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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03008
A CONCEPÇÃO ARISTOTÉLICA ACERCA DOS JOGOS E DOS
DIVERTIMENTOS E SUAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS
AVANÇO, Leonardo D. (UNESP/CAPES)
LIMA, José M. (UNESP)
Introdução
Atualmente, a ludicidade tem sido considerada um dos objetos de destaque para o
pesquisador interessado pelas ciências. Ao contrário do ocorrido no passado da história do
pensamento ocidental, o fenômeno recentemente ganhou espaço nos debates científicos e
vem sendo teorizado pela psicologia, fisiologia, biologia, sociologia, antropologia,
pedagogia, etc. Tal inversão de enfoques provavelmente sugere que a atual sociedade tem
propiciado um espaço de vivências onde o lúdico constitui-se em um dos eventos centrais
da vida humana, despertando o interesse do pesquisador.
Isto não quer dizer que atualmente a ludicidade esteja mais presente do que esteve
antes na dinâmica da vida de sociedades pretéritas, pois como bem ressaltaram os
especialistas na temática Huizinga (2008) e Caillois (1994), os jogos e as brincadeiras se
constituem em práticas presentes nas mais remotas épocas de formação das sociedades,
embora sua forma e conteúdo tenham se transformado no transcurso do desenvolvimento
da história social.
Ocorre que, por diversas razões, atualmente a ludicidade torna-se um dos temas
centrais de pesquisas científicas, ao passo que desde os primórdios da filosofia tal tema
ocupou regiões periféricas do interesse intelectual do pensador.
De acordo com Duflo (1999), desde as considerações elaboradas por Aristóteles até
as de Kant e Schiller, isto é, cerca de aproximadamente dois milênios, a temática do jogo
pouco evoluiu no âmbito teórico, sendo que o interesse atualmente existente consiste em
um fenômeno que não se observa no exame da filosofia e da ciência clássicas, pelo menos
no que se refere aos principais nomes que marcam a história do pensamento ocidental.
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Com efeito, o que pretendemos aqui discutir, de fato, é um assunto pouco
examinado ou retomado historicamente na teoria aristotélica, qual seja, as implicações
pedagógicas de sua concepção acerca dos jogos e dos divertimentos.
Diante da diversidade de abordagens que atualmente buscam compreender os
problemas que envolvem o estudo do jogo, poderíamos questionar: o que foi produzido nos
primórdios da filosofia influiu no modo hegemônico pelo qual atualmente se entende o
jogo e sua relação com a educação? Se sim, de que maneira? Quais as contribuições da
filosofia aristotélica para o desenvolvimento da temática da relação entre jogo e educação?
Dada a relevância dos trabalhos de Aristóteles para história cultural do Ocidente,
julgamos necessário realizar uma análise do seu pensamento e abordar um dos aspectos da
temática dos jogos e dos divertimentos presente na obra: Ética a Nicômaco. Por
conseguinte, espera-se que tal empreendimento teórico ofereça bases para uma reflexão
mais profunda, por um lado, acerca das relações entre jogo e educação na filosofia
aristotélica e, por outro lado, acerca das conseqüências desta concepção no
desenvolvimento das idéias que a este respeito surgiram no curso histórico.
Referencial Teórico
O presente trabalho parte de diferentes referenciais teóricos, embora possua uma
base de pensamento que se sustente no materialismo histórico.
Assim como propõe Chauí (2002), entendemos que para compreender determinado
tipo de sistema filosófico não podemos nos basear somente na interpretação pessoal que
realizamos das fontes textuais, mas devemos ampliar nossa leitura ao máximo de modo que
acompanhemos o desenvolvimento da filosofia do autor que pretendemos conhecer, por
meio do conhecimento dos debates realizados pelos principais intérpretes, comentadores e
defensores de seu sistema filosófico.
