Esaú e Jacó,Caim e Abel, Moisés e Aarão.

Esaú é o primogênito, tem todas asregalias, mas é um estouvado. Jacó,símbolo da esperteza (como Ulisses, navelha Grécia), aproveita-se disso pararoubar-lhe a primogenitura.

Primeiro, na famosa cena do pratode lentilhas: Esaú chega esfomeado docampo. Jacó preparara lentilhassuculentas. “Dá-me essas lentilhas”, dizEsaú. E o outro: “Vende-me primeiro oteu direito à primogenitura.” Esaú juroue vendeu. Talvez achasse que, maisadiante, poderia voltar atrás.

O segundo episódio é mais sério.Isaac está velho, quase cego, vai morrer.É a hora de dar a bênção final,definitiva, que consagra o primogênito –como um rei que escolhe o seu sucessor.

Rebeca, mulher de Isaac, ajuda Jacó aenganar o pai. Jacó veste-se com umaroupa peluda (porque Esaú eracabeludo) e vem para receber a bênção.Quando Esaú chega do campo, estáfeito. A bênção é irrevogável.

Mas o que é isso?, dirá o leitor dehoje. Que moral é essa? O filho enganao pai, ajudado pela mãe? É a moral –digamos, os costumes – de um períodoque a Bíblia descreve, infinitamenteremoto. A Revelação não atropela asépocas, nem os costumes. Procede poretapas. Foi o que já vimos na história deAbraão e Sara. Mas Rebeca enganandoo marido! Diz uma senhora muito sábia,minha conhecida: “Ela sabia que Esaúera um estouvado, que a liderança tinha

ARevelaçãonãoatropelaasépocas,nem oscostumes.Procedeporetapas.

de passar por Jacó.” Pragmatismofeminino.

O fato é que, depoisdisso, Jacó ainda dámuitas outras provas deesperteza (e, por sua vez,é enganado por Labão, nahistória maravilhosa doseu namoro com Raquel –“Sete anos de pastorserviu Jacó a Labão, paide Raquel, serranabela…”).

Mas, um dia, ele setransforma. Depois de umperíodo de exílio (quandoteve de fugir da cólera deEsaú), ele está de volta,

com sua mulher, seusfilhos, seus rebanhos. O momento égrave, prenhe de ameaças, porque elevai reencontrar Esaú.

“Naquela noite, ele se levantou comsuas duas mulheres, suas duas servas eseus onze filhos e passou o vau doJaboc. Tomou-os, e os fez passar atorrente com tudo o que lhe pertencia.

“Jacó ficou só; e alguém lutava comele até o romper da aurora. Vendo quenão podia vencê-lo, tocou-lhe aquelehomem na articulação da coxa e estadeslocou-se, enquanto Jacó lutava comele. E disse-lhe: ‘Deixa-me partir,porque a aurora se levanta.’ ‘Não tedeixarei partir’, respondeu Jacó, ‘antesque me tenhas abençoado.’ Ele

perguntou-lhe: ‘Qual é o teu nome?’‘Jacó.’ ‘Teu nome não será mais Jacó’,tornou ele, ‘mas Israel, porque lutastecom Deus e com os homens, e venceste.’Jacó perguntou-lhe: ‘Peço-te que medigas qual é o teu nome.’ ‘Por que meperguntas o meu nome?’, respondeu ele.E abençoou-o no mesmo lugar. Jacóchamou àquele lugar Fanuel, ‘porque’,disse ele, ‘eu vi a Deus face a face, econservei a vida.’”

Misterioso trecho, que desde entãopassou a ser a imagem, o símbolo docombate espiritual. Jacó sai vencedor,mas ferido na perna; pagou um preçopela vitória.

É o combate que espera todos osque, neste mundo, querem avançar nos

Ocombateesperatodosaquelesque,nestemundo,queremavançarnos

caminhos do espírito – o caminho davida.

Podia ser mais fácil,dirá você; mas é assim, enão só na nossa tradição.Diz um mestre hindu:“Estreito como o fio danavalha é o caminho dasalvação.” O Buda tevede renunciar ao seu reinoe a todos os seus para irem busca da sabedoria.

A tradição cristã faladisso em tons igualmentevigorosos – como sãoPedro na sua primeiraCarta: “É isto o queconstitui a vossa alegria,

caminhosdoespírito– ocaminhoda vida.

apesar das afliçõespassageiras a vos seremcausadas ainda pordiversas provações, paraque a prova a que ésubmetida a vossa fé(mais preciosa que o ouroperecível, o qual,entretanto, não deixamosde provar ao fogo)

redunde para vosso louvor, para vossahonra e para vossa glória, quando JesusCristo se manifestar.”

É a ideia da prova – da dificuldadeque purifica o espírito, obrigando-o aalgumas definições vitais.

Jacó passou pela difícil prova.Encontra o irmão que teria todos os

motivos para desejar a sua perda. Masos dois chegam a um acordo precário.Naquele tempo, de costumes nômades,sempre era possível uma redistribuiçãode terras.

E o Senhor apareceu de novo a Jacó.“Teu nome, disse-lhe, é Jacó. Tu não techamarás mais assim, mas Israel.” Econtinuou: “Sê fecundo e multiplica-te.De ti nascerá um povo e uma assembleiade povos; e de teus rins sairão reis.”

No mesmo lugar onde Deus lhefalou, Jacó erigiu um altar sobre o qualfez uma oferenda. E deu o nome de Betelao lugar onde Deus lhe tinha falado.Assim começava a história de Israel.

9. Israel no Egito

Entre a morte de Jacó e a aparição deMoisés, o clã de Jacó passou umlonguíssimo período no Egito: mais dequinhentos anos. A origem dessa longaestadia é a história de José – umafascinante narrativa oriental da qualThomas Mann extraiu um ciclo de quatrorobustos romances.

Dos doze filhos de Jacó, José era openúltimo – e certamente o preferido. Elá vamos nós para um rosário desentimentos bem humanos.

Seus irmãos tornam-se cada vez

Dos

mais ciumentos dele. E um dia que estãono campo, pastoreando, vendem Josécomo escravo a um mercador quepassava na direção do Egito. A Jacólevam a túnica ensanguentada quepertencera a José, explicando que umleão o atacara. Desespero de Jacó.

Mas o Senhor estava com José. Eleencontra graça na corte do faraó.Trabalha com um cortesão ilustre,Putifar, cuja mulher se apaixona por elee tenta agarrá-lo. José escapa, deixandoa túnica nas mãos da mulher. Queimediatamente inverte os fatos: José éque quisera atacá-la.

O jovem e belohebreu vai para a prisão,onde esperará a forca.

dozefilhosdeJacó,Joséera openúltimo,ecertamenteopreferido.E lávamos

Mas, conversando comseus companheiros decela, consegue desvendaros sonhos do copeiro dofaraó, que também estavapreso.

O faraó, por sua vez,tivera um sonhoassustador: o das vacasgordas e das vacasmagras surgindo do rioNilo. Depois que osadivinhos fracassam emsuas interpretações,alguém diz que, na prisão,um jovem hebreu acabarade mostrar-se hábil nesseterreno.

nósparaumrosáriodesentimentosbemhumanos.

José é convocado.Como um verdadeiroprofeta, anuncia que assete vacas magrassignificam sete anos deseca para o Egito e dedesgraça, se o cicloanterior, o das vacasgordas, não for bemaproveitado.Definitivamenteconquistado, o faraó fazde José o seu primeiro-ministro. E todossob o comando de José passam aprevenir o futuro, que aconteceexatamente como previsto. Vem afartura, depois a seca. Mas os armazénsegípcios estão repletos de bens.

Entre os retirantes que chegam detodas as partes está a família de José,que não reconhece o irmão supostamentemorto. José fica profundamenteemocionado, mas, antes de se revelar,resolve pregar uma peça nos irmãos.Dá-lhes os sacos de trigo que tinhampedido, mas manda que se escondamneles algumas taças de prata.Perseguidos quando já saíam do Egito,os irmãos são acusados de roubo, equando se abrem os sacos, lá estão astaças comprometedoras.

Cenas dramáticas, na presença deJosé, que continua a aproveitar asituação. Diz que só permitirá a volta dafamília a seu lugar de origem se o irmãomais novo for deixado como refém. Era

o caçula Benjamim, que tinha ficado emcasa com o pai, já cego. Novas cenasdramáticas, porque Jacó não quer deixaro menino partir. Mas, afinal, seguemtodos; e, a partir daí, não demora muitopara que José, emocionadíssimo, se dê aconhecer.

Com apoio tão poderoso, a famíliade Jacó instala-se no Egito; e conhecerátanta prosperidade que, um dia, séculosdepois, incomodará os faraós do tempode Moisés.

10. Moisés e o faraó

Quase desde o início do Êxodo,assistimos à confrontação dramáticaentre Moisés e o faraó. Moisés, dealgum modo, tinha sido preparado paraisso. Foi criado na corte; sabia como elafuncionava. Num desenho animado atébonito, feito em Hollywood, brinca-secom a ideia de que ele teria sidocompanheiro de adolescência do futurofaraó.

Por que não? Isso lhe dava uma certaliberdade para começar o diálogo. Maslogo as coisas se encrespam.

Olhamos para o faraó, normalmente,de um modo estereotipado: o tirano que,por puro capricho, impede a partida deum povo. Uma visão mais nuançadapode nos levar um pouco mais fundonessa história.

O Egito, no momento do Êxodo, estálonge de ser uma sociedade primitiva.Pelo contrário, é uma civilizaçãosofisticada, cujos ecos até hojeprovocam admiração (e esse meiosofisticado também colaborou naformação do jovem Moisés). O faraó domomento do Êxodo, seja ele quem for,comanda um império ainda coberto deglórias.

No seu confronto com Moisés, entrao lado humano, mas também a visão do

estadista – ou do autocrata de alto nível.Nesse momento imperial vivido peloEgito, a mão de obra escrava éimportante – como seria no BrasilImpério ou nos Estados Unidos dasfazendas de algodão. Como, então, abrirmão disso só porque aparece alguémdizendo: “O Senhor mandou”?

E que Senhor é esse? Esse é um dospontos cruciais da história. O Egitoantigo foi uma civilização apoiada nareligião. Nesse contexto de fortereligiosidade, o faraó era figura central,quase uma personificação da divindade(o que até não muito tempo aindaacontecia no Japão). Como ele aceitaria,então, a injunção de um “outro” Deussem abrir mão de toda a sua visão de

mundo?A partir de certo ponto – na verdade,

desde o início –, seu choque comMoisés é o choque entre duas visões dodivino (e não é muito correto dizer queseria o choque entre politeísmo emonoteísmo: o fenômeno religioso, noEgito, é mais complexo do que isso).

O faraó começa rebatendoabruptamente as exigências desse“outro” Deus. Têm início, então, aspragas, os prodígios que, a princípio, osmagos do Egito conseguem reproduzir –mas a partir de um determinado pontonão conseguem mais.

O próprio círculo do faraó passa,então, a adverti-lo de que em tudoaquilo pode estar o dedo de Deus, e que,

Comoo faraó,também

a seguir por aquele rumo, o país poderiaser destruído. Mas o faraó, que às vezesparece ceder, acaba endurecendo nopróprio calor da refrega – como cadaum de nós tende a endurecer diante deum adversário teimoso. E isso terminapor reforçar a ideia do tiranoimpiedoso.

No belo livrinho que escreveu sobrea Vida de Moisés, o cardeal Martinipede que, nesse episódio, tentemosdiscernir o que ele chama de “o faraóem nós”.

Também nós, emnossa vida, ouvimos devez em quando a pancadana porta, o chamado parauma outra realidade. Mas

nós, emnossavida,ouvimosde vezemquandoapancadanaporta, ochamadopara

isso ameaça, antes detudo, o pequeno deus quereside em nós – e quesomos nós mesmos, aficção da nossa própriadivindade. Quem é esse“outro Deus” que vem defora ameaçar a minhaautonomia, o meu projetode autossuficiênciaindividual?

Nasce daí a primeiraresistência. Depois, écomo na história daspragas: a um primeiroimpacto, estamosdispostos a reconhecer,num momento de aflição,

umaoutrarealidade.

que a vida não era aquiloque pensávamos; que háum poder mais forte,realidades mais amplasque o nosso universopessoal.

Mas a adversidade passa, o mundoretoma seus direitos, e assim vamosadiando sempre o encontro com a“outra” realidade.

Moisés, nesse contexto, é o homemque aceita o desafio, mesmo à custa dedúvidas e temores. Ele assume aaventura que é sair do terreno conhecidoe avançar no deserto. Sabe que suasforças são insuficientes para isso, masestá aberto à grande novidade, a algumacoisa que entrou na sua vida e a

transformou. E, nesse movimento,prepara o seu povo para a extraordináriaPassagem, a Páscoa, que é o início deuma nova vida.

11. O milagre

A décima praga a desabar sobre oEgito é a mais terrível. Ela é anunciadapor Moisés: “Eis o que diz o Senhor:pela meia-noite, passarei através doEgito, e morrerá todo primogênito naterra do Egito, desde o primogênito dofaraó até o primogênito do escravo quefaz girar a mó, assim como todoprimogênito dos animais. Haverá emtoda a terra do Egito um clamor comonunca houve nem haverá jamais. Quantoaos israelitas, porém, desde os homensaté os animais, ninguém, nem mesmo um

Entendero queseria a“parcialidade”de Javéem

cão, moverá a língua. Sabereis assimcomo o Senhor fez distinção entre osegípcios e os israelitas.”

Assim age, no Antigo Testamento, oSenhor dos Exércitos. Entender o queseria essa “parcialidade” de Javé emfavor dos israelitas é um dos desafiosque se põem ao leitor moderno daBíblia.

Aos israelitas, nanoite terrível, nadaacontecerá. Porque elacoincide com a instituiçãoda Páscoa judaica,precursora da Páscoa doscristãos.

Como em outraspassagens da Bíblia, as

favordosisraelitasé umdosdesafiosenfrentadospeloleitormodernodaBíblia.

instruções vindas do Altosão as mais minuciosas.Cada família tomará umcordeiro sem mancha,macho, de um ano. Eleserá imolado, e com o seusangue se marcará aentrada da casa. “Eis amaneira como ocomereis”, diz o Senhor:“Tereis cingidos osvossos rins [o sinal doalerta espiritual], vossassandálias nos pés e vossocajado na mão. Comê-lo-eis apressadamente: é aPáscoa [isto é, apassagem] do Senhor.”

E assim aconteceu: o anjo do Senhorpassou sobre o Egito, respeitando ascasas marcadas pelo sangue do cordeiropascal. E dessa vez o faraó cedeu: “Ide!Saí do meio do meu povo. Ide prestarum culto ao Senhor, como dissestes.Tomai vossas ovelhas e vossos bois,como pedistes. Ide e abençoai-me.” Eassim partiram os israelitas de Ramséspara Socot, “em número de 600 milhomens, aproximadamente, sem contaros meninos”, diz o texto do Êxodo.

Os israelitas saíram do Egito em boaordem. Moisés levou consigo os ossosde José, porque este fizera os filhos deIsrael jurarem: “Quando Deus vosvisitar, levareis daqui os meus ossos.”Tendo partido de Socot, acamparam em

Etão, na extremidade do deserto. Mas asmaravilhas ainda não tinham terminado.“O Senhor ia adiante deles”, diz aBíblia, “de dia numa coluna de nuvens,para guiá-los pelo caminho; de noite,numa coluna de fogo, de modo quepodiam marchar de dia e de noite.”

Não demorou muito para que o faraóse arrependesse do que tinha feito:deixar partir Israel e renunciar assim aoseu serviço! O faraó mandou prepararseu carro e levou com ele suas tropas.Escolheu seiscentos carros dosmelhores, com homens de guerra emcada um deles. “O Senhor endureceu ocoração do faraó, rei do Egito, e ele sepôs a perseguir os filhos de Israel. …Puseram-se os egípcios a persegui-los e

alcançaram-nos em seu acampamento àbeira do mar: todos os carros do faraó,seus cavaleiros e seu exército osalcançaram perto de Fiairot, defronte deBeelsefon.”

Pânico nas fileiras dos israelitas,que dirigem impropérios a Moisés:“Não havia, porventura, túmulos noEgito, para que nos conduzisses amorrer no deserto? Por que fizeste isso,tirando-nos do Egito? Não te dizíamos:é melhor ser escravo do que morrer nodeserto?” Moisés respondeu ao povo:“Tende ânimo e vereis a libertação queo Senhor vai operar hoje em nossofavor. Os egípcios que vedes não ostornareis a ver. O Senhor combaterá pornós.”

Agora é o Senhor quem fala aMoisés: “Levanta a tua vara, estende amão sobre o mar e fere-o para que osisraelitas possam atravessá-lo a péenxuto. Vou endurecer o coração dosegípcios, para que se ponham ao teuencalço, e triunfarei gloriosamente sobreo faraó e sobre todo o seu exército.”

Moisés estendeu a mão sobre o mar(o mar Vermelho). “O Senhor fê-lorecuar com um vento impetuoso vindodo oriente, que soprou toda a noite. Epôs o mar a seco. As águas dividiram-se, e os israelitas desceram a pé enxutono meio do mar, enquanto as águasformavam uma muralha à direita e àesquerda. Os egípcios os perseguiram:todos os cavalos do faraó, seus carros e

seus cavaleiros, internaram-se após elesno leito do mar. À vigília da manhã, oSenhor, do alto da coluna de fogo, olhoupara o acampamento dos egípcios esemeou o pânico no meio deles.Embaraçou-lhes as rodas dos carros, demodo que só dificilmente conseguiamavançar. Disseram então os egípcios:‘Fujamos diante de Israel, porque oSenhor combate por eles contra o Egito.’

“O Senhor disse a Moisés: ‘Estendea tua mão sobre o mar, e as águas voltar-se-ão sobre os egípcios, seus carros eseus cavaleiros.’ Assim foi feito, e aoromper da manhã o mar voltou a seunível habitual. Os egípcios que fugiamforam de encontro a ele, e o Senhorderrubou os egípcios no meio do mar.

TirardaBíblia oelementomilagrososeria

As águas voltaram e cobriram os carros,os cavaleiros e todo o exército do faraó.Não ficou um sequer.”

Assim termina a cena dramática queo cinema tentou, diversas vezes,reproduzir (como em Os DezMandamentos, de Cecil B. de Mille).Ela também nos ajuda a abordar aquestão do milagre na Bíblia.

Tirar da Bíblia oelemento milagroso seriaarrancar-lhe páginas epáginas. Mas o que é omilagre? Precisa ele,sempre, inverter as leisda natureza? Para oepisódio do marVermelho já se

arrancar-lhepáginasepáginas.Mas oque é omilagre?

ofereceram diversasexplicações. Segundouma delas, o ponto emque os israelitas iamatravessar era terrenopantanoso; um vento maisforte poderia fazer aságuas recuarem, trazendo-as depois de volta.

É possível, mas o queimporta é que, nummomento absolutamentecrucial, fenômenos naturais agiram nosentido de livrar os israelitas daperseguição. E isso foi tão dramático etão decisivo que marcou para sempre ahistória de Israel como um momentofundador. Daí o cântico de vitória de

Moisés: “Cantarei ao Senhor, porque elemanifestou a sua glória; precipitou nomar cavalos e cavaleiros.” Por isso aPáscoa é a mais jubilosa das festasjudaicas (como será, depois, nocristianismo).

O Deuteronômio, que aparece comoum testamento de Moisés (mas que podeter sido escrito mais tarde), em seucapítulo 6, o mais solene de todos,estabelece o clima da Páscoa judaica:“Quando o teu filho te perguntar, maistarde: ‘Que são esses mandamentos,essas leis e esses preceitos que oSenhor, nosso Deus, nos prescreveu?’Tu lhe responderás: ‘Éramos escravosno Egito, e a mão poderosa do Senhornos libertou. À nossa vista operou o

Senhor prodígios, grandes e espantosossinais contra o Egito, contra o faraó etoda a sua família. Tirou-nos de lá paraconduzir-nos à terra que, com juramento,havia prometido a nossos pais.’”

E esse mesmo capítulo 6 inclui aoração que os judeus sempre rezaramem seus momentos de maior dificuldade:“Ouve, ó Israel! O Senhor nosso Deus éo único Senhor. Amarás o Senhor teuDeus de todo o teu coração, de toda atua alma e com todas as tuas forças.”

12. No deserto

“Moisés fez partir os israelitas domar Vermelho e os dirigiu para odeserto de Sur.” Se você olhar o mapa,não vai entender esse percurso. Doponto onde o mar Vermelho é maisestreito até Canaã – a Terra Prometida –a distância não é tão grande. MasMoisés conduz o povo na direção sul, nadireção do Sinai. E nessas muitas voltas,passaram-se quarenta anos. Númerobíblico; sinal de uma provação, de umapurificação.

O povo que saiu do Egito, mesmo

tendo deixado a escravidão, não estavapronto para o que teria de enfrentar. Emepisódio sobre episódio, a paciência deMoisés é posta à prova – e por isso aBíblia diz que ele era “o mais pacientedos homens”.

Falta água – é Moisés quem tem deprovidenciar. O mesmo para a comida.Como no episódio das codornizes e domaná – a comida que desceu do céu e daqual os cristãos farão um símbolo daEucaristia.

O povo reclama: “Oxalá tivéssemossido mortos pela mão do Senhor noEgito, quando nos sentávamos diante depanelas de carne e tínhamos pão emabundância!” O Senhor diz a Moisés quevai fazer chover pão do alto do céu. É o

O povoquesaiu doEgito,mesmotendodeixadoaescravidão,nãoestavapronto

maná.De crise em crise, vai

se aproximando outromomento culminante. “Noterceiro mês depois desua saída do Egito,naquele dia, os israelitasentraram no deserto doSinai. Tendo partido deRafidim, chegaram aodeserto do Sinai, ondeacamparam. Ali seestabeleceu Israel emfrente do monte.”

Do alto do Sinai virápara Israel a Lei.Também aqui estamosdiante de uma das grandes

para oqueteria deenfrentar.

teofanias da Bíblia. Denovo, só Moisés terá avisão direta do mistériodivino. Mas o cenário jáé, por si mesmo,impressionante. “Todo omonte Sinai fumegava,

porque o Senhor tinha descido sobre eleno meio de chamas. O fumo que subia domonte era como a fumaça de umafornalha, e toda a montanha tremia comviolência. O som da trombeta soavaainda mais forte; Moisés falava, e ostrovões divinos respondiam.”

Não fica muito claro de que maneiraMoisés recebeu a Lei. Talvez aqui,como em outros trechos da Bíblia,estejamos diante de um texto composto,“costurado” de diversas versões.Moisés sobe uma primeira vez ao montee recebe uma primeira versão da Lei.Mais adiante, sobe com Aarão, Nadab eAbiú, e setenta anciãos de Israel. “Elesviram o Deus de Israel. Sob seus péshavia como que um lajeado de safirastransparentes, tão límpido como opróprio céu. Sobre os eleitos dosisraelitas, Deus não estendeu a mão.Viram Deus, e depois comeram ebeberam.” Texto raríssimo, sugerindouma visão de Deus que não era seguida,como de costume, pela morte do

atrevido. Moisés finalmente sobesozinho. “No sétimo dia, o Senhorchamou Moisés do seio da nuvem. Aosolhos dos israelitas, a glória do Senhortinha o aspecto de um fogo devoradorsobre o cume do monte. Moisés penetrouna nuvem e subiu a montanha. Ficou aliquarenta dias e quarenta noites.”

Era tempo demais para um povo queainda estava longe de se acostumar como novo enredo que lhe ia sendoproposto. Quando Moisés finalmentedesce do monte, encontra os israelitasem celebração orgiástica diante dobezerro de ouro – o ídolo que tinhamforjado para substituir o profeta, queimaginavam morto. “Moisés viu que opovo estava desenfreado, porque Aarão

tinha-lhe soltado as rédeas.”O terrível castigo que se segue, em

que cerca de 3 mil homens forampassados pela espada, por ordem deMoisés, pode ser explicado, nessecontexto bíblico antigo, pelo fato de que,numa das descidas de Moisés do alto domonte, ele celebrara com todo o povouma solene aliança com o Deus que oslivrara dos egípcios. O povo tinhaprometido: “Faremos tudo o que oSenhor disser.” Agora, o pacto erarompido; e, no Israel antigo, isso sópodia ser expiado com sangue.

Podia ter sido pior: segundo o textoda Bíblia, a intenção de Javé, naquelemomento, era simplesmente exterminaraquele povo, começar uma outra

história. “Vejo”, diz Ele a Moisés, “queesse povo tem a cabeça dura. Deixa,pois, que se acenda minha cólera contraeles e os reduzirei a nada; mas de tifarei uma grande nação.”

Moisés, então, coloca-se comointercessor: “‘Por que, Senhor, seinflama a vossa ira contra o povo quetirastes do Egito? Não é bom que digamos egípcios: um mau desígnio os levou,para matá-los nas montanhas e suprimi-los da face da Terra! Aplaque-se vossofuror, e abandonai vossa decisão defazer mal ao vosso povo. Lembrai-vosde Abraão, de Isaac e de Israel, vossosservos, aos quais jurastes tornar suaposteridade tão numerosa como asestrelas do céu, e de dar aos seus

O

descendentes essa terra de que falastes,como uma herança eterna.’ E o Senhorse arrependeu das ameaças que tinhaproferido contra o seu povo.”

Não seria a única vez que umpatriarca de Israel se poria comoanteparo entre a cólera divina e acorrupção dos homens (Abraão tinhafeito isso ao tentar diminuir a tragédiade Sodoma e Gomorra). O Altíssimocede a essa mediação, concorda emmudar de atitude. É o sinal mais claroque a Bíblia pode dar da dignidade deum homem e da força do diálogo que,naqueles tempos antigos, se estabeleceentre Criador e criatura.

Mas também é o sinalde um dado essencial

Criadortemdireitossobre acriatura,pormaisque ohomemmodernotenhaseesquecido

para o entendimento daBíblia – e da própria vidahumana. O Criador temdireitos sobre a criatura,por mais que o homemmoderno tenha seesquecido disso. Isso nãoé uma diminuição dacriatura – é um dado derealidade. E se vocêtrabalha com a realidade,tem uma chanceinfinitamente maior deavançar na sua realizaçãopessoal – realização erealidade sendo palavrasque partem da mesmaraiz.

disso.Issonão éumadiminuiçãodacriatura– é umdadoderealidade.

