Post on 28-Dec-2015
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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP
Departamento de Sociologia
A construção midiática do “noia” e o populismo penal no Brasil
Artigo escrito para a disciplina
Prisões na Sociedade Moderna,
com professor Laurindo Minhoto por
Erica do Amaral n.USP: 7633792
Jéssica da Mata n.USP: 7635651
Renata Oliveira n.USP: 7548504
Victor Bastos n.USP: 7635773
1
Resumo:
O presente artigo busca, por meio da análise de reportagens de diversos jornais e revistas, demonstrar
como a mídia brasileira tem identificado o usuário de drogas no país e qual a relação entre a construção
midiática e o atual contexto político criminal brasileiro, considerando nossa inserção no populismo
penal.
1. O Brasil, a mídia e o populismo
As formas de gerência e combate ao crime no Brasil têm sido muito discutidas pelos criminólogos
devido às particularidades que nosso país tem no âmbito da politica de segurança pública.
A exemplo disso temos a muito apontada inserção do Brasil no chamado Sistema Penal do Capitalismo
tardio , na qual ocorre uma desmoralização e criminalização das populações mais afetadas pela vitória 1
do capitalismo vídeo-financeiro.
Isto está muito relacionado com a ideia de populismo penal em que "muitos políticos são seduzidos a
implementar politicas custosas e ineficientes, eles aderiram ao populismo penal, ativando politicas
baseadas primariamente em sua popularidade antecipada a despeito de sua eficiência."2
Desta forma, a mídia se apresenta como um dos meios de legitimação do sistema penal, algo que pode
ser verificado muitas vezes ao longo da história, mas que tem maior destaque na atualidade devido,
principalmente, ao papel central das empresas de telecomunicações na economia mundial de hoje, algo
muito fácil de entender, uma vez que se assume como a intervenção penal pode funcionar em favor das
transições econômicas, o que nos foi trazido à vista no trabalho de Rusche e Kircheimer .3
No caso brasileiro isso é ainda mais marcante, posto que aqui a indústria televisiva é ainda mais
monopolizada, controlada por poucas pessoas ou famílias. Três delas têm maior peso: a família
Marinho - à frente da Rede Globo, que possui 38,7% do mercado, de rádios jornais e revistas-, o
bispo da Igreja Universal do Reino de Deus Edir Macedo, maior acionista da Rede Record, que detém
1 Batista, Nilo.(2009) Mídia e sistema penal no capitalismo tardio.2 Pratt, John. (2007).Penal Populism.3 Batista, Nilo. (2009) Mídia e sistema penal no capitalismo tardio.
2
16,2% do mercado, e Silvio Santos, à frente do SBT, 13,4% do mercado.4
Temos também a família de Roberto Civita, que controla o Grupo Abril, a qual detém cerca de 60% do
mercado editorial. No controle dos principais jornais, temos a famílias Frias, à frente da Folha de
S.Paulo-, os Mesquita, do O Estado de S. Paulo, a família Sirotsky- do grupo RBS, que controla o
jornal Zero Hora, além de TVs, rádios e outros diários regionais.
Vale lembrar, que há famílias ligadas a políticos tradicionais que estão no comando de grupos de mídia
em diferentes regiões, como os Magalhães, na Bahia, os Sarney, no Maranhão, e os Collor de Mello,
em Alagoas. Além do não declarado, mas cristalino apoio da Veja de São Paulo ao PSDB.
Demonstrada essa facilidade no controle, a legitimação midiática é feita através de afirmação e
propagação de dogmas , tais como o dogma que será tratado neste trabalho: "as drogas são absoluta e 5
necessariamente até amaldiçoadas, tornando malditos seus usuários". Por conta disso, usuários de
drogas costumam sofrer grandes preconceitos, de maneira que o papel das representações simbólicas
da mídia contribuem na legitimação do uso da violência contra eles. Conforme será demonstrado mais a
frente, o emprego de meios violentos no trato as drogas se manifesta desde o “enquadramento” policial
de adolescentes usuários ou estudantes universitários até casos de internação compulsória.
