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TheAR, n.7, p. 4-17, 2019. ISSN 2596-2647 Antonio Aparecido Alves
A DOUTRINA SOCIAL DO PAPA FRANCISCO
Prof. Dr. Pe. Antonio Aparecido Alves*
1 INTRODUÇÃO
A data de 1891 assinala o nascimento do que hoje chamamos de Doutrina
Social da Igreja (DSI), esse “conjunto de princípios de reflexão, critérios de juízo e
diretivas para a ação”1, com até agora doze documentos que formam o seu corpus
doutrinal, sendo a maioria deles encíclicas sociais, mas também radiomensagem e Carta
apostólica. A Doutrina Social é permanente em seus princípios, emanados das Sagradas
Escrituras e da fé viva da Igreja, sobretudo o princípio personalista. No entanto, ela
evolui para responder aos desafios apresentados em cada época, que poderíamos chamar
de questão social-
Uma questão social não surge por si só. Um problema se transforma efetivamente
em “questão social” quando é percebido e assumido por um setor da sociedade que
tenta por algum meio equacioná-lo, torná-lo público, transformá-lo em demanda
política, o que implica em tensões e conflitos. 2
A DSI comporta, portanto, uma dinamicidade e, por isto, pode-se falar que
não há uma lineariedade, embora esta tenha sido afirmada por Bento XVI na Caritas in
Veritate ao afirmar que “não ajudam à clareza certas subdivisões abstratas da doutrina
social da Igreja, que aplicam ao ensinamento social pontifício categorias que lhe são
alheias. Não existem duas tipologias de doutrina social — uma pré-conciliar e outra
pós-conciliar —, diversas entre si, mas um único ensinamento, coerente e
simultaneamente sempre novo”. (CV 12)
Neste trabalho discorrerei inicialmente sobre três períodos e dois
paradigmas que caracterizam a dinâmica histórica da DSI, para em seguida apresentar
um quarto período e um terceiro paradigma, representado pelo ensino social do Papa
Francisco. A grande dificuldade foi a falta de bibliografia sobre este tema, o que me
*Doutor em Teologia pela PUC-Rio. Mestre em Ciências Sociais com especialização em Doutrina Social
da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Presbítero na Diocese de São José dos
Campos. 1PAULO VI, Octogesima Adveniens, n. 4; CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução
sobre a Liberdade cristã e a Libertação Libertatis Conscientia, n. 72; JOÃO PAULO II, Sollicitudo rei
socialis, n. 41; CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, Orientações para o ensino da
DSI nos Seminários, n. 2 2WANDERLEY, L. E. A questão social no contexto da globalização: o caso latino-americano e o
caribenho. In: CASTEL, R.; WANDERLEY, L. E.; BELFIORE-WANDERLEY, M. (Org.).
Desigualdade e a questão social. São Paulo: EDUC, 2011. p. 63.
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A Doutrina Social do Papa Francisco
obrigou a navegar em seu ensinamento e inferir hipóteses que poderão ser comprovadas
no futuro e a partir de outros estudos.