Há uma passagem doLivro de Jeremias queilustra essa realidadefundamental:

“Foi dirigida aJeremias a palavra doSenhor nestes termos:‘Vai e desce à casa dooleiro, e ali te farei ouvira minha palavra.’ Desci,então, à casa do oleiro eo encontrei ocupado atrabalhar no torno.Quando o vaso que estavamodelando não lhe saíabem, como sói acontecer

nos trabalhos de cerâmica, punha-se atrabalhar em outro à sua maneira.

“Foi esta, então, a linguagem doSenhor: ‘Casa de Israel, não podereifazer de vós o que faz este oleiro? –oráculo do Senhor. O que é a argila emsuas mãos, assim sois vós nas minhas,casa de Israel. Ora anuncio a uma naçãoou a um reino que vou arrancá-lo edestruí-lo. Mas se essa nação contra aqual me pronunciei se afastar do mal quecometeu, arrependo-me da punição comque resolvera castigá-la. Outras vezes,em relação a um povo ou reino, resolvoedificá-lo e plantá-lo. Se, porém, talnação proceder mal diante de meusolhos e não escutar minhas palavras,recuarei do bem que lhe decidirafazer.’”

13. A Lei

No centro da mensagem que Moisésrecebeu no alto do Sinai está o que,pelos séculos afora, passou a serconhecido como os Dez Mandamentos, oDecálogo, a base de toda a éticaocidental. O texto bíblico é um poucomais florido do que o divulgado pelatradição cristã:

“Eu sou Javé, teu Deus, que te tirouda terra do Egito. Não terás outrosdeuses.” (Para os cristãos: “Amar aDeus sobre todas as coisas.”)

“Não tomarás o nome de teu Deus

em vão” (é a proibição dos juramentos).“Lembra-te do dia do sábado, para o

santificar. Seis dias trabalharás, mas osétimo dia [em hebraico, Shabbath] é osábado de Javé, teu Deus. Nesse dia nãofarás trabalho algum, nem tu, nem teufilho, nem teu servo, nem tua serva, nemteu animal, nem o estrangeiro que estádentro das tuas portas. Porque em seisdias fez Javé o céu e a terra, e tudo oque neles há, mas no sétimo diadescansou” (é o terceiro mandamento,que, na tradição cristã, manda santificaro domingo e alguns grandes momentosdo ano litúrgico).

“Honrarás teu pai e tua mãe.”“Não matarás.”“Não cometerás adultério.”

Os DezMandamentossãoregrasbásicaspara orelacionamentocom oDivino

“Não furtarás.”“Não levantarás falso testemunho.”“Não cobiçarás a mulher do

próximo.”“Não desejarás as coisas alheias.”Palavras que ficaram

ecoando, desde então, naforça da sua concisão eda sua abrangência. Seesse código se parececom outros divulgados naAntiguidade, isso só vemconfirmar a suapertinência. São regrasbásicas para orelacionamento com oDivino e para aconstrução e manutenção

e aconstruçãode umambientesocialsaudável.

de um ambiente socialsaudável.

Logo depois dessepórtico magnífico, o textobíblico entra em minúciasque deixam perplexo oleitor moderno. É difícilacreditar que tudo aquilotenha sido dado a Moisés– e aos israelitas – numa única jornada.Também há coisas, ali, que não parecemestar de acordo com a dignidade dahora; e outras que seriam repudiadassem hesitação num contexto moderno,como a coleção imensa de sentenças demorte.

Nada disso diminui a majestade daLei mosaica. Ela se aplica, antes de

Éprecisonãoesquecerque,naquelestemposantigos,

tudo, a um momento fundador e a umcontexto histórico que a Bíblia respeita.Regras que serviam para o tempo deMoisés podem não servir para o nossotempo. Mas ali se estabelece umcaminho de aproximação com o Divino,e normas para o dia a dia de um povo.

Há quem negue aMoisés a autoria da Lei,de tal modo ela é ampla ediversificada. Mas amaioria dos entendidosconcorda em que deMoisés veio o núcleo, aRevelação fundamental.A partir daí, certamenteaconteceram acréscimos,respondendo a

atradiçãooral eratão oumaisimportantedo queaescrita.

necessidades novas.É preciso não

esquecer que, naquelestempos antigos, a tradiçãooral era tão ou maisimportante do que aescrita. Assim foram seconstituindo, ao longo dosséculos, os comentáriosdos sábios quemultiplicaram a extensãoda Lei, ao mesmo tempoem que testemunhavam asua inesgotável vitalidade

e profundidade. O judeu piedoso tempaixão pela Lei, como diz o grandeSalmo 118:

Concedei a vosso servo esta graça:que eu viva guardando vossas

palavras.Abri meus olhos,para que eu veja as maravilhas de

vossa Lei.Peregrino sou na terra,não me oculteis os vossos

mandamentos.Consome-se minha almano desejo perpétuo de observar os

vossos decretos.

Essa paixão, um dia, iria revestir-sede um sentido de urgência. Quando osgrandes impérios se puseram emmovimento, o Israel do Norte (Samaria)

foi o primeiro a sucumbir nas mãos dosassírios. O reino de Judá, com capitalem Jerusalém, resistiu mais um pouco,mas a sensação de insegurança eracrescente.

Nos tempos do rei Josias, e depoisde muitos reis indignos, houve umprimeiro movimento de retorno às fontesda vida judaica, sobretudo quando sedescobriram rolos da Lei nossubterrâneos do Templo. Para oseruditos, este é o momento em que aBíblia judaica, sob a pressão dosacontecimentos, toma a forma queconhecemos hoje.

Houve a invasão dos babilônios, adestruição do Templo, o exílio. Depoisde enorme sofrimento, o rei Ciro – que,

por sua vez, tinha derrubado a potênciados babilônios – concorda com oretorno dos judeus à sua terra. Esdras eNeemias são os líderes dessacomunidade que tentava retomar a suavida. E eles sabiam onde repousava aidentidade de Israel.

A cena comovente está narrada noLivro de Neemias. Sete meses depois doretorno, os israelitas viam-se de novoinstalados em suas casas e cidades.“Todo o povo se reuniu então, como umsó homem, na praça que ficava diante daPorta da Água [Jerusalém], e pediu aEsdras, o escriba, que trouxesse o livroda Lei de Moisés. … Esdras fez então aleitura da Lei, … desde a manhã até omeio-dia, na presença dos homens,

mulheres, e das crianças capazes decompreender. O escriba Esdras postou-se num estrado de madeira que haviamconstruído para a ocasião: e todosescutavam atentamente a leitura. …Depois disso, Neemias, o governador,Esdras, sacerdote e escriba, e os levitasque instruíam o povo, explicando osdetalhes da Lei, disseram a toda amultidão: ‘Este é um dia de festaconsagrado ao Senhor, nosso Deus; nãohaja nem aflição nem lágrimas.’ Porquetodos choravam ao ouvir as palavras daLei. Neemias disse então: ‘Ide para asvossas casas, fazei um bom jantar, tomaibebidas doces e reparti com aqueles quenada têm. Porque este é um dia de festaconsagrado ao nosso Deus. Não haja

Oestudoda Leipassoua ser aalmadojudaísmo.Daí ovalordado

tristeza, porque a alegria do Senhor seráa vossa força.’”

E, desde então, oestudo da Lei passou aser a alma do judaísmo.Daí o valor dado aoestudo em qualquerambiente judaico. Quandovier a Diáspora – adispersão dos judeus, emconsequência dadestruição de Israel –, éesse amor à Lei – a Torá– que criará um laçoindestrutível, resistente atodas as perseguições.

aoestudoemqualquerambientejudaico.

14. Débora

Do grande encontro no Sinai, Israelparte para a conquista da “terraprometida”, que não será tão linearquanto se possa imaginar, apesar dapresença de heróis como Josué, Gedeão.É uma campanha duríssima, e oscostumes da época não eram os de hoje.

Isso introduz uma dificuldade para oleitor moderno: vemos o Senhor daBíblia entrar na refrega, ao lado deIsrael, e proferir sentenças deextermínio. Será o mesmo Deus de amorde que fala a primeira Epístola de são

Comoemqualquer

João?É inevitável o choque diante dessas

cenas de batalha e de destruição.Nenhuma quantidade de análises e deinterpretações atenuará esse choque.Continua válido um princípio: apresença divina no mundo tem a medidae a coloração de cada época. Essapresença divina em circunstância algumaatropela a humanidade. Como emqualquer época, a realidade é umdesafio que os humanos procuramdecifrar com a ajuda do Alto.

Uma coisa não sepode dizer: que Javé sejacegamente parcial no quetoca a Israel. É aadvertência que está no

época,arealidadeé umdesafioque oshumanosprocuramdecifrarcom aajudadoAlto.

capítulo 9 doDeuteronômio, quando édito a Israel: “Hojepassarás o Jordão paradespojar nações maiorese mais fortes do que tu.”Explica o texto bíblico,pela boca de Moisés:“Depois que o Senhor teuDeus os tiver expulsadode diante de ti, não digasno teu coração: por causada minha justiça é que oSenhor me introduziu naposse dessa terra. Porqueé por causa daperversidade dessasnações que o Senhor as

despoja diante de ti. … E é tambémporque o Senhor, teu Deus, quer cumprira palavra que deu com juramento a teuspais, Abraão, Isaac e Jacó.”

Haveria, assim, uma misteriosajustiça que, num determinado momento,rebaixa uma nação e eleva outra; e Israelconhecerá a “descida da balança”quando se afastar do que prometera aoseu grande profeta Moisés.

Nesse contexto é que podemos ler ahistória de Débora, onde entramos emcontato com uma fúria sagrada. Até queviesse a monarquia, os Juízescomandaram o povo hebreu na suacaminhada rumo ao norte. E houve ummomento em que essa função coube àprofetisa Débora, vinda de Lapidot. Ela

se sentava sob uma palmeira, namontanha de Efraim, e os israelitas iamter com ela para que dirimisse suasquestões. Ela também tinha de fazer aguerra, que nunca estava longe dohorizonte; e num desses momentos deperigo ela manda chamar Barac, filho deAbinoem, e lhe diz: “Eis o que te ordenao Senhor, Deus de Israel: vai ao monteTabor, toma contigo 10 mil homens dosfilhos de Neftali e de Zabulon [duas dastribos de Israel]. Quando estiveres natorrente de Cison, entregarei nas tuasmãos Sisara, chefe do exército deJabin.”

Barac responde: “Se vieres comigo,irei; se não quiseres vir comigo, nãoirei.” “Sim”, diz a profetisa, “irei

contigo, mas a glória da expedição nãoserá tua, porque o Senhor entregaráSisara nas mãos de uma mulher.”

Foi anunciado a Sisara que Baracestava em marcha para o monte Tabor.Ele, então, manda vir de Haroset-Goimtodos os seus carros – novecentos carrosde ferro, armamento de que Israel nãodispunha – e todo o povo que estavacom ele. Débora diz a Barac: “Vai, esteé o dia em que o Senhor te entregaráSisara. O Senhor mesmo marcha adiantede ti.”

“Barac desceu do monte Tabor com10 mil homens. E o Senhor desbaratouSisara com todos os seus carros e todo oseu exército, que caiu ao fio da espadadiante de Barac. Sisara, saltando do seu

carro, fugiu a pé, enquanto Baracperseguia os carros e o exército atéHaroset-Goim.

“Fugindo a pé, Sisara chegou à tendade Jael, mulher de Heber, o cineu,porque havia paz entre Jabin, rei deAsor, e a casa de Heber, o cineu. Jael,saindo ao encontro de Sisara, lhe disse:‘Entra, meu senhor, em minha casa, enão temas.’ Ele entrou na tenda e ela oocultou sob um manto. Ele disse àmulher: ‘Peço-te que me dês um poucode água, porque tenho sede.’ Ela abriuum odre de leite, deu-lhe de beber e orecobriu. Sisara disse-lhe ainda: ‘Põe-teà entrada da tenda, e se qualquer pessoate perguntar se há alguém aqui,responderás que não.’

“Jael, pois, mulher de Heber, tomouum prego da tenda juntamente com ummartelo e, aproximando-se devagarinho,enterrou o prego na fonte de Sisara,pregando-o assim na terra enquanto eledormia profundamente. Entrementes,chegou Barac. Jael, saindo-lhe aoencontro, disse: ‘Vem, vou mostrar-te ohomem que buscas.’ Ele entrou e viuSisara, que jazia morto por terra com oprego cravado em sua fonte.”

A notícia chegou a Débora, queprorrompeu num cântico de guerra,soberbo exemplo de eloquência bíblica:

Desatou-se a cabeleira em Israel,o povo ofereceu-se para o combate:bendizei o Senhor!

Reis, ouvi! Estai atentos, ópríncipes!

Sou eu quem vai cantar ao Senhor.Vou proferir um salmo ao Senhor,

Deus de Israel!Senhor, quando saístes de Seir,

quando surgistes dos campos deEdom,

a terra tremeu, os céus seentornaram,

as nuvens desfizeram-se em água,abalaram-se as montanhas diante

do Senhor,nada menos que o Sinai, diante do

Senhor, Deus de Israel.

Nos dias de Samgar, filho de Anat,

nos dias de Jael, estavam desertosos caminhos,

e os viajantes seguiam veredastortuosas.

Desertos se achavam os campos emIsrael, desertos,

senão quando eu, Débora, melevantei,

me levantei como uma mãe emIsrael.

Israel escolhera deuses novos, elogo a guerra lhe bateu àsportas,

e não havia um escudo nem umalança entre os 40 mil de Israel.

Meu coração bate pelos chefes deIsrael,

pelos que se ofereceram

voluntariamente entre o povo:bendizei o Senhor!

Vós que cavalgais jumentasbrancas, sentados sobre tapetes,

a galopar pelas estradas, cantai!A voz dos arqueiros, junto dos

bebedouros, celebreas vitórias do Senhor, as vitórias

dos seus chefes em Israel!Então o povo do Senhor desceu às

portas.

Desperta, Débora, desperta!Desperta, desperta, canta umhino!

Levanta-te, Barac! Toma os teusprisioneiros, filho de Abinoem!

E agora descei, sobreviventes do

meu povo.Senhor, descei para junto de mim

entre estes heróis.De Efraim vêm os habitantes de

Amalec;seguindo-te, marcha Benjamim com

as tropas;de Maquir vêm os príncipes, e de

Zabulon os guias com o bastão[uma a uma, ela vai enumerandoas tribos].

Os príncipes de Issacar estão comDébora;

Issacar marcha com Barac e segue-lhe as pisadas na planície.

Junto aos regatos de Rubemgrandes foram as deliberaçõesdo coração.

Por que ficaste junto ao aprisco, aouvir a música dos pastores?

Junto aos regatos de Rubemgrandes foram as deliberaçõesdo coração.

Galaad ficou em sua casa, além doJordão;

e Dã, por que habita junto dosnavios?

Aser assentou-se à beira do mar eficou descansando nos seusportos.

Zabulon, porém, é um povo quedesafia a morte,

e da mesma forma Neftali, sobre osplanaltos.

Vieram os reis e travaram combate;

e travaram combate os reis deCanaã

em Tanac, junto às águas deMeguido;

mas não levaram espólio emdinheiro.

Desde o céu as estrelascombateram,

de suas órbitas combateram contraSisara,

e a torrente de Cison os arrastou,a velha torrente, a torrente de

Cison.Marcha, ó minha alma,

resolutamente!Ouviu-se, então, o troar dos cascos

dos cavalos,

ao tropel, ao tropel dos cavaleiros.

Amaldiçoai Meroz, disse o Anjo doSenhor,

amaldiçoai, amaldiçoai seushabitantes!

Porque não vieram em socorro doSenhor,

em socorro do Senhor, com osguerreiros.

Bendita seja entre as mulheres Jael,mulher de Heber, o quenita!

Entre as mulheres da tenda sejabendita!

Ao que pediu água, ofereceu leite;serviu nata em taça nobre.

Com uma das mãos segurou oprego, e com a outra o martelo

de operário,e malhou Sisara, espedaçando-lhe a

cabeça,…Aos seus pés ele vergou, tombou,

ficou;…Onde vergou, ali ficou abatido!

Da janela, através das persianas, amãe de Sisara olha e clama:

“Por que tarda em chegar o seucarro?

Por que demoram tanto as suascarruagens?”

As mais sábias das damas lherespondem,

e ela mesma o repete a si própria:“Devem ter achado despojos, e os

repartem:uma moça, duas moças para cada

homem,despojos de tecidos multicores para

Sisara,despojos de tecidos multicores,

recamados;uma veste bordada, dois brocados,

para os ombros do vencedor.”

Assim pereçam, Senhor, todos osvossos inimigos!

E os que vos amam sejam como osol quando nasce resplendente.

15. Sansão

Quando se faz a guerra, acontecemoutros tipos de contato. Subindo pelodeserto na direção da Palestina, osisraelitas seriam submetidos a váriasformas de sedução. Antes de tudo, a daprópria terra, que é de uma prodigiosadiversidade. Ela é árida no planalto daJudeia; mas, um pouco ao norte, ficamos vales férteis que confirmariam a ideiade um lugar “onde jorram o leite e omel”.

Para os hebreus, era um contrastebrutal com os longos anos de travessia

do deserto e de moral estrita. Diantedeles, desdobrava-se não só um cenáriofascinante, banhado naquela luz que faza fama da Grécia, mas a experiência deculturas muito diferentes. Ao nomadismodo povo hebreu contrapunha-se osedentarismo de populações que viviamda agricultura, que praticavam os ritosde fertilidade onde o sexo tinha papelimportante. Os povos de Canaãadoravam Baal, o senhor da terra, sobdiversas aparências, como a domonstruoso Moloch, ao qual seofereciam sacrifícios humanos –inclusive de crianças. Mas tambémhavia a deusa nua Astarté, que garantia afecundidade dos rebanhos e em cujostemplos se praticava a prostituição

Umcalafriodeterroremergedostextosbíblicosque sereferemàspopulações

sagrada (de homens e de mulheres).Para o povo que vinha

do deserto, eraprovocação demais – eum calafrio de terroremerge dos textosbíblicos que se referem aessas populaçõesidólatras. Talvez por issoalguns deles sejam tãoduros: eles tentavamevitar o pior, o contágiodegradante.

Nem sempre forambem-sucedidos. As moçasfilisteias, de moral fácil,exercendo artes milenaresde sedução, significavam

idólatras.outros tantos testes àintegridade dosguerreiros de Israel.

É o que vemos na história deSansão, que em quase tudo se comportoucomo um verdadeiro herói. O “pequenosol” – que é o significado do seu nome –cresceu de um modo que deixava claroum destino providencial. Sua força nãoconhecia limites; e nem suas cóleras.Mas de suas paixões bem humanas nãoestavam excluídas as filisteias – o queresulta em histórias pitorescas eviolentas no Livro dos Juízes.

Um dia, ele encontra Dalila, queconsegue submetê-lo a seus encantos. Osfilisteus tomam conhecimento disso eprometem à moça qualquer recompensa

se ela conseguir desvendar o segredo daforça de Sansão.

Como que se divertindo, Sansão dáexplicações falsas – e cada uma delas épretexto para que ele surre os filisteusprontos a acorrentá-lo. Mas um dia,talvez cansado das lamentações deDalila, ele conta a verdade: sua forçavem de que nunca a navalha passou porseus cabelos. A traidora filisteiaconsegue que ele entre num sonoprofundo. Os cabelos são cortados; edessa vez, quando os filisteus caemsobre ele, não existe mais a força sobre-humana. O herói, amarrado, tem os olhosfurados, e a partir daí transforma-se emjoguete nas mãos de seus inimigos (umdos maiores poemas da língua inglesa,

Históriatrágicaa deSansão,masquetem umsignificadosimbólico:o da

“Samson agonistes”, de Milton,descreve o cativeiro e os sofrimentos deSansão, tanto mais significativos, para opoeta, porque ele também ficara cego).

Mas Javé permitirá aSansão uma últimavingança. Um dia em quetinha sido levado maisuma vez para servir dechacota numa festa que serealizava no templo deDagon, ele pede aomenino que o conduziaque o deixe tocar nascolunas do templo. Seuscabelos tinham crescido;a antiga força estava devolta. Ele se agarra às

rejeiçãodopecadoe daidolatria.

colunas e, de repente,todo o templo vemabaixo, liquidando maisfilisteus do que ele tinhaeliminado durante toda avida.

História trágica,patética, mas que tem umsignificado simbólico: o da rejeição dopecado e da idolatria, o do retorno aoDeus de Israel.

16. O trono e oTemplo

A figura de Samuel emerge das páginasda Bíblia com um relevo extraordinário.(Talvez se possa imaginar, aqui, a mãodos escribas do rei Davi, relatando fatosainda recentes.) Ele é o último dosJuízes; por seu intermédio, nascerá amonarquia de Israel.

Presença enorme em tempo dedificuldades, ele parece especial desdeo nascimento. Sua mãe, Ana, casada como sacerdote Elcana, prometera entregar

ao serviço do Templo o filho que eladesejava e que demorava a nascer.Quando isso acontece, ela leva o meninoao sacerdote Heli e, diante dele,prorrompe num cântico belíssimo queprefigura o “Magnificat” da VirgemMaria: “Exulta o meu coração noSenhor, nele se eleva a minha força. …Ninguém é santo como o Senhor, nãoexiste outro Deus além de vós…”

Eram tempos maus para Israel. Heliestava velho e tinha filhos que causavamum escândalo depois do outro. Samuel,agora crescido, recebe um chamadonoturno (numa página famosa da Bíblia)em que o Senhor se dirige a elepessoalmente, anunciando catástrofes eo fim do sacerdócio de Heli.

Os fatos não se fazem esperar. Osisraelitas entram em choque com osfilisteus. Como garantia da vitória,levam para o campo de batalha a Arcada Aliança, onde ficavam guardadas asTábuas da Lei de Moisés. Mas o que sesegue é a derrota inapelável, e osfilisteus levam a Arca.

Heli recebe a notícia sentado naentrada do Templo. Cai para trás, fraturao crânio e morre. Tinha sido Juiz emIsrael durante quarenta anos.

Samuel é o seu sucessor. Mas vinteanos se passarão até que os israelitasconsigam trazer a Arca de volta.

Com Samuel, o país recupera o seuorgulho. Mas os adversárioscontinuavam por perto. A conquista da

EramtemposmausparaIsrael.Heliestavavelho etinhafilhosquecausavam

“terra prometida” ainda é um sonho.Envelhecendo

Samuel, também seusfilhos se comportam mal,como os de Heli (ó pragauniversal do nepotismo!).O povo começa amurmurar: “Estás velho, eteus filhos não seguem astuas pisadas. Dá-nos umrei que nos governe,como têm todas asnações!”

É o que basta paraque o velho profeta seamargure. Homem deDeus, ele tem com oAltíssimo um diálogo

umescândalodepoisdooutro.

notável. Diz-lhe oSenhor: “Ouve a voz dopovo em tudo que tedisserem. Não é a ti queeles rejeitam, mas a mim,pois já não querem que eureine sobre eles. Fazemcontigo o que sempre têmfeito comigo, desde o dia em que os tireido Egito: abandonam-me para servir adeuses estranhos. Atende-os agora, masfala-lhes solenemente, dando-lhes aconhecer os direitos do rei que reinarásobre eles.”

Talvez se possa falar, aqui, numcaso de duplo ciúme! Mas era, de fato,uma passagem histórica: Israel não quermais ser teocracia, quer ser uma nação

como as outras. Para isso, havia até ummotivo prático: um rei, unificando astribos, parecia ter mais chances decombater os encarniçados filisteus.

Samuel, depois de arengar osisraelitas, explicando a eles o queestavam realmente querendo, unge o reiindicado por Javé – primeira vez naHistória em que acontece esta cena queirá repetir-se pelos séculos afora nospaíses cristãos (daí o “direito divinodos reis”).

E assim entra na Bíblia opersonagem shakespeariano que é Saul –homem forte, complexo, impulsivo. Datribo de Benjamim, era jovem e belo nomomento da unção: “Não havia emIsrael outro mais belo do que ele”, diz o

Livro de Samuel: “do ombro para cima,sobressaía a todo o povo.”

O que Saul assumiu ainda não eraum Estado organizado. Depois dasagração, Saul “voltou para sua casa, emGabaa, acompanhado de homensvalentes, cujos corações tinham sidotocados pelo Senhor”.

Samuel abdicara de suas funções delíder nacional. Mas ainda era o líderespiritual de Israel. Na primeiraemergência – novo ataque dos filisteus–, Saul convoca o povo. O velho profetademora a aparecer. Saul, então, realiza oholocausto e os sacrifícios preparatóriospara a batalha.

Chega Samuel, que interpela o rei.Saul se explica: “Vendo que o povo se

EntranaBíblia opersonagemshakespearianoque éSaul –

dispersava, e que tu não chegavas notempo fixado, e que os filisteus setinham juntado em Macmas, penseicomigo: agora eles vão cair sobre mimem Gálgala, sem que eu tenha aplacadoo Senhor. Por isso ofereci eu mesmo oholocausto.”

Responde Samuel:“Procedesteinsensatamente, nãoobservando omandamento que te deu oSenhor teu Deus, queestava pronto a confirmarpara sempre o teu tronosobre Israel. Agora o teureino não subsistirá. OSenhor escolheu para si

homemforte,complexo,impulsivo.

um homem segundo o seucoração, e o fará chefe doseu povo, porque nãoobservaste as suasordens” (ou seja, acorreta relação entrepoder temporal e poderespiritual).

Essa não foi a única divergênciaentre Saul e Samuel. Mesmo assim, ficaa impressão de que toda essa parte dodrama é tratada num ritmo acelerado.Aparentemente, não foi dada a Saul umachance real de arrependimento. Seriam,aqui, os escribas de Davi traduzindo umressentimento que se aprofundaria entreos partidários de Saul e os de seusucessor? O fato é que, a partir daí, o rei

passa a sofrer de uma oscilação detemperamento que, aos poucos, vai seagravando. Na linguagem da Bíblia, eleestaria sendo visitado periodicamentepor “um espírito mau” (hoje em diatalvez disséssemos: grandesdepressões).