Este tipo de abordagem da pesquisa julga que o movimento e o desenvolvimento
fazem parte da natureza e da sociedade como um todo, inclusive da filosofia e da ciência,
mesmo que não haja uma finalidade ou propósito exterior às próprias relações que o
homem estabelece com a natureza e com a própria sociedade, e mesmo que seja o próprio
homem quem indica os critérios e os parâmetros do desenvolvimento objetivo dessas
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mesmas natureza, sociedade, filosofia e ciência, com as quais entra forçosamente em
relação.
Queremos dizer com isso que, por se tratar de materialismo, entende-se que as
idéias nascem muito posteriormente à matéria, ao passo que por se tratar de história,
compreende-se que o movimento e o desenvolvimento fazem parte tanto da matéria
inorgânica, quanto do ser orgânico e do ser social e, portanto, da cultura como um todo.
Isto quer dizer que um sistema filosófico não se encontra acabado de uma vez por todas
após ter sido escrito por seu autor, mas pode transformar-se na medida em que seja
possibilitado aos homens interpretá-lo na tentativa de encontrar respostas às questões que
elaboram em outras épocas históricas.
De acordo com Politzer (1999), o materialismo, ao contrário do idealismo, é uma
filosofia que se apóia na ciência, ao passo que o materialismo histórico e dialético surge
como uma filosofia que se baseia nos avanços dos saberes produzidos pela ciência do
século XIX, elaborando assim uma nova fase da filosofia materialista. É com base neste
referencial filosófico que apoiamos nossas análises em um âmbito mais geral, valorizando
principalmente a retomada da perspectiva histórica como a possibilidade de se
compreender o presente como um processo que se baseia no passado e que aponta
tendências para o futuro.
No que tange ao âmbito específico do referencial teórico aqui empregado, nos
apoiamos em algumas obras da filosofia de Aristóteles. Contudo, para os fins do presente
trabalho empregamos especial atenção à obra Ética a Nicômaco, uma vez que neste texto
Aristóteles expõe interessantes reflexões sobre o que se deveria entender acerca dos jogos
e dos divertimentos.
Objetivo Geral
O objetivo geral do presente trabalho pode exprimir-se nos seguintes termos:
compreender um específico aspecto da concepção aristotélica acerca dos jogos e dos
divertimentos e as respectivas implicações pedagógicas que por conseqüência derivam
desta concepção.
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Objetivos Específicos
Podemos resumir os objetivos específicos do presente trabalho em dois tópicos
essenciais:
a) suscitar uma reflexão mais profunda sobre a relação entre as teses teóricas de
Aristóteles e as atuais representações que o senso comum elaborou sobre o jogo;
b) resgatar uma temática pouco discutida no âmbito acadêmico e científico, qual
seja, a das contribuições que a filosofia clássica oferece para a ampliação dos debates
acerca das implicações pedagógicas do jogo.
Metodologia
Este é um trabalho de natureza teórica e assume o materialismo dialético como
método de compreensão da realidade histórica. Além disso, utilizamos a metodologia
teórico-bibliográfica para a sistematização e análise dos textos.
Segundo Kopnin (1978), o materialismo dialético enquanto lógica e teoria do
conhecimento pode possibilitar à ciência a compreensão dos fenômenos em sua essência
interna, isto é, do movimento real que não se apresenta ao investigador em seu primeiro
contato com a realidade, mas do qual ele vai se aproximando na medida em que reproduz
idealmente este movimento que originariamente é objetivo. Esta reprodução ideal do
movimento da realidade objetiva, que se apresenta a princípio em sua forma fenomênica e
aparente, é explicada pelo autor através da teoria do reflexo.
Esta teoria representa a chave para a compreensão das relações entre as leis do ser e
as leis do pensamento em sua unidade com a teoria do conhecimento. Seu princípio de base
fundamenta-se na tese de que o pensamento é reflexo do mundo objetivo, no entanto, não
se apresenta como uma cópia dele, pois os aspectos subjetivos possuem fundamental
importância na produção do conhecimento: o pensamento e a imaginação criam a realidade
humana de acordo com suas necessidades, porém somente na medida em que se apropriam
do movimento do mundo objetivo e posteriormente se voltam à realidade para transformá-
la por meio da atividade prático-objetiva. A contradição dialética entre objetividade e
subjetividade manifesta-se, portanto, na unidade da práxis humana, isto é, na atividade
prática, consciente, social e transformadora do homem (KOPNIN, 1978, p. 50).