2 PERÍODOS E PARADIGMAS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
2.1 Períodos
Com a encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, a Igreja começou uma nova
forma de se manifestar sobre a sociedade, motivada pela Revolução Industrial e pela
causa operária, circunscrita à Europa, sob o prisma do que se chamava de “filosofia
social”, embora uma ou outra vez se falasse de “doutrina social católica”. Este período
pode ser entendido como a 1) reconciliação progressiva da Igreja com a modernidade,
que fora fechado em 1864 com a Encíclica Quanta Cura e o Syllabus, que chegou até o
Pontificado de Pio XII. Com o magistério de João XXIII entramos em uma nova fase,
que poderíamos chamar de 2) ampliação da DSI, seja com relação aos interlocutores,
que já não são somente os de dentro da Igreja, mas todas as pessoas de boa vontade,
bem como com relação à temática, tais como o desenvolvimento, a política e a ecologia,
como também geograficamente, estendendo-se aos povos do então chamado terceiro
mundo. Pode-se dizer que no pós-concílio a DSI adquire um estatuto teológico e daí
passe a ser compreendida como Doutrina Social. Por fim, com o magistério de João
Paulo II e Bento XVI entramos em um terceiro período, que pode ser chamado de 3)
evangelização da cultura, uma vez que tanto quanto o outro promoveu uma grande
cruzada de evangelização, contra o que foi chamado de sistema ético e cultural da
sociedade (João Paulo II) e a cultura do relativismo (Bento XVI). 3 Estamos, agora, em
um quarto período, no Pontificado do Papa Francisco, que não se pode caracterizar
ainda exatamente, mas que poderíamos chamar de uma 4) Igreja em saída, do qual
falaremos mais no momento certo.
3RIVAS, E. Cem anos de Doutrina social da Igreja: aproximação histórica e tentativa de síntese. In:
IVERN, F.; BINGERMER, M. C. (Org.). Doutrina Social da Igreja e Teologia da Libertação. São
Paulo: Loyola,1994. p. 23-42.
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2.2 Paradigmas
Paradigma tomista na DSI - Leão XIII, sucessor de Pio IX, promove um
renascimento do tomismo, fundando centros de estudos tomistas em toda a Europa,
buscando um resgate da teologia de Santo Tomás de Aquino. Este renascimento tomista
articula-se entre 1878 e 1891, através de suas encíclicas, destinadas às áreas cultural,
política e social e o objetivo era o de redefinir o papel da Igreja no mundo moderno -
Aeterni Patris (1879), redefine o programa cultural, aceitando-se um realismo moderado
e o neotomismo como alternativa ao racionalismo radical representado pelo
Positivismo, pelo Cientificismo e pelo Marxismo. Por sua vez, Diuturnum (1881), sobre
a natureza do Poder político, Imortale Dei (1885), sobre a teoria cristã do Estado,
Libertas (1888), sobre a natureza da liberdade humana e Sapientiae Christianae (1890),
sobre a missão do Estado, redefinem o programa político à luz de Santo Tomás. Por
fim, a Rerum Novarum (1891), que redefine o programa econômico e social. 4
Este paradigma ético a partir da teologia de Santo Tomás marcou o início da
DSI. Nele as questões relativas à moral socioeconômica baseiam-se no tratado De
Iustitia, cujas fontes são o Livro V da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, a tradição
bíblico-patrística e o Direito romano. Tudo vem inserido dentro do quadro das virtudes,
sendo a justiça a principal das virtudes morais, compreendida como justiça legal,
comutativa e distributiva, sendo definida como a disposição de dar a cada um o que lhe
pertence. O que faz a união no Estado é a amizade cívica e o grande princípio
sociopolítico é o bem comum.
Paradigma agostiniano na DSI - Com o magistério social de Bento XVI
coloca-se outro paradigma para a compreensão da DSI. O perfil de Bento XVI é
agostiniano: 5
a) doutorado - Povo e Casa de Deus na doutrina da Igreja de Santo
Agostinho;
b) livre docência - A teologia da história em São Boaventura;
c) brasão pontifício - a conchinha referente ao mistério da Trindade;
d) encíclica programática Deus caritas est.
4ANDRADE, P. F. C. Democracia e Doutrina Social da Igreja. In: LESBAUPIN, I.; PINHEIRO, J. E.
(Orgs.). Democracia, Igreja e Cidadania. São Paulo: Paulinas, 2010. p. 182-6. 5TERRA, J. E. M. Itinerário teológico de Bento XVI. São Paulo: Ave Maria, 2006.