A música o acalmava. Um cortesãoinforma que Isaí, de Belém, tem um filhode agradável aspecto que toca harpa.Mandam buscar o jovem; e assimcomeça um extraordináriorelacionamento.

O jovem é Davi, que pouco depoisvai ser ungido por Samuel – ainda vivo– como sucessor de Saul. Quando eleaparece, as páginas da Bíblia seiluminam. Ele seria o maior rei de

Israel, fundador de uma estirpe na qualse incluiria o próprio Cristo.

Davi vem para tocar harpa. “Sempreque o espírito mau acometia o rei, Davitomava a harpa e tocava. Saul acalmava-se, sentia-se aliviado, e o espírito mau odeixava.”

Asguerrasvãomal, os

17. Davi e Golias

Na continuação do Primeiro Livro deSamuel, vemos Davi novamente na cortede Saul, mas num contexto totalmentediferente, e como se o rei não oconhecesse (pode acontecer, na Bíblia,que uma mesma narrativa venha defontes diferentes).

As guerras vão mal,os filisteus estão naofensiva. E, de repente,eles apresentam uma armasecreta: “Saiu doacampamento dos

filisteusestãonaofensiva.E, derepente,elesapresentamumaarmasecreta:umcampeão

filisteus um campeãochamado Golias, de Get,cujo talhe era de seiscôvados e um palmo.Trazia na cabeça umcapacete de bronze e nocorpo uma couraça deescamas …. Tinhaperneiras de bronze e umdardo de bronze entre osombros. O cabo de sualança era como o cilindrode um tear, e sua pontapesava seiscentos siclosde ferro.”

Descriçãoassustadora. Mas não épreciso imaginar um

chamadoGolias.

gigante como o dashistórias infantis. O que aBíblia quer dizer é queera um homem muito alto,

e que, além de estar todo armado para aguerra, exibia um discurso não menosassustador. Ele lança o seu desafio:

“Por que viestes dispostos a umabatalha? Não sou eu filisteu, e vós osescravos de Saul? Escolhei entre vós umhomem que desça contra mim. Se ele mevencer, batendo-se comigo, e me matar,seremos vossos escravos. Mas se eu ovencer e o matar, então vós é que sereisnossos escravos e nos servireis.”

Na Bíblia, e em toda a literaturaantiga, a retórica é às vezes maisimpactante do que a ação. E a de Golias

NaBíblia,e emtoda aliteraturaantiga,aretórica

atinge o seu alvo: “Saul e todo o Israelouviram essas palavras do filisteu eficaram consternados, cheios de medo.”Israel já tinha a experiência de outrasderrotas frente aos filisteus. Por que,agora, seria diferente?

Pela segunda vez,Davi vai entrar na cenabíblica. Ele era o filhomais moço de Isaí, cujostrês filhos mais velhosestavam com Saul. Seupai manda-o levarprovisões aos irmãos etrazer notícias.

Davi chega aoacampamento a tempo deouvir um dos desafios

é, àsvezes,maisimpactantedo quea ação.

diários de Golias, e vê opânico dos israelitas.“Vedes, diziam eles, essehomem que avança? Elevem insultar Israel.Aquele que o matar, o reio cumulará de favores,dar-lhe-á sua filha eisentará de impostos acasa de seu pai.”

Davi pergunta: “Que será feitoàquele que ferir esse filisteu e tirar oopróbrio que pesa sobre Israel? E quemé esse filisteu incircunciso para insultardesse modo o exército do Deus vivo?”

Seus irmãos tratam de levá-lo aoridículo, numa cena que lembra ocomportamento dos filhos de Jacó em

relação a José. “Quem mandou vocêvir? Com quem deixaste as ovelhas nodeserto?” Mas o grande biblista WalterBrueggemann chama a atenção para ocontexto “teológico” das palavras deDavi. Israel, apavorado ante o desafiodo gigante, comporta-se como se Deusfosse irrelevante para a batalha. Se Deusé irrelevante face aos filisteus, entãotudo está perdido. Mas Davi – o “heróiinocente” dos velhos livros de cavalaria– não entende que se possa fazerabstração do Deus vivo, sustentáculo deIsrael.

Os fatos chegam aos ouvidos do rei,que tem uma reação ambígua. Ele nãopode saber o que está realmente por trásda convicção de Davi, mas, numa

situação de desespero e desmoralizaçãopara Israel, não custa ouvir um poucoalguém que ainda se apoia cegamente nanoção de um Deus que pode criar coisasnovas.

E Davi se defende: “Quando o teuservo apascentava as ovelhas do seu paie vinha um leão ou um urso roubar umaovelha do rebanho, eu o perseguia e omatava, tirando-lhe a ovelha da boca. Ese ele se levantava contra mim,agarrava-o pela goela e o estrangulava.… O Senhor, que me salvou das garrasdo urso e do leão, salvar-me-á tambémdas mãos desse filisteu.”

Saul se deixa convencer. Tentarecobri-lo com um armamentoconvencional – capacete de bronze,

couraça, espada –, que Davi rejeita semhesitação: “Não posso andar com isso,pois não estou acostumado.” Em vezdisso, ele toma do cajado e escolhe noriacho cinco pedras lisas, pondo-as noalforje de pastor que lhe servia debolsa. Em seguida, com a funda na mão,avança contra o filisteu.

A ação se precipita. Golias,precedido de seu escudeiro, aproxima-se de Davi: “Mediu-o com os olhos e,vendo que era jovem, louro e dedelicado aspecto, desprezou-o.” Fala ogigante: “Sou eu porventura um cão,para vires a mim com um cajado? Vem,e eu darei a tua carne às aves do céu eaos animais da terra” (suprema desonrapara um guerreiro).

Davi responde: “Tu vens contra mimcom espada, lança e escudo. Eu, porém,vou contra ti em nome do Senhor dosExércitos, do Deus das fileiras de Israel,que tu insultaste. Hoje, o Senhor teentregará nas minhas mãos, e eu tematarei, te cortarei a cabeça e darei oscadáveres do exército dos filisteus àsaves do céu e aos animais da terra”.“Toda a Terra saberá que há um Deusem Israel, e toda essa multidão saberáque não é com a espada nem com a lançaque o Senhor triunfa, pois a batalha é doSenhor, e ele vos entregou em nossasmãos!”

Parece literário para um momento decombate, mas assim os capitães daAntiguidade arengavam suas tropas, ou

exprobavam seus inimigos. A partir daí,o desfecho é rápido: “Levantou-se ofilisteu e marchou contra Davi. Davitambém correu para a linha inimiga aoencontro do filisteu. Meteu a mão noalforje, tomou de uma pedra earremessou-a com a funda, ferindo ofilisteu na testa. A pedra penetrou-lhe nafronte, e o gigante caiu com o rosto porterra. Assim venceu Davi o filisteu. Ecomo não tinha espada, correu aofilisteu, subiu-lhe em cima, arrancou-lhea espada da bainha e acabou de matá-lo,cortando-lhe a cabeça. Vendo morto oseu campeão, os filisteus fugiram.”

Delírio em Israel, que recuperavaum herói à altura dos grandes Juízes –Josué, Gedeão. Começava a lenda de

Davi, que se estenderia pelos séculosafora.

Mas o ciúme entrava na alma deSaul. “Voltando o exército, depois deDavi ter matado o filisteu, saíam asmulheres ao encontro do rei Saul,cantando e dançando ao som dostamborins e címbalos. E diziam: ‘Saulmatou os seus mil, e Davi seus 10 mil.’Irritou-se Saul ao extremo, edesagradou-lhe tal coisa. ‘Dão 10 mil aDavi, e a mim apenas mil. Só lhe falta acoroa!’”

Prossegue o texto bíblico: “No diaseguinte, apoderou-se de Saul umespírito mau, e ele teve um acesso dedelírio em sua casa. Como nos outrosdias, Davi pôs-se a tocar a cítara. Saul,

que tinha uma lança na mão, arremessou-a contra Davi, dizendo: ‘Vou cravá-lona parede.’ Mas Davi desviou-se dogolpe por duas vezes.

“Saul temia Davi porque o Senhorestava com o jovem, e tinha se retiradodele. Afastou-o então de si,estabelecendo-o chefe de mil homens, àfrente dos quais Davi empreendia suasexpedições. Saiu-se bem em todas assuas empresas, porque o Senhor estavacom ele. Saul, vendo-o tão engenhoso,teve medo dele. Mas todos em Israel eJudá o amavam, porque ele entrava esaía diante deles.”

18. A Arca emJerusalém

Morto Golias, Saul cumpre apromessa e dá a Davi sua filha Micolem casamento. Mas já então todos ospensamentos do rei convergiam para aeliminação de Davi. Essa parte do Livrode Samuel se lê como um romance deaventuras, Davi saltando como umcabrito-montês para escapar dasperseguições de Saul. Há até lancescômicos, como o dia em que o rei, emcampanha, entra numa caverna para

Emdesespero,Saullançamão detodososrecursos;

satisfazer suas necessidades semperceber que Davi estava escondido alie poderia matá-lo, se quisesse. E sobreesse pano de fundo de ódio ressaltaainda mais a amizade entre Davi eJônatas, filho de Saul.

Em desespero, Saullança mão de todos osrecursos; e uma páginaimpressionante é suavisita à feiticeira deEndor, quando lheaparece o fantasma deSamuel para dizer que, defato, seus dias estãocontados, e a coroaterminará na cabeça deDavi.

e umapáginaimpressionanteé suavisita àfeiticeiradeEndor.

O fim inglório cheganuma escaramuça com osfilisteus, de que resultama morte de Saul e deJônatas. Davi prorrompenum cântico que é deguerra e de tristeza:

Tua flor, Israel, pereceu nasalturas!

Como tombaram os heróis?

Não anuncieis em Get, nem opubliqueis

nas ruas de Ascalon,para que não exultemas filhas dos filisteus,para que não se regozijem

as filhas dos incircuncisos.

Montanhas de Gelboé,não haja sobre vósnem orvalho nem chuva!Campos assassinos,onde foi maculadoo escudo dos heróis!

Num Israel profundamente dividido,ainda vai se passar algum tempo até queDavi consolide realmente suaautoridade. Mas um ponto alto é atomada de Jerusalém, que Davi, comvisão estratégica, transformará em suacapital – a cidade nas montanhas, deonde se divisam as planícies de Judá. E

ponto mais alto ainda é o transporte,para Jerusalém, da Arca da Aliança. Dizo texto:

“Quando os carregadores da Arcado Senhor completavam seis passos,sacrificavam-se um boi e um bezerrocevado. Davi dançava com todas as suasforças diante do Senhor, cingido com umefod de linho [veste sacerdotal muitocurta, que cobria somente a cintura]. Orei e todos os israelitas conduziram aArca do Senhor, soltando gritos dealegria e tocando a trombeta. Ao entrar aArca do Senhor na cidade de Davi,Micol, filha de Saul, olhando pelajanela, viu o rei Davi saltando edançando diante do Senhor. Edesprezou-o em seu coração.

“… Voltando Davi para abençoar afamília, Micol, filha de Saul, veio-lheao encontro e lhe disse: ‘Como sedistinguiu hoje o rei de Israel, dando-seem espetáculo às servas de seus servose descobrindo-se sem pudor, comoqualquer um do povo!’ Respondeu Davi:‘Foi diante do Senhor que dancei; diantedo Senhor que me escolheu e mepreferiu a teu pai e a toda a tua família,para fazer-me o chefe de seu povo deIsrael. Foi diante do Senhor que dancei.E me rebaixarei ainda mais, e meaviltarei aos teus olhos, mas sereihonrado pelas escravas de que falaste.’E Micol, filha de Saul, não teve maisfilhos até o dia de sua morte.”

Depois disso, a Bíblia registra

Nãodemoramuitopara

diversas campanhas militares de Davi,contra os filisteus, os moabitas, osamorreus de Damasco, todas elas bem-sucedidas. Israel finalmente parece maisseguro de suas fronteiras. Num encontrocom o profeta Natã, Davi expressa suaintenção de construir, em Jerusalém, umtemplo para o Senhor. Mas o profeta,depois de uma visão noturna, traz a Daviuma mensagem do Senhor segundo aqual a construção desse templo caberá aum filho de Davi (o futuro rei Salomão).

Davi responde comuma bela oração em quese coloca inteiramentenas mãos de Deus. Devemdatar dessa época algunsdos Salmos que lhe são

queDavidescubracomoos reisestãosujeitosàsmesmaspaixõesqueatormentamo

atribuídos, expressãofervorosa dareligiosidade de Israelnum momento em queparecia chegar a um pontoculminante a Aliançaestabelecida desde osdias do monte Sinai.

Mas não demoramuito para que Davidescubra como os reisestão sujeitos às mesmaspaixões que atormentam ocomum dos mortais.

comumdosmortais.

O LivrodeSamuelretrataumaépocaem queaguerra

19. A queda

Poucas histórias são tãoconcisas e eficazes, naBíblia, como a quedescreve o pecado deDavi. “Na época em queos reis saem para aguerra”, diz o Livro deSamuel, “Davi enviouJoab com os seussuboficiais e todo oIsrael, que devastaram aterra dos amonitas esitiaram Raba.” Curioso

era tãocomumquetinhaatéestaçãopropícia.

texto, retratando umaépoca em que a guerra eratão comum que tinha atéestação propícia.

Davi ficara emJerusalém. Uma tarde,passeando pelo terraço deseu palácio, avistou láembaixo uma mulher quese banhava e que eramuito formosa.

Informando-se a respeito dela,disseram-lhe: “É Betsabé, filha deElião, mulher de Urias, o hiteu.”

Davi manda mensageiros trazerem amulher. “Ela veio, e Davi dormiu comela.” Em pouquíssimo tempo, Betsabédescobre que está grávida e manda a

informação ao rei. Davi, então, enviauma mensagem ao seu general, Joab:“Manda-me Urias, o hiteu.”

Chega Urias, que estava emcampanha, e Davi lhe pede notícias deJoab, do exército e da guerra.Terminada a entrevista, ele diz aoguerreiro: “Desce à tua casa e lava osteus pés.” Urias saiu do palácio do rei, eeste mandou que o seguissem. Aimplicação era óbvia: o “descanso doguerreiro” criaria o álibi para agravidez de Betsabé. “Mas Urias nãodesceu à sua casa: dormiu à porta dopalácio, com os demais servos de seuamo.”

Informado disso, o rei chamanovamente o guerreiro: “Não voltaste

porventura de uma viagem? Por que nãovais à tua casa?” Resposta de Urias: “AArca se aloja debaixo de uma tenda,assim como Israel e Judá. Joab, meuchefe, e seus suboficiais acampam aorelento, e teria eu ainda a coragem deentrar em minha casa para comer, bebere dormir com minha mulher? Pela tuavida, não farei tal coisa.”

Davi lhe diz: “Fica ainda hoje aqui;amanhã te despedirei.” Urias ficou. Nodia seguinte, Davi o convidou, fez comque ele comesse e bebesse em suapresença e o embriagou. Mas, chegandoa noite, Urias não foi para casa – comono dia anterior, deitou-se com os servosde Davi.

Na manhã seguinte, Davi escreveu

uma carta para Joab e mandou-a porUrias. Dizia a carta: “Põe Urias nafrente, onde o combate for maisardoroso, e desamparai-o para que eleseja ferido e morra.” Joab, que sitiava acidade, fez o que Davi mandara.“Saíram os assediados contra Joab etombaram alguns dos homens de Davi;morreu também Urias, o hiteu.”

Joab mandou informar Davi sobretodas as peripécias do combate,instruindo o mensageiro: “Quandotiveres contado ao rei todos ospormenores do combate, se ele seindignar e disser: ‘Por que vosaproximastes da cidade para lutar? Nãosabeis que atiram projéteis do alto damuralha? … Não foi assim que morreu o

filho de Abimelec? Por que vosaproximastes dos muros?’, então dirás:‘Morreu também o teu servo Urias, ohiteu.’”

Partiu o mensageiro e fez o que lhetinham mandado. Quando ele terminoude contar a sua história ao rei, disseDavi: “Diz a Joab que não se aflija porcausa disso, pois a espada devasta oraaqui, ora ali. Mas que ele prossigavigorosamente em sua luta contra acidade, até destruí-la.”

Conclui a Bíblia: “Ao saber damorte de seu marido, a mulher de Uriaschorou-o. Passado o luto, Davi mandoubuscá-la e recolheu-a em sua casa. Elase tornou sua mulher e lhe deu um filho.Mas o procedimento de Davi

desagradara ao Senhor.”Aparece então o profeta Natã, que

entra no palácio do rei e lhe diz: “Doishomens moravam na mesma cidade, umrico e outro pobre. O rico possuíaovelhas e bois em grande quantidade; opobre só tinha uma ovelha, que elecomprara. Ele a criava e ela cresciajunto dele, com os seus filhos, comendodo seu pão, dormindo no seu seio. Elaera para ele como uma filha. Um dia, ohomem rico recebeu uma visita e, nãoquerendo tomar de suas ovelhas nem deseus bois para servir ao recém-chegado,foi e apoderou-se da ovelhinha dopobre, preparando-a para o seuhóspede.”

Davi, indignado, diz a Natã: “Pela

vida de Deus! O homem que fez issomerece a morte. Ele restituirá sete vezeso valor da ovelha, por ter feito isso enão ter tido compaixão.”

Natã respondeu: “Tu és este homem.Eis o que diz o Senhor Deus de Israel:‘Ungi-te rei de Israel, salvei-te das mãosde Saul, dei-te a casa do teu senhor epus suas mulheres nos teus braços.Entreguei-te a casa de Israel e de Judá, ese isso ainda fosse pouco, eu teriaajuntado outros favores. Por quedesprezaste o Senhor, fazendo o que émau a seus olhos? Feriste com a espadaUrias, o hiteu, para fazer de sua mulher atua esposa, e o fizeste perecer pelaespada dos amonitas. Por causa disso,jamais se afastará a espada da tua casa.

AdoeceomeninoqueDavitiveracomBetsabé.

… Eis o que diz o Senhor: ‘Vou fazerque se levantem contra ti males vindosda tua própria casa. Sob os teus olhos,tomarei as tuas mulheres e as darei a umoutro, que dormirá com elas à luz do sol.Porque tu agiste em segredo, mas eu ofarei diante de todo o Israel.’”

Logo em seguida,adoece o menino queDavi tivera com Betsabé.O rei entra em desespero,passa dia e noite em casa,jogado por terra, vestidode um saco. “Ao sétimodia”, diz o texto, “morreuo menino, e os servos dorei não ousavam dar-lhe anotícia.” Mas quando,

O reientraemdesespero,passadia enoiteemcasa,jogadoporterra,vestido

finalmente, Davi éinformado, levanta-se,muda de roupa, põe umperfume e manda que lhesirvam a refeição. Aosservos espantados, eleexplica: “Eu jejuava eorava pelo menino,enquanto vivia, pensando:Quem sabe o Senhor terápena de mim e me deixaráo meu filho? Mas agoraque morreu, para quejejuar ainda? Posso poracaso fazê-lo voltar àvida? Eu é que irei parajunto dele. Ele, porém,não voltará mais a mim.”

de umsaco.

Termina a história:“Davi consolou Betsabé,sua mulher. Foi procurá-la e dormiu com ela. Ela

concebeu e deu à luz um filho, ao qualchamou Salomão. O Senhor o amou erevelou isso a Davi, por intermédio doprofeta Natã.” É um lado bem poucoconvencional do Senhor da Bíblia: ofilho de Betsabé terá um reinadoglorioso. Mas, para Davi, os problemasnão tinham terminado.

Pode ter sido nessa época que elecompôs o grande Salmo 50, que lhe éatribuído:

Tende piedade de mim, Senhor,segundo a vossa bondade.

E conforme a imensidão de vossamisericórdia,

apagai a minha iniquidade.Lavai-me totalmente da minha falta

e purificai-me de meu pecado.

Eu reconheço a minha iniquidade;diante de mim está sempre o meu

pecado.Só contra vós pequei:o que é mau fiz diante de vós.Vossa sentença assim se manifesta

justa,e reto o vosso julgamento.Eis que nasci na culpa,minha mãe concebeu-me no pecado.Não obstante, amais a sinceridade

de coração.Infundi-me, pois, a sabedoria no

mais íntimo de mim.Aspergi-me com um ramo de

hissope e ficarei puro.Lavai-me e me tornarei mais branco

do que a neve.Fazei-me ouvir uma palavra de

gozo e de alegria,para que exultem os ossos que

triturastes.Dos meus pecados desviai os olhos,e minhas culpas todas apagai.

20. Absalão,Absalão…

Como anunciado pelo profeta Natã,sofrimentos vão cair sobre a casa deDavi – todos eles contados no Livro deSamuel com a competência estilística deum grande escritor. Primeiro vem ahistória de Amnon, filho de Davi, que seapaixona por sua meia-irmã, Tamar.Aconselhado por um péssimo amigo,Amnon finge-se de doente e pede queTamar vá lhe levar alguma coisa em seuquarto. Quando isso acontece, ele

avança sobre a irmã. Ela tentaargumentar: “Não, meu irmão, não meviolentes. Não se faz tal coisa em Israel.Não cometas semelhante infâmia. Aondelevaria eu o meu opróbrio? E tu seriasolhado como um ímpio em Israel. Émelhor que fales ao rei: ele não recusarádar-me a ti.” Amnon não está pararaciocínios: usando da força, deita-secom a irmã. E depois disso, juntandoofensa a injúria, expulsa-a do quarto.

Tamar derrama cinza sobre acabeça, rasga o longo vestido e afasta-segritando. Cena que é presenciada porAbsalão, personalidade forte entre osfilhos de Davi, que passa a odiarAmnon. Diz o texto bíblico: “O rei Davisoube de tudo o que tinha acontecido, e

inflamou-se a sua cólera, mas não quisafligir seu filho Amnon, a quem amavapor ser o seu primogênito.”

Assim o grande rei decai na nossaestima, e na dos próprios filhos. Nãotarda muito e Absalão articula ummassacre de príncipes reais; mas oúnico a ser morto é Amnon. Davi sedesespera; Absalão foge para Gessur,onde ficará três anos.

Amigos do príncipe deixam passarum pouco de tempo e começam atrabalhar a reconciliação. Transcorridosmais seis anos, ele acaba sendoadmitido à presença do rei. Vem oabraço da paz.

Absalão tinha os recursos de umsedutor: “Não havia em todo o Israel

homem mais belo que Absalão, e quefosse tão admirado como ele. Da cabeçaaos pés, não havia nele defeito algum.Quando cortava o cabelo – o que fazia acada ano, porque a sua cabeleira setornava por demais pesada –, o pesodeste era de duzentos siclos, pelo pesoreal. Nasceram-lhe três filhos e umafilha, chamada Tamar, que era de grandebeleza.”

O fogo continuava aceso por baixoda palha. Absalão passa a conspirarcontra Davi. Sentava-se junto à grandeporta de Jerusalém e interpelavapessoas que vinham procurar o rei paraum julgamento. “Vê, dizia Absalão, a tuacausa é boa e justa; mas não há ninguémpara te ouvir da parte do rei.” E

acrescentava: “Ah, quem me dera serjuiz desta terra!”

Quatro anos se passaram; e o astronovo, como muitas vezes acontece,consegue eclipsar o velho. Um dia,Absalão se afasta de Jerusalém; e,quando se descobre, há uma revoltavinda de todos os lados. “Vieramanunciar a Davi: ‘Os israelitas aderem aAbsalão!’ Davi disse então a todos osque estavam com ele em Jerusalém:‘Vamos, fujamos, porque não podemosde outro modo escapar a Absalão!Apressaivos e parti, não suceda que elenos surpreenda de repente e nos inflija aruína, passando a cidade ao fio daespada.’”

As cenas que se seguem são

Quatroanos sepassaram;e oastronovo,comomuitasvezesacontece,consegueeclipsaro velho.

patéticas. “O rei partiu apé com toda a sua família,mas deixou dezconcubinas para guardaro palácio. O rei saiu,pois, a pé com todos osseus servos, e sedetiveram na última casa.Todo o seu exércitodesfilava ao seu lado; oscereteus, os feleteus etodos os geteus emnúmero de seiscentoshomens que o tinhamseguido desde Get, todosmarchavam diante dorei.” Força bem modestapara quem tinha

comandado multidões. Nasua fuga, o rei vem da cidade alta, nadireção do Cedron, o riachinho que oCristo atravessará na sua última noite.“Davi subiu chorando o monte dasOliveiras, cabeça coberta e descalço.Todo o povo que o acompanhava subiatambém chorando, com a cabeçacoberta.”

Sucedem-se as humilhações.“Quando o rei chegou a Baurim,apareceu um homem da família de Saul,chamado Semei, o qual ia proferindomaldições enquanto andava. Atiravapedras contra o rei Davi e contra todosos seus servos, embora guerreirosvalentes se encontrassem à direita e àesquerda do rei. E o amaldiçoava,

dizendo: ‘Vai-te embora, homemsanguinário, o Senhor faz cair sobre ti osangue da casa de Saul, cujo tronousurpaste.’” Um dos generais de Davi seoferece para cortar a cabeça doinsolente. Responde Davi: “Se meufilho, fruto das minhas entranhas,conspira contra a minha vida, quantomais agora esse benjaminita? Deixai-oamaldiçoar, se o Senhor o ordenou.Talvez o Senhor considere a minhaaflição e me dê compensação por essesultrajes.”

Os ultrajes aconteciam também emoutro cenário. Absalão entra vitoriosoem Jerusalém. Um de seus companheirosde armas, Aquitofel, sugere: “Aproxima-te das concubinas de teu pai, que

ficaram aqui para guardar o palácio.Assim todo o Israel saberá que tetornaste odioso ao teu pai, e os teuspartidários ganharão coragem.”“Armaram para Absalão uma tenda noterraço, e ali, à vista de todo o Israel,ele vinha abusar das concubinas de seupai.”

O que se segue é a guerra, porqueDavi continuava a ser um grandegeneral, e ainda tinha quem o apoiasse.Depois de algumas escaramuças, chegaa hora do confronto decisivo (sabemosaté, pela Bíblia, o modo como Daviorganizou o seu exército). O rei, comobom soldado, queria pôr-se à frente dastropas, mas seus homens nãoconcordam: “Não, tu não irás; pois, se

fugíssemos, não dariam atenção a isso, emesmo que morra a metade de nós, issonão teria importância. Tu, porém, valespor 10 mil.” Davi concorda em ficar naretaguarda. Mas dá uma ordem:“Poupai-me o jovem Absalão.”

