Post on 10-Apr-2020
A dança das vozes: um estudo sobre o narrador do conto “Uma rosa para
Emily”, de William Faulkner
Adriana de Fátima Barbosa ARAÚJO1
Thaís Cristina da SILVA2
Resumo
Este trabalho faz parte de uma análise sobre o narrador no conto “Uma rosa para
Emily”, de William Faulkner. Trata-se de um estudo que investiga a questão do
narrador plural e seus efeitos estéticos e temáticos na construção do conto. Realizamos,
primeiramente, um breve panorama sobre o conto na historiografia de Faulkner e
discutimos sobre as origens dessa narração na primeira pessoa do plural na teoria
literária. Na sequência, realizamos a análise do conto focalizando o narrador, a
comunidade de Jefferson, e as relações estabelecidas entre ele e os demais personagens
da narrativa, compondo assim um quadro histórico-social. Aliamos o trabalho à
perspectiva do realismo conforme proposto por Lukács, enxergando nessa voz coletiva
que se expressa toda a contradição dos processos sociais no cenário pós Guerra Civil
Americana, que perpassa tematicamente o conto.
Palavras-chave: Narrador. Realismo. Processos Sociais. Voz Coletiva. William
Faulkner.
Abstract
This article is an analysis of the narrator in the story “A rose for Emily”, by William
Faulkner. This is a study that investigates the issue of a plural narrator and their
aesthetic and thematic effects on story building. One begins with a brief overview about
the tale in the historiography of Faulkner and then one discusses the origins of this
narrator in the first person plural in literary theory. Afterwards, one analyzes the story
focusing on the narrator, Jefferson’s community, concerning the relations established
between him and the other characters of the narrative, thus composing a historical and
1 Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora
Adjunta do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB). CEP:
70910-900. Brasília, DF. E-mail: adrianafba@gmail.com 2 Mestranda no curso Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília (UnB) CEP: 70910-900.
Brasília, DF. E-mail: thaisdasilva.unb@gmail.com
social context. One combinse the work with Lukács’ perspective of realism, seeing the
collective voice that expresses all the contradiction of social processes in the post Civil
War scenario, which thematically permeates the tale.
Keywords: Narrator. Realism. Social Process. Collective Voice. William Faulkner.
William Faulkner (1897-1962) tem notório reconhecimento por seus trabalhos
como romancista, sendo algumas de suas obras as mais importantes do cenário literário
do século XX. Contudo, seu extenso trabalho como escritor permitiu, além da produção
de romances e novelas, uma significativa coletânea de obras como contista.
Apesar de Faulkner afirmar nunca ter gostado de qualquer conto que escreveu, a
crítica é unânime ao reconhecer seu talento na criação de short fictions, não apenas
pelos méritos do conto em si, como também pela maneira com a qual ele constrói suas
histórias. Explicamos melhor: por não se identificar como um bom contista, Faulkner
utiliza as técnicas de novelista que o tornaram conhecido na criação de seus contos.
Narrativas não lineares, alterações na ordem cronológica, discurso de várias vozes,
rupturas na narração, relatos breves são algumas das formas de composição amplamente
utilizadas em suas novelas e que também se encontram nessas narrativas curtas.
Ruppersburg (2010) atesta que boa parte de seus contos serviram como etapas para a
elaboração de seus romances, enxergando nestes uma ponte para compreensão de sua
obra como um todo e um passo para a elucidação de suas criações mais intricadas.
A obra individual […], destinada ao mesmo mundo natural e social 3que Faulkner retratou em suas novelas, explora os mesmos temas e
aplica as mesmas estratégias e técnicas literárias. Em geral, os contos
são mais estreitos e modestamente focados do que os romances,
menos ambiciosos no estilo e no tema e, com poucas exceções
notáveis, menos inovadores. Ao mesmo tempo, os contos apresentam
uma visão de mundo de Faulkner que confirma, aprofunda e amplia o
retrato oferecido em suas novelas. (RUPPERSBURG, 2010, p. 246)
Recorremos a essa breve explicação sobre o conto na historiografia de Faulkner
para introduzir o objeto de análise: “Uma rosa para Emily”. Publicado em 1931 pela
revista norte-americana Forum, é um dos seus contos mais conhecidos e celebrados,
3 As citações em português das obras publicadas em inglês, com exceção das do próprio conto, foram
traduzidas pela autora do trabalho.
alvo de inúmeros estudos por seus aspectos de composição da narrativa e pelos
símbolos e significados que atravessam a temática da obra.
