Post on 10-Jul-2020
ELISABETH LEONE GANDINI ROMERO
A COMUNICAÇÃO TÁTIL
EM EXPOSIÇÕES DE ARTES PLÁSTICAS
Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica
PUC-SP
São Paulo – 2003
ELISABETH LEONE GANDINI ROMERO
A COMUNICAÇÃO TÁTIL
EM EXPOSIÇÕES DE ARTES PLÁSTICAS
Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau
de Mestre em Comunicação e Semiótica, Área de Concentração Signo
e Significação nas Mídias, à Comissão Julgadora da Universidade
Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Norval BaitelloJunior.
PUC-SP
São Paulo - 2003
BANCA EXAMINADORA
DEDICATÓRIA
Ao “Seu Luiz” (Luiz Sacilotto, in memoriam) como eu costumava chamá-lo,
por sua ampla, amorosa e generosa visão e
a todos que enxergam o mundo com as mãos e as pontas dos dedos.
AGRADECIMENTOS
A Norval Baitello, pela sabedoria e paciência com as quais soube me conduzir nesta
pesquisa.
Aos professores do Programa de Comunicação e Semiótica: Ana Claudia Mei Alves de
Oliveira, Irene Machado, Helena Katz e Christine Greiner pelos incentivos e contribuições.
À família de Luiz Sacilotto: Helena, sua esposa, e seus filhos Oscar, Valter e Amadeu.
À Carol Garcia pelas sugestões, correções e presença amiga.
A todos os colegas do Programa de Comunicação e Semiótica, que do começo ao fim
incentivaram-me e contribuíram de diversas maneiras, como Maria Regina Ceravolo,
Zozilena de Fátima Fróz Costa e tantos outros.
À Márcia Molina Fonseca, coordenadora de Espaço de Artes UNICID e à Universidade
Cidade de São Paulo, pela oportunidade e a credibilidade que demonstraram na ocasião da
Exposição Obra Gravada Completa de Luiz Saciotto.
Ao Centro de Apoio Acadêmico ao Deficiente (CAAD-UNICID)
À Amanda Tojal, Alfonso Ballestero e à professora de orientação e mobilidade Cecília Lara
de Toledo.
A Ademar e amigos da Laserprint.
À Fundação Dorina Nowill pelo apoio recebido.
Aos profissionais do Laramara: a pedagoga especializada em deficientes visuais Maria da
Graça Corsi Monteiro, aos professores Paulo Pitombo e Álvaro Picanço.
Aos amigos Maysa Aparecida Azambuja Vedovato, Paulo Eduardo Cezar de Almeida e
Alice Aparecida Pereira que perderam a visão recentemente e me ensinam a ver o mundo
de outra forma.
Ao Sydney Eiji Hirayama, professor do curso de Introdução à Informática para deficientes
visuais.
À minha mãe, Filomena Leone pela oportunidade e incentivo aos estudos.
A meu marido pela paciência e compreensão e aos meus filhos, Marcello, Daniel e Beth,
por todo apoio e ajuda que me deram e pelo entusiasmo com que acompanharam o
desenvolvimento e elaboração da presente pesquisa.
RESUMO
Em geral, os deficientes visuais não são contemplados em mostras de artes plásticas,
pois na maioria das vezes é proibido tocar, suprimindo assim o meio fundamental para eles,
o com tato. Por isso, estudamos o tema da comunicação tátil em espaços que promovem
exposições de artes plásticas.
Este trabalho tem como objeto de estudo uma exposição de arte adequada para os
deficientes visuais, sejam eles totais ou parciais. A referida mostra foi realizada em outubro
de 2000, com obras de um só artista plástico, no caso Luiz Sacilotto (1924-2003). A fim de
tornar possível tal experimento, tudo o que foi exposto foi traduzido, transposto para outros
meios, ou seja, buscou-se tornar possível uma leitura “com a ponta dos dedos”, iniciando
um pensamento semiótico sobre a comunicação tátil. Pensamento este que percorre um
caminho invertido, pois é da realização para a reflexão.
Constata-se neste trabalho que, na cidade de São Paulo, alguns de seus principais
museus ainda não estão preparados para acolher tal público. Por outro lado, há projetos que
tem tido continuidade, promovendo exposições adequadas para os deficientes visuais, tanto
no Brasil como em alguns outros países aqui citados, como Espanha e França.
Este estudo tem como base a Semiótica da Cultura, que entende ser a comunicação
uma área transdisciplinar e multidisciplinar, que não vive sem outras abordagens. Assim
sendo, há nos textos integrantes deste corpus um diálogo que se articula com as idéias do
sistematizador desta disciplina, Ivan Bystrina, e autores de outras áreas, como o médico e
antropólogo Ashley Montagu, o filósofo contemporâneo Dietmar Kamper, o etólogo Boris
Cyrulnik, os psicólogos Maria Lúcia Amiralian e James Hillman, o filósofo e fotógrafo
cego Evgen Bavcar e o comunicólogo Norval Baitello Junior.
A análise e o estudo aprofundado, aliando o experimento à teoria, permite-nos
identificar que, assim como há culturas diferentes, há outras formas de perceber o mundo.
Conclui-se que os deficientes visuais podem, à sua maneira, construir um mundo completo
e suficiente, sem sentimento de incapacidade, desde que tenham a oportunidade de ter
acesso, via comunicação tátil, ao acervo de sua cultura, já que a ela também pertencem.
Palavras-chave: comunicação tátil- deficiente visual- semiótica da cultura –o tato.
ABSTRACT
SUMÁRIO
Introdução .........................................................................................01
Capítulo I – É proibido tocar O deficiente na contemporaneidade e a deficiência contemporânea.
1. Deficientes ou diferentes ...................................................................................
2. Comunicação e seus sentidos ..............................................................................
3. Bifurcação de caminhos ...........................................................................................
4. Comunicação tátil: o tato como canal de comunicação..................................................
5. Entre o toque esquecido e a visão saturada................
Capítulo II - É permitido tocar O deficiente visual em exposições de artes plásticas
1. Ausência de visão (o público ausente)...........................................................................
2. São Paulo abre os olhos...................................................................................................
3. O Público Especial e o Toque Revelador..............................................................................
4. Museus mais vistos e não vistos (uma olhada nos museus de São Paulo).................
5. Ampliando a visão.................................................................................................................
6. Lampejos de visão....................................................................................................
7. Os cegos em museus e exposições internacionais. Um museu para ver e tocar..............
Capítulo III – Uma Aventura com Sacilotto Entendendo como tudo começou
1. Os primeiros toques ou retoques.........................................................
2. A visão de Sacilotto.................................................................................
3. Da pura visualidade à pura tatilidade......................................................
4. O prazer de esperar (o desejo).......................................................
5. O prazer de experimentar...................................................................
6. O prazer de dizê-lo.............................................................................
Considerações finais: uma luz no início do túnel
Anexos
Bibliografia
Créditos das imagens
Introdução
O presente estudo, A Comunicação tátil em exposições de artes plásticas, é uma
articulação entre o trabalho de curadoria em um espaço de arte e a atividade acadêmica. O
caminho percorrido aqui é o inverso. A autora partiu primeiro da prática, para só depois ir
buscar a instrumentalização teórica.
Em junho de 2000, ficou combinado que iríamos expor, no Espaço de Artes Unicid
(Universidade Cidade de São Paulo), local que exercemos a função de curadora, a Obra
Gravada Completa do artista plástico Luiz Sacilotto, “viga mestra da arte concreta no
Brasil”.1 Originalmente, seriam expostas trinta e cinco gravuras. Com o intuito de
iniciarmos com aquela mostra um trabalho inclusivo, ou seja, adequá-la para o público
especial, objetivando primordialmente o deficiente visual, elaboramos um projeto de
ampliação tanto das obras que seriam expostas quanto dos meios que deveriam ser
utilizados para tornar viável tal empreitada. Em função disso, resultou o presente trabalho.
A primeira pessoa a tomar conhecimento deste projeto foi o próprio artista, pois os
riscos que se deveria correr interessavam tanto ao autor quanto à curadoria. Seria a primeira
vez que uma exposição, de autor ainda vivo, iria ser adequada para viabilizar uma
comunicação tátil.Tivemos vários encontros, porém, logo no primeiro, respondeu o próprio
Sacilotto respondeu às questões que deram início não só àquela exposição, mas que
serviram também de estímulo para esta pesquisa. Ele expôs sua opinião da seguinte
maneira: “As réplicas de minhas esculturas e os relevos táteis não ferem minha obra,
muito pelo contrário. Vão acrescentar que outros, que até então não teriam a oportunidade
de conhecer meu trabalho o façam agora. Não há impedimento nenhum. Não há duas
pessoas que enxerguem a mesma coisa da mesma maneira, mesmo entre os que tem o
sentido da visão em estado saudável. Elisabeth, faça o que achar conveniente. Para mim
vale tudo, não no sentido pejorativo, mas no esforço da comunicação.”2
Inscreve-se, portanto, nas áreas da Comunicação, da Comunicação Corporal ou
Comunicação Não-Visual, de um pensamento semiótico na comunicação tátil, e,
especificamente na área da Semiótica da Cultura.
Dirige-se esta pesquisa a um público minoritário, que não tem o sentido da visão ou o
possui diminuído, construindo seu mundo sobre uma base tátil que dialoga com os outros
sentidos, não deixando por isso de perceber o mundo à sua maneira, sendo apenas
diferente.Estas diferenças são apontadas no capítulo inicial desta pesquisa, intitulado É
proibido tocar. Com um apanhado teórico, há uma localização mais específica sobre a
difícil tarefa de ter de transitar entre dois mundos: o mundo tátil, concreto, que os
deficientes visuais conhecem através do par tato-audição e o mundo visual, transmitido
pelos que enxergam.
1 Waldemar Cordeiro apud SACRAMENTO, Enock. Sacilotto, São Paulo, Orbitall, 2001, p.53.
2 Entrevista realizada 02/08/2000.
Por que há tanta resistência, por parte dos museus e espaços que promovem exposições
de artes plásticas, para que haja uma adequação, a fim de poder receber o deficiente visual?
Seriam os altos custos ou o cuidado com a preservação das obras de arte que impedem tal
postura? Se os deficientes visuais só podem participar do mundo “tocando”, estariam
condenados a nunca poder “sentir” a expressão de um rosto, decifrar um gesto ou uma
forma, eternizados no mármore ou em qualquer outro material palpável ? Busca-se
esclarecer as questões acima elaboradas no segundo capítulo, intitulado É permitido tocar.
Nele, há um espaço para descrever iniciativas inclusivas, exposições e museus adequados
para o deficiente visual, tanto na cidade de São Paulo quanto em alguns lugares fora do
Brasil, situando o cenário em que se insere o objeto desta pesquisa.
Nosso estudo de caso encontra-se no terceiro e último capítulo, intitulado Uma
Aventura com Sacilotto, tendo sido a palavra aventura empregada por Sacilotto em nosso
primeiro encontro. Na ocasião, explicamos que seria necessário providenciarmos réplicas
de suas esculturas, assim como relevos táteis para a “leitura” de suas gravuras. Expusemos
também que iríamos organizar um atelier com atividades lúdicas, onde cada um poderia
fazer suas próprias construções. Após estas e tantas outras explicações assim pronunciou-se
Sacilotto: “Isto vai ser uma aventura”.
De fato, foi uma grande aventura! Sobre as folhas do último capítulo, inscreve-se não
só a mera descrição das pesquisas de materiais e adequações necessárias para a realização
de tal exposição e dos passos dados anteriormente, que sem dúvida, são interessantes.
Certamente, o terceiro capítulo dedica-se à investigação, da possibilidade de deficientes
visuais serem recebidos num espaço de arte e terem acesso à cultura via comunicação tátil.
Consiste nas experimentações práticas, no compartilhar, nas trocas possíveis que puderam
ser “sentidas”, sem deixar de lado uma reflexão teórica.
Nas conclusões evidencia-se, portanto, a oportunidade para todos os que pertencem à
mesma cultura de vivenciar o que vem a ser a comunicação, ou seja, como sendo “um
espaço probabilístico de sentidos”.3
Assim como a mostra pode realizar-se graças a pessoas que tiveram o sentido de visão
bastante amplificado, a começar por Sacilotto, aceitando e compreendendo mais do que
nunca que há sempre outros pontos de vista, a escolha de uma linha de pensamento para
fundamentar tal trabalho não poderia deixar de ser coerente e partilhar da mesma abertura.
A grade teórica que elegemos para a produção desta dissertação é aquela que erige os
pilares fundadores da Semiótica da Cultura. Esta vertente propõe uma visão ampla e aberta
de conceitos como cultura e comunicação, aceitando a contribuição de diferentes áreas do
conhecimento humano. Ela não prevê em comunicação conhecimentos estanques, mas um
diálogo interdisciplinar, sem o qual não poderíamos fundamentar esta pesquisa. Assim, há
etólogos, arqueólogos, psicólogos, filósofos, sociólogos, neurologistas, entre outros
profissionais, cuja contribuição é levada em conta em nosso trabalho.
3 Esta definição é empregada por Norval Baitello Jr. em suas aulas de Semiótica da Cultura, PUC-SP.
A Semiótica da Cultura tem sua origem nos países da antiga União Soviética.O
semioticista tcheco Ivan Bystrina é um sistematizador desta disciplina. Segundo este autor,
os textos nascem como complexos significativos, com sentido, compostos de signos. Mas
isto não basta. Existe ainda o universo do código, que é um sistema de regras, de
vinculações entre signos. Afirma aquele autor que para sua sobrevivência física o homem
depende de códigos primários (são os biológicos) e códigos secundários (os da linguagem),
constituindo esta a primeira realidade. Nesta esfera são produzidos os textos instrumentais e
os textos racionais. Entretanto, somente a partir dos códigos terciários é que nasce a cultura
e surgem os textos culturais. Estes são criados para sobrevivência psíquica do homem,
chamada por Bystrina de “segunda realidade” e batizada de “segunda existência” por
Morin, ou ainda de “segunda natureza” por Baitello.
A escola da semiótica da cultura entende por “signo” um objeto material que é
produzido por um produtor de signos, que seja recebido por um receptor, e interpretado por
esse receptor. A mesma corrente teórica, como nos ensina seu fundador, entende que “o
signo tem que ser capaz de ser percebido pelos sentidos, tem que ser produzido por seres
vivos e recebido e interpretado por receptores igualmente vivos. Cada objeto conhecido
por nós contém em si uma informação latente, que nós percebemos pelos nossos sentidos.”
(Bystrina, 1995:4).
Este presente estudo pensa nas pessoas que, não tendo o sentido da visão para
perceber o mundo, necessitam de uma mediação para entrar em contato com os objetos,
quando não podem tocá-los diretamente. Neste caso, os objetos são artísticos e a
comunicação dá-se via tátil.
Destafeita, o instrumental teórico-metodológico que baliza nossas reflexões conta não
só com Ivan Bystrina e seus colaboradores, mas como dissemos no início, esta vertente
semiótica enriquece-se com outros pesquisadores. Para aprofundarmos nossos
conhecimentos sobre o sentido do tato, contamos com a contribuição dada pelo
antropólogo, médico e cientista social, o autor Ashley Montagu, não só com a leitura de sua
Introdução à Antropologia como também com o estudo da obra Tocar. Neste último livro,
é ele quem define “tocar” como ação ou um ato de sentir alguma coisa com a mão, sendo
ele também que sinaliza estudarmos o sentido do tato como o sentido das percepções, cujo
termo operacional é “sentir”: “Embora o tato não seja em si uma emoção, seus elementos
sensoriais induzem alterações neuronais, glandulares, musculares e mentais que,
combinadas, denominamos emoção.” (Montagu, 1986:131).
Outro autor que nos traz contribuições preciosas para este trabalho é Boris Cyrulnik,
responsável por um grupo de pesquisa em etologia clínica, em um hospital em Toulon.
Utilizamos apenas dois de seus livros: Os alimentos do afeto e L’Ensorcellement du
Monde. No primeiro, afirma ele que as emoções mais cativantes são provocadas pelas
representações verbais, teatrais ou artísticas (...) “no homem, o sentido infiltra os sentidos a
ponto de utilizar a matéria para carregá-la de história (...) o homem, a partir dessa
materialidade sensorial, inventa signos referentes a mundos ausentes.” (Cyrulnik, 1993 :
25-27).
No outro livro, dando continuidade a suas pesquisas, analisa como o ser humano é
capaz de escapar de sua condição de animal, visto que um corpo vivo jamais é passivo em
um meio estruturado.“Se pensarmos na condição humana, como um corpo capaz de
produzir um mundo virtual e o habitar, experimentando-o realmente, o corpo, o entorno e
o artifício serão concebidos como um todo funcional: um indivíduo poroso, penetrado por
um equipamento sensorial, que estrutura o artifício”. (Cyrulnik, 1997: 13)
É explícito que tratamos da perda ou limitação de um dos sentidos, o da visão, e
refletimos sobre o tato e a comunicação tátil. É impensável deixarmos de fazer uma
reflexão sobre o corpo como um todo de sentidos. Os textos de B. Cyrulnik entrelaçam-se
com a teoria de outro autor, cuja leitura foi basilar e apresenta uma sociologia do corpo.
Trata-se do filósofo alemão, Dietmar Kamper, falecido recentemente, que esteve diversas
vezes no Brasil. Seus pensamentos trazem enormes aportes para o estudo dos sentidos, “o
sentido dos sentidos”, para a semiótica do corpo. Discute questões contemporâneas de
nossa cultura, como o fato de vivermos no “império da visão”, que ocasiona a “silenciosa
transformação do corpo em uma imagem do corpo”. É ele que nos alerta que, dando
prioridade ao sentido da visão e transformando tudo em imagens, “o corpo e suas relações
próximas são pouco a pouco destruídos”.4
Entre outros textos consultados de D. Kamper, em seu livro L’Art de l’Impossible
encontramos colocações sobre a máxima do don’t touch, adotada pela civilização européia.
Nesta obra, segue desenvolvendo seu pensamento filosófico, dá-nos suporte teórico para
tratarmos do tato e da visão, detecta e alerta que desde que começamos a perceber o mundo
só com os olhos, “a perda de nosso corpo nos escapa, acontece uma coisa inusitada, a
superfície triunfa sobre toda a percepção”. (Kamper, 1998:50)
Para conhecer melhor nosso público alvo, foi de suma importância consultar o livro
Compreendendo o Cego - uma visão psicanalítica da cegueira por meio de desenhos-
estórias, da psicóloga brasileira Maria Lúcia Toledo Amiralian. Este estudo analisa
globalmente como são as imagens mentais dos cegos, de que modo estabelecem eles suas
relações objetais e as diferenças entre a cegueira congênita e a adquirida. Conclui ela que
“a cegueira pode ser tanto um entrave quanto uma brecha no caminho do desenvolvimento
do ser humano: para uns é um impedimento para a aquisição de certas funções do
pensamento, de formações simbólicas, enquanto para outros, se propõe como um elemento
favorecedor do desenvolvimento, propiciando o pensamento lógico-abstrato, o raciocínio
divergente, valiosas simbolizações e ricas introspecções”. (Amiralian, 1997:296)
A leitura da obra Le voyeur absolu ilumina esta dissertação, contribuindo com uma
análise de quem vivencia o problema. Seu autor é o franco-esloveno Evgen Bavcar,
filósofo, cineasta e fotógrafo, cego desde os onze anos, tendo estado em nosso país por duas
vezes. Nesta obra fala de seus problemas, desafia sua condição física, expõe suas cicatrizes,
pois nas páginas que escreve relata as dificuldades que os cegos enfrentam para usufruir do
objeto artístico.
4 O Corpo Vivo, O Corpo Morto, Kamper, Dietmar
<http://sesc.uol.com.br/sesc/hotsites/imagemeviolencia/conferencias.htm.site consultado18/08/2002
O pensamento do psicólogo e mitólogo James Hillman, através do livro Cidade &
Alma se faz presente, à medida que buscamos um aprofundamento. É de Hillman que, mais
diretamente, nos chegam reflexões sobre o corpo, sobre aquilo que ele percebe como sendo
psique. Contamos também com a contribuição do pensamento do filósofo independente
Michel Serres, principalmente na obra Os cinco sentidos.
Outro estudioso que agrega seus conhecimentos científicos é o médico neurologista
Oliver Sacks, pois nos casos relatados na obra Um Antropólogo em Marte: sete histórias
paradoxais, há preciosos depoimentos tanto de pacientes que perderam a visão quanto
daqueles que a recuperaram e tiveram que “aprender a ver”.
Para trilhar os caminhos dos sentidos na comunicação e pelo corpo, perpassa por todo
o trabalho o pensamento do teórico da comunicação e da mídia, Norval Baitello Junior. Não
apenas consultamos seu livro O animal que parou os relógios como os diversos artigos
publicados pelo Centro Interdisciplinar da Semiótica da Cultura e da Mídia e em outras
publicações científicas. Seus textos não só dialogam com todos os autores anteriormente
referidos, como dialogam igualmente com outros autores consultados, como Edgar Morin,
Vicente Romano, Harry Pross sendo componentes essenciais da bibliografia da presente
dissertação.
CAPÍTULO I
É proibido tocar
O deficiente na contemporaneidade e a deficiência contemporânea .
“Nós não devemos deixar que as incapacidades das pessoas nos impossibilitem de reconhecer
as suas habilidades”.
(Hallahan e Kauffman, 1994)
“A ciência desenraiza a linguagem depois de tê-la abalado, este acontecimento
transforma nossos corpos, o coletivo e o mundo. Começamos a ver, a ouvir um mundo por uma
carne prenhe de ciência e não mais de linguagem, nosso corpo sabe mais do que fala; falava
mais do que sabia. Ele sabe, esquece que sabe, assim como falava esquecendo que o fazia.
Carne, nos dois casos, transparente e obscura. Tão sábia, no caso daqueles que sabem pouco ou
mal, que falava pelos tímidos, inexperientes, mudos ou gagos. No mais profundo do subjetivo, do
coletivo e do carnal, a substituição ocorre, a ciência erradica a linguagem, o que explica nosso
tempo.
Essa queda bruta do verbo, essa perda ou essa morte permitiram que vislumbrássemos
fugidiamente o mundo e os outros, tal como provavelmente puderam ser vistos antes que a
linguagem se encarnasse em nós. Breve clarão entre dois reinos a iluminar os cinco sentidos”.
(Serres, 2001: 350)
1. Deficientes ou diferentes.
“A palavra deficiente, bem como a proliferação das expressões mais contemporâneas
que a substituem, testemunham os esforços feitos pela humanidade para dissimular a verdadeira
substância que estas palavras designam, isto é o corpo”.5
Estas palavras de Bavcar apontam os rumos da presente pesquisa, refletem que o
pensamento que a perpassa é o da cultura, o da comunicação, fundindo-se no corpo. Logo,
propomos mais do que uma definição para o que vem a ser um ser humano deficiente. Sugerimos
investigar suas competências e as possibilidades de comunicação com o mundo.
Com o passar dos séculos, a incapacidade de uma pessoa foi supervalorizada, sendo ela
considerada retardada ou idiota. O que entendemos por deficiente? Um ser incapaz?
Não há dúvidas que nas últimas décadas, em todos os países, inclusive no Brasil, há um
esforço para minimizar o preconceito e a segregação. Há leis que garantem educação, trabalho e
lazer, além de movimentos para inserção no mercado de trabalho, na equiparação de
oportunidades e de inclusão. Se formos ler todos os textos que existem tanto em nossa legislação
quanto em textos internacionais, fica-se surpreso com a quantidade de itens que abordam a
questão da deficiência, a proteção e o respeito.
“Às pessoas portadoras de deficiências, assiste o direito, inerente a qualquer ser humano,
se ser respeitado, sejam quais forem seus antecedentes, natureza e severidade de sua
deficiência. Elas têm os mesmos direitos que os outros indivíduos da mesma idade, fato que
implica desfrutar da vida decente, tão normal quanto possível”. 6
Artigo 3 da Declaração dos Direitos da Pessoas Portadoras de Deficiência.
Mas aquelas palavras parecem prisioneiras do papel. Pouco do que se escreve é colocado
em prática na vida real. Apesar das legislações, os deficientes, de uma maneira geral, são vistos
por seus aspectos que os limitam, como o orgânico e o funcional.
No caso da deficiência visual, a cegueira tende a ser incluída em uma esfera depreciativa,
como ao longo da história sempre o foi. Talvez haja uma tendência de estender a deficiência
5 Evgen Bavcar esteve no Brasil algumas vezes. Ele é franco-esloveno, Doutor em Filosofia de Estética pela
Universidade de Paris e Teórico da Arte. Cego desde onze anos devido a um acidente é filósofo, cineasta e
fotógrafo. Em 2001, participou de um ciclo de palestras sobre O Homem Máquina. O título da sua palestra foi: O
Corpo, espelho partido da história, uma reflexão sobre a condição do deficiente físico ao longo da cultura, e a
tragédia da Europa Central. l O Estado de São Paulo, 18/08/01, p.D3.
6 O texto na íntegra assim como outros textos e legislações internacionais podem ser encontrados no
site:http://www.saci.org.br
visual para outros ramos das potencialidades do homem, não aceitando que a inteligência não
seja afetada no caso daquele déficit. Sempre se projetou sobre o cego o estigma da incapacidade
em sua total amplitude e “as sequelas dessa tendência perduram até hoje”. É o que afirma João
Ganzarolli e continua em seu artigo dizendo que “por mais que as entidades encarregadas se
empenhem na formulação de medidas voltadas para auxiliar o cego na sua adaptação ao
mundo, esse processo muitas vezes não é acompanhado por uma conscientização, em grande
escala, das reais prioridades para uma pessoa portadora deste tipo de impedimento.”7
“Que espelho podemos tomar como arquétipo do deficiente?” Pergunta Bavcar. Ele nos
faz recordar que na história ocidental, Adão e Eva são deficientes da existência eterna, uma vez
que somos todos mortais. O autor faz alusões a um corpo que está fragmentado, nossa
deficiência contemporânea e as faz também no que diz respeito à deficiência física, concreta.
Para ele, o deficiente tem uma consciência do corpo um pouco mais aguda e um pouco mais
dolorosa, sem poder dizê-lo, devido a toda aparelhagem conceitual que impede esta mesma
consciência de dizer sua própria visão da história.
“Para olharmos estes mal nascidos esquecemo-nos ou fazemos de tudo para não
olharmos o corpo como espelho da história, tanto no passado quanto em nossa época,(... )para
não nos darmos conta da dimensão dissimulada do corpo nas visões atuais que o fragmentaram
e assim conseguiram desviar nossa atenção de sua persistência histórica, de sua unidade e de
seu saber. O corpo como espelho da história continua velado(...)”.8
Não é voz única a do filósofo franco-esloveno. Suas idéias dialogam com a reflexão do
psicólogo James Hillman. Em uma de suas palestras recomendou aos ouvintes imaginarem um
asilo, uma enfermaria, uma clínica de drogados etc. e a seguir sugeriu “ vamos levar esta ala
para o nosso próprio fundo .... vamos visualizar nossa própria retardada e defeituosa
encurvatura, as condições incuráveis e permanentes do fundo humano, que não podem ser
curadas, não podem ser suportadas. Aqui está nossa desordem crônica.” (Hillman, 1993 :29)
Se transpusermos esta questão para o nível pessoal, como sugere o ilustre psicólogo,
vemos que procuramos sempre ocultar o que há de obscuro em nós mesmos, “nossa sombra”,
“nossa ala dos fundos”. Empurramos para baixo do tapete tudo aquilo que não queremos
enxergar, nossas deficiências. Todavia, por mais que as ocultemos, elas permanecem consciente
ou inconscientemente, o corpo as percebe. O mesmo acontece com a cultura, que não lança seu
olhar para a “ala dos fundos”. Ao contrário, também não quer olhar naquela direção. Os filhos
mal nascidos dos espartanos eram rebentados contra os rochedos. E os nossos “mal-nascidos” e/
ou as vítimas do progresso tecnológico, o que fazemos com eles?
Hillman9 diz que as questões que daí emergem são três, ou seja, como olhar para esta ala,
como lidar com ela e o que tem ela a ver com cultura. Da mesma maneira que lidamos com
7 João Vicente Ganzarolli de Oliveira, PHD, professor do Departamento de História e Teoria da Arte da
Escola de Belas Artes da UFRJ,“Arte e Visualidade: A questão da Cegueira” , Ganzarolli, João. Disponível
em: <http://www.ibcnet.org.br/Paginas/cegueira/Cegueira-14.htm >acesso em 28/09/2002 8 ibidem
9 Essa questão é por ele apresentada em vários momentos de seu trabalho, mas podemos escontrar referências
diretas sobre isso no livro Cidade & Alma, 1993.
nossa “ala” a cultura lida com a dela. Uma das formas é a da assistência, que se dá tanto
externamente na sociedade, quanto internamente no modo como encaramos nossas deficiências
individuais. Entretanto, este convívio está longe de ser equilibrado, pois ele mesmo afirma que
com a expectativa de melhora, ou as administramos, as arranjamos ou as jogamos fora, indo em
direção dos “objetivos civilizados do conformismo”.
