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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E
LITERÁRIOS EM INGLÊS
A CRISE DA ESQUERDA NORTE-AMERICANA
EM THE BOOK OF DANIEL, DE E.L. DOCTOROW
João Rodrigo Lima Agildo
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos e
Literários em Inglês, do Departamento de
Letras Modernas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, para
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Marcos César de Paula Soares
São Paulo
2006
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E
LITERÁRIOS EM INGLÊS
A CRISE DA ESQUERDA NORTE-AMERICANA
EM THE BOOK OF DANIEL, DE E.L. DOCTOROW
João Rodrigo Lima Agildo
São Paulo
2006
4
Agradecimentos
Agradeço ao Professor Marcos César de Paula Soares, orientador deste trabalho, a
compreensão, amizade, apoio e profissionalismo.
Agradeço à Professora Maria Elisa Cevasco o exemplo, inteligência e por ser quem
é.
À Professora Sandra Vasconcelos o amor e dedicação à literatura de língua inglesa.
À Professora Iná Camargo Costa os aconselhamentos certeiros na minha
qualificação.
À minha esposa Marcela o amor, paciência e compreensão e, apoio em todos os
momentos difíceis do desenvolvimento desta dissertação. Também a correção e
revisão deste trabalho.
Aos meus pais o apoio, incentivo, orações e por sempre se preocuparem com a
minha educação.
À minha amiga Carmem Lucia Foltran por ser parceira dos momentos felizes e
também dos desesperadores durante o período de Mestrado.
À Ana Maria Balboni Palma, amiga de graduação e responsável pelas traduções da
dissertação.
Ao Luís Felipe Ferrari Bedendi pela amizade, estímulo e exemplo.
A todos aqueles que diretamente ou indiretamente contribuíram para que este
trabalho fosse possível.
5
Resumo
A problemática do narrador na teoria do romance aumenta à medida que as
relações humanas se tornam mais complexas e abrangentes. Daí a importância de
mostrar ao público o escritor norte-americano E.L. Doctorow e seu romance The
Book of Daniel de 1971, uma vez que através da figura do narrador, neste romance,
tem-se acesso às suas diferentes visões da História norte-americana.
O sujeito no pós-modernismo (período em que o romance está inserido) perde
a sua capacidade de organizar a narrativa de maneira homogênea, e esta assume,
mais do que nunca, o caráter de narrativa fragmentária e de difícil vinculação com o
tempo.
Só resta, então, ter acesso a esta “realidade” histórica por meio de imagens e
estereótipos proporcionados pelo narrador da história, daí o nosso interesse em
mostrar como estas diferentes vozes da narração veiculam o conteúdo histórico
pungente da narrativa, isto é, o comunismo dos anos 30 e 40 e a sua versão mais
radical nos anos 60 e como isto pode contribuir para a discussão da relação entre
narração e História.
6
Abstract
The question of the narrator in the theory of the novel develops into a central
issue as human relations become broader and more complex. Hence the importance
of introducing to the readers the North-American writer E. L. Doctorow and his novel
The Book of Daniel, written in 1971, in which, through the narrator, one is presented
with his different views on the North American History.
The subject in post-modernism (when the book was written) is no longer able
to organize the narrative homogeneously, which becomes fragmentary and time
problematic.
Thus, this “historical reality” is only available through the images and
stereotypes provided by the narrator, and our aim in this study is to show how these
different voices (of the narrator) convey the historical content of the narrative, i.e, the
comunism of the 30s and 40s, and its later radical version of the 60s, and how this
analysis contributes to the discussion of the relationship between narration and
History.
Palavras-chave: Literatura norte-americana, E.L. Doctorow, pós-modernismo,
esquerda norte-americana, literatura e história.
Key words: American Literature, E.L. Doctorow, postmodernism, American
Left, literature and History.
7
Sumário
Introdução....................................................................................................8
Capítulo I: Ruído da crítica.......................................................................14
Capítulo II: Narração e História: novos rumos da esquerda norte-
americana...................................................................................................27
Capítulo III: A cultura e o dinheiro..........................................................68
Conclusão..................................................................................................85
Bibliografia.................................................................................................90
8
Introdução
“Diversos historiadores observaram um interessante fenômeno
da vida americana nos anos imediatamente posteriores a uma
guerra. Nos círculos governamentais, um feroz partidarismo substitui
as necessárias coalizões políticas dos tempos de guerra. Na grande
arena das relações sociais – negócios, trabalho, comunidade –
surge a violência, o medo e as recriminações dominam os debates
públicos, a paixão prevalece sobre a razão. Muitos historiadores
observaram o fenômeno, que é atribuído ao prolongamento da
histeria bélica depois do término da guerra. Infelizmente, a febre
emocional necessária ao combate não pode ser desligada como
uma torneira. É preciso descobrir novos inimigos. A mente e o
coração não podem ser desmobilizados tão rápido como um
pelotão. Pelo contrário, como uma fornalha incandescente, levam
muito tempo para esfriar.”1
Sem nem sequer sabermos o contexto da citação acima, poderíamos
facilmente nos remeter ao período de política mundial sob domínio da doutrina Bush.
No entanto, o excerto se refere ao período da História norte-americana pós-guerra e
à histeria anticomunista que perdurou desde então nos Estados e mundialmente.
Inimigos que precisam ser descobertos, histeria bélica depois do término da guerra
parecem corporificar o mesmo sentimento e o mesmo fenômeno político-ideológico
de dominação norte-americana que já data desde a Segunda Guerra Mundial e, que
cresce fortemente até os dias atuais.
1 Todas as passagens do romance estão em português no corpo do texto. Usei a edição brasileira do romance. DOCTOROW, E.L. O Livro de Daniel, Tradução de Áurea Weissemberg. Nova Cultural, 1988, p. 28. Todas as passagens originais foram extraídas de DOCTOROW, E.L. The Book of Daniel. New York. First edition: 1971. First Plume Printing, Março, 1996. Many historians have noted an interesting phenomenon in American life in the years immediately after a war. In the councils of government fierce partisanship replaces the necessary political coalitions of wartime. In the great arena of social relations- business, labor, the community- violence rises, fear and recrimination dominate public discussion, passion prevails over reason. Many historians have noted this phenomenon. It is attributed to the continuance beyond the end of the war of the war hysteria. Unfortunately, the necessary emotional fever for fighting a war cannot be turned off like a water tap. Enemies must continue to be found. The mind and heart cannot be demobilized as quickly as the platoon. On the contrary, like a fiery furnace at white heat, it takes a considerable time to cool.
9
É neste clima, nesta mistura de narrativa ficcional e História que nasce uma
das melhores obras da literatura norte-americana: The Book of Daniel de E.L.
Doctorow (1971).
Edgar Lawrence Doctorow nasceu em Nova Iorque no dia 06 de janeiro de
1931. Doctorow trabalhou como editor sênior em uma biblioteca de 1959 a 1964 e foi
chefe da Impressa Dial de 1964 a 1969. Desde 1969, Doctorow tem dedicado sua
vida a escrever e lecionar. Ele já trabalhou em diferentes escolas e universidades,
incluindo a Universidade da Califórnia, a Universidade de Yale e atualmente ministra
suas aulas na Universidade de Nova Iorque. Em 1984, tornou-se membro da
“American Academy and National Institute of Arts and Letters”.
Extremamente considerado pela crítica americana e mundial, o trabalho de
Doctorow é caracterizado por um estilo sutil e diferente, além da inclusão de
personagens históricas em situações e cenários bizarros e incomuns. Os romances
do autor tangem diferentes gêneros literários. Vejamos algumas de suas obras.
Welcome to Hard Times (1960), por exemplo, é um western. Foi escrito como
uma reação aos péssimos roteiros de westerns os quais ele tinha que ler como uma
de suas tarefas na época em que trabalhava na Columbia Pictures no final da
década de 50. Neste romance, Doctorow tenta fazer um retrato nostálgico do que
era o “velho-oeste”. Seu segundo romance – Big as Life (1966) – também
interpenetra outro gênero literário: a ficção científica. É uma sátira de como seria
Nova Iorque no futuro.
O romance que abriu as portas para os cânones da academia americana foi,
indubitavelmente, The Book of Daniel (1971). Este romance foi inspirado nos
julgamentos de espionagens (casal Rosemberg) da bomba atômica, durante a
“guerra” anticomunista da década de 50.
A figura central do romance é o jovem Daniel Isaacson, cujos pais foram
executados por conspirarem em favor da União Soviética no episódio da bomba
atômica. A história se passa após muitos anos da morte de seus pais, tendo sido
necessário um longo período para que Daniel entendesse e recontasse a morte
10
deles. Embora tenha construído uma nova vida, tenha se casado com uma mulher
adorável – que lhe deu um filho –, tenha tido uma carreira acadêmica, Daniel
precisava rever o seu passado e contar a sua vida com o olhar voltado para a
História. Para isto, ele escreve um livro de memórias no qual revive os momentos
com seus pais, com os pais adotivos, narra a sua relação com a irmã Susan e, até
mesmo, a visita que fez aos pais momentos antes de serem executados. É também
um livro de investigação em que há a transcrição de entrevistas que Daniel conduziu
com pessoas que conheciam os seus pais ou sabiam sua história.
É um romance que cobre um quarto de século, aproximadamente, depois da
Segunda Guerra Mundial e que tenta dar conta da História da esquerda americana e
a sua perseguição político-ideológica durante a era Macartista.
Dentre os outros romances publicados por Doctorow, temos Ragtime (1975)
no qual o autor mistura figuras históricas em meio à narrativa principal. Ragtime
recebeu o primeiro prêmio “National Book Critic Circle” na categoria ficção em 1976
e o prêmio “Arts and Letters” dado pela “American Academy and National Institute of
Arts and Letters”. Outros de seus romances são Loon Lake (1980), Lives of the
Poets: Six Stories and a Novella (1984), World’s Fair (1986), Billy Bathgate (1989),
City of God (2000) que narra a vida de um romancista nova-iorquino que registra em
seu caderno rascunhos de suas histórias, recordações de casos amorosos, notas
sobre clássicos da música popular norte-americana, idéias de reflexões baseadas
em roteiros de cinema, obsessões sobre cosmologia e até mesmo religião, como o
título deixa antever.
No ano de 2005, seu mais recente romance foi publicado no Estados Unidos
com o título de The March sobre uma grande marcha de soldados liderados pelo
general William Tecumseh Shermam que depois de incendiar a cidade de Atlanta em
1864, reuniu a sua tropa de aproximadamente 60.000 homens e destruiu plantações,
roubou gado e arrebanhou escravos libertos e refugiados brancos no Sul dos
Estados Unidos,
11
Após esta pequena introdução sobre a vida e obra de Doctorow, voltemo-nos
à estruturação deste trabalho. No primeiro capítulo abordarei a questão da recepção
da obra de Doctorow pelos críticos literários. Procurei organizar as críticas por datas,
com o intuito de nos localizarmos temporalmente mais facilmente e também para
que ficassem nítidas as mudanças no “tom” dos escritos acerca deste escritor.
No segundo capítulo, farei em um primeiro momento uma aproximação entre
o livro de Daniel encontrado na Bíblia e o romance, com objetivo de resgatar pontos
de convergência entre os dois escritos para tentarmos entender o porquê da
utilização do personagem bíblico Daniel pelo nosso narrador do romance.
Em um segundo momento, procurarei mostrar uma questão que se faz
essencial para analisarmos o “fracasso” do projeto da esquerda norte-americana à
luz do narrador Daniel que se “compromete” de uma maneira bastante escancarada
por assumir a visão do intelectual classe média da universidade americana. É muito
interessante observar o modo como o romance se estrutura para nos levar a crer
que a esquerda norte-americana está “morta e enterrada”.
O terceiro capítulo encerra nossa discussão acerca do romance com a
questão da substituição da luta de classes, marcada essencialmente pela figura dos
personagens que morreram no romance, pela cultura de massa e sua ação
politizante e despolitizante ao mesmo tempo. Associando o título do terceiro capítulo
ao famoso livro de Jameson, A cultura do dinheiro, procurarei mostrar o que a
Disneylândia, local escolhido pelo narrador para terminar a sua história, representa
em termos ideológicos e políticos e o quão problemática é a sua inserção neste
romance.
Faz-se importante também mencionar as razões pelas quais um aluno de
Pós-graduação no Brasil decide enveredar por caminhos que aparentemente estão
distantes do mundo em que vive atualmente. Certamente não é amor pela arte por si
só, mas uma profunda influência obtida durante os anos de graduação na
Universidade de São Paulo. Tais reflexos foram advindos das discussões sempre
12
muito férteis acerca dos estudos culturais não só na Inglaterra, como também e,
principalmente, nos Estados Unidos.
O crítico Fredric Jameson no livro Signatures of the Visible analisa e relaciona
os conceitos de classe e alegoria na cultura de massa contemporânea e predica a
análise do filme “Um Dia de Cão” como um filme político. Ele diz que:
“...o pensamento que a realidade busca não chega a ser ainda
a consciência de classe: ele se apresenta como as precondições
para essa consciência de classe na própria realidade social, ou seja,
a necessidade de que, para que as pessoas tomem consciência da
classe, as classes já sejam de alguma forma perceptíveis como tal.
A esse requisito fundamental chamaremos, tomando emprestado o
termo de Freud, e não de Marx, o requisito da figurabilidade, a
necessidade de a realidade social e a vida cotidiana se
desenvolverem a tal ponto que sua estrutura de classe subjacente
se torne representável de forma tangível.”2
Desta forma, o que se entende por figuração ou figurabilidade é o momento
em que os conteúdos sócio-históricos de uma realidade histórica tornam-se
“concretos”, tangíveis, cristalizam-se na narrativa. A partir disto, então, é possível
estabelecer as relações entre o conteúdo histórico e social e verificar como esta
realidade se faz representável na narrativa, como estes conteúdos históricos estão
concretizados nas formas artísticas e quais mediações são utilizadas para que estes
elementos históricos se tornem visíveis.
A escolha do romance The Book of Daniel de Doctorow pautou-se justamente
por ser fruto do período da crise da modernidade que remonta ao fim dos anos 50 e
começo dos anos 60 e dá início ao chamado pós-modernismo e que se caracteriza
pela dissolução das “narrativas mestras” que haviam orientado as lutas políticas nos
Estados Unidos desde os anos 50. Ademais, este romance está inserido em um
2 JAMESON, Frederic. Class and Allegory in Contemporary Mass Culture. In: Signatures of the Visible,1977, p.37 (tradução minha)
13
período histórico fortemente marcado pela expansão do domínio norte-americano
pelo globo, não só no que se refere a aspectos políticos e econômicos, mas também
a uma difusão da cultura americana em suas mais diferentes manifestações.
Michael Denning escreve que:
“Grande parte da discussão dentro da “Velha Esquerda” e
sobre ela era, devo dizer, uma discussão sobre como esses
aparatos culturais deveriam ser compreendidos. Era uma discussão
sobre “cultura de massa”, “consumismo”, e a “nova classe”. De fato,
o principal motivo pelo qual a década de 30, a lista negra de
Hollywood, os casos Hiss e Rosenberg, e a frente Popular
permanecem vivos e controversos até hoje é o fato de que a “cultura
de massa” e a “nova classe” que eles encontraram e nomearam
continuam no centro das nossas controvérsias políticas e
ideológicas.”3
Sendo assim, entender o porquê desta cultura de esquerda e o seu legado
ainda continuarem vivos e ainda despertarem interesse me fizeram engendrar uma
pesquisa acadêmica sobre The Book of Daniel de Doctorow, um dos grandes
escritores representantes da esquerda norte-americana e, indubitavelmente, um dos
que realmente valem o esforço e a dedicação para se escrever uma dissertação.
Realmente espero que este estudo sirva para mostrar e entender algumas das
questões pungentes no romance em questão.
3 DENNING, Michael. The Cultural Front: The Laboring of American Culture in the Twentieth Century, p. 96 (tradução minha)
14
Capítulo I
Ruído da crítica
Fazer um balanço da fortuna crítica deste escritor e, principalmente, de seu
romance The Book of Daniel, que lhe abriu as portas da academia norte-americana,
faz-se fundamental para entender como os críticos, de maneira geral, interpretaram
as suas obras, fazendo com que os leitores voltassem os olhos para algumas
questões importantes e, ao mesmo tempo, como procurarei mostrar, impedindo-os
de ver o que estava pungente na narrativa de Doctorow: a relação dialética entre o
conteúdo sócio-histórico e a forma literária empregada.
Analisando vários artigos e alguns poucos livros que foram publicados a
respeito de Doctorow e organizando-os por datas de publicação de modo a facilitar o
desenvolvimento temporal da crítica, o que se percebe claramente é que a política
se tornou assunto dominante nas discussões relativas a seus romances a partir de
1980, mas nem sempre esta vinha relacionada ou conectada à visão de História
figurada / sedimentada nas formas literárias presentes no romance. A base histórico-
social era, na maioria das vezes, deixada de lado ou quando analisada, de maneira
bastante superficial. Não é difícil entender o porquê, conforme se verá em seguida.
Roberto Scharwz na abertura de Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da
Malandragem” diz que: “Em literatura, o básico da crítica marxista está na dialética
de forma literária e processo social. Trata-se de uma palavra de ordem fácil de
lançar e difícil de cumprir”.4 Fácil lançar porque sabemos pelas lições adornianas
que forma literária é conteúdo sócio-histórico sedimentado, ou seja, não existe uma
separação entre História e Literatura como duas entidades que operam em reinos
diferentes, mas sim uma relação dialética em que a Literatura está na História assim
como a História está na Literatura. No entanto, é difícil de cumprir porque historicizar
não é tarefa das mais simples, pelo contrário, uma vez que a formação acadêmica
4 SCHARWZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da Malandragem”. In: Que horas são? São Paulo. Companhia das Letras, 1987.
15
opera, na maioria das vezes, somente em um território, o da História ou o da
Literatura, dificilmente nos dois juntos.
De fato, como veremos, a observância dos ensinamentos adornianos foi o
que menos aconteceu ao longo destes anos de crítica acerca de E.L. Doctorow.
Em 1977, Joseph Epstein escreveu um artigo sobre o que ele chamou de
“cultura adversária” e incluiu o romance The Book of Daniel como um “exemplo de
ficção estragada pelas visões políticas do autor, visões as quais podem ser
resumidas como uma desconfiança, até mesmo como ódio à América”5. No entanto,
o que Epstein não percebe é que o ponto de vista ao qual o leitor tem acesso é o do
narrador Daniel e não necessariamente do escritor Doctorow.
Para o crítico, Doctorow merece hostilidade e indiferença, pois pertence a
uma classe universitária privilegiada de professores / escritores que persiste em
rejeitar e distorcer a vida americana como ela é. A crítica do romance misturou a
vida do escritor Doctorow com a do narrador Daniel e foi / é levada a sério na época.
Surpreendentemente, a linha de pensamento de Epstein esteve presente por muito
tempo na academia americana ecoando nos trabalhos de alguns outros críticos
como Lionel Trilling e Robert Alter. Para eles, alguns escritores (Doctorow é um
exemplo) deveriam fazer uso de formas mais tradicionais e universais para falar da
realidade, a qual tentam retratar nos romances. Nesse sentido, Doctorow escreve
um tipo de romance que em nada diz respeito à vida do cidadão norte-americano
comum.
Barbara Foley, em 1978, escreveu um artigo, o primeiro de tradição marxista
denominado From USA to Ragtime: Notes on the Forms of Historical Consciousness
in Modern Fiction. Ela queria provar que Ragtime revela uma visão de história
completamente diferente que o romance USA de John Dos Passos.
O artigo de Foley começa dizendo que “a crítica radical do capitalismo” de
Doctorow ecoa o ataque anterior de Dos Passos. Além disso, a voz narrativa de
5EPSTEIN. Joseph. A Conspiracy of Silence. In: Harper’s. p.88, 1977
16
Ragtime e a estrutura básica derivam de Dos Passos. Ambos os romancistas
abandonam em algum grau a forma da tradição mimética do realismo em favor de
uma forma documental que confunde fato e ficção. Estes paralelos pretendem
estabelecer, para Dos Passos, um papel de grande influência na ficção moderna.
Mas, apesar desta pretensão, o interesse real de Foley centra-se na idéia da
definição clássica de romance histórico assim como definido em O Romance
Histórico (1937) de Lukács.
É claro que a preocupação de Barbara Foley não é se Doctorow se enquadra
ou não nos preceitos de Lukács sobre o romance histórico, (para Lukács, “romances
não refletem simplesmente a História, eles a analisam... eles nascem de grandes
forças históricas que somente a sua forma particular, sua riqueza de pequenos
detalhes podem iluminá-los. Romances históricos devem revelar como épocas
passadas se tornam a pré-história do presente.”6), mas sim “classificá-lo” entre os
romancistas que subordinam a História à ficção; junto com outros da mesma época
que dividem “um profundo ceticismo sobre a natureza objetiva da realidade
histórica.”7
Foley distingue Doctorow de Dos Passos no que diz respeito ao uso do
material histórico à medida que o segundo permite que a história estruture o seu
romance e o primeiro prefere “o estilo apocalíptico” em que “a ficção se delicia ao
deformar a história para mostrar a invenção ou controle artístico”.
Joseph Turner em um estudo acerca da ficção histórica, escrito em 1979, The
kinds of Historical Fiction: an Essay in Definition and Methodology escreve que o
romance The Book of Daniel é na verdade um “romance histórico disfarçado”.8 Ele
argumenta que o narrador Daniel ao chamar atenção por ser filho de pais mártires,
traz à tona um conhecimento a respeito dos Rosenberg – os verdadeiros mártires –
antes que a história narrada por Daniel faça sentido. Em outras palavras, de acordo
6 LUKÀCS, Georg. The Historical Novel. Boston: Beacon. Rpt. 1983. Lincoln and London: University of Nebraska Press, p 230 (tradução minha) 7 FOLEY, Barbara. From USA to Ragtime: Notes on the Forms of Historical Consciousness in Modern Fiction. In : American Literature 50, p.103, 1978 (tradução minha) 8 TURNER, Joseph. The Kinds of Historical Fiction: an Essay in Definition and Methodology. In: Genre 12, p.336, 1979.