Utilizando o recurso in media res, o conto se inicia no funeral de Miss Emily
Grierson, o qual toda a cidade comparece à casa dessa mulher para prestar as últimas
homenagens. A narrativa, assim, retrocede para compor pequenos relatos sobre a vida
de Emily, alvo de curiosidade e interesse do povoado: a morte do pai e sua recusa em
liberar o corpo para o enterro, a cobrança das autoridades sobre o pagamento de
impostos, o episódio do cheiro desagradável que rondava sua casa, seu relacionamento
fugaz com o nortista Homer Barron, a compra de arsênico e, por fim, as aulas de
porcelana dadas por Emily, antes que as portas de sua casa fossem fechadas por
definitivo até sua morte, quando a narrativa retorna para seu desfecho após o funeral da
protagonista.
Os acontecimentos expostos, divididos estruturalmente em cinco partes, são
contados em forma de breves relatos. Cinco quadros gravados pelo o que foi visto e
emoldurado por impressões, mexericos e o julgamento daquela comunidade, esta que
assume a posição de narrador do conto. Temos, portanto, um narrador na primeira
pessoa do plural, que se identifica como um dos membros da comunidade de Jefferson
“Quando Miss Emily Grierson morreu toda a nossa comunidade compareceu ao
enterro” (FAULKNER, 19454, p.224). Entretanto, ao longo do conto, percebemos que
esse narrador agrega mais de uma voz, alternando espaço na narrativa.
Atenta-se o estudo prioritariamente à questão do narrador plural, pois, na
leitura que será realizada do conto, enxergamos a sua construção, os demais elementos
da narrativa, assim como a teia de significação que perpassa o texto, derivados desse
aspecto estilístico escolhido por Faulkner.
Antes de introduzir uma leitura meticulosa do conto, faz-se necessário um breve
parêntese para discutir a posição do narrador de primeira pessoa do plural na literatura.
Afora as diferentes nomenclaturas e extensas subdivisões dadas ao narrador na teoria
literária, uma divisão binária se estabelece quanto à narração: a primeira pessoa do
singular, o narrador-personagem (protagonista), que relata suas experiências, e a terceira
pessoa, o narrador-observador, estranho à história, pois não integra a narrativa. Gérard
4 A primeira tradução que se tem registro do conto “Uma rosa para Emily”, no Brasil, data do ano de
1945, realizada pela tradutora Lia Corrêa Dutra e publicada pela Editora Leitura.
Genette5 (1979) posiciona ainda uma terceira forma de focalização, o narrador que
participa da história, porém é um personagem secundário. Aproxima-se tanto do
narrador-personagem secundário quanto do narrador pressuposto observador.
Por sua vez, essas formas plurais na narrativa não são tradicionais na literatura
moderna, não havendo uma categoria que as especifique abertamente, não existindo
também uma ampla variedade de histórias que utilizam essa técnica. Se os exemplos
não são muitos, a utilidade dessa voz plural na narrativa também não entra em consenso.
Miller (2004, apud ARIELLO, 2008) discorre sobre a dificuldade em narrar uma
história na primeira pessoa do plural e da falta de menção sobre esta na crítica literária.
Cita o conto de Faulkner como o melhor exemplo, ao mesmo tempo, questiona se esse
nós que se pronuncia seria a cidade ou algum porta-voz não identificado. O ponto é que
o uso de uma voz coletiva para contar uma história subverte os preceitos da literatura
moderna. Evocamos como moderno a perspectiva do teórico György Lukács, para quem
o romance confirma definitivamente sua predominância como forma de expressão típica
da consciência burguesa na literatura (LUKÁCS, 2011).