“A assistência falha ao não perceber que o crônico é uma forma diferente, servindo a
outros Deuses. Os cegos, os aleijados e os loucos têm medidas diferentes das condições
humanas não aflitas. Por esta razão podemos aprender com eles - o poeta cego, o artesão, o
aleijado, o profeta louco. Eles imaginam de maneira completamente diferente. Como disse
Bachelard, a imaginação trabalha através da deformação, mas a assistência trabalha por meio
de reformismo e conformismo. A desordem crônica é precisamente aquilo que não se encaixa no
humanismo progressista, uma prova precisa da sobrevivência do marginal e até mesmo de que o
ideal platônico não se aplica aqui. Daí a reincidência, o eterno retorno, da desordem crônica
em nós mesmos e na sociedade”. (Hillman, 1993:31)
Se tratarmos os deficientes como incapazes dando-lhes esta assistência que o autor fala,
continuamos a fracassar, pois não se trata de ajudar, melhorar ou salvar. Acima ele utilizou as
palavras “objetivos civilizados do conformismo” e nós poderíamos aqui pensar, por que o autor
não utilizou “objetivos culturais?” Porque este psicólogo cultural faz a seguinte distinção:
“A cultura acontece em lugares fechados, reservados mesmo, envolvendo a putrefactio
alquímica, ou decadência enquanto o corpo da fermentação. Geração e decadência acontecem
juntas; e não são sempre fáceis de distinguir. O que condiz com civilização são sistemas de
irrigação, monumentos, vitórias, perseverança histórica, riqueza e poder como uma força
coesiva que tem um objetivo comum. A civilização funciona: a cultura floresce. A civilização
olha para frente; a cultura olha para trás. A civilização é relato histórico; a cultura é um
empreendimento mítico”. (Hillman, 1993: 34)
Hoje, mais do que nunca, estamos envolvidos em um processo que nos faz olhar só para
frente, o progresso nos impulsiona, não temos tempo nem interesse de olharmos para trás, muito
menos olharmos para algo que se esconde. O olhar dirige-se a uma só direção. Cultura ou
civilização? Nossa deficiência contemporânea seria civilização sem cultura ?
Todas as formas de desordem crônica em nós mesmos e em nossas cidades são um ato
fundamental de cultura, afirma Hillman. Podemos então lidar com nossa “ala dos fundos” de
três maneiras. Primeiro, não tentar modificar uma condição, mas buscar transformar, não a
desordem, mas nossas normas de ordem. Segundo, pode-se estimular a cronicidade a mostrar-se
mais, a falar, a abrir suas asas. E em terceiro lugar, “O que tem a ver a desordem crônica em si e
a nossa forma de encará-la e de lidar com ela, com a cultura? Pergunta o autor.
O argumento que Hillman utiliza é que ao lidarmos com esta ala é que cresce a cultura,
que trata de mover-se da civilização para a cultura. Ele exemplifica isso falando que se pegarmos
nosso próprio asilo, cuidarmos dele, deixando emergir a compaixão por sua própria desordem
crônica, nosso comportamento muda, deixamos de pensar no futuro para pensarmos no que é
essencial sobre nossa natureza e caráter e sobre as pequenas coisas nas palavras, nos gestos, nas
atitudes que as limitações de nossa inescapável desordem necessita. Começamos a escutar
diferentemente, observar diferentemente, absorver mais sensivelmente. Culturas sobrevivem,
civilizações declinam e perecem.(ibidem:36)
Na cultura não há morte, pois ela “nasceu para matar a morte”.10
Ela surge para superar a
finitude humana e sua matéria prima é o imaginário. A cultura nasce para prover nossa
necessidade psíquica de sobrevivência e para “nós”, como diz Ivan Bystrina, sistematizador da
semiótica da cultura, esta é uma totalidade de textos. Esses, tanto podem ser as construções da
linguagem verbal como também danças, jogos, rituais, imagens, etc. (1995: 13) Isto explica o
parágrafo:
“Volto-me às artes, para compreender; ao ritual, para as comprovações; e às vidas de
homens e mulheres do passado para ver como eles fizeram. Preciso de algo mais que
comunidade e civilização, pois elas podem ser demais humanas, visíveis demais. Preciso da
ajuda das imagens das lendas, dos ídolos, dos altares, e das criaturas da natureza, para
carregar aquilo que é tão difícil de carregar pessoalmente e sozinho. A educação da
sensibilidade começa no“asilo”, a cultura começa na desordem crônica.”( Hillman,1993:35-
36).
A cultura nasce e expande-se em diversas direções, para o passado e para o futuro. A
cultura inventa, constrói, modifica, mas tem memória, que é sempre seletiva. Em qualquer
cultura, somos o que construímos. Este é um denominador comum. Culturas são diferentes, pois
apresentam soluções imaginativas diversas, como os deuses nas religiões existentes, etc. Muitas
vezes, houve e há conflitos gerados pela intolerância, pela não aceitação de crenças ou de
costumes culturais de um outro povo.
No caso dos deficientes visuais, eles também são diferentes. Podemos aplicar a mesma
tolerância que prevemos para as diferentes culturas. O primeiro pensamento é de aceitarmos
como são, ou seja, não tem o sentido da visão, percebem o mundo de outras maneiras, com os
outros sentidos. Aceitando isto, podemos pensar em conhecê-los melhor, escutá-los, sem impor
nossa visão de mundo. Finalmente, após encarar e lidar com a diferença, pode-se respeitar, no
sentido que Hillman oferece: “ respeitar é simplesmente olhar de novo, respectare, esse segundo
olhar com o olho do coração.”(ibidem:28)
1.2. Comunicação e seus sentidos.
Só podemos compreender o que é a comunicação se entendemos o que é cultura, pois são
esferas de um grande sistema. Em palestra proferida na Universidade de Brasília em 1999,
Norval Baitello, iniciava sua fala colocando ser a comunicação uma área bastante briguenta.
Assim o é por ter que abranger necessariamente outros campos do conhecimento humano
fundamental para o estudo da nossa matéria, a semiótica da cultura.
10
Este conceito é emprestado do semioticista Norval Baitello, pesquisador e teórico da comunicação.
“A comunicação é uma área transdisciplinar, que não vive sem outras abordagens
específicas, sem o conhecimento, sem a contribuição da medicina, da biologia, da psicologia, da
sociologia, da etologia e da matemática. Os primórdios da ciência da comunicação nasceram de
uma investigação matemática. As teorias clássicas da informação eram teorias matemáticas.
Montes de fórmulas calculavam o ruído, a homeostase, e funcionavam perfeitamente para o
telefone, para processos telefônicos e telegráficos. Mas, hoje, não dão conta da complexidade,
que são os fatores, todos imponderáveis, que ocorrem dentro de uma situação comunicativa.”11
Continua o pesquisador a nos fazer refletir que conceitos como emissor, mensagem,
canal, código, ruído etc. tem uso restrito. Não é que este esquema seja falso, mas comunicação
não é somente isto. Utilizando a mesma metáfora do autor citado, comunicação não é mais um
jogo de peteca, ou poderíamos pensar na imagem de um jogo de ping-pong...,vai e volta...
Baitello propõe que pensemos na comunicação como um espaço, “um espaço
probabilístico de sentidos”, no qual somos ao mesmo tempo emissor e receptor, mensagem,
linguagem, ruído, canal. Somos tudo. A temporalidade é múltipla...
“Ao mesmo tempo que estou aqui falando, eu estou recebendo milhares de estímulos ou
mensagens do espaço, do tempo, do clima, de vocês todos. E ao mesmo tempo que vocês estão
me ouvindo, vocês estão se ouvindo. E ao mesmo tempo que estou falando, eu estou me ouvindo
e eu estou me falando também.”12
(ibidem: )
Seria só o corpo biológico? Quando nossas mães “dão à luz”, adentramos ao mundo com
nosso aparato sensório e seus órgãos respectivos, que nos permitem a comunicação. Recebemos
e emitimos mensagens, mas este fluxo não é estanque, não se limita apenas aos códigos
biológicos. Adentramos e vamos participar de um universo cultural com nossos sentidos.
“A criança recém-nascida entra num mundo já estruturado por um mito e é nesta
ecologia humana embebida de cultura que ela vai tentar trocar e realizar suas promessas
biológicas, psicológicas e sociais”. (Cyrulnik, 1995: 66)
Certamente necessitamos do corpo biológico, onde ocorrem as trocas de substâncias e
informações, com seus códigos, como o genético. O professor Ivan Bystrina, nomeia estes
códigos de primários. Existem os códigos secundários que são os códigos da linguagem, que
geram as sociedades, formadas por vínculos entre os indivíduos. Isto se aplica também aos
animais, como numa colônia de formigas. Animais têm suas linguagens, mas não possuem
cultura.
Entretanto, afirma I. Bystrina, que os códigos secundários (a gramática das línguas
naturais) assim como os códigos primários, não são ainda cultura. Somente a partir dos códigos
terciários, ou culturais, é que surgem os textos da cultura. (Bystrina, 1995: 5)
Ainda para este mesmo autor, enquanto os dois primeiros códigos constituem uma
primeira realidade, o homem é o único ser capaz de inventar uma segunda realidade, um
11
Cisc 12
Ibidem.
fenômeno psíquico, como uma cura para o mal existencial, e é exatamente aí que nasce a cultura.
Tudo aquilo que a sociedade não oferece a solução, a cultura a cria a nível simbólico.
“A segunda realidade é, pois, nitidamente um fenômeno psíquico. Não se pode entrar em
comunicação com esse nível de realidade sem o suporte físico da produção de signos. Sem o
aparelho fonador, sem as mãos, não é possível criar segundas realidades. Mas temos que
considerar que todos os processos psíquicos são produzidos materialmente no corpo”. (ibidem
:14)
Os processos são produzidos no corpo que percebe o mundo através dos sentidos, os
cinco já conhecidos e o sexto, a propriocepção, o sentido de perceber o próprio corpo, descoberto
no final do século passado por Sherrington13
. O ser humano comunica-se desde feto, no útero
materno, até morrer. Isto seria inaceitável até pouco tempo, ou seja, reconhecer as atividades
cognitivas do feto e do recém-nascido.
Ainda sobre este tema temos que: Em artigo publicado, Sylvia Beatriz Joffily, doutora em
Psicologia pela Universidade Louis Pasteur, Strasbourg, informa :
“As teorias psicológicas vigentes no século XIX e início do século XX, acompanhando o
pensamento evolucionista da época não reconheciam a existência de qualquer atividade
cognitiva precoce e, menos ainda, manifestações intencionais em fetos e recém-nascidos. Estes
eram, segundo aquelas teorias, seres desprovidos de consciência que deviam submeter-se a
rigorosa estimulação educativa provinda do mundo externo.
Condutas intencionais geneticamente programadas ou congenitamente adquiridas eram
impensáveis e o seu conceito hibernava oculto no socius, vocábulo de origem latina derivado do
verbo sequi, associar-se”.14
A semiótica da cultura enfoca a comunicação sob uma nova perspectiva, lança um novo
olhar. Ela aprofunda o como e o que ocorre com os sentidos e com o sentido na comunicação.
Uma vez constituído, o ser humano comunica-se através de seus sentidos: aceita e é aceito,
envolve-se e é envolvido e isto ainda no útero materno.
Ao falarmos que a comunicação é um espaço e que somos emissores e receptores ao
mesmo tempo, como emitimos e sentimos as mensagens? Através de nosso corpo é a resposta,
que assim dito parece simples, embora assuma enorme complexidade. O corpo e seu universo,
porém, entendendo serem os sentidos os caminhos que nos dirigem para o mundo, como
percursos, direções, roteiros corporais.15
13
apud Baitello, Norval. Imagem e Violência- a perda do presente. São Paulo em Perspectiva, Vol.13, N.3
.A propriocepção é o sentido do próprio corpo. Descoberta por Sherrington na década de 1890, constitui o
outro sentido, além de visão, olfato, tato, paladar e audição. 14
O que o espelho revela que o olho não pode ver? (publicado na revista Avanços da Medicina
do Sono, página 399, 2002), Sylvia Beatriz Joffily é doutora em Psicologia pela Universidade
Louis Pasteur, Strasbourg. 15
Devemos esta abordagem a Norval Baitello Junior. Aula ministrada em 8/08/2002.
A etimologia da palavra sentido é remota. Em indo-europeu a palavra era SENT, e isto
significava tomar uma direção ou direcionar-se para algum ponto. Portanto, sentido bastante
concreto, efetivamente espacial, evidenciando movimento, uma atividade absolutamente
fundamental à constituição do humano. Atividade a partir da qual nasce o conceito de espaço,
que surge do movimento criador de novos entornos. Depois o espaço se diferencia.
Do indo-europeu SENT para o germânico SINN, já se transforma, porque não significa
direcionar-se, mas direcionar a mente e o pensamento. Nesse passo já existe uma perda, porque o
que se perdeu aí foi o corpo. Se antes SENT era dirigir-se, com o corpo para alguma coisa, aí o
que se dirige é a mente. Há uma cisão: res cogitans (mente) e res extensa (corpo).16
Assim, a mente dirige para uma só direção, sentido único, é unívoco, não permite que
todos os sentidos manifestem-se; enquanto que os sentidos são múltiplos e caminham para todas
as direções. Vale lembrar que:
“ Os sentidos vivem da pluralidade do mundo e morrem de singularidade do sentido”
( Kamper, ver com Norval) !
Os conceitos são amplos na área da comunicação e já fica bem distante a noção de que
comunicação seria uma mera troca de informações, como observamos na cibernética ou como
ocorre entre computadores. Ao conceito de comunicação aproxima-se o de sociedade. Uma
sociedade só se constitui pelos vínculos da comunicação, pois uma sociedade é um conjunto de
vínculos e não de indivíduos, por isso não devemos ignorar sua história. O vínculo amarra, é
matéria prima da comunicação.17
1.3. Bifurcação de caminhos.
O primeiro vínculo comunicacional que se estabelece é o vínculo materno.18
Dentro do
útero, bebês cegos ou não estão em pé de igualdade, sem luz, num ambiente aquoso, o que não
significa que já não se comuniquem. Pesquisas atuais confirmam o contato que se estabelece
naquele estágio de vida:
“O feto havia já percebido as informações que vinham tocá-lo às quais ele respondia
pelas explorações comportamentais como os movimentos maternos, as mudanças de posição e
ruídos. Mas o bebê, no final da gravidez preferia claramente a palavra de sua mãe que, como
uma carícia, vinha ao contato de seus lábios e de suas mãos para aí vibrar docemente”.
(Cyrulnik, 1997:17)
16
Ibidem. 17
Baitello in Comunicação, Mídia e Cultura. São Paulo em Perspectiva, Vol.12/n.4/1998. 18
Apud, ibidem. O biólogo H.F. Harlow (1972), em um famosos experimento a respeito do conceito de amor
materno entre chimpanzés, classifica os cinco sistemas afetivos de base em: sistema afetivo maternal, sistema
filial, sistema fraternal ( da mesma faixa etária), sistema heterossexual e sistema paternal adulto.
Para todo bebê, o nascimento em si é uma passagem difícil, um choque, pois deve mudar
de um meio aquático para aéreo e esforçar-se para se manter vivo. O primeiro desafio é o de
respirar. Em sua tese de mestrado, Maria do Carmo de Oliveira discorre sobre a comunicação
do recém-nascido através da respiração nas primeiras horas de vida :
“Há toda uma forma de dizer com a respiração, cujo ritmo, intensidade e volume se
modificam, por exemplo, para denotar que não está bem, que está sendo agredido, que
impotente nas mãos do adulto ele utiliza o seu corpo e tudo que lhe é mais vital, a respiração,
para expressar o quanto quer ser respeitado em sua forma de comunicar”.19
O médico e antropólogo Ashley Montagu, em seu indispensável livro Tocar assim se
expressa:
“O vínculo com o próprio corpo é a base dos vínculos com as outras pessoas, que
denominamos socialidade; a mesma é conduzida pela proximidade entre mãe e filho durante o
primeiro ano de vida. Este relacionamento corporal íntimo é a base das sensações positivas a
respeito de si mesmo, e a sensação de um vínculo corporal permite a consolidação de uma
sensação de auto-estima. Fundamentalmente a fonte da auto-estima é o amor. O bebê usa seu
corpo para expressar seu amor e suas emoções.” ( Montagu, 1988: 255)
Neste momento poderíamos levantar algumas questões, pois há diferenças no que
concerne ao diálogo mantido entre mãe e bebê com visão e entre mãe e bebê cego, sendo
profundas as consequências destas adaptações para um desenvolvimento seqüencial. No que diz
respeito às mães, o nascimento de uma criança, em geral, desperta o sentimento de alegria, de
expectativas, de realizações. Entretanto, quando é feito o diagnóstico de cegueira, este representa
para elas um dos maiores choques:
“Os estudos mais importantes sobre o desenvolvimento dos primeiros anos de vida
derivam da psicanálise, e estes autores salientam as dificuldades dos primeiros contatos da mãe
com seu bebê cego, em contraste com orgulho e o prazer das mães de bebês normais. Estas mães
freqüentemente descrevem seus sentimentos de injustiça, orgulho ferido, culpa e depressão, que
as fazem se afastar emocionalmente do filho e algumas vezes, inconsciente ou racionalmente,
desejarem sua morte.....E o bebê, numa dos períodos mais vulneráveis de seu desenvolvimento,
naturalmente reage a este afastamento com passividade. Esta fase, apontada por Wills (1970)
como período crítico no desenvolvimento da criança cega, é estudada por numerosos
psicanalistas e considerada por alguns como irreversível e por outros como de possível
compensação por uma maternagem especial.” ( Amiralian,1997: 59)
Esta maternagem especial, explica a autora, é colocada por alguns autores como uma
condição essencial para que a criança possa trilhar com sucesso esse perigoso caminho. Supõe
uma especial sensibilidade da mãe para encontrar meios para estabelecer, por meio da
manipulação e da fala, um contato satisfatório para ambas. (ibidem: 65) Isto porque as mães de
crianças videntes agem automaticamente, oferecendo suas próprias experiências, mas as mães
19
Comunicação do Recém nascido: respiração, de Maria do Carmo de Oliveira, defendida pelo Programa de
Comunicação e Semiótica da PUC-SP, dissretação de mestrado, 1994, p.26.
dos cegos devem aprender como agir e descobrir formas para ajudá-los a conhecer e explorar o
mundo exterior.
Nos primeiros dias e até meses de vida, há uma ordem no desenvolvimento sensorial, que
vale para todos nós. Os sentidos do Homo sapiens se desenvolvem segundo uma seqüência bem
definida:
1-a dimensão tátil
2-a dimensão auditiva
3-a dimensão visual.
À medida que a criança vai se aproximando da adolescência, a ordem de precedência
passa a ser invertida:
1- visual
2- auditiva
3- tátil. ( Montagu, 1988 : 299)
Após a organização de suas percepções táteis, visuais, auditivas, gustativas e assim por
diante, o bebê começa a se diferenciar do mundo que não é ele mesmo.
“A diferenciação do si mesmo em relação ao mundo é uma conquista notável e para
sua consecução o tato desempenha um papel de destaque. As três principais dimensões que
emergem desta diferenciação são o si mesmo ( agente da ação), os objetos ( objetos da ação) e
a relação de ações entre as duas primeiras. Em virtude da progressiva diferenciação que o si
mesmo sofre em relação a outras pessoas, aumenta a necessidade de comunicação”.
(ibidem:242)
Compreende-se daí que o bebê, no começo de sua vida, é destituído de estrutura psíquica
como também de limites corporais e psíquicos. Ele não distingue o dentro e o fora, o eu e o não
eu. Neste estágio, as identificações primárias que efetua são dirigidas para suas necessidades
enquanto parte de seu corpo. O bebê usa suas mãos, sente-se, muitas vezes coloca a mão na
boca, suga, etc. e é difícil até então distinguir o bebê cego. Afirma Maria Lucia que:
“Até os quatro meses de idade, os bebês cegos e videntes são comparáveis em seu estado
narcísico primário, autocentrado e indiferenciado, quando não estabelecem diferenças entre o
Eu e o não Eu, e apenas experimentam prazer quando suas necessidades são satisfeitas e
desprazer quando não .” ( Amiralian, 1997:59)
Ao nascer, a boca é o órgão dominante de procura e busca e no início da segunda fase as
mãos e os olhos tornam-se preponderantes. Afirma ainda aquela autora que “a criança começa a
usar mais e mais as suas mãos e a visão torna-se complementar neste movimento para o mundo
externo. Como a mão, a visão fica a serviço da boca na busca e pesquisa do mundo externo”.
(ibidem:60)
Se o leitor for mãe ou pai, certamente deverá lembrar-se que o bebê passa horas
distraindo-se com objetos pendurados junto ao berço. Ele os vê e quer agarrá-los com as mãos.
Mas isto não ocorre com a criança cega. Os objetos devem ser oferecidos diretamente às suas
mãos, ela se distrai tocando.
“A criança que antes agarrava os objetos com suas mãos agora cata-os com os olhos.
Isto é negado à criança cega, que perde a continuidade com o meio ambiente. Além disso, ela é
privada do contínuo feedback visual de sua mãe, uma resposta que premia e reforça seus
esforços.” (Amiralian, 1997: 60)
A visão é um dos elos de ligação entre os pais e o recém nascido, mantém e alimenta o
vínculo. O contato ocular perdura até a idade adulta, fica gravado em nossa memória. Não
esquecemos a maneira que um dia nossos pais e mães nos olham ou nos olharam, tanto os
olhares de aprovação quanto os não tão “dóceis”. Mas, se fossemos comparar, pode ser que
reparemos que gravamos profundamente seus gestos, seus abraços, suas vozes, seus odores, o
tato e o contato que temos ou que tivemos com os mesmos.
A visão organiza, integra as informações sensoriais, o que não impede que sem ela outros
caminhos não possam ser percorridos. A percepção do rosto da mãe facilita o desenvolvimento
do bebê, mas aquele sem a visão se sentirá atraído para ela por outros meios, como pela voz, por
seu cheiro e seu estilo comportamental. “Um bebê cego desenvolve-se muito bem sem jamais ver
o rosto de sua mãe”. (Cyrulnik, 1997: 176)
É inegável que, nos primeiros anos de vida, tanto a mãe como a criança cega enfrentem
problemas muito mais complexos que outras crianças e outras mães. Logo no início, se
compararmos o bebê com visão e o sem ela, ainda não há muita diferença, porque a visão não
está formada, enxergam-se contornos, depois formas e só depois, a partir do terceiro mês, têm a
visão mais definida. Aí a maior parte dos autores concorda que por volta do terceiro mês, o bebê
deixa o “estar dentro para estar com”. (ibidem: 177)
O interesse pelo mundo externo é sempre uma condição fundamental para o
desenvolvimento de uma criança. Com o tempo, ela passa a querer explorar seu entorno, começa
a andar, a falar, a querer conhecer, sentir o que está à sua volta. Se, com a visão, esta fase já
exige muito cuidado por parte das mães, lidar com crianças sem a visão muito mais é requerido.
Talvez, se estas mães não forem as primeiras a aceitar e enfrentar este desafio, serão as primeiras
a rejeitarem e terem os mesmos preconceitos que a sociedade irá impor.
Na fase em que começam a falar, na formação dos conceitos, as crianças cegas atribuem aos
objetos as mesmas palavras usadas pelos videntes, mas estas palavras possuem significados
diferentes, peculiares ou pessoais.
“Inundada por estímulos sonoros e táteis cinestésicos, sem a ajuda da visão, a criança
terá dificuldades em dirigir sua atenção de modo a apreender os atributos essenciais e
organizar suas experiências em conceitos prontamente identificáveis.’’ ( Amiralian, 1997: 66)
Às vezes, ocorre de estarmos em pé de igualdade, há termos empregados que
compreendemos perfeitamente. Tomemos a palavra vento. Tanto faz se uma criança cega ou não
vier nos perguntar como é o vento, respondemos que ninguém o vê, apenas o sente. Mas, na
maior parte das vezes, não se dá conta do quanto é difícil a transmissão desta significativa
aquisição humana no universo da escuridão. Escreve Edgar Morin que a linguagem permite ao
mesmo tempo a acumulação, a conservação, a organização e a criação do saber. Não só permite a
cultura e a comunicação, como a linguagem participa das trocas entre o homem e o mundo.
“Palavras e frases são veículos de trocas, tanto objetivas como subjetivas”. (Morin, 1970:107-
108 )
Para os cegos, a linguagem e a fala, além de servirem para estas mesmas funções, são
usadas também para outros fins. A falta de visão estimula a criança cega a usar as palavras como
substitutas de coisas que não vê. Ela descobre usos para a fala em diferentes atividades: para se
orientar, para catalogar características que diferenciam pessoas, para descobrir alguma marca
pela qual um objeto possa ser reconhecido. (Amiralian, 1997:63)
Nós tomamos a linguagem como tradução de experiências de modelos de mundo. Via
comunicação verbal com os deficientes visuais, pode-se informar conceitos diferentes dos deles,
“idéias cegas”. É ainda Maria Lúcia que enriquece nossa reflexão quando diz que:
Se de um lado a criança cega é totalmente dependente do vidente como transmissor do
simbolismo para a utlilização de sua linguagem, por outro, ela está divorciada das concepções
de mundo deste mediador. Enquanto os cegos experenciam o mundo pelo tato, pela audição,
cinestesia, olfato e gosto o mundo lhes é explicado pela linguagem daqueles que pouco se
utilizam deste conjunto de experiências sensoriais”. ( ibidem: 63)
Aí que há dificuldade de crianças cegas em adquirirem o significado das palavras. É
frequente a ecolalia, ou seja, a pessoa repete involuntariamente palavras ou frases que ouviu, mas
que nada significam para ela.
Vivemos no espaço e no tempo e os apreendemos com a totalidade de nossos sentidos. O
tato, o olfato, a audição e o paladar são os sentidos comuns para todos, deficientes visuais ou
não. Entretanto para o cego, o espaço é reduzido a seu próprio corpo e o espaço exterior
percebido com a colaboração do sentido da audição. Assim, ele desenvolve um sentido
específico, o da ecolocalização. É capaz de perceber se o ambiente é pequeno ou grande, aberto
ou fechado, alto ou baixo, etc. As noções de profundidade, perspectiva e movimento, são
incompreensíveis para aqueles que nunca enxergaram. Para os cegos de nascença as coisas não
têm distância espacial e por isso são incapazes de julgá-la. Entretanto a ecolocalização, esta
faculdade que desenvolvem, desde que associada ao sentido da audição, transmite uma sensação
acústica capaz de permitir a percepção de deslocamentos de ar, ecos ou ondas sonoras, que
possibilita a localização física”.20
Por sua vez, não podemos nos esquecer que sem a base tátil, muitas daquelas noções
também não se confirmam:
“As modalidades de espaço, tempo e realidade, contorno, forma, profundidade,
qualidade, textura, a tridimensionalidade de nossa visão e outras, são quase certamente
20
MORIN,Florence. Apud TOJAL, Amanda. Museu de Arte e Público Especial, Amanda P. da Fonseca
Tojal, São Paulo, ECA-USP, Dissertação de Mestrado, 1988, p.20.
desenvolvidas, em grande medida, com base nas experiências táteis do bebê”. (Montagu,1986:
245 )
Com relação ao tempo, Oliver Sacks esclarece que os cegos vivem num mundo só de
tempo, porque constroem seus mundos a partir de seqüencias de impressões (táteis, auditivas,
olfativas) não sendo capazes, como as pessoas com visão, de uma percepção visual simultânea,
de conceber uma cena visual instantânea. (Sacks, 1995 : 138)
Assim, há um outro sentido específico que os deficientes visuais desenvolvem que é a
memória espacial, a temporal e a cinestésica, que lhes permitem identificar por associação e
referencial adquirido a sua localização espacial e temporal a partir de sensações inter-
relacionadas principalmente com os sentidos do tato, audição, olfato e ecolocalização.21
Também não há analogias para explicar as cores para os cegos. Em geral, explicam
dizendo que o vermelho é a cor do sangue, que árvores são verdes e as verduras idem, que o céu
é azul, etc., mas para os cegos congênitos isto pouco representa. Os que perderam a visão,
esforçam-se para não esquecerem imagens e cores que um dia estiveram presentes em suas
vidas. Lutam para que elas permaneçam o maior tempo possível e lamentam não poder mais
olhar para o céu, com suas cores, seus movimentos e seus astros.
“ Uma das ausências que mais sinto em minha vida é sem dúvida a do céu, que pertence
às imagens mais apagadas”. (Bavcar, 1992:12)
Observamos anteriormente que o sentido do tato desenvolve-se antes do sentido da
visão. Mas, com o decorrer do tempo, a visão passa a ser o sentido mais requisitado. Os sistemas
de valores relativos à visão em comparação com os do tato são diversos. No que dia respeito ao
sentido da visão, G. Bateson fala que nossa visão é baseada na ilusão, “o que vê adiciona ao ato
de ver”.( Bateson,1986:78).