1.1. A droga como tabu na sociedade:
O uso de drogas é um dos maiores tabus enfrentados na sociedade brasileira, que estimula o tráfico e a
exclusão social de parcela de seus consumidores. Muito é falado dos males que as drogas causam à
saúde, argumento que pouco se sustenta, uma vez que outras drogas lícitas, como o álcool, tabaco,
anfetamina e etc, também são prejudiciais à saúde, assim como outras substâncias não classificadas
como drogas, como a gordura trans.
Dessa forma, é necessário um resgate histórico para que se entenda o motivo da formação e
perpetuação deste tabu. O uso de drogas sempre esteve ligado à classe marginalizada da sociedade.
Esta sociedade, por sua vez, sempre reprimiu e rejeitou qualquer ligação a estas classes subintegradas.
4Matéria publicada na BBC Brasil online: “Conheça os principais magnatas da mídia no mundo”. Disponível em:http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/07/110718_magnatas_bg_cc.shtml#page-top
5 Batista, Nilo.(2009) Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio.
3
A maconha, por exemplo, que é a droga mais consumida no mundo, foi difundida no Brasil pelos
negros que a fumavam nos candomblés, classe muito mal vista pela elite brasileira, assim como a droga
utilizada por eles. Outro fator que contribui para a estigmatização dos entorpecentes é a lei brasileira
que, desde 1964, adota claro modelo proibicionista e inclui o Brasil no cenário mundial de guerra às
drogas.
Neste sentido, qualquer discurso que pretenda mudar ou simplesmente questionar este cenário é tido
como “apologia às drogas”, tipificada pela Lei 11.343/06. No entanto, a recente decisão do STF
quanto a não criminalização da Marcha da Maconha, que defende a legalização da droga, configura um
avanço no debate, mesmo que a decisão tenha sido alvo de inúmeras críticas por setores mais
conservadores.
O que se propõe aqui é demonstrar como a mídia contribui na construção do estigma do usuário de
drogas, o “noia”, e como a questão do tabu é complexa, por vezes, não sendo apenas instrumento da
dominação das classes mais baixas mas também construindo um novo sujeito amoral, vilão desta
narrativa.
2. A grande mídia brasileira e o “noia”
Uma vez que definimos a posição do Brasil no contexto do Populismo Penal, e o papel da mídia nisso,
podemos analisar sua ação concreta. Desta forma, identificaremos em reportagens veiculados nos
jornais de maior circulação no Brasil, a construção da imagem negativa do usuário de drogas.
As reportagens foram dividas de acordo com o diferente tipo de abordagem feita pelos jornais e
revistas.
2.1. O “noia” e o higienismo
Na reportagem“Área sob viaduto entre a Consolação e a Doutor Arnaldo vira minicracolândia” 6
(Anexo), temos trechos como:
“Uma minicracolândia se formou em uma das áreas mais nobres de São Paulo, sob o Viaduto
6 Além do anexo, encontra-se disponível em:http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,area-sob-viaduto-entre-a-consolacao-e-a-doutor-arnaldo-vira-minicracolandia-,950524,0.htm
4
Okuhara Koei, que liga a Rua da Consolação à Avenida Doutor Arnaldo. Entre os vizinhos, o
clima é de medo e impotência.”
O medo e a impotência aqui são colocados como consequência lógica da proximidade entre os
moradores do bairro e os usuários de drogas da “minicracolândia”. Porém, quando se questiona o
porquê deste medo, nos deparamos com a presunção de uma espécie de perigo abstrato em que as
drogas, ainda um grande tabu na sociedade, representariam sempre uma ameaça à sociedade, uma vez
que são tidas como corruptoras totais do ser humano e seus freios morais.
Noutro trecho da mesma reportagem, temos a repressão injustificada dos usuários naturalizada e a
reação nos usuários de certo modo sendo conotada negativamente:
“Como em um jogo de gato e rato, bastava que a GCM estacionasse o veículo nas proximidades
para que os usuários saíssem andando. Poucos minutos depois, porém, lá estavam todos de
volta.”