A visão de um narrador plural entra em atrito com a própria modernidade do
romance e de outras formas narrativas, tais como o conto e a novela. Miller ainda afirma
que hoje um romancista pensar em falar para uma nação soaria ridículo e deveras
presunçoso, mas poderíamos estender, com certas restrições, esse pensamento para o
século XIX e XX. O indivíduo moderno não responde mais por uma coletividade, pois
não se enxerga mais num todo substancial, suas ações falam por si e para si.
No clássico texto “O narrador – considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”,
Walter Benjamin evoca a figura do narrador segregado, pois “a matriz do romance é o
indivíduo em sua solidão [...], a quem ninguém pode dar conselhos, e que não sabe dar
conselhos a ninguém”. (BENJAMIN, 2011, p.55). Nessa passagem para a modernidade,
o narrador perde o furor das experiências coletivas, o vínculo com suas tradições, o
sentimento de pertencer à pátria. Desvanece-se a figura do contador de histórias.
Esta discordância se apazigua ao relacionarmos o narrador plural, na ficção
moderna, como uma tentativa de recuperação do coro das tragédias gregas:
5 Para uma maior formalização dos conceitos, tomamos como base a perspectiva dada por Gerard
Genette, que define o narrador segundo sua relação com a história narrada. Temos, assim, as seguintes
categorias: narrador heterodiegético, narrador ausente da história que conta; narrador homodiegético,
narrador presente como personagem na história que conta; narrador autodiegético, o narrador é o
protagonista da sua narrativa.
Os leitores modernos acham o narrador coletivo de primeria pesssoa
pertubador; a mente contemporânea continua procurando a
familiaridade de um ponto de vista individual, desde então, parece
impossível que um grupo possa pensar, sentir, e muito menos agir,
como um. Os antigos gregos acreditavam de modo contrário. Seu
drama, que é a raiz do nosso romance, surgiu do ditirambo, um hino
ao deus Dionísio, originalmente recitado em harmonia por cinquenta
homens, uma voz coletiva que sobreviveu na forma do coro grego.
(MILLER, 2004 apud ARIELLO, 2008, p.16).
Intermédio entre ator e plateia, o coro na tragédia clássica era uma personagem
coletiva e homogênea, que tinha a missão de cantar partes significativas do drama,
trazendo os pensamentos e sentimentos à tona, além de anunciar o desfecho da trama.
Em síntese, eram os narradores da história. Ao coro também incumbia realizar críticas
oniscientes de cunho social e moral, sendo porta-voz de uma opinião pública, o
representante, no palco, de uma população e espectador ideal dos acontecimentos. Na
Poética, Aristóteles defende que “o coro deve ser considerado como um dos atores;
deve constituir parte do todo e ser associado à ação, à maneira de Sófocles”.
(ARISTÓTELES, 2010, p.68)
Essa linha temporal no tocante à narração faz-se necessária para chegarmos
propriamente ao conto, na tentativa de compreendê-lo plenamente. Parece-nos claro que
Faulkner projeta a vida de Miss Emily Grierson aos moldes de uma tragédia. A própria
estrutura do conto, com cinco partes/atos, atesta essa possibilidade. Coloca-se a
comunidade de Jefferson como o coro a que assiste, comenta, interfere, participa da
ação e, por fim, anuncia seu desfecho.
A todas essas explanações que fizemos sobre o narrador pressupomos que, no
conto, a voz coletiva – a comunidade – não se apresenta apenas como narradora, mas
como uma personagem, a principal da história. O ato de contar a vida dessa moradora
ilustre por essa comunidade faz emergir todo um painel sócio-histórico em contradições
que, simultaneamente, constrói-se a si próprio. Adentremos a narrativa a fim de
esclarecermos esse ponto.
William Faulkner ergue seu conto ancorando-se em contrastes; toda a narrativa
que perpassa “Uma rosa para Emily” é marcada por fortes oposições. Esse aspecto é
evidenciado logo no começo do texto, no relato da casa de Emily. Trata-se de um
casarão em estilo grandioso “Era um casarão quadrado, de madeira, outrora branco
decorado de cúpulas no estilo pesadamente frívolo da época de 1870” (FAULKNER,
1945, p.224), mas ao conhecermos o interior dessa casa, junto ao narrador, nota-se já
um declínio desta. Coberta de poeira e de móveis antigos, a casa de Emily é um
ambiente que contrasta o belo, o grandiloquente e o decadente “Havia em tudo um
cheiro de poeira, de guardado... um cheiro de mofo e umidade” (FAULKNER, 1945,
p.225). Segue-se a isso, o tom na composição desse espaço, um ambiente escuro que
alterna sombras e fleches de luz.