O neurologista S. Zeki e outros cientistas reconhecem que o mecanismo que envolve o
funcionamento do cérebro permanece um mistério, mas não duvidam que a visão é cerebral, é
um processo ativo, não um processo passivo como imaginamos que fosse. Reconhecem que:
1-somos facilmente enganados pelo nosso sistema visual
2-a informação visual que provém de nossos olhos pode ser ambígua
3-ver é um processo criativo
Ver é acreditar, mas acreditar naquilo que nosso cérebro acredita que seja real. Zeki não
deixa, entretanto, de reconhecer “que a visão não é com certeza o único sentido pelo qual
podemos adquirir conhecimento”.( Zeki, 1998:4) Montagu também concorda que é o cérebro
que efetua a censura propriamente dita e que a visão é o meio pelo qual aquilo que é visto é
transmitido ao cérebro, onde então é julgada a informação. (Montagu, 1986:259)
Todavia, A. Montagu vai adiante em suas colocações e analisa a visão em seu aspecto
social, afirmando que ela é o “censor dos sentidos” enquanto o tato é “aberto e livre”. Entre
21
Cf. Tojal, 1999:20.
tantos experimentos que nos conta em seu livro Tocar, Montagu relata os resultados de uma
pesquisa do departamento de psicologia da Faculdade de Swarthmore. Estudantes, com idade de
18 a 35 anos, foram levados a uma sala escura, dentro da qual havia alguns desconhecidos, que
sabiam que jamais iriam encontrar-se de novo. Quase todos se tocaram propositalmente (90%), a
metade dos participantes se abraçou e perto de 80% dos sujeitos da sala escura disseram que se
sentiram sexualmente excitados.
Os pesquisadores ficaram impressionados com o desejo de proximidade íntima
demonstrado diante da simples eliminação da luz, o que levou um grupo de pessoas
desconhecidas a atingir, em meia hora, um estado de intimidade que é raramente alcançado em
um tempo tão curto. Concluíram os experimentos afirmando que as pessoas compartilham de um
forte anseio de aproximação umas das outras, mas que nossas normas sociais tornam muito
custoso expressar estes sentimentos.
“Recuo ante a dificuldade erguendo um palácio de abstrações. Hesito ante o obstáculo
como tantos têm medo do outro e de sua pele”. (Serres, 2001:21)
Dar primazia à visão é viver na aparência, ao passo que dar primazia à mão, às pontas dos
dedos, é viver na tridimensionalidade do tato e de sua realidade. E. Bavcar considera a cegueira
sua “cúmplice” e já familiarizado em transitar por dois mundos assim fala sobre o olhar:
“O que é um olhar ? É talvez a soma de todos os sonhos de onde se esquece a parte de
pesadelo quando se pode olhar de outra maneira. E aliás, as trevas são apenas aparência, já
que a vida de todo ser humano, por mais sombria que ela seja, é feita também de luz. E da
mesma maneira que o dia surge frequentemente com o canto dos pássaros, eu aprendi a
distinguir a voz da manhã e a da noite”. (Bavcar, 1992: 16)
O caminho para a integração do deficiente visual é complexo. Notamos que os
cegos tem que lidar com um processo de tríplice integração: seu mundo interno, o mundo
externo experenciado por seu sistema perceptivo e o mundo externo percebido pelos que
enxergam, mundo este centrado na percepção visual, do qual participam por um
conhecimento obtido verbalmente, mas não real
mente sentido. A dificuldade está em ter de transitar entre dois mundos, o da visão
que ele nunca teve ou perdeu e o mundo da tatilidade que é como percebe o mundo
exterior. (Amiralian, 1997:279)
Bavcar participou, recentemente, de um documentário sobre a cegueira intitulado “Janela
da Alma”.22
Nele, há vários depoimentos, tanto dos que perderam a visão, quanto daqueles que a
tem prejudicada ou necessitam de óculos, como é o caso do escritor José Saramago. Na sua fala,
ele diz que hoje vivemos na caverna de Platão, vemos sombras e acreditamos que sejam reais.
Ele conta que costumava ir ao teatro, em Lisboa, e que se sentava lá em cima. Via o outro lado
das belíssimas colunas douradas, ele via a sujeira, a poeira e finaliza: “ para conhecer a coisa,
há que se dar a volta. Com os olhos não vemos nem menos nem mais”.
22
Janela da Alma, direção de João Jardim Valter Carvalho, documentário sobre a cegueira, lançado em
18/10/2001.
Ainda no mesmo documentário, em um determinado momento, indagaram a um vereador
de Belo Horizonte, Sr. Godoy, que perdeu a visão ainda jovem, a pergunta que todos nós
também gostaríamos de fazer: como os cegos sonham? O político respondeu que sonhava com
imagens, que ainda tinha memória visual e, portanto, elas estavam presentes em seus sonhos.
E os que nasceram sem a visão, como sonham?
Pesquisa-se hoje o sonho, antes mesmo de “vir à luz”. Silvia Beatriz Joffily afirma que “os
modernos recursos da neurociência confirmam que o sonho, apesar de aparecer tardiamente na
escala filogenética, surge para o ser humano, ainda durante a vida uterina, como possante
mediador dos mundos interno e externo”. 23
Relata esta autora que recentes pesquisas neuropsicológicas comprovam que o sonho,
durante o qual acontecem as primeiras noções de falso e verdadeiro, de um Eu e de um Outro, é
um fenômeno mental de implantação precoce.
Os primeiros sinais característicos do estado de sonho, os movimentos oculares rápidos ou
movimentos REM aparecem a partir do sétimo mês de gestação, quando a retina adquire uma
estrutura mais definitiva e o registro encefalográfico torna-se mais contínuo.
No mesmo artigo descreve a autora suas pesquisas e aqui compartilha com a seguinte
observação:
“O relato apresentado por sujeitos cegos a respeito de suas experiências oníricas é
extremamente interessante. Segundo Michel Jouvet, estes indivíduos, mesmo quando cegos de
nascença, manifestam, assim como os providos de visão, os chamados movimentos oculares
rápidos, REM, característicos da atividade PGO do sono paradoxal. Entretanto, seus sonhos
são totalmente desprovidos de imagens visuais, apresentando em intensidade decrescente,
sensações auditivas seguidas de táteis, cinestésicas, gustativas e olfativas (Jouvet, 1992).
Todavia, quando a perda de visão acontece após a idade crítica de 5 a 7 anos, a ocorrência de
sonhos com conteúdo visual persisite, ainda, por algum tempo, levando 20 a 30 anos para que
as imagens visuais oníricas desapareçam totalmente.”24
Constatação similar encontra-se na obra de Maria Lúcia Amiralian:
“Segundo Blank, os cegos congênitos , e os que ficaram cegos antes dos 5 anos de idade,
não têm sonhos visuais, sendo as imagens auditivas preponderantes em seus sonhos. Já aqueles
que ficam cegos depois dos 7 anos têm sonhos que são povoados de imagens visuais. Para ele,
não há diferenças essenciais entre os sonhos dos cegos e videntes, e a análise de sonhos dos
cegos serve como comprovação da teoria psicanalítica dos sonhos. Descreve como típicos dos
cegos os sonhos “de fora”, determinados primariamente por problemas da realidade. São
23
Joffily, Sylvia Beatriz. O sonho precursor da individualidade nos mecanismos sociais humanos
(19995/96) Revista de Psicologia Clínica, Pós-Graduação e Pesquisa. Deparatamento de Psicologia. PUC-RJ,
vol.7, p.60.
24
ibidem, 73.
frequentemente diálogos significativos de resíduos diários, relacionados à cegueira mais do que
expressões de conflitos profundamente reprimidos. ( Amiralian, 1997 : 55)
Se todos sonhamos, com ou sem a visão, participamos juntos da criação dos textos
culturais produzidos pelos homens, pois “os sonhos, o jogo, os estados alterados de consciência
e a loucura são as raízes da cultura.” (Bystrina, 1995: 14) Tanto para produção dos textos quanto
para a percepção dos mesmos necessitamos um meio, uma mídia e a que temos é o corpo.
1.4 A comunicação tátil: o toque como via de comunicação.
O primeiro meio de comunicação que o homem utiliza é seu próprio corpo, início e fim de
toda comunicação, mídia primária por excelência.25
Afirma o conhecido teórico que mídia
primária é aquela que utiliza apenas as linguagens do próprio corpo, tanto para emitir como para
receber as mensagens. Na mídia secundária, o emissor serve-se de algum aparato, de um suporte
para sua transmissão. Já na mídia terciária, tanto o emissor quanto o receptor necessitam de
aparatos, dos telefones aos computadores. É a mídia da tomada, mídia eletrônica, onde estamos
“plugados”. Portanto, estas mídias são cumulativas, a mídia primária está sempre presente, lá
está o corpo, apesar de não nos darmos conta disto.
Pensar um corpo é pensar na “linguagem dos sentidos” que nos colocam em relação com
o mundo. É provável que no início, em quase todas as espécies, o primeiro meio de comunicação
tenha apoiado-se sobre a base tátil-gustativa e olfativa. O tato foi, sem dúvida, o primeiro a
surgir. A comunicação pelo sentido do tato constitui o mais poderoso meio de criar
relacionamentos humanos, como fundamentos da experiência.
Animais como dois cães, por exemplo, utilizam-se de todos os sentidos para se
comunicarem. Se, neste momento, ao nos darmos conta do quanto estamos distantes de nós
mesmos, de nossos corpos, de sua tatilidade, também faríamos a seguinte pergunta:
“Como fomos, principalmente no mundo ocidental, deixando de nos apoiar nos sentidos
de proximidade, o tato, o olfato e o paladar, para nos apoiarmos maciçamente nos sentidos de
distância, a visão e a audição?”. (Montagu, 1986:19)
Os sentidos exprimem-se através de nossos órgãos. Para a visão os olhos, para a audição,
os ouvidos, para o paladar, a boca, para o olfato, o nariz e para o sentido do tato é todo o nosso
corpo. Isto porque o tato é a origem de nossos olhos, ouvidos, nariz e boca. A pele recobre todos
eles, dentro e fora, o tato é a matriz de todos eles.(ibidem: 21)
O sentido associado à pele é o tato. O nosso corpo inteiro é recoberto de pele, o mais
sensível e extenso órgão que temos para sentir.Talvez depois do cérebro, a pele seja o mais
importante de todos os nossos sistemas de órgãos. Por isso o filósofo independente Michel
25
Baseamo-nos na classificação criada pelo cientista político alemão e teórico da comunicação, Harry Pross,
que, em 1971, divide a mídia em três grandes grupos.
Serres, em seu livro Os cinco sentidos, ao escrever sobre o tato, dá o sub-título de véus, há o
dentro e o fora e o tato é o sentido que mistura todos os outros. Ele nos presenteia com as
seguintes palavras:
“A sensibilidade, alerta aberta a todas as mensagens, ocupa mais a pele que o olho, a
boca, a orelha.... Os órgãos dos sentidos acontecem aí quando ela se faz doce e fina, ultra
receptiva. Em alguns lugares, em locais determinados, ela se rarefaz até a transparência, abre-
se, estende-se até a vibração, torna-se olhar, ouvido, olfato, paladar...Os órgãos dos sentidos
variam estranhamente a pele, ela própria variável fundamental, sensorium commune: sentido
comum a todos os sentidos, que serve de elo, ponte, passagem entre eles, plano banal, parede-
meia, coletiva, partilhada.” ( Serres, 2001: 66)
Sendo o sistema tátil o primeiro a formar-se, ainda no útero, o contato é estabelecido
entre os corpos apenas pela linguagem do sentir o outro corpo. Conforme mencionado
anteriormente, a experiência pela qual o bebê passa em contato com o corpo de sua mãe constitui
seu meio primário e fundamental de comunicação, sua primeira linguagem, sua primeira forma
de entrar em contato com o outro ser humano, “a gênese do toque humano”.(Montagu,
1986:131)
O tato difere dos outros sentidos porque exige a presença, presença de um outro corpo,
claramente explicitado assim:
“Diversamente da visão e da audição, no contato sentimos o paladar e odor, as
experiências limitam-se às superfícies da cavidade nasal e o palato. Deste modo, decorre que
nosso mundo é composto por presenças, coisas que são corpos. E são isto porque entram em
contato com as mais próximas de todas as coisas que existem para nós, o eu que cada uma de
nós é: nosso corpo”. (ibidem: 129)
Montagu escreve, logo no início de seu livro Tocar, um capítulo inteiro sobre A Mente da
Pele, onde como médico e antropólogo, apresenta inúmeros argumentos científicos sobre o
assunto. Dado que os diversos sentidos são na realidade receptores de pele de diferentes tipos, os
olhos, ouvidos, nariz e certamente a língua, “sentem” mais do que vêem, ouvem, cheiram e
degustam. (ibidem: 24)
A pele tem inúmeras funções, diz Montagu. A pele é um bastião e nos protege. Mas é
também o espelho do funcionamento do organismo interno, ela capta e reflete tanto física como
emocionalmente o que sentimos. O sistema tátil é o único que emite e recebe, podemos nos
tocar e nos sentirmos tocados. O rosto e a mão como “órgão dos sentidos”, não só transmitem ao
cérebro informações sobre o meio ambiente como também lhe passam determinadas informações
relativas ao “sistema nervoso interior”.
O sistema tátil é complexo e diversificado, por isso a necessidade de distinguir-se as formas
de toque e o papel que desempenham, relata-se que há:
1-o toque social
2-o toque passivo
3-o toque háptico
“O toque social, estimula os vínculos sociais, a dependência, a integridade emocional;
os efeitos do tocar em situações sociais, a estimulação e a privação social constituem então, a
mais ampla área de nosso interesse. No toque passivo, o organismo é tocado; o contato com a
pele do sujeito é efetuado por algum agente externo, como uma superfície áspera que é
deslizada sobre dedos imóveis. Isto se opõe ao toque ativo, no qual o organismo toca, e se refere
ao iniciar e desempenhar atos que efetivem o contato pele-objeto, sua exploração e uso
manipulativo da pele: disto decorre a estimulação dos sistemas receptores nos músculos,
tendões, articulações: o sistema cinestésico.
O toque háptico refere-se ao toque em seu mais amplo sentido e geralmente é usado para
indicar o toque de exploração e manipulação, em contraste com as sensações táteis, que
resultam da estimulação dos receptores passivos.” (ibidem: 168)
Nas útlimas décadas, pesquisa-se as capacidades perceptivas da pele. Comprovou-se que
a pele e a retina do olho são únicas em termos de seus receptores sensoriais serem distribuídos
segundo um padrão. Isto permite que tanto a retina quanto a pele captem regularidades e padrões
de estímulos e os convertam prontamente em imagens no cérebro”. (ibidem: 184)
A afirmação acima é confirmada através de experiências já executadas. O autor descreve
que, em São Francisco, na Faculdade de Ciências Médicas, usando uma distribuição de
eletrodos, montados sobre uma matriz elástica que pode ser usada pela pessoa às costas ou sobre
seu abdômen, embaixo das roupas é instalada uma câmera sobre a cabeça da pessoa cega, como
uma lâmpada de mineiro. Esta câmera pode transmitir aos eletrodos as informações captadas
que, por sua vez, são transmitidas para a pele. A informação é então traduzida no cérebro
formando a noção do que é. No decurso desta pesquisa, descobriu-se que a pele abdominal “vê”
melhor que a das costas ou dos antebraços.
Acima vimos um relato cujo percurso forma-se da imagem para a pele. Agora passamos
ao relato da pele para a imagem. Sabemos que o deficiente visual pode ler e escrever através do
alfabeto braile.26
São pequenos pontos, em relevo, que as pontas dos dedos devem percorrer,
delicadamente, sobre o papel, para aquela escrita ser decifrada. Para quem perde a visão, já
adulto, encontra muita dificuldade em aprender tal método. Nossas pontas dos dedos não estão
preparadas para tal sutil operação. Oliver Sacks27
comprova que, em cegos que lêem em braile, o
dedo leitor tem uma representação excepcionalmente grande nas partes táteis do córtex cerebral.
É de se suspeitar que as partes táteis (e auditivas) do córtex são alargadas nos cegos e podem até
se expandir para o que normalmente é o córtex visual. O que sobra do córtex visual, sem o
estímulo da visão, pode ficar em grande parte sem se desenvolver. Parece provável que tal
diferenciação do desenvolvimento cerebral acompanhe a perda de um sentido na infância e a
intensificação compensatória de outros sentidos.
Entretanto, a discussão sobre as compensações que o cérebro realiza são, até o momento,
apenas suspeitas. A comunicação tátil, sendo vital para os indivíduos sem a visão, não é menos
26
Louis Braille, professor francês, nascido em Coupvray 1809-1852. Cego, ele inventou um sistema de
escrita utilizando pontos salientes, em relevo, para uso dos cegos. 27
Oliver Sacks é médico neurologista e relata em Um Antopólogo em Marte, seus relatos de estudos de
pacientes. (1995:153).
importante para os que dela se utilizam. O corpo é uma inteligência viva organizada para
perceber o mundo com todos os sentidos, principalmente com os de proximidade.
Nossa comunicação tátil está sufocada, agoniza, mas o corpo insiste em querer sentir e
ser sentido, tocar e ser tocado. Neste caso, haveria um processo compensatório? Somos seres
táteis, carentes de tatilidade. E não sentir mais com a pele, com todo o corpo, sem o sentido do
tato, o que somos e o que isto pode ocasionar? Parece antecipar essa preocupação quando
Montagu nota que “ o indivíduo carente a nível tátil sofrerá de uma deficiência de “feedback”
da pele para o cérebro, que tem a possibilidade de interferir gravemente em seu
desenvolvimento como ser humano.” (Montagu, 1986:255)
O bebê chora muitas vezes porque quer ser tocado, quer um colo, um embalo, mas convém
não tocá-lo, pode ficar mal acostumado. Hoje, já inventaram as babás eletrônicas, tem até
aparelhos que detectam a causa da reclamação. A seguir, a criança quer por a mão em todos e em
tudo, quer sentir, cheirar, por na boca. Mas é proibido olhar com as mãos e ela deve sentir só
com os olhos. Adultos, nossos corpos continuam a querer ser tocados, mas aprendemos bem com
nossos pais e com nossa cultura que “é proibido tocar”. Só o nosso corpo que insiste, que clama
pela mídia primária, sufocada pela mídia terciária. Haverá mesmo uma revolta dos sentidos?28
1.5 Entre o toque esquecido e a visão saturada.
Ao longo do processo histórico, eventualmente pessoas de diferentes lugares produzem,
pensam, teorizam na mesma direção. O que se denomina “espírito do tempo” ou simultaneidade
epistemológica. Em nossa bibliografia quase todos os autores citados falam da perda dos
sentidos, do distanciamento de nosso corpo, da cisão, da privação de experiências sensoriais que
sofremos em nossa sociedade tecnológica.
“ Muitas filosofias referem-se à vista ; poucas ao ouvido; menos crédito ainda dão ao
tato e ao odor. A abstração recorta o corpo que sente, suprime o gosto, o olfato e o tato,
conserva apenas a vista e o ouvido, intuição e entendimento. Abstrair significa menos sair do
corpo do que o partir em pedaços : análise.” ( Serres, 2001: 21)
É recente a tomada de consciência do quanto estamos distanciados de nossos sentidos e o
que isto pode ocasionar. Durante séculos, acreditou-se que no reino animal, do qual fazemos
parte como mamíferos, ser a alimentação o fator primordial para nossa sobrevivência, não se
dando a mínima atenção a outras questões, como afeto e aconchego, aspectos que eram
desconsiderados.
Como isto cai por terra? O professor Harry Harlow realizou uma incrível experiência com
macacos rhesus. Em seu experimento com recém nascidos, ele construiu duas mães substitutas,
uma de arame e outra de “pele” felpuda e aquecida, mas as duas em condições iguais na
alimentação. O professor se surpreendeu ao constatar que a variável afetiva e amorosa suplantou
28
Cf. Serres, (1995:71)
a variável da amamentação. Concluiu Harlow: “De fato, a disparidade é tão grande que sugere
que a função primária do aleitamento como variável afetiva é a de assegurar um contato
corporal frequente e íntimo do bebê com a mãe. Certamente ninguém consegue viver só de leite.
O amor é uma emoção que não necessita ser dada em mamadeiras ou às colheradas, e podemos
ter certeza de não haver ganho nenhum em falar do amor só da boca para fora.” (apud,
Montagu, 1986 :54)
Quando falamos em comunicação tátil, na maior parte das vezes, entende-se apenas que
está relacionada com a cegueira. Pouca importância dá-se ao tato, mesmo porque, na mídia
terciária, a que mais se utiliza em nossos dias, o contato tátil nesta comunicação é quase nulo.
Por isso que alguns teóricos da mídia preocupam-se com a atual situação, como é o caso de
Baitello, que assim se pronuncia:
“Os sentidos da proximidade, em particular o sentido do tato, têm sido considerados
toscos e, quando muito, auxiliares menores do conhecimento racional. As linguagens do tato e a
comunicação tátil circunscreveram-se a áreas de refúgio, sendo desenvolvidas apenas quando
da perda da visão ou então como terapias específicas, destinadas a excepcionalidades
patológicas. Assim, pode-se dizer, em resumo, que a comunicação tátil termina sendo prescrita
como um tipo de“remédio”, sendo raramente vista como normalidade integrante de um sistema
comunicativo complexo, composto de diversos aparatos produtores e receptores de linguagens.”
(Baitello, 1999: 81)
Há outras experiências científicas que trabalharam com a ausência da linguagem tátil em
macacos. Os filhotes foram separados de seus pais e quando adultos, apresentaram um
temperamento muito agressivo. Não é exatamente uma novidade. Parece-nos haver uma estrita
forma de relação entre a ausência da comunicação tátil e a violência. Por que não dizer com
todas as letras que a falta da comunicação tátil é a base para a violência? É pelo tato que somos
aceitos, que estamos juntos, que nos vinculamos. O inverso é verdadeiro. Sem o tato, o que
somos? Seres rejeitados, excluídos, desvinculados.
Mas não é só. Se de um lado perdemos o sentido do tato, daquele sentido que tudo liga,
por outro lado estamos com sentido da visão exacerbado. Distantes dos sentidos de proximidade,
corre-se o risco de perder-se o próprio corpo, como um todo de sentidos. Dietmar Kamper,
Montagu, Cyrulnik , Baitello, Leroi- Gourhan, dentre outros, debatem sobre a perda do sexto
sentido, o da propriocepção, que é o sentido do próprio corpo, do presente, do aqui e agora.
Como chegamos a isto? Baitello nos propõe indagar se um diálogo entre a visão e a
propriocepção não seria também válido na outra direção, ou seja, com tantas imagens, tanta
visão, não estaríamos perdendo aos poucos a sensação do próprio corpo, o espaço do eu?
Habitamos um corpo virtual. Uma imagem não tem tempo nem espaço. Segundo D.
Kamper, o tempo do corpo não é o mesmo da luz. O corpo precisa do tempo e do espaço. Uma
imagem não tem cheiro, nem sabor, nem pode ser sentida pelo tato. O corpo sente, tem prazer e
desprazer, principalmente com os sentidos de proximidade. Se a visão predomina sobre os outros
sentidos, não estaríamos falando de um corpo que não sente mais prazer?
E só com a visão, pergunta o antropólogo A. Leroi-Gourhan, “como é que este mamífero
obsoleto irá continuar a empurrar o seu rochedo encosta acima, se um dia já só lhe restar a
imagem da sua realidade?”. ( 1965: 227)
Este dia já chegou! Dietmar Kamper aporta para esta discussão enormes contribuições.
Dedicou-se em seus estudos a elaborar uma sociologia do corpo humano a partir de vínculos,
agregações e conexões. Ele alerta sobre a “cisão entre o corpo real e o corpo imagético”. Nos
últimos séculos, o corpo foi objeto de uma terrível operação de disciplina e, apesar da liberdade
do espírito e do intelecto terem sido conquistadas, isto custou o preço da não liberdade do corpo,
que é a verdadeira vítima deste processo histórico.
“Como vivemos em nossos corpos, é fácil perceber que corpos representados não tem
nada de corporal. Entretanto, desde que aprendemos a só perceber o mundo com os olhos - de
acordo com a divisa européia do: don’t touch! - a perda do corpo nos escapa”.
(Kamper, 1999: 5)
Kamper esteve algumas vezes em nosso país e aqui em São Paulo, tivemos a honra de
participar de suas palestras. Refletiu muito sobre o terror atual da visibilidade, “quanto mais
visibilidade mais invisibilidade”. O mundo opera hoje por imagens e não pelas verdades e o
imagético opera por valores culturais. Afirma que o fato aqui é pensar então na sobrevivência do
corpo enquanto corpo vivo e suas exigências. Todos os nossos sentidos são tridimensionais,
originalmente, afirma o pensador alemão. Se imperam as imagens e elas são bidimensionais é a
transformação dos corpos em imagens.
Em função do olhar, a obrigatoriedade de transformar tudo o que existe em uma imagem
está associada a uma estranha espontaneidade, a qual dissolve sem deixar rastros as antigas
fronteiras e tem sérios desdobramentos. Torna-se um círculo vicioso: para participar do processo
da visibilidade ampliada, os indivíduos aceitam perder as corporalidades multidimensionais de
suas vidas. 29
A profundidade do mundo não é para o olho.
“Pois os olhos, apesar da binocularidade, não vêem os corpos que de maneira pictural,
quer dizer sobre as superfícies, ao passo que a pele, este grande sentido tátil, preferiria tocar as
imagens, o que é impossível. Logo, desde que o imaginário instalou-se como uma prisão para
os humanos tendo uma identidade e ávidos de unidade, o potencial de verificação dos outros
sentidos desaparece. Acontece então algo estranho : a superfície triunfa sobre toda percepção”.
(Kamper, 1999:50)
O filósofo alemão desenvolveu toda uma sociologia do corpo e é ele também que nos
aponta um caminho. Pesquisadores dão continuidade a seus estudos e contribuem para uma
Semiótica do Corpo. Dentre eles encontra-se Cleide Riva Campelo30
, que aqui nos oferece um
antídoto para a perda do corpo:
29
Corpo Vivo, o Corpo Morto. KAMPER, Dietmar. 30
Cleide Riva Campello é pesquisadora em Semiótica da Cultura e docente na.....?
“Fundamentalmente, ao se propor uma semiótica do corpo, o que se busca é a
redescoberta dos sentidos. Uma visão que veja mais do que a luz permite, uma visão também na
ausência da luz; um paladar que redescubra o gosto do fruto proibido e já esquecido, porque
anestesiado pela rotina; uma audição pronta a ouvir o que é estranho, com tolerância para o
ruído, para o que não se domesticou com um rótulo; um olfato que saiba perseguir rastros na
terra úmida, que saiba descobrir parceiros pelo cheiro quente que a paixão exala, que saiba
cheirar as crias antes de tocá-las; um tato esperto pronto para o arrepio, para o susto vindo de
uma aventura, do risco, dos perigos que o novo sempre engendra; uma propriocepção ajustada
com o telescópio possante para perceber as oscilações da primavera, a aridez do inverno, enfim,
um auxiliar poderoso para ajudar o corpo a mapear-se e a mapear o que está em sua volta.
Uma Semiótica do Corpo pressupõe uma pedagogia dos sentidos. E uma estética.”31
Os conceitos como cultura e comunicação, corpo e deficiência estão interligados. Nada se
exclui. Este trabalho dedica-se ao deficiente visual que por sua vez permanece excluído (na
maior parte das vezes) das exposições de artes plásticas. Este é o tema que vamos desenvolver e
apresentar ao leitor, nos próximos dois capítulos, visando “clarear as idéias” sobre o assunto.
O que não podemos esclarecer, nem responder ainda, é que nome dar às nossas
deficiências contemporâneas. Somos seres que estamos padecendo de uma cegueira apesar dos
olhos, uma falta de tato apesar de dedos, mãos e pele. Conclui-se que sofremos de carência tátil,
somos deficientes da mídia primária. Poderíamos sugerir que somos “deficientes primários?”
“O ser humano pode sobreviver a privações sensoriais extremas de outra natureza,
como a visual ou sonora, desde que seja mantida a experiência sensorial da pele.”( idem, 106)
31
Passos Labirínticos do Corpo.CAMPELLO, Cleide. Ghrebh, São Paulo, Revista de Semiótica,Cultura e Mídia,
Cisc,1o Encontro Nacional, out/2002, p4.
CAPÍTULO II
É permitido tocar
O deficiente visual em exposições de artes plásticas
“Toda pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade,
de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam”.
(Item I do artigo 27 da Declaração dos Direitos Humanos).
“...o êxito de um museu não se mede pelo número de visitantes que recebe, senão pelo
número de visitantes aos quais ensinou alguma coisa. Não se mede pelo número de objetos que
expõe, mas pelo número de objetos que os visitantes conseguiram apreender de seu entorno
humano. Não se mede por sua extensão, mas pelo espaço que o público pode , de maneira
razoável, obter um verdadeiro aproveitamento. Este é o museu. Senão, não é mais que uma
espécie de matadouro cultural”. ( George Henri Rivière)
“Quem quiser ir mais longe deve atravessar as imagens e levar em consideração sua
conexão com o corpo”.