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De forma análoga a Kopnin (1978), Kosik (1976, p. 28) formulou o método de
reprodução espiritual do movimento real-objetivo. Este autor também afirma que as leis do
pensamento refletem as leis da realidade objetiva. Nesta perspectiva, é evidenciado o
caráter dialético da produção do conhecimento na medida em que se compreende este
como um processo de minuciosa reconstrução ideal do movimento real do fenômeno no
interior de uma totalidade que o abrange, isto é, partindo-se do movimento que se processa
das partes para o todo e do todo para as partes.
Os conceitos de essência e verdade, portanto, não assumem para o método
materialista dialético a mesma significação que a lógica formal os emprega, isto é, como
conceitos que possuem as qualidades de imutabilidade, de eternidade, de absolutização.
Pelo contrário, a essência interna e as verdades sobre um fenômeno devem representar o
movimento que parte do fenômeno para essência e da essência para o fenômeno, de modo
que o conhecimento sempre deve se aproximar da totalidade concreta, que por sua vez não
é totalidade absoluta e fechada, mas totalidade que se faz, se refaz e se transforma no
processo histórico: tal é a concepção do materialismo dialético de interpretação dos
fenômenos.
É válido ressaltar que foi por meio do materialismo histórico e dialético que fomos
exortados a estudar os textos debatidos no presente trabalho. Aliás, é com o intuito de
realização de um resgate histórico, característica essencial da teoria e do método em
questão, que tal abordagem teórico-metodológica se afirma, uma vez que se entende que os
novos conhecimentos somente podem surgir na medida em que se apóiam no que já foi
produzido pela história da humanidade. Nesse sentido, a retomada dos textos de Aristóteles
se fez necessária na medida em que notamos uma falta de estudos mais profundos sobre a
contribuição da história da filosofia para a temática das relações entre jogo e educação. O
presente trabalho teórico, apoiado no materialismo histórico e dialético, busca suprir
relativamente parte deste problema, analisando algumas das importantes contribuições da
filosofia aristotélica.
Situemos neste momento o modo como a metodologia teórico-bibliográfica se
desenvolveu no presente trabalho. Segundo Gil (2002, p. 44) a pesquisa bibliográfica é
desenvolvida:
[...] com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. Embora em quase todos os estudos seja
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exigido algum tipo de trabalho dessa natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas. Boa parte dos estudos exploratórios pode ser definida como pesquisas bibliográficas. As pesquisas sobre ideologias, bem como aquelas que se propõem à análise das diversas posições acerca de um problema, também costumam ser desenvolvidas quase exclusivamente mediante fontes bibliográficas.
O autor afirma que a grande vantagem da pesquisa bibliográfica é permitir ao
investigador a captação de informações mais amplas sobre o fenômeno, visto que já foram
realizados estudos sobre o assunto, isentando o investigador da captação direta de dados
diversos. Os dados bibliográficos representam, portanto, o produto de estudos maduros ou
não sobre um fenômeno particular. Essa vantagem torna-se importante na medida em que
capacita a reunião de dados diversos exigidos pelo problema da pesquisa. O autor, no
entanto, ressalta a importância da identificação dos dados secundários, uma vez que muitas
pesquisas podem realizar o processo de coleta e de investigação de dados de forma
equivocada.