Na sequência, notamos uma paisagem que comporta duas visões de mundo
distintas que entram em contato: ao mesmo tempo em que se tem a casa da protagonista,
marcada por um tom aristocrático e frívolo, vê-se também o multiplicar das garagens e
postos de gasolina. Revela-se, assim, um princípio de industrialização daquela região,
introduzido pelo Norte personificado na figura de Homer Barron.
A introdução deste personagem é significativa não apenas pela centralidade que
ele tem na vida de Emily e no desfecho do conto, mas por que, mediante ele, podemos
analisar uma das relações sociais que se dão no texto: Homer Barron versus narrador.
Inserido na parte III, Homer chega à cidade com a responsabilidade de pavimentação
das calçadas “A companhia construtora trouxe negros, mulas e máquinas, e um
contramestre chamado Homer Barron, um ‘Yankee’ – homem grande moreno e
decidido, com um vozeirão enorme e olhos mais claros do que a pele do rosto...”
(FAULKNER, 1945, p.229), logo sendo reconhecido por toda a gente da cidade. A
relação, que no começo é de animosidade no tocante a esse novo habitante, passa a ser
de divergência entre a própria comunidade perante o entrosamento deste com Emily.
Alguns expressam satisfação nesse relacionamento, outros, porém, veem com maus
olhos esse enlace – “Mas havia outras pessoas, os mais velhos, que achavam que o
mesmo desgosto deveria fazer com que uma verdadeira senhora se esquecesse que
noblesse oblige... Diziam apenas: ‘Pobre Emily. Os parentes deviam procurá-la”
(FAULKNER, 1945, p 230).
A voz coletiva que marca o texto, diferentemente das tragédias gregas, não se
configura como homogênea. A situação em questão expõe um conflito de ideias e,
consequentemente, uma divisão de posições. Se, no começo do conto, o narrador
bradava um sentido de unificação – “toda a nossa cidade” –, as divergências de opiniões
impõem uma separação de grupos na coletividade que se expressa. No trecho assinalado
é notória a distinção que se faz entre os que aprovam e não aprovam tal relacionamento,
respectivamente, os jovens e a “gente velha”.
Nesta relação entre comunidade versus Homer, o conto abre espaço para discutir
a associação do Norte progressista com o Sul arcaico após a Guerra Civil Americana. A
menção da Guerra se mostra explícita “onde jaziam entre os túmulos enfileirados e
anônimos dos soldados da União e dos Confederados mortos no campo de batalha de
Jefferson...” (FAULKNER, 1945, p.224) e implicitamente, na dinâmica dos pares, nos
sussurros inflamatórios, no tom pejorativo, nos julgamentos morais moldados por um
passado que ainda ecoa – “Naturalmente, nunca uma Grierson tomara a sério um
nortista, um assalariado” (FAULKER, 1945, p.230). Porém, o autor nunca constrói essa
rixa Norte e Sul de maneira engessada. Em vez disso, põe no cerne da discussão o
próprio Sul na tomada de posição desse conflito, nesse embate de gerações, na dinâmica
das vozes que perpassa o olhar do enlace de Homer e Emily.
Temos uma máxima importante aqui: o coletivo que fala é o resultado de um
construto de individualidades. A desafinação das vozes desconstrói todo um arquétipo
do coletivo, do uno indissociável, da agregação da pátria, e acentua todo um processo de
revelação de identidades daquele lugar. É nítido, pelos exemplos acima, o caráter ainda
conservador desse Sul, muito arraigado a um ideal aristocrático, segregado, de valores e
tradições que não compactuam mais com a realidade. A isenção do pagamento de
impostos para Miss Emily, devido à herança tradicional de sua família “O coronel
Sartoris a isentara do pagamento de impostos, isenção definitiva, que datava da morte
de seu pai” (FAULKNER, 1945, p.225), é um traço preciso do desenho desse Sul
tacanho, que encara com rejeição essa vinda do Norte, mas que ainda assim mascara
esse estranhamento travestindo-o em tom paternalista à proteção da honra de Miss
Emily e da memória de sua gente.