(Kamper, 1999: 50)
2.1 Ausência de visão, o público ausente.
Em se tratando de portadores de uma deficiência sensorial, os deficientes visuais estão
incluídos no universo do ora chamado “público especial”, ora designado como “portadores de
necessidades especiais”. Os últimos dados da Organização Mundial da Saúde, de 1999, revelam
que 70% a 80% da população brasileira possuem algum tipo de problema na visão. É claro que
eles incluem, neste levantamento, todas as pessoas que utilizam-se de artefatos para correções
óticas, como óculos e lentes de contato.
Em nosso país, de acordo com o último recenseamento, há uma população de 16.573.937
de deficientes visuais, entre cegos e portadores de baixa visão. É no estado de São Paulo que esta
população é mais numerosa, com 2.575.176 com este tipo de déficit. Constata-se pelos dados que
constituem uma minoria, numa população de mais de 170 milhões de habitantes, mas que
poderia ser ainda mais reduzida.32
A psicóloga Maria Lúcia Amiralian33
estuda o cego do ponto de vista psicanalítico e
informa que a grande preponderância de sujeitos do nível sócioeconômico inferior e médio
inferior parece indicar que a cegueira é em grande parte um problema de saúde pública:
- 60% das cegueiras são evitáveis;
- 40%das cegueiras têm conotação genética;
- 25% das cegueiras têm causas infecciosas;
- 20% das cegueiras já instaladas são recuperáveis. (Amiralian, 1997:100)
É preciso neste momento esclarecer alguns pontos importantes para melhor compreensão
do leitor, com relação ao que estamos chamando de “deficiente visual”. Do ponto de vista
médico e educacional, os cegos constituem um grupo dentro de um conjunto maior de indivíduos
possuidores de problemas no órgão da visão, que são denominados deficientes visuais. Dentre
estes há também aqueles que, embora apresentem limitação da percepção visual, a utilizam para
muitos afazeres, e são classificados como sujeitos com visão residual.
Amiralian descreve que há um conceito, adotado pela OMS em 1972, rezando que cegos
são aqueles que apresentam acuidade visual de 0 a 20/200 (enxergam a 20 pés de distância
aquilo que o sujeito de visão normal enxerga a 200 pés), no melhor olho, após correção máxima,
ou que tenham um ângulo visual restrito a 20O de amplitude. A restrição do campo visual, a
chamada visão de túnel, também é considerada cegueira, porque impede a apreensão do
ambiente como um todo, uma das características fundamentais da percepção visual.
32
Os dados fornecidos constam no site: 33
Maria Lúcia Toledo Amiralian é docente do Instituto de Psicologia da USP, ministra disciplinas
relacionadas à deficiência visual nos cursos de graduação e pós-graduação. Podemos encontrar referências
diretas sobre estas questões em seu livro Compreendendo o Cego.
As pessoas que apresentam acuidade visual de 20/200 pés a 20/70 pés no melhor olho,
após correção máxima, são considerados indivíduos com visão residual. Pode-se também
observar a utilização do termo baixa-visão ou ainda visão subnormal.
Nas últimas décadas, o conceito de cegueira foi modificando-se, do técnico e autoritário,
acima descrito, a uma avaliação que dá ênfase à eficiência visual e não mais à acuidade. Sobre
esta questão temos que:
“Até a década de 70, a classificação dos sujeitos como cegos, e sua indicação para o
ensino braile, se baseava no diagnóstico oftalmológico. Entretanto, a constatação de que muitas
crianças liam o braile com os olhos levou os especialistas a uma reformulação do conceito, que
passou a centrar-se na maneira pela qual o sujeito apreende o mundo externo. Assim, passaram
a ser considerados cegos aqueles para os quais o tato, o olfato e a cinestesia34
são os sentidos
primordiais na apreensão do mundo externo. E sujeitos com visão residual, aqueles que, embora
prejudicados na visão, a utilizam satisfatoriamente em seu processo de
aprendizagem”.(Amiralian, 1997: 31)
Há inúmeras patologias com relação à visão, mas o que nos interessa demonstrar é
justamente a possibilidade de “se ver” de forma diferente. Por exemplo, sabemos que o
daltonismo35
é provocado por um defeito nas células da retina, que quase sempre é parcial e que
possui formas freqüentes como a cegueira para o verde e o vermelho e ocorre em certo grau, em
um a cada vinte homens (é muito mais rara em mulheres). O daltonismo total e congênito, ou
acromatopsia36
é muito mais raro (uma pessoa em cada 30 ou 40 mil).
No início de seu livro, O.Sacks faz muitas conjeturas sobre como é o mundo sem cores:
“seria possível que, inexistindo para eles a sensação de estar faltando alguma coisa, tivessem
um mundo que fosse tão denso e vibrante quanto o nosso? A seguir, a medida que vai
pesquisando, obtém algumas respostas, como a que escreve no caso de Knut,37
seu companheiro
de viagem e daltônico: “Knut, que nunca viu as cores, não sente a mínima falta delas; desde o
princípio, sentiu apenas a positividade da visão, e construiu um mundo de beleza, ordem e
significado com base naquilo que dispõe”. ( Sacks, 1996: 29)
Ainda num mundo sem luz é preciso distinguir os portadores de cegueira congênita e
portadores de cegueira adquirida. Isto se faz necessário, não só no que diz respeito à parte física,
mas é mais importante no que concerne ao fator psicológico.
“As pessoas cegas precisam utilizar-se de meios não usuais para estabelecerem relações
com o mundo dos objetos, pessoas e coisas que as cercam: esta condição imposta pela ausência
34
Cinestesia: sentido pelo qual se percebem os movimentos musculares, o peso e a posição dos
membros.Verbete em: Novo Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janriro.Ed.Nova
Fronteira/Folha de São Paulo.1995. 35
Esta e outras informações podem ser encontradas no livro do neurologista Oliver Sacks, A Ilha dos
Daltônicos nos oferece um outro olhar sobre o daltonismo. 36
Acromatopsia, os olhos não têm cones funcionais, responsáveis pelas cores e detalhe.Sacks, 1996:28. 37
Knut Nordbly era fisiologista e psicofísico, pesquisador da visão na Universidade de Oslo, especialista em
daltonismo, sendo ele mesmo daltônico.
de visão se traduz em um peculiar processo perceptivo, que se reflete na estruturação cognitiva
e na organização e constituição do sujeito psicológico. ( Amiralian, 1997: p. 21)
O processo perceptivo que fala a autora depende muito desta classificação. Os indivíduos
de cegueira congênita são aqueles que nasceram ou perderam a visão no primeiro ano de vida, ou
mesmo a tendo perdido nos primeiros anos, não tenham memória visual. Eles estabelecem suas
relações objetais e organizam sua estrutura cognitiva a partir da audição, do tato, da cinestesia,
do olfato e do paladar.
Os portadores de cegueira adquirida são aqueles que perdem o sentido da visão. Na maior
parte das vezes e dependendo da idade que isto ocorre, apresentam dificuldades de adaptação,
que física quer psicológica. Eles se esforçam para que formas, cores e imagens continuem
presentes, contam com a memória visual, lutam para que ela permaneça:
“Quando discernia ainda alguns bocados de luzes, estava feliz porque via ainda: guardo
a lembrança muito viva desses momentos de adeuses ao mundo visível. Mas a monocromia
invadiu a minha existência e devo fazer um esforço para conservar a paleta das nuanças, para
que mundo escape à monotonia e à transparência”. 38
Já mais familiarizados com nosso público, podemos agora pensar que a inteligência não é
afetada pela cegueira ou qualquer outro tipo de lesão nos olhos. Concordamos com o professor
Ganzarolli39
que em sua palestra disse:
“Afirmar de forma taxativa que a experiência estética é facultada apenas pelos olhos e
ouvidos implicaria a impossibilidade de que pessoas cegas e surdas desfrutem de toda e
qualquer forma de beleza, o que não corresponde à realidade”.
Um museu ou uma exposição de arte preenche uma função comunicativa, uma função de
participação, de “informar” no sentido amplo desta palavra. Existem para expor obras de arte,
que se incluem nos “textos criativos e imaginativos” de uma cultura. Se estes compõem a
questão cardinal da Semiótica da Cultura, o que entendemos por cultura e como ela nasce, em
que esfera? Poderia então aquele privado de um sentido, como aqui é o caso da visão, usufruir de
sua cultura?
O semioticista Ivan Bystrina, esclarece que primeiramente são ativados os códigos
primários ou hipolinguais, que regulam toda a informação presente no organismo e, portanto, na
vida biológica. Eles não processam signos, mas informações. “O signo é portador da
informação, mas nem toda informação é um signo”. Os códigos secundários são os códigos da
linguagem e as regras para a composição dos textos provém deles. Mas estes dois ainda não são
cultura. Somente a partir dos códigos terciários é que surge a cultura. (Bystrina, 1995: p.5-6)
38
Bavcar, Jornal O Estado de São Paulo, 18/08/2001. 39
Sobre a experiência estética de pessoas portadoras de deficiência: uma abordagem semi-aristotélica, Prof.
Dr. João Vicente Ganzarolli de Oliveira. Este artigo reproduz palestra pronunciada no dia 03/09/1998, na
cidade eslovena de Ljubljana, por ocasião do XVI Internacional Congress of Aesthestics.
Entretanto, a Semiótica da Cultura deve considerar a existência dos três códigos acima
citados porque não agem isoladamente, e sim um influencia o outro:
“Estes três níveis de códigos são intercomunicantes de maneira múltipla: um distúrbio
nos códigos primários (por exemplo, no metabolismo ou na dinâmica de funcionamento dos
neurotransmissores, determinadas psicopatologias, distúrbios metabólicos e hormonais) pode
afetar diretamente a capacidade criativa e imaginativa de um indivíduo: teríamos aí casos de
interferência dos códigos hipolinguais sobre os culturais”. (Baitello,1999:40-41)
O inverso também é verdadeiro. Podemos ter uma interferência dos códigos culturais nos
códigos da vida intraorgânica. Uma peça de teatro ou um filme podem nos emocionar e
causarem, pelo riso ou pelo choro, distúrbios orgânicos, como aceleração do ritmo cardíaco. Há
casos de pessoas que podem passar mal pelo simples fato de estarem torcendo pelo seu time
preferido.
“Não se pode entrar em comunicação com esse nível de realidade sem o suporte físico da
produção de signos.“Sem o aparelho fonador, sem as mãos, não é possível criar segundas
realidades. Mas temos que considerar que todos os processos psíquicos são produzidos no
corpo”. (Bystrina, 1995:14)
Percebemos o mundo pelos nossos sentidos. Tratamos neste trabalho de um público que
não pode contar com um deles, o da visão. Se os códigos sobre os quais falamos são
intercomunicantes, como é para os cegos transitar entre dois mundos de experiências?
No capítulo anterior, insistimos nas diferenças e sugerimos pensar em diferentes
culturas. A visão de mundo de uma cultura pode não ser a nossa, ou a do leitor, o que não
significa que esteja errada ou que nós tenhamos que nos impor.
“ A cultura é uma espécie de viés. É uma forma preconcebida sobre a maneira que nós
vemos, que vemos o mundo. O que me parece realmente essencial , é aceitar isto, tanto nas
outras culturas como na nossa própria cultura: a ação cultural deve ser sempre concebida
como uma busca do que está excluído, do que não está no censo comum, do que não é tolerado”.
(Edgar Morin:1995:27)
O deficiente visual parece não estar contemplado em espaços de exposições de artes
plásticas. Estaria ele ausente pela falta de visão dos responsáveis das mostras, permanentes ou
temporárias, ou há uma crença que sem a visão não se pode penetrar na experiência estética?
1.2 São Paulo abre os olhos.
A súbita ausência de visão pode ocasionar um momento de interiorização e percepção de
uma outra realidade, pode propiciar um “insight”. É o que exemplifica a cena bíblica do Novo
Testamento que nos conta a conversão de São Paulo.
Ele foi o grande apóstolo dos gentios, nasceu e cresceu em Tarso, então um dos centros
intelectuais do Império Romano. Seu nome hebraico era Saulo. Cidadão romano por nascimento,
pertencia a uma família de fariseus fervorosos. Já homem adulto, entrou em contato com o
cristianismo que passou a perseguir, guiado por seu cego e farisaico zelo pela Lei Mosaica. A
caminho de Damasco, Cristo apareceu, perguntou porque o perseguia e com sua intensa luz o
feriu com a cegueira, derrubando-o de seu cavalo.
“Levantou-se pois Saulo da terra , e tendo os olhos abertos, não via nada. Eles porém
levando-o pela mão o introduziram em Damasco. E esteve ali três dias sem ver, e não comeu
nem bebeu”. (Bíblia Sagrada, At,9-8)
Dias depois, Ananias, ao impostar suas mãos, fez com que Saulo recobrasse a visão.
“E no mesmo ponto lhe caíram dos olhos umas como escamas, e assim recuperou a
vista: levantou-se e foi batizado”. (ibidem, At,9-18)
A cena que desencadeou, aqui em São Paulo, uma “queda de escamas” ocorreu há quase
vinte anos. A primeira exposição adequada para o deficiente visual nos é relatada pela própria
autora do evento, Aracy A. Amaral, que foi diretora da Pinacoteca do Estado de São Paulo, de
1975 a 1979, recorda:
“Quando eu era diretora da Pinacoteca do Estado, ao chegar ao meu local de trabalho e
ao dirigir-me à minha sala de diretora, encontrei um guarda e duas pessoas atracadas em uma
escultura. Olhei para o guarda e perguntei: como pode? Aí ele respondeu: eles não enxergam!
Entrei na minha sala e fiquei pensando .... meu Deus do céu! Assim como estes vieram, podem
vir outras pessoas, que tenham a curiosidade de conhecer as esculturas. Eu devia me preparar
para poder receber este tipo de público, que não está contemplado nas exposições originárias
que eu organizo aqui”.40
Ao deixar aquele cargo, Aracy A. Amaral foi curadora da Bienal de São Paulo, em 1980.
Nos anos seguintes, foi diretora do Museu de Arte Contemporânea. Então teve a oportunidade de
colocar em prática sua idéia, que anos antes havia apenas imaginado:
“Quando saí da Pinacoteca eu já saí com aquela coisa me perturbando a cabeça... Eu
preciso prever nas minhas exposições uma mostra para deficientes visuais”.
Mas colocar em prática estas idéias requeria contar com o auxílio de outros profissionais
e de um departamento que lhe desse retaguarda. Sabemos que não era muito comum museus
abrigarem departamentos específicos para estas funções. O setor de Arte-Educação do MAC-
USP, que dois anos antes se esboçava, estruturou-se tendo em vista a amplitude da questão
educativa em museus.
“O projeto inicial (monitoria – atelier) apresentado no final de 1983 à então diretora
do MAC, Aracy A. Amaral, elaborado por Luciana Brito, Mônica Nador e por minha pessoa,
40
Em entrevista gravada 04/07/2002.
surgiu graças à proposta final das matérias pedagógicas do curso de Licenciatura Plena em
Educação Artística da FAAP, baseado na questão prática da monitoria em museus de arte. De
simples trabalho avaliativo em grupo, este projeto aprofundou-se de tal modo na questão, que
acabou por se transformar em uma proposta a nível profissional. Alimentado pela inquietação
frente à problemática da monitoria na 17A
Bienal de São Paulo - na qual participaram dois
membros do grupo (Luciana e eu), - pela preocupação pedagógica relacionada à inserção da
História da Arte no currículo escolar e pelo fascínio provocado pelo competente e poético
trabalho do artista – educador Paulo Portela e equipe na Pinacoteca do Estado, o projeto
adquiriu uma razoável consistência e credibilidade, fato que facilitou a sua implantação através
da minha contratação pelo MAC em janeiro de 1985”.41
Concretizou-se então o projeto, pioneiro e inclusivo, tendo sido uma exposição concebida
para atingir um público específico: o deficiente visual. Ela foi montada no Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo, ainda em sua sede no prédio do Ibirapuera.
Em 1985, sob a coordenação de Martin Grossmann e a curadoria de Aracy A. Amaral, foi
inaugurada tal mostra com o título: “Espacialidades e Materiais na Escultura Contemporânea”.
Permaneceu aberta do dia 27 de agosto a 13 de outubro daquele ano. Naquela ocasião, a curadora
Aracy A. Amaral, ao eleger as peças do acervo do museu, fez questão de diversificar a
materialidade das mesmas:
“Selecionei peças em cerâmica, em madeira, em metal, em vidro, em plástico, enfim
superfícies de diferentes texturas”.
Entretanto, não passou incólume por esta ousadia. O departamento museológico daquela
instituição opôs inúmeros obstáculos. Conservadores e restauradores argumentaram que se
tocadas, as peças de bronze poderiam sofrer desgaste pelo suor das mãos, as de vidro poderiam
quebrar-se, as de material plástico sofrer deformações, etc .Mesmo assim, a exposição foi
realizada com as esculturas originais.
Isto significou e ainda significa uma quebra de paradigma. Romper com padrões
estabelecidos tanto da sociedade como das instituições por ela reconhecidas e já ritualizadas, é
tarefa hercúlea, requer persistência e coragem. Tentar expandir o acesso à cultura aos deficientes
visuais em museus é transpor barreiras.
“Se então a cultura é o domínio da segunda realidade, criada pelo homem, uma das
condições de sua sobrevivência será sua permanente expansão. O homem cria, sua criação o
estimula e lhe modifica as habilidades e as capacidades , transforma-lhe a vida enfim. Isto por
sua vez o torna mais inteligente, hábil e competente para as novas criações. Desta maneira, é a
novidade que passa a ser o alimento desta outra realidade. Contudo, a novidade requer
coragem e ousadia, pois o novo também traz o perigo da ameaça. Para renovar e ampliar
fronteiras é preciso destruir muros e paredes já consolidados”. (Baitello, 1999:19)
41
Grossmann, Martin, “Interação entre Arte Contemporânea e Arte-Educação: subsídios para reflexão e
atualização das metodologias aplicadas”, São Paulo, ECA-USP, Dissertação de mestrado,1998.
O setor de Arte-Educação do MAC-USP, que havia sido recentemente implantado,
assumiu então a novidade. A partir do mês de abril de 1985, incumbiu-se de planejar e organizar
uma programação especial de atendimento para o público em questão.
“Apesar da pouca familiaridade inicial entre o setor de Arte-Educação e esta exposição,
visto que já estava prevista e direcionada em seu conteúdo, antes mesmo da existência do setor e
também pela não participação deste na seleção das obras, a experiência adquirida e os
resultados obtidos no transcorrer deste atendimento foram muito válidos”. ( Grossmann, 1998:
anexo,22- 5).
Dos vinte e dois grupos agendados, dezesseis puderam participar, pois o museu
conseguiu transporte gratuito. Estava também programado, além da visita, um atelier para que os
participantes pudessem fazer suas criações, livremente. Esta orientação contou com a
colaboração da ceramista Sílvia Maria V.S. do Carmo.
Martin Grossmann foi vice-diretor do MAC, de 1999 a 2002. Em anexo à sua tese de
mestrado registrou suas avaliações finais, como esta:
“Atendemos grupos opostos como vendedores ambulantes de vassouras, visita esta
infrutífera em todos os sentidos por serem muito carentes; e um grupo da ADVA, associação
esta mantida por profissionais liberais, que por sinal foi um dos grupos mais interessados e
participantes de toda a exposição. Foi, portanto, com os adultos e com os mais preparados e
informados que obtivemos uma grande resposta a nível intelectual, apesar de haverem outros
níveis, igualmente importantes, de retorno.
Houve casos em que o grau de encantamento ou descoberta em relação às possibilidades
da arte eram tão pessoais e empírica, não havendo quase espaço ou necessidade de
interferência ou esclarecimento por parte da monitoria, que causavam fortes emoções para
quem as acompanhava”.
Perguntamos à Aracy A. Amaral se ela podia lembrar-se das obras que foram expostas.
Ela nos mostrou um catálogo em braile, que ainda guarda em sua residência, mas que para ambas
é incompreensível. Disse-nos então para irmos à biblioteca do MAC-USP, em busca de outros
registros desta exposição. Assim o fizemos, mas lá também só há um catálogo em braile.
Sabemos que, com o passar dos anos, os relevos desta escrita ficam prejudicados quando não são
mantidos de maneira e locais adequados. Com isso, não podem ser lidos mesmo por um
deficiente visual.
Mas a intenção daquele museu era a de ampliar as inovações. Outros dois importantes
trabalhos organizados a partir de 1987, dentro do Projeto “Arte e Minorias” foram,
primeiramente, a exposição “Arte e Loucura: limites do imprevisível” (março-abril de 1987),
com obras de artistas internos do Hospital do Juqueri, organizadas por Heloisa Ferraz, a partir do
acervo constituído por Osório César. A outra foi “Arthur Bispo do Rosário: registro de minha
passagem pela terra” (março de 1990 ), com curadoria de Frederico Morais, incluindo neste
evento o Simpósio sobre “Arte e Loucura” no MAC-USP, Cidade Universitária, sob a
organização de Ana Mae Barbosa.
Aquelas foram exposições esporádicas. Nenhum museu ou espaço de arte havia pensado,
até então, em São Paulo, em manter um trabalho permanente de exposições adequadas, não só
para deficientes visuais, mas para outros tipos de deficiência. No próximo item, descrevemos um
projeto que tem dado continuidade a mostras inclusivas.
1.3 O Público Especial e o Toque Revelador.
Visitantes inesperados incomodam, constrangem e nos incitam a tomarmos algumas
providências. Parece ser esta uma constante, já que toda vez que isto acontece os responsáveis
pelos espaços expositivos, ao menos começam a se questionar. Vejamos o que nos relata
Amanda P. Tojal, curadora das exposições para o “Público Especial” do MAC-USP:
“Curiosamente, o simples fato da presença destas pessoas causava um enorme
constrangimento aos profissionais do museu, que ocasionalmente se deparavam com esses
grupos circulando pelos espaços daquela instituição, e o que era mais embaraçoso, os próprios
educadores, que a princípio deveriam ser os profissionais mais indicados para recebê-los, se
sentiam, nestas ocasiões, despreparados para irem ao seu encontro, diferentemente do que
ocorria ao receber o público em geral”.42
Em 1991, a Divisão de Arte-Educação do MAC-USP, sob a direção de Ana Mae Barbosa,
implantou o Projeto “Museu e a pessoa Deficiente”, que a partir de 1998 passou a chamar-se
“Museu e Público Especial”. Entende-se por este público o portador de deficiências sensoriais
(auditivas e visuais), físicas e mentais.
O Museu de Arte Contemporânea de São Paulo exerceu papel de vanguarda dentro desta
área, sendo o único museu do país a oferecer um programa permanente de atendimento ao
público especial. Após a concretização daquela primeira etapa, o Projeto “Museu e Público
Especial” passou a compartilhar os espaços expositivos inaugurados na nova sede do MAC-USP,
localizada na cidade universitária, em outubro de 1992. A exposição “O Toque Revelador:
Esculturas Contemporâneas” inaugurou-a, juntamente com a exposição “A Sedução dos
Volumes – Os Tridimensionais do Mac”, esta sob a curadoria de Daisy Peccinini.
O fato inovador deste programa em relação a outros museus, ocorre tanto pelo aspecto
ininterrupto das exibições “O Toque Revelador” quanto pela valorização de localização e
integração deste espaço museológico. Havia, consequentemente, uma interação do público
especial com todas as obras de arte expostas no edifício sede. Desde a implantação deste
programa até a presente data, foram realizadas cinco versões destas exposições, sempre
utilizando obras do acervo do próprio museu.
42
TOJAL, Amanda P. da Fonseca, “Museu e Público Especial”, Dissertação de Mestrado, ECA-USP, 1999,
p.68 ).
A primeira exposição chamou-se: O Toque Revelador: Esculturas Contemporâneas. O
período foi de outubro de 1992 a setembro de 1993. Dentre as obras escolhidas estavam:
- Composição, de Wander Bertoni, 1956, madeira.
- Auto-Retrato, de Ernesto di Fiori, 1945, bronze.
- Madona da Ternura, de Marina Nunes del Prado, 1945/51, mármore.
Figura 1
A escolha de obras tridimensionais, com técnicas e materiais diversos como bronze,
madeira, alumínio e granito, possibilitou a aproximação mais concreta de duas tendências
importantes da arte deste século: a figuração e a abstração.
As obras expostas foram as originais, sendo que a equipe de restauradores e
conservadores do museu trabalhou nesta seleção, indicando aquelas que eram passíveis de serem
manipuladas sem correrem nenhum risco. Ficou estabelecido, no entanto, que por questões de
segurança, as obras selecionadas poderiam ser somente manipuladas durante as visitas
orientadas, sempre acompanhadas pelos educadores responsáveis por esta programação, dentro
de regras específicas de limpeza e uso correto das mãos.
Desde o início deste projeto, como as exposições são pensadas para que haja um percurso
interativo e sensorial, abrindo as portas para portadores de todo tipo de deficiência, a disposição
museográfica sofre alterações. Assim, a curadoria não se preocupa apenas com a montagem para
que fique esteticamente correta, mas procura dispor as obras para que estejam disponíveis,
confortavelmente, para todos os visitantes.
Para as pessoas com baixa-visão foram providenciadas etiquetas em tinta com os
caracteres ampliados. Para as pessoas com deficiência visual total, havia a ficha técnica em
braile. (Fig. 2 )
Figura 2
Com relação à ação educativa, o MAC-USP adotou e ainda adota a “Proposta Triangular
do Ensino da Arte”. Ela foi implantada no Brasil na década de 80, por Ana Mae Barbosa e
deriva, segundo sua autora de “uma dupla triangulação”. Diz ela:
“A primeira de natureza epistemológica, designa os componentes do
ensino/aprendizagem por três ações mentalmente e sensorialmente básicas, quais sejam: criação
(fazer artístico), leitura da obra de arte e contextualização. A Segunda triangulação está na
gênese da própria sistematização originada em uma tríplice influência, na deglutição de três
outras abordagens epistemológicas: as Escuelas al Aire Libre mexicanas, Critical Studies inglês
e o Movimento de Apreciação Estética aliado ao D.B. AE. americano”.43
Esclarece ainda a mesma autora que ao designar a “contextualização” e não a História da
Arte como uma das ações presentes em sua abordagem, a proposta triangular “amplia o espectro
da experiência a qual pode ser histórica, social, psicológica, antropológica, geográfica,
ecológica, biológica, etc., associando-se o pensamento não apenas a uma disciplina, mas a um
vasto conjunto de saberes disciplinares ou não”. (ibidem: 38)
O material didático foi concebido pela equipe do projeto que elaborou pranchas em papel
triplex e cartolina colorida (azul, vermelha, verde e amarela), contendo linhas e formas
43
Apud Tojal, Amanda .Ana Mae Barbosa, Tópicos Utópicos, Belo Horizonte, C/Arte, 1998.pp. 33-34.
geométricas ou orgânicas em relevo, referentes aos aspectos estruturais das obras de arte
presentes na exposição. Havia também pranchas em papel triplex e cartolina (na cor preta),
apresentando figuras em relevo referentes às silhuetas ou sombras bidimensionais, onde cada
participante tinha como tarefa associá-las (de forma visual ou tátil), às obras tridimensionais
originais desta exposição, como podemos observar na figura 3.
Figura 3
Após as primeiras visitas, de grupos de pessoas portadoras de deficiências visuais, sentiu
se a necessidade de um trabalho mais específico de conscientização espacial e localização destes visitantes. Por isso, pranchas referentes à fachada e à planta baixa do espaço expositivo do
museu foram elaboradas. Elas foram confeccionadas em papel triplex e fotografia.
No final de cada visita, tanto nesta como nas outras que descreveremos, os participantes
eram estimulados a realizar práticas artísticas, com diferentes materiais. Podiam ser de técnica de
modelagem, dobradura em papel, desenho e outros recursos. Naquela, a atividade desenvolvida
foi a de modelagem, feita com material industrial específico.
Amanda Tojal constatou que o período de duração das visitas deveria se estender, pois
este público necessita de um maior tempo para manipular e apreciar as obras, além de solicitar
um tempo maior para o diálogo e troca de experiências, tanto com os educadores como também
com os colegas participantes. Continua a mesma autora a afirmar que:
“Durante as primeiras visitas, ficou patente para a equipe responsável por esta
programação que o simples ato de tocar e apreciar obras de arte representava para estas
pessoas uma experiência muito mais complexa e enriquecedora do que a equipe em um primeiro
momento podia imaginar, obrigando-a a repensar suas estratégias de acompanhamento e
orientação durante a exploração das obras realizadas por estes participantes, visando um
trabalho dirigido cada vez mais à estimulação e pesquisa da bagagem pessoal de cada
participante, evitando as influências muito diretivas demonstradas pelos educadores, muitas
vezes ansiosos em obter respostas “pré-determinadas” destas pessoas durante o seu processo
criador”. (ibidem: 83)
Em 1993, o MAC-USP inaugurou a segunda versão da exposição O Toque Revelador,
apresentando a mostra Esculturas em Bronze. (Setembro de 1993 a agosto de 1995).
Para esta foram selecionadas dez esculturas do acervo, a saber:
- Duas Figuras, Pierre Charbonnier, sem data;
- Pequeno Fauno, Marcelo Macherini, 1950;
- Pássaro, Liuba Wolf, 1963;
- Signo Solar, Marta Colvin, 1962 ;
- O Brasileiro, Ernesto de Fiori, 1938 ;
- Briga de Cães, Agenori Fabri , 1952 ;
- Eco, de Sonia Ebling, 1963;
- Composição 5, 1960;
- Casal, Pola Rezende, 1948;
- Jovem Fúria, Théodore Roszak, 1948.