17
com Turner, uma vez que Daniel do romance faz referências explícitas ao
julgamento dos Rosenberg, ele faz com que o leitor crie uma expectativa de história
documental. Turner em seu artigo tem como objetivo, dentre outros, verificar o uso
que Doctorow faz da História e, para isto, ele classificou o romance The Book of
Daniel como um romance filosófico, que se caracteriza por examinar se e como a
História é possível.
Na década de 1980, Crushin Strout em seu artigo Historicizing Fiction and
Fictionalizing History: The Case of E.L. Doctorow elogia o romance The Book of
Daniel porque permanece nas fronteiras prescritas pela História. Ele inicia o artigo
fazendo um contraste do que ele chama de imaginação verdadeira e imaginação
voraz. O jogo das palavras em inglês faz mais sentido: veracious e voracious. O
primeiro grupo se caracteriza pelos escritores que tentam colocar a História em suas
obras como ela é, se é que isto é possível; e o último diz respeito àqueles que
ignoram, desafiam, parodiam, reorganizam a História porque a História não mais se
põe como coerente ou passível de explicação. Para Strout, Doctorow é ao mesmo
tempo membro dos dois grupos acima citados e, para ilustrar os seus argumentos, o
ensaísta analisa The Book of Daniel e Ragtime. Quando trata do primeiro romance,
Strout verifica no decorrer de seu argumento como o romance figura a história do
casal Rosenberg. Ele busca similaridades no que está sendo narrado e o fato
histórico em si. É simplesmente a aplicação de um “método”, tudo muito mecânico,
que chega à conclusão que Doctorow usa a História para escrever o seu romance.
Esta é a conclusão que Strout chega. No entanto, o seu trabalho de aproximar as
duas coisas — narração e História — já é um grande passo à frente, mesmo que
não obtenha grandes conclusões disto. Um exemplo do tipo de crítica que Strout faz:
“Tanto no romance como na realidade o filho mais velho é o
mais reflexivo, o maior herdeiro do racionalismo político e didático
do pai, e o mais crítico da violência da Nova Esquerda, enquanto o
mais jovem é mais anti-intelectual, mais envolvido com a
“contracultura” e mais favorável ao ativismo confrontacional da Nova
Esquerda. Assim, no romance, Susan se envolve com um Yippie
anarquista, Digger, enquanto Daniel se sente deslocado na marcha
18
ao Pentágono. Da mesma forma, na realidade, Michael foi preso por
fazer piquete, Robert por participar de protestos passivos, e
enquanto Michael desprezava o vandalismo do SDS em Madison,
Wisconsin, Robert se juntou ao SDS na Universidade de Michigan,
tinha amigos entre os Weathermen e passou a fazer parte de uma
comuna.”9
Ou seja, o que Strout propõe é buscar elementos entre narração e fato
histórico que sejam correspondentes para mostrar que Doctorow na verdade usa os
fatos históricos para compor os seus romances. É claro que fazer um levantamento
em busca dos elementos estruturantes da História e da narrativa é importante, mas
usar estes dados de maneira óbvia e sem tirar conclusões significativas, a não ser
aquelas já sabidas desde o início da proposta, é no mínimo um engodo acadêmico.
Já um pouco mais tarde, em 1982, Robert Forrey faz uso de conceitos
lacanianos para dizer que o romance The Book of Daniel é sobre “política sexual”10.
Na verdade, em sua opinião, o romance tem como conflito principal a relação
incestuosa estabelecida entre Daniel e sua mãe. Para Daniel, a copulação de seus
pais em uma das cenas do romance é o paradigma cruel de todas as relações, as
quais ele estende para a sua visão de governo.
Forrey explica que a procura do narrador Daniel pela verdade é na realidade
uma sublimação de seu verdadeiro desejo sexual pela sua mãe. O argumento de
Forrey é que o romance é muito mais sobre Complexo de Édipo do que sobre
política. Ele acredita que as fantasias incestuosas de Daniel podem ser lidas como
uma negação de sua tradição judaica.
Em 1985, o artigo E.L. Doctorow and the Technology of Narrative11 de
Geoffrey Harpham dá uma nova guinada na recepção dos trabalhos de Doctorow,
pois oferece uma avaliação de seus romances à luz de conceitos pós-estruturalistas. 9 STROUT, Crushing. Historicizing Fiction and Fictionalizing History: The Case of E.L. Doctorow. In: Prospects 5,p. 425, 1980. (tradução minha) 10 FORREY, Robert. Doctorow’s The Book of Daniel: All in the Family. In: Studies in American Jewish Literature 2, p.171,1982 11 HARPHAM, Geoffrey Galt. E.L. Doctorow and the Technology of Narrative. In: PMLA 100, p. 88, 1985
19
O olhar se volta para o debate com ênfase na técnica narrativa por ela mesma, nas
possíveis interpretações do signo lingüístico. Adotando o jargão pós-estruturalista,
Harpham começa com a premissa que a realidade é conhecida somente através de
textos e que não há nada fora deles. A idéia de totalidade se evapora. John
Williams, um crítico que fez uma compilação da crítica de Doctorow em seu Fiction
as False Documents: The Reception of E.L Doctorow in the Postmodern Age, ao
falar de Harpham diz que: “Assim a mudança na qual ele toma parte é na verdade
não apenas da história para a narrativa, mas, novamente, é da política e questões
de cultura para questões epistemológicas. A narrativa é, simplesmente, sobre como
nós sabemos, ou achamos que sabemos.”12
Para chegar às suas conclusões, Harpham discute cada um dos três
romances os quais, de acordo com ele, contam uma mesma história: de um garoto
procurando uma alternativa à narrativa imposta de fora. Em The Book of Daniel, o
princípio da narrativa é a eletricidade, em Ragtime é o processo de mistura de
personagens ficcionais a personagens reais e em Loon Lake é o computador. Cada
uma destas tecnologias, Harpham afirma, representa “forças externas” que
compõem tanto o indivíduo quanto o processo narrativo. Fatores externos que
modificariam tanto a forma quanto as personagens.
Quando analisa o romance The Book of Daniel, Harpham usa o elemento
eletricidade para dar sustentação ao seu argumento das “forças externas”. A
narração toda fragmentária de Daniel é na verdade resultado da tentativa de recriar
a eletrocussão de seus pais, o evento que mudou sua vida para sempre. O modo
como o narrador de Doctorow obsessivamente incorpora imagens relacionadas à
eletricidade nas suas descrições e análises também é um indicador desta tentativa.
A partir daí, de acordo com Harpham, Daniel associa a cadeira elétrica à injustiça
perpetrada contra os judeus socialistas na América. Para Harpham a eletricidade se
move além de uma imagem de autoridade para simbolizar em um plano os
elementos unificadores de narrativa (imagens que proporcionam uma coerência) e
em outro plano mais profundo o desejo que dá vazão à narrativa.
12 WILLIAMS, John. Fiction as False Documents: The Reception of E.L Doctorow in the Postmodern Age, p.79
20
O trabalho de Harpham claramente abandona a preocupação com a História
para limitar-se a dizer que os romances de Doctorow exploram a maneira pela qual
como a língua e as tecnologias constituem o senso de identidade humana.
Novamente, a História é deixada de lado.
No entanto, em todos estes anos de crítica dos romances de Doctorow,
houve sim alguns poucos trabalhos de crítica marxista, como o ensaio de David
Gross, Tales of Obscene Power: Money and Culture, Modernism and History in the
Fiction of E.L. Doctorow, de 1985.
O título do ensaio já nos diz muito sobre a marcante mistura na ficção de
Doctorow: poder, dinheiro, cultura, modernismo e História. Além destes elementos,
Gross acrescenta conceitos psicanalíticos na análise da obra de Doctorow.
De acordo com Gross, “Doctorow revela as fontes mais escondidas de
descontentamento em nossa cultura mais claramente que a maioria dos escritores
modernistas.”13 Primeiramente, ele traz para o campo de batalha a repressão de
nosso consciente do completo poder exercido pelo dinheiro como tema principal e,
em segundo plano, mas não menos importante, ele estabelece as conexões entre
dinheiro, excremento e poder com uma ironia refinada.
Gross lida com todos os romances de Doctorow na ordem de seu uso de
técnicas modernistas que, como defesas psíquicas, encobertam a verdade. No
romance Loon Lake, por exemplo, Gross afirma que com toda a sua narrativa
fragmentária – transições bruscas de passado e presente e vice-versa – a “verdade”
é ainda mais encoberta. Quando Doctorow, portanto, usa estas formas literárias
disponíveis e não as formas “tradicionais” realistas de narração, ele se torna
cúmplice da fragmentação e alienação que fazem parte de nossas vidas. Em seu
argumento, Gross diz que quanto mais nós reprimimos a nossa consciência do
poder obsceno do dinheiro, mais fragmentário e alienado se torna tudo ao nosso
redor.
13 GROSS, David. Tales of Obscene Power: Money and Culture, Modernism and History in the Fiction of E.L Doctorow. In: E.L. Doctorow: Essays and Conversations, ed. Richard Trenner. Princeton, NJ.: Ontario Review Press, p.128, 1985 (tradução minha)
21
Este crítico segue outros de inspiração marxista ao projetar a idéia da
repressão pessoal de uma verdade desagradável no pano de fundo da História. De
acordo com a idéia central, ao mesmo tempo em que os indivíduos reprimem um
trauma, a América capitalista reprime o trauma da reificação. Gross reconhece que a
transição do nível pessoal para uma psicologia cultural coletiva é suspeita, mas em
defesa da prática ele insiste que os “críticos precisam ‘ler’ a personalidade individual
em termos das forças culturais.”14
Nossa função, então, como críticos, uma vez armados com a “verdade” sobre
cultura, é desmascarar as imagens e os enredos dos romances para saber o que a
ideologia pode ou não nos pode deixar ver. Gross discute o romance The Book of
Daniel afirmando que a eletricidade e a Disneylândia, por exemplo, são metáforas de
controle centralizado e opressivo do dinheiro sobre a cultura. Embora Gross não
dedique mais do que algumas linhas a respeito do romance, o seu trabalho é
fundamental porque põe a História no centro das atenções novamente e a relaciona
com poder e dinheiro, principalmente. Gross põe Doctorow como um dos principais
romancistas, pois propõe ao menos oferecer alguma visão da história norte-
americana do século XX, e isto não é pouco.
Em 1991, Christopher Morris publicou um livro cujo título é Models of
Misrepresentation: On the Fiction of E.L. Doctorow fazendo uma análise dos
romances doctorowianos publicados até aquele ano à luz do desconstrucionismo.
Morris, ao analisar os romances, afirma que eles não se debatem contra eventos
históricos, mas sim contra o próprio ato de articulação: a língua. Para Morris, os
enredos dos romances dependem de algum tipo de leitura crítica, a qual se mostra
insuficiente e distorcida tendo em vista que a ficção consiste em somente modelos
de “desrepresentação”. Portanto, os romances mostram a futilidade de sua
interpretação.
O que Morris quer mostrar com este estudo e ele se repete por todo o livro é
que basicamente todos os romances de Doctorow são alegoria de suas próprias
incapacidades de decisão. No capítulo que concerne ao romance The Book of 14 Idem, ibidem, p.125 (tradução minha)
22
Daniel cujo título é Ellipses and Death in the Book of Daniel, Morris defende a idéia
que ao rastrear as figuras de linguagem usadas por Daniel, nós, leitores,
percebemos a disfunção do texto e que as elipses são, na verdade, testemunhas da
seletividade inerente da língua e que prometem a existência de alguma coisa fora
delas, mas que ao fazermos uma inspeção mais profunda chegamos à conclusão
que a autenticidade deste algo mais é indeterminada.
Veja, por exemplo, o tipo de crítica que Morris propõe, cheio de perguntas
retóricas que, na verdade, nos conduzem a uma conclusão que está presente em
todos os capítulos deste livro: a idéia da futilidade da representação.
“Quando a corrente foi desligada, o corpo rígido de meu pai
bambeou subitamente na cadeira. Talvez tenha ocorrido às
testemunhas que o que haviam tomado por movimentos
espasmódicos de sua vida, Deus sabe por quantos segundos, era
na verdade um retrato da corrente elétrica normalmente invisível,
movendo-se através de um campo de resistência.”15
Acerca da cena acima descrita, Morris analisa que,
“A morte é irrepresentável, impossível de ser decidida. A cena
que as testemunhas ‘haviam tomado’ em um sentido pode ser, pelo
contrário, um ‘retrato’ de alguma outra coisa. O que isso significa?
Os ‘movimentos espasmódicos de sua vida’ ou um ‘retrato da
corrente elétrica? Ambos? Qual é a versão original desse retrato? A
prosa de Daniel não pinta um segundo retrato? Essas questões
sugeridas pelo espetáculo visual da morte continuam
impossibilitando qualquer decisão; na verdade, a sua própria
existência, enfraquecedora, uma representação na morte, é criada
pelo processo de narração. Notem que Daniel escreve que ‘talvez
tenha ocorrido às testemunhas’ esse questionamento. Então, a
dúvida que ele levanta é questionada, e ao final do seu esforço
15 DOCTOROW,E.L. O Livro de Daniel. p. 304
23
(orgulhoso? Irônico?) de criar uma cena de morte representativa,
somente o que não se pode decidir permanece”16.
Ainda no ano de 1991, o crítico norte-americano Fredric Jameson publica
Pós-modernismo, ou, a lógica cultural do capitalismo tardio. Neste livro, Jameson
expõe e analisa as contradições da nova lógica do capitalismo tardio que é a
cultural. Além disto, a sua publicação foi um marco da crítica marxista em meio a um
turbilhão de novas teorias que estavam surgindo. Ao recolocar a idéia de totalidade
no plano da discussão e com a missão de “historicizar sempre”, Jameson se torna,
então, grande crítico de cultura e referência para todos aqueles a quem interessam
as suas discussões sempre pertinentes sobre a nossa situação no capitalismo tardio.
De acordo com ele, a crise da modernidade e o surgimento do pós-
modernismo trouxeram consigo o fim do sujeito burguês e a impossibilidade de se
adotar um estilo pessoal, o que acarretou no uso da prática do pastiche, isto é, “o
imitar de um estilo único, peculiar ou idiossincrático, o colocar de uma máscara
lingüística, o falar em uma linguagem morta”17. O pastiche, enquanto artefato pós-
moderno, celebra a ausência de referência histórica. Com a decadência desta
ideologia do alto modernismo e o fim do estilo pessoal, verificou-se que os
produtores culturais não poderiam se voltar a lugar algum que não ao passado.
Representar o passado desta maneira idealizada ou usar esta veia artística
do pastiche são sintomas da dificuldade de se criar novas categorias narrativas que
dêem conta de uma nova realidade histórica-social. Daí, a dificuldade de que novos
mecanismos para figurar a História a partir de uma realidade presente sejam
forjados.
Só nos resta, então, ter acesso a esta “realidade” histórica por meio de
imagens e estereótipos proporcionados pelo narrador da história. No caso do The
Book of Daniel, o acesso ao momento histórico pungente da narrativa, isto é, o
comunismo dos anos 30 e 40 e a sua versão mais radical nos anos 60, é dado por
16 MORRIS, Christopher. Models of Misrepresentation: On the Fiction of E. L. Doctorow. 1991, p. 84 17 JAMESON, Fredric. Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism. London & New York. Verso, 1991. p. 44
24
meio das impressões, dos sentimentos do protagonista, de uma maneira filtrada e de
um certo modo já “contaminada”. O crítico norte-americano argumenta que (ao
referir-se a Ragtime):
“Este romance histórico não pode mais se propor a representar
o passado histórico, ele apenas pode “representar”nossas idéias e
estereótipos sobre o nosso passado (que logo se transforma, assim,
em “história pop”) Desse modo, a produção cultural é relegada a um
espaço mental que não é mais o do velho sujeito monádico, mas o
de um “espírito objetivo” coletivo e degradado: ela não pode mais
contemplar um mundo real putativo, ou uma reconstrução de uma
história passada que antes era um presente; em vez disso, como na
caverna de Platão, tem que traçar nossas imagens mentais do
passado nas paredes que as confinam. Se sobrou algum tipo de
realismo aqui, é o “realismo” derivado do choque da percepção
desse confinamento e da consciência gradual de que estamos
condenados a buscar a História através de nossas próprias imagens
pop e dos simulacros daquela história que continua para sempre
fora de nosso alcance.”18
Pensar, por conseguinte, como o passado histórico é condição para o nosso
presente é um dos temas que o narrador Daniel tem que dar conta, e, ao menos,
tematizar em sua narrativa. No entanto, em um mundo sem historicidade não se
consegue apreender o senso da História, pois estamos fadados a conviver com os
estereótipos do que foi o passado e este está quase sempre “fora do nosso
alcance”. Não é difícil de se entender então como o confinamento na caverna de
Platão, para usar os termos de Jameson, prejudica a “visão” do narrador Daniel, no
romance analisado para este trabalho, fazendo com que este conduza a sua
narrativa de maneira esquizofrênica por viver em eterno presente.
Costurar, unir, pois, estes fragmentos históricos e verificar como este
conteúdo histórico se sedimenta na narrativa é nossa função. O narrador do
18 Id., Ibid., p. 25 (tradução de Maria Elisa Cevasco. Pós-Modernismo. A lógica Cultural do Capitalismo Tardio)
25
romance vê as suas ações pautadas pela mão da História. Toda a busca de
explicações para o presente histórico das personagens é intrinsecamente
relacionada às condições históricas específicas.
O argumento de Jameson sobre a obra de Doctorow serve, é claro, de
parâmetro para a discussão desta tese, portanto tratarei de maneira mais
aprofundada e detalhada o argumento de Jameson em outro capítulo.
No ano seguinte, 1992, T. V. Reed publica Genealogy, Narrative, Power:
Questions of Postmodernity in Doctorow’s The Book of Daniel e este foi o último
ensaio ao qual tive acesso para traçar um pequeno e resumido panorama da
Fortuna Crítica de Doctorow.
Reed começa seu artigo dizendo que pelo menos quatro temas que estão
ligados ao pós-modernismo lhe interessam neste romance: o apagamento da
objetividade e a distância crítica; a dispersão ou descentralização da subjetividade; a
refiguração do poder simultânea, repressiva e produtivamente sobre os campos
sociais e; o colapso do tempo sobre o espaço e o da história sobre uma colagem
espacial. De acordo com o crítico, o romance The Book of Daniel é sobre as
conexões entre narrativa e poder que mostram Daniel tanto como narrador quanto
narrado, isto é, ele tanto cria uma versão da história quanto é moldado por outras
versões. Reed afirma, por exemplo, que: “o narrador / protagonista do romance
experimenta o momento de ruptura dos anos 60 como uma crise na autoridade
narrativa e histórica, encapsulado em sua inabilidade de contar ou conhecer a
verdade sobre seus pais. Mas, ao mesmo tempo, The Book of Daniel parece querer
contar a história do Isaacson / Rosemberg mais integralmente do que é possível
através dos códigos de realismo narrativo em uma ficção convencional ou
historiografia incorporando aqueles códigos como um dos seus momentos, assim
reinscrevendo o realismo em outro plano”19.
19 REED, T. V. Genealogy, Narrative, Power: Questions of Postmodernity in Doctorow’s The Book of Daniel In: American Literary History 4, 1992, p. 289 (tradução minha).
26
Reed faz um estudo bem atento sobre o romance, pois lida muito bem com
algumas das suas questões centrais trazendo elementos interpretativos importantes
para o entendimento do romance, contudo a sua crítica tenta apenas fazer uma
demonstração de como algumas características do pós-modernismo estão presentes
na obra de Doctorow, fazendo o movimento oposto que estamos interessados, isto
é, fazer crítica literária a partir do romance, do objeto e não o contrário.
Esse breve apanhado da fortuna crítica sobre Doctorow e sua obra nos
mostra algumas questões que merecem ser discutidas com mais vigor nos capítulos
que se seguem. Se Doctorow faz uso da História como elemento estruturante de
seus romances, por que a maioria dos críticos desvia o olhar do que realmente
interessa para falar dos virtuosismos técnicos/ lingüísticos de sua obra? Em que
medida a análise de Fredric Jameson sobre The Book of Daniel e Ragtime não
encerra as discussões sobre estes dois romances fundamentais na obra de
Doctorow e ainda serve de ponto de entrada para uma nova interpretação?
27
Capítulo II
Narração e História: novos rumos da esquerda norte-americana
I
É interessante observar, fazendo uma conexão com o capítulo anterior, que a
maioria dos críticos sequer mencionou a aproximação literária entre o romance de
Doctorow, com o narrador Daniel, e o texto bíblico do Livro de Daniel. Quando
vemos que os títulos dos dois textos são idênticos, muito já se pode concluir deste
trajeto que vai do Daniel bíblico ao Daniel narrador.
Conforme diz Linda Hutcheon mais adiante, a comparação entre os dois
personagens só pode ser lida em uma chave irônica. O fato de nosso narrador
levantar a hipótese de algum ponto de convergência entre ele e o “vidente” bíblico já
é bastante problemático, pois assume uma capacidade de fazer previsões a partir de
um momento da História em que estas só podem ser entendidas como catástrofe ou
angústia de irreversibilidade histórica e não como uma capacidade “divina”,
incorporada na figura do narrador bíblico.
Quando atentamos para o romance, podemos explorar algumas destas
aproximações para tentarmos entender como estão relacionadas ao panorama
histórico que o narrador quer traçar:
“Da Bíblia de Dartmouth: “Daniel, Chama da Fé num Templo
de Perseguição. Poucos livros do Antigo Testamento são tão cheios
de enigmas como o Livro de Daniel. Embora contenha algumas das
histórias mais conhecidas da Bíblia, nove dos seus doze capítulos
registram estranhos sonhos e visões, que há séculos confundem o
leitor. ”Da Natureza e função de Deus segundo a Bíblia. Na verdade
é isto que Deus faz na Bíblia. Conforme disse a menininha. Ele pega
as pessoas. Cuida delas. Exerce a sua monumental justiça. Ah,
quantas pragas e admonições; e os flagelos, o dispersar, a ruína, as
fulminações, as transformações e os dilaceramentos. Os dilúvios.