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A Doutrina Social do Papa Francisco
A encíclica Caritas in Veritate parece assumir o paradigma agostiniano. De
acordo com esse, aquele que ama a Deus se encontra em relação de sociedade com
todos os que O amam. Dessa maneira, o amor engendra espontaneamente uma
sociedade, da qual ele é o ligame principal e Deus é essencial. Como há nos homens
dois amores, assim se formam duas ordens ou realidades espirituais: a Civitas Dei e a
Civitas terrena. A primeira se forma a partir do amor de Deus até o desprezo de si,
enquanto que a segunda se origina do amor de si chegando ao desprezo de Deus. Ambas
as cidades subsistem e se dão juntas no mesmo devenir histórico. Porém, somente a
cidade de Deus, como ideal e como fim (telos) da história, conseguirá triunfar e impor a
paz perpétua. Nesse paradigma, ganha importância a caritas, ao mesmo tempo como
conceito teológico e sociopolítico.
3 A DOUTRINA SOCIAL DO PAPA FRANCISCO
O Papa Francisco conheceu na Argentina a Teologia do Povo, que surgiu na
mesma época da Teologia da Libertação (TL). No Seminário ocorrido em 1973 no
Instituto de Teologia em Petrópolis participaram, dentre outros teólogos, o peruano
Gustavo Gutierrez e o argentino Lucio Gera, principal teólogo da chamada Teologia do
Povo. Esta teologia se diferenciava da TL por não utilizar o método marxista na análise
da realidade, privilegiando mais a análise sociocultural do que a socioestrutural. Além
disso, valoriza a piedade popular como forma da inculturação da fé cristã, o povo como
sujeito histórico-cultural e a opção pelos pobres. 6
Tomamos como fontes do pensamento social do Papa Francisco:
a) a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (EG - A alegria do
Evangelho), especialmente em seu capítulo IV - A dimensão social do
querígma;.
b) o discurso aos movimentos populares em Santa Cruz (Bolívia) em
09/07/2015;
c) a Encíclica social Laudato Si (LS - Louvado Sejas).
6IHU on line. Entrevista com Juan Carlos Scannone. Disponível em: <
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/522076-a-teologia-do-povo-entrevista-com-juan-carlos-
scannone%20,>. Acesso em: 12 out. 2017.
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A hipótese que trabalhamos é que entramos com o Papa Francisco em um
quarto período da DSI, que poderíamos chamar de Igreja em saída, conforme se lê na
EG 49 -
Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para
toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos
Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas,
a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias
seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa
num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve
santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos
nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo,
sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida.
Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas
estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em
juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há
uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de
comer» (Mc 6, 37).
Outra hipótese que poderíamos avançar é que estamos trabalhando com
outro paradigma, que poderia ser chamado de Franciscano. A escolha do nome
Francisco denota um projeto de Igreja “pobre, simples, evangélica e destituída de todo
poder. É uma Igreja ecológica que chama todos os seres com a doce palavra de ‘irmãos
e irmãs’”. 7 O conselho de Dom Claudio Humes imediatamente após a sua eleição foi -
não se esqueça dos pobres - e logo lhe veio no coração do Cardeal Jorge Mario
Bergoglio um nome com o qual poderia ser chamado - Francisco, o santo amante dos
pobres, da pobreza, da paz e da criação. Dentro deste paradigma o grande princípio
ético-teológico é a misericórdia, da qual o Papa se faz um paladino, até mesmo porque
ele a experimentou de maneira muito viva, como descreve na explicação de seu brasão
pontifício. Longe de um assistencialismo, esta misericórdia se baseia na opção pelos
pobres e por uma vida simples e modesta, que deveria caracterizar a Igreja enquanto
instituição e cada cristão. Dentro deste paradigma, o povo é protagonista da história, que
deve ser transformada para se adequar às exigências do Reino.