Com relação ao projeto museográfico não houve grandes alterações. As obras estavam
organizadas aos pares, sendo que havia cinco mesas com duas obras em cada uma. Sugeria-se
um diálogo entre a temática e suas linhas estruturais. Esta mostra ainda pode ser realizada com
obras originais do acervo e integrava-se também no espaço sede, convivendo com todos os
outros trabalhos, como podemos observar na figura 4.
Figura 4
Para facilitar o entendimento, principalmente dos deficientes visuais, mantiveram a
utilização de relevos sobre a cartolina, que transpõem do tridimensional para o bidimensional
(Fig. 5). Entretanto, inovou-se o material didático, que foi enriquecido com chapas de metal de
diferentes texturas, a fim de que o participante pudesse sentir que, mesmo sendo todas as
esculturas em bronze, diferentes texturas podem ser dadas sobre o referido metal. (Fig. 6)
Figura 5 Figura 6
Para esta exposição foi produzido o primeiro catálogo em braile e as atividades
preparadas para o atelier previram o manuseio com argila. Se até aqui todas as exposições foram
preparadas com esculturas, a terceira versão do Toque Revelador aceitou enfrentar um novo
desafio.
“Como eu gostaria de conhecer o que Anita Malfatti pintava... “Esta frase, dita por um
jovem deficiente visual interessado nas leituras em braile a cerca do movimento Modernista
Brasileiro durante uma visita à exposição “O Toque Revelador: Esculturas em Bronze”, e
muitos outros depoimentos freqüentemente prestados pelo público portador de deficiências
visuais durante a programação educativa oferecida por este projeto, estimulou a equipe de
educadores a enfrentar o desafio de organizar uma nova exposição cujas obras fossem não mais
tridimensionais, mas bidimensionais”. (Tojal, 1999 :96)
A mostra foi de um só artista: “Alfredo Volpi”. Inaugurada em setembro de 1995 esteve
aberta ao público até fevereiro de 1997. O acervo do MAC conta com inúmeras obras deste
artista. Foram selecionadas oito de suas pinturas, todas têmpera sobre tela. A seleção recaiu neste
artista, pois sua produção apresenta clareza e boa definição, tanto nos elementos formais, como
também de toda composição, de maneira a facilitar a assimilação e compreensão das imagens e a
viabilização de elaboração de reprodução em relevo. Os temas de suas pinturas são populares,
de fácil reconhecimento. O artista preenche suas telas com brinquedos, barcos e fachadas de
casas. Suas composições adquirem uma estrutura geométrica, já que se contamina com o
concretismo.
Os quadros expostos foram:
- O barco da morte, 1961 ;
- Bandeirinha, 1958 ;
- Casas, 1955 ;
- Carrinho de Sorvete, 1953 ;
- Barco com bandeirinhas e aves, 1955;
- Mané Gostoso, 1953 ;
- Casas, 1953;
- Carnaval Infantil de Cananéia, 1953.
O projeto museográfico para esta mostra apresentou soluções diferentes, já que se tratava
de telas.(Fig.7) As originais foram afixadas em painéis, como habitualmente é feito em
exposições. Junto a eles, para apoiarem as reproduções, foram então providenciadas mesas de
altura e inclinação adequadas à aproximação de pessoas (na posição em pé ou sentada), fixadas à
frente dos painéis expositivos.
Figura 7
Esta mostra exigiu a elaboração de diferentes materiais para auxiliar o desenvolvimento
da apreciação estética. Foram elaboradas dezesseis reproduções visuais táteis em relevo, duas
para cada tela, feitas em E.V.A.44
Oito reproduções foram concebidas segundo os critérios cromáticos (aproximados das
cores das obras originais) e as oito reproduções restantes concebidas segundo critérios
acromáticos contrastantes (branco e preto) e texturizados, para serem colocados em pares. Uma
reprodução colorida ao lado de sua correspondente em branco e preto, como podemos notar na
figura 8.
Figura 8
Amanda Tojal justifica a elaboração de duas, e não somente de uma reprodução visual e
tátil, correspondente a cada obra original. De acordo com uma pesquisa, realizada em 1994, com
44
E.V. A. é um material de borracha, selecionado por ser considerado pelos profissionais ligados às áreas de
Educação Especial e Deficiência Visual como o que melhor se adapta às atividades de manuseio pelo tato,
além das vantagens que possui para a execução de materiais didáticos, durabilidade e custo acessível no
mercado).
um grupo de portadores de deficiências visuais congênitas e adquiridas, da Associação Amor
Sem Fronteiras, foram avaliadas três reproduções, baseadas em uma pintura de Volpi Barco com
bandeirinhas e aves. A primeira foi executada em alumínio (com apenas contornos desenhados
em relevo). A segunda, em borracha colorida e, a terceira, em borracha branca e preta. As duas
últimas reproduções tinham como característica a elevação da figura do fundo da composição do
quadro para o relevo. Segundo os avaliadores, estas duas últimas permitiam uma leitura mais
definida e adequada das imagens.
Nas duas exposições anteriores, como eram esculturas, a atividade mais desenvolvida no
atelier foi modelagem em argila. Nesta, os participantes experimentaram técnicas bidimensionais
de desenho e colagem. Dois catálogos foram produzidos, um em tinta e outro em braile.
Como descrito até agora, estas exposições foram montadas na sede do referido museu e
conviviam com o acervo. Entretanto, ainda no período da mostra de Volpi, a então diretora do
MAC-USP, Lisbeth Rebollo, sugeriu a criação de um anexo em frente à sede do museu, para que
lá fossem desenvolvidas as exposições do Toque Revelador e a ação educativa.
Assim, a quarta exposição foi montada no anexo. Intitulou-se Retratos e Auto-Retratos,
sendo inaugurada em março de 1997 e permanecendo até abril de 1999. Tinha por proposta
apresentar uma leitura baseada nas tendências estéticas e históricas, a partir da temática do
retrato, das representações mais realistas até as mais expressionistas.
A concepção museográfica seguiu a mesma montagem da anterior, com mesas, painéis e
programação visual em tinta e em braile. Entretanto, agrega-se a este projeto outra inovação.
Exibia-se, em uma ante-sala, localizada na entrada do prédio, maquetes visuais e táteis do espaço
externo do edifício como também do espaço interno do prédio, com o propósito de orientar e
localizar principalmente as pessoas portadoras de deficiências visuais sobre a arquitetura do
museu e suas possibilidades de locomoção e orientação no espaço expositivo. (Fig.9)
Figura 9
Foram selecionadas dez obras inspiradas naquela temática. Oito pinturas e duas
esculturas, organizadas segundo um percurso visual e tátil:
- Auto-Retrato, Ernesto de Fiori , bronze, 1945 (esta obra original podia ser tocada)
- Auto-Retrato, Guignard, 1931, óleo sobre tela, ;
- Auto Retrato, Antonio Gomide, 1930 ;
- A Boba, Anita Malfatti, 1915/1916, óleo s/tela, 61x 50,6cm ;
- Auto-Retrato, José Pancetti, 1940 ;
- Perfil de Zulmira, Lasar Segall,1928 ;
- Auto-Retrato, Marc Chagall, 1914 ;
- Retrato de Hilde Weber, Mário Zanini, 1938 ;
- Retrato de Maria Leontina, Pola Rezende, 1948 ;
- Retrato de Joaquim do Rego Monteiro, 1920.
Figura 10 Figura 11
Na ilustração (Fig.10) temos a vista geral da mostra e duas reproduções para cada obra,
dispostas na mesa colocada abaixo da tela. Um novo recurso foi utilizado no que diz respeito à
reprodução tátil das obras bidimensionais. Neste caso, foi a artista plástica e arte educadora
Otacília Baeta que elaborou as oito reproduções das pinturas, desta vez feitas em relevo. Estes
foram realizados a partir do processo inicial de modelagem em argila, depois modelagem em
gesso e finalizados pela técnica de papel machê, com acabamento em verniz.
Esta nova concepção de reproduções em relevo não descartou, contudo, a inclusão das
reproduções executadas em borracha acromática contrastante (branca e preta) lisa ou texturizada.
Estas últimas foram avaliadas pela equipe do projeto como muito importantes no apoio à
decodificação das obras bidimensionais, principalmente nas atividades de apreciação das obras
realizadas pelos portadores de baixa visão. (ibidem:113)
Contando com o apoio financeiro da agência Vitae, a equipe ampliou suas pesquisas e
aumentou o número de exemplares de catálogos. Como proposta de atividade no atelier foi
desenvolvida a atividade de modelagem de rostos, em argila. A figura 12 mostra um trabalho
realizado por uma jovem de 14 anos, cega congênita, da Instituição Padre Chico. Esta menina
nasceu sem os globos oculares, embora ela os represente neste auto-retrato.
Figura 12
“Todos os organismos são porosos. Só os mortos estão fechados para
as trocas com o entorno. É por isso que animais ou homens isolados acabam por perceber seus
próprios corpos como um objeto exterior. As situações de privação sensorial revelam a que
ponto todo ser vivo isolado busca desesperadamente estimular-se”. (Cyrulnik,1997: 112)
Para comemorar os sete anos de existência deste projeto, Amanda Tojal, preparou para
1999 O Toque Revelador: a poética das formas. Logo na entrada, havia duas maquetes: uma da
parte externa do edifício do anexo e a outra da parte interna, com suas divisórias.
No que diz respeito às obras, seis esculturas foram expostas:
- Hidekazu Hirano, Transfiguração II, 1967, madeira, 50,0 x 50,5 x 48,0 cm.
- Karl Hartung, Forma Alada, 1955, bronze, 28,0 x 35,0 x 37,0 cm.
- Laci Freund, Bach 3o Concerto Brandemburguês, 1961, cimento, 57,8 x 71,3 x
32,7cm.
- Nicolas Vlavianos, Estudo de Pássaro, 1971, cimento, amianto e ferro, 50,0x 78,0 x
9,0cm.
- Rubem Valentim, Sem Título, 1968, acrílica sobre madeira, 63,3 x 47,0 x 7,0cm.
- Walter Linck, Vegetativo no III, 1958, ferro e aço, 100,3 x 181,0 x 8,0cm.
Nesta quinta e última mostra, (até a data do presente trabalho), por determinação da
direção e equipe museológica, não se podia tocar nas obras originais. Desta forma, a equipe
providenciou réplicas45
que respeitaram a diversidade dos materiais das obras originais. Aquelas
eram desmontáveis, permitindo uma interação ainda maior do visitante, pois podia manipular os
objetos contando com um sistema de encaixes.
Esta mostra esteve aberta ao público por dois anos, até setembro de 2001. Foi através
deste último trabalho que esta autora pode conhecer o projeto do MAC-USP. Tivemos também a
iniciativa de levarmos o artista plástico Luiz Sacilotto, no dia 07 de julho de 2000, já que
tínhamos em mente preparar uma exposição adequada para o público especial.
45
As réplicas foram executadas pelos seguintes profissionais: Dayse de Andrade Tarricone, Vilson Toledo e
João Mittli.
Ano passado, registramos uma entrevista com Amanda Tojal, para que pudéssemos
esclarecer melhor algumas questões que ainda nos instigavam. Perguntamos o que ocorria com
as mostras já executadas e todo o material produzido.46
Ela nos contou que uma das propostas
deste projeto é divulgar seus resultados. Assim, previu-se para as três últimas exposições a
itinerância, sendo que todo o material, como mesas e outros itens podem ser desmontados. No
que concerne às obras é preciso salientar que não podem sair do museu. Portanto, no caso das
pinturas, expõe-se as fotos, feitas no tamanho da tela original. Se esculturas, como a última,
utilizam-se só as réplicas, não sendo necessário o deslocamento das originais. Assim, elas já
percorreram tanto as cidades do estado de São Paulo, em instituições e museus como outros
estados, caso de São Luiz do Maranhão.
O leitor pode desejar, neste momento, levantar ainda algumas dúvidas, como por
exemplo, estas: Por que nas iniciativas tomadas no início utilizaram as obras originais e depois
não mais? Que riscos correm as obras ao serem tocadas? Para elucidar estas indagações, fomos
procurar a Sra Isis Baldini47
, que emitiu o seguinte parecer:
“Em épocas passadas havia pouca informação sobre o risco dos danos ocasionados
pelo toque. Deve-se evitar o contato físico com as obras. Mesmo uma escultura em bronze,
quando tocada, corre riscos. Há sempre um desgaste e a gordura das mãos deteriora o
material. Sou contra permitir que obras do acervo do museu sejam tocadas, sendo que é muito
mais sensato que sejam feitas réplicas para este fim. Se houve ou há ocasiões em que obras
originais são disponibilizadas para isto, depende da postura do diretor de cada instituição. Há
casos de diretores que permitem isto”.
Posturas divergentes talvez expliquem também a mudança de local do Toque Revelador,
que de dentro da sede do museu foi para o anexo. Já foi aqui citado que a partir de 1996, sob a
diretoria da Lisbeth Rebollo, as exposições e toda a ação educativa, passaram a ocupar outro
edifício, em frente a atual sede do MAC, conhecido como “anexo”. Perguntamos a Amanda sua
opinião sobre esta mudança e transcrevemos suas palavras:
“Há perdas e ganhos. O público especial perde o convívio com as outras obras do
acervo. Quando tudo estava e próximo, o visitante tinha a oportunidade de participar de tudo.
O que se ganha é que há mais espaço e liberdade de trabalharmos com a ação educativa,
aproveitamos melhor para realizarmos outras atividades, como as do atelier”.
Quisemos saber quais são os projetos futuros e Amanda informa que, atualmente, as
perspectivas do projeto “Museu e Público Especial” voltam-se para mais um programa, desta vez
incluindo uma pesquisa e uma curadoria de toda a equipe da Divisão de Educação do MAC. Ela
nos conta que enquanto a equipe aguarda verbas para dar continuidade ao trabalho de inclusão, o
projeto continua a sua programação com exposições itinerantes e programações educativas,
realizadas a partir das exposições anteriormente citadas.
46
Entrevista gravada dia 09/9/2002 47
Especialista em conservação e restauro, há quinze anos responsável pela parte de conservação de papéis no
MAC-USP. Nos últimos três anos, ocupou o cargo de Diretora da Divisão de Preservação e Documentação
do referido museu.
Somente no ano de 2002, as exposições percorreram quatro instituições culturais. Uma na
capital, duas no grande ABC e uma na cidade de Belo Horizonte, somando um atendimento
aproximado de 2500 pessoas portadoras e não portadoras de limitações.
Após este relato, passamos a fazer um breve exame em outros museus de São Paulo, não
excluindo o MAC-USP, com o intuito de saber o que pode ser tocado se porventura um
deficiente visual quiser fazer uma visita.
1.4 Os museus mais vistos (ou não vistos) de São Paulo.
Segundo o International Council of Museum-ICOM, “ o museu é uma instituição
permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao
público, que coleciona, conserva, pesquisa, comunica e exibe para o estudo, a educação e o
entretenimento, a evidência material do homem e seu meio ambiente”.
O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP)48
foi criado
em 1963, quando a Universidade de São Paulo recebeu de Francisco Matarazzo Sobrinho, então
presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo, o acervo que constituía o MAM. Além
deste acervo ter sido transferido para a USP, Matarazzo e sua mulher, Yolanda Penteado,
também doaram suas coleções ao novo museu. Outras doações particulares enriqueceram o
acervo, bem como as obras internacionais cedidas pela Fundação Nelson Rockefeller e prêmios
das Bienais Internacionais de São Paulo. Hoje, o MAC –USP possui como patrimônio cultural,
cerca de oito mil obras, entre óleos, desenhos, gravuras esculturas, objetos e trabalhos
conceituais.
Ligado à pesquisa universitária, o principal objetivo do museu tem sido, ao longo
dos anos, tornar a cultura acessível a todas as classes sociais. Assim o MAC realiza
exposições com obras de seu acervo, oferecendo ao público os mais variados recortes e
amplas possibilidades de percursos e leituras pela arte moderna e contemporânea.
Pode ocorrer ao leitor perguntar se hoje, inesperadamente, chegar um visitante deficiente
visual ao MAC-USP, qual é a situação atual. Coincidência ou não, relatamos a seguir este fato
verídico, muito pertinente. No dia 04 de setembro de 2002, esta autora estava prestes a entrar na
biblioteca do MAC-USP, (cujo acesso é o mesmo que para o museu) quando encontrou um
grupo que já estava de saída (eram 10:30 horas). Eram três mulheres e um rapaz deficiente
visual, chamado Patrick. Eles procuravam algum responsável pelo museu, a fim de registrarem
uma reclamação. Como ali só havia um segurança, dirigiram-se a mim, perguntando se eu
poderia levar a queixa à diretoria.
Apresentei-me, disse que não fazia parte daquela instituição, mas que poderia sim
endereçar tal reclamação. É claro que fiquei atenta ao que diziam, pois é meu tema para esta
dissertação. Dali em diante, passamos algumas horas juntos. Disseram que eram da Universidade
48
Informações do (www.uol.museusp.com.)
Federal de Campos, Rio de Janeiro e lá estavam para o I Congresso Nacional de Psicologia.
Como estavam com tempo naquela manhã, foram visitar o acervo do MAC-USP.
O rapaz estava acompanhado por sua esposa e por duas professoras da Universidade, uma
delas sua orientadora, Dra Sylvia Beatriz Joffily. Ela dedica-se aos estudos sobre representação
mental e consequências cognitivas em pessoas com perdas sensoriais. A outra professora mora
em Paris e faz seus estudos de doutorado na Sorbonne. O grupo estava surpreso com o fato de
que naquele espaço nada havia para Patrick tocar. O segurança lhes disse que havia uma
exposição adequada para tal público no anexo, mas que atualmente não estava funcionando. O
grupo, apesar de não conhecer tal projeto, disse que não achava interessante manter apartado tal
público, que isto não parecia nada inclusivo. Nas palavras de Patrick:
“ Pensei que aqui havia, junto ao acervo, algumas peças que eu pudesse tocar ou ter
acesso através de réplicas ou material adequado para meu caso. Tive a oportunidade de visitar
o Museu do Louvre e o British Museum, lugares estes onde pude aproveitar minha visita.
Infelizmente aqui, os seguranças rapidamente vieram em minha direção e avisaram aos meus
acompanhantes que por favor, não deixassem que eu tocasse em nada ”.
Após algumas horas de conversa, trocamos nossos endereços eletrônicos e continuamos
nossa comunicação via “mídia terciária” (Pross). Por este mesmo meio, pedi então ao Patrick que
registrasse por escrito seu depoimento e aqui transcrevo:
“Certamente foi frustrante não ter podido sorver um museu tão interessante e rico em
peças de enorme valor artístico como o MAC. Quando cheguei ao museu em companhia de
minha orientadora de pesquisa de mestrado, minha esposa e mais uma amiga, me entristeci com
a forma desinteressada e fria como fui tratado. Sou deficiente visual há catorze anos e,
infelizmente, com raríssimas exceções, estive em lugares, no Brasil, onde qualquer um estivesse,
de fato, preocupado com o meu direito de consumidor de arte, ciência, lazer, trabalho, acesso,
respeito. Sempre estão, todos, sem saber o que fazer e sem qualquer tipo de constrangimento por
informar a um deficiente visual (que por sinal não é nenhum esmolante) que não há acesso, não
há equipamentos adaptados, não existem cardápios em braille, nem livros, nem placas, muito
menos obras de arte. Eu, sinceramente, me sinto como se de algum lugar uma voz “ocupada”
fosse me dizer ou perguntar que está querendo um cego num lugar como aquele !!?? Por que
não está em casa ouvindo rádio?
Infelizmente assim foi no MAC. Não pude tocar em nenhuma obra, nem mesmo me
aproximar, pois todas tinham um dispositivo de alarme que apitava quando alguém pisava numa
maldita faixa. Muitas obras eram de bronze, de gesso, mármore, madeira, etc...Materiais que
não se desgastam com o toque de uma mão-olhos!!
Os funcionários comunicaram que um dia, em algum tempo, houve uma exposição de
réplicas de peças do museu numa ala construída especialmente para os deficientes, mas que
atualmente essa ala está desativada. Como disse minha amiga, os cegos também devem ter sido
“desativados”. Além do mais, porque construir uma ala em separado ?? Para manter os
deficientes longe dos olho ? Sejamos sinceros: não há qualquer chance de se construir uma
sociedade justa e democrática enquanto muitos de nós estivermos cuidadosamente sendo postos
em “sítios” de exclusão como essas malditas “alas”.
Só pude comemorar uma coisa com tal visita: a oportunidade de ter me entristecido de
novo! Não estranhem o que digo! Sei comigo que, e pude notar isso lá, ainda . Não estou pronto
e espero nunca estar, para rir e tolerar a iniquidade”.49
E se naquela manhã, ao invés de terem ido ao MAC-USP tivessem ido a outros museus
desta cidade, considerados os melhores, como Patrick seria recebido? Poderia ele ir com suas
“mãos-olhos?” Vejamos o que ocorre em outras instituições como o MASP, MAM e Pinacoteca
de São Paulo.
O Museu de Arte de São Paulo (MASP) foi fundado em 1947, numa iniciativa do
empresário das comunicações Francisco de Assis Chateaubriand, que cedera dois andares do
prédio de seus Diários Associados para sua instalação. É o mais importante museu de arte
ocidental da América Latina. Abriga 3.487 obras, entre elas 850 pinturas que pertencem a um
período que vai da Idade Média até as primeiras décadas deste século. Participa do circuito
internacional das artes, recebendo exposições temporárias da Europa e dos Estados Unidos. Foi o
primeiro a prever alguma ação educativa. Mesmo antes de ser aberto ao público, o MASP
inaugurou sua primeira atividade, com a intenção de que ela integrasse a estrutura do museu: o
Club Infantil de Arte.
Foi a primeira experiência com crianças dentro de um museu na América Latina. Era
freqüentado por filhos de artistas e intelectuais, que viam chegar os caixotes de madeira com as
obras trazidas diretamente do porto de Santos. O clube foi coordenado pela socióloga Suzana
Rodrigues, (hoje com 82 anos, mora em Nova Viçosa, pequena cidade do litoral baiano). 50
Hoje quem coordena o setor educativo do museu é Sr. Paulo Portela. Em nossa
conversa, ele disse que, no momento, não há possibilidade de providenciar uma estrutura que
receba o visitante com deficiência visual. Isto tem um custo alto e não há verbas para tal
investimento.
Outro museu da cidade de São Paulo é o Museu de Arte Moderna, com sua sede no
Ibirapuera. Este foi criado na década de 50 é o mais antigo museu de arte moderna do país. Tem
cerca de duas mil obras quase todas produzidas no Brasil, a partir da década de 20. Em sua
maioria são gravuras e objetos, além das pinturas e esculturas. Entre os pintores conta com obras
de Tarsila, Volpi, Tomie Otake, Baravelli, entre outros. Ao longo do ano apresenta cerca de vinte
exposições, entre mostras do acervo, retrospectivas e coletivas. O MAM mantém também na
parte externa do museu, no jardim do Ibirapuera, um acervo de vinte e duas esculturas que ficam
no tempo. Se Patrick tivesse ido ao MAM, não poderia tocar obra alguma de seu acervo, e, com
relação às esculturas, como são grandes, nada representaria se as fosse tocar.
Por fim, podemos comentar a postura da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ela
mantém o mais importante acervo de pintura do século XIX e obras do século XX, pinturas,
49
E-mail recebido dia 25/09/2001. 50
Revista Educação, número 228, abril 2000, Ed. Segmento, p.32
esculturas, etc. São mais de cinco mil obras. Se, a qualquer momento, chegar um deficiente
visual para visitá-la, que pode oferecer tal instituição?
Em pesquisa lá realizada e em conversa gravada com Maria Stella B. Silva, que
trabalha há cinco anos como monitora, perguntamos que obras poderiam ser tocadas .
“ A curadoria atualmente permite que cinco esculturas do acervo fixo sejam tocadas.
São duas obras em bronze do Rodin, “ O Beijo” e o “Torso Masculino”; uma escultura em
granito rosa de João Batista Ferri, “Atleta em Descanso”; uma em pedra serena toscana de
Ottone Zorline e uma em arenito, “Serenidade” de Vicente Larocca”.
Perguntamos por que não há nesta seleção obras em mármore, já que o museu possui
grande quantidade de obras neste material. Ela respondeu, que de acordo com a orientação que
recebem do departamento de conservação, quando as esculturas em mármore são tocadas, o
ácido que possuímos em nossas mãos infiltra-se naquela matéria, provocando manchas que não
podem ser removidas. Mesmo com as esculturas em bronze isto também acontece.
Contou-nos ainda Stella que em recente visita, um deficiente perguntou porque não
adotam as luvas, assim outras obras poderiam ser tocadas. Ela não pode responder esta pergunta,
mas logo rebateu, estando interessada em saber se, com luvas, ele não perderia a sensibilidade. O
rapaz respondeu que “a perda seria muito pequena em relação ao ganho”.
Além do acervo fixo, a Pinacoteca organiza mostras temporárias nacionais e
internacionais. Sob a direção de Emmanuel Araújo, 1990- 2001, este museu conseguiu trazer
para São Paulo grandes expoentes da escultura francesa: Rodin, Maillol, Camille Claudel e
Bourdelle.
Para as mostras de Rodin, o diretor e a curadoria destinaram algumas obras que podiam
ser tocadas e assim recebiam, em grupos ou individualmente, os deficientes visuais. Na mais
recente exposição internacional e pela segunda vez na Pinacoteca, pudemos acompanhar de que
maneira foi recebido este público. Foi na exposição de Rodin, “A Porta do Inferno”, realizada
de 07 de outubro a 09 de dezembro de 2001.
Reservaram para os deficientes visuais um dia estipulado, às segundas-feiras, dia em que
habitualmente o museu está fechado. Agendamos nossa visita e fomos no dia 20 de novembro,
de 2001. Maísa e Paulo são amigos desta autora, ambos com deficiência visual adquirida. A
programação consistia em sermos recebidos por uma monitora que nos contava um pouco da
vida do artista. A seguir, ela nos acompanhava designando seis obras que podiam ser tocadas.
Perguntamos o motivo da separação de períodos, ou seja, reserva-se para o deficiente
visual dia e hora específicos. A monitora nos disse que é comum um visitante, após ver um
deficiente visual tocar uma obra, sentir-se no direito de tocá-la também.
Naquele dia, como não havia mais ninguém e o controle não foi rigoroso, todas as obras
que achávamos conveniente tocar, puderam ser tateadas. (Fig. 13)
Figura 13
Maysa tocando uma pequena escultura em bronze de Rodin
As exposições das esculturas de Rodin (1995) e de Camille Claudel (1998) puderam ser
vistas na cidade do Rio de Janeiro e dois professores, ambos cegos, do Instituto Benjamin
Constant puderam tocar. Nas palavras de um deles, Vitor Alberto da silva Marques: “em
Camille, os contornos são mais definidos. O grau de expressividade é maior. Há mais
naturalidade; sinto mais vida nas suas obras.”51
E. Bavcar também relata em seu livro que uma das coisas que mais sente, ao ter perdido a
visão, é não poder freqüentar as exposições de arte, pois descreve que quando pode tocar nas
obras sente um enorme prazer.
Figura 14 - Paulo tocando uma escultura do Rodin
“A escultura me proporciona um sentimento estético imediato, a medida que me
autorizam tocar as estátuas, o que não é sempre o caso.(Assim proibiram-me um dia, no
51
op. Citada in Gazarolli.
parque de Versailles, de tocar a cópia de um grupo de Laocoon; eu precisaria entretanto apenas
de uma escada”. (Bavcar,1992: 15)
1.5. Ampliando a visão.
Posturas que propõem uma mudança de comportamento podem dar frutos em outros
locais, podem contaminar as idéias. É na cultura que criamos nossos rituais e é em sua própria
esfera que podemos modificá-los igualmente.
A palavra “cultura” deriva do latim colere, que significa cultivar, cuidar, criar. Passou a
designar o cultivo do solo, porque significa cuidado e aperfeiçoamento de um objeto suscetível
de melhora através da atividade humana. Só mais tarde é que o termo “cultura” passou a designar
o cuidado das disposições humanas mediante a formação do espírito.52
(Romano, 1998: 290)
Segundo Herder, 53
“a cultura só prospera na comunidade e tem como objetivo a humanidade”.
Está na própria origem da palavra que cultura não é estática, ela é viva, movimenta-se,
interfere e sofre interferências. Uma cultura tem uma virtude modeladora, cria uma esfera
abrangente de certas atitudes, que o etólogo Boris Cyrulnik denomina “campo sensorial”
baseados em comportamentos “um conjunto de pequenos gestos, entonações, exclamações,
encorajamentos e reprovações”. (1995:71)
Comportamentos podem ser modificados. Mesmo entre os animais é difícil separar o
hereditário e o herdado por comportamento, como comprova o seguinte relato. Em 1939, na
Índia, 54
409 macacos foram capturados e transportados para a Ilha de Cayo Santiago, perto de
Porto Rico, onde seus descendentes ainda vivem. Inesperadamente, uma fêmea dominante criou
um novo ritual. Ela lavou as batatas doces cheias de areia e as salgou com a água do mar. Este
novo ritual difundiu-se entre os macacos lá implantados. Hoje, após gerações, quase todos os
macacos praticam este ritual.