Os incêndios. É interessante observar que Deus, como personagem
28
da Bíblia, parece estar sempre preocupado com a idéia de ser
reconhecido pela humanidade. Declara constantemente Sua
autoridade, distribuindo recompensas para os que o reconhecem e
castigos para os que a rejeitam. Executa truques complicados.
Convoca a ajuda de pessoas naturalmente justas, que se tornam
mensageiras ou executantes de Seus milagres, ou libertadores de
Seu povo. Cada época precisa ser reconhecida por Ele – ou,
noutras palavras, cada geração tem que aprender novamente a lição
de Sua existência. Na Bíblia, o drama está sempre no conflito entre
aqueles que aprenderam e os que não aprenderam. Ou na prova
dos que parecem ser capazes de aprender. Neste contexto será
instrutivo deter-se um momento na carreira de Daniel, sem dúvida
alguma figura (ou figuras) secundária, se não totalmente apócrifa,
que trabalha sem muito entusiasmo para alguns dos reis dos
impérios pós-alexandrinos. É uma época desfavorável para Daniel e
seus correligionários, pois são cidadãos de segunda classe, vivendo
num ambiente nitidamente hostil. Mas naquela peculiar simbiose dos
reis pagãos e ladinos súditos judeus, Daniel, ao que tudo indica, é
capaz de amenizar os piores excessos de seus governantes contra
seu povo, interpretando sonhos, visões ou aparições noturnas.
Sonhos, visões e aparições noturnas parecem ser um risco
ocupacional dos antigos governantes. Tipicamente, o rei
(Nabucodonosor, ou Baltazar, ou Ciro) tem um sonho
incompreensível e consulta vários caldeus. Como sempre, eles
fracassam. Em última instância, Daniel, um judeu, é chamado.
Daniel parece ser um homem modesto, corajoso e mais fiel a Deus
que sábio, pois é por meio da oração e da vida piedosa que capta as
interpretações dos sonhos que precisa apresentar ao rei a fim de
sobreviver. Em determinado caso, precisa até recriar o sonho antes
de interpretá-lo, pois o tolo do rei Nabucodonosor esqueceu. Por tal
sabedoria Daniel recebe o posto de ministro, conforme acontecera a
José e Moisés antes dele. Mas não se trata de nenhuma sinecura...
A certa altura, os três irmãos de Daniel são acusados de sacrilégio
pelos espertos caldeus, e o rei os condena à morte numa fornalha.
Deus zela para que sobrevivam ao fogo, mas Daniel deve ter
29
passado por considerável tensão. Outra vez Daniel, sob mesma
acusação, é atirado à jaula dos leões, mas sobrevive, incólume, uma
noite inteira. É uma existência de confrontos, sendo que o mais
insignificante não foi denunciar o patrão diante de todo mundo: Foi
você que pediu, reizinho. “Deus contou o número dos dias de teu
reinado e encerrou-os, foste pesado na balança e encontrado em
falta...” Não é tarefa para alguém sensível a estrondos e raios.
Daniel sobrevive a três reinados, mas sob considerável risco
pessoal. Lá para o fim, suas iluminações tornam-se mais difusas,
apocalípticas, histéricas. Uma noite tem, ele próprio, um sonho, uma
estranha e assustadora visão de animais e mares e céus e fogo e
tempestades e um ancião sentado num trono. Ignora o que significa,
o que é uma ironia: “Eu, Daniel, sofri no meu espírito e no âmago do
meu corpo, e a visão de minha mente me perturba... Minhas
cogitações muito me perturbaram e minha fisionomia se
transformou: mas conservei o segredo no meu coração.”
Isto quanto a Daniel, Farol da Fé numa Época de Perseguição.
(É preciso estar desesperado para ler a Bíblia.) Cinco pessoas
adultas estão tentando retirar uma jovem de vinte e um anos de um
asilo de loucos, instituição pública, no Dia dos Mortos.”20
20 Idem, ibidem, p. 5, 10-12 From the Dartmouth Bible: “Daniel, a Beacon of Faith in a Time of Persecution. Few books of the Old Testament have been so full of enigmas as The Book of Daniel. Though it contains some of the most familiar stories of the Bible, nine of its twelve chapters record weird dreams and visions which have baffled readers for centuries.” The Nature and Function of God as Represented in the Bible. Actually that’s what God does in the Bible- like the little girl says, he gets people. He takes care of them. He lays on this monumental justice. Oh the curses, the admonitions; the plagues, the scatterings, the ruinations, the strikings dead, the rendering unto the tearing asunder. The floods. The fires. It is interesting to note that God as a character in the Bible seems almost concerned with the idea of his recognition by mankind. He is constantly declaring His Authority, with rewards for those who recognize it and punishment for those who don’t. He performs fancy tricks. He enlists the help of naturally righteous humans who become messengers, or carriers of his miracles, or who deliver their people. Each age has by trial to achieve its recognition of Him- or, to put it another way, every generation has to learn anew the lesson of His Existence. The drama in the Bible is always in the conflict of those who have learned with those who have not learned. Or in the testing of those who seem that they might be able to learn. In this context it is instructive to pause for a moment over the career of Daniel, a definitely minor, if not totally apocryphal figure (or figures) who worked with no particular delight for a few of the kings in the post-Alexandrine Empires. It is a bad time for Daniel and his co-religionists, for they are second-class citizens, in a distinctly hostile environment. But in that peculiar kind of symbiosis of pagan kings and wise subjects-Jews, Daniel is apparently able to soften the worst excesses of the rulers against his
30
Podemos aqui buscar algumas semelhanças entre os dois textos e perceber
que há um “rebaixamento” no que diz respeito à transição do Daniel bíblico ao
narrador do romance. Em primeiro lugar, temos uma relação diferente com Deus.
Enquanto o primeiro personagem recebe o dom da adivinhação de origem divina, o
narrador do romance só consegue fazer as suas previsões a partir da figura de Deus
como “personagem que está sempre preocupado com a idéia de ser reconhecido
pela humanidade” ou como aquele que “distribui recompensas para os que
reconhecem a sua autoridade e castigos para os que a rejeitam.”
Estamos diante de um Deus indestrutível, que pode ser lido alegoricamente
como o poder do capitalismo, conforme veremos no decorrer do trabalho. Aproximar
a figura do Deus indestrutível com o capitalismo nos deixa muitas pistas de como
esta narração da esquerda norte-americana pode ser entendida. O tom da narração,
cheio de angústia e sofrimento, tem muito a ver com este sentimento de
irreversibilidade histórica. Nada pode ser feito conforme o nosso narrador diz: “Cada
época precisa ser reconhecida por Ele – ou, noutras palavras, cada geração tem que
aprender novamente a lição de Sua existência. O drama está sempre no conflito
people by making himself available for interpretations of dreams, visions or apparitions in the night. Dreams, visions and apparitions seem to be an occupational hazard of the ancient rulers. Typically, the king (Nebuchadnezzar, or Belshazzar, or Cyrus) suffers a dream which he cannot understand. He consults his various retainers- magicians, astrologers, soothsayers, Chaldean wise men. Typically, they fail him. As a last resort Daniel, a Jew, is summoned. Daniel seems to be a modest, brave, and more faithful to God than wise, for it is by means of prayer and piety that he learns from God the dream interpretations he must make to the King in order to survive. In one case, he must even recreate the dream before he can interpret it because the dumb King, Nebuchadnezzar, has forgotten what it is. For this wisdom Daniel is accorded ministerial rank in the tradition of Joseph and Moses before him. It is not sinecure, however....At one point, Daniel’s three brothers are accused of sacrilege by the cunning Chaldeans and the King sentences them to death in a fiery furnace. God sees that they survive the fire, but the strain on Daniel has to have been considerable. Another time Daniel, under the same indictment himself, is thrown into a pit with lions but survives an entire night unscratched. His is a life of confrontations, not the least of which has him putting down his employer in front of the whole crowd: you’ve bought it, Kingy. “God hath numbered thy kingdom and finished it, thou art weighed in the balances and found wanting...”This is not a job for a man sensitive to loud noises or bright light. Daniel survives three reigns but a considerable personal cost. Towards the end his insights become more diffuse, apocalyptic, hysterical. One night he suffers his own dream, a weird and awesome vision of composite beats and seas and heavens and fire and storms and an Ancient on a throne, and ironically he doesn’t know what it means: “I, Daniel, was grieved in my spirit in the midst of my body, and the visons of my head troubled me...My cogitations much troubled, and my countenance changed in me: but I kept the matter in my heart.” So much for Daniel, Beacon of Faith in a Time of Persecution. (You’ve got to be desperate to read the Bible.) Five grow-up people are trying to recover one twenty-year-old girl from a public insane asylum on Memorial Day.”
31
entre aqueles que aprenderam e os que não aprenderam”. Daniel, então, entra na
categoria daqueles que “parecem ser capazes de aprender” (negrito meu).
Conforme disse o narrador Daniel, o Livro de Daniel da Bíblia contém
“algumas das histórias mais conhecidas da Bíblia, nove dos seus doze capítulos
registram sonhos e visões que há séculos confundem o leitor”. É importante saber
que Daniel e seus “irmãos” são cidadãos de segunda classe, judeus, e que vivem
em uma época nada favorável dominada por Nabucodonosor e seu Império
Babilônico.
O rei Nabucodonosor, da Babilônia, atacou Jerusalém, e os seus soldados
cercaram a cidade. Nabucodonosor conquistou a cidade e pilhou objetos de valor
que estavam no Templo de Jerusalém. Ele levou esses objetos para a Babilônia e
mandou colocá-los no templo do seu deus, na sala do tesouro. O rei Nabucodonosor
chamou Aspenaz, o chefe dos serviços do palácio, e mandou que escolhesse entre
os prisioneiros israelitas alguns jovens da família do rei e também das famílias
nobres. Todos eles deviam ter boa aparência e não ter nenhum defeito físico;
deviam ser inteligentes, instruídos e ser capazes de servir no palácio. E precisariam
aprender a língua e estudar os escritos dos babilônios. Entre os que foram
escolhidos estavam Daniel, Ananias, Misael e Azarias, todos da tribo de Judá.
Durante esses anos Daniel e seus três amigos cumpriram lealmente e sem
alardes seus deveres como servidores públicos do rei e súditos do reino. Depois de
sua esmerada instrução, chegaram a ser membros de um grupo seleto chamado os
sábios, os que serviam ao rei como conselheiros. Foi então quando Daniel teve
excepcional oportunidade de explicar a Nabucodonosor o sonho dos impérios
futuros (Daniel, capítulo 2, versículos 29-48)
“O senhor estava deitado na sua cama e começou a pensar a
respeito do futuro. E aquele que explica mistérios mostrou ao senhor
o que vai acontecer. E eu recebi a explicação do mistério, não
porque seja o mais sábio de todos os homens, mas a fim de que o
senhor saiba o sentido do sonho que teve e o que querem dizer os
pensamentos que passaram pela sua mente, ó rei. O senhor teve
32
uma visão na qual viu uma estátua enorme, de pé, bem na sua
frente. A estátua era brilhante, mas metia medo. A cabeça era de
ouro puro, o peito e os braços eram de prata, a barriga e os quadris
eram de bronze, as pernas eram de ferro, e os pés eram metade de
ferro e metade de barro. Enquanto o senhor estava olhando, uma
pedra se soltou de uma montanha, sem que ninguém a tivesse
empurrado. A pedra caiu em cima dos pés da estátua e os
despedaçou. Imediatamente, o ferro, o barro, o bronze, a prata e o
ouro viraram pó, como o pó que se vê no verão quando se bate o
trigo para separá-lo da palha. O vento levou tudo embora, sem
deixar nenhum sinal. Mas a pedra cresceu e se tornou uma grande
montanha, que cobriu o mundo inteiro. Foi este o sonho, e agora
vou explicá-lo para o senhor. Ó rei, o senhor é o mais poderoso de
todos os reis, e foi o Deus do céu quem o fez rei; ele lhe deu poder,
autoridade e honra. Ele deu ao senhor o domínio em todo o mundo
sobre os seres humanos, os animais e as aves. O senhor é a
cabeça feita de ouro. Depois do seu reino haverá outro, que não
será tão poderoso como o seu; e depois desse reino haverá ainda
outro, um reino de bronze, que dominará o mundo inteiro. Depois,
virá um quarto reino, e este será forte como o ferro, que quebra e
despedaça tudo. E assim como o ferro quebra tudo, esse reino
destruirá completamente todos os outros reinos do mundo. Na
estátua que o senhor viu, os pés e os dedos dos pés eram metade
de ferro e metade de barro. Isso quer dizer que esse reino será
dividido, mas terá alguma coisa da força do ferro; pois, como o
senhor viu, o ferro estava misturado com barro. Os dedos dos pés
eram metade de ferro e metade de barro; isso quer dizer que o
reino, por um lado, será forte, mas, por outro, será fraco. O senhor,
ó rei, viu que o ferro estava misturado com barro, e isso quer dizer
que os reis procurarão unir os seus reinos por meio de casamentos.
Mas como o ferro e o barro não se unem, assim também esses
reinos não ficarão unidos. No tempo desses reis, o Deus do céu fará
aparecer um reino que nunca será destruído, nem será conquistado
por outro reino. Pelo contrário, esse reino acabará com todos os
outros e durará para sempre. É isso o que quer dizer a pedra que o
33
rei viu soltar-se da montanha, sem que ninguém a tivesse
empurrado, e que despedaçou a estátua feita de ferro, bronze,
prata, barro e ouro. O Grande Deus está revelando ao senhor o que
vai acontecer no futuro. Foi este o sonho que o senhor teve, e esta é
a explicação certa. Então o rei Nabucodonosor se ajoelhou diante de
Daniel, e encostou o rosto no chão, e depois ordenou que fossem
apresentados a Daniel sacrifícios e incenso. E ele disse a Daniel: -
O Deus que vocês adoram é, de fato, o mais poderoso de todos os
deuses e é o Senhor de todos os reis. Eu sei que é ele quem explica
mistérios, pois você me explicou este sonho misterioso. Em seguida,
o rei colocou Daniel como alta autoridade do reino e lhe deu também
muitos presentes de valor. Ele pôs Daniel como governador da
província da Babilônia e o fez chefe de todos os sábios do país.”
Como resultado Daniel foi nomeado para um cargo importante, que
aparentemente reteve durante muitos anos. Esse cargo lhe deu a oportunidade de
fazer que o rei conhecesse o poder do Deus do céu e da terra, a quem serviam
Daniel e seus amigos.
No entanto, como diz o nosso narrador do romance, lá para o fim, “suas
iluminações tornam-se mais difusas, apocalípticas, histéricas. Uma noite tem, ele
próprio, um sonho, uma estranha e assustadora visão de animais e mares e céus e
fogos e tempestades e um ancião sentado num trono. Ignora o que significa, o que é
uma ironia: “Eu, Daniel, sofri no meu espírito e no âmago do meu corpo, e a visão de
minha mente me perturba...Minhas cogitações muito me perturbaram e minha
fisionomia se transformou, mas conservei o segredo no meu coração”.
É interessante notar que Daniel “sobrevive a três reinados” vivendo dentro
dos palácios reais, usando os seus poderes de interpretação dos sonhos, ou seja, é
uma pessoa que está inserida de alguma maneira dentro da classe dominante, foi-
lhe dado o cargo de ministro e assim, ele vive as regalias da vida palaciana.
O que se pretende afirmar é que mesmo tendo sido vítima de dominação por
parte do Império Babilônico, Daniel tira, sim, proveito e passa a viver muito bem com
34
um alto posto de confiança do imperador. Obviamente seu povo sofre as agruras dos
mandos e desmandos do imperador, mas isso não o impede de continuar do jeito
que está. Ele não faz absolutamente nada para mudar a situação de opressão de
seu povo, pelo contrário, continua a trabalhar “sem muito entusiasmo para alguns
dos reis dos impérios pós-alexandrinos.”
Obviamente as conexões entre a figura simbiótica de Daniel bíblica e a do
narrador de nosso romance já começam a despontar.
Linda Hutcheon afirma que:
“As referências textuais do Livro de Daniel bíblico são sempre
irônicas. Daniel de Doctorow chama a si mesmo “Um Farol de Fé
em um Tempo de Perseguição”. A ironia aqui é dupla: o Daniel atual
persegue ao mesmo tempo sua esposa e filho e procura por fé –
desesperadamente; e o Daniel bíblico também era marginalizado,
uma figura secundária, senão totalmente apócrifa, um judeu em
tempos difíceis. Ele não era um ator da história, quando muito um
intérprete (com a ajuda de Deus) dos sonhos dos outros,
freqüentemente permanecendo confuso sobre os seus próprios.
Assim é o modelo de escritor para Daniel de Doctorow, que também
tenta listar “mistérios” e então examiná-los e que, como um
sobrevivente, é atormentado por pesadelos que ele não consegue
interpretar. O resultado de sua narrativa é também ironicamente
similar. Daniel chama o texto bíblico de “cheio de enigmas”, uma
mistura de histórias familiares e “estranhos sonhos e visões”, um
texto desordenado sem revelação ou Verdade. Assim também é The
Book of Daniel de Doctorow, em sua mistura de gêneros, tais como
forma de diário, história, tese e ficção. Ambos são trabalhos sobre o
ato de interpretar e depois julgar. As vozes narrativas, em ambos,
movem de um narrador impessoal e onisciente em terceira pessoa
para um narrador pessoal, temporário em primeira pessoa, mas a
35
autoridade usual da onisciência bíblica é ironizada no Daniel
moderno e suas tentativas de distância e autodomínio.”21
As implicações ideológicas e epistemológicas de se parodiar um texto
bíblico desde o seu título e a tentativa do narrador de aproximar a sua figura como
intérprete da realidade sócio-histórica da figura do Daniel bíblico já demonstram um
problema de percepção enorme. Se explicitarmos as relações do personagem
bíblico com o papel do narrador no romance, verificaremos que enquanto Daniel não
se propõe a interpretar por simples vontade, mas sim por intervenção divina, o nosso
narrador também toma para si a prática da hermenêutica, o que pode ser lido tanto
positivamente quanto negativamente. O aspecto positivo que precisa ser levado em
consideração é o fato de ele querer a interpretação visto que em tempos difíceis de
se fazer uma crítica de cunho histórico baseada nas relações entre história e
sociedade, ele ainda tenta, mesmo que de maneira equivocada e esquizofrênica,
interpretar os fatos.
No entanto, ao contrário da personagem bíblica que tinha de fato a
interpretação oriunda de forças divinas, o narrador Daniel toma a intelectualidade, ou
seja, o fato de ser um intelectual, como “interferência divina” e fazer uma análise
mais acertada do que seus pais ou até mesmo sua irmã Susan.
Todavia, a sua possibilidade de interpretação está pautada na incapacidade
de se fazer um desligamento do seu passado traumático, de um passado cujos
traumas psíquicos ainda o assombram, de ver a História como um verdadeiro
pesadelo, somados com o fato de Daniel viver em mundo em que ele não se
“encaixa” nem como revolucionário filho dos Isaacson nem como intelectual que faz
as interpretações mais acertadas para a sua condição como tal. Em um mundo que
a História é vista de maneira traumática, nada mais natural que ter o nosso narrador
vivendo um eterno presente, vivendo de fato uma esquizofrenia que se deixa
transparecer na forma do romance, como veremos mais adiante.
21 HUTCHEON, Linda. A Poetics of Postmodernism. History, Theory, Fiction. Routledge New York and London,,1988, p.137. (tradução minha)
36
O romance também apresenta, vale lembrar, um contraponto do narrador
Daniel que é a sua irmã Susan. Susan rejeita o papel que o irmão desempenha na
sociedade e cobra uma atitude mais crítica e mais severa na condição atual de
ambos. Enquanto ela parte para a ação, se engajando na criação da organização
em homenagem a seus pais, Daniel é muito passivo e incapaz de tomar uma
decisão que vá ao encontro dos anseios de Susan. Aqui vale a pena constatar outro
“rebaixamento” entre o personagem bíblico e o narrador do romance no que diz
respeito ao tratamento de Susana e Susan, respectivamente.
O capítulo treze do livro de Daniel da Bíblia cujo nome é História de Susana é
sobre uma mulher cuja beleza chamava atenção. Susana se casou com Joaquim
que era muito rico. Os judeus e os anciãos freqüentemente se reuniam na casa de
Joaquim. Portanto, os sacerdotes anciãos que haviam sido nomeados há pouco
tempo a viam todos os dias e se apaixonaram por ela.
Num dia, enquanto pensavam como poderiam surpreendê-la sozinha, Susana
chegou com duas empregadas e decidiu banhar-se. As duas empregadas foram
buscar o que Susana havia pedido para o banho, ignorando que os anciãos estavam
escondidos.
Logo que saíram, os dois homens foram em direção de Susana. Confessaram
o seu amor por ela e exigiram que ela se entregasse a eles. Se ela recusasse, eles
iriam dizer que havia um jovem com ela e que, por isso, ela havia feito as
empregadas saírem. Susana recusou a chantagem e começou a gritar. No dia
seguinte, os dois anciãos foram à reunião na casa de Joaquim e na frente da
assembléia, mandaram buscar Susana. Ela veio chorando, mas com o coração
cheio de confiança em Deus. Os anciãos disseram que estavam passeando pelo
jardim e viram quando Susana entrou e mandou suas empregadas embora.
Então, um jovem que estava escondido aproximou-se e pecou com ela. Eles
correram em direção a eles, mas não conseguiram agarrar o homem, pois ele era
mais forte.
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Como os dois eram anciãos e juízes do povo, condenaram Susana à morte.