“Saiu o exército contra Israel etravou-se o combate na floresta deEfraim. Os israelitas foram batidos pelagente de Davi, e houve naquele dia umagrande carnificina.”

Assim se chega ao ato final:“Absalão encontrou-se de repente

em presença dos homens de Davi.Montava uma mula, e esta enfiou-se soba folhagem espessa de um grandecarvalho. A cabeça de Absalão prendeu-se nos galhos da árvore, e ele ficou

O reisubiuaoquartoe pôs-se achorar.E,enquantoia,dizia:

suspenso entre o céu e a terra, enquantoa mula que montava passava adiante.”

Foram contar a Joab,general de Davi, porqueninguém tinha coragem deatingir o filho do rei. Joabveio correndo, tomou trêsdardos e os plantou nocoração de Absalão. “Eestando ele ainda vivo nocarvalho, dez jovensescudeiros de Joab ocercaram e acabaram dematá-lo.”

Ao rei Davi iamchegando informações dabatalha e de como osrebeldes estavam sendo

“Absalão,meufilho,meufilhoAbsalão…Por quenãomorriem teulugar?”

derrotados. A todos eleperguntava por Absalão,sem obter resposta, atéque chega o últimomensageiro, um cusita:“Saiba o rei, meu senhor,da boa-nova: o Senhor tefez hoje justiça contratodos os que se tinhamrevoltado contra ti.” O reidisse ao cusita: “Tudo vaibem para o jovemAbsalão?” E omensageiro respondeu:“Sejam como esse jovemos inimigos do rei, meusenhor, e todos os que se levantamcontra ti para te fazer mal.” “Então o rei

comoveu-se, subiu ao quarto e pôs-se achorar. E, enquanto ia, dizia: ‘Absalão,meu filho, meu filho Absalão… Por quenão morri em teu lugar? Absalão, meufilho, meu filho…’”

21. Salmos: luz esombra

A ordem do mundo pode ser uma coisainfinitamente majestosa. Montaigne, quedeixou fama de cético, escreveu umavez: “Não é só que Deus tenha criado omundo; como ele o fez bonito!”

Na cidade grande, normalmenteperdemos a noção disso. Mas é só sairum pouco dos centros urbanos e, derepente, a natureza aparece com umaglória – um excesso de beleza – que nãotem nada de “natural”.

Comotudoparececaminharsegundoumadeterminadalei! Oshindustêmparaisso ogrande

Belezae

E sustentando aglória, há a ordem,surpreendente: a ordemque se pode ver tanto nomovimento dos astroscomo na vidinha rasteiradas formigas. Como tudoparece caminhar segundouma determinada lei! Oshindus têm para isso ogrande conceito dodharma – a lei universalque rege a natureza e avida dos homens.

Umgrandeartistapode ter

conceitododharma.

consistênciacaminhamjuntasparacriarumaimpressãodeserenidadeextraordinária.

acesso aesse plano.Na músicaclássica, éa sensaçãoque

transmite, por exemplo, aobra de Bach: exatamenteessa impressão de umacoisa que, ao mesmotempo, é bela econsistente; como se vocêestivesse pisando numchão inabalável – belezae consistênciacaminhando juntas para criar umaimpressão de serenidade extraordinária.

É um tipo de visão que podemos

encontrar no Livro dos Salmos – umaperspectiva que levanta nossos olhos dapoeira do dia. Por exemplo, no Salmo103 (104 da Bíblia hebraica):

Senhor, meu Deus, vós soisimensamente grande!

De majestade e esplendor vosrevestis,

envolvido de luz como de um manto.Vós estendestes o céu qual

pavilhão,acima das águas fixastes vossa

morada.De nuvens fazeis vosso carro,

andais nas asas do vento;fazeis dos ventos os vossos

mensageiros,

e dos flamejantes relâmpagosvossos ministros.

Fundastes a terra em bases sólidasque são eternamente inabaláveis.Vós a tínheis coberto com o manto

do oceano,as águas ultrapassavam as

montanhas.Mas à vossa ameaça elas se

afastaram,ao estrondo de vosso trovão

estremeceram.Elevaram-se as montanhas,

sulcaram-se os valesnos lugares que vós lhes

destinastes.

Estabelecestes os limites, que elasnão hão de ultrapassar,

para que não mais tornem a cobrira terra.

Mandastes as fontes correr emriachos,

que serpeiam por entre os montes.Ali vão beber os animais dos

campos;neles matam a sede os asnos

selvagens.Os pássaros do céu vêm aninhar-se

em suas margens,e cantam entre as folhagens.Do alto de vossas moradas

derramais a chuva nasmontanhas,

do fruto de vossas obras se farta aterra.

Fazeis brotar a relva para o gado,e plantas úteis ao homem,para que da terra possa extrair o

pãoe o vinho que alegra o coração do

homem.

Assim prossegue o salmo, nesse tom“cósmico” que poderia prolongar-seindefinidamente. Lembra um poucocertos quadros chineses antigos, em quea figura humana aparece muito pequenadentro de uma natureza que irradiabeleza.

Essa sensação de segurança absoluta

O LivrodosSalmosé o

aparece em outros salmos, e é um dadofundamental na psicologia religiosa deIsrael. Como no Salmo 124, que diz:

Os que confiam no Senhor são comoo monte Sião,

eternamente firme.Assim como Jerusalém está toda

cercada de montanhas,assim o Senhor envolve seu povo,

agora e sempre.Mas o Livro dos

Salmos tem uma outraface – porque ele é oretrato íntimo da vidareligiosa de Israel. Esabemos que a vida (nãosó a religiosa) alterna

retratoíntimoda vidareligiosadeIsrael.Esabemosque avida(não sóareligiosa)

Se ossantostêm assuasangústias,muito

bons e maus momentos. Orabino Nilton Bonderdizia, numa palestrarecente, que a vidaespiritual depende dedois aspectos: a intuiçãodo transcendente e osentimento do “mal-estar”.

alternabons emausmomentos.

mais ohomemcomum.Issotambémapareceuna arte.

Curiosa afirmação.Não está o homemreligioso sempre seguroda misericórdia divina, edo seu destino após a

morte? Isso pode ser verdade emalgumas pessoas – os santos, porexemplo – que chegaram a um graudefinitivo de realização espiritual. Masnão é sabido que, mesmo na vida dossantos, a paz da transcendência nãobrilha sempre? E se os santos têm as

suas angústias, muito mais o homemcomum. Isso também apareceu na arte.Faz parte do espírito da Renascença,quando o homem ocidental quaserompeu com o legado “religioso” daIdade Média. Shakespeare descreveu, noRei Lear, a angústia humana diante deuma realidade que não podemoscontrolar; descreveu a perplexidade deHamlet, os crimes da família Macbeth.

Aqui na nossa literatura, temos olegado de Camões, que não só cantou o“mal de amor” como a sensação quasemetafísica do “desconcerto do mundo”.É o tema de uma das suas oitavas:

Quem pode ser no mundo tãoquieto,

Ou quem terá tão livre opensamento,

Quem tão expr’imentado e tãodiscreto,

Tão fora, enfim, de humanoentendimento

Que, ou com público efeito, ou comsecreto,

Lhe não revolva e espante osentimento,

Deixando-lhe o juízo quase incerto,Ver e notar do mundo o

desconcerto?

Esse “desconcerto do mundo” é umaespécie de mal-estar existencial – que,no mundo moderno, desembocou

exatamente no existencialismo, noHomem revoltado de Albert Camus.

No caminho da vida, mesmo aspessoas mais “bem-resolvidas” tendema oscilar entre esses dois polos. Há ummomento em que você conseguesintonizar com aquela harmonia docosmos – sobretudo se você tem umcerto tipo de espírito filosófico, ochamado “nervo metafísico”. É o quefazia um Emerson referir-se a “thesplendour of meaning that plays overthe visible world” (o esplendor desentido que parece pairar sobre o mundovisível).

Um instante depois, ou algumashoras depois, ou um dia depois, foi-se osentido da harmonia; a vida range nas

É ochoqueexistencialque nosarrancado

suas juntas como um carro maltratado. Eo mais curioso é que isso não éespecialidade dos adultos. Quem não selembra daquela tristeza funda,aparentemente sem motivo, que podeacometer uma criança? (Talvez porqueas crianças tenham o “nervo metafísico”ainda não embotado pelas correrias davida.)

O “mal-estarexistencial” não é umcapricho dos filósofos: éum aguilhão que recordaao ser humano aespecialidade do seudestino; o fato de que, aocontrário dos animais,não estamos neste planeta

comodismo;quepode,eventualmente,quebraracarapaçado ego– o queésinônimodesalvação.

apenas para atender aalguns instintos básicos edepois mergulhar numsono profundo.

Todas as grandestradições religiosasmencionam essa funçãodo choque existencial, daprópria dor, como meiode acordar o indivíduopara a sua verdadeiravocação – a da procurade uma resposta. É ochoque existencial quenos arranca docomodismo; que pode,eventualmente, quebrar acarapaça do ego – o que é

sinônimo de salvação.Na história de Israel, essas duas

realidades se alternam – a da confiançae a do pedido de socorro. Muitas vezes,esse pedido ainda comporta umaconotação filial – como alguém quechama o pai sabendo que ele está perto.

Outras vezes, um salmo podeexpressar uma angústia mais funda, adescida num poço que parece não terfim. Por exemplo, o Salmo 87, do qualparece ter se retirado toda a luz:

Senhor, meu Deus, de dia clamo avós,

e de noite vos dirijo o meu lamento.Chegue até vós a minha prece,inclinai vossos ouvidos à minha

súplica.Minha alma está saturada de malese próxima da região dos mortos a

minha vida.Já sou contado entre os que descem

à tumba,tal qual um homem inválido e sem

forças.Meu leito se encontra entre os

cadáveres,como os dos mortos que jazem no

sepulcro,dos quais vós já não vos lembrais,e não vos causam mais cuidados.Vós me lançastes em profunda

fossa,nas trevas de um abismo.

Sobre mim pesa a vossaindignação;

vós me oprimis com o peso dasvossas ondas.

Afastastes de mim os meus amigos,objeto de horror me tornastes para

eles.Estou aprisionado sem poder sair,meus olhos se consomem de aflição.

Até o fim, é o tom do salmo,certamente um dos mais escuros daBíblia:

Por que, Senhor, repelis a minhaalma?

Por que me ocultais a vossa face?

Emsituaçõesmenosextremas,podemossentir aluzdandocertezade um

Na linguagem dos místicos, seriapossível dizer que é a “noite escura”que são João da Cruz descreveu comoum caminho de purificação.

Mas essas sãoextremidades da vidaespiritual. Em situaçõesmenos extremas, podemossentir esse tecido de luz ede sombra – a luz dandocerteza de um destino; asombra, mostrando queainda não chegamos lá, eque, se alguém se deixacapturar pelos atrativosda estrada, corre o riscode não chegar nunca – dedesperdiçar a melhor de

destino;asombra,mostrandoqueaindanãochegamoslá.

todas as oportunidades.

22. Salomão

Tudo em Salomão é grandioso esolene; mas ele parece mais distante denós do que seu pai, Davi. E um dosgrandes mistérios da Bíblia (ou danatureza humana) é que o reinado maisglorioso coincida com o começo dodeclínio de Israel.

Sagrado rei, Salomão vai a Gabaonpara ali oferecer um sacrifício (oTemplo ainda não tinha sidoconstruído). O Senhor lhe aparece emsonhos e diz: “Pede-me o que quiseres,e eu te darei.”

Salomão responde: “Destes comliberdade vossa graça ao vosso servoDavi, meu pai, porque ele andou emvossa presença com fidelidade, najustiça e retidão de seu coração. Emvirtude dessa grande benevolência,destes-lhe um filho que hoje está sentadono seu trono. … Mas eu não passo de umadolescente, e não sei como meconduzir. … Dai, pois, ao vosso servoum coração sábio, capaz de julgar ovosso povo e discernir entre o bem e omal.”

O Senhor respondeu: “Pois que mefizeste este pedido, e não pediste nemlonga vida, nem riqueza, nem a morte deteus inimigos, mas sim inteligência parapraticar a justiça, vou satisfazer o teu

O dia adia de

desejo. Dou-te um coração tão sábio einteligente como nunca houve igual antesde ti e nem haverá depois. Dou-te, alémdisso, o que não me pediste: riqueza eglória. … E se andares em meuscaminhos e observares os meuspreceitos e mandamentos como o fezDavi, teu pai, prolongarei a tua vida.”

Diz a Bíblia: “Salomão despertou:foi um sonho. Voltando a Jerusalém,apresentou-se diante da Arca da Aliançae ofereceu holocaustos e sacrifíciospacíficos; e deu um banquete a todos osseus servos.”

O dia a dia do reilogo confirmou que eleestava possuído de umagraça especial. Sucedem-

Salomãologoconfirmouque eleestavapossuídode umagraçaespecial.Sucedem-seváriashistórias

se as histórias sobre asabedoria de Salomão. Amais famosa é a das duasprostitutas que seapresentam ao rei (nasvelhas cortes do Orientehavia essa tradição, deque era possível chegarao rei). Uma delas toma apalavra para dizer queviviam as duas juntas,com dois filhos pequenos,e dormiam na mesmacama. A queixosa diz quea outra, dormindo, abafouo próprio filho, e omatou, mas aproveitou-seda escuridão para trocar

sobresuasabedoria.

as crianças. “Quandoacordei de manhã paraamamentar meu filho,encontrei-o morto; mas,olhando melhor, vi quenão era o meu filho, e sim

o da outra.” “Mentira!”, responde aacusada, “o teu filho é que morreu; o queestá vivo é o meu.” E assim disputavamdiante do rei.

Salomão toma a palavra: “Tu dizes:é o meu filho que está vivo, e o teu é oque morreu. E tu replicas: não é assim, éo teu filho que morreu, e o meu é queestá vivo. Vejamos, trazei-me umaespada.” Trouxeram ao rei uma espada.“Cortai pelo meio o menino vivo”, elediz, “e dai metade a uma e metade à

outra.” “A mulher que era mãe domenino vivo sentiu suas entranhascomoverem-se e disse ao rei: ‘Rogo-te,meu senhor, que dês a ela o meninovivo, não o mateis.’ A outra, porém,dizia: ‘Ele não será meu nem teu: sejadividido.’ Então o rei pronunciou o seujulgamento: ‘Dai o menino vivo a estamulher; não o mateis, pois é ela a suamãe.’” E o povo se maravilhou com asabedoria do rei.

Começa então a construção doTemplo, que levaria treze anos. O podere a riqueza da monarquia chegavam aseu ponto culminante; e nada foipoupado para que a casa de Deusexibisse todas as perfeições possíveis –o que a Bíblia descreve com minúcia,

Nadafoipoupadoparaque acasa deDeusexibissetodasasperfeiçõespossíveis

quase com delícia.De novo, há uma

solene transferência daArca, e um sinal quelembra os tempos dodeserto: “Quando ossacerdotes saíram dolugar santo, uma nuvemencheu o Templo doSenhor, de tal modo queos sacerdotes nãopuderam ficar ali paraexercer as funções do seuministério; porque aglória do Senhor enchia oTemplo.” A isto se segueo discurso de Salomão –retórica bíblica em grau

– o quea Bíbliadescrevecomminúcia,quasecomdelícia.

superior de eloquência. OSenhor responderá, poucodepois, num sonho, e nomesmo plano detranscendência.

A fama de Salomão seespalha, e chegamvisitantes de todos oslados para conferir o quese contava. Um dessesvisitantes é a rainha deSabá (território africano

que parece corresponder à atual Etiópia;tanto assim que o rei etíope HailéSelassié, em pleno século XX,considerava-se descendente deSalomão). A rainha chegou a Jerusalémcom numerosa comitiva, com camelos

carregados de aromas e uma grandequantidade de ouro e pedras preciosas.“Apresentou-se diante do rei Salomão edisse-lhe tudo o que tinha no espírito. Atudo respondeu o rei. Nenhuma de suasperguntas lhe pareceu obscura.”

Conta a Bíblia: “Quando a rainha deSabá viu toda a sabedoria de Salomão, acasa que ele tinha feito, os manjares desua mesa, os apartamentos de seusservos, os copeiros do rei e osholocaustos que ele oferecia no Templodo Senhor, ficou estupefata, e disse aorei: ‘É bem verdade o que ouvi a teurespeito e de tua sabedoria, na minhaterra. Eu não quis acreditar no que mediziam, antes de vir aqui e ver com meuspróprios olhos. Mas eis que não

É essemesmoSalomãoque, derepente,pareceprecipitar-

contavam nem a metade: tua sabedoria etua opulência são muito maiores do quea fama que havia chegado até mim.Felizes os teus homens, felizes os servosque estão sempre contigo e ouvem a tuasabedoria. Bendito seja o Senhor teuDeus, a quem aprouve colocar-te sobreo trono de Israel.’”

Estende-se a Bíblia,ainda, sobre a opulênciade Salomão, sobre o fatode que de todo ladovinham presentes eestrangeiros desejosos deter acesso, ainda que delonge, à majestade do rei.Não por acaso, diversoslivros da Bíblia – os

se lá doalto eabrir ocaminhopara adestruiçãodeIsrael.Ouforamospecadosda

livros de sabedoria – sãoatribuídos a Salomão.

Pois é esse mesmoSalomão – como quepagando tributo a tantaglória e poder – que, derepente, pareceprecipitar-se lá do alto eabrir o caminho para adestruição de Israel. Ouforam os pecados dacarne?

Diz o Primeiro Livrodos Reis: “O reiSalomão, além da filha dofaraó [sua primeiramulher], amou muitasmulheres estrangeiras:

carne?moabitas, amonitas,edomitas, sidônias. …Teve setecentas esposasde classe principesca e trezentasconcubinas. E suas mulheresperverteram-lhe o coração. Sendo jávelho, elas o seduziram para queservisse a outros deuses [a maldição deCanaã!]. E o seu coração já nãopertencia sem reservas ao Senhor seuDeus, como o de Davi, seu pai. Salomãoprestou culto a Astarté, deusa dossidônios, e a Melcom, o abominávelídolo dos amonitas. Fez o mal aos olhosdo Senhor, não lhe foi inteiramente fielcomo seu pai, Davi. Ergueu templospara que suas mulheres estrangeirascultuassem os seus próprios deuses. E o

Senhor se irritou contra Salomão. E lhedisse: ‘Já que procedeste assim, e nãoguardaste a minha Aliança, nem as leisque te prescrevi, vou tirar-te o reino edá-lo ao teu servo. Todavia, em atençãoa teu pai, Davi, não o farei durante a tuavida. Tirá-lo-ei, sim, mas da mão de teufilho. Não lhe tirarei o reino todo, masdeixarei a teu filho uma tribo, por amorde meu servo Davi, e por amor deJerusalém, a cidade que escolhi.’”

Era o roteiro do que ia acontecercom a morte de Salomão – a partilha doreino, em consequência da espantosainabilidade de Roboão, filho deSalomão; a constituição do reino doNorte, sob Jeroboão, reunindo todas astribos menos uma; o reino do Sul, Judá,

com capital em Jerusalém. Desenhopolítico que duraria até a invasão dosassírios e a eliminação do reino doNorte.

23. Erotismo naBíblia

Beija-me com os beijos da tuaboca

Porque os teus amores são maisdeliciosos que o vinho

e suave é a fragrância dos teusperfumes.

Arrasta-me para ti, corramos!O rei me introduziu nos seus

aposentos.Exultemos de alegria e de júbilo.

…Como és formosa, amiga minha!Como és bela!Teus olhos são como pombas.…Nosso leito é um leito verdejante,…teu pescoço é semelhante à torre de

Davi,…Os teus seios são como dois filhotesgêmeos de uma gazela…Como são deliciosas as tuas

carícias…Meu amado passou a mão pela

abertura da porta eo meu coração estremeceu.…O meu amado desceu ao seu jardim.

Como encaixar na Bíblia essesardentes poemas de amor? Há quem sesinta incomodado, e diga simplesmenteque se trata de um corpo estranho aocânone.

Também há o extremo oposto: o dosmísticos (são Bernardo à frente), quefizeram desse poema o símbolo do amorentre o Cristo e a sua Igreja – ou entre aalma e o Criador. Era o estilo alegórico,querido de muitos mestres antigos.

E também há posiçõesintermediárias, que parecem mais

ComoencaixarnaBíbliaardentespoemasdeamor?Háquemse sintaincomodado,e diga

Oerotismo

modernas. O Cântico dosCânticos, nesse sentido, éuma das partes da Bíbliaque sugerem maisfortemente aintercomunicação dosestágios do Ser – agloriosa possibilidade detransposição de ummundo para o outro; ummundo remetendo aooutro, um mundoexplicando e justificandoo outro.

OCristo eramestrenessas

simplesmenteque setrata deumcorpoestranho.

não fazpartedanossanatureza?O ruimécongelaroerotismonumdeterminadoplano.

transposições. Não éoutra coisa o universo dasparábolas – o mundosensível servindo deencaminhamento, de pista,para o mundo do espírito.

Também nessesentido houve avanços“teóricos”, a partir de

O sexomatandoousufocandoo amor.

uma velha linha platônicaem que o sensível apenassinalizava osuprassensível – amatéria como prisão daalma. Já não gostamos depensar assim: se osensível anuncia o

suprassensível, será que ele deixa, porisso, de ter a sua realidade própria?

Nessa visão mais “moderna”, nãoprecisaríamos esvaziar o Cântico dosCânticos da sua carga erótica. Oerotismo não faz parte da nossanatureza? O ruim, como acontece agora,é congelar o erotismo num determinadoplano. Nesse fechamento, ele se tornasuicida – o sexo matando ou sufocando o

amor.Mas se preservarmos a

possibilidade da transposição, as portasse abrem; o físico serve de maravilhosaintrodução a um outro plano; a ligaçãofísica dos amantes remete ao encontrodas almas.

A Bíblia está carregada detransposições. Esse é o mundo dasparábolas: a fé como um grão demostarda, que se transforma no maiordos arbustos; a ovelhinha perdida que opastor vai procurar; os lírios do campoque se vestem melhor do que Salomão;os pássaros do céu que não sepreocupam com o dia seguinte.

Não é essa própria abundância deimagens um sinal de que o mundo físico

não precisa ser relegado ao territóriodas sombras? Quando você está sedentoe tem acesso a um copo de água fresca,não dá para perceber, nesse momento,uma espécie de bondade original dascoisas – aquela bondade que o Criadoridentifica em cada dia da Criação?

A água, elemento físico, se presta afulgurantes transposições. A águapurificadora é o instrumento do batismo.E, no diálogo com a samaritana, o Cristoleva a transposição adiante: “Todoaquele que beber desta água tornará a tersede, mas o que beber da água que eulhe der jamais terá sede; e a água que eulhe der virá a ser nele fonte de águajorrando para a vida eterna.”

O Cristo também realiza essa

transposição com o pão – outroelemento básico da vida humana.Quando ele faz a multiplicação dospães, está mostrando aos discípulos (enão à multidão, que não viu nada) que aPalavra divina é alimento em todos ossentidos. E depois ele dirá: “Eu sou oPão Vivo que desceu do céu.”

Assim se prepara o maior de todosos ritos. Na Quinta-Feira Santa eleinstitui o sacramento central da vidacristã. A partir dali, a matéria do pão edo vinho se transforma no Corpo e noSangue do Salvador, na sequência dorito que só o sacerdote pode efetuar. Asbarreiras entre os mundos tinham sidomisteriosamente derrubadas.

24. Profetas

No centro da Bíblia está a coleção dosprofetas. Eles aparecem como figurasimpressionantes, fora das normas. Todosreceberam uma convocação do Alto,passaram por uma experiênciatransformadora e querem comunicar essaexperiência ao povo – muitas vezes, nascircunstâncias mais difíceis. Jeremiasaconselha a não resistência aosbabilônios. Chamado de traidor, poderiater pago essa audácia com a vida. Isaías,diz a tradição, foi serrado ao meio.

Mas se pareciam, às vezes, aves de

Osprofetaslevarama Israelumaarte de

mau agouro, os profetas também levarama Israel uma arte de viver em tempos decatástrofe. Eles foram o último refúgioda esperança.

A noção convencional de profeta é ade alguém que prevê o futuro. Isso fazparte da visão profética. Mas o profeta ésobretudo alguém que está falando emnome de Deus.

Figuras proféticasaparecem em váriospontos do AntigoTestamento. Famoso é ochoque entre Elias e ossacerdotes de Baal, nostempos do rei Acaz; ou odiálogo entre o rei Davi eo profeta Natã, quando

viveremtemposdecatástrofe.Elesforam oúltimorefúgiodaesperança.

ninguém ainda sabia docrime cometido pelo rei.

Mas aqui vamos nosocupar dos profetas quedeixaram obra escrita –os “quatro grandes”, quesão Isaías, Jeremias,Daniel e Ezequiel, e osdoze “pequenosprofetas”, assimchamados de acordo coma dimensão de seustextos.

Para os cristãos, oi m e n s o corpus dosprofetas tem um

significado especial: é como um gonzoque abre a porta para o futuro. A figura

do Messias, que já vinha de antigastradições judaicas, toma forma, aindaque misteriosa, expressa na linguagemmais eloquente do mundo.

Como lembra o grande biblistaAbraham Heschel, o profeta é umapessoa, não um microfone. Dentro dopatético das situações, a voz divinapassa por uma voz humana. E, assim,cada um deles tem o seu tom de voz –digamos, a sua afinação. O profetatambém é poeta, patriota, estadista,moralista, crítico da sociedade. Daí ariqueza desses textos.

Eles aparecem em momentoscríticos. Termina a época – a de Davi,de Salomão – em que Israel sebeneficiava de uma relativa sonolência

Osprofetasnãoestavamfalandoemtempostriviais,

dos grandes impérios. Eles agora estãoem movimento, buscando mais poder, ea estreita faixa costeira que é Israel vaiser território de passagem dos assírios ebabilônios – um jogo de que os egípciostambém participarão.