Durante todo o andamento deste trabalho realizamos o processo de documentação
sistemática. Segundo Severino (1993), a documentação, enquanto organização do estudo e
da produção teórica pessoal, pode ser dividida em três tipos: documentação temática,
bibliográfica e/ou geral. A documentação temática caracteriza-se pela captação de dados e
de elementos específicos a um assunto, sejam dados formais, anotações pessoais,
exposições de experiências vivenciadas no cotidiano, etc., desde que estejam relacionados
a um tema específico. A documentação bibliográfica, por sua vez, caracteriza-se pela
aquisição de dados específicos em fontes específicas, isto é, em fontes bibliográficas tais
como livros, artigos, revistas científicas, etc. Por fim, a documentação geral caracteriza-se
pela reunião de recursos materiais perecíveis, isto é, aqueles recursos sobre os quais o
pesquisador não possui o controle da publicação, que eventualmente podem perder-se com
o tempo ou seu acesso tornar-se complicado posteriormente. Estes podem converter-se em
documentação temática ou bibliográfica na medida em que são utilizados pelo pesquisador
em um trabalho futuro.
No presente trabalho focamos no processo de documentação bibliográfica, visto
que esta possibilita a compreensão do problema e auxilia de forma decisiva o cumprimento
dos objetivos. Assim, realizamos fichamentos sistemáticos de todas as obras aqui
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referenciadas. Contudo, para os fins aqui propostos, estamos nos apoiando como já foi
dito, em especial, na análise da obra Ética a Nicômaco.
Desenvolvimento
Para compreendermos o lugar do jogo na Ética de Aristóteles é fundamental que
situemos, antes de tudo, o princípio da causa final.
Aristóteles (1995) dizia, na Física, que todas as coisas que existem podem ser
analisadas com base em quatro tipos de causas: material, formal, eficiente e final. A causa
material representaria o princípio sensível pelo qual todo objeto é feito: por exemplo, uma
cadeira feita de aço. Porém, do ponto de vista da causa formal, esta mesma cadeira só
poderia tornar-se um dia cadeira por intermédio do modelo Cadeira (forma), que o homem
conhece e aplica ao aço (matéria). Em conseqüência, se é o homem quem conhece a forma
da Cadeira, é ele quem se afirma como a causa eficiente pela qual o aço pode transformar-
se em cadeira. Por fim, a causa final indica o destino, a função do objeto “cadeira”, que no
presente caso teria a finalidade de assento.
Este princípio metodológico da filosofia aristotélica foi utilizado na abordagem de
variados problemas de pesquisa, inclusive sobre os problemas que envolviam as questões
da compreensão do lugar do homem na ordem cosmológica. É necessário esclarecer,
entretanto, que o Homem, para Aristóteles (1985), era o cidadão adulto livre, excluindo as
crianças, as mulheres e os escravos.
Assim, identificava-se a carne e os ossos como a causa material do homem, bem
como a alma intelectual como a causa formal que o distinguia dos outros seres vivos
(ARISTÓTELES, 2003, p. 230-231). Quanto à causa eficiente, entendia-se que o homem
era um ser vivo que participava do gênero dos animais. Com efeito, os animais eram
gerados pelo esperma, que por sua vez seria portador do princípio ativo masculino que
animaria o princípio passivo feminino, culminando na reprodução (ARISTÓTELES, 1994,
p. 84).
A presente análise acerca do homem foi submetida rapidamente ao princípio de três
causas, restando agora examiná-lo com base na causa final. E é justamente neste campo
que se circunscreve o terreno da Ética, buscando respostas à questão: a que está destinada a
existência do Homem? Aristóteles (1984, p. 51) entendia que a maioria das pessoas tinha
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razão ao responder que a felicidade (eudaimonia) seria o fim da vida humana; porém,
julgava que as controvérsias se originavam da tentativa de identificação da questão: O que
é a felicidade?
Aristóteles (1984, p. 49) dizia que todas as ações do homem tenderiam para um
fim. Deste fim, poderíamos distinguir duas espécies, a saber: por um lado, os fins que
teriam em vista algo exterior à própria atividade que se realiza (por exemplo, os produtos
ou efeitos da atividade); por outro lado, os fins que visariam a si mesmos enquanto
atividade, isto é, as atividades que se justificam em seu próprio processar-se. De acordo
com esta distinção, julgou-se que a segunda categoria de fins deveria ser desejada pelos
homens, pois ela não necessitaria de nada mais além de si mesma para justificar-se e,
portanto, seria completa e perfeita, resultando na felicidade (o sumo bem) caso fosse
devidamente praticada.