Ela rezou bem alto e Deus ouviu suas orações e proclamou o espírito íntegro de um
adolescente chamado Daniel. Ele proclamou a inocência de Susana. Disse que
estavam condenando uma pessoa sem saber a verdade. Daniel foi chamado para
esclarecer a verdade, pois Deus lhe havia dado “o privilégio da velhice”. Daniel
chamou cada um dos dois anciãos separadamente. Perguntou a cada um deles sob
qual árvore teriam estado Susana e o jovem. Um deles disse que debaixo de um
lentisco e outro disse de um carvalho.
A multidão revoltou-se contra os dois anciãos os quais, por suas próprias
declarações, provaram terem dado falso-testemunho e foram mortos. Naquele dia foi
poupada uma vida inocente.
O que percebemos é que a História de Susana na Bíblia nos mostra como
Daniel e Susana desmascaram os velhos sacerdotes representantes da lei, os
representantes do Estado. As semelhanças com a trajetória de Susan no romance
fazem-se notar à medida que conseguimos ver Susana como alegoria daquela que
prefere o sacrifício mortal a entregar-se ao “pecado”. Além disto, Daniel bíblico
consegue salvar a vida de Susana, diferentemente de Susan que teve que morrer
porque sua “geração teve que aprender a lição da existência” do Deus indestrutível.
A geração dos Isaacsons foi vítima das sentenças de morte do Rei, este
representando o Estado, e seus filhos—Susan e Daniel—aprenderam a seu modo a
interpretar o recado dado a eles. Susan, que se recusa a viver a inércia de seu irmão
Daniel, ousa seguir a linha de ideais de seus pais e tem o mesmo destino, já Daniel,
que tem o dom da interpretação de sonhos e visões, diferente do protagonista
bíblico, já é mais flexível quanto a tentar entender o que o “Grande Deus está
revelando sobre o que vai acontecer no futuro.”
Tendo dito isto, como veremos a seguir, o destino daqueles que não se
prestam a adorar a estátua de ouro do capitalismo moderno é simplesmente a morte.
Todos aqueles que ousaram não se prostrar diante do ouro do capital foram
lançados à fornalha de fogo ardente.
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O que a aproximação entre os textos e, ao mesmo tempo um “rebaixamento”
irônico entre o trajeto que vai do Daniel bíblico ao Daniel do romance, trazem é o
sentimento de derrota, de angústia, de sofrimento, de morte da esquerda norte-
americana. Quando temos o narrador do romance inserido em uma era em que as
previsões só podem ser feitas e entendidas sob a ótica do capitalismo e sob a ótica
de alguém que “parece” ser capaz de entender o poder do Deus indestrutível de seu
tempo, estamos diante de um relato não-confiável em que as conexões são feitas a
partir do olho do “furacão”.
II
“No Dia dos Mortos de 1967, Daniel Lewin viajou de carona de
Nova York a Worcester, em Massachusetts, em menos de cinco
horas. Acompanhava-o sua jovem esposa, Phyllis, e o filho de oito
meses, Paul, que Daniel carregava numa cadeira presa aos ombros
como uma mochila... Esta caneta é uma esferográfica preta, escrita
fina. Este é um caderno 79C, fabricado nos Estados Unidos pela
Long Island Paper Products, Inc. Quem escreve é Daniel, testando
um dos sombrios antros da Sala de Folhear. Livros para folhear
enchem as prateleiras. Estou sentado a uma das mesas, com uma
lâmpada sobre o ombro. Ao lado desta sala com paredes de
escaninhos fica a Sala dos Periódicos, revestida de livros. A Sala
dos Periódicos está cheia de jornais sobre varetas, revistas do
mundo inteiro e o excremento das sociedades eruditas... Daniel,
rapaz alto de vinte e cinco anos, usava longos cabelos
encaracolados. Óculos de aro de metal e um farto bigode, castanho
como os cabelos, faziam com que parecesse mais velho do que era,
além de mais seguro e decidido.”22
22 Todos os excertos do romance usados no corpo da tese serão em português. Conferir a versão original em inglês nas notas de rodapé. DOCTOROW, E.L. The Book of Daniel. Picador, Pan Books, 1982, p. 3 Tradução de Áurea Weissenger. O Livro de Daniel.p.9 On Memorial Day in 1967 Daniel Lewin thumbed his way from New York to Worcester, Mass, in just under five hours. With him was his young wife, Phyllis, and their eight-month-old son, Paul, whom Daniel carried in a sling chair strapped to his shoulders like a pack. ...This is a Thinline felt-tip marker, black. This is Composition Notebook 79C made in USA by Long Island Paper Products, Inc. This is
39
Assim são os parágrafos iniciais de The Book of Daniel. Sabemos que o ano é
de 1967. O narrador em terceira pessoa escreve que um casal (Daniel e Phyllis) e
seu filho (Paul) estão em um carro pegando carona para ir para Worcester.
Abruptamente, há um corte, e já estamos com o próprio narrador Daniel em primeira
pessoa na biblioteca narrando a sua experiência de escrever algo, descrevendo em
detalhes desde a caneta que está usando até mesmo todo o ambiente ao seu redor.
Logo, em seguida, o narrador em terceira pessoa assume a narração e nos mostra
quem é o narrador em primeira pessoa e personagem Daniel: um “rapaz alto de vinte
e cinco anos, que usava longos cabelos encaracolados”.
Logo no início percebemos a que veio o romance com a mistura quase
frenética de vozes que entrecortam a narrativa. Claramente a tentativa de dar conta
da história de vida do Daniel narrador e do Daniel narrado requer uma forma literária
que certamente não perpassa a linearidade dos romances realistas dos séculos
XVIII e XIX. Estes cortes de vozes narrativas não podem por si só dizer muito sobre
o conteúdo sócio-histórico figurado na narrativa, mas nos deixam previamente alerta
desde a abertura do romance de que temos uma estrutura macro que lhe dá
sustentação na figura do narrador onisciente em terceira pessoa que tudo vê e tudo
sabe; e dentro desta estrutura, um narrador em primeira pessoa que tenta narrar a
sua história, ou seja, transforma-se em personagem.
É fundamental notar como o narrador Daniel sentado nas alcovas da
biblioteca de Columbia em 1967/1968 usa das mais diversas formas narrativas –
notícias de jornal, tese, relatos de historiadores, propagandas, diário, etc – para falar
de um projeto de mundo que se esvai cada vez mais à sua frente e como estas
formas narrativas, a partir da ótica do narrador, nos ensinam a respeito de seu
passado e presente.
Daniel trying one of the dark coves of the Browsing Room. Books for browsing are on the shelves. I sit at a table with a floor lamp at my shoulder. Outside this panelled room with its book-lined alcoves is the Periodical Room. The Periodical Room is filled with the newspapers on sticks, magazines from around the world, and the droppings of learned societies. ...Daniel, a tall young man of twenty-five, wore his curly hair long. Steel-rimmed spectacles and a full moustache, brown, like his hair, made him look if not older than he was then more self-possessed and opinionated.
40
Pensando, pois, a partir de uma narrativa fragmentária, seria de se estranhar
se não encontrássemos uma série de fraturas no decorrer da narrativa, e são a elas
que nos deteremos para principiarmos nossa análise mais minuciosa. Vale a pena
começarmos pelo trecho a seguir:
“E então Ascher surgiu, e os dois foram novamente
empurrados para diante”.
– São estas as crianças – repetia Ascher. – Deixem-nos
passar, por favor. As crianças estão comigo.
Aos poucos a multidão compreendeu. “Ele está com as
crianças!”, gritavam uns com os outros. Daniel avistou um
estandarte pregado em duas estacas, no alto da plataforma.
Libertem-nos! Alguém o levantou e ele se viu transportado por sobre
as cabeças, impelido sinuosamente, como algo flutuando no mar.
Sentiu-se aterrorizado. Ouviu atrás dele a voz de Susan, gritando:
– Ponham-me no chão! Socorro! Danny!
E finalmente a voz amplificada gritando por sobre a Broadway:
“Aqui estão as crianças!” Um grande rugido encheu-lhe os ouvidos
quando ele e Susan foram erguidos, oscilantes, até a plataforma.
Estava tonto. Agarrou a mão de Susan. Vermelhos e arquejantes,
entontecidos pelo movimento das cabeças e dos milhares de vozes
que lembravam o rugir do oceano, fixaram a multidão, um vasto e
hediondo ser de milhões de olhos, que parecia ondular no
desfiladeiro da rua, espalhando vida, som e ultraje em grandes
vagas sobre a plataforma. Ilhado, Daniel, sentiu o vento soprar-lhes
nos olhos. Sentiu por um instante que ele e Susan haviam sido
traídos e que a grande massa o afogaria e arrebataria. Mas o
barulho, embora voltado na sua direção, não se destinava a eles;
41
destinava-se a outros que viviam num reino tão misteriosamente
simbólico que desafiava sua compreensão.23
O narrador faz uma montagem quase cinematográfica da cena e nós como
leitores podemos visualizar o que está acontecendo: uma manifestação composta
por centenas de pessoas com o objetivo de demonstrar apoio ao casal Isaacson que
já havia sido preso.
O advogado, então, leva os filhos do casal (Daniel e Susan) para participarem
deste evento. É este o primeiro entendimento do leitor quando se depara com este
excerto. No entanto, se fizermos uma análise um pouco mais minuciosa
perceberemos alguns movimentos narrativos que nos ajudam a pensar sobre o
caráter de entendimento de mundo por parte do narrador/personagem. O
personagem Daniel criança e sua irmã Susan são levados a esta manifestação para
ajudar os seus pais.
Entretanto, estas personagens uma vez inseridas neste contexto se sentem
perdidas, ilhadas, tontas. Sentiam “por um instante que ele e Susan haviam sido
traídos e que a grande massa o afogaria e arrebataria. Mas o barulho, embora
voltado na sua direção, não se destinava a eles; destinava-se a outros que viviam
num reino tão misteriosamente simbólico que desafiava sua compreensão”.
23 DOCTOROW, E.L. The Book of Daniel. New York. First edition: 1971. First Plume Printing, Março, 1996, p. 21 e 22 And then Ascher was there and they were being pulled forward once more. “These are the children”, Ascher kept saying. “Let us through, please. I’ve got the children.” Eventually this was understood by people in the crowd. “He’s got the children!” they called to each other. Daniel could see a banner stretched on poles across the top of the platform ahead. FREE THEM! Someone lifted him up and he found himself being passed over the heads of the people, propelled sinuously like something on the top of the sea. He was terrified. He heard Susan’s voice behind him. “Let me down!” she was saying. “Help! Danny!” And finally it was the amplified voice that was booming out over Broadway: “Here are the children!” And a great roaring filled his ears as he and Susan were raised, tottering, onto the platform. He was dizzy. He grabbed Susan’s hand. Flushed and breathless dizzied by the motion of heads and the thousands of voices in motion like the roar of the sea, they stared out at the crowd, a vast hideous being of millions of eyes that seemed to undulate in the canyon of the street, splashing life and sound and outrage in great waves up on the platform. Islanded he felt the wind in his eyes. He felt for a moment that he and Susan had been betrayed and that the great mass would flood over them and carry them away. But the roar, though directed at them, was not meant for them; it was meant for others who dwelt in a realm so mysteriously symbolic that defied his understanding.”.
42
Desafiava tanto a compreensão do narrador em terceira pessoa onisciente,
que “tudo vê e que tudo sabe”, já adulto, quanto da personagem que nada vê e nada
faz sentido, ainda criança. Todavia, quando o narrador Daniel usa o ponto de vista
da criança não tem como ter soluções pré-fabricadas. Não tem muita capacidade de
“distinguir e ordenar”24. A sua capacidade maior se concentra em montar quadros
que já estão constituídos. Ele consegue, muito precariamente, descrever o todo,
contudo não consegue entender a totalidade.
A forma empregada conduz a narrativa para uma espécie de não
entendimento. O uso que se faz de orações coordenadas (“Estava tonto. Agarrou a
mão de Susan. Sentiu-se aterrorizado.”) contribui para que o ritmo da narrativa fique
frenético. Ao se evitar as orações subordinadas, o narrador deixa de concatenar
idéias mais complexas e mimetiza na forma escolhida, o sentimento de
arrebatamento no qual as personagens estão envolvidas e as impede de fazer as
conexões necessárias.
As crianças no meio da multidão, sendo engolidas pela massa, não sabem o
que está acontecendo. O particular – as crianças se sentindo sufocadas pelo povo –
não consegue estabelecer uma relação com o todo, com o movimento que está
acontecendo para que seus pais sejam libertos.
Quando atentamos para a forma narrativa usada pelo narrador criança que
nos remete à questão da dissolução do narrador benjaminiano25 percebemos que o
mundo do narrador Daniel, ao contrário do mundo do mundo do narrador
benjaminiano onde era possível explicar, ordenar, compreender o todo já não existe
e é substituído pelo mundo da sensação. Na passagem que acabamos de ler, pode-
se claramente verificar que toda a tentativa de explicar é centrada na perspectiva do
24 Cf. LUKÁCS, Georg. Narrar ou descrever. In: -. Ensaios sobre Literatura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p.45-99. 25 No ensaio O Narrador. Observações sobre a obra de Nikolai Leskow de Walter Benjamin aprendemos que o narrador moderno, uma vez sem a capacidade de contar histórias que pudessem ser trocadas e divididas em uma comunidade “cognoscível”(uso o termo de Raymond Williams. The English Novel: from Dickens to Lawrence.London, Chatto & Windus, 1970) e sem a capacidade de intercambiar experiências com a “comunidade dos que escutam” as histórias, perde a capacidade de transmitir o que lhe foi legado e sua voz se fragmenta.
43
indivíduo, vista sob o prisma das sensações (ficar tonto, sentir-se afogando,
arrebatado) e não das ações.
Tendo dito isto, é necessário explicar que toda a narrativa é contada a partir
do narrador adulto que está em meados dos conturbados anos 60 norte-americanos
e tem que lidar com as questões históricas de seu presente e com as questões
relativas ao seu passado ao mesmo tempo. Portanto, vale ressaltar que este mesmo
movimento narrativo descrito no parágrafo anterior é conseqüência de um ritmo geral
da História. Daí entender o período histórico a partir do qual esta narrativa é
contada. Fredric Jameson em seu ensaio “Periodizing the 60s” afirma que:
“o capitalismo tardio em geral (e os anos 60 em particular)
constituem um processo em que as últimas zonas internas e
externas de pré-capitalismo sobreviventes—os últimos vestígios de
espaços não-coisificados ou tradicionais dentro e fora do mundo
avançado—são agora finalmente penetrados e colonizados por sua
vez. O capitalismo tardio pode portanto ser descrito como o
momento em que os últimos vestígios da Natureza que
sobreviveram ao capitalismo clássico são finalmente eliminados, a
saber: o Terceiro Mundo e o inconsciente. Os anos 60 terão sido o
período de transformação significativo durante o qual ocorre essa
reestruturação sistêmica em escala global.”26
Assim, o momento histórico dos anos 60 nos Estados Unidos e no mundo é
marcado pela expansão do capital por absolutamente todas as áreas da vida, até
mesmo os “últimos vestígios de espaços não-mercadificados ou tradicionais dentro e
fora do mundo avançado” são colonizados pelo capital, isto é, não existe mais saída
que não seja permeada pelo capitalismo (ponto de vista do narrador também, vale
ressaltar), daí o sentimento de arrebatamento, de tontura, de não entendimento das
condições históricas reais.
26 JAMESON, Fredric. Periodizing the 60s. In: The Ideologies of Theory. Essays 1971-1986. Volume 2: The Syntax of History. Volume 2, p.207 (tradução minha). Há uma explicação melhor sobre este texto de Jameson nas páginas 71 e 72 deste mesmo trabalho.
44
Logo depois do excerto do romance supracitado, o narrador se endereça a
uma pessoa que não sabemos muito bem que é (“meu bem”), mas parece ser a nós
leitores.
“Meu bem, agora você sabe. Já jogamos muitas vezes, não
jogamos? Você é uma malandrinha esperta. Você sabe o que quer,
não sabe, papaizinho? Você entende. Esta é uma história de uma
trepada, certo? Vai consultar seu mapa li-te-rá-rio, mãezinha? Sabe
para onde vamos, certo, filha da mãe?
Em seguida, ele faz esta consideração:
Um interessante fenômeno. Diversos historiadores observaram
um interessante fenômeno da vida americana nos anos
imediatamente posteriores a uma guerra. Nos círculos
governamentais, um feroz partidarismo substitui as necessárias
coalizões políticas dos tempos de guerra. Na grande arena das
relações sociais – negócios, trabalho, comunidade – surge a
violência, o medo e as recriminações dominam os debates públicos,
a paixão prevalece sobre a razão. Muitos historiadores observaram
o fenômeno, que é atribuído ao prolongamento da histeria bélica
depois do término da guerra. Infelizmente, a febre emocional
necessária ao combate não pode ser desligada como uma torneira.
É preciso descobrir inimigos. A mente e coração não podem ser
desmobilizados tão rápido como um pelotão. Pelo contrário, como
fornalha incandescente, levam muito tempo para esfriar.” 27
27
DOCTOROW, E.L.. The Book of Daniel.New York. First Edition: 1971. First plume Printing, March, 1996. Tradução: O Livro de Daniel. p. 27-28 “Oh, baby, you know it now. We done played enough games for you, ain’t we. You a smart lil fucker. You know where it’s at now, don’t you big daddy. You got the picture. This the story of a fucking, right? You pullin’ out yo li-te-ra-ry map, mutha? You know where we going’, right muthafuck? AN INTERESTING PHENOMENON Many historians have noted an interesting phenomenon in American life in the years immediately after a war. In the councils of government fierce partisanship replaces the necessary political coalitions of wartime. In the great arena of social relations- business, labor, the community- violence rises, fear and recrimination dominate public discussion, passion prevails over reason. Many historians have noted this phenomenon. It is attributed to the continuance beyond the end of the war of the war hysteria. Unfortunately, the necessary emotional fever for fighting a war cannot be turned off like a water tap.
45
O narrador em terceira pessoa usando o ponto de vista da criança dá lugar ao
narrador em primeira pessoa em uma narrativa cheia de quebras que parece se
endereçar a nós leitores. Percebe-se que a linguagem usada é diferente da usada
até então; a presença de termos chulos – “fucker”, “muthafuck”, “fucking” (ver notas
de rodapé o texto em inglês) – destoa do parágrafo que vem logo a seguir que é
uma análise que põe o dedo na “ferida” ao discutir a histeria causada pelos anos que
acompanham e se seguem uma guerra.
Obviamente, conforme nos ensina Jameson, o narrador de Doctorow ao
veicular o fracasso da esquerda norte-americana formalmente elabora a sua
narração através da própria lógica do fragmento, que é em si mesmo, a marca e
sintoma de seu dilema. (No entanto, a questão do narrador não-confiável não foi tão
debatida na análise de Jameson, o que muda a perspectiva consideravelmente).
Daí dizer que quando Daniel narra a partir do “olho do furacão” a sua
contemporaneidade estamos diante de uma narrativa repleta de fragmentos que
aparentemente não tem a ver com nada, mas que revelam o conteúdo sócio-
histórico do material, isto é, na obra de Doctorow a estética do fragmento não é
celebratória, não significa um deslumbramento pela forma por si mesma, que é uma
característica da estética pós-moderna; pelo contrário, quando lemos o romance The
Book of Daniel percebemos que as formas escolhidas pelo narrador para contar a
sua história demonstram ao mesmo tempo a incapacidade de se contar uma história
tão complexa a partir do olhar de um intelectual sentado em uma biblioteca na
universidade e a capacidade de mostrar que o resultado deste distanciamento da
realidade material transforma o romance em um centro de ambigüidade.
Há como ponto positivo uma tentativa de historicizar o próprio fragmento, o
que já pode ser considerado um grande ganho crítico, no entanto, o narrador só
consegue historicizar a partir de uma perspectiva que já é a da derrota, a partir de
um período histórico (final da década de 60) em que a capacidade de se pensar
criticamente já está relacionada à ideologia do capital. Enemies must continue to be found. The mind and heart cannot be demobilized as quickly as the platoon. On the contrary, like a fiery furnace at white heat, it takes a considerable time to cool.”
46
Vejamos, por exemplo, o seguinte excerto que se refere a um momento em
que Daniel vai procurar Sternlicht, amigo de sua irmã Susan, para conversar a
respeito dela. A descrição é da parede da casa de Sternlicht:
“A parede é interessante – totalmente coberta com uma
colagem de fotos, fotografias de filmes, posters e objetos reais.
Babe Ruth correndo entre as bases, Marlon Brando de bicicleta.
Shirley Temple de sapatos de dança, Franklin Roosevelt,, um biquíni
coberto com spray dourado, Marilyn Monroe nas foto do calendário,
Mickey Mouse, o Washington de Gilbert Stuart com um bigode a
lápis, um boné da Legião Americana, Fred Allen diante de um
microfone, Susan B. Anthony de boca franzida, Paul Robenson,
Sammy Baugh dando um salto, Calvin Coolidge com penas de índio,
uma batalha aérea da Primeira Guerra Mundial, um grupo de
sentenciados trabalhando numa estrada, uma boneca antiga, uma
garota copulando com um jumento, capas amarelas de E o vento
levou e Um mundo só, de Wendell Wilkie, um diafragma recoberto
de tinta prateada, um amontoado de pontas de cigarro, um poster de
A Morte do caixeiro viajante, Elvis Presley jovem, um negro
enforcado numa árvore, um branco vendendo maçãs a cinco cents.”
A repórter que está entrevistando o casal, Sternlicht e sua namorada (a
responsável pelo quadro) diz que a parede era maravilhosa, extraordinária. A garota,
namorada de Sternlicht, desata a rir e diz:
“– Vejamos. Se alguém merece crédito pela minha arte é o Sr.
Magruder.
– Sternlicht interrompe.
– O Sr. Magruder é o nosso senhorio, e foi assim que comecei:
queria tapar alguns buracos da parede. Papel é um bom isolante.