Citamos aqui dois lugares que se inspiraram no Toque Revelador: um é desta autora que
escreve, cujo trabalho será detalhado no próximo capítulo e o outro é do SESC (Serviço Social
do Comércio) de São Luís do Maranhão.
Em outubro de 1997, a coordenadora Jeanne Nunes, deu início a uma série de exposições
visando o público especial. A primeira exposição chamou-se “Além do Olhar”, realizada na
Galeria de Arte/Casa do Comércio, em São Luís do Maranhão. Os expositores foram: Cordeiro
do Maranhão, Jane Miller, José Maria Eça de Queiroz, Rosilan Garrido e Simão Pedro Amaral.
Foi uma exposição de esculturas e objetos dirigida a todos, deficientes visuais ou não, cujas
52
Este conceito é desenvolvido por Vicente Romano em seu livro El Tiempo y el Espacio en la
Comunicación. 53
Apud Romano, 1998, p.291. 54
Relato encontrado na obra de Boris Cyrulnik. Os Alimentos do Afeto, Ática, São Paulo, 1995,pp.73-74.
obras podiam ser tocadas. Havia também uma programação paralela que incluía uma oficina e a
hora do conto.
Quase um ano depois, dando continuidade àquela proposta, o projeto passou a se chamar
“Projeto Mãos a Obra”. A segunda edição ocorreu em novembro de 1998, com uma exposição
individual do artista plástico maranhense e autodidata Luis Carlos Lima Santos. Seu material
preferido é a argila, o cimento, a resina e pó de madeira, que ele trabalha em revestimentos de
grossas camadas misturadas com cola. O que suas mãos modelam são frutos e sementes de sua
terra, como “Babaçú Inteiro”, “ Flamboyant”, “Fava Olho de Boi”, etc. (Fig. 16 e 17)
Figura 1
Figura 17- Acácia de
Praia:13x75x47cm Flamboyant: 160x13x44cm
Em 1999, o projeto amplia-se, organizam-se palestras, relatos, e uma exposição com
obras realizadas nas oficinas de arte nos últimos dois anos. Em dezembro de 2000, a
coordenadora resolve expor obras de pacientes internos no Hospital Psiquiátrico Nina
Rodrigues, cujo título foi “Além dos Muros”. Compunham a mostra vinte pinturas e vídeos dos
pacientes desenvolvendo seus trabalhos.
Em outubro de 2001, o projeto “Mãos a obra” já estava em sua quinta edição e preparou
a exposição: “Toque: Expressão e Arte”, com esculturas de Romana Maria e uma instalação de
Marlene Barros e Paulo César. Todos estes eventos foram acompanhados com oficinas, com
programas de visitas monitoradas e com palestras, visando proporcionar aos profissionais da área
ou leigos melhores informações sobre o público especial. Segue Jeanne Nunes, silenciosa, dando
continuidade à sua proposta.
Bem diferente é a tendência que aponta São Paulo e outras grandes cidades a tornar as
exposições de artes plásticas grandes eventos culturais. Enormes cartazes “que nos devoram” são
distribuídos pela cidade, patrocinadores investem fortunas, filas intermináveis formam-se à
frente dos museus, pois o número de visitantes é fundamental. Como escreve Vicente Romano, a
comunicação converteu-se hoje, mais do que nunca, em um setor estratégico da economia, da
política e da cultura. “Os produtos culturais mediáticos ocupam já o segundo lugar, atrás da
indústria aeroespacial, nas exportações do Estados Unidos, por exemplo.” ( Romano, 1998 :17)
Falarmos das grandes cidades e suas realizações é pensarmos também que a “cidade tem
alma, tem psique como o nosso corpo”.55
Relata o autor que mais de 750 novos museus foram
55
O pesquisador que traz esta e outras reflexões, que aqui mencionamos, é James Hillman, psiquiatra,
terapeuta e mitólogo. Em seu livro “Cidade & Alma “ reúne textos de suas últimas palestras. No capítulo
fundados desde 1969. Em 1978, os museus registraram 360 milhões de visitantes, seis vezes o
número de espectadores dos jogos profissionais de baseball, basquete e futebol. Americanos
assistiram a mais eventos teatrais que esportivos. Em 1967, um milhão de pessoas foi o número
da audiência de ballet e dança moderna; dez anos mais tarde, o número foi de quinze milhões. O
público de ópera aumentou cinco vezes entre 1950 e 1978, e há por volta de mil companhias de
ópera nos Estados Unidos hoje. Em 1968, havia 24 companhias profissionais de teatro; em 1978,
mais de trezentos. Há 1.400 orquestras sinfônicas profissionais. (Hillman,1993:33)
Estes dados poderiam ser de qualquer outro país, onde só os números interessam, tudo é
quantificado. Poucos questionam o que e se alguma coisa é de fato assimilada.
1.6. Lampejos de visão.
“Lampejo” é a manifestação rápida e brilhante de uma idéia ou de um sentimento. Há
exposições que são temporárias, como é o caso das Bienais de São Paulo, realizadas desde 1951.
Em 1998, na 24a Bienal Internacional de São Paulo, foi organizado um trabalho para recepcionar
o “Público Especial”, assim como na “Mostra do Redescobrimento, da Associação Brasil 500
anos”. Para esta última, houve uma orientação por parte da equipe do MAC-USP, mas por
algumas razões o atendimento foi prejudicado. O fluxo de visitantes foi enorme, os monitores
não eram suficientes para atender adequadamente os deficientes visuais e o barulho dificultava a
comunicação. Perguntamos a Amanda Tojal,56
qual era sua opinião a respeito destas iniciativas e
ela nos refere o seguinte:
“Infelizmente, no que diz respeito ao deficiente visual e até mesmo no caso do público
especial, em geral, apesar da intenção o que foi feito não conseguiu atingir os objetivos. Muitas
vezes o que é anunciado o é feito muito mais para chamar a atenção da mídia do que
desenvolver um projeto seriamente”.
Na última Bienal, a 25a realizada no período de março a junho de 2002, houve uma
equipe organizada para o atendimento ao público especial, porém sem a produção de materiais
sensoriais de apoio. O que pudemos acompanhar e até participar, no que concerne à deficiência
visual foi o trabalho de um dos artistas participantes da mostra. Para a representação nacional,
entre os artistas escolhidos pelo curador responsável Agnaldo Farias, estava o nome de
Alexander Pilis, cuja instalação intitulava-se “Arquitetura Paralaxe- Inteligência Coletiva Ver
não Ver”.
O artista convidou sessenta pessoas, de diferentes áreas profissionais, para que com dia e
hora marcados, fossem até a Bienal acompanhar, em grupos ou individualmente, os deficientes
visuais. A escolha do percurso, obras e meios era absolutamente livre. A visita durava em média
uma hora e era gravada por uma equipe de estudantes. O resultado destas mediações era
projetado por quatro projetores nas paredes de sua sala, ou seja, quatro imagens simultâneas do
que fala “Sobre a Cultura e a desordem crônica” (Hillman,1993:33) aponta fatos reais, tirados de The
humanities in American life ( Relatório da Comissão de Humanidades,pp113-28) publicado pela Editora da
Universidade da Califórnia. 56
Entrevista gravada em 19/09/2002.
ocorrido no dia anterior. Dezesseis mini auto falantes espalhados nas paredes e colocados na
altura média do ouvido humano encarregavam-se de reproduzir o som. Este foi o projeto de sua
obra, que dia a dia ia se constituindo.
Relatamos a seguir nossa experiência como um dos profissionais convidados a participar
e peço licença para descrever na primeira pessoa.
Meu dia estipulado foi 18 de abril de 2002, às 14:00 horas. Nas semanas anteriores,
percorri a Bienal diversas vezes a fim de escolher que obras e que meios poderia eu utilizar para
estabelecer um processo comunicacional.
Esta Bienal primou pela quantidade de vídeos, fotos e instalações. Descartei as obras nas
quais o meu olhar pudesse ser o simulacro do olhar que não existe. Ocorreu-me, então, a idéia de
preparar pequenas maquetes simples, ao alcance de minhas possibilidades, mas que pudesse dar
às pessoas a noção do todo.
No dia e hora marcados, pensei que iria acompanhar um casal, ambos deficientes visuais,
Maysa e Paulo, há mais de cinco anos. Entretanto, quando lá cheguei, havia um grupo de doze
pessoas, do Laramara, uma instituição para deficientes visuais. Naquele momento, fiquei um
pouco preocupada, pois assim como o espaço é outro, o tempo também o é. O tempo de mapear
com o olhar é rápido, o tempo do sentir, do ouvir é um tempo mais lento, tempo da presença, e a
comunicação feita com um número menor de pessoas atinge um melhor resultado.
A primeira instalação que escolhi foi um trabalho de Eduardo Frota, da representação
nacional, radicado no Ceará. Este artista trouxe para o pavilhão uma obra de grande impacto:
catorze enormes cones ocos de madeira compensada, cada um pesando 700kg e medindo 2,60
metros de diâmetro. (Fig. 18) Apenas passear entre eles e tocá-los não teria muito sentido.
Figura 18
A massa volumétrica, seja ela fruto da natureza ou da arte, precisa ser relativamente
pequena, para que a escala seja devidamente percebida, permitindo assim a apreensão do
todo; do contrário, a experiência estética tende a fragmentar-se em uma somatória de
impressões confusas. Como relata Bavcar:
“Sem as maquetes, a pintura, o cinema, a arquitetura são para mim dificilmente
acessíveis”.(Bavcar, 1992: 14)
Para que o grupo pudesse imaginar, tocar em algo menor, ao alcance das mãos, montei
sobre um isopor, uma disposição próxima à real, utilizando casquinhas de sorvete.(Fig. 19)
Todos puderam tocar aquelas formas. (Fig. 20)
Figura19
Figura 20
Após todos terem tocado as “casquinhas” ,íamos até a instalação. Lá, então, os cegos
passavam a mão na madeira, sentiam seu cheiro, entravam dentro dos cones, podendo
experenciar com os outros sentidos (tato, audição, olfato e cinestesia) aquele trabalho.
Figura 21
A segunda instalação que visitamos, muito próxima a anterior, é um trabalho de Eliane
Prolik, de Curitiba. Chamava-se “Gargue”, trabalho feito com filó, estrutura de ferro, cabos de
aço e equipamento sonoro. Ao lado, a artista colocou seis máquinas de balas todas brancas, como
toda a estrutura montada ao lado, e deu o título de: “No mundo não há mais lugar”. A obra é um
corredor com 25 metros de comprimento por um de largura, todo coberto com filó. Deveríamos,
no caso, comprar uma bala, colocá-la na boca, e seguirmos pelo corredor, com microfones ao
longo do percurso, e se tentássemos falar, aquela comunicação seria incompreensível. Os
deficientes visuais puderam entrar, caminhar sem a bengala, tomando como referência espacial
as delicadas paredes de filó. Desta obra e das próximas duas não preparei maquetes, tendo sido
possível perceber o espaço e estarem perfeitamente aptos a fazerem suas leituras.
Ainda no mesmo andar, fomos ao espaço reservado das salas especiais, onde estão os
homenageados. Um deles era Nelson Leirner, que compôs sua sala com uma mesa de ping-pong
em acrílico transparente e, nas paredes, de um lado uma série de raquetes, do outro uma série de
bolinhas. Como observou um participante, naquele momento ficamos todos em pé de igualdade,
videntes ou não, pois naquele espaço o sentido mais requisitado é o da audição. Ouve-se o som
do jogo, o ritmo, os ataques e as defesas, mas nada se vê.
O outro homenageado era Carlos Fajardo, que construiu para a mostra uma imensa caixa
de vidro espesso, sem som, com um corredor em forma de labirinto para chegar a uma sala em
seu interior. Abria-se uma porta e adentrávamos numa ilha de silêncio, num espaço de reclusão.
Entramos todos juntos, procurando equilibrar-nos sobre o piso irregular, feito com placas de
mármore bruto. Apesar do calor que a todos sufocava, pudemos, finalmente, tecer alguns
comentários sobre o que tínhamos visitado até aquele momento.
A quinta e última instalação que pudemos visitar foi a do representante do Japão,
Tsuchiya Kimio, cujo título era “After the Diluge”(Depois do Dilúvio). Para esta instalação
preparei uma maquete, cujas fotos podem ser vistas na sequência. (Fig. 22)
A B
C D
E F
A e B - Era uma sala fechada, com as paredes externas brancas. O acesso era feito por um
corredor lateral.
C e D - Não havia iluminação, as paredes eram pintadas de preto. O espaço da sala tinha,
aproximadamente, 13 X 19 metros. Afora o corredor de acesso, todo o piso foi recoberto pelo
entulho obtido de uma casa demolida de São Paulo. Um estreito corredor conduzia a um
pequeno módulo, circular, todo fechado, localizado ao fundo do espaço, com pouco mais de 2
metros de diâmetro.
E e F - Fiz na maquete um teto removível para as pessoas pudessem perceber que, quando
entrássemos, todas as paredes continham objetos pendurados por toda as paredes. Não era citado
que eram relógio.
Enquanto alguns iam tocando a maquete (fig. 23 e 24), outros iam, calmamente, sentindo
a obra. Três de cada vez, meus convidados percorriam o pequeno corredor, abaixavam-se para
tocar os entulhos e entravam naquele espaço.
Era proibido tirar fotos do local.
Sem saber que eram relógios, no silêncio e no escuro, apenas ouviam, o constante tic-tac,
tic-tac, tic-tac. “Não ver” parecia ser muito mais rico, instigava inúmeras imagens mentais. O
que nos faz concordar com Baitello quando nos diz que:
“O ouvir nos permite gerar imagens, nossas próprias imagens, e essas são imagens
geradas por nexos, sentidos e não são imagens oferecidas prontas de maneira a cercear a
capacidade imaginativa”. ( Baitello, 1999:69 )
Apesar daquelas maquetes serem toscas e improvisadas, pudemos notar que obtivemos
um bom resultado. As observações feitas pelos professores e pelo grupo foram gratificantes. Se
no início senti-me assustada, preocupada com aquele desafio, no final foi um aprendizado,
oportunidade incrível para dar continuidade a esta pesquisa .
1.6. Os não videntes em museus internacionais.
Já, fora do Brasil, temos notícias que há museus adequados para visitantes sem a visão.
Sabemos que o museu do Louvre inaugurou, em 1981 uma galeria especializada, junto ao
departamento de esculturas. As peças são réplicas em resina, com o mesmo tamanho das
originais. Não há muitos exemplares, mas permitem uma idéia do desenvolvimento da escultura,
desde a época romana até o século XIX, com destaque à escola francesa e à italiana. Ainda em
Paris, há também o Museu Rodin, que mantém em uma de suas salas esculturas que podem ser
tocadas.
Em 1985, o Museu de Ciência de Boston, a partir de uma auto-avaliação feita pelos seus
dirigentes, passou a proporcionar maior acessibilidade aos seus programas e exibições diante do
público visitante, modificando o ambiente a fim de receber portadores de deficiências.
Em Londres, o British Museum providenciou também um material tátil que reproduz, em
relevos, obras bidimensionais. Sem dúvida, há tantos outros projetos em museus e galerias
internacionais que não conhecemos, mas neste trabalho, citaremos apenas dois que enriquecem
nosso tema.
Um deles é o ONCE57
, em Madrid, único no mundo, especialmente construído para os
cegos. É o Museu Tiflológico58
- Um museu para ver e tocar, inaugurado em 1992. O visitante
cego pode fazer a visita de forma independente, sem monitoria especializada e percorrer sozinho
o prédio com 1.500 metros quadrados divididos em três pisos. Nos elevadores, há um sistema de
informação sonora sobre a planta e a localização. Os pavimentos e as paredes foram acabados
com cores e texturas diferenciadas. Para os de visão subnormal, a utilização de determinadas
cores nas paredes ajuda os visitantes perceberem os limites espaciais; o mesmo ocorre na
utilização de pavimentos com texturas diferentes para os de cegueira total.59
57
Organización Nacional para los Ciegos Espanõles. 58
Tiflológico tem sua origem no termo grego “tifles” que designa cego . 59
Todas as informações aqui fornecidas foram retiradas do Catálogo e de uma fita de vídeo produzidos pelo
Museu citado.
O acervo está distribuído em três grandes áreas, a saber: as salas das maquetes dos
monumentos arquitetônicos mais representativos, tanto espanhóis como estrangeiros; salas com o
material tiflológico que documenta o desenvolvimento da escrita braile; e salas com obras de
artistas cegos e deficientes visuais.
O conhecimento dos monumentos arquitetônicos mais importantes do mundo não está ao
alcance de todos, muito menos quando se está privado ou encontra-se gravemente diminuída sua
capacidade visual. Por isso, as reproduções em maquetes que o museu exibe permitem aos dedos
recorrer às fiéis reproduções. Além disso, ao lado de todas as miniaturas, o visitante tem
informações com escrita ampliada, em braile e há também um sistema de informação sonora.
Dentre as obras arquitetônicas internacionais, podemos citar como exemplos as maquetes da
“Torre de Piza” (Itália), da “Porta de Brandenburgo ( Berlim ), da Torre Eiffel ( Paris), como
mostra a figura 25.
Figura 25
Há uma ordem cronológica para o percurso. Assim sendo, a sala de reproduções de
monumentos nacionais começa com as pinturas das cavernas de Altamira. Estas foram
reproduzidas sobre uma prancha de madeira. A cena escolhida é a do teto da sala principal, com
vinte figuras completas de animais e seis figuras fragmentadas ou superpostas. As cores são
respeitadas, com os tons ocres e avermelhados. O maquetista, para dar a sensação de volume e
um sentido naturalista às figuras, modelou uma a uma com pó de rocha.(fig.26)
Figura 26
Para se conhecer um templo grego, há a maquete do Partenon (Atenas,Grécia). Esta foi
fabricada em resina de poliester e madeira60
.Na mesma sala , rodeando a parede próxima a esta
maquete acima referida, há reproduções de três fragmentos do friso das Panatéias ( que estão no
British Museum), feitas em resina de poliéster. O situado em frente do frontão oriental da
maquete mostra o grupo dos deuses Dionísio, Hermes e Deméter; os outros dois, que aparecem
junto a um dos lados maiores da maquete, representam os ginetes que assistiam à
procissão.(fig.27)
Figura 27
60
É uma reconstrução ideal do monumento baseada nos desenhos do pintor inglês J. Carrey em 1674, antes
que o edifício tivesse sido destruído em 1675, durante a guerra veneto-turca.
Antes de sairmos da sala dos monumentos internacionais, podemos ainda citar a maquete
da pirâmide de Chichen-Itza (Yucatán, México). (Fig. 28)
Figura 28
Quanto à sala dos monumentos espanhóis, vamos encontrar a maquete da pequena igreja
de San Pedro de la Nave (El Campillo, Zamora) com sua planta em cruz latina. Ela é um dos
escassos exemplos conservados da arquitetura visigoda, construída nos séculos VII e VIII. Sua
maquete (escala 1:35) tem pequenas dimensões 70 x 55 x 32cm. Foi preparada em resina de
poliéster e apresenta a possibilidade de levantar seu telhado, propiciando ao visitante, cego ou
não, apreciar a estrutura interior do edifício.
Outras igrejas, catedrais, palácios árabes e até mesmo as cidades medievais estão lá
representadas. Vejamos Ávila, cidade espanhola aos pés da Serra de Guadarrama. Sua maquete é
totalmente elaborada em madeira com a representação do conjunto das muralhas, os
monumentos que se encontram dentro delas, igrejas, palácios, catedrais e todo o resto da
topografia. Numa escala de 1:100 esta maquete tem as dimensões de 119 x 99x25.(figuras 29 e
30).
Figura 30
Apesar de todo preparado para receber o deficiente visual, vemos que todos
aproveitam, adultos e crianças. Mesmo quando temos a possibilidade de viajar, conhecer estes
monumentos, é impossível conhecê-los desta maneira. Um outro “ponto de vista” nos é
apresentado, pode-se ver e tocar a Catedral de Santiago de Compostela. (Fig. 31 e 32)
Figura 31
Figura 31
Embora esta pesquisa limite-se às possibilidades de apreciação, via comunicação tátil e
não da execução de obras, vale a pena finalizarmos esta breve visita acrescentando umas linhas
sobre as salas de artistas cegos e deficientes visuais. Há a sala das obras têxteis, as salas das
esculturas e as salas das pinturas. A sala dos têxteis está representada por três artistas, sendo duas
estrangeiras, suecas. A outra é a espanhola Sagrario Ibáñez, que consegue dar efeitos de volume
alternando diferentes fibras naturais tecidas pela própria artista, utilizando fios de lã e de seda.
Nas salas das esculturas, os artistas utilizam madeira, terracota, bronze e fibra de vidro
em seus trabalhos. O artista César Delgado é mencionado no catálogo por desenvolver em sua
obra todas as premissas de uma nova corrente artística, que cabe ser qualificada com o nome de
“expressionismo háptico”, termo utilizado pelo próprio artista.
É difícil pensarmos em pintura no caso da deficiência visual, mas este museu nos prova
que é perfeitamente viável este meio de expressão. Em geral, estes pintores têm resquícios de
visão e elaboram uma pintura tátil, misturando materiais que possam produzir relevos e
transmitir aos dedos os traços, as cores e as idéias que perpassam suas obras..
Exemplo disso é o caso da artista Rosa Garriga, que já era artista consagrada, mas com 51
anos perdeu a visão por completo. A partir de então, investigou técnicas de execução tátil para
prosseguir seu trajeto criador. O mesmo acontece com o artista Rafael Arias, cego desde 1989,
que com seus dedos, serve-se de uma espécie de pasta, uma tinta bem densa. Com a ajuda de
cordas, cola e outros elementos, que sejam úteis para a realização de retas, curvas ou inclusive
para conseguir a perspectiva, realiza o esboço, que posteriormente lhe servirá para orientar-se e
limitar zonas de cor.
Diferente do ONCE, que é um museu, o outro projeto é de uma associação francesa,
Arrimage, em Nice. Seu presidente fundador é Claude Garrandés.61
Esta associação desenvolve
inúmeras atividades para os deficientes visuais: edição de livros de arte para “non-voyants” (não-
videntes), sinalização para museus62
, promove reflexões teóricas, mantém um atelier de
expressão artística em cerâmica, cursos de dança, etc.
Em 1997, para o museu Arqueológico de Nice (Musée Arquéologique de Cimiez Ville
de Nice) a associação executou duas maquetes, dos dois sítios arqueológicos ancestrais da
cidade, Nkaia e Cemenetum. Para o reconhecimento das cerâmicas expostas, encontradas nestes
sítios, há placas que reproduzem as mesmas em alto-relevos. (Fig. 33) Com relação às esculturas,
para que o visitante possa de fato discernir a imagem, é feita uma réplica em tamanho reduzido e
em alto relevo, colocada junto a mesma, com textos em tinta (ampliado) e texto em braile. (Fig.
34 e 35)
61
Claude Garrendes, nascido em 1955. Ele perdeu a visão aos doze anos. Seguiu seus estudos, formou-se em
direito, fez seu doutorado em psicologia e finaliza agora o doutorado em História da Arte. É jurista,
psicoterapeuta, ensina braile e informática na Universidade de Direito, em Nice.
Todos estes dados foram fornecidos via e-mail. A autora manteve contato durante seis meses com esta
associação. Recebeu inclusive material via correio. O leitor pode acessar seu site www.garrendes.com 62
Como não há, ainda, este tipo de realizações em nosso país, citamos aqui alguns de seus trabalhos :
1992 - Museu Cheret Nice : catálogo em relevo ajudando na circulação de pessoas deficientes visuais;
1993 - Mediação Sonora – Nice : catálogo em relevo
Cidade de Rennes – 18 maquetes em relevo, placas sinalizadoras em bronze, cerâmica e resina.
1994/1995 - Museu Internacional de Perfumes de Grasse – catálogo com adaptação tátil e olfativo
Cidade de Cergy Pontoise- Jardim dos Cinco Sentidos- maquetes em relevo, sinalização em
resina.
1997- na Citée de l’Espace. Toulouse, foram inauguradas maquetes em resina e realizadas plantas da parte interna e externa do museu, em 80 pranchas em braile.
Figura 33
Figura 34 Figura 35
Da mesma forma que vimos no museu na Espanha, a Associação Arrimage também
executa maquetes desmontáveis para os museus, como mostram as figuras 36 e 37 que é uma
reprodução em resina da Abadia de Thoronet.
Figura 36 Figura 37
O primeiro trabalho da Arrimages como editora de livros de arte para cegos foi “Caresser
Picasso” (Acariciar Picasso). Foram impressos dezesseis desenhos, em relevo, para melhor
apreciar, “tocar” o gênio. O trabalho foi realizado com a parceria do Museu Picasso de Antibes.
Em 1992, a conservadora Danièle Giraudy organizou uma exposição “Mains qui voyent” ( Mãos
que vêem ), onde lançam o livro. Ela assina, junto com o ministro da educação Jack Lang, os
textos do catálogo feitos em braile.
Sete meses depois e graças ao contato com o filho e herdeiro de Cocteau, Edouard
Denis, um novo livro é publicado : “Cocteau envisagé”, com vinte e oito gravuras em relevo.
Além disso, esta edição foi acrescida de uma fita cassete com os poemas de Cocteau, na voz de
Jean Marais.
Em 1995, a editora lança sua obra-prima: os desenhos de Matisse sobre o tema da dança,
“Matisse chorégraphe: La danse”. Vinte e cinco desenhos, obra destinada a videntes e não
videntes. “Se eu fecho os olhos, eu revejo melhor os objetos melhor que com os olhos
abertos.....”( Matisse). A seleção foi feita em função da pureza e da simplicidade das linhas. Os
desenhos deste artista são re-transcritos pelo gravador Fabrice Barbaras, com ajuda de uma
prensa especialmente concebida para isto. Como no livro anterior, acompanha o volume textos
gravados em uma fita cassete.
Outros livros de arte foram preparados, como o de Van Gogh. Mas o editor queria
trabalhar com artistas contemporâneos. Assim, surgiu este último título, “Histoire de Lyre”, da
artista francesa Verka, pintora e poetisa. O título mescla a palavra “lyre” (lira, instrumento
musical) com “lire” (ler, em francês). O livro, com texto em braile e seus desenhos em relevo,
dão a possibilidade da “leitura”, em todos os seus sentidos. A artista, que nunca tinha pensado
em criar uma imagem para que um deficiente pudesse decifrar, declarou por escrito:
“ A arte olha cada um e cada um olha a arte em si, ao redor de si. É precisamente isto
que nossa sociedade, esta grande déspota, e todos seus partidários, evitam com cuidado,
excluindo propositalmente todos aqueles que não fazem parte de seu campo de visão. Eu me
insurjo contra isto !
Em nós, há um pouco do outro, no outro há um pouco de nós. O reconhecimento deste
fato permite a circulação da vida no ser. É assim que articulo, na minha obra, o dual interno e o
dual exterior. Em todos os sentidos. Ver não se realiza só pelos olhos : vejamos de outra forma
graças a esta parte que permanece na sombra”. 63
O ano de 2002, foi o aniversário da morte de Louis Braille. Em sua homenagem, Claude
Garrandés foi o curador da exposição, “À la Lumière de nos doigts, Matisse – le thème de la
danse”. A mostra foi realizada no museu Matisse, em Nice, de março a setembro. Havia no
espaço os desenhos originais e as reproduções táteis para serem tocadas, feitas pela Arrimage.
“A obra de Matisse dá a possibilidade de estabelecer um diálogo entre o gesto efêmero
do dançarino, aquele inscrito no tempo do desenhista e a leitura tátil destas estampas”, afirma o
curador Claude Garrandés. Continua ele :
A lactescência do papel reforça a incomparável pureza das estampas monocromáticas.
O olho saboreia sem reserva o talento do artista. A técnica utilizada chama, reclama mesmo,
uma aproximação tátil.
Único encontro possível para os não videntes, ela é, para todos nós, a ocasião de uma
outra leitura indo direto ao essencial. O dedo segue a mão do artista, reencontra o gesto criador
inicial, como se lá estivesse como instrumento naquele instante mesmo da concepção. De
repente, toda distância temporal e espacial parece assim abolida.
A Arte, através da transparência do gesto, torna reconhecimento e transcendência de
nossas diferenças.
A exposição “À luz de nossos dedos” dá a ver na ponta dos dedos, na intimidade da
página branca estampada, obras que exaltam ao mesmo tempo o tato, a audição e a visão”.
63
Em artigo publicado na revista France Delville.