3.1 Uma Igreja pobre e para os pobres
Um primeiro aspecto a se salientar da DSI do Papa Francisco se refere à
opção pelos pobres, um dos princípios da Doutrina Social da Igreja. O Papa João Paulo
II sublinha na Encíclica Centesimus Annus que “o amor da Igreja pelos pobres, que é
7IHU on line. Entrevista com Leonardo Boff. Disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/518481-
sera-a-primavera-depois-de-um-duro-inverno-entrevista-com-leonardo-boff. Acesso em: 12 out. /2017.
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A Doutrina Social do Papa Francisco
decisivo e pertence à sua constante tradição, impele-a a dirigir-se ao mundo no qual,
apesar do progresso técnico-econômico, a pobreza ameaça assumir formas gigantescas”
(n. 57). Em uma perspectiva estrutural, acentua a CNBB que
a existência de milhões de empobrecidos é a negação radical da ordem
democrática. A situação em que vivem os pobres é critério para medir a
bondade, a justiça, a moralidade, enfim, a efetivação da ordem democrática.
Os pobres são os juízes da vida democrática de uma nação. 8
“Ah, como eu desejo uma Igreja pobre e para os pobres!,” 9 disse o Papa
Francisco aos jornalistas em audiência após sua eleição. Com sua postura, ele retorna à
intenção originária de João XXIII, de quem emprestou a expressão “Igreja dos pobres.”
10 Isto reporta, também, ao chamado Pacto das catacumbas, feito por um grupo de
Bispos durante o Concílio, com o objetivo de viverem a pobreza quando retornassem às
suas Dioceses, renunciando a tudo que fosse ostentação de glória e riqueza.
Com estas indicações, Francisco vem radicalizar a opção preferencial pelos
pobres. Para ele não se trata de algo abstrato ou de um princípio puro, mas os pobres
devem ser agentes da própria história e atores sociais, devem ter participação ativa nas
decisões que se referem à sua vida (EG 49). No discurso em Santa Cruz, falando sobre
as mudanças que todos desejam nas estruturas sociais, o Papa foi mais enfático -
O futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa
capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária
dos “3 T” (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como
protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e
mundiais. Não se acanhem! 11
A radicalização da opção pelos pobres no Papa Francisco atinge seu ápice
quando ele afirma que se deve ter um encontro pessoal com o mundo dos pobres, tocar
na carne sofredora de Cristo presente nessas pessoas (EG 270). Isto nos remete ao
Documento de Aparecida12
, do qual Jorge Mario Bergoglio foi principal redator –
8CNBB. Exigências éticas da ordem democrática. Documento 42, n. 72.
9UDIENZA AI RAPPRESENTANTI DEI MEDIA – 16/03/2013. Disponível
em:<https://w2.vatican.va/content/francesco/it/speeches/2013/march/documents/papa-
francesco_20130316_rappresentanti-media.html. Acesso em: 12 out. 2017. 10
Em face aos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta como é, e deseja ser, como Igreja de
todos, e particularmente a Igreja dos pobres. Rádio mensagem de João XXIII aos fieis do mundo
inteiro – 11/09/1962. Disponível em:<https://w2.vatican.va/content/john-
xxiii/it/messages/pont_messages/1962/documents/hf_j-xxiii_mes_19620911_ecumenical-
council.html>. Acesso em: 12 out. 2017. 11
Discurso do Papa Francisco aos Movimentos Populares. Disponível em:
<http://pt.radiovaticana.va/news/2015/07/10/discurso_do_papa_aos_movimentos_populares_(texto_inte
gral)/1157336>. Acesso em: 12 out. 2017. 12
CELAM. Documento de Aparecida. São Paulo: CNBB, Paulus e Paulinas, 2007. n. 398. Veja-se
também os n. 395, 396 e 397.
10
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Só a proximidade que nos faz amigos nos permite apreciar profundamente os
valores dos pobres de hoje, seus legítimos desejos e seu modo próprio de
viver a fé. A opção pelos pobres deve nos conduzir à amizade com os pobres.