Sternlicht deixou-se cair no colchão, puxou a garota para o
colo, e os dois riem se abraçando. O fotógrafo entra em ação.
47
– Ela não está brincando – diz Sternlicht. – Sabem que isto
aqui fica muito frio no inverno? Todas as revoluções começam com
os inquilinos de traseiro gelado no inverno.
– É maravilhoso!- insiste a repórter, olhos na parede – Deveria
ter um nome. Como é que você chama isso?
Artie Sternlicht e sua namorada fixando-se um ao outro,
respondem em uníssono, enquanto os amigos cantarolam com eles:
– TUDO O QUE VEIO ANTES DÁ NO MESMO!” 28
O que seria esta parede da casa de Sternlicht senão uma alegoria do
momento histórico que se pretende retratar: a década de 60? Daí a existência de
todos estes elementos que são sobrepostos sobre uma mesma base, com a
sensação de que tudo é a mesma coisa: Mickey Mouse e Paul Robeson ou
Roosevelt e Elvis Presley.
Obviamente a escolha que o narrador fez não é aleatória. Mickey Mouse,
símbolo da cultura de massas e Paul Robeson, cantor negro e ativista político;
Roosevelt como político (conservador ou reformista) responsável pelo New Deal e a
28 DOCTOROW, E.L.. The Book of Daniel New York. First Edition: 1971. First plume Printing, March, 1996. Tradução: O Livro de Daniel. p. 134 The wall is interesting. It is completely covered with a collage of pictures, movie stills, posters, and real objects. Babe Ruth running around the bases, Marlon Brando on his bike, Shirley Temple in her dancing shoes, FDR, a bikini sprayed with gold paint, Marilyn Monroe on her calendar, Mickey Mouse, Gilbert Stuart´s Washington with a mustache penciled on, a real American Legion cap, Fred Allen in front of a microphone, pinch-mouthed Susan B. Anthony, Paul Robeson, Sammy Baugh throwing a jump bass, Calvin Coolidge in Indian feathers, a World War One dogfight, a chain gang working on the road, jackets of Gone with the Wind and One World by Wendell Willkie, a diaphragm sprayed with silver paint, a cluster of cigarette butts, a Death of a Salesman poster, a young Elvis, a black man hanging from a tree, a white man selling apples for 5 cents- “It’s marvelous!” the reporter says..”28 —… “Well, see”, the girl looks at Sternlicht and starts to laugh, “actually if anyone deserves credit for my art it’s Mr. Magruder.” Sternlicht breaks up. “Mr. Magruder is our landlord, and that’s how I, y’know, started. Just to cover some holes in the wall. Paper is very good insulation.” Sternlicht drops to the mattress, pulls the girl down into his lap and they laugh and hug each other. The photographer shoots. “She’s not shittin’,” Sternlicht says. “You know how cold it gets here in the winter? All revolutions begin with tenants. All revolution begins with tenants freezing their asses off in the winter.” “It’s marvelous”, the reporter insists, gazing at the wall. “It should have a name. What do you call it?” Artie Sternlicht and his girl look into each other’s eyes. They answer in unison, and their friends chime in: “EVERYTHING THAT CAME BEFORE IS ALL THE SAME!”
48
ambigüidade política que o acompanhou e, finalmente, Elvis Presley, símbolo da
cultura de massas que refuncionalizou a música negra para fazer o rock.
Para a repórter o quadro é extremamente celebratório, é “maravilhoso, é
extraordinário”, os fragmentos nada dizem sobre si mesmos, são regidos sob o
símbolo de Grande Arte.
Entretanto, Artie, representante da Nova Esquerda diz que “todas as
revoluções começam com os inquilinos de traseiro gelado no inverno”, isto é, são as
condições materiais, as necessidades mais básicas que levam à revolução.
A repórter parece não dar ouvidos ao teor revolucionário do que Artie diz e
simplesmente ignora o comentário e insiste que o quadro é maravilhoso e cisma em
batizar a obra de arte. Os dois, a namorada e Artie, escolhem um título
extremamente irônico, para dizer o mínimo. As condições de possibilidade para o
surgimento da Nova Esquerda foram calcadas nos caminhos, avanços e derrotas da
Velha Esquerda Americana, mas a Nova Esquerda conforme atesta James Weinsten
em Ambiguous Legacy. The Left in American Politics é marcada por uma falta de
reconhecimento no mundo no que se refere ao seu papel.
Por outro lado, a Nova Esquerda foi marcada por este caráter de luta pela
paz, pelos direitos dos negros, contra a guerra do Vietnã, ou pelo direito das
mulheres, só para citar alguns. O movimento viveu uma grande crise identitária no
que concerne à capacidade de agência.
De acordo com Jameson, enquanto a Velha Esquerda norte-americana tinha
a questão da luta de classe como o grande nó a ser debatido, a Nova Esquerda
tinha que lidar com a problemática das novas “vozes” que antes estavam silenciadas
(negros, gays, mulheres, e outros) e agora queriam uma representação política e
representatividade social; assim, o debate se deslocou do conceito da luta de
classes para a questão de quem eram os novos agentes da luta de classe. Os
estudantes que tinham uma relação um pouco ambígua com as questões sociais,
uma vez que pleiteavam mudanças, mas ainda sim eram representantes da classe
49
média branca das universidades americanas? Seriam estes os novos agentes da
Nova Esquerda?
Daí afirmar que a possibilidade de fazer revolução já foi aprendida com a
geração anterior e que o resultado dá no mesmo: um quadro na parede de uma casa
pobre dos subúrbios, ou seja, nada que mude o rumo das coisas.
Conseqüentemente, em 1971, ao tentar escrever um romance histórico para
contar a história da esquerda americana, desde sua ascensão à sua derrocada,
Doctorow atesta que as formas disponíveis não são capazes de abarcar a totalidade
que o projeto de Esquerda era o detentor e desmascara, através de seu narrador, as
mentiras ideológicas do funcionamento da sociedade.
Doctorow, então, como artifício formal, cria diversos narradores que vão dar a
sensação de contar a História da Esquerda americana em dois diferentes momentos:
o momento da Velha Esquerda e o da Nova Esquerda, do comunismo dos anos 30 e
40 e do radicalismo dos anos 60. A criação destes diversos narradores gera uma
narrativa extremamente truncada em que algumas vezes a vinculação desta com o
tempo é bastante problemática e esquizofrênica até. Como estes narradores
perderam o senso de historicidade, a forma que a narrativa adquire parece “flutuar”
no tempo, podendo-se usar qualquer forma para falar dos mais diferentes assuntos.
Enfim, o romance transformou-se aparentemente em uma concha formal oca em que
o conteúdo é relativamente indiferente. Quem poderia imaginar uma passagem
como a que segue?
“(...)
O único som era o do vento. Susan parecia um A no meio da
varanda, uma poça escura espalhando-se a seus pés. Eu estava
entorpecido de frio. Sentia o rosto e as mãos ardendo. E vimos a
mancha se alastrar em todas as direções ao redor dos sapatos de
Susan, na varanda de madeira.
50
Segundo Evans, observadores da Nova Zelândia contam que
lá os mosquitos pousam na crisálida flutuante das fêmeas, laceram-
na com seu aparelho genital e acasalam antes que elas possam
emergir.”29
Como juntar o relato da experiência de duas personagens com os mosquitos
neozelandeses? Este trecho em particular nos mostra que na pós-modernidade
estamos condenados a ter acesso à História por meio deste verdadeiro labirinto
narrativo que passa da urina de Susan na varanda de sua casa para o acasalamento
de mosquitos na Nova Zelândia, e por toda uma teoria de que “tudo vale” para
remontar o que se perdeu: já que se perdeu a capacidade de se falar sob o ponto de
vista da totalidade, vamos tentar recriá-la com tudo que temos à disposição. E a
função do crítico é tentar juntar os fragmentos para dar a unidade do romance, tarefa
das mais árduas.
Em outras palavras, o que se verifica na pós-modernidade é que, no romance,
o único meio de termos acesso à História é por meio dos fragmentos desta, da visão
idealizada sobre uma época, ou do simulacro de como é viver um determinado
período histórico. O romance se transformou em um quebra-cabeças, e nós temos
que fazer um verdadeiro trabalho arqueológico para juntar as peças.
O romance histórico30, como descrito por Lukács, “nasce a partir de amplas
forças históricas as quais só podem ser entendidas completamente através de sua
forma particular e de sua riqueza de pequenos detalhes.”31 A forma particular do
romance histórico já não diz sobre as forças históricas que dão sustentação ao
29 DOCTOROW, E.L. O Livro de Daniel, p.84 “...The only sound was the wind. Susan stood like an A in the middle of the porch, a darkening stain spreading under her foot. I was numb with cold. My face stung, my hands stung. We watched the stain expand in all directions around Susan’s shoes on the wooden porch. According to Evans, observers in New Zealand report that mosquitoes there land on the floating pupae of females, slit them open with their genitals, and mate with the females before they can emerge.” 30 É necessário um acerto de contas, conforme sugestão da Professora Iná Camargo Costa durante a qualificação, com o conceito de romance histórico tal qual explicitado por Lukács em O Romance Histórico. Este debate, de acordo com ela, pode ser uma questão a ser iniciada no Doutorado. 31 LUKÁCS, G. The Historical Novel. Boston, Beacon, Lincoln and London. University of Nebraska Press., p. 294
51
romance, daí o uso desenfreado do pastiche que consiste no uso de formas usadas
à vontade afastadas, esvaziadas de seu conteúdo histórico.
O romance The Book of Daniel então tem que dar conta de um passado, que
é uma verdadeira confusão fantasmagórica, e do presente do narrador, que também
é bastante angustiante. O romance tem que abarcar o narrador como o autor da
História e como sendo moldado pela História ao mesmo tempo. O narrador Daniel,
em sua contemporaneidade, tem que escrever, entender o que está acontecendo
com a Esquerda no momento histórico em que o projeto dela é esfacelado, e
escrever sobre ele mesmo quando criança, moldado pelo presente, e sobre o
passado da esquerda, ao qual ele e sua família pertencem. Entretanto, é
precisamente nesta situação de multiplicação de vozes na narrativa que o escritor
tenta achar as formas capazes de falar de algo que começa a perder a sua
capacidade totalizante.
Já nas últimas páginas do romance o narrador propõe três finais, como uma
tentativa formal de buscar alguma relação entre toda a sua narrativa e a totalidade,
para estabelecer alguma relação entre os fragmentos.
O primeiro final cujo subtítulo é A Casa nos mostra o seguinte:
“Nos degraus, sob a varanda em ruínas, dois garotos negros
jogam cassino. Uma negra abre a porta da frente e os chama para
dentro. A noite se aproxima. O vento começa a soprar sobre o pátio.
Gostaria de voltar-me e perguntar à mulher se posso entrar na casa
e olhar em volta. Mas as crianças recolhem as cartas, entram e mãe
fecha a porta. Não farei nada disso. A casa é deles agora.”32
32
DOCTOROW, E.L. The Book of Daniel. New York. First edition: 1971. First Plume Printing, Março, 1996, p. 299 Tradução: O Livro de Daniel. Tradução de Áurea Weissemberg. Nova Cultural, 1988, p. 284 “On the steps of the house, below the splintered porch, two black kids sit playing casino. A black woman opens the front door and calls them to come inside. The night is coming on. The wind is beginning to blow over the schoolyard. I would like to turn and ask the woman if I can come in the house and look around. But the children gather up their cards and go inside and their mother shuts the door. I will do nothing. It’s their house now.”
52
O narrador ao retornar ao lugar onde viveu grande parte de sua infância
possibilita uma leitura de querer ver o que aconteceu com todo o seu passado,
corporificado pela casa em que ele morou no Bronx. O que o narrador consegue
descrever é apenas o mundo da aparência. Ele faz uma descrição minuciosa daquilo
que lhe é perceptível, mas não consegue apreender o conteúdo do que ele vê. Em
outras palavras, o narrador Daniel vê a sua casa como sendo aquela onde ele
passou parte de sua infância e que agora não mais lhe pertence e sozinho, ele deixa
o seu passado para trás e assume que aquilo não é mais dele.
O subtítulo do segundo final é Funeral e o jogo formal, como nos mostra a
seguinte passagem,
“Ficamos de pé junto aos túmulos. Uma imensa multidão
aglomera-se atrás de nós. As orações são entoadas. Todo mundo
está de preto. Relanceio o olhar para Susan. Está perfeitamente
controlada muito correta e elegante num vestido preto sem mangas.
Está linda, e eu me orgulho imensamente dela”.
“No cemitério aguardamos atrás do féretro, enquanto os
motoristas fumam e conversam na calçada e o mestre-de-
cerimônias entra no escritório para conferenciar com o pessoal. É
um funeral pequeno e haverá outros naquele dia. Minha irmã
morreu. Morreu de uma falha de análise.”33
sugere uma justaposição de dois momentos históricos que resultaram no mesmo
fim: a morte. À medida que o narrador narra o funeral de seus pais, ele também faz a
narração do enterro da Susan, sua irmã. Esta justaposição poderia ser lida como a
dissolução de um projeto de revolução nos Estados Unidos em que a figuração da
morte nestes dois períodos históricos, tanto como o despertar da Velha Esquerda
33 Idem, ibidem, p. 300-301 “We stand at the side of the graves. An enormous crowd presses behind us. The prayers are incanted. Everyone is in black. I glance at Susan. She is perfectly composed. She is neat and trim in a sleeveless black dress. She looks beautiful and I am enormously proud of her. ...In the cemetery we wait behind the hearse while the drivers smoke and talk on the sidewalk and the funeral director goes up to the Office and deals with the cemetery people. This is a small funeral and he will have others today. My sister is dead. She died of a failure of analysis.”
53
nas décadas de 30, 40, o seu desenvolvimento e morte na década de 50, marcada
pela morte de Paul e Rochelle Isaacson, quanto pela total falta de inoperância da
Nova Esquerda, impossibilidade de agência na década de 60, marcado pelo suicídio
de Susan, foram na verdade “a failure of analysis.”
Finalmente, a forma utilizada no terceiro final é bastante reveladora porque o
esperado era uma conclusão, mas o que se mostra é uma impossibilidade de se
concluir algo sobre o seu passado histórico e a tentativa de se entender
historicamente se perdeu porque há outras questões que são mais importantes
como o tempo, a água que vai ser fechada e as luzes que vão ser apagadas na
biblioteca em que Daniel está escrevendo a sua tese de doutorado sobre o seu
passado. De acordo com o narrador a sua tese já não tem muita função porque se
perdeu a capacidade de se pensar historicamente, de estabelecer as relações entre
a parte e o todo. Portanto o seu livro vai servir para uma lista enorme de coisas que
já não poderão ser relacionadas com o todo a que ela realmente se refere. De
acordo com o narrador:
“ Livro de Daniel: Uma Vida Entregue em Cumprimento Parcial
das Exigências do Grau de Doutorado em Biologia Social,
Entomologia Grosseira, Anatomia Feminina, Cacofonia Infantil,
Arquidemonologia, Escatologia e Poluição Térmica.”34
E nós, os espectadores voyeur, temos que assistir ao baile de máscaras dos
mortos que ressuscitam para dançar nesta festa a fantasia, porque ao falar do
passado, ao nos revelar uma História de um projeto de mundo que sucumbiu diante
de outro que, ao contrário do projeto de Esquerda, não prevê a capacidade de se
fazer as conexões que realmente importam, e pode ser lido como algo que serve
para tudo desde Biologia Social até Poluição térmica, o romance The Book of Daniel
aparece como um poderoso instrumento cognitivo que nos ajuda a pensar e a fazer
34DOCTOROW, E.L. The Book of Daniel. New York. First edition: 1971. First Plume Printing, Março, 1996, p. 302 Tradução: O Livro de Daniel. Tradução de Áurea Weissemberg. Nova Cultural, 1988, p. 287 “Daniel’s Book: A Life Submitted in Partial Fulfillment of the Requirements for the Doctoral Degree in Social Biology, Gross Entomology, Women’s Anatomy, Children’s Cacophony, Arch Demonology, Escathology, and Thermal Pollution.”
54
as conexões que as vendas ideológicas não nos deixam fazer. Podemos perceber
que a perspectiva adotada pelo narrador ao contar a história da esquerda norte-
americana nos revela muito sobre o narrador (intelectual, branco, classe-média) que
adota uma postura de lamentação, mas que, na verdade, fez muito pouco para
mudar o quadro trágico pessoal e histórico que ele nos narra.
O narrador, claro que produzido pelo escritor E.L Doctorow (que também é
fruto da estrutura de sentimento da Frente Popular e seu fracasso), sofre no sentido
mais literal da palavra de ausência de História. É interessante e fundamental
perceber que as formas literárias surgem de pressões histórico-sociais para resolver
as contradições sociais reais.
Contudo o artista nem sempre é consciente de que seu trabalho tem esta
função de imaginar soluções para problemas da realidade, e não problemas da
literatura, ou outra forma de arte. A erupção destes problemas no processo de
construção simbólica seria, para o crítico norte-americano Fredric Jameson35, um
retorno de um inconsciente coletivo reprimido e isto ele chamou de “o inconsciente
político” que todas as formas simbólicas expressam. Assim, a esquerda norte-
americana que não mais possui o projeto de totalidade em suas mãos, só consegue
expressar o seu desejo de mudança através do inconsciente político marcado pela
presença de desorientação, fragmentação e morte. Sendo assim, um viés que pode
nos ajudar seria o de fazermos uma análise da presença da morte na narrativa como
marcadora do processo histórico da esquerda.
Quando dissemos anteriormente que o inconsciente político deste romance
aflora sob as formas de fragmentação e morte adotamos, usando o ponto de vista do
narrador, a idéia de que a morte que permeia a narrativa pode ser lida como
mimeses do que estava acontecendo com a esquerda norte-americana.
E no romance, claramente há três momentos que merecem destaque: a morte
da avó de Daniel, mãe de Rochelle, que chegou nos Estados Unidos em 1918; a
35 JAMESON, Fredric. The Political Unconscious: Narrative as a Socially Symbolic Act. London, Routledge, 1981.
55
morte dos pais de Daniel, nascidos entre 1919 e 1922 e mortos em 1954, e
finalmente a morte de Susan em 1968. É óbvio que se atentarmos para as datas,
estamos nos referindo ao momento do Partido Socialista nos Estados Unidos e a
grande leva de imigrantes europeus que vieram para a América em busca do
paraíso perdido; à era da frente popular e ao macartismo e finalmente, o momento
da Nova Esquerda.
Raymond Williams nos ajuda a pensar sobre as afinidades entre uma
estrutura de sentimento e uma geração quando ele nos ensina que “uma geração
pode treinar a sua sucessora, com razoável sucesso, no caráter social ou no padrão
cultural geral, mas a nova geração terá a sua própria estrutura de sentimento. A
nova geração responde de seus próprios modos ao mundo genuíno que está
herdando”. 36 Assim, quando Lukács diz que “os romances históricos deveriam
revelar como épocas passadas se tornam a “pré-história “do presente”37, estamos
dizendo que cada geração aprendeu com a antecessora os erros e os acertos da
época anterior. No entanto, cada geração precisa aprender a usar este
conhecimento para uma outra configuração histórica. E, o que vemos no decorrer da
história da esquerda é um infindável número de erros que revelam certamente o
modo como a Direita tornou-se a “única opção”. Leiamos o seguinte excerto:
“– O movimento precisa de dinheiro, Daniel. A fundação pode
exercer um fantástico efeito estabilizador. Pode ser realmente
extraordinária. Pode tornar-se um ponto de partida para outras
coisas.
– Susan, por que sempre que você me apresenta uma idéia,
ou me pede para fazer qualquer coisa, trata-se de algo que me
deixa desanimado?
Ela baixou os olhos.
36 WILLIAMS, Raymond. The Country and the City. London 37 LUKÁCS, G. The Historical Novel. Boston, Beacon, Lincoln and London. University of Nebraska Press., p. 230
56
– Acho que não é preciso muita coisa para desanimá-lo,
Daniel.
– Vamos manter a discussão em plano razoavelmente
elevado–pediu Robert Lewin.
– Estou tentando, papai, mas tudo o que parte de mim se torna
automaticamente suspeito – replicou Susan. – Certo, Daniel?
– Não, acontece que eu soube do caso como se fosse um
privilégio, depois de tomadas as decisões.
– Mas nada foi feito até agora. Estamos apenas conversando.
– Quem está apenas conversando?
– Você é incrível. Estamos apenas conversando, você e eu.
Nós.
...Susan tornou a abotoar habilmente as mangas.
– Esqueça. Esqueça que eu falei alguma coisa. Faça o que
quiser. – E voltando-se para o pai: – Isso me deixa triste. Triste de
verdade. Estamos empenhados numa terrível guerra imperialista,
queimando gente, e o importante é minha maneira de falar.
– Não, vou lhe dizer o que é importante. O caso é seguinte: já
que quer doar o seu dinheiro, por que não o faz? Por que quer
colocar no gesto a etiqueta da família? Para que fazer propaganda?
– Esta é uma pergunta direitista. Não estou fazendo
propaganda. O que aconteceu aos Isaacsons é uma lição para esta
geração. Creio que você não compreende isso”.38
38 Doctorow, E.L. The Book of Daniel. New York. First edition: 1971. First Plume Printing, March, 1996, p. 80 Tradução: O Livro de Daniel. Tradução de Áurea Weissemberg. Nova Cultural, 1988, p. 82 e 83 “What the movement needs is money, Daniel. The Foundation can have a fantastic stabilizing effect. It can be really great. It can be something out of which other things happen.”
57
O contexto desta “conversa” entre Daniel e sua irmã Susan aconteceu no
Natal de 1967. Eles haviam combinado de passar a noite de Natal na casa dos
Lewin, seus pais adotivos, e começaram esta discussão acerca do que fazer com o
dinheiro que herdariam graças a um fundo que o advogado Ascher havia feito para
receber o dinheiro oriundo da morte de Paul e Rochelle.