Com efeito, a felicidade não poderia corresponder a estados de prazer sensível,
visto que estes sempre procurariam objetos exteriores ao próprio homem, consumando
fatalmente uma espécie de prazer conjugado à exterioridade, ou seja, de prazeres
mesclados e parciais. De acordo com Aristóteles (1984, p. 220), então, o mais genuíno dos
fins seria aquele que o escolhemos por si mesmo e não por uma causa exterior que
condicionaria a nossa escolha.
Algo dessa natureza não poderia derivar do mundo empírico-sensível, donde as
coisas estariam todas misturadas; pelo contrário, a felicidade deveria derivar de um plano
mais sublime, oposto ao meramente corpóreo.
[...] há muitas coisas que devemos desejar com todas as veras, ainda que não nos tragam nenhum prazer, como a vista, a memória, a ciência, a posse das virtudes. Não faz diferença que essas coisas sejam necessariamente acompanhadas de prazer: deveríamos escolhê-las mesmo que nenhum prazer resulta-se daí (ARISTÓTELES, 1984, p. 222).
Os prazeres corporais seriam contrapostos ao fundamento essencial à felicidade,
uma vez que seriam sempre mesclados, admitiriam graus (mais ou menos prazer ou dor) e,
principalmente, se originariam da fonte vil do ser humano, isto é, a fonte da sensibilidade:
“Parece claro, portanto, que nem o prazer é o bem, nem todo prazer é desejável, e que
alguns prazeres são realmente desejáveis por si mesmos, diferindo eles dos outros em
espécie ou quanto às suas fontes”, dizia Aristóteles (1984, p. 222).
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Os prazeres desejáveis por si mesmos, todavia, só poderiam derivar da outra fonte
que constitui o ser humano, a fonte da alma intelectiva. A contemplação, nesse sentido,
constituiria a atividade que os homens deveriam desejar, pois a sua natureza
corresponderia ao conceito de felicidade enquanto um acompanhamento de uma atividade
que possui em si mesma o princípio que justifica seu próprio realizar-se independente e
impassível.
Existiriam, contudo, certos níveis de atividade contemplativa, que por sua vez
formariam uma espécie de hierarquia. Nesta perspectiva, a atividade contemplativa
genuinamente intelectual diferiria das contemplações sensitivas, como por exemplo, da
contemplação visual e auditiva. Com efeito, para o filósofo, a contemplação intelectual
ocuparia o mais alto grau da hierarquia, se identificando com a arte mestra com a qual todo
o homem que sobre ela se deleitasse seria acompanhado pela verdadeira felicidade
(ARISTÓTELES, 1984, p. 222-223).
Aristóteles (1984, p. 226-227) havia chegado então à conclusão de que a atividade
contemplativa intelectual seria a melhor das atividades. Contudo, no livro X da obra Ética
a Nicômaco estabeleceu-se uma comparação entre, por um lado, a atividade contemplativa
intelectual e, por outro lado, os jogos, os divertimentos e as recreações:
Também se acredita que as recreações agradáveis sejam dessa natureza. Não as escolhemos tendo em vista outra coisa, uma vez que antes somos prejudicados do que beneficiados por elas: tais atividades nos levam a negligenciar nossos corpos e nossos bens materiais.
É interessante notar que neste momento da discussão se identificou as “recreações
agradáveis” com as atividades que teriam em si mesmas a razão do seu processar-se. Ora,
com que finalidade, desinteressadamente, um homem joga xadrez ou uma criança brinca de
casinha? Examinando estas atividades “recreativas” não se constata nada que lhes seja
exterior, ou seja, ao final da atividade não se averigua nenhum produto visível, assim como
a contemplação. O motivo da atividade coincide com seu próprio desenvolver-se e,
portanto, coincide com próprio conceito de felicidade proposto na Ética.