Mas, é na relação entre narrador e Emily, a que tomamos como personagem
versus personagem, que o conto dimensiona toda a periodicidade histórica na qual está
inserido, intensifica a dissonância dos discursos e expõe as contradições e rachaduras
sociais. Como é por meio do relato da comunidade que vemos Emily, direcionaremos a
construção da personagem tendo como base os olhos dos habitantes de Jefferson. Em
primeiro lugar, é importante ressaltar que o conto não nivela esses dois personagens. A
relação estabelecida entre eles passa por um prisma “os de baixo” e “os de cima”. A
melhor definição desse desenlace aparece no próprio conto “a gente grosseira e prolífica
do bairro e os grandes e poderosos Grierson” (FAULKNER, 1945, p.227).
O relato da figura de Miss Emily é moldado pela distância. Faulkner elabora
uma personagem que não é construída, mas sim reconstituída, uma fotografia que
capturamos por um breve momento, entretanto, nunca enxergamos completamente o
profundo dessa imagem:
Uma vez ou outra, nós a avistávamos diante de uma janela do andar
térreo – tinha evidentemente, fechado todo o andar superior da casa –
semelhante ao busto esculpido de um ídolo no seu nicho, e nunca
chegamos a saber se estava olhando para nós, ou se nem sequer nos
via. E assim, passou ela de geração para geração – querida, inevitável,
impenetrável, tranquila e perversa. (FAULKNER, 1945, p. 234)
Fica fácil, assim, entender a estrutura do texto. A forma estética reflete na
composição dessa personagem. Emily perpassa toda a narrativa como uma sombra
errante, espécie de espectro, e sua morte anunciada no início do conto é apenas a
confirmação desse fato.
O que se vê, estética e tematicamente, são fotografias de uma geração “Nós os
imaginávamos muitas vezes como um quadro, ao fundo, Miss Emily, esguia figura de
branco; no primeiro plano, a silhueta de seu pai...” (FAULNER, 1945, p.228), cujo fim
já está anunciado – a linhagem dos Grierson finda com a morte de Emily. Tal retrato só
não se torna fugaz pelo relato da comunidade, que perpassa e une gerações como
espectadores ativos “e nós ficávamos todos à espera dos acontecimentos... formáramos
uma verdadeira cabala” (FAULKNER, 1945, p.232) de uma história a qual também se
enxerga como força fundamental para a sua perpetuação.
Contudo, faz-se necessário ainda dar um rosto a essa sombra:
Levantaram-se à sua entrada. Era uma mulherzinha pequena e gorda,
vestido de preto com uma fina corrente de ouro descendo-lhe do
pescoço até a cintura, onde desaparecia no cós da saia. Tinha a
ossatura pequena e delicada; talvez, por isso, o que em outra pessoa
seria apenas gordura, parecia, nela, obesidade. Dava a impressão de
estar inchada, como um cadáver muito tempo submerso numa água
estagnada; tinha, mesmo, de um afogado a carne lívida e balofa. Seus
olhos, perdidos nas intumescências de sua face, lembravam dois
pedacinhos de carvão enfiados numa bola de maça, e iam de um rosto
a outro, enquanto expunham o caso. (FAULKNER, 1945, p. 226)
A descrição, retirada da parte I, ocorre em um dos poucos encontros de Miss
Emily com os moradores da cidade. Trata-se da ocasião em que os membros do
Conselho Municipal vão à casa da personagem para cobrar-lhe o pagamento dos
impostos. A essa altura, no conto, Emily já se encontra velha, tendo fechado a porta de
sua casa há mais de dez anos, depois das lições de pintura em porcelana dada às jovens
da cidade. Destaca-se no trecho exposto, além do caráter fantasmagórico da personagem
já documentado, a semântica do peso que molda essa personagem. Obesidade no plano
físico que se transfigura, no aspecto temático, em fardo, desgaste, esmaecimento. Emily
é a extensão de sua casa, uma figura imponente, mas dissonante, em processo de ruína e
decadência, que sofre a perda de seu espaço.