Descrevendo o “jogo de gato e rato”, observa-se na última frase uma clara impaciência em relação à
insistência dos usuários em voltar para o lugar de onde a GCM os havia tirado.
Merece destaque, ainda, a fala de uma moradora, citada na reportagem onde ela clama pelo “direito
de sair de casa sem ter que tropeçar num drogado”. O que também é tratado de forma muito
natural pelo Jornal Estado de São Paulo.
O mesmo jornal apresenta uma reportagem que segue a mesma linha dessa última. Em “Perto da PM
e do TJ, cracolândia da Praça da Sé cresce” , se repete o enviesamento moral presente na noticia 7
anterior:
“Cerca de 60 dependentes químicos usam drogas a poucos metros de bases da Guarda Civil
Metropolitana, da Polícia Militar e do prédio do Tribunal de Justiça, parceiro do governo do
Estado no programa de internação compulsória que começou anteontem.”
Está implícita aqui uma indignação por parte do jornalista: usam-se drogas a poucos metros de
instituições representativas do Estado. Principalmente, por se tratarem de instituições com competência
para fazer valer o conteúdo das leis. Aqui é importante notar o tom de medo e repúdio, mesclado a
7 Disponível em:http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,perto-da-pm-e-do-tj-cracolandia-da-praca-da-se-cresce-,987577,0.htm
5
uma critica de hipocrisia para com a eficiência punitiva do Estado.
Na reportagem, existe uma afronta que está intimamente ligada com a moral e não com a legalidade,
uma vez que o usuário foi, teoricamente, descriminalizado pela nossa legislação.
É interessante notar que a frase: “Briga. Comerciantes afirmam não ter notado aumento de roubos
e furtos na região, mas relatam constantes brigas entre os usuários de drogas.” não segue
nenhum tipo de gancho lógico na estruturação do texto; representa uma clara intenção de associar o
usuário ao perigo, ao medo difuso que provoca na sociedade. Uma vez que os comerciantes negaram
a relação entre aumento de usuários e aumento de crimes, recorre-se à estigmatização dos “viciados”
como pessoas violentas.
Além disso, houve, após a descrição de uma agressão, a afirmação: “Nenhum usuário de drogas
questionado pelo Estado quis explicar a agressão.”. Fica evidente a desconstrução da
individualidade dos usuários, que eram questionados por uma agressão cometida por uma pessoa como
se todos tivessem responsabilidade por ela, como se estivessem atomizados, representando um tipo
próprio de pensamento e motivações, na cobrança velada de explicações a qual o jornal realizou.
Um ponto em comum entre essas reportagens é que essa estigmatização não se dá apenas pelo fato de
usar drogas, mas também pela situação de pobreza. Nessas reportagens os usuários são claramente
vistos como “estorvo” à população porque moram na rua expondo quem tem comida, cama e banheiro
a situações desagradáveis as quais elas, no auge de seu individualismo, sentem-se desconfortáveis em
presenciar. Daí surge uma espécie de higienismo hipócrita.
Outra reportagem selecionada, do portal online G1: “Caminhão deixado em local proibido preocupa
moradores de Cubatão, SP” vemos o perigo abstrato revelando esse preconceito que se construiu8
em torno do usuário de drogas agravado por sua exclusão econômica: “Veículo foi deixado há mais
de um mês e pode virar local de uso de drogas.” Aqui, associa-se o uso de drogas ao abandono, ao
marginal, ao sujo, algo que por si representa motivo de preocupação da população. O mesmo ocorre
noutra noticia da mesma fonte: “Moradores reclamam de abandono em prédio da UPA em
8 Disponivel em:http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/vc-no-g1-tv-tribuna/noticia/2013/05/caminhao-deixado-em-local-proibido-preocupa-moradores-de-cubatao-sp.html
6
Uberaba, MG” onde o jornal faz uso novamente da preocupação abstrata de um morador que diz: “A9
gente vê muita bagunça, maconheiro dormindo aí, bêbado. Eles vão destruir isso tudo aos poucos” algo
que não só é recebido com extrema tranquilidade pelo jornal como funciona de argumento para o tom
de denúncia da noticia.