Dentro desse quadrogeral, cada profeta tem asua personalidade. Amósera pastor em Técua,localidade próxima deBelém. Em meio àprosperidade do reinadode Jeroboão I (reino doNorte), ele prega ameaçase anuncia castigos. Joelsó nos é conhecido porseu poema. Oseias é um

ou paraumpúblicodócil.Arriscavama vidano quefaziam.

dos primeiros profetas(século VIII a.C.). Nele, aarte do simbolismo éaplicada ao pé da letra. OSenhor lhe diz: “Vai edesposa uma mulher dadaao adultério, e aceitafilhos adulterinos, porquea nação procedeu malpara com o Senhor.” Elevai e desposa Gomer.Esta concebeu e lhe deuum filho. E o Senhor diz a Oseias:“Chama-o Jezreel, porque dentro embreve punirei a casa de Jeú pelosmassacres de Jezreel. Naquele dia,quebrarei o arco de Israel na planície deJezreel.” E assim por diante.

Os estilos variam tanto quanto ashistórias pessoais. Mas têm, todos, umaconotação dramática. Esses homens deDeus não estavam falando em tempostriviais, ou para um público dócil.Arriscavam a vida no que faziam. OLivro de Joel anuncia a chegada dosassírios:

Tocai a trombeta em Sião,dai alarme no meu monte santo!Estremeçam todos os habitantes da

Terra,eis que se aproxima o dia do

Senhor,dia de trevas e de escuridão,dia nublado e coberto de nuvens.Tal como a luz da aurora, derrama-

se sobre os montesum povo imenso e vigoroso,como nunca houve semelhante

desde o princípio,nem depois haverá outroaté as épocas longínquas.Diante dele, um fogo devorador;atrás, uma chama abrasadora.Diante dele a Terra é um paraíso;atrás, é um deserto desolador;nada lhe escapa.Têm a aparência de uma tropa de

cavalos,e como cavalos se precipitam:dir-se-ia o estrondo de carros

saltando sobre os cumes dosmontes,

ou o crepitar da chama que devoraa palha,

ou um formidável exército dispostoem ordem de batalha.

Diante deles tremem os povos,os rostos empalidecem…

Mensagens tremendas que culminamcom a do último profeta, Malaquias.

Mas também há juramentos de amor,traduzindo a relação apaixonada entreJavé e o povo por ele escolhido. Comoem Oseias:

Israel era ainda criança, e já eu oamava,

e do Egito chamei meu filho.Mas, quanto mais os chamei, mais

se afastaram;ofereceram sacrifícios aos Baale queimaram ofertas aos ídolos.Eu, entretanto, ensinava Efraim

[Israel] a andar,tomava-o nos meus braços,mas não compreenderam que eu

cuidava deles.Segurava-os com laços humanos,

com laços de amor;…Como poderia eu abandonar-te, ó

Efraim,ou trair-te, ó Israel?…

Meu coração se revolve dentro demim,

eu me comovo de dó e compaixão.

Aparecem fortes visões sociais,imprecações contra os ricos. Como emAmós:

Ouvi isto, vós que engolis o pobre,e fazeis perecer os humildes da

terra,dizendo: Quando passará a lua

nova,para vendermos o nosso trigo,e o sábado,para abrirmos os nossos celeiros,diminuindo a medida e aumentando

o preço,…(Compraremos os infelizes por

dinheiroe os pobres por um par de

sandálias.)…O Senhor jurou pelo orgulho de

Jacó:não esquecerei jamais nenhum de

seus atos.

Ao lado da advertência, sempre apromessa do perdão. Como em Oseias:

Curarei a sua infidelidade,amá-los-ei de todo o coração,

(porque minha cólera apartou-sedeles.)

Serei para Israel como o orvalho;ele florescerá como o lírio,e lançará raízes como o álamo.…Eu mesmo, que o afligi, torná-lo-ei

feliz.

ComopôdeIsraelesquecer-se dagrandealiançaque foi

25. O maior detodos

Isaías é o maior de todosos profetas; e talvez omelhor escritor em toda aBíblia. Viveu num dosperíodos maisconturbados da históriade Israel e teve contatodireto com os governantes– o que faz crer que tenhavindo da aristocracia.Mas sua defesa dos

pactuadanoSinai?OSenhor,queescolheraIsrael,reagecomoumamanteferido.

pobres é tão eloquentequanto a de um Miqueias.

Seu grande tema é odos demais profetas:como pôde Israelesquecer-se da grandealiança que foi pactuadano Sinai? O Senhor, queescolhera Israel, reagecomo um amante ferido; eé essa dor que perpassa ogrande Livro de Isaías:

Ouvi, céus, e tu, ó terra,escuta,

é o Senhor quem fala:“Eu criei filhos e os

eduquei;

eles, porém, se revoltaram contramim.

O boi conhece o seu possuidor,e o asno, o estábulo do seu dono;mas Israel não conhece nada,e meu povo não tem entendimento.”…Abandonaram o Senhor,desprezaram o Santo de Israel,e lhe voltaram as costas.Onde vos ferir ainda,quando persistis na rebelião?Toda a cabeça está enferma,e todo o coração, abatido.Da planta dos pés até o alto da

cabeça, não há nele coisa sã.

Pede-se uma nova religião.

De que me serve a multidão dasvossas vítimas?, diz o Senhor.

Já estou farto de holocaustos decordeiros

e da gordura de novilhos cevados.Eu não quero sangue de touros e de

bodes.…Vossas mãos estão cheias de

sangue: lavai-vos, purificai-vos.…Cessai de fazer o mal, aprendei a

fazer o bem.Respeitai o direito, protegei o

oprimido;

fazei justiça ao órfão, defendei aviúva.

Mas logo se propõe umareconciliação:

Pois bem, justifiquemo-nos, diz oSenhor.

Se vossos pecados forem escarlates,tornar-se-ão brancos como aneve!

Se forem vermelhos como apúrpura, ficarão brancos comoa lã!

Para isso, é necessário um outrocomportamento:

Ai daqueles que desde a manhãprocuram a bebida,

e que se retardam à noite nasexcitações do vinho!

Amantes da cítara e da harpa,do tamborim e da flauta,e do vinho em seus banquetes,mas para as obras do Senhor não

têm um olhar sequer.

Isaías foi beneficiado com uma dasteofanias mais famosas da História. Eleconta:

“No ano da morte do rei Ozias, eu vio Senhor sentado em um trono muitoelevado. As franjas de seu mantoenchiam o Templo. Os serafins se

mantinham junto dele. Cada um delestinha seis asas. Com um par (de asas)velavam a face; com outro cobriam ospés; e, com o terceiro, voavam. Suasvozes se revezavam e diziam:

Santo, santo, santoé o Senhor do Universo.A Terra inteiraproclama a sua glória!

“A este brado, as portasestremeceram em seus gonzos e a casaencheu-se de fumaça. ‘Ai de mim,gritava eu. Estou perdido, porque souum homem de lábios impuros, entretanto,meus olhos viram o rei, o Senhor dosExércitos!’ Porém, um dos serafins voou

em minha direção. Trazia na mão umabrasa viva, que tinha tomado do altarcom uma tenaz. Aplicou-a na minha bocae disse: ‘Tendo esta brasa tocado teuslábios, teu pecado foi tirado, e tua faltaapagada.’ Ouvi então a voz do Senhorque dizia: ‘A quem enviarei eu? E quemirá por nós?’ ‘Eis-me aqui’, disse eu,‘enviai-me.’ ‘Vai, pois, falar a essepovo’, disse ele.”

E segue-se a mensagem tremenda:

Escutai, sem chegar a compreender,olhai, sem chegar a ver.Obceca o coração desse povo,ensurdece-lhe os ouvidos, fecha-lhe

os olhos,de modo que não veja nada com

seus olhos,nem ouça com seus ouvidos,…“Até quando, Senhor?” … E ele

respondeu:“Até que as cidades fiquem

devastadas e sem habitantes,as casas, sem gente, e a terra,

deserta.”

O momento histórico é dramático.Os sírios se preparam para atacarJerusalém. O rei de Israel é Acaz, quetreme de medo. O Senhor diz a Isaíasque procure Acaz e lhe instile confiança.O rei não está com essa disposição. OSenhor então se dirige ao próprio Acaze diz: “Pede ao Senhor teu Deus um

sinal, seja do fundo da habitação dosmortos, seja lá do Alto.” Acaz responde:“De maneira alguma. Não quero pôr oSenhor à prova.” Isaías, então, entra emcena, com um discurso que ecoará pelosséculos: “Ouvi, casa de Davi: não vosbasta fatigar a paciência dos homens?Pretendeis cansar também o meu Deus?Por isso, o próprio Senhor vos dará umsinal: uma virgem conceberá e dará à luzum filho, e o chamará Emanuel [Deusconosco].”

Acaz não se emenda. Recebe novasimprecações:

Porque este povo rejeitou as águastranquilas de Siloé,

e perdeu o domínio diante de Rasin

e do filho de Romelia [os sírios],o Senhor fará cair sobre ele as

águas do rio, abundantes eimpetuosas

(o rei da Assíria com todo o seupoder).

O profeta está desanimado com opovo e com seus governantes. Seu olharmergulha no futuro:

O povo que andava nas trevas viuuma grande luz;

sobre aqueles que habitavam umaregião tenebrosa

resplandeceu uma luz.Vós suscitais um grande regozijo,

provocais uma imensa alegria;rejubilam-se diante de vós como na

alegria da colheita,como exultam na partilha dos

despojos.Porque o jugo que pesava sobre ele,a coleira de seu ombroe a vara do feitor,vós o quebrastes, como no dia de

Madiã.Porque todo calçado que se traz na

batalha,e todo manto manchado de sangueserão lançados ao fogoe tornar-se-ão presa das chamas;porque um menino nos nasceu,um filho nos foi dado;

a soberania repousa sobre seusombros,

e ele se chama:Conselheiro admirável, Deus forte,Pai eterno, Príncipe da paz.Seu império será grande e a paz

sem fimsobre o trono de Davi e em seu

reino.Ele o firmará e o manterápelo direito e pela justiça,desde agora e para sempre.Eis o que fará o zelo do Senhor dos

Exércitos.

Texto admirável, que Haendel (no“Messias”) transformou em música

igualmente admirável.É o tema messiânico, exposto com o

máximo de eficácia.Outro trecho com o mesmo sentido, e

igualmente célebre, é o começo docapítulo 11:

Um renovo sairá do tronco deJessé,

e um rebento brotará de suasraízes.

Sobre ele repousa o Espírito doSenhor,

Espírito de sabedoria e deentendimento,

Espírito de prudência e de coragem,Espírito de ciência e de temor ao

Senhor.

…Ele não julgará pelas aparências,e não decidirá pelo que ouvir dizer;mas julgará os fracos com

equidade,fará justiça aos pobres da Terra,ferirá o homem impetuoso com uma

sentença de sua boca,e com o sopro dos seus lábios fará

morrer o ímpio.A justiça será como o cinto de seus

rins,e a lealdade circundará seus

flancos.

Então o lobo será hóspede docordeiro,

a pantera se deitará ao pé docabrito,

o touro e o leão comerão juntos,e um menino pequeno os conduzirá;…A criança de peito brincará junto à

toca da víbora,e o menino desmamado meterá a

mão na caverna da áspide.Não se fará mal nem danoem todo o meu santo monte,porque a Terra estará cheia da

ciência do Senhor,assim como as águas recobrem o

fundo do mar.

O barulho da guerra está por toda

parte nesse livro magnífico. Era arealidade de Israel – e, na verdade, detodos os povos da região. O profeta oramira os inimigos, ora os própriosisraelitas, que demoram a entender asmensagens do Alto. Mas écaracterístico, em Isaías, que essesgritos de guerra sejam temperados porefusões líricas:

Até que sobre nós se derrame oespírito do Alto,

então o deserto se mudará emvergel,

…no deserto reinará o direito,e a justiça residirá no vergel.…

Bem-aventurados sereis por semearà margem de todos os cursosd’água,

e por deixar o boi e o asno sempeias.

(Sempre a água, o verdadeirotesouro daquelas terras secas.)

26. O segundoIsaías

No vasto corpus das profecias deIsaías, os eruditos identificam blocosque parecem ter sido escritos em épocasdiferentes. Assim se tornou costumefalar de um “primeiro Isaías” – o queescreveu por volta do ano 700 a.C. – eum segundo Isaías, que já seriacontemporâneo do Exílio (invadidos osdois reinos de Israel, pelos assírios edepois pelos babilônios, os israelitasforam levados para cidades como

O quesomosnós,hoje,senãoexilados,numacivilização

Nínive e a própria Babilônia). A isso serefere um famosíssimo poema deCamões: “Sobolos rios que vão/ porBabilônia me achei/ onde sentadochorei/ as lembranças de Sião…” (verSalmo 136).

O profeta fala semprepara o seu tempo, para ascontingências da hora.Assim, se o “primeiro”Isaías tentava evitar acatástrofe admoestandoseu povo, o “segundo” jáse dirige a um povoensopado de lágrimas, e asua missão é diferente:soerguer os ânimos,anunciar um caminho de

que sedesligoude suasraízes,quesufocadebaixode ummar deconsumismo?

salvação. Para WalterBrueggemann, estesegundo Isaías tambémfala diretamente para ostempos de hoje. Pois oque somos nós, hoje,senão exilados, numacivilização que sedesligou das suas raízes,que sufoca debaixo de ummar de consumismo? Aohomem de hoje, como aodaquele tempo, o profetaoferece a possibilidadede uma volta ao lar, de

um reencontro com o Pai. Assim eleescreve:

Consolai, consolai meu povo, dizvosso Deus.

Animai Jerusalém, dizei-lhe bemalto

que suas lidas estão terminadas,que sua falta está expiada,que recebeu, da mão do Senhor,pena dupla por todos os seus

pecados.Uma voz exclama: “Abri no deserto

um caminho para o Senhor,traçai reta na estepe uma pista para

nosso Deus.Que todo vale seja aterrado,que toda montanha e colina sejam

abaixadas:que os cimos sejam aplainados,

que as escarpas sejam niveladas!”Então a glória do Senhor se

manifestará;todas as criaturas juntas

apreciarão o seu esplendor,porque a boca do Senhor o

prometeu.

E mais adiante:

Cantai ao Senhor um cântico novo,do fim do mundo entoai seus

louvores;que o mar o celebre com tudo o que

contém,assim como as ilhas com seus

habitantes!

Que o deserto e suas vilas elevem avoz,

assim como os acampamentos ondehabita Cedar!

Há um compromisso a ser renovado:

E agora, eis o que diz o Senhor,aquele que te criou, Jacó, e te

formou, Israel:nada temas, pois eu te resgato,eu te chamo pelo nome, és meu.Se tiveres de atravessar a água,

estarei contigo.E os rios não te submergirão;se caminhares pelo fogo, não te

queimarás,

e a chama não te consumirá.Pois eu sou o Senhor, teu Deus,o Santo de Israel, teu salvador.Dou o Egito por teu resgate,a Etiópia e Sabá em compensação.Porque és precioso a meus olhos,porque eu te aprecio e te amo.

Além de tudo, essa oferta é gratuita,como diz esse maravilhoso texto que fazparte da liturgia católica:

Todos vós, que estais sedentos,vinde à nascente das águas;

vinde comer, vós que não tendesalimento.

Vinde comprar trigo sem dinheiro,

vinho e leite sem pagar!Por que despender vosso dinheiro

naquilo que não alimenta,e o produto de vosso trabalho

naquilo que não sacia?…Prestai-me atenção, e vinde a mim;escutai, e vossa alma viverá:quero concluir convosco uma

aliança eterna,outorgando-vos os favores

prometidos a Davi.

Misteriosamente, por todo esse livrocorrem os poemas do Servo, que nãosabemos quem é, mas cuja figura vaiassumindo, aos poucos, um sentido

profético:

Eis meu Servo que eu amparo,meu eleito ao qual dou toda a

minha afeição,faço repousar sobre ele meu

espírito,para que leve às nações a

verdadeira religião.Ele não grita, nunca eleva a voz,não clama nas ruas.Não quebrará o caniço rachado,não extinguirá a mecha que ainda

fumega.Anunciará com toda a franqueza a

verdadeira religião;não desanimará, nem desfalecerá,

até que tenha estabelecido averdadeira religião sobre aTerra,

e até que as ilhas desejem seusensinamentos.

Num dos poemas seguintes, é opróprio Servo quem fala:

Ilhas, ouvi-me;povos de longe, prestai atenção!O Senhor chamou-me desde meu

nascimento;ainda no seio da minha mãe, ele

pronunciou meu nome.Tornou minha boca semelhante a

uma espada afiada,

cobriu-me com a sombra de suamão.

Fez de mim uma flecha penetrante,guardou-me na sua aljava.E disse-me: “Tu és meu servo,(Israel) em quem me rejubilarei.”

Mais um passo, e o retrato vai sedelineando:

O Senhor Deus deu-me a língua deum discípulo

para que eu saiba reconfortar pelapalavra o que está abatido.

Cada manhã ele desperta meusouvidos

para que escute como discípulo;

…e eu não relutei,não me esquivei.Aos que me feriam, apresentei as

espáduas,e as faces àqueles que me

arrancavam a barba;não desviei o rostodos ultrajes e dos escarros.Mas o Senhor Deus vem em meu

auxílio:eis por que não me senti desonrado;enrijeci meu rosto como uma pedra,convicto de não ser desapontado.Aquele que me fará justiça aí está.Quem ousará atacar-me?

E, finalmente, o capítulo 53, que jáparece uma revelação:

Quem poderia acreditar nisso queouvimos?

A quem foi revelado o braço doSenhor?

Cresceu diante dele como um pobrerebento

enraizado numa terra árida;não tinha graça nem beleza para

atrair nossos olhares,e seu aspecto não podia seduzir-

nos.Era desprezado, era a escória da

humanidade,homem das dores, experimentado

nos sofrimentos;

…Em verdade, tomou sobre si nossas

enfermidades,e carregou os nossos sofrimentos:e nós o reputávamos como um

castigado,ferido por Deus e humilhado.Mas ele foi castigado por nossos

crimes,e esmagado por nossas iniquidades;o castigo que nos salva pesou sobre

ele,fomos curados graças às suas

chagas.…Foi maltratado e resignou-se;não abriu a boca,

como um cordeiro que se conduz aomatadouro

e uma ovelha muda nas mãos dotosquiador.

…Por um iníquo julgamento foi

arrebatado.Quem pensou em defender sua

causa,quando foi suprimido da terra dos

vivos,morto pelo pecado de meu povo?Foi-lhe dada sepultura ao lado de

facínorase ao morrer achava-se entre

malfeitores,se bem que não haja cometido

injustiça alguma,e em sua boca nunca tenha havido

mentira.Mas aprouve ao Senhor esmagá-lo

pelo sofrimento;se ele oferecer sua vida em

sacrifício expiatório,terá uma posteridade duradoura,

prolongará seus dias,e a vontade do Senhor será por ele

realizada.

Esse texto foi escrito cerca dequinhentos anos antes do nascimento deJesus Cristo.

27. Sabedoriatranquila: oEclesiástico

Do que era a vida de Israel uns cem ouduzentos anos antes do nascimento deCristo dá notícia o Eclesiástico, textoque não foi incluído na Bíblia judaica(nem na protestante), mas que é um doslivros mais simpáticos na literatura dovelho Israel. O título grego é “Sabedoriade Jesus, filho de Sirac” (daí serchamado às vezes “o Sirácida”). Na

Igreja latina, passou a ser oEclesiástico, ou “Livro da Igreja”,porque era utilizado com frequência nainstrução dos fiéis.

Seu autor é um escriba originário deJerusalém, vivendo num momento emque a cultura grega – o helenismo –exerce uma pressão fortíssima sobre oantigo Israel. É a época em que osmacabeus pegarão em armas contra atirania de Antíoco Epifanes.

O sábio do Eclesiástico – ou apessoa de quem ele se apresenta comoneto e tradutor – prefere combater comas armas de uma serena persuasão,quase filosófica.

O livro é um apelo à fidelidade e umlouvor à história de Israel. Perdeu-se o

OEclesiásticotem umtomfilosófico,e aprimeiracoisa

texto original; temos tradução grega elatina (esta, repleta de interpolações). Émelhor seguir o texto grego – escritoexatamente para aquele mundo quesofria a sedução dessa cultura dominantena época.

Diz o Prólogo: “Noano 38 do reinado dePtolomeu Evergeta, vimao Egito, onde permanecimuito tempo. Aíencontrei, deixado aoabandono, este livro,encerrando doutrina quenão se deve desprezar.Por isso julguei que fosseútil e mesmo necessáriotrabalhar com cuidado

queprocuradeixarclara éque asabedoriavem deDeus,não éobrahumana.

para traduzi-lo.” Continuao escriba: “… meu avôJesus [nome comum emIsrael] quis escrever algoinstrutivo e cheio desabedoria, a fim de que aspessoas desejosas deinstruir-se, esclarecidaspor suas lições, pudessemdedicar-se mais e mais àreflexão e progredir navida conforme a Lei.” É otipo milenar do judeuestudioso, que ama a Lei,que vê nela uma fonte devida, que resiste à

infiltração de outras crenças.O Eclesiástico tem um tom

filosófico, mas não se pode dizer queseja filosofia no sentido corrente;porque a primeira coisa que procuradeixar clara é que a sabedoria vem deDeus, não é obra humana.

Toda a sabedoria vem do SenhorDeus,

ela sempre esteve com ele.…Quem pode contar os grãos de areia

do mar,as gotas de chuva, os dias do

tempo?Quem pode medir a altura do céu,a extensão da terra, a profundidade

do abismo?…

A sabedoria foi criada antes detodas as coisas,

a inteligência prudente existe antesdos séculos!

São Paulo, duzentos anos depois,dirá isso com mais força edramaticidade, apoiado na “loucura dacruz” que desafia a inteligênciaprosaica.

Qual é o primeiro passo na direçãodessa sabedoria? O temor de Deus(como no extraordinário capítulo 28 doLivro de Jó, que parece umainterpolação).

“O temor de Deus”, diz oEclesiástico, “é um motivo de glória,uma fonte de alegria, uma coroa de

O queé aideia do

regozijo.” O que é essa ideia do “temorde Deus”, sempre presente na Bíblia?Certamente não é o medo. É uma espéciede espanto diante de uma realidadeinaudita, de uma coisa que não cabe emnossas medidas (os ingleses têm paraisso um bom termo: awe).

E ele prossegue: “O temor doSenhor alegra o coração” (a melhorindicação de que não se trata de medo).“Quem teme o Senhor sentir-se-á bem noinstante derradeiro,/ no dia da morteserá abençoado.”

O que vem depois? Areferência a algumasvirtudes básicas que épreciso trabalhar (todasabedoria, para não ser

“temordeDeus”,semprepresentenaBíblia?Certamentenão é omedo.É umaespéciede

frívola, precisandotransbordar, em algummomento, para o plano docomportamento).

1) A PACIÊNCIA. “Meufilho, se entrares para oserviço de Deus,/ … /prepara a tua alma paraa provação;/ humilha teucoração, espera compaciência,/ … / não teperturbes no tempo dainfelicidade” (o Cristofalaria, mais tarde, em“construir sobre arocha”).

“Aceita tudo o que te

espanto. acontecer./ … / Pois épelo fogo que seexperimentam o ouro e a

prata;/ e os homens agradáveis a Deuspelo cadinho da humilhação” (ponto deencontro, aqui, de todas as grandestradições religiosas, que apontam oorgulho como o maior obstáculo aoprogresso espiritual).

2) PIEDADE FILIAL. Este é um velho temaconfuciano. Por que é que a China antigamontou sobre esse princípio umacivilização inteira? Porque a famosapiedade filial é o sinal do coração quenão endureceu e que é capaz de gratidão.

Qual seria, nesse contexto, a atitudebásica no mundo? Ter consciência de

Afamosapiedadefilial éo sinaldocoraçãoquenãoendureceu

que você recebeu, com a naturezahumana, um tesouro inestimável, que nãoestá ao alcance de outras formas devida.

O que se espera denós? Um mínimo degratidão, como primeirosinal de que vocêpercebeu o alcance dodom recebido. E aprimeira gratidão édireito dos pais. Se vocêtem essa atitudereverencial, “piedosa”,em relação a seus pais,será capaz de dar o saltomaior, e voltar o seucoração para a fonte de

e que écapazdegratidão.

todos os bens.Diz o Eclesiástico:

“Deus quis honrar ospais pelos filhos,/ ecuidadosamentefortaleceu a autoridadeda mãe deles./ … / Quemhonra seu pai achará alegria em seusfilhos,/ será ouvido no dia da oração.”

E agora, num estilo bem antigo: “Abênção paterna fortalece a casa deseus filhos,/ a maldição de uma mãearrasa-a até os alicerces.”

3) HUMILDADE, como fonte de todas asvirtudes (de novo, ponto de encontro dasgrandes tradições; mas foi para esseponto que Nietzsche, muito em moda,

voltou as suas baterias, propondo quaseo contrário disso).

Quanto mais fores elevado, mais tehumilharás em tudo,

e perante Deus acharásmisericórdia.

…Não procures o que é elevado

demais para ti;não procures penetrar o que está

acima de ti.Mas pensa sempre no que Deus te

ordenou.Não tenhas a curiosidadede conhecer um número elevado

demais de suas obras,

pois não é preciso que vejas comteus olhos os seus segredos.

Andamos aqui em águas profundas,tratando dos limites do conhecimento. Odesejo do conhecimento é um dosimpulsos mais fortes da nossa natureza;e o sábio judeu é um eterno estudioso.Mas judeus e cristãos concordam emdizer que, em certos momentos, osdesígnios de Deus são impenetráveis; eque, além disso, o conhecimento maisprofundo não vem do intelecto. É essedrama do conhecimento que o Livro deJó levará a uma discussão exaltada. Maspara os que estão imersos no amor deDeus não há drama, e sim um mistério, aser revelado no fim dos tempos (e

mesmo assim, diz a teologia católica, emmomento algum chegamos a esgotar asriquezas da vida divina).

4) CARIDADE. Antecipação da mensagemcristã.

Meu filho, não negues esmola aopobre,

nem dele desvies o olhar.Não desprezes o que tem fome,não irrites o pobre em sua

indigência.…não rejeites o pedido do aflito…Aos que pedem não dês motivo de te

amaldiçoarem pelas costas,pois será atendida a imprecaçãodaquele que te amaldiçoa na

amargura de sua alma.