Como se percebe claramente, Susan é muito mais engajada nas questões
sociais e políticas do país. Daniel não sabe exatamente que rumos tomar: está
inserido em um ambiente acadêmico, é fruto de pais adotivos liberais (não-radicais),
e também não quer fazer parte do movimento revolucionário da Nova Esquerda,
como Susan.
Ao mesmo tempo em que não vê o seu trabalho de dissertação render, ele
tenta se inserir em manifestações como a queima de convocações para a Guerra do
Vietnã em frente ao Pentágono. No entanto, ele tenta se inserir apenas por uma
necessidade de cunho pessoal, motivada por razões pessoais, pelo fato de ser filho
de pais que foram assassinados por acusação de conspiração, e quando ele faz isto,
é um estranho no ninho. Não sabe como reagir, não sabe para onde ir, não sabe
exatamente o que está fazendo ali. Ele não consegue interagir com ninguém e
“Susan, how is it whenever you present me with an idea, or ask me to do something, it’s in a way calculated to turn me off.” She lowered her eyes. “I guess, Daniel, because not much is required to turn you off.” “Let’s keep the discussion on a reasonably high plane,” Robert Lewin said. “I try to, Daddy,” Susan said, “but anything that comes from me is automatically suspect. Right, Daniel?” “No, it’s just that I hear about it as privilege, after the decisions are made.” “But nothing has happened yet. We’re just talking.” “Who’s just talking?” “You’re unbelievable. We’re just talking, now, you and me. Us.” “No, you said you were talking to people in New York. “Oh, right, I have, I’m talking to a lot of people. I talk to whoever listens.” “Who” Susan nimbly rebuttoned her sleeves. “Forget it. Forget I said a thing. You do as you like.” She turned to our father. “It makes me sad, it really does. We’re in this horrible imperialist war, we’re burning people, and the issue is how I happen to talk.” “No, I’ll tell you what the issue is. The issue is if you want to give your money away why not just do it, why do you have to put a family tag on it? Why do you have to advertise?” “That’s a Rightist question. It’s not advertising. The name Isaacson has meaning. What happened to the Isaacsons is a lesson to this generation. I suppose you can’t understand that.”
58
quando o faz é sempre a partir de uma postura de “aquilo não é com ele”, embora a
realidade esteja “batendo” em sua cara todos os dias.
Leiamos o trecho a seguir:
“Ainda não estava claro o que aconteceria. A atmosfera era
festiva. Corriam boatos de que chegar ao Mall era inútil porque fora
franqueado por acordo entre os organizadores da marcha e os
oficiais do Pentágono. Quando começou a escurecer, muita gente
se afastou. Havia espaço para se ver onde estavam os PMs e os
chefes de polícia em fila nos degraus de entrada. Havia espaço para
se andar para a frente. Podia-se examinar os rostos dos mandarim.
Deus estava do lado deles. Não importa a causa, haverá sempre
alguém para sacrificar por ela sua vida. Aparecem soldados
imediatamente, organizam-se em fileira e se dispõem a morrer pela
causa. E cientistas felizes em orientar suas pesquisas nessa
direção. E acadêmicos de inteligência aguda que, com toda a sua
racionalidade, dela retiram a verdade. E poetas que encontram voz
para proclamar seus sentimentos pessoais a respeito. E em cada lar
do país, os músculos do rosto dispõem-se em satisfeito
conhecimento disso. E há quem ganhe a vida com isso. E os
religiosos rezarão por um fim justo, em termos satisfatórios para a
causa. Anoitecera e estava muito frio. Era possível encontrar uma
fogueira e irmana-se com os outros. Havia muita gente fumando
maconha. A atmosfera era agradável. Aqui e ali, cerimônias de
queimas de cartões. Constante interrogatório aos soldados, cantos;
vendedores aproximando-se com bisnagas de pão, bugigangas,
cerveja e Pepsi-Cola. Contudo, sinto-me exausto com todo aquele
esforço. É como se minha presença – ninguém sabe –, mas meu
comparecimento roubou ao dia o seu sentido genial.” 39
39
Idem, ibidem, p. 242
It still wasn’t clear what was going to happen. The mood was festive. There were rumors that achieving the Mall was meaningless because it had been permitted by arrangement between the organizers of the march and the officials of the Pentagon. Then, as it began to turn dark, lots of people began to leave. There was no room to see where the MP’s and the marshals stood in rank at the steps of the front entrance. There was room to move up front. One could examine the mandarim faces. God
59
Quando seguimos com a leitura e ele olha no próprio seio de sua família,
percebe que Susan e ele são completamente diferentes, enquanto ela quer muito a
intervenção no mundo em que vive e simplesmente não consegue resultados, ela
acaba por suicidar-se, ele apenas tem o olhar de um crítico de cultura, sentado nas
alcovas da biblioteca, sem capacidade alguma de agência, apenas tentando
“respirar” um pouco fora do turbilhão histórico que tenta afogá-lo. É um olhar apenas
contemplativo, porque mais do que ninguém, por experiência pessoal, ele sabe o
que acontece àqueles que querem algo diferente: a morte. E o exemplo de seus pais
é sim, como disse Susan, “uma lição para esta geração”.
A morte, então, sinaliza no romance a lição que cada geração tem que
aprender a lidar com o que foi aprendido da geração anterior.
No entanto, percebemos no narrador Daniel uma enorme contradição. Ao
mesmo tempo em que ele sente a “pressão” de ser e agir como Susan enfrentando o
mundo para afirmar o legado deixado pelos pais, ele não quer participar do
movimento porque é membro da classe média, desfruta das regalias deste meio
social e não quer abrir mão disto, e é, acima de tudo, um intelectual.
O fato de Daniel ser um intelectual nos dá uma pista de sua não
confiabilidade como narrador, visto que o retrato de esfacelamento, destruição e
morte da sua família e da esquerda americana parte do ponto de vista de quem
também vive a ambigüidade de se decidir para que lado ir. Isto significa dizer que o
narrador Daniel ou opta por mostrar que lutar pelos ideais da esquerda não leva a
lugar nenhum senão a morte, e por isto, capricha nas tintas para comprar a nossa
simpatia e compaixão por todo o seu destino trágico (daí a angústia pungente que os
was on their side. No matter was what is laid down there will be people to put their lives on it. Soldiers will instantly appear, fall into rank, and be ready to die for it. And scientists who are happy to direct their research toward it. And keen-witted academics who in all rationality develop the truth of it. And poets who find their voice in proclaiming the personal feeling of it. And in every house in the land the muscles of the face will arrange in smug knowledge of it. And people will go on and make their living from it. And the religious will pray for a just end to it, in terms satisfactory to it. It was now dark and getting very cold. It was possible to find a bonfire and be with others. There was a lot of dope to smoke. The feeling was good. Here and there, ceremonies of burning draft card. Constant heckling of troops, singing; diggers coming around with loaves of bread, and baloney, and beer and Pepsi. Still I am exhausted with this striving. It is as if my presence—none of them knows—but my attendance had robbed the day of genius.
60
leitores sentem ao ler o romance, conforme explica Jameson) ou ele opta por
mostrar que realmente o momento da esquerda é de crise e por isto, ele (o
narrador) assume que não quer participar do movimento e que seu desejo é o de
conseguir o seu título de Doutor para garantir um emprego como professor
universitário e continuar desfrutando das regalias da classe média.
Weinstein de maneira bastante esclarecedora nos explica:
“Mas a universidade também era vista como o lugar onde uma
necessária elite social era formada, a qual podia se envolver em
“esforços pessoais desconfortáveis”, esforços esses que aqueles
que “dependiam de estômagos vazios para ser a força motriz” de
ação não estavam preparados para assumir. Esse conceito elitista
de mudança social foi reforçado pela rejeição a uma teoria socialista
de classe e pela inquestionável aceitação de categorias sociológicas
burguesas predominantes, em que estudantes universitários eram
definidos como classe média por seus estilos de vida, renda, e
desempenho escolar. Na ausência de um conceito marxista de
classe, tal entendimento obviamente fazia sentido porque os alunos,
e em especial os ativistas, eram oriundos de famílias de renda
maior, tinham estilos de vida da “classe média”, e estavam entre os
membros da sociedade americana com melhor formação
educacional. Essa contradição entre objetivos democráticos e não-
elitistas e um senso missionário de ajudar aqueles mais
necessitados constituía a base de muita ambivalência política na
nova esquerda.” 40
Susan, por outro lado, representa de maneira mais contundente o seu lado
mais revolucionário neste jogo de ambivalências, porque crê na possibilidade de
mudança, embora, fazendo parênteses, a maioria dos ativistas estudantis tivessem
consciência de que o sistema global, não apenas as suas ações políticas locais,
estavam em fase de perigo, a Nova Esquerda não conseguiu pensar em uma
estratégia que confrontasse a ordem vigente com uma nova proposta que pudesse 40 WEINSTEIN, James. Ambiguous Legacy. The Left in American Politics. New Viewpoints A Division of Franklin Watts, Inc. New York/ London, 1975, p.130 (tradução minha)
61
ser vista como uma alternativa ao capitalismo. As suas propostas giravam em torno
do quadro capitalista, porque como já dito anteriormente eram membros da elite
pensante das melhores universidades americanas, membros da famosa classe
média americana e insistiam em dizer que o trabalho do intelectual da esquerda era
apenas apontar os problemas para saber exatamente onde mudanças eram
necessárias, e não propiciar respostas ou ter ações efetivas.
Ainda hoje, funcionamos sob esta égide: sabemos muito bem onde estão os
problemas, contudo, uma coisa bem diferente é saber resolvê-los. Agora fechando
os enormes parênteses, Susan tem o desejo de mudança mais aguçado, mas este
espírito está inteiramente inserido no capital porque “a fundação precisa de dinheiro”
para se tornar um movimento de desestabilização da ordem social contemporânea.
Fora do capitalismo, o mundo se torna inimaginável.
Susan, então, do ponto de vista do narrador, é uma alegoria de um projeto da
Nova Esquerda que fracassou inteiramente porque, com estas ambivalências, ele
não foi capaz de se promover como alternativa política para a roda incessante do
capitalismo. Susan nada mais é do que uma heroína que teve que achar a morte
como “solução” porque a sua solução política não podia ser figurada no romance
como tal, uma vez que esta não se figurava também no plano da História.
Obviamente, esta versão é o narrador que nos impõe como verdade absoluta à
primeira vista e é bastante reveladora de quais perspectivas esta temática é
abordada e de como não podemos considerá-la como a grande verdade.
De acordo com Stanley Aronowitz, a Nova Esquerda é a história de uma
promessa que não pôde ser cumprida, é a história de um contrato que foi violado
que
“(...)
foi causado por um outro tipo de contrato quebrado, gerado
pelo próprio sucesso do sistema durante o New Deal ao reconstituir
o sonho americano. A geração nascida em torno e depois de 1940
nunca viveu a cultura de privação econômica, o que permitiu ver a
62
injustiça da política americana, descriminação racial, e pobreza
como sinais de decadência moral do capitalismo tardio. Essas
preocupações eram na verdade reflexo de um desconforto da classe
média com a banalidade da vida cotidiana nos subúrbios. A
sociedade de consumo obrigou seus beneficiários brancos e de
classe média a aceitar o fim da História como o preço pela
segurança econômica. Para os novos sujeitos históricos, esse era
um preço muito alto a ser pago: uma euforia baseada na
mediocridade. O fim da Guerra do Vietnã retirou o tema universal e
popular da esquerda do centro das atenções. A era terminou quando
os ativistas foram forçados a tratar de outro tema único, geralmente
movimentos locais
(...)” 41
É exatamente este sentimento de banalidade, de mediocridade que percorre o
narrador Daniel. Toda a sua história é, embora seja extremamente comovente, uma
construção que caminha para a banalidade.
O movimento histórico que é corporificado na sua família (os seus pais, a sua
avó, ele e Susan) demonstra pela condição social familiar que nenhum dos ideais
pelos quais os Isaacson lutaram deu certo. O senso de inevitabilidade histórica é
incrível: todos nós sabemos que nada do que for feito por aquela família pobre do
Bronx resultará em algo que vai mudar alguma coisa na ordem mundial.
Analisemos por exemplo a avó de Daniel que chegou aos Estados Unidos em
1918 da Europa. Judia de grande personalidade ela tinha crises, segundo Daniel
“Acusava minha mãe, sua própria filha de tentar envenená-la.
Mamãe precisava provar a comida que punha na mesa antes que
ela resolvesse a comer... Quando entrava em crise, cobria cabeça
com um xale e fugia. Descia ruidosamente os degraus da varanda,
colocando um ao lado do outro os pés calçados de botas altas antes
41 ARONOWITZ, Stanley. When the New Left was New. In: The Death and Rebirth of American Radicalism. p. 55 (tradução minha)
63
de dar o passo seguinte. E, chegando à calçada, antes de se afastar
às pressas, voltava-se e sacudia o punho contra a casa,
praguejando em iídiche, convocando a cólera, os cossacos, o tifo e
os terrores da fornalha ardente.”42
Quando a avó de Daniel morreu, ele correu para o porão onde um grande
homem negro, chamado Williams, mora e ele diz que todos os outros é que eram os
loucos da família, porque de acordo com ele, quando todos saíam desesperados à
procura dela, ela estava lá com ele rindo da cara de todos e oferecendo-lhe café.
Daniel fala para Williams que ela era louca, ele com “olhos vermelhos de assassino”,
responde: “– Não tão louca como certas pessoas”.
Não importasse o que os Isaacsons fizessem naquelas reuniões em que eles
apontavam os problemas do modo de produção capitalista, eles não teriam saída
senão o fracasso, contudo o casal Isaacson só foi perceber o que realmente estava
acontecendo quando eles foram condenados à cadeira elétrica. A avó de Daniel que
todos acusavam de louca já sabia desde que chegou nos Estados Unidos que o
“sonho americano” não era para todos e que a terra prometida dos judeus
certamente não era os Estados Unidos visto as inúmeras tragédias de que foi vítima.
Ela, por trás de sua loucura, era a mais lúcida, pois sabia que tudo que “veio antes
dá no mesmo”, para usar as palavras de Sternlicht, na década de 60, quando disse à
repórter o nome da colagem que havia feito na parede.
Já Paul e Rochelle Isaacson sofreram também de “falha de análise”, pois Paul
é uma encarnação quixotesca da Velha Esquerda, sofre de uma ingenuidade incrível
frente à realidade do mundo, mas é perspicaz em suas análises teóricas sobre o
mundo em que vive. Em umas das cenas mais interessantes em que percebemos
42 Doctorow, E.L.The Book of Daniel. New York. First edition: 1971. First Plume Printing, 1996, p67 O Livro de Daniel. Tradução de Áurea Weissemberg. Nova Cultural, 1988, p. 71 “She used to accuse my mother, her very own daughter, of trying to poison her. My mother always had to taste the food she put on the table before she put it down...When she went into one of these things, she would put a shawl over her head and run away. She would stomp down from the porch, bringing her high lace shoes together on one step before the next step was taken. And on the sidewalk, before rushing off, she would turn and shake her fist at the house and curse it in Yiddish, calling down cholera and Cossacks and typhoid and wholesale terrors of the burning fiery furnace.”
64
esta sua ingenuidade, todos os amigos do casal, inclusive os filhos, vão a um show
do cantor negro Paul Robeson.
Todavia, há um movimento da polícia e do governo contra as pessoas que
participavam do concerto de Paul Robeson quando eles retornam para casa, o
ônibus é interceptado por policiais e ativistas anticomunistas que gritam palavras
ofensivas aos comunistas, jogam pedras e tentam virar os ônibus. No entanto, Paul
não consegue perceber o que está acontecendo e tenta sair do ônibus para que a
polícia os faça parar. No caso de Paul, “impossível deixar de sentir que ele não
conseguia fazer a conexão final entre aquilo em que acreditava e a maneira de
reagir do mundo. Não conseguia fazer aquela violenta conexão.” 43
O crítico T.V. Reed descreve como o narrador Daniel analisa seu pai:
“Ele analisa a internalização da política do Partido Comunista
pelo seu pai, que mudou de um ultra-esquerdismo no início da
década de 30 (quando o partido chamava os liberais de “fascistas
sociais”) a um ultra-americanismo na Frente Popular (em coalizão
com esses mesmos liberais que agora eram contra o fascismo).
Mantendo, por um lado, uma espécie de fé na justiça americana e,
por outro, apresentando constantes provas da perfídia capitalista, a
cumplicidade radical de Paul Isaacson se dá no modo como suas
certezas dialéticas abstratas ao mesmo tempo subestimavam e
superestimavam a justiça liberal americana.”44
Faltava, então, um olhar mais atento na História, porque o movimento
histórico em que eles estavam inscritos dava claros sinais para quem soubesse olhar
atentamente que a desconfiança que o governo tinha dos comunistas precisava ser
entendida também como a desconfiança que estas pessoas tinham que ter do
governo e de sua justiça também. Até o último minuto Paul acreditava na justiça
americana, como se fosse uma entidade superior que ficava isolada em uma esfera
que não se deixaria contaminar por outras esferas que queriam o seu fim. Ele, 43 Idem, ibidem, p.38 44 Reed, T.V. Genealogy/ Narrative/ Power: Questions of Postmodernity in Doctorow’s The Book of Daniel. In: American Literary History 4, 1992, p. 293 (tradução minha)
65
principalmente, porque Rochelle era mais realista e sabia o que estava acontecendo
melhor que Paul, ficou cego por sonhar com um mundo de justiça para todos, não
importa a que classe social você pertencesse ou que aspirações política você
tivesse.
E o que sabemos historicamente é que durante o período conhecido como
Guerra Fria, a possibilidade e o medo de um fim apocalíptico causado pelas bombas
nucleares dos Estados Unidos e da antiga União Soviética comunista fizeram parte
do medo de uma geração para a qual o fim do mundo era uma possibilidade real.
Com esta histeria do medo funcionando a todo vapor, os políticos do governo
americano uniram o útil ao agradável e decretaram uma política anticomunista, pois
não poderiam perder a oportunidade de rechaçar qualquer tentativa de pensamento
radical dentro dos Estados Unidos.
O período de caça às bruxas estava instaurado sendo encabeçado pelo
senador Joseph Maccarthy que fazia uma perseguição cruel a um grande número de
pessoas que pudessem estar ligados de uma maneira ou de outra ao Partido
Comunista e, conseqüentemente, à União Soviética.
Quando o governo começa a perseguir os comunistas e a prendê-los nas
mais diversas áreas do país e do mundo, Daniel, mesmo pequeno, sabe o que vai
acontecer.
“Eu tinha medo de dormir. Sofria terríveis pesadelos que não
conseguia recordar e dos quais despertava aterrorizado e sufocado.
Ficava apavorado com a idéia de que a casa pegasse fogo
enquanto eu estivesse dormindo, ou que meus pais se afastassem
sem nos avisar. Por qualquer motivo, a segunda possibilidade
parecia mais provável. Ficava deitado no escuro, pensando que não
devia adormecer, porque no minuto em que isso acontecesse, eles
abandonariam a mim e Susan, indo para algum lugar que nunca
haviam mencionado. Um lugar secreto. Era como quando eu os
surpreendia fazendo amor, o mesmo terror da exclusão. Debatendo-
se, completamente descontroladas, aquelas pessoas que me
66
controlavam. Gemendo e arquejando quem me manda amarrar os
sapatos e tomar o suco de frutas... O mundo estava se dispondo
segundo meus pais, estabelecendo alguma mística disposição de
forças no ar, de modo que, sem atrito e em harmonia física, todos os
corpos e objetos secretavam um sentimento que era a sua Paixão e
que os afastaria de mim.
(...)
Certa manhã, Daniel ouviu baterem à porta. Reconheceu a
hora. Era preciso conhecer a casa para imaginar o que aconteceu. A
porta da frente ficava à esquerda para quem estava no interior. Abria
para um pequeno hall e à direita deste ficava a entrada do living. No
meio deste hall escuro e pequeno situava-se a escada estreita que
conduzia aos dois quartos. Sob as escadas era guardado o carrinho
e também jornais velhos. Para além desta área ficava a porta da
cozinha, situada junto ao living. Explico isso para que você (quem?)
registre com nitidez um dos Grandes Momentos da Esquerda
Americana. A Esquerda Americana encontra-se neste grande
momento habilmente reduzida às mesquinhas conspirações de um
casal chamado Paul e Rochelle Isaacson.”45
45 DOCTOROW, E.L. The Book of Daniel. New York. First Edition: 1971, p.109, 110 Doctorow, E.L.. O Livro de Daniel. Tradução de Áurea Weissemberg. Nova Cultural, 1988, p. 110 e 111 I was afraid to go to sleep. I had terrible nightmares which I couldn’t remember except in waking from them in terror and suffocation. I was terrified that if I went to sleep, the house would burn down, or that my parents would go away somewhere without telling us. For some reason, the second of these possibilities came to seem more likely. I would lie in the dark and think that I couldn’t fall asleep because the minute I did, they would leave me and Susan and go somewhere they have never told me about. A secret place. It’s the same thing when you catch them fucking, the same terror of exclusion. Flopping about, completely out of control, these people who control you. Grunting and moaning and gasping, who have told you to tie your shoelaces and drink your juice... The world was arranging itself to suit my mother and my father, like some mystical and alignment of forces in the air; so that frictionless and in physical harmony, all bodies and objects were secreting the one sentiment that was their Passion, that would take them from me. ...One morning Daniel heard a knock on the door. He recognized the hour. You have to know the house to see what happened. The front door was on the left side of the house as you faced it from the inside. It opened onto a short hall, and on the right-hand side of the hall was the entrance to the living room. Halfway down this short, dark hall was the narrow stairs that went up to the two bedrooms. Under the stairs was the place we kept the carriage and also old newspapers. Just beyond this area was the doorway to the kitchen which was behind the living room in location. I tell you this (who?) so that you may record in clarity one of the Great Moments of the American Left. The American Left is in
67
Observando o excerto acima, podemos inferir que o romance The Book of
Daniel segue um ritmo de “destruição”, de “morte”, pois demonstra talvez uma
possível tese de que o romance mimetiza a história da esquerda americana. Uma
vez fora da agenda internacional, e remanescente em grupos minoritários, ou nas
bibliotecas das faculdades, a esquerda seguiu dois caminhos que foram muito bem
figurados pelo romance: a morte ou a passividade. Esta última sendo corporificada
pelo personagem/narrador Daniel que não tem muita capacidade de agir, visto a sua
posição de futuro pensador acadêmico (mesmo que não nos moldes dos
pensadores que vão trabalhar para as grandes corporações ou até mesmo em
grandes cargos governamentais) e por ter também aspirações de classe média
(contradições da Nova Esquerda e comparações com o personagem Daniel da
Bíblia) e aquela como solução dada pelo narrador para a esquerda norte-americana
vista a partir da ótica do derrotado, de quem não vê saída senão a partir do Deus
indestrutível (capitalismo).
this great moment artfully reduced to the shabby conspiracies of a couple named Paul and Rochelle Isaacson.