2.2 A criminalização do “drogado”
A estigmatização do usuário de drogas não está, porém, apenas relacionada à criminalização da
pobreza como temos em questões higienistas, vistas na seção anterior. Ela consiste em algo muito mais
amplo, ligado a este tabu que a droga representa, manifestando-se de diversas maneiras, como na
construção de um elo entre uso de drogas e crime. Uma vez que o uso não é mais formalmente
criminalizado, a criminalização persiste nessa associação a qual a mídia insiste em apelar.
Temos como primeiro exemplo a reportagem: “Usuário de drogas mata irmão a facada em
Ipatinga” . A indicação feita já na manchete nos induz a pensar em algumas hipóteses: (i) que o uso de 10
drogas fez com que o homicídio ocorresse- o que seria uma presunção errônea só percebida com a
análise do resto da reportagem, quando verificamos que o fato de que o autor do delito usa drogas é
uma informação que tem tanta ligação com a ocorrência do crime quanto seu endereço-, (ii) que o
“perfil” do usuário de drogas é violento- qual seria o motivo de colocar na manchete que o autor do
crime usa drogas se em nenhum momento, na descrição dos fatos, é dito que o autor estava sob efeito
de entorpecentes, se não associar uso de drogas à violência?
Outro exemplo de como o tabu das drogas consegue ir além da sua relação com os excluídos, sendo
capaz de se estender à elite intelectual representada pelos alunos da Universidade de São Paulo.
Na reportagem da Revista Veja online “Alunos da USP ferem policiais na cabeça com pedradas” 11
, a repressão policial às reclamações de estudantes justamente contra a forma como a polícia estava
atuando no campus foi descrita de forma totalmente parcial:
9 Disponivel em:http://g1.globo.com/minas-gerais/triangulo-mineiro/noticia/2012/08/moradores-reclamam-de-abandono-em-predio-da-upa-em-uberaba-mg.html10 Disponivel em: http://www.plox.com.br/caderno/policia/usuario-drogas-mata-irmao-a-facada-ipatinga11 Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/alunos-da-usp-ferem-dois-pms-na-cabeca-com-pedradas
7
“A polícia teve de usar gás lacrimogênio e spray de pimenta para dispensar os baderneiros, que
queriam forçar a liberação dos estudantes da Geografia presos.”
Aqui a revista toma para si o papel de justificadora e legitimadora da ação policial no caso de
repressão de uma manifestação pacífica. Ao mesmo tempo, a reportagem busca deslegitimar a
manifestação alegando que tenha sido motivada pela reinvidicação do uso livre de drogas no campus e
não como resposta de repúdio à truculência da PM, conforme postulavam os estudantes. Isso se
verifica no seguinte trecho trecho:
“Após a saída dos policiais com os três presos, cerca de 300 estudantes organizaram um
protesto em que pediam a renúncia do reitor Grandino Rodas, a retirada da PM do campus e a
dissolução do Diretório Central dos Estudantes, que, para eles, foi conivente com a polícia.
Entre os manifestantes, muitos fumavam maconha.“
Mesmo relatando os motivos da manifestação que seguiu o ocorrido em seguida, a afirmação de que os
manifestantes fumavam maconha seria totalmente desnecessária, senão como um elemento que os
desqualificasse de alguma forma, no que a utilização do termo”baderneiros” também contribui.