Há nesse livro – como no dosProvérbios – coisas de sabedoriacomum:

Se adquirires um amigo, adquire-ona provação,

não confies nele tão depressa.Pois há amigo em certas horasque deixará de o ser no dia da

aflição.

Ou:

Não emprestes dinheiro a alguémmais poderoso do que tu,

pois, se emprestares, considera-operdido.

Ou ainda:

Não tenhas ciúme da mulher querepousa no teu seio,

para que ela não empregue contrati

a malícia que lhe houveresensinado.

Essas eram coleções muito em vogana Antiguidade, a que não faltava o

toque característico de uma culturamachista:

Não entregues tua alma ao domínioda tua mulher,

para que ela não usurpe tuaautoridade.

Em compensação,

Não detenhas o olhar sobre umajovem,

para que a sua beleza não venha acausar tua ruína.

Faz questão, o nosso sábio, deexplicar que a sabedoria tem o seu

preço:

Meu filho, aceita a instrução desdeteus verdes anos;

ganharás uma sabedoria quedurará até a velhice.

Vai ao encontro dela, como aqueleque lavra e semeia;

espera pacientemente seusexcelentes frutos;

terás alguma pena em cultivá-la,mas, em breve, comerás os seus

frutos.…Mete os teus pés nos seus grilhões

[a disciplina],e teu pescoço em suas correntes.

Baixa teu ombro para carregá-la,não sejas impaciente em suportar

seus liames. …Segue-lhe os passos e ela se dará a

conhecer;quando a tiveres abraçado, não a

deixes.Pois acharás finalmente nela o teu

repouso.

Há, no Eclesiástico, marcas daeducação antiga:

Tens filhos? Educa-os,e curva-os à obediência desde a

infância.Tens filhas? Vela pela integridade

de seus corpos,não lhes mostres um rosto por

demais jovial.

O sábio do Eclesiástico está semprealerta contra o orgulho:

O início do orgulho num homem érenegar a Deus,

pois seu coração se afasta daqueleque o criou.

E ele propõe, então, uma volta aoinício dos tempos:

Deus criou o homem da terra,formou-o segundo a sua própria

imagem;e o fez de novo voltar à terra.Revestiu-o de força segundo a sua

natureza;determinou-lhe uma época e um

número de dias.Deu-lhe domínio sobre tudo o que

está na terra.…cumulou-o de saber e inteligência.…Pôs o seu olhar nos seus coraçõespara mostrar-lhes a majestade de

suas obras[ideia sublime, a do olhar que

enxerga a transcendência, masque pode ser embotado por uma

vida dissoluta].

Esse Deus onipotente pratica amisericórdia em relação ao homem:

Que é o homem e para que serve?Que mal ou que bem pode ele fazer?A duração da vida humana é

quando muito de cem anos.No dia da eternidade esses breves

anos serão contadoscomo uma gota de água do mar,

como um grão de areia.

É por isso que o Senhor é pacientecom os homens,

e espalha sobre eles a sua

misericórdia.…e reconhece que o fim deles é

lamentável;[a característica incerteza do Antigo

Testamento quanto ao que seria avida depois da morte]

é por isso que ele os trata com todaa doçura,

…e os repreende como um pastor faz

com seu rebanho.

Finalmente, ele se lança ao elogio daSabedoria (capítulo 24). Mas, nesseponto, é melhor dar voz ao Livro dosProvérbios, que, em seu capítulo 8, fez o

mesmo com maior inspiração:

O Senhor me criou, como primíciade suas obras,

desde o princípio, antes do começoda Terra.

Desde a eternidade fui formada,antes de suas obras dos tempos

antigos.Ainda não havia abismo quando fui

concebida,e ainda as fontes das águas não

tinham brotado.Antes que assentados fossem os

montes,antes dos outeiros, fui dada à luz;antes que fossem feitos a terra e os

campose os primeiros elementos da poeira

do mundo.Quando Ele preparava os céus, ali

estava eu,quando traçou o horizonte na

superfície do abismo,quando firmou as nuvens no alto,quando dominou as fontes do

abismo,quando impôs regras ao mar,para que suas águas não

transpusessem os limites,quando assentou os fundamentos da

terra,junto a ele estava eu como artífice,brincando todo o tempo diante dele,

…achando as minhas delícias junto

aos filhos dos homens.

E agora, meus filhos, escutai-me:felizes aqueles que guardam os

meus caminhos.Ouvi minha instrução para serdes

sábios,não a rejeiteis.Feliz o homem que me ouve,e que vela todos os dias à minha

portae guarda os umbrais de minha casa!Pois quem me acha encontra a vidae alcançou o favor do Senhor.Mas quem me ofende prejudica-se a

si mesmo;quem me odeia, ama a morte.

28. Jó

Depois de um livro como oEclesiástico, o Livro de Jó aparececomo um terremoto. É talvez o grito dedor mais sentido de toda a Bíblia –embora seja, evidentemente, umacriação literária e não uma história real;um poema genial sobre as voltas quepode dar o relacionamento entre Criadore criatura.

Como o Eclesiástico, reflete umperíodo tardio da literatura bíblica,podendo ser um pouco mais antigo que ooutro livro (há quem o situe por volta de

A vidatemsuasarmadilhas;e umacriaturahumanapodeencontrar-se, derepente,em

300 a.C.).Israel vai levando a

sua vida, sob o jugo dossucessores de Alexandre.Ainda não estamos notempo das grandesperseguições; acomunidade judaica,perdendo a independênciapolítica, adere às suascrenças, pratica os seusrituais. Mas a vida temsuas armadilhas; osdesígnios de Deus sãoinsondáveis; e umacriatura humana podeencontrar-se, de repente,em extremos de abandono

extremosdeabandonoe dedesolação.

e de desolação.É o caso de Jó. Ele é

o varão virtuoso,cumulado de bensmateriais que, na velhatradição bíblica, eram arecompensa do justo. Masessa bondade de Jó irritao Tentador, que lança ao Altíssimo o seudesafio: Jó só é “certinho” porque tudolhe sai bem na vida. E se ele perder obem-estar e a saúde?

Javé aceita o desafio. Permite que odemônio atinja a família e aspropriedades de Jó. Depois, permite queJó seja atingido pessoalmente, recobertode lepra. Contra os conselhos de suamulher, Jó se recusa a amaldiçoar o

autor de todas as coisas. “O Senhor deu,o Senhor tirou, bendito seja o nome doSenhor” é o seu refrão imortal.

Mas é mais difícil manter apaciência na discussão que em seguidacomeça entre Jó e seus amigos. Estes,em tons variados, aplicam a moral maisantiga da Bíblia: se Jó está sendoatingido, é porque deve ter alguma contaa expiar. E é contra essa moral antigaque Jó se insurge, em acentosapaixonados, culpando os amigos de nãoentenderem nada:

Ah, se pudessem pesar minhaaflição,

e pôr na balança com ela meuinfortúnio!

…As setas do Todo-Poderoso estão

cravadas em mim,e meu espírito bebe o veneno delas;os terrores de Deus me assediam.…Que é a minha força, para que eu

espere,…Será que tenho a fortaleza das

pedras,e será de bronze minha carne?Não encontro socorro algum,toda esperança de salvação me foi

tirada.…Porventura, disse-vos eu: “Dai-me

qualquer coisade vossos bens, dai-me presentes,livrai-me da mão do inimigo,e tirai-me do poder dos violentos?”Ensinai-me e eu calarei,mostrai-me em que falhei.…Pretendeis censurar palavras?Palavras desesperadas, leva-as o

vento.

Expressões que não comovem muitoos amigos, como se vê pelo discurso deBildad:

Até quando dirás semelhantescoisas,

e tuas palavras serão como umfuracão?

Porventura Deus fará curvar o queé reto,

e o Todo-Poderoso subverterá ajustiça?

Se teus filhos o ofenderam,ele os entregou às consequências de

suas culpas.Se recorreres a Deus,e implorares ao Todo-Poderoso,se fores puro e reto,ele atenderá à tua oração e

restaurará a morada da tuajustiça;

…Interroga as gerações passadas,

e examina com cuidado aexperiência dos antepassados

…eles podem instruir-te, falar-te.

Era a moral do velho Israel: aqui sefaz, aqui se paga (a ideia de uma vidaapós a morte sendo, naquele momento,ainda bastante confusa para o judaísmo).

E Bildad continua, sólido como arocha:

Não; Deus não rejeita o homemíntegro,

nem dá a mão aos malvados.Ele porá de novo o riso em tua

boca,

e em teus lábios, gritos de alegria;teus inimigos serão cobertos de

vergonha,a tenda dos maus desaparecerá.

É a sabedoria tradicional – que emmomento algum perdeu o seu valor; oque se poderia chamar de “sabedoriapositiva”. Mas Jó precisaria de mais doque isso no momento em que apertam oslaços de sua tortura. Ele não estápropriamente em rebelião, mas é comose ele pusesse em questão os própriosdados do problema – num contexto enum clima totalmente inaceitáveis para a“sabedoria positiva”.

Ele acha, para seu desespero,acentos que têm poucos rivais em toda a

literatura universal. Ele é o homemconvicto, piedoso, que não entende maisa sua relação com o Altíssimo; quepassa a olhar com terror para o ponto deonde viria, tradicionalmente, o consolo.

Sim, bem sei que é assim;como poderia o homem ter razão

contra Deus?…Deus é sábio em seu coração e

poderoso,quem pode afrontá-lo

impunemente?Ele transporta os montes sem que

estes percebam,ele os desmorona em sua cólera.Sacode a terra em sua base,

…Dá uma ordem ao sol para que não

se levante,põe um selo nas estrelas.Ele sozinho formou a extensão dos

céus,e caminha sobre as alturas do mar.Ele criou a Grande Ursa, Órion, as

Plêiades,e as câmaras austrais.Fez maravilhas insondáveis,

prodígios incalculáveis.

Ele passa despercebido perto demim,

toca levemente em mim sem que eutenha notado.

Quem poderá impedi-lo dearrebatar uma presa?

…Se eu pretendesse ser justo, minha

boca me condenaria;se fosse inocente, ele me declararia

perverso.

Inocente! Sim, eu o sou; pouco meimporta a vida,

desprezo a existência.Pouco importa, é por isso que eu

disseque ele faz perecer o inocente como

o ímpio.…A terra está entregue nas mãos dos

maus,e ele cobre com um véu os olhos dos

seus juízes;se não é ele, quem é, pois?

Raíssa Maritain, durante a SegundaGuerra Mundial, escreveu um poema –“1943” – que é um eco moderno àsexclamações de Jó: onde estava oSenhor dos Exércitos quando o corpo deIsrael se desfazia em fumo nos camposde concentração?

Por causa do Holocausto, houvejudeus que perderam a fé (Elie Wiesel,por exemplo). Outros acham, naquelesexcessos de sofrimento, um motivo parase entregarem ainda mais nas mãosdaquele que sabe o que nós não

sabemos.No Livro de Jó, a temperatura sobe

constantemente, até que Jó,desesperando dos amigos, joga a sualuva no rosto do Altíssimo:

Mas é com o Todo-Poderoso que eudesejaria falar,

é com Deus que eu quero discutir.

Por estranhos caminhos, alguémpoderia, aqui, se lembrar de Nietzsche.Para além das declarações abertas deateísmo, não são livros como o EcceHomo luvas lançadas contra o infinito?

Nietzsche enlouqueceu. Jó nãoenlouquece. E, num determinadomomento, o Todo-Poderoso fala. Mas o

que ele diz não é uma resposta direta: éum poema cósmico onde, mais uma vez,são postos em causa os limites doconhecimento humano.

Cinge os teus rins como um homem;vou interrogar-te e tu me

responderás.Onde estavas quando lancei os

fundamentos da terra?Fala, se estiveres informado disso.Quem lhe tomou as medidas, já que

o sabes?Quem sobre ela estendeu o cordel?Sobre que repousam as suas bases?Quem colocou nela a pedra de

ângulo,

sob os alegres concertos dos astrosda manhã,

…Quem fechou com portas o mar,quando brotou do seio maternal,quando lhe dei as nuvens por

vestimenta,e o enfaixava com névoas

tenebrosas;quando lhe tracei limites,…dizendo: “Chegarás até aqui, não

irás mais longe;aqui se detém o orgulho de tuas

ondas?”

E em seguida:

Algum dia deste ordens à manhã?Indicaste à aurora o seu lugar,para que ela alcançasse as

extremidades da terra,…Foste até as fontes do mar?Passaste até o fundo do abismo?Apareceram-te, porventura, as

portas da morte?…Abraçaste com o olhar a extensão

da terra?Fala, se sabes tudo isso!

É uma espécie de eloquência“cósmica” que também encontramos noLivro da Sabedoria.

Depois de dois discursos divinos, Jóresponde:

Meus ouvidos tinham escutado falarde ti,

mas agora meus olhos te viram.É por isso que me retrato,e arrependo-me no pó e na cinza.

Para o plano racional, decepçãocompleta: todas as perguntas ficam,aparentemente, em aberto. Mas o que oautor sugere é que Jó mudou de “planoexistencial”: o encontro com a realidadedivina lhe deu um tipo de abertura quenão faz parte do raciocínioconvencional.

O que não impede que este seja umlivro carregado de mistério, queprovocou uma infinidade de comentários– como o “Resposta a Jó”, de C.G. Jung.

29. O precursor

A figura impressionante de JoãoBatista faz a passagem do Antigo para oNovo Testamento. Ele tem a veemênciade um profeta dos velhos tempos, mas,ao contrário dos profetas antigos, quefalavam do que ainda estava por vir, oBatista tinha diante dele a imagem doCristo; e nada é mais comovente (epedagógico) do que o modo como ele seapaga diante do Cordeiro de Deus:“Importa que Ele cresça, e que eudiminua.” Ou então: “Eu não sou dignode desatar a correia da Sua sandália.”

A vida de João começa da maneiramais extraordinária. Sua mãe, Isabel,estava no sexto mês de gravidez quandorecebeu a visita da Virgem Maria, queacabara de ter o encontro com o anjo.Diz o texto de são Lucas: “ApenasIsabel ouviu a saudação de Maria, acriança estremeceu no seu ventre.” EIsabel exclama em voz alta: “Bendita éstu entre as mulheres e bendito é o frutodo teu ventre. De onde me vem a honrade vir a mim a mãe do meu Senhor? Poisassim que a voz da tua saudação chegouaos meus ouvidos, a criança estremeceude alegria no meu seio. Bem-aventuradaés tu que creste, pois se hão de cumpriras coisas que da parte de Deus te foramditas.” Depois disso, silêncio sobre

João, até que ele apareça pregando numvau do Jordão.

A marca do Batista é a radicalidade– o tom e a convicção de quem leva ascoisas às últimas consequências. Apresença de fariseus e saduceus entre asmultidões que acorriam para ver ofenômeno – a aparição de um profeta,depois de séculos em que o céu pareciater se calado – basta para lançá-lo numafúria sagrada:

“Raça de víboras! Quem vos ensinoua fugir da cólera vindoura? Dai, pois,frutos de verdadeira penitência. E nãodigais, dentro de vós: ‘Nós temos aAbraão como pai.’ Pois eu vos digo:Deus é poderoso para suscitar destaspedras filhos a Abraão. O machado já

Não sepodeteracessoa uma

está posto à raiz das árvores. Todaárvore que não produzir bons frutos serácortada e lançada ao fogo.”

O machado na raiz da árvore: é a“radicalidade” do Batista, que não fazcompromisso. O seu batismo é um ritode purificação: não se pode ter acesso auma nova vida sem, de algum modo,dizer adeus às coisas que não combinamcom essa vida nova.

A sua imagem, pelotexto do Evangelho, é deuma severidade total: elese vestia de pele decamelo, comia gafanhotose mel silvestre. (Mas ébom lembrar que, para oslados do Oriente,

novavidasem, dealgummodo,dizeradeusàscoisasquenãocombinamcom

gafanhoto faz parte docardápio; e mel silvestredeve ser ótimo.) Oregistro que temos deletambém é de umaconcisão absoluta – pelomenos nesses textosevangélicos, ele só fala oessencial: dá a suamensagem e depoisdeixa-se mergulhar nasombra do Cristo.

Mas há pelo menosum toque de mistérionessa históriaextraordinária: é quando,já preso, ele manda seusdiscípulos perguntarem a

essavidanova.

Jesus: “És tu mesmo,aquele que deve vir, oudevemos esperar umoutro?” O que abre aporta para muitasconjecturas. Estaria João,

nessa passagem, querendo apenas que oCristo confirmasse o que os discípulosprecisavam saber? Ou também ele,mesmo sendo primo de Jesus, foienvolvido naquela aura de mistério quecercava o Cristo, naquela revelaçãoprogressiva que obrigou a própriaVirgem Maria a “guardar e meditar ascoisas no seu coração”?

Respondendo aos mensageiros deJoão, Jesus Cristo usa um tom solene:“Ide e contai a João o que ouvistes e o

que vistes: os cegos veem, os coxosandam, os leprosos são limpos, ossurdos ouvem, os mortos ressuscitam, oEvangelho é anunciado aos pobres…”E, partindo os mensageiros, ele se dirigeà multidão: “Que fostes ver no deserto?Um caniço agitado pelo vento? Quefostes ver, então? Um homem vestidocom roupas luxuosas? Mas os quevestem essas roupas vivem nos paláciosdos reis. Então, por que fostes para lá?Para ver um profeta? Sim, digo-vos eu,mais que um profeta. É dele que estáescrito: ‘Eis que eu envio meumensageiro diante de ti para te prepararo caminho’ (Malaquias). Em verdadevos digo: entre os filhos de mulher, nãosurgiu outro maior que João Batista.”

Para

Ninguém, na Bíblia, recebeu um elogiosemelhante.

Para personagem tão grandioso, amorte também deveria chegar demaneira especial. Herodes, o tetrarca,havia tomado como mulher a esposa deseu irmão Filipe, Herodíades. JoãoBatista, em plena veia profética, lhetinha mandado dizer: “Não te épermitido tomá-la por mulher.” Semdemora, o terrível Herodes mandouprendê-lo e o enfiou, acorrentado, numburaco de prisão. Diz o Evangelho deMateus: “De bom grado o mandariamatar; mas ele temia o povo, queconsiderava João um profeta.”

Vem então a cena queos artistas, depois,

personagemtãograndiosocomoJoãoBatista,a mortetambémdeveriachegardemaneiraespecial.

transformaram em pintura(Beardsley), em ópera(Richard Strauss), emliteratura (Oscar Wilde).É o aniversário deHerodes. A filha deHerodíades, Salomé,executa em suahomenagem uma daquelasdanças lascivas quepoderia ser a “dança doventre”. Herodes vai seempolgando (no texto deOscar Wilde, há muitotempo ele lançava olharescobiçosos para aenteada). No fim daapresentação, ele jura à

dançarina dar-lhe tudo o que elapedisse. A menina vai consultar a mãe,que tinha ódio do Batista. E vem então asinistra sugestão que a filha executa semdemora. Diante de Herodes, invocandoo juramento, ela diz que quer, numabacia de prata, a cabeça de João Batista.Pânico de Herodes, que devia ser umcovarde, como todo tiranete. Pode-seimaginá-lo prometendo a Salomériquezas e recompensas inéditas, se elarenunciasse ao pedido. A menina não seabala, exercendo a prerrogativafeminina de ser cruel com quem elaenfeitiçou. Herodes cede. “A cabeça foitrazida num prato e dada à moça, que aentregou à sua mãe”, diz o texto sóbriodo Evangelho. “Vieram os discípulos de

João trasladar seu corpo, e o enterraram.Depois foram dar a notícia a Jesus.”

Há umtipo decomportamentoqueescurece

30. Maria

Os capítulos iniciais do Gênesis sãomisteriosos. Não é uma revelaçãoracional, intelectual. Eles sugerem que,pelo pecado do homem, fechou-se oParaíso.

O que isso querdizer? Que há um tipo decomportamento queescurece o nosso universointerior, que prejudica anossa visão de Deus.Representados por aqueleprimeiro casal humano,

o nossouniversointerior,queprejudicaa nossavisãodeDeus.Então oAmorseretrai.

num instante de fraquezanós nos afastamos doAmor, esquecemos oAmor. Então o Amor seretrai, e põe uma espadade fogo na entrada doParaíso – para lembrar agravidade das nossasescolhas.

Mas não se fecha parasempre, e, mais adiante,virá em pessoaestabelecer um diálogoconosco. Desde então, oconhecimento maisprofundo é o que passapelo Cristo – e, de novo,ultrapassa o nosso

Todasasgrandestradiçõesreligiosasestãodeacordo:épreciso

intelecto. Ele é a porta que outra vez seabre para o Paraíso, mas é umapassagem que supõe o nosso dom –assim como Ele se doou plenamente.

A árvore da ciênciado bem e do mal – o queisso pode significar?Entre outras coisas, amultiplicidade, o mundocomo nós o vemosprosaicamente, onde obem e o mal andammisturados – e misturadosde tal forma que umaconfusa tristeza prejudica,ou impede, a visão dobem.

Comendo daquele

reencontraro olharoriginalcapazdeenxergaroverdadeiroSer.

fruto proibido, assumimosvoluntariamente esseconhecimentofragmentado, econtinuamos a fazer issoquando oscilamos entrecoisas que nosaproximam de Deus ecoisas que nos afastamdele. (Quem não conhece,ou nunca experimentou,aquele olhar carregado dedesejo que nostransforma, de seres

capazes de contemplaçãodesinteressada, em aves de rapina?)

Nesse ponto, todas as grandestradições religiosas estão de acordo: é

preciso, com o maior esforço de queformos capazes, superar essa visãofragmentada (a que vai de um desejo aoutro desejo); reencontrar o olharoriginal, a visão paradisíaca, a que écapaz de enxergar o verdadeiro Ser, quenão confunde a realidade com asaparências.

Quem teve esse olhar? A VirgemMaria – e é por isso que falamos na suaImaculada Conceição: uma criaturamisteriosamente concebida sem a nossatendência à fragmentação, sem essavocação para o desequilíbrio que pareceespreitar desde os nossos primeirospassos. Por isso ela é Cheia de Graça,porque nela a Graça entrava semencontrar obstáculos.

E, assim, o mistério do reencontrotem como símbolo uma mulher, um serigual a nós, 100% humano, que nasceucom uma missão especial.

A cena é das mais representadas emtoda a arte ocidental: o anjo Gabriel foienviado por Deus a uma cidade daGalileia chamada Nazaré, a uma virgemdesposada com um homem que sechamava José, da casa de Davi (segundoos costumes da época, era ainda umnoivado). A mensagem do anjo era algoinédito: “Eis que conceberás e darás àluz um filho, e lhe porás o nome deJesus. Ele será grande e chamar-se-áFilho do Altíssimo.” Ante a estranhezada virgem (“Como se fará isso, pois nãoconheço homem?”), ele a instrui: “O

Enquantoo anjoesperavaumarespostadaVirgemMaria,eracomo

Espírito Santo descerá sobre ti, e a forçado Altíssimo te envolverá com a suasombra. Por isso o ente santo que nascerde ti será chamado Filho de Deus.”

O anjo espera umaresposta. É como se oUniverso inteiro sepusesse em expectativa.Quando ela concorda –“Faça-se em mim avontade do Senhor” –, anatureza ganha uma novaluz; e pouco depois, noencontro com santaIsabel, sairá de seuslábios o cântico do“Magnificat”:

se oUniversointeirosepusesseemexpectativa.

Minha almaengrandece aoSenhor,

meu espírito exultaem Deus, meuSalvador,

porque olhou para ahumildade da suaserva;

de ora em diante,todas as geraçõesme chamarão de bem-aventurada.

Mas ainda não era uma iluminaçãocompleta. Ela recebeu advertências quedevem ter lhe causado calafrios – comoa do velho Simeão: “Eis que este

menino está destinado a ser … um sinalde contradição; … e uma espadaatravessará a tua alma, a fim de quesejam revelados os segredos de muitoscorações.”

Alguma coisa deve ter ficadovelada, desde o início – ou ela nãoconseguiria cumprir o seu papel de mãe.O que significa pôr no mundo o “Filhodo Altíssimo”? O que isto quereria dizerpara uma menina judia de quinze anos(uma idade plausível) educada numareligião que enfatizava a transcendênciade Deus? Um piedoso véu pode tercoberto as suas intuições, amortecido oseu impacto. Como viveria ela se, desdeo início, visualizasse a Paixão?

A vida corre em Nazaré –

suficientemente lenta para que tanto elaquanto o menino cresçam “em graça eem sabedoria”. Só uma vez essatranquilidade é quebrada: quando oJesus menino, aos doze anos, some emJerusalém durante uma peregrinação.“Não sabias que eu e teu pai teprocurávamos aflitos?”, diz a mãe nahora do reencontro. Cena de uma vidacomum: também nós temos de sair “àprocura”, aflitos, como quedesconfiando de alguma coisa.

A resposta parece cortante: “Nãosabíeis que devo ocupar-me das coisasde meu Pai?” (o pai que não era José).Era uma lembrança do plano datranscendência, daquela outra naturezaque estava nele. Mas, depois, eles

voltam a Nazaré, “e ele lhes erasubmisso”, como qualquer menino.Quanta frivolidade já se escreveu sobreessa vida oculta! Até mesmo que eleteria ido à Índia fazer o seu mestrado emsabedoria! Que necessidade de inventarexplicações difíceis e de turvar alimpidez da história…

Até onde podemos saber, ele ficouem Nazaré anos a fio. Não é esse oexemplo mais expressivo de que eleassumia plenamente a nossa natureza, onosso dia a dia e até – por que não? – osnossos sobressaltos e as nossasdecepções? Mesmo mais tarde, não vaiele decepcionar-se com as cidades quenão quiseram ouvi-lo – Cafarnaum,Betsaida, Corozaim – e com os

Nazaréé oprocessoda“formaçãohumana”doCristo.Quandoele sairde

discípulos que não quiseram, ou nãopuderam, esperá-lo acordados nomomento mais difícil da sua vida?