Não que a personagem mereça toda essa complacência, e a dubiedade com a
qual o narrador descreve sua queda, num misto de compaixão e perversidade, dão
margem às contradições que emanam dessa figura. Miss Emily carrega consigo a
reclusão, o hermetismo; mantém fechada não apenas as portas de sua casa, como toda a
sociabilidade ao seu redor. Poderíamos definir sua vida numa única palavra: recusa.
Suas ações estão sempre voltadas a esse termo, recusa social, recusa sexual, recusa ao
desapego, recusa à morte e, mais que tudo, recusa ao novo.
A modernidade e com ela suas transformações rondam Emily a todo tempo e
seus atos são sempre motivados por essa rejeição, seja no aspecto como mantém sua
casa, seja por manter ao seu lado somente o criado negro – numa analogia, a liberdade
de Tobe vem com a morte de sua patroa –, a negação em colocar a caixa do telégrafo
“Miss Emily foi a única que se negou a consentir um número de metal na sua porta...
Não houve argumento que a convencesse” (FAULKER, 1945, p.233). Atinge seu ápice
na morte de Homer, possivelmente causada por ela, que, numa leitura vertical do conto,
analisamos como o Sul que mata, rechaça o Norte. Emily se resigna, prefere a alienação.
Sua luta, e estendemos ao conto em si, é contra o passar do tempo e as consequências
deste ato.
Altiva e decadente, grande, porém um fardo. Esses são adjetivos que
caracterizam Emily, mas os quais o conto transpõe para uma significação maior, o
construto de uma época que anuncia seu fim, personificados no destino dessa trágica e
serena mulher. Faulkner molda a personagem de Miss Emily Grierson a partir das
tensões da sociedade em que ele estava inserido e que conhecia tão bem. Emily é não
apenas o produto histórico, mas a personificação de um período cujo declínio é
imanente: o Velho Sul dos Estados Unidos, com toda sua pompa aristocrática, arraigado
às tradições e valores nobres, perde cada vez mais espaço e importância no cenário pós
Guerra de Secessão.
Emily representa esse período: sua decadência psicológica e hierárquica é
equivalente ao declínio social das elites sulistas, que recusam o novo, presos à sua
antiga condição. A rima visual composta a sua figura, uma espécie de estátua “viram
Miss Emily sentada à contraluz, ereta, rígida, imóvel como um ídolo” (FAULKNER,
1945, p.228) é a confirmação desse passado que está morto, afinal, Emily está morta,
porém que sempre é revisitado, pois ainda está entranhado, reverbera seus reflexos.
Rememoração é um termo chave para entendermos o conto de William Faulkner.
Contudo, como já anunciamos anteriormente, voltamos à análise sempre aos
olhos do narrador, tido como o principal personagem do conto, suplantando até mesmo
a figura de Emily. Buscando uma base teórica a essa questão, aproximamos a pesquisa à
perspectiva da arte realista do teórico Lukács, tomando o narrador como uma categoria
do tipo que evidencia uma particularidade histórica. Para tanto, uma breve explicação
sobre o realismo na perspectiva lukacsiana.
Lukács afirma que “o objeto [da arte] é o entorno concreto do homem, a
sociedade (o homem na sociedade), o intercâmbio da sociedade com a natureza,
mediado, naturalmente, pelas relações de produção e tudo isso do ponto de vista do
homem inteiro.” (1982, p.254 apud CARLI, 2015, p.3). A grande arte está interessada
nas dinâmicas sociais, na reconstituição dos processos, na dialética entre aparência e
essência, objetividade e subjetividade como tentativa de interpretação do mundo. Trata-
se acima de tudo de restabelecer os laços entre o homem e a sociedade, que se
encontram reificados. É uma forma de conhecimento humano, “quanto mais
intensamente ela abranger a contradição viva da vida, a unidade viva da contradição de
riqueza e unidade das determinações sociais, tanto maior e mais profundo será o
realismo.” (LUKÁCS, 1938 apud MACHADO, 1998, p. 208). Logo, a verdadeira arte
“fornece sempre um quadro de conjunto da vida humana, representando-a no seu
movimento, na sua evolução e desenvolvimento”. (LUKÁCS, 2011, p.115)
Entretanto, se a arte busca, na vida cotidiana, as leis universais que regem o
destino do homem, no reflexo estético, estas se apresentam de modo concentrado.