Em outra reportagem, também veiculada pela Veja Online, constata-se que a aversão às drogas não
contamina tão somente o meio social, mas já alcançou as instituições. A questão atual das drogas vem
se tornando cada vez mais uma questão de policia. A forte imagem de desordeiro, “vagabundo” e
perigoso, que a veiculação midiática faz na representação do usuário de drogas, contribui na
cristalização também do sujeito criminoso; o usuário como um indivíduo contrário às leis e, como tal,
contrário à própria sociedade. Percebe-se que a construção do outsider e a incitação ao ódio contra 12
o símbolo das drogas alcança até mesmo o Direito penal. É isso que se constata na seguinte manchete
da Veja Online: “Projeto de deputado do PMDB gaúcho que poderá ser votado na quarta- feira
iguala pena para traficantes ao crime de homicídio; parlamentar também defende mais rigor na
punição da posse de drogas no combate ao vício.”13
Como se vê, a força da representação imagética e discursiva da mídia fornece características,
12 Becker,Howard S.(1963) Outsiders.13 Disponível em:http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/osmar-terra-traficante-e-um-homicida-que-mata-varias-pessoas-ao-mesmo-tempo
8
repudiadas pela coletividade, para a subjetivação de um ódio, de um mal-estar. O populismo penal
provoca mais do que a criminalização das drogas em si, ele desencadeia a criminalização do próprio
“noia”. O usuário, já visto e tratado como pária, passam a ser percebidos e perseguidos pelo Direito
penal como infratores dos valores mais essenciais do contrato social. Isso é o que se vê no seguinte
fragmento da entrevista citada acima:
“A legislação atual até pune, mas temos de ser mais rígidos. Esse período maior [de pena] é
para dizer que é crime e que não é para fazer de novo. Se disser que não é crime, a pessoa vai
andar com a droga no bolso, e o número de usuários vai se multiplicar muito rápido. Tem que
dizer que é crime e que tem pena. O usuário está cometendo um ato ilegal, que o prejudica, e ele
vai ter a oportunidade de fazer uma reflexão.
(...)Eles são homicidas. Vinte e cinco por cento dos usuários de crack morrem nos primeiros
cinco anos, segundo dados da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).” (grifos nossos)
O discurso reproduzido nessa noticia tem a mesma base de outros tantos veiculados pelo setor mais
conservador: o de proteção à vida. O “noia” aqui é igualado ao “assassino”, na medida em que as
condutas delituosas que ensejam a subjetivação desses personagens são tratadas como iguais. Não se
propõe aqui entrar no mérito da discussão acerca do tipo penal do homicídio, mas somente mostrar
que a mesma aversão e medo, que se expressam no discurso do setor midiático conservador e na letra
da lei penal também são apropriados para se referir às drogas e ao drogado. A figura do “noia” é
vendida como um risco a tudo e todos e que precisa ser contido ou, ainda, uma doença que já infectou
o corpo social e que precisa ser eliminada. Tal medo-répudio foi bem recepcionado pelos operadores
do Direito e pelo aparato punitivo penal.
A construção dessa imagem do “noia” age pela descaracterização de sua humanidade e pelo fomento
ao perigo que este representa não somente aos outros, mas também a si mesmo. Não a toa, os
enunciados a seguir destacados das manchetes do jornal Estado de São Paulo, em maio de 2013:
São Paulo faz primeira internação compulsória de usuário de drogas. O tom da notícia é de 14
14 Disponível em:http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,sao-paulo-faz-primeira-internacao-compulsoria-de-usuario-de-drogas,1035269,0.htm
9
comemoração, de implementação de uma medida que veio para solucionar os problemas das drogas.
Embora curta, a reportagem deixa claro que segue o mesmo recorte social que as demais aqui
analisadas, na medida em que também reproduz discursos pautados na “criminologia do outro” . O 15
personagem dessa narrativa de ódio é particularmente o mesmo que nas outras reportagens, conforme
os seguintes trechos extraídos:
“Um morador de rua de 25 anos foi o primeiro dependente químico a ser internado de forma
compulsória no Estado de São Paulo desde 21 de janeiro, quando foi montado um plantão
judiciário no Centro de Referência em Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod), na Luz, região
central, para agilizar as internações. O dependente químico recebeu atendimento no Cratod
nessa quinta-feira, 23.(...) O paciente contou aos médicos que não tem conhecimento de onde
está sua família e que usava crack, álcool, solvente e cocaína diariamente. (...)
Diante da situação de intoxicação e confusão mental, que demonstravam vulnerabilidade social
e risco para si próprio e aos outros, a Justiça decidiu pela internação compulsória do
dependente, informou a secretaria.”