CAPÍTULO III
Uma aventura com Sacilotto
Entendendo como tudo começou
“O mapa na epiderme exprime certamente mais que o toque, mergulha profundamente
no sentido interno, mas começa no tato. Assim, o visível diz mais que o visível. Não há palavra
de ordem do contato para designar um intocável, um intangível, em um sentido próximo desse
invisível presente ou ausente no visto e complementar a ele, abstrato dele, encarnado em sua
carne. No entanto, o espírito da finura habita o tato. A alma é intacta, neste sentido. A alma
intacta encanta o tato, como o invisível de topologia povoa e ilumina o visível da experiência, do
interior. No faustoso luxo da sensação tátil, parece que toco um abstrato novo, em dois lados
pelo menos, no lado da mistura e da sarapintura, no lado onde o geômetra abandona a medida
para calcular as formas singulares, as arestas e as corredores”. ( Serres, 2001: 20)
1.1 Os primeiros toques ou retoques.
Até 1999, eu lecionava história da arte para grupos particulares de adultos. Nunca havia
pensado nem visto deficientes visuais em exposições de artes plásticas. O que às vezes me
ocorria, quando eu projetava algumas imagens na parede ou mostrava as ilustrações dos livros,
era como eu faria para dar estas aulas se algum deficiente visual quisesse frequentá-las. Isso
nunca ocorreu.
Naquele ano, fui convidada para ser curadora de um espaço de artes no qual iniciaríamos as
exposições, Espaço de Artes Unicid (Universidade Cidade de São Paulo). Aceitei muito feliz
aquela oportunidade de aprendizado. Ao longo do primeiro ano montamos dez exposições de
diferentes linguagens artísticas.
Ao frequentar a universidade reparei que ali havia vários alunos deficientes visuais. Eles
circulam pelos corredores, pelos elevadores e ao término do horário escolar, muitos andam de
metrô sozinhos. Nos dias das montagens e ao longo do período das exposições, eles sempre
passaram reto, ouvia-se apenas o som das bengalas que lhes assegura os passos firmes. Aquilo
causava-me uma profunda inquietação. O único lugar da estrutura que eles desconheciam era o
espaço de artes, mesmo porque nós também os desconhecíamos, não sabíamos nada uns dos
outros.
Comecei a pensar em dar os primeiros passos para que esta distância fosse minimizada. Para
a exposição de maio, 2000, já tínhamos no cronograma o compromisso com a artista plástica e
ceramista Norma Grinberg. Era uma individual e seus trabalhos pareciam passíveis de
manipulação. Conversei com Norma, explicando que gostaria de proporcionar aos deficientes
visuais o acesso a seus trabalhos. Prontamente ela concordou, não colocando nenhum empecilho
para tal atitude. Ao contrário, tudo fez para colaborar.
“Desdobramentos” foi o título escolhido. Norma apresentava tridimensionais, em material
cerâmico, resultado de anos de pesquisa e dedicação. Aquela mostra parecia propícia para um
início de “desvio de caminho”. Os trabalhos tinham dois pontos convenientes: tamanho e textura.
As peças menores, como os “humanóides” eram retirados da prateleira, mãos e dedos corriam
perfeitamente sobre aquele corpo ancestral, da imaginação da artista para a imaginação do
visitante. A textura das cerâmicas era agradável ao tato, como uma pele sedosa, não há como não
sentir um prazer tátil ao tocá-las. Mesmo as pessoas com a visão normal, tinham vontade e
puderam, suavemente, sentir aquelas formas com o sentido do tato.
A proposta de permitir ao espectador sentir com as mãos aquelas obras parece que veio
de encontro com as palavras escritas pela artista, antes de ter pensado aquela exposição daquela
maneira. Lia-se no catálogo:
“Em 1977, comecei a criar uma série de módulos com material cerâmico, curiosamente
percebi, que eles poderiam ser manipulados num fascinante jogo aberto e lúdico”. 64
Figura 38
A proposta de permitir ao espectador sentir com as mãos aquelas obras parece que veio
ao encontro das palavras escritas pela artista, antes mesmo de ter-se pensado aquela exposição
daquela maneira. Lia-se no catálogo:
“Em 1977, comecei a criar uma série de módulos com material cerâmico, curiosamente
percebi, que eles poderiam ser manipulados num fascinante jogo aberto e lúdico”. 65
Ao montarmos a exposição, para que as obras pudessem tocadas, não houve muita
alteração na disposição museográfica. Convém explicar ao leitor que, normalmente, a escrita
braile é reproduzida sobre o papel, o que é usado em livros. Entretanto, com o tempo e pelo uso,
como são relevos, não há muita durabilidade. Nesta mostra, com a ajuda de um dos alunos, que
possui uma máquina de escrever braile portátil, foram feitas as etiquetas em braile impressas em
acetato, transparente, que deu mais durabilidade e colocadas sobre as em tinta.
Em junho, (08 a 30 de junho de 2000), recebemos o trabalho de Victor Lema Riqué, “O
Mistério no Bairro: o famoso caso do maníaco da caixa de fósforos”. O título é de um conto
escrito pelo próprio artista, que para ilustrá-lo produziu não só grandes telas como também um
curta metragem, pois é multimídia. Neste caso, deveríamos também pensar em ser “multimídia”,
testar outros meios de comunicação, ser “meio”.
O conto era o fio condutor da mostra. É claro que a primeira providência foi a de
transcrever o conto para a escrita braile. Apenas completando o que dissemos anteriormente
sobre ela, é que necessita de mais espaço, ocupa o triplo de páginas que na escrita que estamos
familiarizados. Assim, ao transcrever aquele conto para o braile, resultou um enorme monte de
folhas, que para ler demorava e cansava.
64
Grinberg, Norma. Catálogo. Desdobramentos, Espaço de Artes Unidid, maio 2000, São Paulo. 65
Grinberg, Norma. Catálogo. Desdobramentos, Espaço de Artes Unidid, maio 2000, São Paulo.
Experimentei outro caminho, o da audição.Gravei uma fita com o conto e a colocamos
logo na entrada. Isto deu um melhor resultado. Os interessados podiam escutar a estória e, a
seguir, ouvir a dramatização feita da mesma estória pelo vídeo. Sem dúvida, não há como não
recorrer às palavras de Baitello quando diz que:
“ Se considerarmos as características físicas do som, vamos constatar que a recepção de
todo som se dá não apenas por um pedaço pequeno da pele chamado tímpano, mas por toda a
pele, e que portanto a audição é uma operação corporal e não apenas uma operação visual, de
luz.
Som é vibração. E vibração opera sobre a pele. Podemos dizer que toda a voz e todo som
é um tipo de massagem. É uma estimulação tátil, uma massagem sutil.”66
Olhando as telas, elaboradas com pinceladas aparentes e uso da espátula, que faziam
surgir algumas figuras humanas, parecia tão simples pensar na comunicação verbal aliada ao
tocar a tela. É claro que experimentei descrever o quadro e junto permitir que o sentido do tato
pudesse captar aqueles gestos sobre a tela. Mas tal procedimento resultou completamente
infrutífero. Tem toda razão Bavcar quando escreve que:
“Privado da pintura e das outras artes visuais, fico ainda mais atraído por elas, mas é
necessário primeiro que me descrevam o quadro – o que me dá uma idéia intelectual, um
sentimento estético indireto, e talvez a seguir um pouco de prazer. Neste trabalho, a maior
prudência é a de colocação, pois em geral as descrições exprimem antes de tudo os fantasmas
daquele que observa o quadro. Algumas vezes eu recorri a diversas descrições para me
aproximar um pouco mais da realidade”.(Bavcar,1992: 14)
O espaço que temos na Unicid é muito amplo e, às vezes, pode ocorrer que duas
exposições coexistam. A mostra que conviveu com esta última citada chamava-se “No Ritmo da
Vida”, de 03 a 16 de junho, 2000. Diferente das outras, não era de artistas consagrados, mas
esboçava-se um germe para outras curadorias. Expunha os trabalhos da Associação Rodrigo
Mendes, entidade que se dedica a portadores de diferentes deficiências, tanto físicas como
mentais. Fundada em 1994, segue os princípios da Unesco. É uma escola de arte que se
caracteriza por adotar o princípio de respeito máximo à individualidade de cada aluno, portador
ou não de algum tipo de deficiência, tanto em sua vontade de escolha como em sua
potencialidade, em seu ritmo.
Seu fundador, o artista plástico Rodrigo Hubner Mendes, começou a pintar com a boca
quando tinha 19 anos, logo após ter sofrido um acidente que o deixou tetraplégico. Segundo ele,
a vivência dessa nova forma de expressão foi de tal importância para o processo de superação de
suas limitações, que decidiu então dar início ao projeto desta associação.
Nesta exposição havia obras de Rodrigo e de alunos que desde 1996 frequentam os
cursos, chegando alguns a obterem prêmios e até contratos com empresas particulares e verem
seus trabalhos publicados. A escola possibilita que o indivíduo desfrute dos benefícios de se
conviver com a arte e obtém como resposta trabalhos como estes. Na figura 39 mostramos um
66
Baitello, Norval Jr. A Cultura do Ouvir.Rádio Nova, Constelações da Radiofonia Contemporânea 3. Rio de
Janeiro, 1..., p.61.
trabalho coletivo. Não há barreira quando, acima de tudo, o ser humano crê em si mesmo, confia
em sua capacidade de se exprimir e manifestar a maravilha de ser.
Figura 39
Pollock na Granja
Obra coletiva dos alunos
Tinta esmalte s/ lona 160x200cm, 1999
Em setembro de 2000, abrigamos a mostra “Corpo Invisível II”, que havia sido
apresentada no SESC, da Vila Mariana, por ocasião do encontro “Imagem e Violência”. Com a
curadoria de Norval Baitello, cinco artistas participaram: Maria Villares, Neusa Petti, Midori,
Caíto e Coca Rodrigues.
Fizemos para aquela mostra apenas algumas adequações e recebemos alguns alunos
deficientes visuais. Os trabalhos podiam ser tocados e houve até uma visitante deficiente visual
total, que fez uma leitura bastante pertinente. O que havia dado certo na mostra anterior foi ter
gravado um texto em uma fita. Repeti o mesmo procedimento, só que desta vez, fui à sala de
gravação e fizemos um trabalho mais profissional, gravando o texto do curador com um suave
fundo musical. Em uma parte do mesmo, comenta o curador:
“Visibilidade é a palavra de ordem. Nunca o olhar foi tão solicitado, tão escravizado
quanto em nosso tempo. Os olhos roubam os espaços das mãos e da pele, tomam o tempo do
ouvir, anulam as ricas variedades da comunicação olfativa. O mundo das imagens reduz tudo a
duas dimensões: já não pensamos mais tridimensionalmente. Somos obrigados a renunciar ao
tato e seu sentido de profundidade e ao olfato e seu sentido de presença”.(Baitello, 2000: 2)
Lia-se ainda no referido texto que o desafio era o de “enxergar a invisibilidade”. Os
artistas propuseram diferentes visões, utilizando diversos materiais e suas formas. Esforçaram-se
para construir “histórias sem palavras sobre o corpo que se tornou invisível e sobre a violência
deste processo”. (ibidem)
Se até aqui os retoques iam sendo feitos, como remendos em um tecido já costurado, na
próxima exposição, o desafio seria de preparar, com antecedência, como tornar visível a obra de
Luiz Sacilotto, pintor e escultor. Mas não seria o único. Teria de enfrentar também o desafio de
lidar com alguns preconceitos e crenças daqueles que, apesar de terem o sentido da visão em
bom estado permanecem “sem visão”.
1.2. A visão de Sacilotto.
Sacilotto67
é um dos precursores da arte concreta, no Brasil. Tem importância ímpar no
quadro da arte brasileira e envolvê-lo num projeto como este requeria uma certa cautela. Como
descrevemos no capítulo anterior, havia naquela ocasião uma exposição montada no MAC-USP
para o público especial. Assim sendo, levei o Sr. Luís para conhecer o que lá era desenvolvido.
Naquela mesma tarde, registrei esta breve entrevista que aqui transcrevo.68
AUTORA - O que o senhor acha deste trabalho, o de adequar uma exposição de arte, no caso
a sua, para o público especial ?
SACILOTTO - Eu acho excelente, por incrível que possa parecer. Não conhecia este tipo de
atuação, só tive o primeiro contato hoje, mas o alcance disto é muito grande.
AUTORA - Sua obra é baseada em “pura visibilidade”, é retínica. Ao reproduzirmos seus
trabalhos, eles não serão os mesmos, perderão a aura original. Estaremos refazendo, o senhor
concorda com isso?
SACILOTTO - Isto não fere a obra do artista, muito pelo contrário. Vai acrescentar que outros,
que até então não teriam a oportunidade de conhecer meu trabalho, o façam agora. Não há
impedimento nenhum. Não há duas pessoas que enxerguem a mesma coisa, da mesma maneira,
mesmo entre os videntes.
AUTORA - Temos a intenção de ampliar sua exposição, acrescentando suas esculturas,
fazendo réplicas das mesmas e elaborando um material lúdico para o atelier, baseado no seu
trabalho.
SACILOTTO - Elisabeth, faça o que você achar conveniente. Para mim vale tudo. Não no
sentido pejorativo, mas no esforço da comunicação. Para mim, isto vai ser uma aventura.
67
Luis Sacilotto nasceu em Santo André, São Paulo, em 1924. Por volta de 1951 esboça-se o movimento concreto,
tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, época que o Brasil viveu um otimismo generalizado, face à aceleração
industrial e a um projeto de democracia social. Surge a poesia concreta, o cinema novo, a bossa nova, a construção
de Brasília. Sacilotto participa da I Bienal de São Paulo (1951) que traz as novidades. Animados, os jovens artistas
empenham-se em compreender as origens e a evolução da arte abstrata de vertente construtiva, para aderir a sua
última versão, a arte concreta. Sacilotto é um dos precursores da arte concreta em São Paulo, ao lado de Waldemar
Cordeiro. Em 1952, os dois, junto com outros cinco artistas, assinam o manifesto Ruptura. Muito rigorosos,
impedem incursões fora do domínio da pura visualidade. O abstracionismo está no centro do discurso de Cordeiro
que considera o movimento Ruptura, “um salto qualitativo que reinvidica a linguagem real das artes plásticas, que
se exprime com linhas e cores, que são linhas e cores que não desejam ser pêras nem homens.” (Amaral: 1998:97)
68
Entrevista realizada em 02/08/2000.
Diferente do trabalho desenvolvido na USP, feito com as obras do acervo, envolvendo
muitas vezes artistas já falecidos, minha mostra seria da obra de um artista vivo e fiz questão
que ele participasse de tudo. Entusiasmado com a idéia, confiou plenamente em mim, usou até a
palavra aventura e aí passamos a correr os riscos juntos, desafios que toda aventura exige, sem
entretanto deixar de ter como parceira a dúvida :
“A dúvida é um estado de espírito polivalente. Pode significar o fim de uma fé, ou pode
significar o começo de uma outra. Pode ainda, se levada ao extremo, ser vista como
“ceticismo”, isto é, como uma espécie de fé invertida. Em dose moderada, estimula o
pensamento. Em dose excessiva paralisa toda atividade mental. A dúvida, como exercício
intelectual, proporciona um dos poucos prazeres puros, mas como experiência moral ela é uma
tortura. A dúvida, aliada à curiosidade, é o berço da pesquisa, portanto de todo conhecimento
sistemático. Em estado distilado, no entanto, mata toda a curiosidade e é o fim de todo
conhecimento”. ( Flusser, 1999: 17)
Ter o aval do próprio artista foi o maior estímulo. Além dele, fui consultar outros
profissionais como Nelly Garcia, orientadora do CAAD (Centro de Apoio a Alunos Deficientes)
da Unicid e especializada em educação para deficientes visuais. Com as fotos das gravuras que
seriam expostas, perguntei o que ela pensava a respeito de uma transposição de tais imagens:
“ São duas propostas diferentes. Uma é puramente óptica, depende de visão binocular e
que tem movimento e profundidade. A outra, se feitos os relevos, embora inspirados nas obras
originais do autor, só terão leitura háptica, ( tato e sinestesia)”.
Continuei a perguntar. Fui me interessando pelas diferentes opiniões sobre receber ou
não o deficiente visual em exposições. Perguntei a uma artista plástica, que tem seu trabalho já
consagrado, o que ela achava de meu projeto. Sua resposta foi categórica, dizendo que eu deveria
dedicar-me aos deficientes visuais com outro tipo de atividade como a música, por exemplo, e
não as artes plásticas, universo que sem a visão não poderia ser acessível.
Todos os pontos de vista eram importantes, tanto os que concordavam como os que
discordavam. O que aquela artista expressou não é incomum, pelo contrário, parece ser voz
corrente, é um de nossos preconceitos. Se este tipo de comentário não fosse corriqueiro, Bavcar
não escreveria este parágrafo sobre a música:
“Sobra a música, pela qual tenho uma atração ambígua. Meu amor por ela é sem
limites, mas posso também detestá-la quando penso que quiseram fazê-la passar pelo único
prazer dos cegos – sendo que ela era na realidade sua única possibilidade de existência social, e
assim uma simples promessa de felicidade”. (Bavcar, 1992:14)
Soube pela Amanda Tojal, que houve muita polêmica durante a exposição “O Toque
Revelador: Alfredo Volpi”, por parte de alguns artistas plásticos e críticos, que consideraram a
transposição uma perda de aura presente na obra e, consequentemente, uma desvalorização e
“vulgarização” da obra de arte. Mesmo assim, naquela ocasião, os profissionais envolvidos
chegaram à conclusão que dariam continuidade ao trabalho até ali desenvolvido, que haveria
mais benefícios que prejuízos.
Tentar uma aventura fora da norma é sempre correr um risco. Romper é sempre deixar
que algo novo ocupe um espaço. E Walter Benjamin escreve que “criar um espaço” é o único
lema que o caráter destrutivo conhece. “Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte
que todo ódio”.
O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas eis precisamente por que vê
caminhos por toda parte. Onde outros esbarram em muros ou montanhas, também aí ele vê um
caminho”. (Benjamin, 1995: 236-237)
1.3 Da pura visualidade à pura tatilidade.
Que uma obra se completa com o público, como disse Marcel Duchamp, parece não
haver dúvidas. No nosso caso, para que isto acontecesse, foi preciso, passo a passo, pensar que o
público com o qual queríamos nos comunicar constrói seu mundo visual numa base tátil.
Num primeiro momento, o que foi oferecido para expormos em nosso espaço de arte era
a obra gravada completa de Sacilotto, ou seja, trinta e cinco gravuras. Comecei por elas, pois
representaram o desafio maior. Foi necessário procurar quem e como aquelas imagens
bidimensionais poderiam ser refeitas de uma maneira que pudessem ser “lidas”. Entrei em
contato com o artista plástico e arte educador, Alfonso Ballestero, na Associação Rodrigo
Mendes a fim de estudarmos a possibilidade que ele fizesse as reproduções táteis.
Elegemos doze imagens. O material utilizado foi o poliestireno, plástico leve, mas
resistente. Alfonso copiou as formas exatamente do mesmo tamanho que as originais,
distinguindo as cores em baixos-relevos, sendo que permaneceram todas brancas. A seguir, a
placa foi colada em um suporte de madeira. Feito isso, levei para Santo André para que Sacilotto
tomasse conhecimento e desse sua opinião. O artista envolvido estava ainda vivo e pode
participar de tudo. Felizmente, ele se surpreendeu com o resultado.
Também na montagem, quisemos experimentar uma maneira diversa de expor as obras.
Elegi colocar a gravura original, pendurada junto à parede e a obra tátil ao lado, como no mostra
a figura 40. À direita das obras havia as fichas técnicas tanto em tinta quanto em braile.
Figura 42
Entretanto, ainda não era o suficiente. Seria fundamental que eu conseguisse expor
algumas esculturas de Sacilotto, pois insistia que o público percebesse, com os olhos, com as
mãos, com todos os sentidos, os volumes e as formas das esculturas. Que todas as pessoas
pudessem descobrir a beleza escultórica, sentir esta vivência.
Agora dá para entender quando Bavcar escreve:
“Eu me sentiria pobre se tivesse que ser guardião em uma galeria de pintura, ao passo que o
mesmo trabalho em um departamento de escultura me proporcionaria muitas
alegrias”.(1992:15)
Porém, por ser Sacilotto “introdutor da escultura de vanguarda no Brasil”, suas obras
pertencem a museus e a colecionadores particulares e, apesar de meu apelo para o empréstimo,
eu já sabia de antemão que isto não ocorreria.
Sendo assim, fui a Santo André conversar novamente com Sr.Luiz, para pensarmos o que
ele poderia ceder. Por sorte, naquele ano, foram inauguradas duas esculturas públicas na cidade
de Santo André (figura 42)69
e ali estavam, em sua sala, na minha frente, as maquetes de tais
obras. Pensei então, por que não expô-las?
Figura 42
Mas incluir algo no plano geral exige uma nova proposta. Para que não ficassem soltas no
espaço, ampliei as fotos onde elas estão na cidade e as coloquei atrás das maquetes, sendo que
estas poderiam ser tocadas. Não podemos esquecer que nossa proposta é sempre pensar
simultaneamente para aqueles que enxergam e os que não enxergam. Assim, o fato de
simplesmente agregar ao espaço duas maquetes não faria sentido. Era preciso montar um
ambiente, criar um espaço, como uma espécie de introdução. Com isto queríamos dizer, vejam
ou toquem nos últimos trabalhos deste artista, suas primeiras obras públicas. (Fig. 43)
Figura 43
69
Concreção 0005, aço carbono pintado, cm 4 metros de altura, construída em 2000, R.Cel. Oliveira Lima,
Santo André, S.P.
Fez parte do ideário concretista a integração das artes. Por que não incluir também a
poesia? A linguagem escrita ou falada é um meio pela qual se transmite a cultura. Montagu,
justamente, distingue a comunicação, da fala e da linguagem.
“A linguagem é a comunicação de idéias por meio de sons ou palavras articuladas. É o
meio pelo qual a dimensão biológica se transforma em dimensão cultural”.(Montagu,1969:141)
A inclusão de tais textos só veio a ampliar ainda mais a participação de todo o público e
proporcionar uma ligação, uma união com o resto da exposição. Como escreve Edgar Morin, a
linguagem é a mais significativa aquisição da humanidade, que permite ao mesmo tempo a
acumulação, a conservação, a criação do saber. Palavras, frases, participam do grande processo
antropológico de trocas entre o homem e o mundo, trocas objetivas e subjetivas. O símbolo está
no cruzamento das trocas.
“E então, cada vez mais, distinguir-se-á e afirmar-se-á uma segunda linguagem, saída
do desmembramento da linguagem primitiva, não técnica, mas unicamente encarregada de
exprimir as participações e as trocas psico-afetivas: a poesia. As duas linguagens não estarão
nunca separadas. Elas poderão utilizar as mesmas palavras”. ( Morin, 1970: 107)
As poesias introduzidas no espaço são ambas de Augusto de Campos.70
A primeira
chama-se “sacilotto” escrita em sua homenagem, em 1985. Na montagem, foi colocada logo na
entrada, junto às maquetes.(vide figura 43). O texto foi ampliado e reescrito com a técnica de
plotagem, ocupando um painel de 2.75 de altura por 2.50 de largura. O próprio poeta confessa
que: “Eu fui muito influenciado pelos pintores, pelas estruturas de organização formal de seus
quadros, quer dizer, como situar as linhas e as formas geométricas no espaço, como encarar os
problemas da ambivalência estrutural, da ambiguidade de formas, de fundo e forma”.71
Figura 44
Na figura 44, vemos Sacilotto à esquerda e Augusto de Campos à direita.(Unicid,
dez/2000)
70
Augusto de Campos é escritor brasileiro, nascido em São Paulo, 1931. É ao lado de seu irmão Haroldo de
Campos e de Décio Pignatari um dos principais articuladores da poesia concreta. 71
Apud, Sacramento, op.cit. p.65
Na lateral do painel, coloquei o texto em braile. Foi preciso encomendar para a gráfica da
Dorina Nowill que fizesse este trabalho sobre uma placa plástica, pois vários dedos iriam por ali
caminhar. Se fosse de papel não iria agüentar. Como a poesia forma também uma imagem
visual, seis quadrados simétricos e dispostos na superfície, fiquei ansiosa para saber se, em
braile, também teria a mesma configuração. Felizmente isso aconteceu. Foi muito bom notar o
interesse de todos para conseguir ler o texto, interessavam-se em decifrar o que Augusto havia
escrito naquela forma.(Figura 45)
Figura 45
As poesias foram impressas sobre papel e os visitantes quiseram e as levaram. O leitor
pode ver no anexo as poesias em tinta e em braile.
“As pontas dos dedos são as partes do corpo caracterizadas pela maior sensibilidade de
leitura, quer dizer, de esteriognição, de formas de objetos através do tato. O Alfabeto Braille, à
base de três pontos verticais e três horizontais, possibilita aos cegos lerem os trabalhos mais
complexos em qualquer língua. No método Braille, o leitor não“vê”, mas interpreta os pontos
no cérebro conforme a leitura efetuada pelas pontas dos dedos.” ( Montagu,1986:183)
A outra poesia que incluí foi “anticéu”. Augusto a compôs em dezembro de 1985.
Augusto pediu, na época, que a gráfica da Dorina Nowil imprimisse, sobre a mesma folha de
papel, as últimas quatro linhas em braile, o que não é muito usual.(vide anexo)
CEGO DO FALSO BRILHO
DAS ESTRELAS QUE ESCONDEM
ABSURDOS MUNDOS MUDOS
MERGULHO NO ANTICÉU
BRANCAS NO BRANCO BRILHAM
EX ESTRELAS EM BRAILLE
PALAVRAS SEM PALAVRAS
NA PELE DO PAPEL
augusto de campos – anticéu
dez 84
Augusto imprimiu esta poesia em tinta, mas as últimas quatro linhas ele a pensou também
em braile. Desde que a compôs, as duas escritas conviveram juntas, sobre a mesma folha de
papel, o que não é usual. Também não é comum ampliar a escrita braile, que tem um padrão.
Mas quis correr este risco. No enorme painel branco de 2.75 m de altura por 3.70m de largura
reproduzimos o texto, exatamente como o poeta o concebeu. A escrita em tinta foi feita com a
plotagem e para a escrita braile utilizei bolinhas de silicone, de 2cm de diâmetro, transparentes.
Para isso tive que ir decifrando letra por letra, quantas e como seriam coladas aquelas pequeninas
formas que simbolizam uma escrita, que se transformam em linguagem, comunicação.
Figura 46
Muito insegura deste experimento, telefonei ao diretor do Cadevi72
, Lothar. Ele é
advogado e cego de nascença, domina muito bem a escrita braile. Disse que não via problema, a
não ser o fato de ter de dar vários passos para poder ler. Outros deficientes visuais conseguiram
ler e gostaram muito, apesar de exigir um esforço maior.
Dos trabalhos que faziam parte da exposição propriamente dita, os meios para que
pudéssemos receber os deficientes visuais foram providenciados. Entretanto, ainda não me
parecia suficiente. Como professora de história da arte e preocupada também em ser o mais
didática possível, passei a refletir como poderia preparar aquela visita. Sabemos que nossa
formação escolar deixa muito a desejar e que não freqüentamos, habitualmente, museus ou
galerias de arte. Naquela proposta, iríamos receber um público heterogêneo e não importa se
humilde ou não, deficiente ou não, o fato é que, em geral, as pessoas desconhecem artistas e suas
manifestações, desconhecem sua história cultural.
Sendo assim, preparei um momento que precedeu a visita e um outro que a sucedeu,
sempre através de meios que a leitura tátil estivesse presente. É Boris Cyrulnik que nos faz re-
lembrar que o homem busca preencher seu deserto mental e já que existe um mundo psíquico, as
emoções mais cativantes são provocadas pelas representações verbais, teatrais ou artísticas.
Finalizamos com suas palavras:
“O prazer vem da conivência entre o artista e o espectador, e a espera é portanto
erotizada. Mesmo a postura de embalar-se na esperança é prazerosa, pois ela prepara para o
prazer, como uma amostra, como uma promessa alcançada. O prazer de uma percepção
semiótica age em diversos momentos de uma mesma harmonia : o prazer de esperar (o desejo),
o prazer de experimentar (a percepção), e o prazer de dizê-lo (fazendo-o viver ainda na
representação verbal)”. (Cyrulnik, 1997: 101)
1.4 O prazer de esperar (o desejo).
Antes de inaugurarmos a mostra, entrei em contato com instituições de São Paulo e outras
cidades próximas, para agendarmos as visitas. Quando deficientes visuais, seriam recebidos em
pequenos grupos, de no máximo dez pessoas. Contamos com quatro monitoras preparadas para
este fim.
No contato telefônico era importante sabermos a faixa etária, quantos tinham baixa visão
ou eram deficientes visuais totais. Isto porque elaboramos uma pequena apostila com
informações sobre arte abstrata e sobre o artista. O mesmo texto foi reproduzido no catálogo em
braile, com quatro ilustrações em relevo. Para os deficientes com baixa visão, o texto e as
imagens eram ampliadas. Todo este material era preparado com antecedência.
72
Centro de Assistência ao Deficiente Visual, em São Paulo.