Nazaré é o processoda “formação humana” doCristo. Quando ele sairde casa, aos trinta anos,para não mais voltar, o“curso” estará terminado;e, a partir daí, caberá aele conduzir aprofundidades novas aideia do que é ser umhomem ou uma mulher. Enesse caminho – comoantes – só uma pessoaestará permanentemente aseu lado (ainda quando

casa,aostrintaanos,paranãomaisvoltar,o“curso”estaráterminado.

não fisicamente): suamãe. É dela a maisíntima, a mais longa emais completa meditaçãosobre a vida, Paixão eressurreição do Cordeirode Deus.

Os artistas tiveram aintuição disso quandoretrataram, de milmaneiras, a Virgem com omenino; e, na outra pontada história, a mãe ao péda cruz; e, em seguida, amulher que recebe o filhomorto em seus braços – aPietà. Que imagem, comefeito, pode dar melhor

ideia da Piedade, da compaixão, doamor que sofre vendo o sofrimento dooutro?

Mas essa mesma Virgem estevepresente no momento da Ascensão; etambém na hora gloriosa de Pentecostes.Se, ali, os discípulos receberam ailuminação, para ela aquela descida doEspírito deve ter sintetizado eclarificado em grau máximo umaexperiência de anos. Finalmente, as suasmeditações chegavam a termo; ela “via”,sem mais nenhum véu. Podia, a partirdaí, dispensar as graças que lhesolicitamos na Ave-Maria. E pode nosajudar a ler um livro que, só pelasnossas luzes, jamais será um livroplenamente aberto.

Muitomaisque

31. O Cristo

Muito mais que uma doutrina, ocristianismo é o próprio Cristo. Sercristão é sentir a atração e o impactodessa figura que viveu na Palestina notempo dos imperadores romanos. E aIgreja propõe que a vida cristã seja umaimitação de Cristo – o que também é onome de um famoso livro medieval.

Jesus de Nazaré é umpersonagem histórico,muito bem situado notempo e no espaço.Lendo, sem pretensão, os

umadoutrina,ocristianismoé opróprioCristo.E aIgrejapropõeque avidacristã

Evangelhos, somostransportados para umcenário bem-definido.Esse homem que andapelas estradas daPalestina, da Galileiapara Jerusalém, fala comohomem do seu tempo,imerso no judaísmo; seusexemplos são bemconcretos, extraídos dodia a dia. Não é, comcerteza, um discurso paraintelectuais.

No entanto, essesdiscursos remetemtambém a uma outrarealidade. É como se a

sejaumaimitaçãodeCristo.

vida de todo diaganhasse, de repente, umadimensão extra, uma“terceira dimensão”. OCristo fala de si mesmo,mas fala também do “Paique está no céu”. E assimvai introduzindo seus

ouvintes no que mais tarde ficaríamosconhecendo como o mistério daTrindade – uma realidade divina queexiste, ela mesma, como uma relação deamor.

Esse fascínio que emana docarpinteiro de Nazaré é muito forte. Emalguns casos, ele diz a uma pessoa:“Vem.” E ela vai, abandonando afamília e os afazeres. Os milagres que

eventualmente acontecem reforçam essaimpressão. Como dizem os discípulos,no episódio da tempestade no lago:“Quem é este, a quem até o vento e omar obedecem?”

Mas a presença do Cristo entreaquelas multidões compostas, aprincípio, só de pessoas humildes, não éum rosário de milagres. Ele não fazmilagre a qualquer hora, ousimplesmente porque alguém pede. Pelocontrário, em muitos casos ele escondeo milagre; manda que o beneficiário nãoconte a ninguém o que lhe aconteceu. Noepisódio da multiplicação dos pães, porexemplo, tem-se a nítida impressão deque só os discípulos perceberam o queestava acontecendo. E na única vez em

que o Cristo, antes da ressurreição,aparece em plena glória – no alto domonte Tabor –, ele tem o cuidado defazer isso apenas para três discípulosescolhidos (os de sempre: Pedro, Tiagoe João). E, descendo do monte, adverte-os severamente que não contem aninguém o que tinham visto.

Essa é toda a trama do Evangelho; e,num certo sentido, é o que aconteceainda hoje: Jesus Cristo deixa os seussinais, mas não aparece de modoestrondoso; como se quisesse dizer: “Eunão vou violar a sua liberdade com umademonstração incontestável; quem temolhos para ver, veja; quem tem ouvidospara ouvir, ouça.”

É um tipo novo de profeta, de

Messias; e poucas coisas são tãofascinantes, no decorrer dos Evangelhos,como esse modo que o Cristo escolheupara se revelar. Ele falava emparábolas, sabendo que elas seriamentendidas por uns, mas não por outros.E isso é tão verdade que os própriosdiscípulos, antes dos capítulos finais dasua vida terrena, parece que seperguntam: “Afinal, quem é ele?” É apergunta que João Batista manda fazer,já aprisionado por Herodes: “És tumesmo [o Messias], ou devemos esperarum outro?”

O Cristo não grita (a não ser nosolitário episódio da expulsão dosvendilhões do Templo). O seu tom é oda conversa – como no admirável

OCristonãogrita. Oseu tomé o da

encontro com a samaritana.O encontro já era, em si mesmo,

“diferente”, porque os judeus não sedavam com os samaritanos. E tambémera inusitado que um homem dirigisse apalavra a uma mulher desconhecida.Mas dessas estranhezas surge uma dasconversas mais instigantes do textoevangélico.

Jesus está voltandopara a Galileia, vindo daJudeia, e passa pelaSamaria. Era o meio-dia,dia de calor, e ele sedetém na beira de umpoço (sempre o poço,detalhe importantíssimona vida daquelas regiões,

conversa,comonoadmirávelencontrocom asamaritana.

fonte de água e de vida).Os discípulos tinham idoà cidade mais próximabuscar mantimentos, eJesus está só quandochega uma samaritanapara apanhar água. Segue-se o extraordináriodiálogo, iniciado porJesus:

“‘Dá-me de beber.’‘Sendo tu judeu, como pedes de

beber a mim, que sou samaritana?’‘Se conhecesses o dom de Deus, e

quem é que te diz ‘dá-me de beber’,certamente lhe pedirias tu mesma, e elete daria uma água viva.’

‘Senhor, não tens com que tirá-la, e

o poço é fundo… Onde tens, pois, essaágua viva? És porventura maior do queo nosso pai Jacó, que nos deu este poço,do qual ele mesmo bebeu e também osseus filhos e os seus rebanhos?’

‘Todo aquele que beber desta águatornará a ter sede, mas o que beber daágua que eu lhe der jamais terá sede. Aágua que eu lhe der virá a ser fonte deágua jorrando para a vida eterna.’”

Nesse ponto, alguma coisa muda naatitude da samaritana:

“‘Senhor, dá-me dessa água, para eujá não ter sede nem vir aqui tirá-la.’

‘Vai, chama o teu marido e voltaaqui.’

‘Não tenho marido.’‘Tens razão em dizer que não tens

marido. Tiveste cinco, e o que agoratens não é teu. Nisto disseste a verdade.’

‘Senhor, vejo que és profeta…Nossos pais adoraram neste monte, masvós dizeis que é em Jerusalém que sedeve adorar.’

‘Mulher, acredita-me, vem a hora emque não adorareis o Pai nem neste montenem em Jerusalém. Vós adorais o quenão conheceis, nós adoramos o queconhecemos, porque a salvação vem dosjudeus. Mas vem a hora, e já chegou, emque os verdadeiros adoradores hão deadorar o Pai em espírito e em verdade, esão esses adoradores que o Pai deseja.’

… ‘Sei que deve vir o Messias;quando, pois, vier, ele nos fará conhecertodas as coisas.’

O

‘Sou eu quem fala contigo.’”E a mulher vai correndo à cidade, e

diz aos seus conhecidos: “Vinde e vedeum homem que me contou tudo o quetenho feito. Não seria ele porventura oCristo?”

Esse capítulo de são João é umexemplo perfeito do tom coloquial doEvangelho, do modo como o Cristo seaproximava de uma pessoa, colocando-se à altura dela, propondo muito maisque impondo. O final da conversa éinvulgar, porque só em circunstânciasexcepcionais ele se define claramente asi mesmo.

O mistério da pessoapersiste até o fim.Persiste até hoje, como se

mistériodapessoapersisteaté ofim.Persisteatéhoje,comose oCristofosse o

o Cristo fosse o grandeenigma e o grande desafioda história do Ocidente.Mesmo anticristãosdeclarados comoNietzsche não escapam aesse fascínio (a obra deNietzsche é uma espéciede Evangelho lido àsavessas, mas se ele fosseindiferente ao Cristo, qualo motivo do que pareceuma verdadeira obsessãocom o Galileu?).

A doutrina tambémestá lá, mas não tem ocaráter “legalista” datradição mosaica. Aliás,

grandeenigmae ograndedesafiodahistóriadoOcidente.

ele tinha ditoexplicitamente: “Nãojulgueis que vim abolir aLei e os profetas. Nãovim para os abolir, massim para levá-los àperfeição.”

A doutrina cristãaparece assim,inicialmente – na boatradição rabínica –, comoum comentário à Lei deMoisés, à Torá. Mas otom é inconfundível. E émarcado logo no primeiro grandediscurso, que se tem chamado deSermão da Montanha. Narra são Mateus:“Vendo aquelas multidões, Jesus subiu à

montanha. Sentou-se e seus discípulosaproximaram-se dele. Então abriu aboca e lhes ensinava …”

O lugar atribuído pela tradição aesse discurso não passa de uma colina,que desce suavemente para as águasazuis do lago de Genesaré. Ali, quandose fala a favor do vento, as palavras sãolevadas muito longe. Esse longo sermão,que pode ter sido pronunciado assimmesmo, ou ser uma compilação desermões distintos, é quase um resumo dadoutrina cristã.

Bem-aventurados os pobres emespírito, porque deles é o Reinodos Céus.

Bem-aventurados os que choram,

Se vocêabraçaaverdadeirapobreza,longe

porque serão consolados.Bem-aventurados os mansos,

porque herdarão a terra.Bem-aventurados os que têm fome e

sede de justiça, porque serãosaciados.

Bem-aventurados osmisericordiosos, porquealcançarão misericórdia.

“Bem-aventurados”quer dizer “felizes”. OCristo está dando umareceita de felicidade, nãode tristeza. E que receitaé essa? Que você teráacesso a todos os bens domundo, que você vai

de terperdidotudo,naverdadeganhouomundointeiro,porquea suaalma seliberta.

“herdar a terra”, namedida em que abrir amão crispada com quetentamos nos apossar detudo, garantir tudo, terpoder sobre tudo. Nessesentido é que oEvangelho, neste comoem outros trechos,significa uma revolução,porque inverte asprioridades do “mundo”.O que o Evangelho chamade “mundo”, opondo oespírito do mundo aoespírito cristão, não é ocosmos magnífico quesaiu das mãos de Deus: é

a rede de interesses que forja o dia a diadas sociedades, a luta pelo poder e pelodinheiro, o desejo de dominar, detransformar o prazer individual em regrauniversal. São Francisco de Assis, maisdo que ninguém, entendeu esta lição doEvangelho: se você abraça a verdadeirapobreza, longe de ter perdido tudo, naverdade ganhou o mundo inteiro, porquea sua alma se liberta.

Claro, nem todos têm a vocação deum frade franciscano. Por isso é que aprimeira bem-aventurança se refere aos“pobres em espírito” – aqueles quepossuem as coisas como se não aspossuíssem; que usufruem os bens destemundo sem se deixarem aprisionar poreles, sem se tornarem escravos dos

desejos, vassalos das paixões.É uma doutrina que não é

exclusividade do cristianismo: a mesmacoisa dizem os budistas, ou o hinduísmo.Mas há palavras do Cristo que têm umaressonância única, que são como que asua “marca registrada”. Por exemplo:“Amai os vossos inimigos, fazei bemaos que vos odeiam, orai pelos que vosperseguem. Deste modo sereis os filhosde vosso Pai do céu, pois ele faz nascero sol tanto sobre os maus como sobre osbons, e faz chover sobre os justos esobre os injustos. Se amais somente osque vos amam, que recompensa tereis?… Se saudais apenas vossos irmãos,que fazeis de extraordinário? Não fazemisto também os pagãos?”

OReinonão éumacoisaestática,comoexplicouopróprioCristoemalgumas

Quem, alguma vez,falou assim? Não sãoessas palavras quereviram todas asconvenções, todos osnossos velhos hábitos,longamente adquiridos?Esta é a revolução doCristo. E para seguirnessas águas temos quedescobrir em nós umanova criatura, soterradasob séculos deconformismo e deegoísmo. Este é ocaminho do Reino.

Impossível? Mas oReino não é uma coisa

de suasmaisbelasparábolas.

estática, como explicou opróprio Cristo, emalgumas de suas maisbelas parábolas. Porexemplo: “O Reino dosCéus é comparável aofermento que uma mulher

toma e mistura em três medidas defarinha e faz fermentar toda a massa.”

O fermento na massa: assim já foidescrito, muitas vezes, o podermisterioso da Palavra.

32. Sentimentos

Há o Cristo transcendente, de quefalaram os Padres da Igreja e a intuiçãodos profetas. E há o Cristo cujahumanidade transborda como um rio deáguas profundas. Essa fascinantehumanidade aparece em histórias comoa que conta são João. Para colocá-lo emdificuldades, escribas e fariseus tinhamtrazido uma mulher que fora apanhadaem flagrante de adultério. Posta no meioda multidão, eles dizem a Jesus:“Moisés nos mandou apedrejar essasmulheres. E tu, o que dizes?”

A cena toma um rumo surpreendente:em vez de responder, Jesus se inclinapara o chão e começa a escrever com odedo na terra. Insistindo os fariseus, elese levanta e diz: “Quem de vós estiversem pecado, atire a primeira pedra.” Odesfecho também é surpreendente:“Sentindo-se acusados”, escreve sãoJoão, “eles foram se retirando um a um,até o último, a começar pelos maisvelhos.”

Jesus fica sozinho com a mulher elhe diz: “Mulher, onde estão os que teacusavam? Ninguém te condenou?” Elaresponde: “Ninguém, Senhor.” E Jesus:“Nem eu te condeno. Vai, e não pequesmais.”

Esse é o Cristo da misericórdia, que

aparece muitas e muitas vezes. Mas eletem todos os sentimentos humanos, aindaque expurgados de suas deformações.Por isso é que é falso o Cristo dealgumas representações açucaradas. Elepode, eventualmente, falar com a mesmaseveridade de um profeta antigo. E se háuma coisa que ele não tolera é ahipocrisia. Daí ele ser tão duro com osescribas e fariseus.

Os fariseus eram um dos partidosreligiosos da velha Jerusalém. Não sepode condená-los indistintamente. Aocontrário dos saduceus, que eram,digamos, pragmáticos, e tratavam deacomodar-se a todas as situações, osfariseus eram os seguidores estritos daLei mosaica. Tendiam a enrijecer

OCristodamisericórdia,queaparecemuitasemuitasvezes,tem

devido às condições políticas e culturaisda época.

Desde os tempos deAlexandre, a Palestinaentrara no círculo deinfluência do helenismo –a tradição grega queAlexandre tratava deuniversalizar. Era umagrande tradição, comoatesta seu impacto nocristianismo dosprimeiros séculos. Era oque havia de mais fino esofisticado na época.Mas, com o seu brilhantecosmopolitismo, impunhaum desafio frontal ao

todosossentimentoshumanos,aindaqueexpurgadosde suasdeformações.

judaísmo – a começar poruma moral que ia sedesfazendo e que feririade morte tanto a culturada Grécia como a deRoma.

Contra esse contágioé que se erguiam osfariseus – e que elesforam capazes de criaruma consciência heroicaem Israel fica visível naepopeia dos macabeus.

Mas a natureza humana tem as suasarmadilhas, e, por uma autoconsciênciaorgulhosa, os “doutores da Lei” podiamcair na mesma rigidez, na mesma miopiaespiritual que atinge eventualmente um

prelado católico ou um pastorprotestante. É a deformação contra aqual, um pouco depois, vai lançar-se umsão Paulo; a ilusão de que com aobservância meticulosa dos textos daLei garante-se a justificação – asalvação eterna. E tratando dessacegueira espiritual, que se transformaem hipocrisia, o Cristo explode numacólera terrível:

“Ai de vós, escribas e fariseushipócritas! Vós fechais ao homem oReino dos Céus! Vós mesmos nãoentrais nem deixais que entrem os quequerem entrar.

“Ai de vós, escribas e fariseushipócritas! Devorais as casas dasviúvas, fingindo fazer longas orações.

Por isso sereis castigados com muitomaior rigor.

“Ai de vós, escribas e fariseushipócritas! Percorreis mares e terraspara fazer um prosélito, e, quando oconseguis, fazeis dele um filho doinferno duas vezes pior que vós mesmos.

…“Ai de vós, escribas e fariseus

hipócritas! Pagais o dízimo da hortelã,do coentro e do cominho, e desprezaisos preceitos mais importantes da Lei: ajustiça, a misericórdia, a fidelidade. Eiso que era preciso praticar em primeirolugar, sem contudo abandonar o restante.…

“Ai de vós, escribas e fariseushipócritas! Limpais por fora o copo e o

prato e por dentro estais cheios de rouboe de intemperança. Fariseu cego! Limpaprimeiro o interior do copo e do prato,para que também o que está fora fiquelimpo.”

Esse discurso apocalíptico terminacom a predição da ruína de Jerusalém.

“Jerusalém, Jerusalém, que matas osprofetas e apedrejas aqueles que te sãoenviados! Quantas vezes eu quis reunirteus filhos, como a galinha reúne seuspintinhos debaixo das asas… e tu nãoquiseste! Pois bem, a vossa casa vos édeixada deserta.” E ele diz aosdiscípulos: “Vedes todos essesedifícios? Em verdade vos declaro: nãoficará aqui pedra sobre pedra; tudo serádestruído.” Foi o que aconteceu com

acidade de Davi no ano 70 da nossaépoca, depois da revolução nacionalistaesmagada pelo imperador Tito.

Os discursos apocalípticos, que sãolongos, precedem a narrativa da Paixão.O fim estava próximo, o que Jesus nãopodia ignorar. E é impossível nãopensar, vendo esse Cristo tomado decólera, que, além da Justiça divina,entrava nesse estado de espírito a agoniade um ser humano que via aproximar-seo momento da angústia suprema. ComoDeus, ele aceitava. Como homem,sofria.

33. Reflexões

Sobre o mistério do Cristo debruçaram-se, ao longo dos séculos, santos,místicos, teólogos e também pessoascomuns. A seguir, algumas dessasvisões.

Olivier Clément, importante teólogoortodoxo moderno, parte do conceito dekenosis, palavra grega que significa“esvaziamento”. São Paulo foi nessamesma linha quando escreveu aosfilipenses: “Sendo ele de condiçãodivina, não se prevaleceu da suaigualdade com Deus, mas aniquilou a si

mesmo, assumindo a condição deescravo e assemelhando-se aos homens.E sendo exteriormente reconhecidocomo homem, humilhou-se ainda mais,tornando-se obediente até a morte, emorte de cruz.”

Clément (em The Roots of ChristianMysticism) reforça a ideia: “Jesus nosrevela a face humana de Deus, um Deusque, numa loucura de amor, esvazia a simesmo de modo que eu possa aceitá-locom toda a liberdade, e encontrar, nele,espaço para a minha liberdade.”

Santo Irineu de Lyon escrevia, noséculo II da era cristã: “A palavra deDeus se fez carne, e o Filho de Deus setornou Filho do Homem, de modo quenós pudéssemos entrar em comunicação

com a Palavra de Deus e, recebendo aadoção, tornar-nos filhos de Deus. Defato, não poderíamos ter parte naImortalidade sem uma estreita união como Imortal.”

De novo Clément: “Em Jesus,entretanto, o mistério é ao mesmo tempodescoberto e escondido. Se o DeusInacessível se revela no Crucificado,Ele é ao mesmo tempo um Deusescondido, que desconcerta nossasdefinições e expectativas.”

Fala Dionísio Areopagita: “Peloamor de Cristo, o Supraterreno revelouo seu mistério, e manifestou-seassumindo a nossa humanidade. Mas,apesar dessa manifestação, ele nãoperde nada do seu mistério. Nenhuma

inteligência é capaz de penetrar suanatureza íntima.”

Ainda Clément: “A Encarnaçãoprecisa ser situada no vasto esquema daCriação. As oscilações humanas fizeramdela uma trágica ‘redenção’, mas aEncarnação é, acima de tudo, ocoroamento do plano original de Deus, agrande síntese, em Cristo, do humano,do divino e do cósmico.”

Diz Máximo, o Confessor: “Cristo éo ponto para o qual converge aProvidência [noção teilhardiana] e noqual todas as criaturas realizam a suavolta para Deus. Ele é o mistério queenvolve todas as épocas. De fato, é porcausa do Cristo, e do seu mistério, quetodas as épocas existem, com tudo o que

É por

elas contêm. Essa síntese foideterminada desde o início: a síntese dolimitado e do ilimitado, da medida e doque não pode ser medido, do Criador eda criatura, do repouso e do movimento.Na plenitude dos tempos, a síntesetornou-se visível em Cristo, e o plano deDeus se completou.”

Escreve Gregório de Nissa, um dosgrandes Padres da Igreja: “Ele se uniuao nosso ser de modo a deificá-lo poresse contato, depois de arrancar-nos damorte. Pois a sua ressurreição tornou-separa os mortos a promessa de seuretorno à imortalidade.”

Voltando a Clément:“A Encarnação foi, assim,o produto de uma longa

causadoCristo,e doseumistério,quetodasasépocasexistem,comtudo o

história, um frutosuculento que amadureceuatravés dos tempos. Essaé a visão de santo Irineu,que já no século IIelaborou uma verdadeirateologia da História,entendida como umagrande sucessão dealianças (com Adão, Noé,Abraão, Moisés).Enquanto a humanidadeassim exercitava a sualiberdade, um pequenorebanho meditava erefinava suasexpectativas, até que umamulher, dando o seu

queelascontêm.

indispensávelconsentimento, tornoufinalmente possível aperfeita união do humanoe do divino. Agora, aHistória continua. A Vidacontinua a ser oferecida, e não imposta.”

E assim se chega ao mistério doNatal, cantado por Gregório Nazianzeno(outro dos velhos Padres gregos):

“Também eu proclamarei a grandezadesse dia: o imaterial se tornaencarnado; a Palavra se faz carne; oinvisível se torna visível, o que não temtempo recebe um começo, o Filho deDeus se torna Filho do Homem. Esta é asolenidade que celebramos hoje: achegada de Deus entre nós, de modo que

possamos ir a Deus, ou, maisprecisamente, voltar a Ele. Um milagrenão de criação, mas, antes, de recriação.Honra a essa pequena Belém, que nosdevolveu o Paraíso.”

JesusCristonão éumrevolucionário,nosentidocorrente.Mas já

34. O processo

Por que Jesus Cristo foilevado à morte, noprocesso mais famoso detodos os tempos? Desde oinício, ele cria umainquietação. Não é umrevolucionário, nosentido corrente. Houvequem quisesse fazer deleum Che Guevarapalestino. Mas não é amesma coisa. Israel,naquela época, fervia de

houvequemquisessefazerdeleum CheGuevarapalestino.

ódio aos romanos. OCristo não levou águapara esse moinho (comose vê na famosa cena damoeda do tributo: “Dai aCésar o que é deCésar…”).

Mas há um tipo deestrutura que ele sacode:a do Templo, mistura depoder temporal e poderespiritual (a dominaçãoromana deixava bastante espaço paraadministrações locais). Essa misturasempre ocasionou resultados estranhos –basta ver a história de alguns papas daIdade Média e da Renascença.

Na Palestina do século I, não devia

ser diferente. Havia, com certeza, osbem-intencionados, os justos de que falaa Bíblia. Mas também haveria os quetransformavam o Templo em motivo deorgulho e de dissipação. E, para estes, apregação do Cristo é um incômodo.

Desde o início, ele causa admiraçãode um lado; perplexidade e irritação deoutro. Afinal, quem é este homem, aquem as multidões seguem e de quem sereportam milagres? E como reconhecerimportância a um simples carpinteiroque vem da Galileia, sem nenhumcontato com as elites de Jerusalém?

Milagres à parte, exasperava osfariseus a maneira como o Cristoparecia ignorar tranquilamente regraspara eles sagradas. Mesmo os

discípulos do Batista, por exemplo,praticavam severos jejuns, dentro datradição rabínica. Mas os discípulos deJesus pareciam não se importar comisso.

Na verdade, aos jejuns fixados pelaLei, os “fundamentalistas” da épocatinham acrescentado muitos outros.Todas as segundas e quintas-feiras doano, por exemplo, eles eram vistos emroupas tristes, para assinalar queofereciam a Deus as suas privações. OCristo não alimentava a polêmica. Masdizia: “Os amigos do esposo costumamjejuar durante as bodas? Mais tarde,quando ele não estiver mais lá, o tempodo jejum chegará.” Referência à “idadede ouro” que os discípulos, sem o

saberem, estavam vivendo, e que depoisse transformaria em tempo de provação.

O choque foi ainda maior em relaçãoa o Shabbat – o sábado, o repousosemanal. Segundo a tradição mosaica,este é o Dia do Senhor, o momentosolene de lembrar o Criador; e, porconta disso, diz o Livro do Êxodo:“Trabalharás durante seis dias, mas osétimo será um dia de descansocompleto consagrado ao Senhor!” Nessedia, nem fogo se podia acender emnenhuma casa. Mas os infindáveiscomentários rabínicos foramacrescentando detalhe aos detalhes. NoTalmude, o tratado referente ao sábadoinclui 39 ações proibidas no repouso doSenhor, entre elas escrever mais que

duas letras do alfabeto, desmanchar umnó ou levar um pacote além de umadeterminada distância. Na Jerusalém dehoje, ainda há elevadores que funcionamsozinhos, para que você não tenha nemde apertar um botão.

Nesse sentido, a pregação do Cristoera uma simples volta ao bom senso.Dizia o preceito de um doutor: “Não sepode, no Shabbat, cortar um galho nemcolher um fruto.” Quando os discípulosde Jesus, num sábado, são vistoscolhendo espigas para se alimentarem,os fariseus replicam: “Vejam, éproibido, e eles fazem assim mesmo!”Quase se pode sentir uma certa ironia navoz do Cristo, quando ele responde:“Quando Davi teve fome, ele não comeu

o pão da proposição que era reservadoapenas aos sacerdotes? Sabei, pois: oShabbat foi feito para o homem, e não ohomem para o Shabbat.” Era o retorno auma noção de simples humanidade, quecostuma escapar aos fanáticos. E quandoJesus fez um milagre no Shabbat,curando um infeliz que tinha um braçoressecado, nenhuma hesitação subsistiuem seus espíritos. Diz o Evangelho:“Eles saíram e foram combinar com osherodianos a maneira de perdê-lo.”