Notadamente, o protagonista desse ato inédito, na verdade, não fora protagonista, pois não foi sujeito,
mas objeto de uma atuação do Estado. Tal indivíduo, em situação de rua, é representado aqui como
um perigo constante para si e para os outros. Contudo, percebe-se uma mudança na estratégia da
representação comunicativa. O indivíduo, dessa vez, tem sua imagem infantilizada: a reportagem o
retrata em situação de pura vulnerabilidade e abandono. Não se vê mais aqui aquela demonização do
criminoso, mas a figura da vítima da própria condição, incapacitada de se curar. Em contrapartida, o
Estado é representado como o agente que é chamado e tem a obrigação de intervir, já que o próprio
invidivíduo carece de faculdades para superar a si mesmo. A vitimização do usuário de drogas, nesse
caso, serve a fins de higienização, a partir do teor de vitória com o qual a novidade é retratada na
noticia, um teor de parabenização do Estado por ter salvo um incapaz. Neste último caso, a
neutralização do “noia” já não é justificada pelo discurso repressivo, mas pelo paternalismo estatal que
intervém não na situação do indivíduo, mas que intervém no indivíduo diretamente. Um Estado que
15 Termo cunhado por David Garland em “Cultura do Controle”
10
interdita as “vítimas” das drogas, salvando-as de si mesmas e afastando o perigo que elas representam
aos cidadãos. O discurso de limpeza urbana aqui se disfarça de discurso humanitário.
3. Parcialização midiática e os interesses veiculados: Construção do populismo penal
Diante das reportagens aqui expostas, cabe-nos identificar a construção midiática da figura do “noia”.
No decorrer das análises, notamos que o noia, figura degradante, não está diretamente associado ao
usuário de drogas, como disposto no texto legal, uma vez que àquele denota-se à imagem excludente,
desassociado aos padrões burgueses, é o marginalizado que necessita da ação estatal, diante das
perdas das faculdades de tomadas de decisão. Ele representa o perigo iminente para aqueles que
passam pelas ruas dos centros das grandes cidades. São os selecionados pela política higienista estatal,
são criminalizados dada a periculosidade construída e o maniqueismo intrínseco ao discurso veiculado
pela mídia conservadora.
O noia é o escopo da internação compulsória, assim como o indivíduo selecionado para o sistema
prisional, refletindo no encarceramento em massa de milhares de usuários tidos como traficantes,
mascarando, portanto, a criminalização da pobreza, tão disseminada em nossas politicas criminais.
Por outro lado, o usuário de drogas que pertence à classe média é visto como um problema de saúde,
convergindo nele a desestruturação das famílias burguesas do século XXI. O indivíduo é infantilizado,
posta sua necessidade de cura e o perdão religioso, a ele recaem a piedade da mídia e da sociedade.
Diante destas constatações, nota-se a materialização dos conceitos de “subintegrados”, ou os “noias”,
e “sobreintegrados”, ou os usuários de drogas, ao sistema judiciário caracterizados por Marcelo Neves:
(...) Portanto, os subcidadãos não estão excluídos. Embora lhes faltem as condições reais de
exercer os direitos fundamentais constitucionalmente declarados, não estão liberados dos
deveres e responsabilidades impostas pelo aparelho coercitivo estatal, submetendo-se
radicalmente às suas estruturas punitivas. (...) Para os subintegrados, os dispositivos
constitucionais têm relevância quase exclusivamente em seus efeitos restritivos das liberdades. E
isso vale para o sistema jurídico como um todo: os membros das camadas populares
"marginalizadas" são integrados ao sistema, em regra, como devedores, indiciados,
11
denunciados, réus, condenados etc, não como detentores de direitos, credores ou autores.
Enquanto, os “sobreintegrados”, a impunidade está vinculada, em regra, ao mundo de privilégios
dos sobreintegrados juridicamente. Pode-se definir (...) como sobreintegrado em relação ao
direito, na medida em que se apresenta como titular de direitos, poderes e competências
juridicamente preestabelecidas, mas não se subordina às disposições prescritivas de deveres e
responsabilidades jurídicas. (...) Daí porque podem orientar suas expectativas e conduzir suas
ações contando com a grande probabilidade da sua impunidade. 16
Na notícia Ministério da Saúde faz pesquisa sobre o perfil dos usuários de crack no país do 17
jornal Folha de São Paulo , de outubro de 2010, é sugerida a razão pela qual a pesquisa será
realizada: O aumento no consumo do crack e sua disseminação entre as classes sociais vêm
preocupando as autoridades brasileiras.