Assim, a categoria da particularidade exerce posição central no âmbito estético nos
estudos de Lukács. Para ele, a particularidade é o lugar no qual estão representados
simbolicamente o singular e o universal. Refere-se, portanto, à superação destas duas
formas, incluindo-as nessa mediação. O particular é o meio possível de refletir o real de
modo mais concreto6, “a verdade que oferece a criação artística é sempre particularizada
em um tempo e um lugar bem definidos na história; a arte nos dá uma verdade concreta
e específica” (CARLI, 2015, p.3).
Surge, assim, dessa particularidade, o tipo como categoria apta a delimitar uma
periodicidade e que cria as bases de um realismo na literatura.
O tipo vem caracterizado pelo fato de que nele convergem, em sua
unidade contraditória, todos os traços salientes daquela unidade
dinâmica da qual a autêntica literatura reflete a vida; nele, todas as
contradições – as mais importantes contradições sociais, morais e
psicológicas de uma época – se articulam numa unidade viva. A
representação da média, ao contrário, faz com que as contradições,
que são sempre o reflexo dos grandes problemas de uma época,
apareçam necessariamente diluídas e enfraquecidas no estado de
espírito e as experiências de um homem medíocre, com o que são
sacrificados os seus traços essenciais. Na representação do tipo na
criação artística típica, fundem-se o concreto e a lei, o elemento eterno
e historicamente determinado, o momento individual e o momento
social universal. Portanto, é na representação típica, na descoberta de
caracteres e situações típicas, que as mais importantes tendências da
evolução social conseguem uma expressão artística apropriada.
(LUKÁCS, 2011, p.106)
Não se trata de um estereótipo; ser um tipo jamais é ser uma singularidade
avulsa ou uma generalização abstrata. O tipo expressa as contradições sociais do
momento de quem vive, concentra na sua singularidade as tendências históricas de uma
época, da qual o criador retira o conteúdo de sua arte. Um tipo nunca é, torna-se. Para
Ranieri Carli (2015), a constituição do tipo no plano estético permite o conhecimento do
homem a propósito das vivências que formam o seu gênero.
Após essas explanações, voltamos ao conto, permitindo-nos confirmar o porquê
da afirmação anterior: Faulkner cede à comunidade a voz que anuncia o fim de um
tempo. Se, no conto, a família Grierson se julgava “muito mais importante do que é na
verdade” (FAULKNER, 1945, p. 228), o autor subverte essa lógica dando a essa “gente
de baixo”, pela primeira vez, esse lugar de destaque, a grandeza de um coro digno das
tragédias gregas. Oferece-lhes o privilégio, por vezes de secreta satisfação, outras vezes
melancólico, de ver, rever, contar, participar dessa queda, de narrá-la.
6 Sobre a categoria da particularidade, disserta-se que “no mundo particular criado pela obra de arte, se
conectam o presente, o passado e as possibilidades de futuro, a arte une o que acontece na vida imediata
ao que se consolidou historicamente como representativo da humanidade; torna visível a essência
ocultada pela aparência fetichizada da vida cotidiana; ilumina os nexos entre o singular e o universal;
entre o homem individual e a humanidade.” (CORRÊA; HESS, 2015, p.147)
Esse privilégio não vem em forma de conformismo. Como dito anteriormente,
essa voz coletiva nunca é harmônica. Apesar de falar por uma comunidade, ora temos
um narrador que se integra a esse nós, outra temos uma separação dessas vozes dentro
de uma coletividade. Assim como o discurso cede espaço a outras vozes que carregam
consigo opiniões e experiências divergentes. Por essa razão, recusamo-nos a limitar a
posição do narrador a um mero observador, trata-se, antes de tudo, de um personagem
ativo – um tipo – que, na incumbência de contar essa história, constrói a si mesmo
dialeticamente.