Quando um grupo chegava, íamos todos sentar-nos ao redor de uma mesa grande e de
forma oval, forrada com um adesivo azul. (As cores primárias são mais visíveis para os que
possuem baixa visão). Iniciávamos nosso encontro falando e tocando vários objetos de tribos
indígenas brasileiras. Havia réplicas das cerâmicas Marajoara73
, havia pentes, instrumentos
musicais e cuias de cabaça da tribo Tapirabé de Mato Grosso. (Fig.47)
Figura 47
Com isso, ao analisarmos este trabalho dois anos depois, compreendemos e concordamos
quando estudamos que a semiótica da cultura, não tem como função atribuir valor e julgar o que
é arte ou não é arte, mas a de conhecer como os valores operam na cultura humana em época
determinada. (Bystrina, 1995: 22) Ao preparar este material, podíamos “olhar para trás”, em
nossa história, nosso passado. Além disso, podíamos falar sobre o por quê daqueles desenhos
naqueles utensílios indígenas, que função teriam? “Inutensílios” que alimentam a segunda
realidade.
“ Cultura leva-nos para um outro lugar, um outro tempo, era uma vez.... a uma época
dourada, a existir para além de nossa existência habitual, a formas em fermentação, e se refere
a fundamentos, à tradição que é passada. Como tal, a cultura está sempre tentando reavivar,
alcançar, cultuar, ou repetir e ressucitar como numa cultura de laboratório, formas que
simplesmente não acontecem mais na vida natural do dia a dia”. ( Hillman,1993:33)
Os deficientes visuais percebiam perfeitamente os desenhos geométricos presentes
naqueles objetos. Faziam comentários, sentiam aquelas linhas bem definidas, lembravam
vagamente das aulas de História do Brasil, mas nunca haviam tocado em nada, não imaginavam
como eram aquelas formas. Repararam as seqüências repetitivas das linhas e seu ritmo, o que
muito nos motivava. Aproveitei aquele material para comentar sobre o homem neolítico, que
elegeu o estilo geométrico para representar seus enigmas :
“Ao tecer, modelar, equacionava o seu estar no mundo; atemorizado por seu próprio ser,
equacionava sua nova consciência da realidade. Submetendo o mutável à regência das leis de
simetria, unidade, regularidade, uniformidade, equilíbrio, operava com a série interpretante do
mundo, e não com os fenômenos, pois o desenho geométrico não é o mundo, mas representação
desse, diversa da representação vitalista que é o mundo-objeto. O desempenho geométrico é
representação da representação, é o próprio poder do homem de criar signos de signos, de ser
signo”. (Oliveira,1987:61)
73
Réplicas executadas por Norma Grinberg.
A seguir, aquelas peças eram retiradas e colocávamos esculturas figurativas. A maioria
nunca tinha ido a um museu ou galeria. Nunca tinham tocado obras como aquelas. Entretanto, as
pessoas que tiveram a oportunidade de freqüentar as mostras do MAC-USP, relatadas no
capítulo anterior, como as alunas da Instituição do Padre Chico, (Fig. 48) tinham até um
vocabulário adequado. Elas utilizavam até os termos como “arte abstrata” e “arte figurativa”, e
não eram palavras sem sentido, ao contrário, via-se ali que já conheciam o que vem a ser uma
obra dita abstrata ou figurativa, por terem percebido via comunicação tátil.
Figura 48
Todos reconheciam naqueles bustos um rosto masculino, até o bigode era comentado, fato
que para muitas pessoas com a visão passava desapercebido. Do material, sentiam que era um
metal e alguns até acertaram dizendo que era bronze. Comentávamos que durante muitos séculos
o homem passou a criar imagens figurativas, tanto em esculturas como em pinturas, para
representação de mundo.
Retirávamos os bustos e aí finalmente colocávamos várias réplicas, da escultura pública
Concreção 0005. Elas foram feitas medindo 20cm de altura e em chapa de aço, por ser o material
original que Sacilotto empregou. Uma réplica foi executada em madeira, para que pudéssemos
dar duas texturas diferentes, uma para cada cor. O amarelo foi dado com papel camurça e o
vermelho com tinta esmalte (Fig. 49). Além disso, fiz dobraduras com a mesma forma, onde
cada participante, por si só, conseguia entender como o artista fez para sair do bidimensional e
ocupar o espaço.
Figura 49
“Nas esculturas, a mesma economia do sim e do não, do presente e do
ausente, do vazio e do cheio: cartilha da visualidade tátil. O preto e o branco, o positivo
e o negativo, o espaço ocupado e o espaço desocupado. O respeito à linguagem do
material; como se passa do plano à terceira dimensão através da linha...sem sair do
plano. São escrituras - esculturas do neolítico industrial. Tótens de um pensamento
arquitetônico que tenta organizar a fluidez do espaço e do tempo, mais incorporando-a
do que violentando-a”. 74
( Pignatari,1980:2)
Para que as pessoas vivenciassem o que Décio Pignatari escreveu acima, fiz em papel a
mesma forma da escultura da figura anterior. A base era uma folha de papel quadrada, que os
visitantes deveriam dobrar nos lugares certos para experimentarem, concretamente, “sair do
bidimensional para o tridimensional.”
Chegávamos assim ao término de nossa primeira etapa. Desperto o desejo, todos ficavam
ansiosos para percorrer a exposição, caminhar em busca de entrar no mito de Eros e Psyché de
uma maneira singular, pelo tato.
1.5 O prazer de experimentar (a percepção tátil).
O tempo que o tato requer é outro, seguramente não é o da aceleração, mas o do ritmo
lento, do presente. Ao receber os primeiros grupos, percebi o quanto eu mesma estava em
descompasso com o tempo deles, havia um desequilíbrio entre o meu tempo acelerado e o de
meus convidados. Percebi que deveria falar e caminhar mais devagar, percorrer com eles a
mostra, obra por obra, calma e pacientemente, e mais do que nunca, presenciei que o tempo de
mapear com as mãos é diferente daquele de mapear com a visão.
Durante a visita era “tudo nas mãos”, sem um percurso determinado. Enquanto alguns
liam as poesias, outros “viam” as maquetes e outros ainda exploravam as “gravuras táteis”. ( Fig.
53 e 54). Alguns nem conseguiam concluir toda a mostra, sentiam-se cansados, suas pontas dos
dedos já não mais agüentavam, sentiam fadiga tátil. Outros, ao contrário, queriam tocar em tudo,
aproveitar ao máximo.
74
Em 1980, Décio Pignatari escreve o texto no catálogo de uma retrospectiva de Sacilotto.
Ao tatearem os objetos, os visitantes iam descrevendo suas impressões, comentavam suas
descobertas. Quase sem exceção, todos verbalizavam suas sensações de prazer à medida que as
imagens mentais iam povoando suas mentes. Bavcar confirma nossas suspeitas quando diz que
“a proximidade tátil é o mais seguro sinal de uma existência real. A liberação da imagem física
da sua representação interior abre todas as possibilidades de imagens-clichês que, como tais,
podem se justificar por elas mesmas”. 75
Quando Bavcar fala neste tipo de imagens-clichês ele se refere à proliferação das imagens
que empobrecem a linguagem, cita como exemplo a televisão, que torna a realidade do mundo
mais distante que jamais. Sobre este tema escreve Malena Segura Contrera76
, em seu último livro
Mídia e Pânico. Nele aprofunda os estudos sobre a comunicação midiática, reflete sobre o
distanciamento do corpo operado pela comunicação eletrônica. Num determinado momento a
autora lança a seguinte pergunta: com seu bombardeio de imagens, que tipo de alma a
comunicação midiática cria? Seguindo seu pensamento, poderíamos indagar: que tipo de alma a
percepção tátil cria no contato com um texto da cultura, um objeto artístico?
Para esclarecer o leitor, Malena foi buscar a imagem greco-romana da alma. O mito
conta como Eros, um deus alado e Psique, uma mortal, apaixonam-se reciprocamente e vivem
relativamente felizes até o momento em que Psiquê, tentando romper o interdito de jamais olhá-
lo, acaba por feri-lo queimando-o com óleo fervente. Prosseguindo ainda com as palavras da
autora:
É especialmente significativo esse pequeno detalhe: o que desperta Eros do seu sono é o
óleo fervente e não o fogo em si mesmo, Psiquê, o humano, é a parafina, não o fogo da vela. Ela
não está ligada a um corpo concreto, perceptivo, e é amante de Eros, o abstrato, o alado,
também tido em algumas versões mais antigas como o deus que representa o “princípio de
ligação entre as coisas vivas”.
Após esta cena, o mito segue mostrando o longo percurso de provas que Psiquê tem de
realizar para reaver Eros. O curioso, porém, é que todas as tarefas a ela impostas por
Vênus/Afrodite são irrealizáveis por uma mortal, mas Psiquê consegue realizá-las exatamente
por não perder de vista sua condição corporal humana limitadora, não se permitindo cair em
“hybris”( na hybris que ofende aos deuses e que sempre é por eles punida)”.
(Contrera, 2002: 62)
75
Apud, Arte &Pensamento, 1994. 76
Malena Segura Contrera é chefe do Departamento de Jornalismo e professora de Comunicação , Semiótica
e Cultura e Teoria da Mídia da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.
Sentimos prazer e desprazer com os sentidos de proximidade, pela percepção tátil,
olfativa, gustativa. À medida que vamos perdendo aqueles sentidos vamos deixando de nos
vincular ao mundo. Malena Contrera responde que as imagens midiáticas criam uma alma
distante.
A comunicação tátil cria e mantém a alma próxima, o espaço é o corpo, o tempo é o
presente. E como termina o mito? Zeus intercede a favor dos amantes. Psiquê bebe a ambrosia
para torna-se imortal, ela e Eros se unem em núpcias eternas e tiveram uma filha cujo nome é
Prazer. (Bulfinch, 1999:109)
1.6. O prazer de dizê-lo.
Retornávamos ao espaço do encontro inicial, ao redor da mesma mesa, todos muito
alegres e falantes. A última etapa da visita era o atelier chamado Uma Aventura com Sacilotto.
Diversos materiais foram elaborados para que esta vivência fosse possível.77
(figura )
Figura
Uma das atividades foi um jogo. Tomando como ponto de partida uma escultura do artista de
1957, Concreção 5730. Fizemos então réplicas no mesmo material e quase do mesmo tamanho.
A partir daquela forma, suas partes foram desmembradas, transformando-se num quebra cabeças.
(Fig. 53)
77
Todo o material utilizado, as réplicas das esculturas e o material lúdico, foi feito por Daniel Romero.
Citamos, anteriormente, que o jogo é uma das raízes da cultura. Um dos mais destacados
autores que escreveram sobre a atividade lúdica é o medievalista Huizinga, que toma o jogo
como fenômeno cultural, em uma perspectiva histórica:
“No jogo existe alguma coisa em jogo que transcende as necessidades imediatas da vida
e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa”. (Huizinga, 2000:4)
E sobre o “quebra-cabeças comenta: “É este elemento de tensão e solução que domina em
todos os jogos solitários de destreza e aplicação, como os quebra-cabeças, as charadas, os
jogos de armar, as paciências.......e quanto mais estiver presente o elemento competitivo mais
apaixonante se torna o jogo.(ibidem, 14)
Roger Caillois é outro autor destacado, que propõe uma sociologia do jogo. Seu
pensamento complementa o raciocínio de Bystrina quando diz que o jogo corre na paralela da
vida real, “é essencialmente uma ocupação separada, cuidadosamente isolada do resto da
existência, e circunscrita em geral dentro de limites precisos de tempo e espaço”. (Callois, 1967:
37).
Além de jogos, foram reproduzidas as figuras geométricas encontradas nas gravuras do
artista, para que cada um fizesse suas construções. Uma espécie de lousa branca servia de
suporte e, as peças, ao serem colocadas sobre aquela não caíam, porque tinham um imã colado
atrás.
A semiótica da cultura traz um enfoque diferente. Não é uma ciência da estética, nem de
teoria da arte, nem é história da arte. Mas procura investigar o quê e o por quê. No que diz
respeito ao artista, Bystrina enfoca que “o artista nos possibilita vivenciar nossos próprios
sonhos, sem escrúpulos e sem sentimento de vergonha”. (Bystrina, 1995: 24)
Nossa intenção, naquele momento, não era o de arte educação nem a de conferir
exatamente se os conceitos da arte concreta estavam assimilados. Aquilo era o que menos
importava. Fundamental era aquela vivência e se, de fato, com os meios utilizados ocorria um
intercâmbio entre os sentidos, portanto a participação na cultura, adentrar a segunda realidade,
vivenciar “nossos sonhos”.
Todo texto é informativo, ensina Bystrina. “No caso da obra artística, assim como no
sonho e no jogo, a informação é sobre si própria. Mas essa é apenas uma função dominante,
não exclusiva. Uma obra de arte pode dar informações sobre a sua própria estrutura, depois
sobre o artista, sobre o objeto, sobre o contexto ou sobre toda a situação sócio-cultural de sua
época.’’ (1995: 22)
Se retomarmos o conceito de mídia, visto anteriormente, lembraremos que nesta mostra
tratou-se de mídia secundária, ou seja, Sacilotto utilizou-se de diferentes suportes para sua
“mensagem”. O receptor, na mídia secundária, não necessita de aparatos. Para o deficiente visual
vários meios foram utilizados para mediar a comunicação. De qualquer forma, como
“comunicação é um espaço probabilístico”, na cabeça do receptor nasce outra imagem, diferente
daquela que o artista tinha quando produziu a obra. (Bystrina, 1995:22)
Nos momentos finais de cada visita, eu fazia algumas anotações e fotografava cada
trabalho construído, antes de desmanchá-los. Desfaziam-se algumas crenças e muitas dúvidas
permaneciam, presentes até hoje. Como diz Hillman, “o mundo não precisa de crença, mas de
observação”. (1993:143)
Dos registros em imagens podemos mostrar o trabalho de Cristiane, graduada em letras,
ou de Sydnei, que dá aulas de computação. Dos que perderam a visão como Zilda ou Marcos; e
os que a estão perdendo como Ailton, que interrompeu sua carreira como arquiteto. Ele disse,
que desde que o estado de sua patologia agravou-se, aquela era a primeira vez que voltava a sair
de casa, há cinco anos. Fig. Tal
Não posso mais pedir a permissão ou a opinião de Sacilotto, mas certamente S. Luiz
concordaria com estas palavras de Bavcar:
“Se minhas imagens existem para mim através da descrição dos outros, isto não me
impede em nada a possibilidade de vivê-las pela atividade mental. Elas existem mais para mim
quanto mais elas possam se comunicar também com os outros.” (Bavcar, apud)
Imagens que nascem da imaginação. Um ano depois da mostra, uma visitante, Zilda
Pereira me telefonou. Convidou me para uma exposição de pintura, no Hospital das Clínicas, na
qual participaria. É claro que nos surpreende uma cega ter aulas de pintura, mas o que
surpreende ainda mais é que ela guardou em sua memória, as imagens que pode tocar.
“Tudo que é visto e tocado sempre passa a fazer parte de nós com mais intensidade e
significância do que aquilo que só é visto”. ( Montagu, 1988 : 295)
A alma tende mesmo para a imaginação.
Pesquisar a comunicação tátil em exposições de artes plásticas é proporcionar uma
tríplice integração: vincular-se com o mundo de sua cultura (sentimento de pertença), vincular-se
com o outro e vincular-se consigo mesmo, mantendo sua alma próxima.
Considerações finais: uma luz no início do túnel.
Neste momento, ao lançarmos nosso olhar “para trás”, vemos que há três linhas que
percorrem todas as páginas desta pesquisa: a linha tecida pelo pensamento do corpo, a da cultura
e a da comunicação. É hora de juntá-las numa linda trança, muito tátil, de preferência.
Este trabalho dedica-se ao deficiente visual, tanto àquele que nada vê como àquele que
enxerga pouco ou de forma fisicamente diversa, como é o caso dos daltônicos, por exemplo.
Afirmamos que é crença considerar o deficiente, qualquer que seja, um ser “incapaz”, fazendo
uma comparação com as culturas existentes, que embora sejam diferentes procuramos respeitar.
Por que não podemos conviver e aceitar as diferenças pondo em prática as palavras de Pross que
“comunicação é tolerância?”
Se para criar uma cultura é preciso um corpo e seus sentidos78
, para compreendê-la é preciso
perceber justamente o que acontece com ele, com o corpo. No caso do deficiente visual, os
outros sentidos concorrem para que a “dança das ordens sensoriais” não se interrompa, mesmo
convivendo com a escuridão ou com a permanência de tênues imagens ou até um mundo “fora
de foco”.
Visto que a comunicação opera com os sentidos e para diversas direções, apontamos uma
bifurcação de caminhos: o trilhado pela maioria, com o sentido da visão e o trilhado por uma
minoria, sem o mesmo. Procuramos esclarecer ao leitor a difícil tarefa que os deficientes visuais
devem executar para se integrarem a um mundo visual, explicado pelos que enxergam e que não
sentem (via comunicação tátil, primordialmente) e o mundo experenciado por eles. Mas
insistimos, com nossas descrições, chamar a atenção principalmente para “a incompreensão do
outro e a anulação de seu verdadeiro eu que deles é exigida”. (Amiralian, 1997: 301).
Ao refletirmos sobre um déficit num corpo, procuramos dirigir nossos pensamentos para
um corpo com um déficit, a perda de um sentido. Porém, ao seguir por aquela direção, nossos
olhos depararam-se com o corpo “como um todo de sentidos”. Como não ver o que acontece
com ele em nossa cultura (ou civilização) contemporânea? Esta questão comandou nosso
raciocínio para a situação inversa. O que aconteceu com o corpo, que elegeu justamente ter como
seu cão guia a visão, obedecendo cegamente a seu direcionamento, que é único, parcial, via de
um só sentido na comunicação? Sendo assim, propusemos tornar visível o invisível, tanto no que
isto possa representar de teórico como na prática.
Parece que houve um excesso de iluminação dentro do túnel e aí nada mais se vê. Muita
luz ofusca, cega. Quando foi que acenderam assim tanta luz? Que herança é esta?79
Cedo
aprendemos que os sentidos nos enganam, que somos seres racionais e assim, devemos seguir,
78
Cf. Michel Serres, Os Cinco Sentidos, p.237 79
Devo a inspiração da reflexão que se segue a Norval Baitello Junior, que, em curso ministrado no primeiro
semestre de 2001, PUC-SP, sobre “A crise da visibilidade”, lançou as sementes sobre o tema.
sem sentir, os passos da razão. Sem dúvida, há uma mudança de paradigma no século XVIII,
conhecido como século das Luzes, o século do Iluminismo. Ele traz para a humanidade a crença,
a fé absoluta e inquestionável na ciência.
Diderot (1713-1784) foi imortalizado como um dos maiores expoentes do Iluminismo
françês. Escreveu, em 1749, “Carta sobre os cegos”, um texto de juventude que inaugura o
pensamento materialista do autor. Comenta o escritor no texto, a experiência da remoção de
cataratas realizada na época. O que não via passou a ver, mas era preciso saber ver, o que causa
dificuldades. Mas isto era só um pretexto. Usa o cego como metáfora dos que enxergam. A
pergunta que permeia o texto é como se articula memória e imaginação e busca nos fazer
entender os limites que nossa visão não nos permite ver.
“Como jamais duvidei que o estado de nossos órgãos e de nossos sentidos muito
influenciam sobre nossa metafísica e sobre nossa moral...............”( Lagard, 1970:213)
Pergunta esta que ainda está no ar. Não entendemos nem respeitamos os limites, nós os
ultrapassamos, todos, em nome da fé da razão. Acrescenta Hillman que, desde o Iluminismo,
nossos adjetivos passaram a qualificar o mundo para descrever o “eu” fascinante, interessante,
tedioso, excitante, depressivo; essas palavras negligenciam as coisas que evocam os estados
subjetivos anima mundi, relações íntimas, conhecimento carnal, porque não acrescentarmos o
“conhecimento tátil?” (Hillman, 1993: 22)
A ciência destronou o conhecimento que se tinha da linguagem dos sentidos, o que
transtornou o mundo, o coletivo, nossos vínculos, nossa cultura, nossa comunicação... nosso
corpo. “Começamos a ver, a ouvir um mundo por uma carne prenhe de ciência e não mais de
linguagem, nosso corpo sabe mais do que fala, falava mais do que sabia”. (Serres, 2001: 350)
Para que todos participem, para dar “voz ao corpo”, descrevemos neste trabalho projetos
e curadores que propõem posturas diferentes, em museus e exposições de artes plásticas. Desde
as montagens até outros recursos materiais são descritos, a fim de conhecermos que meios
podem ou não ser utilizados para que a comunicação tátil concretize-se. A pesquisa de novos
materiais, a elaboração de réplicas, materiais complementares, textos em escrita braile ampliada,
etc. tudo colabora e é preciso que o público, em geral, conheça estas propostas, que até hoje são
pouco divulgadas.
Se tivesse que escolher uma palavra para sintetizar o que foi pensado nesta pesquisa
poderíamos dizer que esta palavra seria diferença. Apesar disso, não serão nas diferenças que
pautaremos estas linhas finais, mas pensando muito mais no que “dá a liga”. Assim, muito
escrevemos sobre o sentido do tato, afirmando ser ele o sentido que “mistura” todos os outros,
tanto para os que não enxergam, quanto para os que gozam de uma visão sadia. Aproveitando
esta imagem, fomos também buscar um elo de ligação para estas considerações finais e
resolvemos escrever sobre as igualdades. Igualdades estas encontradas tanto na cultura, ou seja,
no coletivo, quanto no individual, enquanto corpo biológico, social e cultural.
O que nos iguala como seres humanos é que a nossa aventura nesta vida é a mesma,
ansiamos todos pelas mesmas coisas, nossas aspirações encontram como base um mesmo
denominador comum. É nosso desejo compartilhado:
- Vincular-se com o mundo, com sua cultura, sentimento de pertença;
- Vincular-se com o outro;
- Vincular-se consigo mesmo, mantendo sua alma próxima.
Quando no capítulo anterior descrevemos o caso do Patrick, que com suas “mãos-olhos”
não pode aproveitar sua ida ao museu, sentiu-se ele isolado, sentiu que não “pertencia”. A
principal função da cultura é a de vincular, ela o faz por vários meios de comunicação, o que
gera a comunhão, o sentimento de pertença. É mesmo fato, como afirma Cyrulnik, que não
pertencer a ninguém é não se tornar ninguém, mas pertencer a uma cultura é tornar-se uma
pessoa única.
“A pertença cria o mundo em que podemos existir, dá forma às nossas percepções e nos oferece
os locais onde podemos desenvolver nossas competências”. (Cyrulnik, 1995: 76)
Todos nós temos as mesmas metas. Excluir o deficiente visual das mostras de artes
plásticas é lhe negar uma oportunidade. Não há como não concordar com Montagu quando diz
que se alguns grupos da humanidade estão mais adiantados em certos sentidos que os outros,
devem-no ao maior número de oportunidades que tiveram e não a uma suposta superioridade
nata. Conclui que a humanidade não é uma dádiva, é uma realização. E para realizá-la
necessitamos de oportunidades. (Montagu,1969:254)
Por isso que Maria Lucia Amiralian diz que “o cego é feito, não nascido”.Todos nós
somos feitos e aspiramos estarmos vinculados à nossa cultura. Mas não é só.
Vimos que cultura e comunicação pertencem à mesma esfera, portanto a comunicação
consiste na criação e manutenção de vínculos. Vincular-se com o outro é fundamental para todos
os seres vivos. Em nosso mundo midiatizado, deixamos escapar a manutenção destes vínculos,
distantes que estamos de nosso corpo. Para aqueles que não enxergam, a comunicação tátil é o
meio de vinculação, para os que enxergam, poderíamos sentir que é hora de um reaprendizado do
corpo enquanto mídia primária.
O objeto desta pesquisa, a mostra com a obra do artista Sacilotto, propõe o contato de
todos com as réplicas ou os relevos táteis. Não é só para os deficientes visuais. Ao permitir
tocar, o público, em geral, usufrui do prazer que o tato nos proporciona, que é inato, não adianta
esconder. Quantas vezes queremos (e colocamos as mãos, às vezes até escondidos) em objetos
intocáveis. É incontrolável, precisamos pôr a mão! Até em museus, lugares sacros, por
excelência, feitos para a contemplação, não raro são os casos que o segurança logo se aproxima
para evitar tal profanação.
Propositalmente, deixamos para este final, comentarmos que Sacilotto participou de uma
exposição, inaugurada no dia 09/12/1952, no Museu de Arte Moderna de São Paulo intitulada
Ruptura. Luiz Sacilotto assinou, com outros seis colegas o manifesto com o mesmo nome,
Ruptura. Naquela única folha de papel, lia-se, entre outras coisas, que queriam romper com o
velho e propor algo novo. Nem ele, nem nós, nem ninguém poderíamos imaginar que um dia ele
consentiria que uma nova ruptura fosse proposta e executada.
Quando Sacilotto mostrou a escultura Concreção 5730, 1957, (a da forma que foi
utilizada para nosso jogo, o do quebra-cabeça) à artista Lygia Clark, ela olhou e disse: minhas
esculturas vão se mexer e o espectador é que vai manipulá-las. De fato, pensou esta
contemporânea, obras como “campo de experiências”. Entretanto, as obras desta artista, quando
expostas, ou são feitas réplicas ou ninguém pode tocar, o que nos parece um contra senso. A
obra espera o outro, espera mesmo.
O fato de Sacilotto ter consentido fazer o que fizemos com sua obra propiciou, não só,
como ele disse numa entrevista, “ver diferente”. Proporcionou também que o deficiente visual
pudesse experimentar criar uma forma em seu corpo. A relação estabelecida entre objetos e
corpo não é atingida através do significado ou da forma (imagem visual do objeto), mas através
de sua imagem sensorial, algo vivido pelo corpo. É vivido “numa interioridade imaginária do
corpo onde encontra significado”.80
Podemos dizer que quando o corpo encontra significados
pode exercitar sua imaginação, vincular-se consigo mesmo, “mantendo sua alma próxima”.
“A imaginação está criando continuamente, criando e recriando a natureza numa nova
forma”.(Hillman, 1993:123). Deve ser valorizada. A arte, para o semioticista da cultura, situa-se
no centro dela, produz textos criativos, que são manifestações da segunda realidade e que todos
necessitamos para nossa sobrevivência psíquica. “O artista possibilita-nos vivenciar nossos
próprios sonhos sem escrúpulos e sem sentimentos de vergonha”.81
A alma tem necessidade estética, de beleza. A alma é a mesma, tendo como morada um
corpo deficiente ou não, da mesma cor ou não, da mesma cultura ou não, desde os tempos
imemoriais. “A necessidade que a psique tem de beleza é fundamental”.(Hillman, 1993: 122) A
Semiótica da Cultura nos mostra o desenvolvimento real da cultura até agora e se conhecemos as
tendências da cultura podemos discernir o que fazer num momento difícil.82
Este é um momento
difícil! A inflação das imagens trouxe consigo a cegueira, impedindo a imaginação. Vivemos
todos neste mundo das informações e não das percepções (Cyrulnik). Para aquelas basta a visão,
para estas todos os sentidos. “Cada objeto conhecido por nós contém em si uma informação
latente, que nós percebemos pelos nossos sentidos”.83
Distantes deles, o que percebemos?
Sim, agora é hora de encerrar esta dissertação, mas ainda não daremos uma conclusão.
Uma dissertação de mestrado hoje tem prazo máximo de dois anos e o nosso esgotou-se.
Coincidência ou não, devemos depositar este volume agora em março (mês dedicado ao deus
Marte) e defender a tese em abril. Assim, resolvi, ao terminá-la, adotar o deus Marte84
como
protetor desta pesquisa. Ele é o deus do despertar, o que dá a resposta à desesperança e à
incapacidade. É o deus da mobilização. Marte pede a batalha, não o extermínio, nem mesmo a
vitória. Os romanos o chamavam de Marte caecus (cego) sendo ele o instigador, o ativista
80
Apud Catálogo da Fudação ....MAC.Guy Brett.Lígia Clark, Seis Células. 81
Bystrina.... 82
I. Bystrina,.. 83
ibidem, p.4. 84
Todos os dados informados são retirados de Hillman, A Cidade e a Alma, 1993,pp.88-93
primordial. Ele intensifica os sentidos e exalta o sentimento de solidariedade em ação. Março é
seu mês e Abril, Marte Apertus, a abertura, o fazer coisas acontecerem.
Ao adotar Marte como divindade, me dei conta que era exatamente o que gostaria
de escrever neste espaço. Só resta insistir que muita luz cega e a luz no final do percurso de nada
adianta. Nada mais concluímos, está tudo em aberto, apenas uma luz no início do túnel. Sentimos
que esta pesquisa age como o tato, “às apalpadelas”, cuidadoso, lento e humilde.
Viver se satisfaz com as penumbras, ler exige a claridade (Serres, 2001: 64)
“A mão corre no fuso, no ofício, em torno das agulhas, cria o fio, torce-o, passa-o,
dobra-o,enlaça-o, a mão é rápida nas junções e nas amarrações, e encontra de pronto a
passagem no avesso que o olho não vê, passeia através da translucidez do vidro, nivela os grãos
esparsos do acaso, pontiagudos que só ela sabe escolher, traça na planura anéis de debruns,
feliz entre esses arabescos e guirlandas, a mão dança, usufruindo desses graus de liberdade.”
(Serres, 2001: 79)
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