É evidente o caráter elitista presente na primeira manifestação da reportagem, de modo abstrato, o
despertar do agir estatal é devido ao aumento do uso de crack nas classes mais altas da sociedade,
sugerindo que é necessário traçar os perfis destes usuários, com a finalidade de implementar políticas
de guerra às drogas. Ou seja, enquanto o “noia” deve ser tratado pelo sistema prisional, o simples
usuário de classe média será submetido a tratamentos médicos. A sugestão da reportagem é contrária a
própria abordagem que seria feita pela pesquisa, uma vez que esta não tinha como objetivo traçar
diretamente o perfil socioeconômico dos usuários, como é observado neste trecho:
“Para mapear a situação, o levantamento está dividido em seis partes que incluem a coleta de
dados sobre moradia, idade e sexo de pessoas que usam crack.”
O pensamento veiculado pela mídia ganha maior conotação com a seguinte ponderação do psiquiatra
Jairo Werner:
16 Neves, Marcelo.(1996) Luhmann, Habermas e o estado de direito - Lua Nova no.37
17 Disponível em:http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/809794-ministerio-da-saude-faz-pesquisa-sobre-perfil-dos-usuarios-de-crack-no-pais.shtml
12
"É uma questão social grave que já não está restrita às classes econômicas mais baixas. Para
combatê-la e evitar que essa tragédia aumente é preciso desenvolver um trabalho preventivo
enorme, envolvendo diversos setores da sociedade, como saúde, assistência social e segurança,
tanto na esfera governamental como fora dela".
Mesmo com a descriminalização do usuário de drogas através do reconhecimento deste como caso de
saúde pública, o psiquiatra adverte quanto à questão da segurança, sendo atinente às construções de
comportamentos violentos e o seu perigo frente à sociedade, entrelaçadas ainda à demonização da
figura do “noia” e da constatação do maniqueísmo social, tendo o “noia” como um mal a ser
combatido, mascarando, assim, os problemas de desigualdade social e a criminalização da pobreza tão
presentes no cenário brasileiro.
Logo, é importante notar a parcialidade da mídia, consequência da articulação por uma minoria elitista
dos veículos de informação, sendo expostos seus interesses mediante a construção estigmatizante de
figuras e comportamentos tido como deturpadores da ordem e paz social, recaindo, sobre estes grupos
historicamente excluídos, políticas criminais altamente repressivas, sendo garantidoras apenas do
encarceramento em massa, tratando, assim, o problema de maneira articulada e superficial, garantindo
eficácia e eficiência passageiras. Consagrando-se, assim, o populismo penal, voltando-se aos olhos da
mídia, refletidos em uma sociedade do medo, envolta pela atecnicidade de suas políticas criminais.
4. Conclusão
A influência da mídia se torna evidente ao analisarmos as notícias expostas. Os grandes meios de
comunicação defendem- uma vez que integram o grupo dos maiores beneficiários do capitalismo
vídeo-financeiro- os interesses das grandes corporações e da elite da sociedade atual.
Ao estigmatizar aqueles que são dependentes de droga da forma como é feita, permite-se a instauração
do sentimento de medo e de insegurança geral que, por sua vez, legitima o poder punitivo tradicional
que, por sua vez, perpetua as desigualdades sociais. O limiar desse processo de estratificação se
expressa sobretudo nas práticas higienistas, claramente de interesses de grandes setores do meio
imobiliário, bem como de setores empresariais e capitalistas.
13
Como exposto no item 3 deste artigo, a droga é mal vista independentemente da classe social usuária.