Faulkner edifica seu conto evidenciado toda uma dinâmica social conflitante em
processo, colocando o homem (coletivo) como agente na formação dessa sociedade.
Observemos o seguinte trecho, na parte II, quando o Conselho Municipal debate o que
fazer com as constantes reclamações da população por causa do fedor exalado nas
redondezas da casa de Emily:
No dia seguinte, recebeu duas novas queixas: uma partiu de um
homem, que apresentou uma súplica tímida: – Nós precisamos,
realmente fazer alguma coisa nesse caso, Sr. Juiz. Eu seria a última
pessoa no mundo capaz de incomodar Miss Emily, mas precisamente
vamos fazer alguma coisa. Nessa mesma noite, reuniu-se o Conselho
Municipal: – três barbas grisalhas e um rapaz moço, membro da nova
geração.
– A coisa é muito simples – disse o moço. Mandem-lhe dizer para
limpar a casa. Deem-lhe um certo prazo para obedecer, e se ela não...
– Deus me livre, senhor! – exclamou o Juiz Stevens. Quer então dizer
a uma senhora, nas bochechas, que ela cheira mal? (FAULKNER,
1945, p 228-229)
O Sul retrógrado do passado e o Sul progressista do presente e do futuro marcam
o grande conflito da narrativa. O tempo, no conto, apesar de seguir uma cronologia
difusa, é mediado principalmente no falar das novas gerações “Quando a geração
seguinte, com suas ideias modernas, deu, por sua vez, prefeitos e intendentes
municipais” (FAULKNER, 1945, p.225). Com elas surge o conflito em torno da figura
de Miss Emily, tida para uns como “monumento tombado”, para outros, um fardo,
espécie de obrigação hereditária.
Considerações finais
A narração plural, por meio dos atritos de pensamentos entre a velha sociedade e
a geração moderna, expõe a passagem de um tempo e rastros de uma sociedade que se
modifica, tanto no tempo quanto no espaço. Sul versus Sul se encontram na mesma voz
e assistem a diluição de um quadro histórico projetado em Emily. Sobretudo, eles se
assistem, veem nessa figura seu reflexo como nação. A discrepância do discurso surge
na tomada de posição de cada habitante em relação a essa senhora, vendo por meio dela
os caminhos a seguir enquanto pátria. Atemo-nos aos ranços do passado ou seguimos
em frente com uma nova perspectiva, essas são escolhas que Faulkner dispõe a essa
coletividade pensar no exercício de rememoração da vida de Emily.
Quando escrevemos que o privilégio que o autor concede a essa comunidade não
vem de forma fácil, tal afirmação está, pois, na responsabilidade que também impõe a
esse povo. William Faulkner, em seu texto, permite ao narrador a oportunidade de se
deparar com o reflexo de uma sociedade que está no seu último suspiro e, a partir desse
ponto, pensar os caminhos a seguir, nunca de maneira fácil, sempre expondo as
rachaduras dessa sociedade e trazendo à superfície as efervescentes contradições sociais
desse cenário. Lukács afirma que “o romance é a forma da apatricidade transcendental”
(1920, apud BEJAMIN, 2012, p.229). Vinculamos o uso da técnica do narrador plural
como contravenção a esse isolamento que perpassa a narrativa moderna. Enxerga-se
especialmente a tentativa de, se não recuperar, ao menos repensar a pátria pós Guerra
Civil em toda sua dinâmica, percebendo, nessa coletividade contrastante que se
expressa, os caminhos para uma retomada de consciência das relações sociais.
Emily Grierson repousa em um cemitério junto “dos representantes daqueles
nomes augustos” (FAULKNER, 1945, p. 224). Se os leitores acreditam que ela, por fim,
merecia uma rosa, assim como próprio Faulkner acreditava, isso deve-se não apenas ao
aspecto trágico de sua existência, mas pelo conto emoldurar, tanto na criação estética
quanto no conteúdo, uma espécie de memória social, um retrato que a comunidade de
Jefferson e nós, leitores, as futuras gerações, revisitamos continuamente. O reviver de
determinada época abre espaço para a tomada de consciência de nós mesmos como
gênero humano e de todos os processos que nos envolvem, o que é de fato a verdadeira
função da arte.
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