Ao contrário da concepção baseada na obra Leis, na qual Platão (1999) asseverava
que os homens deveriam dedicar-se aos jogos, às danças e às recreações mais saudáveis
ligadas aos rituais religiosos, identificando-os conseqüentemente como a causa final da
existência humana, Aristóteles (1984, p. 228) entende esta questão de modo inverso:
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Ora, esforçar-se e trabalhar com vistas na recreação parece coisa tola e absolutamente infantil. Mas divertir-nos a fim de poder esforçar-nos, como se expressa Anacársis, parece certo; porque o divertimento é uma espécie de relaxação, e necessitamos de relaxação porque não podemos trabalhar constantemente. A relação, por conseguinte, não é um fim, pois nós a cultivamos com vistas na atividade.
A concepção ética de Aristóteles (1984) inverteu a finalidade das recreações e dos
jogos transformando-os em um meio, em uma espécie de relaxação. Porém, deve-se
ressaltar que não interessava ao filósofo saber o que o jogo é, mas pelo contrário,
interessava-lhe colocá-lo em seu devido lugar. Era necessário edificar, com efeito, uma
hierarquia de atividades na qual o jogo só poderia obter um valor se ele funcionasse como
um apêndice das atividades verdadeiramente legítimas, isto é, como um descanso ou uma
relaxação para o trabalho ou para a contemplação.
É certo que conceituar os divertimentos baseado somente no que eles devem ser (e
não pelo que de fato o são) constitui um ajuizamento puramente moral, portanto, tal
julgamento contribui muito pouco para compreendermos sobre o significado ontológico
dos jogos ou das recreações. Entretanto, não poderia ser diferente, pois a natureza do
escrito em que esta discussão foi elaborada é embasada pelas questões do dever ser e não
as do ser. Vejamos como Aristóteles (1984, p. 228) se expressava:
Ora, uma vida virtuosa exige esforço e não consiste em divertimento. E dizemos que as coisas sérias são melhores que as risíveis e as relacionadas com o divertimento, e que a atividade da melhor entre as duas coisas – quer se trate de dois elementos do nosso ser, quer de duas pessoas – é a mais séria.
Os divertimentos e as coisas risíveis corresponderiam às atividades que
comprazeriam o elemento sensível (agradável) do homem – o corpo. Por outro lado, a
atividade séria e intelectual corresponderia à satisfação do “elemento sublime”, isto é, o
elemento inteligível (racional). Para Aristóteles (1984), por um lado, as pessoas que
viveriam dos divertimentos levariam uma vida à semelhança daquelas que comprazem aos
tiranos tê-las ao seu lado, nas cortes fazendo-os rir; por outro lado, as pessoas que viveriam
da contemplação intelectual seriam os filósofos. Por fim, o divertimento, para o filósofo,
seria uma atividade secundária e acessória; secundária porque seria menor e inferior,
acessória porque só se justificaria como um meio.
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Considerações Finais
Pelas análises da Ética de Aristóteles chegamos à conclusão de que o jogo se
constitui em uma atividade de valor menor. Ou melhor, só lhe seria atribuído um valor na
medida em que funcionasse como um apêndice, um meio, uma espécie de relaxação para a
posterior retomada das atividades legítimas.
Ao contrário da atividade contemplativa intelectual, os jogos e as recreações,
quando exortadas como atividades que se justificariam a si mesmas, teriam por finalidade o
prazer sensível, sensações estas também experimentadas por outros animais. Com efeito,
na hierarquia das atividades humanas que mais se aproximariam da felicidade, o jogo teria
um valor na medida em que servisse de suporte às atividades que verdadeiramente
conduziriam o homem à vida correta.
Apoiando-nos neste argumento poderíamos nos questionar: para Aristóteles, teria o
jogo uma função pedagógica? Bem, em primeiro lugar ele funcionaria como um descanso
necessário à realização das atividades sérias. E é justamente este o modo como as escolas
estão organizadas na atualidade, destinando, por um lado, horários específicos para o
estudo sério e, por outro lado, um pequeno intervalo de descanso que nomeamos
comumente de recreio. Neste primeiro sentido, em si mesmo o jogo não possui uma
implicação pedagógica direta, mas sim indireta.