68
Capítulo III
A cultura e o dinheiro
A Disneylândia é o melhor exemplo desse processo
[referindo-se ao fato de aparentemente as escolhas na Disneylândia
serem pessoais], uma vez que dá aos visitantes a ilusão de que eles
podem escolher sozinhos suas vontades a partir de uma variedade
de opções ilimitada.46
Daniel marca um encontro com Doutor Mindish, o homem que delatou seus
pais ao governo norte-americano, rumo ao que ele julga ser / estar a chave para a
compreensão do seu passado, na Disneylândia. A escolha desse lugar, símbolo
máximo da cultura de massas e da expansão do capital por todas as áreas da nossa
vida, é bastante reveladora quanto ao futuro da narrativa e quanto à forma do
romance, que denuncia o momento histórico em que nós estamos inseridos.
A descrição que o narrador Daniel adulto faz da Disneylândia mostra
exatamente como o mundo do capital, da cultura de massas permeia a nossa
experiência empírica, com o respaldo ideológico de entretenimento para vincular o
seu conteúdo político.
Daniel procura Linda Mindish, filha do Doutor Mindish, como uma última
tentativa de buscar explicações para tudo o que aconteceu à sua família. Depois de
muito relutar para contar o paradeiro de seu pai, Linda decide levá-lo ao lugar onde
o ex-dentista Mindish se encontrava: “passando o dia na Disneylândia”. Nada mais
perturbador, no entanto esclarecedor para nós, do que Daniel ter que procurar as
respostas de seu passado em um templo da classe média burguesa norte-americana
e mundial. É o momento crucial no qual Daniel tem a capacidade de usar todo o
senso crítico de intelectual classe média para fazer uma análise bastante ácida do
parque e de todas as suas implicações ideológicas. O que nos é interessante é o
46 FISH & JAMESON. Inside the Mouse. Work and Play at Disney World. Duke University Press, 1995, p. 84 Disneyland epitomizes this process by giving visitors the illusion that they can choose their desires for themselves from an unlimited supply.
69
fato de que toda uma tentativa de reconstrução e entendimento do seu passado
acabe culminando nas respostas que um velho senhor, no final da década de 60,
que brinca como uma criança na Disneylândia possa dar.
I
Raymond Williams em seu ensaio Base and Superestructure in Marxist
Theory, apesar de insistir no fato de que não podemos desprezar a noção de
superestrutura sem prejuízo de perdermos a própria noção de realidade, afirma ser a
base “o mais importante conceito a ser observado se queremos entender as
realidades do processo cultural”47.
Ao olhar do crítico, portanto, para serem devidamente compreendidas, as
produções culturais de uma sociedade devem ser consideradas e interpretadas
como um dos mecanismos de produção e reprodução da sociedade. Nesse sentido,
é fundamental ao crítico da cultura conhecer em profundidade, como demonstra
Williams, o contexto sócio-histórico em que uma determinada obra foi produzida, ou
uma idéia forjada, para conseguir interpretá-la com mais propriedade. Para entender
as forças históricas que dão forma ao romance, faz-se fundamental, portanto,
estudar o momento em que a cultura passa por uma mutação fundamental no
mundo do capitalismo tardio, e passa a viver sob a égide da lógica cultural.48
O crítico norte-americano Fredric Jameson em seu ensaio Periodizing the 60s
quer traçar um panorama significativo sobre as conquistas e as falhas dos anos 60 a
partir de quatro “níveis” de mudanças históricas: a história da filosofia, teoria e
prática revolucionária-política, produção cultural (o que nos interessa mormente
neste capítulo) e ciclos econômicos.
De acordo com Jameson, os quatro níveis acima propostos são impulsos de
uma situação histórica particular. E, para entendê-los, é necessária uma
reorganização dos procedimentos tradicionais de análise, visto que as chamadas 47 WILLIAMS, Raymond. Base and Superstructure in Marxist Theory, p. 53 “the more important concept to look at if we are to understand the realities of cultural process.”(tradução minha) 48 JAMESON, Fredric. Pós-modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 14
70
formas tradicionais de análise históricas já não dão conta de lidar com as
representações históricas contemporâneas. Sendo assim, ele propõe um novo
conceito de História.
Para tanto, o crítico norte-americano começa o seu texto referindo-se aos
movimentos de descolonização da África e ao fato destas pessoas que eram
chamadas de “nativas” “tornarem-se” seres humanos, visto que as condições de
possibilidade para que estes novos sujeitos históricos emergissem estavam
relacionadas à crise do conceito de classe social. Podemos perceber esta
problemática não apenas no campo intelectual, mas no mundo das instituições de
maneira geral, as quais entram em profunda crise. Daí se perguntar: quem são os
novos agentes do processo de mudança histórica?
Os anos 60, podemos verificar, são o período em que as forças de
dominação das metrópoles sobre as colônias do Terceiro Mundo deixam de “existir”
usando esta denominação, mas continuam a existir com força produtora de
dependência por capital externo para a sobrevivência das colônias. Isto pode ser
melhor entendido pela revolução tecnológica pela qual a agricultura passou nestes
países do Terceiro Mundo: a chamada “Revolução Verde”. Com a introdução de
novas técnicas de cultivo, da mecanização do campo, de procedimentos de
fertilização com o objetivo de acabar com a fome mundial, os países ricos foram
capazes de vincular as economias dos países dependentes às suas. Estamos diante
de uma fase do capitalismo em que os tentáculos do capital estão estendendo-se
pelo mundo, escondendo-se sob a face de possibilidade de ajuda aos países e
investimento em modernização. Contudo, como bem ensina Roberto Scharwz, “o
mercado não é para todos.”49. Quando nos voltamos para o objeto de nosso trabalho
fica nítido o que o crítico brasileiro quer dizer.
“Fica se impressionado com o número de adultos presentes na
Disneylândia sem a companhia de crianças. Observa-se também o
número desproporcionalmente pequeno de negros, de mexicanos,
49 SCHARWZ, Roberto. Fim de século. In: Seqüências Brasileiras. Companhia das Letras, 1999, pp. 161
71
talvez porque um dia na Disneylândia seja dispendioso. Há ausência
total de jovens de cabelos compridos, maconheiros, hippies, garotas
de minissaias, ciganos, motociclistas, a ponto de se dar crédito à
idéia de que a Disneylândia afasta as pessoas cuja aparência não
lhe agrada.
(...)
Linda, eu e Dale caminhamos rapidamente por Main Street,
USA. Passamos por uma carroça puxada a cavalo, um velho ônibus
de dois andares. Passamos por uma galeria com flipcards de
Charles Chaplin, gigantescas caixas de música que soam como uma
banda inteira. Passamos por uma farmácia. Uma sorveteria listrada
de vermelho e branco. Gente sorria sentada em cervejarias sem
cerveja. Gente enchia as calçadas e as ruas. Gente passava pelas
lojas com vitrinas recurvas. Gente olhava para mim.”50
É o momento histórico corporificado pela presença da Disneylândia como
uma instituição que tem o poder de afastar “as pessoas cuja aparência não lhe
agrada” ou de afastar as pessoas as quais não têm dinheiro para pagar por um dia
nos seus domínios, demonstra uma nova etapa do desenvolvimento do capital: a
cultura e o dinheiro deram-se as mãos de forma definitiva e as conseqüências desta
união são desastrosas para aqueles interessados, como nosso narrador do
romance, em ter um entendimento histórico visto a partir do “olho do furacão”.
“Não por acaso nesse momento a crítica da cultura fica parcialmente
incapacitada: não é mais possível, em nosso momento de mercantilização 50 Doctorow, E.L. The Book of Daniel, p. 290 Tradução O Livro de Daniel. Tradução de Áurea Weissemberg. Nova Cultural, 1988, p.275
“ One is struck by the number of adults costumers at Disneyland unaccompanied by small children. One notices too the disproportionately small numbers of black people, of Mexicans, possibly because a day at Disneyland is expensive. There is an absence altogether of long-haired youth, heads, hippies, girls in miniskirts, gypsies, motorcyclists, to the point that one gives credence to the view that Disneyland turns away people it doesn’t like the looks of....Linda and I and Dale walked briskly down Main Street USA. We passed a horse-drawn trolley, and old-time double-decker bus. We passed a penny arcade with Charlie Cahplin flipcard Movie-olas. Giant music boxes that make the sound of the whole band. We passed an apotechary. A red and white striped ice cream parlor. People sat smiling in beerless beer gardens. People filled the sidewalks and the street. People strolled past the bay-windowed shops. People stared at me”.
72
abrangente e escancarada, colocar a cultura no que se chamava de esfera semi-
autônoma, um espaço fora do “ser massivo” do capital do existente cuja imagem a
cultura refletia em “formas que variam de legitimação por semelhança lisonjeira a
condenações contestatórias pela sátira ou pelo sofrimento utópico.51
Um dos resultados dessa superinfiltração do capital em todos os enclaves da
vida real e imaginária é que não podemos, pelo menos até agora, mapear a “enorme
rede global e multinacional de comunicação descentrada em que estamos
emaranhados como indivíduos.”52
Contudo, quando a cultura acaba se fundindo ao capital é que as maiores
contradições aparecem, tais como “gente sorria sentada em cervejarias sem cerveja”
ou quando “no Natal, os moradores da Main Street em traje de época cantam
canções natalinas aos pés de um grande pinheiro inodoro, cujas agulhas de
borracha saltam ao contato”.
Estes deslocamentos que percebemos nos levam a uma sensação de
simulacro – termo usado pelo crítico Jean Baudrillard – uma vez que estamos diante
de simulações de aspectos da vida real, mas que, de uma alguma maneira ou de
outra, estão longe de seu conteúdo original.
É interessante verificar que uma vez dentro dos domínios da Disneylândia, as
pessoas passam a ignorar a presença da alteridade. Todos que lá freqüentam têm
os mesmos gostos, ouvem o mesmo tipo de música, comem o mesmo tipo de
comida. Pessoas cuja aparência não possa agradar são barradas.
A questão da luta de classes sai da agenda, é apagada, e conseqüentemente
há a homogeneização das classes sociais para apenas uma: a branca, classe média
alta que pode consumir no parque.
51 JAMESON, Fredric. Pós-modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 74 52 CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. Trabalho apresentado para concurso de Livre-docência na USP, 1999, p.17 e 18.
73
Obviamente tal processo se dava na sociedade da mesma maneira: a
sociedade americana branca, de classe média “aceita” o fato do fim da luta de
classes em troca de segurança econômica, a qual se mostra/expõe como segura,
devido ao boom de crescimento pós-guerra do Vietnã e devido às possíveis
melhorias para a comunidade local. Contudo, a sua verdadeira face é tão falsa
quanto as agulhas de borracha da árvore de Natal da Disneylândia, justamente
porque, dentre muitos fatores, está ancorada no processo inflacionário característico
do pós-guerra.
David Harvey em seu livro “Condição Pós-Moderna” afirma que o
“fordismo do pós-guerra tem de ser visto menos como um
mero sistema de produção em massa do que como um modo de
vida total. Produção em massa significava padronização do produto
e consumo de massa, o que implicava toda uma nova estética e
mercadificação da cultura.53”
Vejamos no seguinte excerto do romance um dos aspectos que mostra a
fusão de cultura e dinheiro:
“É claro que poucas das crianças que viajam na Xícara de Chá
da Lebre Doida leram ou lerão Alice, e menos ainda os livros de
Mark Twain. A maioria conhecerá apenas a história através do filme
da Disney, se é que conhecerão. E isto sugere uma separação de
dois graus ontológicos entre o visitante da Disneylândia e os
artefatos culturais que se espera que aprecie durante a visita. O
passeio na Xícara de Chá da Lebre Doida é emblemático do
desenho animado da Disney, que é uma drástica revisão, na forma e
no conteúdo, de um sutil trabalho onírico, criado pela língua inglesa.
E mesmo para um adulto que se recorde vagamente de ter lido a
Alice original, e cuja complicada reação a essa fortemente simbólica
obra que foi há muito incorporada ao mecanismo psíquico de sua
vida, o que é oferecido não sugere a ressonância do original, mas
53 HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. Título original: The Conditions of Postmodernity An Enquiry into the Origins of Cultural Change., 2000, p. 131
74
apenas uma condensação sentimental de algo que em si mesmo já
é uma mentira.
Encontramos esse processo radical de redução também com
respeito à natureza da realidade histórica. A vida e o estilo de vida
da América escravagista no Mississipi do século XIX são
condensados num passeio de barca tecnologicamente fiel, de cinco
ou dez minutos, num rio de em escala HO. O intermediário entre nós
e essa experiência histórica, o escritor Mark Twain, autor de A vida
no Mississipi, não é mais do que o nome do barco. A pirataria em
alto mar, cento e cinqüenta anos de ataques sucessivos à
exploração mercantil européia e ao comércio, transformam-se num
comovente diorama de todas as cenas e situações dos filmes de
piratas feitos em Hollywood comprar, digamos, um chapéu de pirata
numa das muitas lojinhas do recinto, o processo pavloviano de
transferência simbólica ao derradeiro consumidor pode-se dizer que
está completado. O freqüentador ideal da Disneylândia será aquele
que responde a um processo de manipulação simbólica, que lhe
oferece a culminação e a quintessência do seu sentimento no
instante de uma aquisição.”54
54 DOCTOROW, E.L. The Book of Daniel New York. First Edition: 1971. First plume Printing, March, 1996, p287,288 Tradução: O Livro de Daniel. “It is clear that few of the children who ride in the Mad Hatter’s Teacup have read or even will read Alice, let alone the works of Mark Twain. Most of them will only know Alice’s story through the Disney film, if at all. And that suggests a separation of two ontological degrees between the Disneyland customer and the cultural artifacts he is presumed upon to treasure in his visit. The Mad Hatter’s Teacup Ride is emblematic of the Disney animated film, which is itself a drastic revision in form and content of a subtle dream work created out of the English language. And even to an adult who dimly remembers reading the original Alice ,and whose complicated response to this powerfully symbolic work has long since been incorporated into the psychic constructs of his life, what is being offered does not suggest the resonance of the original work, but is only a sentimental compression of something that is itself already a lie. We find this radical process of reduction occurring too with regard to the nature of historical reality. The life and life-style of slave-trading America on the Mississippi River in the 19th century is compressed into a technologically faithful steamboat ride of five or tem minutes on a HO-scale river. The intermediary between us and this actual historical experience, the writer Mark Twain, author of Life on the Mississippi, is now no more than the name of the boat. Piracy on the high seas, a hundred and fifty years of harassment of European mercantile exploration and trade, becomes a moving diorama of all the scenes and situations of the pirate movies made by Hollywood in the thirties and forties. When the customer is invited then to buy, say, a pirate hat on one of the many junk shops on the premises, the Pavlovian process of symbolic transference to the final consumer moment may be said to be complete .The ideal Disneyland patron may be said to be one
75
A sociedade escravagista e os ataques corsários em alto mar são reduzidos a
invenções tecnológicas, são reduzidos à condição de mercadoria. A História é
reduzida de uma tal maneira que a ideologia que tem a função de cobrir as
contradições da vida real, de apaziguar o que não é inserido no capital, se torna
cada vez mais explícita e berrante.
Dialeticamente, notamos que, ao mesmo tempo em que, a cultura de massas
tem a real função de apagar a História americana, ou de simplesmente fetichizá-la,
transformá-la em mercadoria e de eliminar a memória de uma nação porque só
entendemos e estabelecemos as relações em retrocesso; sabemos que é aí que as
brumas que nos cegam começam a se dissipar e o inimigo mostra as garras mais
explicitamente.
A cultura de massas, então, corporificada neste romance com o nome de
Disneylândia faz o serviço sujo da Direita norte-americana, porque dá a impressão
de que tudo está e é perfeito, uma vez que “há ausência total de jovens de cabelos
compridos, maconheiros, hippies, garotas de minissaias, ciganos, motociclistas”, ou
seja, afasta para longe o conflito de classes; só existe uma classe: a classe média-
alta, branca e que tenha dinheiro para passar um dia na Disney, porque “passar um
dia na Disneylândia é dispendioso”.
E para que a ideologia, sinônimo de cultura, cumpra a sua missão, ela ao
mesmo tempo em que “oferece uma técnica de cultura abreviada para as massas,
uma emoção descuidada, como um choque elétrico, insistindo ao mesmo tempo na
rica reação psíquica do sujeito à história, à língua e à literatura do seu país”, tem o
intuito mais sórdido e manipulador de que o visitante, o freqüentador adquira uma
mercadoria. E é cada vez mais óbvio o porquê de grandes corporações terem os
seus shows e exposições na Disneylândia. Além do mais, como bem nos ensina
Jameson em seu artigo “Fim da arte” ou “Fim da história?” do livro A cultura do
dinheiro,
who responds to a process of symbolic manipulation that offers him his culminating and quintessential sentiment at the moment of a purchase.”54
76
“(...)
a economia acabou por coincidir com a cultura, fazendo com
que tudo, inclusive a produção de mercadorias e a alta especulação
financeira, se tornasse cultural, enquanto que a cultura tornou-se
profundamente econômica, igualmente orientada para a produção
de mercadorias55.”
No romance temos:
“As seguintes corporações oferecem shows e exposições na
Disneylândia: Monsanto Chemcial Co., Bell Telephone, General
Electric e Coca-Cola. Outras representações incorporadas visíveis
incluem McDonnel Aircraft, Goodyear, Carnation Milk, Sunkist,
Eastman Kodak, Upjohn Pharmaceuticals, Insurance Company of
North America, United Airlines e Bank of America.”56
É interessante verificar como a cultura representada neste romance sob o
nome de Disneylândia tem o papel de eliminar a luta de classes, de despolitizar tudo.
Isto se dá de maneira bastante visível aos olhos de todos, só falta realmente querer
ver.
“As opções que se tem na Disneylândia, de restaurantes a
brinquedos e hotéis, dão a ilusão de que são todas iguais. Todo
visitante sabe, no entanto, que o segredo está no fato de que as
opções são todas iguais. Como no caso dos sabores de uma cadeia
de sorveterias, dos relógios Swatch ou das telas de Warhol, o
aspecto do capitalismo que está sendo enfatizado é a ligação entre
o que é descartável e o que é consumível, produto e desejo. A
55 JAMESON, Fredric. A Cultura do Dinheiro. Ensaios sobre a globalização. Editora Vozes, 2001, p. 73 56DOCTOROW, E.L. The Book of Daniel New York. First Edition: 1971. First plume Printing, March, 1996, p289 Tradução: O Livro de Daniel The following corporations offer shows and exhibits at Disneyland: Monsanto Chemical Co.; Bell Telephone, General Electric, and Coca-Cola. Other visible corporate representation includes McDonnel Aircraft, Goodyear, Carnation Milk, Sunkist, Eastman Kodak, Upjohn Pharmaceuticals, Insurance Company of North America, United Air Lines, and Bank of America.”
77
questão é fazer tanto um como o outro ao final, pois todos são
igualmente bons. Assim como o capitalismo precisa continuamente
expandir as suas fronteiras e ocupar novos espaços, novas
histórias, a Disneylândia precisa continuar a fazer sempre mais, na
tentativa infindável de proporcionar mais do mesmo, ou seja, aquilo
que os parques temáticos têm como objetivo: uma oportunidade
planejada de se evitar pensar sobre o presente.”57
Aqueles que já tiveram a experiência de passar um dia nos domínios de
qualquer parque temático do Brasil ou do exterior serão capaz de compartilhar o que
será dito a seguir e aqueles que nunca foram serão capazes de entender como a
cultura de massas e o entretenimento servem como mecanismo de substituição: da
consciência da luta de classes, de consciência política pela consciência (ou falta
dela) cultural.
O parque temático visa, acima de tudo, criar a ilusão de que a partir do
momento que o consumidor de cultura, isto é, de mercadoria, entra em seus
domínios, o mundo real é deixado para trás e o mundo da fantasia, da dissimulação,
começa a entrar em jogo. As pessoas empilham-se em filas gigantes para
“brincarem” em instrumentos mecânicos de alta tecnologia, experiências que em si
só duram segundos, mas que são precedidas por rituais compartilhados por todos.
Durante a fila, as pessoas têm a impressão de participarem de uma grande festa,
porque a música contagia a todos, o DJ comanda a multidão para fazer movimentos
que lembrem a de uma torcida uniformizada de futebol, os carrinhos de sorvete e de
outras comidas estão espalhados por cada canto da fila e a tentação do consumo se
acentua cada vez que se dobra uma esquina da já demorada fila. Todos são
manipulados ao mesmo tempo em todos os lugares do parque, seja para comprar
57 FISH & JAMESON. Inside the Mouse. Work and Play at Disney World. Duke University Press, 1995, p. 96 e 97. “The choices that one has at Disney, from restaurants to rides to hotels, gives one the illusion that they are all different. Every guest knows, however, that the secret is in fact that they are all the same. As with flavors of chain store ice cream or Swatch watches or silkscreens by Warhol, the aspect of capitalism that is being underlined is the link between disposability and consumption, product and desire. The point is to eventually do all of them anyway because they are equally good. Just as capitalism must continually expand its borders and take over new spaces, new stories, Disney must continue to add to itself forever in an endless attempt to provide more of the same, to provide what theme parks are for: a planned opportunity to avoid thinking about the present”.