Há, porém, parcialidades no tratamento que podem ser muito bem observadas em duas diferentes
capas da Revista Veja, revista semanal de maior circulação no Brasil. A primeira delas mostra o rosto
de um ator global e traz a chamada: “A luta pela vida. O drama do ator Fábio Assunção para se
livrar da cocaína é um alerta aos que miniminizam o poder destruidor das drogas.”. A outra
capa, em tom e imagens alarmistas, simboliza um quantidade de cocaína em formato de arma e diz:
"Quem cheira mata... ... e outras 14 verdades incômodas sobre o crime no Rio de Janeiro."
Enquanto os usuários de classe social mais alta são vistos como vítimas, merecedores do sentimento de
pena e de tratamentos eficazes e dignos, os usuários de classe social mais baixa são tidos como
criminosos, merecedores de penas mais duras e alvo das políticas higienistas (evidenciando aqui o
detrimento de políticas de saúde pública em razão de políticas de segurança), além de perderem toda a
sua individualidade, ao serem estigmatizados como os “noias” ou os “criminosos”.
Com o medo espalhado entre a sociedade, projetos de Lei como o 7.663, também conhecido como
Projeto de Lei Osmar Terra, deputado autor do PL, ganham espaço. O projeto possibilita a internação
involuntária dos usuários, com base no pedido de algum familiar ou assistente social e laudo médico.
Além disso, aumenta a pena para os traficantes de organização criminosa e abaixa a daqueles que
possuem baixo potencial ofensivo. Como se percebe, trata-se de uma legitimação e agravamento dos
problemas já existentes na atual lei de drogas, uma vez que o alvo do sistema penal é a população mais
vulnerável e o projeto continua a não fixar critérios objetivos para a diferenciação.
A articulação entre o medo que a mídia propaga e a emergência de proposta de leis como essa se
explicam pela afirmação de Vera Malagutti Batista:
“A contenção punitiva, a administração dos medos transformou-se na mais importante forma de
governamentalidade.”18
Alguns políticos internalizaram a ideia de que a administração desse medo- que como já foi dito é
importantíssimo fator de legitimação do sistema penal tradicional que por sua vez propaga a assimetria
de poder da sociedade através de estigmatização e seletividade, o qual a mídia propaga, como
mostramos neste trabalho- deve integrar seu quadro de atribuições. Desta forma, muitos membros
18 Batista, Vera Malagutti.(2012) Adesão subjetiva à barbárie. In: Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismoneoliberal.
14
integrantes dos três poderes são seduzidos a propor políticas de endurecimento criminal para
demonstrar essa agora necessária preocupação com a insegurança constante (administração dos
medos) e que, além disso, representam respostas rápidas, parecendo quase milagrosas - pois contam
com o dogma de que severidade diminui criminalidade- conquistando de forma instantânea um maior
número de votos para as próximas eleições.
Mesmo sabendo que a mídia responde também à uma demanda- de forma que a veiculação de
informação se dá numa via de mão dupla: existe aquilo que a mídia oferece e aquilo que a população
consome. Não pretendemos aqui infantilizar a população brasileira, apenas demonstrar como os
grandes monopólios midiáticos do Brasil, de forma velada, insistem e sucedem na defesa de seus
próprios interesses através, principalmente, da instrumentalização dos interesses e valores da sociedade
em geral, no caso o interesse na segurança publica. Devemos ressaltar que a mídia possui como função
a disseminação de informações e de notícias e é grande responsável pela formação de opinião. No
entanto, tem exercido seu papel de forma a conservar valores que ratificam tais tratamentos
discriminatórios e essa ojeriza a figura do “noia”.
A política de combate às drogas e aos usuários já se mostrou ineficaz e insistir nela é atender interesses
políticos, econômicos ou próprios, deixando de lado o interesse geral da população e colaborando
para que o Sistema Penal seja cada vez mais punitivo e destinado a uma parcela específica da
sociedade. Os (poucos) detentores de meios de comunicação no Brasil poderiam fazer uso do grande
poder de alcance que a mídia possui para promover debates qualificados de maneira a questionar e não
reforçar o moralismo da questão. Quem sabe assim a população pudesse formular opiniões
diversificadas, sem se tornar, mesmo sem saber, mero reprodutor e defensor de interesses que não são
seus.
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