Por outro lado, Aristóteles (1985, p. 257) entendia que a criança pequena não
possui a racionalidade desenvolvida e que, portanto, a instrução intelectual precoce seria
estéril:
[...] da mesma forma que a alma e o corpo são duas partes distintas, podemos ver que a alma também se compõe de duas partes – a irracional e a racional – e que suas disposições são em número de duas, das quais uma é a parte apetitiva e a outra é a inteligência; como o corpo é anterior à alma no processo de geração, a parte irracional da alma é anterior à racional. Isto é óbvio também porque a irascibilidade e a vontade, e igualmente os apetites, existem nas crianças desde o seu nascimento, mas o raciocínio e a inteligência só se manifestam nelas à proporção que elas crescem.
Assim, as atividades recreativas e os jogos que fortaleceriam o corpo seriam
essenciais a um programa educacional (ARISTÓTELES, 1985, p. 263). Este modo de
abordar a implicação pedagógica do jogo no desenvolvimento infantil sugere que se
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identifique jogo e criança com a parte sensível da alma. A importância dada ao jogo,
portanto, decairia na medida em que a razão fosse se desenvolvendo e ocupando o lugar
que os prazeres sensíveis possuíam na vida infantil. Neste segundo sentido, o jogo possui
uma implicação pedagógica direta.
É interessante notar que, novamente, as idéias do atual sistema educacional se
harmonizam de certa forma aos argumentos de Aristóteles. Um exemplo notável é a
organização das chamadas pré-escolas e o lugar dos jogos e brincadeiras na dinâmica da
vida infantil. Valoriza-se discursivamente, com efeito, o brincar como uma característica
natural da criança e essencial ao seu desenvolvimento. Por considerarem-se os jogos e as
brincadeiras como naturais à criança, foi criado atualmente o direito infantil ao brincar.
Graças aos esforços da atual ciência na tentativa de compreender o jogo infantil, é
possível compreender que não é simplesmente a afinidade entre criança, jogo e parte
sensível da alma que constitui a base de explicação da função do jogo no desenvolvimento
humano. Entretanto, é curioso observar que um dos argumentos mais correntes presente no
senso comum é a justificação da introdução do jogo para as crianças como a atividade que
coincide com a sua natureza, o seu modo de sentir e experimentar o mundo, que, por
conseguinte, não seria racional.
Por fim, conclui-se que a abordagem teórica dos jogos e divertimentos anunciada
por Aristóteles ainda influi sobremaneira no modo hegemônico como os compreendemos.
No que se refere às implicações pedagógicas desta abordagem, por exemplo, é notável o
reflexo de sua concepção orientando teoricamente a organização das instituições pré-
escolares e escolares, bem como instrumentalizado o modo como o senso comum concebe
as relações entre jogo e educação. Partidários da ciência psicológica materialista,
interessados pelo estudo do jogo e suas implicações pedagógicas, atualmente contrariam
relativamente suas teses, embora elas tenham produzido um avanço sem precedentes na
época em que abordavam estes problemas.
REFERÊNCIAS
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ARISTÓTELES. Física. Traducción: Guillermo R. de Echandía. Madrid: Editorial Gredos, 1995. ARISTÓTELES. Política. Tradução: Mario da Gama Cury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985. ARISTÓTELES. Reproducción de los animales. Traducción: Ester Sánchez. Madrid: Editorial Gredos, 1994. BROUGÈRE, G. Jogo e Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. CAILLOIS, R. Los juegos y los hombres: La máscara y el vértigo. Fondo Cultura Económica: México, 1994. CHAUÍ, M. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. DUFLO, C. O jogo: de Pascal a Schiller. Tradução: Francisco Settineri e Patrícia C. Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2008. KISHIMOTO, T. M. Jogos infantis: o jogo, a criança e a educação. 14 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. KOPNIN, P. V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Tradução: Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. (Coleção Perspectivas do Homem, vol. 123). KOSIK, K. A dialética do concreto. 7. ed. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2002. PLATÃO. As leis. São Paulo: EDIPRO, 1999. SEVERINO, A. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 1993.