78
algo seja para repetir gestos, movimentos irracionais, comandados por vozes que
ecoam nos mais diferentes “brinquedos” do parque.
As pessoas que entram neste mundo ilusório “esquecem” pelo dia inteiro de
seus problemas pessoais, dos problemas sociais e econômicos do país e tudo que
possa por algum motivo atrapalhar a fantasia daquela experiência dita individual,
feita sob encomenda para necessidades individuais. Incrível como o fato da
experiência cultural vendida como individual é bem sucedida no universo dos
parques temáticos. A própria estrutura do lugar é reveladora de como o sistema
funciona, dividido em vários “reinos” de acordo com a sua necessidade e seu gosto
pessoal: velho-oeste, futuro, personagens de desenhos animados, simuladores de
passeios ao passado ou futuro, “brinquedos” que se deslocam a mais de 100 km/h,
livrarias, cafés filosóficos. Tudo a seu gosto. Tudo muito “individualizado”, para o
mais exigente consumidor. Maravilhoso, não é?
O romance The Book of Daniel ter o seu final figurado nos domínios da
Disneylândia já faz valer a leitura deste. Contudo, é fundamental entendermos como
a cultura serviu como agente despolitizador da esquerda norte-americana.
O romance, como já dito anteriormente, figura a situação histórica em sua
forma, daí, verificarmos o fracasso do narrador Daniel em entender as razões pelas
quais os seus pais foram mortos e de se posicionar criticamente em relação ao seu
passado e presente, além de associar este fracasso ao sucesso do projeto de
mundo da Direita, (que está figurado como a impossibilidade de agência de Paul,
Rochelle e Susan, que acabam morrendo) e que está figurado no romance com o
nome de Disneylândia ou como a tentativa de fazer parte da cultura classe média
branca que freqüenta os domínios do parque.
II
Se usarmos uma divisão em três grandes movimentos da esquerda norte-
americana: o antigo Partido Socialista de 1900 a 1919, o Partido Comunista (que
surgiu depois da Terceira Internacional em 1919 e finalmente destruiu-se em 1956) e
a Nova Esquerda dos anos 60, podemos perceber como a cultura de esquerda e
79
todas as suas ramificações políticas se tornaram no cultura da Disneylândia e todas
as suas ramificações políticas (Direita).
A avó do narrador Daniel foi para os Estados Unidos no começo do século
XX, fugindo da Rússia czarista e acreditava que pudesse ter uma vida melhor. A sua
cultura vinha das reuniões do Partido em que até ela “uma mulher ignorante
compreende o orgulho do operário comum lentamente confessando a si mesmo que
seus sonhos se tornarão realidade para seus filhos. Ainda assim, buscando à noite e
nos dias de lazer progredir com a mente, ter a satisfação do exercício mental, a
compreensão do universo.”58
Como percebemos, a cultura que os imigrantes levaram para os Estados
Unidos era de caráter político explícito (não quero dizer que a cultura de Hollywood,
por exemplo, não tenha o seu caráter político bem explícito também), isto é, todo o
aparato cultural a serviço da conscientização das massas para a necessidade de
uma revolução socialista dada, principalmente, pela precariedade da vida desses
imigrantes operários recém chegados da Europa. O romance figura o aspecto
precário da vida dos imigrantes em apenas um momento, que vale a pena registrar e
depois corta bruscamente para a vida também precária do casal Isaacson como um
espelho de que nada mudou.
“Eu lhe digo, Sr Editor, que para crianças que viram as
ferraduras dos cossacos pagãos e o sorriso bêbado do burocrata
czarista, coser dezesseis horas por dia em troca de centavos, em
local mal iluminado, morar numa só peça, com os filhos tomando
banho na pia da cozinha e ratos mortos flutuando no vaso sanitário
comum, no final do corredor escuro e malcheiroso, tudo é possível.
E a pessoa acredita que é capaz de coser uma vida em comum,
centavo a centavo, e com os pequenos músculos dos dedos impelir
a agulha do metal através da fazenda um milhão de vezes por dia,
tudo é possível. E tudo se suporta com esperança. Meu filho mais
velho corre para a rua, é esmagado por uma carroça. Minhas irmãs
58 Idem,ibidem, p. 69
80
mais moças, a quem trouxe para este país com meus centavos, são
destruídas no incêndio da Triangle, cento e cinqüenta pessoas
calcinadas naquela oficina. E meu segundo filho, Jacob, que queria
ser chamado de Jack e adorava nadar no rio East, não sobreviveu à
terrível epidemia de gripe em 1918.”59
Um retrato mais trágico do que aconteceu à avó de Daniel não poderia existir.
Toda a imagem é circunscrita em uma atmosfera de esfacelamento, de destruição e
morte. Não seria absurdo extrapolarmos e dizer que o nascimento da esquerda
norte-americana é natimorto. A avó de Daniel é a figuração desta primeira fase do
partido socialista nos Estados Unidos e o seu destino – a loucura – é bastante
revelador porque nos mostra que toda cultura imigrante socialista e o seu ideário
foram condenados à loucura, ao ostracismo, ao já morto ambiente da periferia da
casa dos Isaacson.
Não é difícil de se imaginar, então, como todo um “sonho” de um projeto
político se desintegra e desfaz diante de todos e a Direita, que sempre esteve à
espreita, tenha aprendido enormemente com os fracassos sucessivos da esquerda
norte-americana e tenha tomado definitivamente as rédeas do país mais poderoso
do mundo e, finalmente o seu projeto como um todo tenha se tornado o único projeto
possível de se pensar, assim figurado pelo narrador do nosso romance.
Com a Direita com as rédeas das ações governamentais norte-americanas,
percebe-se que dois fatores favoreceram esta tomada de poder. Um deles é o fato
que as ações da direita souberam mobilizar uma faixa da sociedade americana que
se sentia vitimizada com a política do New Deal, uma camada da sociedade que
59 Ibidem, p.65 “And I tell you, Mr Editor, for children who have seen the bottom of the pagan Cossack horseshoe and the drunken grin of the Czarist bureaucrat, to sew sixteen hours a day for pennies, in bad light, and to live in a one-room, with the children bathing in the laundry sink in the kitchen and the dead rat floating in the common toilet at the end of the dark stinking hall- it can be done. And you think you can stitch a life together, penny by penny, with the small muscles in your fingers drive the metal needle through the cloth a million nimble moments each day- it can be done. And anything can be endured with hope: My eldest runs into the street and is crushed under a wagon. My two younger sisters who I have brought to this country with my pennies are destroyed in the Triangle Fire, a hundred and fifty of them burned to the death in that sweatshop. And my second son, Jacob, who wanted to be called Jack, and who loved to swim in the East River, he does not survive the terrible flu epidemic in 1918.”
81
estava realmente interessada na solução de problemas sociais, como pudemos
aprender no livro de Mike Davis:
“Foram as questões sociais que nos levaram tão longe, e são
elas que nos levarão ao futuro. Nós nunca vencemos de fato até o
momento em que começamos a enfatizar questões relacionadas ao
transporte, aborto, orações nas escolas e controle de armas.
Falávamos sobre a santidade da livre empresa, sobre os ataques
comunistas até não poder mais. Mas só começamos a obter a
maioria nas eleições quando nos debruçamos sobre questões
viscerais.60
Além de apostar no modelo fordista de produção em massa, isto é,
estandardização de procedimentos, uso de mão-de-obra desqualificada,
homogeneização da produção. Outro fator importante foi a “stagflation”, que nada
mais é do que inflação sem crescimento econômico. Como isto explica o “sucesso”
da política da direita?
Enquanto nos outros períodos de depressão em que o país passou, houve de
fato um nivelamento nas classes sociais, visto que a crise econômica atinge a todos,
no período da stagflation americana, o que se viu foi uma enorme e exacerbada
diferenciação intra-classe. Assim, a stagflation produziu níveis exagerados de
desigualdade social na própria classe social. As conseqüências não são difíceis de
se imaginar para o domínio da Direita:
“A complexidade da “reestratificação” da classe operária
agravou a tendência, dentro da política americana, de as questões
de classe se perderem em meio a divisões setoriais e de camadas.
Isso, por sua vez, ajudou a promover uma política que não é
somente egocêntrica e míope, mas que é mais centrada em um
conjunto limitado de questões ‘sociais’, especialmente aquelas
relacionadas à casa e à família. Quando uma relativa prosperidade
ou empobrecimento podem estar ligados ao período de aquisição da
60 Quoted in the Guardian (New York), April 1st, 1981, p.5 (tradução minha)
82
casa própria ou ao fato de trabalhar (vamos supor) no espaço no
lugar da indústria automobilística, ou ter nascido em 1940 em vez
de em 1950, o sentido da experiência em comum e de necessidades
em comum desaparece.61
Como se pode notar, a noção de classe social, conceito essencial para a
esquerda, é destruída e os pobres saem da agenda dos Estados Unidos.
Enquanto isto, os Estados Unidos passam a fazer cada vez mais intervenções
na economia no sentido de controlar as altas e baixas do seu capital especulativo,
visto que a era da Direita é a era em que a toda a existência é controlada sob a
égide do capital, do dinheiro. Cria-se um outro aspecto diferente daquele da
chamada cultura de esquerda à que nos referíamos anteriormente cuja função era
fazer uma crítica da sociedade. Agora estamos diante da cultura da mercadoria,
onde a dialética cultura/ sociedade é apagada, desfeita, e a capacidade de se fazer
diagnósticos da sociedade também sofre o mesmo destino.
E o interessante notar é que a cultura quando se associa ao capital mostra a
sua verdadeira face, mostra as garras. A crise da esquerda norte-americana do
modo como foi figurado no romance tem o seu desfecho no lugar mais apropriado: a
Disneylândia, o lugar símbolo da cultura norte-americana em que tudo e todos são
mercadorias. É também o lugar em que a História é colonizada pelo capital e este
tem como interesse exatamente apagar as relações históricas para que as
mercadorias fluam melhor, como bem escreveu Susan Willis em seu livro Cotidiano
para Começo de Conversa.
A cultura, pois, desta vez a cultura do dinheiro é figurada no romance como
resultado de todas as lutas do movimento da esquerda norte-americana. A
Disneylândia e tudo o que vem associado a ela são na verdade figurações de um
projeto de mundo que homogeneíza, infantiliza e mercantiliza as pessoas. Um
projeto de mundo que tem o branco, classe média, com o poder aquisitivo de
61 MIKE Davis. Elliot Currie, Robert Dunn and David Fogarty, “The New Immiseration”, Socialist Review 54, November-December 1980, p.26 In: Prisoners of the American Dream. Politics and Economy in the History of the U.S. Working Class.Verso, London, 1986, p. 178 (tradução minha)
83
consumir, como principal modelo, só pode ser o “assassino” do que foi considerado
um projeto de esquerda. Não obstante, ter no romance um narrador que tenha estas
aspirações não poderia ser mais desastroso para uma tentativa de traçar um
panorama ou um retrato da esquerda norte-americana.
Daniel quando tenta entender as razões pelas quais os seus pais foram
mortos conversa com Selig Mindish, que já senil brinca nos carrinhos da Disney.
Mais interessante ainda é o fato de que o encontro que resolveria “provisoriamente”
algumas questões seja em Tomorrowland, um dos reinos encantados da
Disneylândia. “É o que ele mais gosta”, disse Linda a Daniel, referindo-se aos
diferentes “reinos” que fazem parte do parque temático.
“Tomorrowland (Terra do Amanhã) oferece uma imagem do
futuro semelhante à versão de ontem do Amanhã. Na verdade, a
Tomorrowland de Anahein foi concluída quando o parque foi
inaugurado em 1955, e desde então vem sendo constantemente
atualizada; na Tomorrowland de Orlando, a simulação do vôo
espacial para a lua transformou-se na “Missão para Marte”. A Disney
já precisou fazer várias alterações em suas seções futuristas e está
atualmente desenvolvendo as mais profundas atualizações de sua
história: a seção da Tomorrowland na Walt Disney World logo se
tornará “um espaço intergaláctico para a chegada de alienígenas”, e
o Future World, uma das duas maiores seções do Epcot, também
passará por mudanças. Como uma crítica indireta ao presente, o
futuro alcança facilmente a Disney: é um lugar bem mais difícil para
se esconder sua agenda do que o passado. Se o futuro da Disney
precisa ser constantemente revisto, então seria um problema se
pensasse no presente?”62
A cena é cortada bruscamente, e assim como em uma batalha para revisitar e
revisar o passado sem deixar de pensar no presente, o narrador mostra a cena da
execução dos Isaacson, deixando-nos claramente com a sensação de que a morte
62
JAMESON & FISH. Inside the Mouse. Work and Play at Disney World. Duke University Press, 1995, p.83 (tradução minha)
84
dos Isaacsons e a morte de Susan no capítulo seguinte são “certamente” alegorias
do movimento de esquerda norte-americano. Não existia, de acordo com o narrador,
a possibilidade de se figurar naquele momento histórico (1971) outra coisa que não
o fim da Esquerda e sua morte bem trágica, com execução e suicídio. O único
sobrevivente, Daniel, aspirante à classe média branca e acima de tudo aspirante à
intelectual, agora terá que dar conta de um quadro difícil de ser remontado para sua
tese de doutorado: o da esquerda norte-americana.
85
Conclusão
Quando o crítico norte-americano Fredric Jameson em seu livro
Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism afirma que a expressão na
narrativa realista precisa do ego burguês, da figura da mônada, do sujeito centrado
para a sua existência, ele conseqüentemente afirma que a expressão individual
também se torna cada vez mais inviável e a prática do pastiche se torna cada vez
mais presente.
A dificuldade contemporânea de criar novas categorias narrativas (o que
demonstra uma nova fase de desenvolvimento do capital como pôde ser visto no
decorrer da dissertação) que dêem conta de uma nova realidade histórico-social
acarreta no consumo do passado de uma maneira muitas vezes idealizada e
fragmentária.
“Essa abordagem do presente através da linguagem artística
do simulacro, ou do pastiche do passado estereotípico, empresta à
realidade presente, e à abertura da história presente, o encanto e
distância de uma miragem reluzente. Entretanto essa mesma
modalidade estética hipnótica emerge como a elaboração de um
sintoma do esmaecimento de nossa historicidade, da possibilidade
vivenciada de experimentar a história ativamente. Não se pode,
portanto, dizer que ela é capaz de produzir esse estranho
ocultamento do presente por meio de seu poder formal próprio, mas
sim que meramente demonstra, através dessas contradições
internas, a enormidade de uma situação em que parecemos cada
vez mais incapazes de produzir representações de nossa própria
experiência corrente”.63
Se a dificuldade de se figurar a História como objeto se torna cada vez mais
problemática à medida que o senso de historicidade acaba voltando os olhos para o
passado sem referência à História, estudar esta contradição do ponto de vista da
totalidade no romance norte-americano The Book of Daniel (1971) de E.L. Doctorow
63
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo, ou A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. p. 48
86
se torna bastante desafiador, daí o nosso interesse neste estudo. Ao se afirmar que
Doctorow é um dos poucos talentosos escritores de esquerda dos Estados Unidos
que se serve da História para montar a sua obra literária, temos a possibilidade de
tentar entender alguns períodos formadores da esquerda norte-americana: o
comunismo dos anos 30 e 40 e o radicalismo dos anos 60.
Pensar, por conseguinte, como o passado histórico é condição para o nosso
presente é um dos temas que o narrador Daniel tem que dar conta, e, ao menos
tematizar em sua narrativa. O narrador olha o seu passado histórico e tem que
selecionar os eventos que apontam para uma visão do presente.
Tenho certeza de que este estudo nem de longe encerra o debate sobre a
crise da esquerda norte-americana, e nem tem pretensões de fazê-lo. No entanto, ao
se tentar construir uma argumentação que procura “desmascarar” o narrador que
nada mais é do que uma corporificação da vida acadêmica nos Estados Unidos e
também no Brasil, obviamente temos acesso a um movimento que mimetiza
indubitavelmente o processo de desenvolvimento da esquerda norte-americana.
Resta claro que quando lemos o romance, temos a impressão de que a esquerda
nos Estados Unidos não tem mais nenhum lugar, o que é bastante revelador se
prestarmos a devida atenção em quem está narrando: um intelectual que tem
aspirações à classe média que sonha em viver nos condomínios norte-americanos
(suburbs). À primeira vista, tudo o que percebemos na narrativa é angústia, dor,
perda e morte, unidas em um tom bastante “carregado” para nos aliarmos ao
narrador inquestionavelmente.
O jogo de engano que o narrador “arma” ao longo da narrativa tem a função
de mostrar que não adianta tentarmos fazer absolutamente nada para mudar a nova
ordem mundial, pois tudo dá no mesmo: a morte. Sendo assim, como não há mais
caminho alternativo a seguir, visto que narra a partir de um ponto de vista que não
prevê a possibilidade de mudança, narra a partir de uma era em que o capitalismo é
o Deus indestrutível, ele (o narrador) tem a única alternativa, mesmo que isto seja
marcado por angústia e sofrimento, de viver a ambigüidade da intelectualidade
norte-americana e mundial, a saber, apontar os problemas da esfera político-social,
87
combater a ideologia dominante e ir para casa em um bairro classe média e se
enclausurar em seus domínios. O que é interessante notar é que o narrador é uma
alegoria de um movimento histórico, de uma nova fase de desenvolvimento do
capitalismo, que infantiliza, emburrece, ensurdece, cega e faz acreditar que nada
mais pode ser feito ou falado.
Na última frase do romance temos o seguinte:
“Segue o teu caminho, Daniel, pois as palavras estão
encerradas e seladas até o final dos tempos.”64
O que o narrador de nosso romance quer realmente é seguir o seu caminho,
pois de acordo com ele, uma vez que ele já nos “mostrou” que a esquerda não
resulta em nada, o único caminho é a adesão ao sistema. Para isto, ele conta com a
nossa simpatia e apoio para a sua decisão. É intrigante observar que o panorama da
esquerda norte-americana é montado de uma maneira ideológica para nos fazer
entender como o passado histórico é condição para o presente do narrador, isto é,
como ele “realmente” tem que ser o oposto de seus pais e de sua irmã Susan.
Quando Daniel tenta montar o panorama da esquerda nos Estados Unidos,
ele inclui quatro momentos históricos que são apresentados de forma anacrônica e
fragmentada: o comunismo dos anos 30 e 40, fruto do imigrante europeu que
organizou os sindicatos com o intuito de implementar o comunismo nos Estados
Unidos; os anos 50, marcados pela ascensão do Macartismo e pela ascensão da
cultura de massas que constrói o conceito da gloriosa década de 50; os movimentos
civis na década de 60 e toda a sua política de identidades e, finalmente, o
encaminhamento para a década de 70, marcada pela colonização maciça da cultura
pelo capital (corporificada pela inserção da Disneylândia na narrativa).
O que se percebe é que a estrutura que dá sustentação formal ao romance
mimetiza o ritmo da História da Esquerda norte-americana com ganhos e perdas.
Pode ser considerado uma conquista o fato de se tematizar a esquerda nos Estados
64 DOCTOROW, E.L. The Book of Daniel, p. 287 “Go thy way Daniel: for the words are closed up and sealed till the time of the end.”
88
Unidos em uma década (1970) em que a Nova Direita monopoliza as atenções e as
decisões políticas e tenta com todas as forças construir um projeto de mundo em
que a alteridade não é bem vista e/ ou desejada (ver capítulo três). Não obstante,
temos que saber lidar com o fato de que o projeto de esquerda retratado no romance
já é bastante comprometido, visto que o narrador não é de modo algum confiável e
acima de tudo faz o jogo sujo da ideologia ao afirmar que a esquerda nos Estados
Unidos está morta.
Ao contrário do que o narrador Daniel, que nos faz crer que a sua tese já não
tem muita função porque se perdeu a capacidade de pensar historicamente, de
estabelecer as relações entre a parte e o todo e que todo o seu trabalho acadêmico
pode ser sobre qualquer coisa, desde anatomia feminina até poluição térmica,
espero que este trabalho tenha ao menos tentado debater algumas questões
fundamentais para entendermos não só a situação política nos Estados Unidos nos
períodos que são englobados no romance, mas também muito do que se perdeu
nesta nova fase de desenvolvimento do capital e seu poderio ideológico.
É importante refletir sobre o que diz Artie, o amigo revolucionário de Susan,
sobre a dinâmica do pensamento radical e posicionar-se quanto a nossa função
dentro do universo daqueles que fazem as conexões ou optam por não fazê-las.
“A cada ciclo de pensamento radical ocorre um estágio de
verdadeira excitação criativa, durante a qual são feitas as conexões.
O radical descobre conexões entre os dados disponíveis e a
responsabilidade fundamental. E finalmente faz uma conexão geral.
A essa altura começa a perder seus seguidores. Não que tenha feito
conexões erradas e sim porque fez uma conexão geral. Nada resta
fora destas conexões. Neste estágio a sociedade aborrece-se com o
radical.”65
65 DOCTOROW, E.L. The Book of Daniel, p. 140 “With each cycle of radical thought there is a stage of genuine creative excitement during which the connections are made. The radical discovers connections between available data and the root responsibility. Finally he connects everything. At his point he begins to lose his following. It is not that he has incorrectly connected everything; it is that he has connected everything. Nothing is left outside the connections. At this point society becomes bored with the radical.”
89
Sendo assim, esperamos voltar a fazer as conexões que foram perdidas ao
longo do desenvolvimento do capitalismo e voltar a trabalhar com a Literatura sob a
égide do debate acerca da forma como conteúdo sócio-histórico sedimentado, como
muito bem nos ensina Adorno.
90
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