Uma outra diferença de fundo é aquestão crucial da justificação. Para osdoutores da Lei, justo diante de Deus éaquele que cumpre os preceitos. E oCristo não mandou desprezar ospreceitos. Mas você pode extrair

TeriaJesus,nestemomento,sentidooarrepiodo que

orgulho da ideia de que é um cumpridordos preceitos, um “homem reto”. É aparábola do fariseu e do publicano. Nadoutrina cristã, a ênfase está muito maisna noção da Graça, de uma salvação quevem de Deus, e não de nós mesmos.

Desde o início, elevai dando aos discípuloslições de despojamento,de desprendimento: “Asraposas têm as suas tocas,e os pássaros do céu osseus ninhos, mas o Filhodo Homem não tem onderepousar a cabeça.” E, umdia, ele começa apreparar os seus amigospara o que virá depois. A

estavapor vir?Jáentão acruz iasedesenhandonohorizonte.

cena vem em seguida àexclamação de são Pedro:“Tu és o Cristo, filho deDeus vivo.” Conta sãoMateus: “Desde então,Jesus começou amanifestar aos discípulosque precisava ir aJerusalém e sofrer muitoda parte dos anciãos, dospríncipes dos sacerdotese dos escribas. Seriamorto e ressuscitaria aoterceiro dia. Pedrocomeçou a interpelá-lo e protestarnestes termos: ‘Que Deus não permitaisto, Senhor! Isto não te acontecerá!’” OCristo responde com uma violência

inaudita: “Afasta-te, Satanás, tu és paramim um escândalo! Teus pensamentosnão são de Deus, mas dos homens.”Teria ele, neste momento, sentido oarrepio do que estava por vir?

Já então a cruz vai se desenhando nohorizonte.

35. A Paixão

A Paixão de Cristo já foi narrada tantasvezes que pode ter perdido o seu poderde impacto. Os pintores a retrataram detodos os modos – com mais sangue,menos sangue. Na liturgia católica, ela élida todos os anos no domingo deRamos, alternando-se as versões de sãoLucas, são Marcos, são Mateus. Umfilme recente de Mel Gibson trouxe-a devolta em toda a sua crueza. Houve quemgritasse: “Antissemitismo!” Não ébonito de se ver, e deixa o raciocíniológico acuado. Os poetas conseguiram

chegar mais perto, com as suas intuiçõesmaravilhosas. Como nesse trecho dePéguy:

Eis a situação em que Deus semeteu.

Aquele que ama cai na dependênciadaquele que é amado.

Deus não quis escapar a essa leicomum.

E por seu amor, tornou-se servo dopecador.

Espantoso amor, espantosacaridade.

Espantosa esperança.Responsabilidade realmenteespantosa.

O Criador pôs-se na condição de

precisar de sua criatura.Ele não pode fazer nada sem ela.É como um rei que tivesse

abdicado, nas mãos dos seussúditos.

Que despojamento de si, do seupoder.

Que imprudência, que imprevisão.Que improvidência de Deus…

Os santos souberam o que aconteceuali: um são Francisco, que recebeu osestigmas – as marcas da crucifixão;modernamente, um padre Pio, outroestigmatizado, que tinha de usar luvaspara conter o sangue que lhe escorriadas mãos durante a celebração da missa.

Sem chegar, nunca, a esgotar omistério, o que dizer daquele drama que,na época, não causou o menor abalo, tãocorriqueira era a crucifixão de judeusnas mãos dos romanos? Em toda missacatólica, já no final repete-se ainvocação: “Cordeiro de Deus que tiraisos pecados do mundo…” Há aí duasnoções importantes: a do “cordeiro deDeus”, vítima sem manchas para osacrifício; e a da ablação dos pecados.Mas que pecado?

Uma visão “cósmica” é a de domBede Griffiths, monge beneditino queviveu longos anos na Índia e absorveualguma coisa da vastidão do pensamentooriental. Ele escreve (em Return to theCenter):

Tambémpodemosnosapropriarda luz

“Nas coisas materiais, nas plantas eanimais, a energia divina apresenta-sesob a forma de impulso cego, deinstinto. Mas é essa luz divina que brilhanas estrelas e que irradia para a terracom suas pedras preciosas, suas flores,borboletas, pássaros e formas animais.É essa força divina que move asgaláxias, energiza os átomos emoléculas, e as células vivas de que éfeita a Terra.

“Mas, no ser humano,a vida divina reflete-senuma consciência, numainteligência semelhante aela. Essa energia érecebida por umavontade, por uma

divina,fazerde nósmesmoso juiz eomestre,agircomose essepoderviessede nós

capacidade de açãoiluminada pelainteligência e, portanto,livre. Podemosreconhecer essa luzdivina e nossadependência em relaçãoao Bem supremo. Mastambém podemos nosapropriar dessa luzdivina, fazer de nósmesmos o juiz e o mestre,agir como se esse poderviesse de nós mesmos.Esse é o pecado original,essa é a grande ilusão. Éentão que nos tornamosprisioneiros neste mundo

mesmos. do espaço e do tempo,perdemos a visão daeternidade.”

É dessa tragédia existencial, dessailusão básica, que o Cristo vem noslibertar com a sua doação básica. O seusacrifício tem diversos significados.

1) Ele fecha o ciclo dos sacrifíciosdo Antigo Testamento, onde o sangueera sinônimo de vida (sacrifício =sacrum facere, “tornar sagrado”). Masagora é um sacrifício perfeito, porque oseu objeto é o “cordeiro de Deus”.Difícil de ser entendido segundo amentalidade de hoje; mas reafirma-se acontinuidade entre a Antiga e a NovaAliança.

2) Ele experimenta a humanidade até

as últimas consequências, o poder doódio, o sofrimento maior. Por isso é quese diz que, naquele momento, ele passa aser verdadeiramente “nosso irmão”:nenhum sofrimento humano lhe seráestranho. É a mais consoladora de todasas mensagens.

3) Ele atravessa as portas da morte –esse velho espantalho da humanidade. Amorte, para ele, torna-se a porta depassagem para uma outra realidade –para a vida verdadeira. O drama daPaixão é um arco que começa na agoniado Horto e termina no sepulcro vazio.“Ressuscitou!”, diz o anjo. “Ó morte,onde está a tua vitória?”, exclama sãoPaulo.

É preciso evitar, aqui, uma visão

convencional que diz ser a cruz umsacrifício sangrento destinado a aplacarum Deus furioso com os nossos pecados.Em vez disso, explica Karl Rahner, esseato redentor é uma pura iniciativa doamor divino, e não é desencadeado poralguma coisa que esteja “fora de Deus”.

Não é que um Deus zangado tenhavindo consertar alguma coisa que tinhadado errado. Ele não veio (para voltarao padre Varillon) consertar o que Adãoteria estragado, e sim aprofundar o seucompromisso com o mundo, num gestode amor gratuito. A antiga aliança éultrapassada do modo maissurpreendente. Deus, nosso irmão: quempoderia imaginar? Deus que se liga ànossa humanidade, porque o Cristo se

Jesusnãoveioconsertaro queAdãoteriaestragado,e simaprofundar

revela tanto humano quanto divino. Deusque, sacrificando-se ele mesmo, lava ospecados do mundo com um sangueregenerador…

Nunca cessaremos dearregalar os olhos diantedesse ato espantoso. Queesse espanto não crie,entretanto, uma distânciaartificial e invencívelentre a nossa vida e avida do Cristo. Se fosseassim, não teria valido apena! É Henri Nouwenquem escreve: “Nãoapenas Ele veio para noslivrar dos grilhões dopecado e da morte: Ele

o seucompromissocom omundo,numgestodeamorgratuito.

também veio para nosconduzir à interioridadeda vida divina!”

Custa-nos entender oque isso significa.Tendemos a enfatizar adistância entre JesusCristo e nós mesmos.Vemos Jesus como otodo-poderoso Filho deDeus, inalcançável paranós, pecadores. Mas,pensando assim,esquecemos que o Cristo

veio nos comunicar a sua própria vida.Isso é o que ensina cada linha doEvangelho. Só quando percebermos essaradical novidade do Evangelho é que

saberemos o que é a vida espiritual.Tudo o que pertence a Jesus nos é dado,nos é oferecido gratuitamente.

36. Ressurreição

Jesus Cristo morreu numa sexta-feira,quando começa o Shabbat judaico. Foienterrado na própria sexta, na sepulturade um judeu rico – José de Arimateia –que pedira o seu corpo a Pilatos.

O que acontece depois é tãosurpreendente que dispensa adjetivos.“No primeiro dia que se seguiu aosábado”, conta são João, “MariaMadalena foi ao sepulcro, de manhãcedo, quando ainda estava escuro. Viu apedra [que bloqueava a entrada]removida. Correu e foi dizer a Simão

Pedro e ao outro discípulo a quem Jesusamava [o próprio João]: ‘Tiraram oSenhor do sepulcro, e não sabemos ondeo puseram.’ Saiu então Pedro comaquele outro discípulo e foram aosepulcro. Corriam juntos, mas aqueleoutro discípulo correu mais depressa doque Pedro e chegou primeiro aosepulcro. Inclinou-se e viu ali os panosno chão, mas não entrou. Chegou SimãoPedro, que o seguia, entrou no sepulcroe viu os panos postos no chão. Viutambém o sudário que estivera sobre acabeça de Jesus. Não estava, porém,com os panos, mas enrolado num lugar àparte. Então entrou também o discípuloque havia chegado primeiro ao sepulcro.Viu e creu. Em verdade, ainda não

haviam entendido a Escritura, segundo aqual Jesus devia ressuscitar dentre osmortos. Os discípulos, então, voltarampara as suas casas.”

Continua são João: “Maria,entretanto, conservava-se do lado defora, perto do sepulcro, e chorava.Chorando, inclinou-se para olhar dentrodo sepulcro. Viu dois anjos vestidos debranco, sentados onde estivera o corpode Jesus, um à cabeceira e outro aospés. Eles lhe perguntaram: ‘Mulher, porque choras?’ Ela respondeu: ‘Porquelevaram o meu Senhor, e não sei onde opuseram.’ Ditas estas palavras, voltou-se para trás e viu Jesus em pé, mas não oreconheceu. Perguntou-lhe Jesus:‘Mulher, por que choras? Quem

procuras?’ Supondo que fosse ojardineiro, ela respondeu: ‘Senhor, se tuo tiraste, dize-me onde o puseste e eu oirei buscar.’ Disse-lhe Jesus: ‘Maria!’Voltando-se, ela exclamou em hebraico:‘Rabôni!’ (que quer dizer: Mestre).Disse-lhe Jesus: ‘Não me toques, porqueainda não subi a meu Pai, mas vai ameus irmãos e dize-lhes: Subo para meuPai e vosso Pai, meu Deus e vossoDeus.’ Maria Madalena correu paraanunciar aos discípulos que tinha visto oSenhor e contou-lhes o que ele tinhafalado.”

Até aqui, são João. Os quatroevangelistas diferem um pouco nessasnarrativas, mas concordam no essencial.Há a famosa cena da entrada de Jesus no

Cenáculo, onde os discípulos estavamreunidos e onde Tomé se arrepende deter duvidado. Há, em são Lucas, ahistória maravilhosa dos discípulos deEmaús, que repete um parâmetro muitocomum nos Evangelhos – o Cristoaparecendo suavemente, deixando-sedescobrir aos poucos. E, na sequênciadessa história, também em são Lucas, háuma aparição que parece ser anterior àsoutras. Jesus se mostra no meio dosdiscípulos e lhes diz: “A paz estejaconvosco.” Segue o texto: “Perturbadose espantados, pensaram estar vendo umespírito. Mas ele lhes disse: ‘Por queestais perturbados, e por que essasdúvidas nos vossos corações? Vedeminhas mãos e meus pés, sou eu mesmo,

apalpai e vede.’ … Mas vacilando elesainda, transportados de alegria, Jesusperguntou: ‘Tendes aqui alguma coisapara comer?’ Então ofereceram-lhe umpedaço de peixe assado. Ele tomou ecomeu à vista deles.”

A simplicidade do texto malesconde, aqui, a complexidadeteológica. É assim que se comportam oque a Igreja chama de “corposgloriosos”, aqueles que já estão além damorte? Ou o exemplo só se aplica aoCristo? Entre os itens do Credo está oda “ressurreição da carne”. São Paulofoi o primeiro a teorizar sobre o assunto,na primeira Epístola aos Coríntios:

“Semeado na corrupção, o corporessuscita incorruptível; semeado no

Nemtodos

desprezo, ressuscita glorioso; semeadona fraqueza, ressuscita vigoroso;semeado animal, ressuscita corpoespiritual.

“Se há um corpo animal, também háum espiritual. … O primeiro homem,tirado da terra, é terreno; o segundo veiodo céu. … Assim como reproduzimosem nós as feições do homem terreno,precisamos reproduzir as feições dohomem celestial. O que afirmo, irmãos,é que nem a carne nem o sangue podemparticipar do Reino de Deus.”

E vem a grandiosa conclusão:“Eis que vos revelo

um mistério: nem todosmorreremos, mas todosseremos transformados,

morreremos,mastodosseremostransformados,nummomento,numabrir efechardeolhos,ao som

num momento, num abrire fechar de olhos, ao somda última trombeta. Osmortos ressuscitarãoincorruptíveis, e nósseremos transformados. Énecessário que este corpocorruptível se revista daincorruptibilidade, e queeste corpo mortal serevista da imortalidade.

“… quando estecorpo mortal estiverrevestido daimortalidade, então secumprirá a palavra daEscritura: … ‘Ó morte,onde está a tua vitória?

daúltimatrombeta.

Onde está, ó morte, o teuaguilhão?’”

37. Pentecostes

O Cristo ressuscitado sobe aos céus,como narram em poucas linhas sãoMarcos e são Lucas (nos Atos dosApóstolos, a cena é ligeiramente maior).A primeira comunidade cristã encontra-se em Jerusalém, ainda atordoada comtudo o que aconteceu. E vem então afesta de Pentecostes – no judaísmo, agrande festa das colheitas, comemoradacinquenta dias depois da Páscoa.

Os discípulos estavam reunidos noCenáculo – uma sala grande onde sefechavam para fazer suas orações. Conta

o Livro dos Atos: “De repente, veio docéu um ruído, como se soprasse umvento impetuoso, e encheu toda a casa.Apareceram então como que línguas defogo, que se repartiram e pousaramsobre cada um deles. Ficaram todoscheios do Espírito Santo e começaram afalar em outras línguas, conforme oEspírito Santo lhes concedia quefalassem.” É o “dom das línguas”, muitomencionado, hoje, nas comunidadescarismáticas. Estando Jerusalém repletade peregrinos, vindos dos mais diversospaíses, cada um deles ouve os apóstolosfalarem na língua que lhes é familiar.Espanto; uns dizem: “Eles devem estarbêbados.” É então que são Pedro toma apalavra e, num eloquentíssimo discurso,

sintetiza os fatos extraordináriosocorridos a partir da condenação emorte de Jesus. Mal reconhecemos,nesse discurso, o Pedro impetuoso erude das narrativas evangélicas.

Assim o Espírito Santo – e com eleo mistério da Trindade – faz a suaentrada plenária na história docristianismo.

É um mistério que vinha sendoesboçado desde o início do quechamamos de Novo Testamento. Estánas palavras do anjo à Virgem Maria:“O Espírito Santo descerá sobre ti, e aforça do Altíssimo te envolverá com asua sombra.” Está na narrativa dobatismo de Jesus feita por são Mateus:“Depois que Jesus foi batizado, saiu

logo da água. Eis que os céus se abrirame desceu sobre ele, em forma de pomba,o Espírito de Deus. E do céu baixou umavoz que dizia: ‘Eis o meu filho muitoamado, em quem ponho a minhacomplacência.’” (A partir daí, tomacorpo aquela representação tradicionalda Trindade, com um Deus Pai de barbabranca e Jesus Cristo quase semprecrucificado.)

Mas esses sinais ficam escondidos(e até obscuros) nos inícios doEvangelho. Mais claro e mais forte é omodo como o Cristo se coloca sempreem relação ao Pai. Esta é quase que acostura íntima dos Evangelhos. Comonas Bem-Aventuranças: “Nem todoaquele que diz ‘Senhor, Senhor’ entrará

no Reino dos Céus, mas sim aquele quefaz a vontade de meu Pai que está nocéu.” Ou quando ele manda osdiscípulos em missão, advertindo-os detodas as dificuldades que encontrariam:“Quem der testemunho de mim diantedos homens, também eu dareitestemunho dele diante do meu Pai queestá nos céus. Aquele, porém, que menegar diante dos homens, também eu onegarei diante de meu Pai.” E a frasedefinitiva: “… ninguém conhece o Filho,senão o Pai, e ninguém conhece o Pai,senão o Filho e aquele a quem o Filhoquiser revelá-lo.”

Nos últimos momentos da vida deCristo, essa relação se torna umasúplica angustiada. Mas, antes de chegar

àquelas frases terríveis – “Meu Deus,meu Deus, por que me abandonaste?” –,o Cristo tinha consolado os discípulosintroduzindo na vida divina o seuterceiro elemento. É a Quinta-FeiraSanta, véspera da Paixão, Jesus estáreunido com os amigos para a sua últimaceia – a ceia da Páscoa. O ambiente é detristeza, porque Jesus acabou decomunicar-lhes que está voltando para oPai. “Porque vos falei assim, a tristezaencheu o vosso coração. Entretanto, euvos digo: convém a vós que eu vá!Porque se eu não for, o Paráclito nãovirá a vós [Jesus usa uma palavra quesignifica ‘advogado’, ‘consolador’];mas se eu for, eu vo-lo enviarei. Equando ele vier, convencerá o mundo a

respeito do pecado, da justiça e dojuízo.” E logo adiante: “Quando vier oParáclito, o Espírito da verdade,ensinar-vos-á toda a verdade.” E numoutro trecho de são João: “Se me amais,guardareis os meus mandamentos. E eurogarei ao Pai, e ele vos dará um outroParáclito, para que fique eternamenteconvosco. … Ele vos ensinará todas ascoisas, e vos recordará tudo o que vostenho dito.”

Se os discípulos tinham algumadúvida sobre o significado de Paráclito,ela se dissipa na grande festa dePentecostes, de onde eles saemimpregnados de uma energia que mudaráo mundo.

O Espírito Santo está no pórtico de

ATrindadecolocaumdesafioà razãohumana.

toda oração cristã: “Em nome do Pai, doFilho e do Espírito Santo.” Ele é umapresença avassaladora na vida de muitossantos. Mas se não se pode imaginar avida cristã sem ele, também é a partirdessa realidade que os teólogosencontraram caminhos esplêndidos parafalar da própria vida divina.

A Trindade, claro,coloca um desafio à razãohumana. Nós dizemos:“Um Deus em trêspessoas.” O que querdizer isso? Mesmofiguras extraordináriascomo um santo Agostinhoquebraram a cabeçatentando penetrar esse

O quequerdizerisso?MesmosantoAgostinhoquebrouacabeçatentandopenetraresse

mistério. De santoAgostinho se conta atéuma história famosa(lenda? verdade?): queele estava na beira dapraia, raciocinando sobrea Trindade, quando viuum menino que, com umpequeno balde, jogavaágua do mar num buraco.Ele para e pergunta àcriança o que ela estavafazendo. “Estou passandoo mar para este buraco”,ela responde. “Você nãovê que isso éimpossível?”, diz o santo.“Pois é”, vem a resposta,

mistério.“é o mesmo que quererbotar a Trindade dentroda sua cabeça” – e acriança desaparece.

Não devia ser tão difícil; e nem é,dizem os santos, a menos que vocêesteja trabalhando no plano dasatisfação intelectual. Pela via do amoré diferente – diria uma Elizabeth de LaTrinité, santinha francesa do começo doséculo XX. Pois se faz parte darealidade divina, não somos nóschamados a participar,progressivamente, dessa realidade?

Há interpretações modernasluminosas sobre a Trindade – como a dopadre Jean-Noël Bezançon, que passo acitar generosamente, como fiz com o

Deusnão ésolitário.Deusquis acriaçãoparaque ohomemsurgisse.Deusquis o

padre Varillon.Ele escreve (em Dieu

n’est pas solitaire): “ACriação, o mundo, reflexode Deus sem ser Deus, jápodia nos ter sugeridoque Deus não estáfechado em si mesmo, queele é capaz de alteridade,que no seu próprio ser, enão somente na sua obra,ele não é senão amor erelação. A Criação jápoderia nos ter feitodiscernir a Trindade; odeslumbramento diante daCriação, dessagenerosidade de Deus,

homemparaestabelecerumaaliançacomele.

que suscita diante dele umser diferente dele parapoder entrar em relaçãocom ele, já poderia noster feito adivinhar queDeus não é solitário.Deus quis a criação paraque o homem surgisse.Deus quis o homem paraestabelecer uma aliançacom ele. E essa aliança

nos põe a caminho da revelação de umDeus que é, ele mesmo, relação.”

Há uma linha tradicional de teologiaque tende a identificar Deus com o Serabsoluto. É uma linha que parte dagrande revelação de Moisés, quandoencontra a sarça ardente e ouve as

palavras “Eu sou Aquele que É” (ou “Eusou Aquele que Sou”).

Que Deus é o Ser absoluto, nenhumcristão poderá negar. Mas, diz o padreBezançon, a própria realidade do Cristonos transporta da filosofia para a vida.Com o Cristo, ficamos sabendo queDeus é relação.

“Quando, no século IV e no séculoV, os Padres da Igreja, tanto no Orientecomo no Ocidente, começaram a falar depessoas para designar o Pai, o Filho e oEspírito Santo, não é que eles tivessemem mente uma noção clara de Pessoa.Mas eles queriam assinalar que setratava de três ‘alguma coisa’. Comodizia Gregório Nazianzeno, ‘há umoutro, e um outro’. E santo Agostinho,

enquanto dedicava volumes e volumes àmeditação do mistério trinitário,confessava modestamente: ‘Já que o Painão é o Filho, nem o Filho o Pai, já queo Espírito Santo não é nem o Pai nem oFilho, eles são três, obviamente. Mas senós perguntamos: três o quê?, a palavrahumana é evidentemente insuficiente.’”

A isso os místicos respondem com aexperiência concreta. São Serafim deSarov, por exemplo, em seus famososDiálogos com Motovilov, fala doEspírito Santo e, de repente, aparece aoseu interlocutor envolto numa névoafulgurante.

Sem ser um místico, o padreBezançon segue o que está no textoevangélico: “O que aprendemos com

Jesus é que ser Deus, para o Pai, o Filhoe o Espírito Santo, é ser ‘para’, écomunicar-se. Como ensinava MauriceZundel, ‘nós sabemos que em Deus sóexiste um modo de existir, que é se dar.A vida de Deus vai na direção de umOutro. A vida divina aparece, assim,toda ela concentrada, expressa, nessedom mútuo do Pai ao Filho, e do Filhoao Pai, na unidade do Espírito Santo’.

“Para explicitar o engajamento deDeus conosco, a Bíblia desdobra todasas imagens das relações familiares, asrelações que nos fazem existir. Deus éum pai para Israel e para o seu rei. Écomo uma mãe cujas entranhas secomovem diante da miséria do filho.Deus é um esposo que não desanima

com as infidelidades da Suacompanheira. A grande revelação deJesus foi manifestar que o que Deus éassim para nós, relação e dom, Ele éinicialmente em si mesmo, desdesempre. Sua relação conosco deixaentrever o movimento das relações entreo Pai, o Filho e o Espírito Santo,movimento de que nós somosconvidados a participar.”

E finaliza o padre Bezançon: “Se,para o Pai, o Filho e o Espírito Santo,ser alguém não é dobrar-se sobre simesmo, crispando-se na sua identidade,mas é sair de si na direção de um outro,para que ele exista, descobrimos entãoque a pessoa verdadeira não é oindivíduo preocupado somente com ele

mesmo. Ela é relação e vocação para acomunhão. E nós podemos assimentrever aquilo para o qual fomos feitos,nós que fomos criados à imagem esemelhança de Deus.”

Referênciasbibliográficas

Bezançon, Jean-Noël. Dieu n’est passolitaire. Paris, Desclée deBrouwer, 1999.

Bíblia sagrada. Tradução portuguesa daversão francesa dos originais grego,hebraico e aramaico, traduzidospelos monges beneditinos deMaredsous (Bélgica). São Paulo,Editora Ave-Maria, 179ª ed., 2008.

Clément, Olivier. The Roots ofChristian Mysticism. Londres, NewCity, 1993.

Eliade, Mircea. Le sacré et le profane.Col. Folio Essais, Paris, Gallimard,1965.

Griffiths, Dom Bede. Return to theCenter. Templegate, EUA, 1982.

Varillon, François. Joie de croire, joiede vivre. Paris, Bayard, 2000.

Sobre o autor

LUIZ PAULO HORTA é jornalista eescritor. Ocupa a cadeira n.23 daAcademia Brasileira de Letras desde2008, cujo primeiro ocupante foiMachado de Assis, e é membro daAcademia Brasileira de Música. Um dosmaiores especialistas em religião daimprensa brasileira, preside o CentroDom Vital, núcleo de pensamentocatólico, e já ministrou cursos sobre aBíblia na PUC-Rio. É crítico de músicaclássica do jornal O Globo, função queocupou por vinte anos também no Jornaldo Brasil. Publicou pela Zahar diversos

livros, entre os quais, Música clássicaem CD: Guia para uma discotecabásica (1997) e A música das esferas:Crônica dos anos 90 (1999), além deter colaborado na edição do DicionárioZahar de música (1985), do Guia doouvinte de música clássica (1988) e doDicionário Grove de música (1994).

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Revisão: Eduardo Monteiro, Eduardo FariasCapa: Victor BurtonImagem da capa: A fuga para o Egito, deGiotto. Capella degli Scrovegni, Pádua.

Edição digital: novembro 2011

ISBN: 978-85-378-0797-2

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