Dia a dia os pobres se fazem sujeitos da evangelização e da promoção
humana integral: educam seus filhos na fé, vivem uma constante
solidariedade entre parentes e vizinhos, procuram constantemente a Deus e
dão vida ao peregrinar da Igreja. À luz do Evangelho reconhecemos sua
imensa dignidade e seu valor sagrado aos olhos de Cristo, pobre como eles e
excluído como eles. Desta experiência cristã compartilharemos com eles a
defesa de seus direitos.
O Papa Francisco, além de ter significativamente escolhido esse nome por
causa dos pobres, acentua que a opção preferencial pelos pobres não é uma categoria
sociológica ou cultural, mas teológica, lembrando o que disse o Papa emérito Bento
XVI na abertura da Conferência de Aparecida, de que esta opção está implícita na fé
cristológica, de modo que não se pode seguir Jesus sem fazer esta opção e que ela deve
perpassar transversalmente todas as estruturas e prioridades pastorais (Evangelii
Gaudium, n. 198; cf. Documento de Aparecida, n. 392 e 396).
3.2 A desigualdade social como raiz de todos os males
Um segundo aspecto a ser salientado na DSI do Papa Francisco é a sua
afirmação enfática de que a desigualdade social é a raiz de todos os males. O filósofo
Jean-Jacques Rousseau afirmou na introdução ao - Discurso sobre a origem e os
fundamentos das desigualdades entre os homens - que as únicas formas de
desigualdades admissíveis eram as naturais, como diferença de idade, de saúde, de força
física e das qualidades do espírito, sendo todas as outras produzidas pela sociedade, que
ele chama de diferenças morais ou políticas, as quais seriam os privilégios que gozam
uns em detrimento de outros, a riqueza e a pobreza, entre outras.13
Nos albores da DSI o Papa Leão XIII, em polêmica com os socialistas,
afirmou ser impossível acabar com as desigualdades sociais e que essas, de alguma
forma, eram úteis para a sociedade -
O primeiro princípio a pôr em evidência é que o homem deve aceitar com
paciência a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos estejam
elevados ao mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os socialistas;
mas contra a natureza todos os esforços são vãos. Foi ela, realmente, que
estabeleceu entre os homens diferenças tão multíplices como profundas;
diferenças de inteligência, de talento, de habilidade, de saúde, de força;
diferenças necessárias, de onde nasce espontaneamente a desigualdade das
13
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os
homens. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 51 (Os Pensadores, 2).
11
A Doutrina Social do Papa Francisco
condições. Esta desigualdade, por outro lado, reverte em proveito de todos,
tanto da sociedade como dos indivíduos; porque a vida social requer um
organismo muito variado e funções muito diversas, e o que leva precisamente
os homens a partilharem estas funções é, principalmente, a diferença de suas
respectivas condições. (RN 13)
No desenvolvimento posterior a DSI manteve o entendimento da
desigualdade natural entre as pessoas, mas foi sempre questionando a existência das
desigualdades sociais. O Papa João XXIII dizia serem anacrônicas as teorias que
afirmavam que algumas classes sociais estariam em posição de inferioridade, enquanto
outras desfrutariam de privilégios por causa de sua situação econômica ou social (PT
43). A Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II afirmou que a
aspiração mais insistente da humanidade é que haja justiça e que se eliminem as
desigualdades, pois elas constituem um escândalo. (GS 29; 63; 96)
No campo das ciências sociais temos hoje duas posições referentes à
igualdade - igualdade de condições e igualdade de oportunidades. A primeira está
centrada nas classes sociais, enquanto a outra o está nas minorias étnicas e grupos
sociais marginalizados. A primeira vertente busca reduzir o fosso entre as classes
sociais mediante distribuição de renda, enquanto a segunda luta contra as
discriminações que constituem obstáculos à realização do mérito, permitindo a cada um
ter acesso a posições desiguais ao final de uma competição equitativa. 14
O pensamento social do Papa Francisco parece mover-se dentro da
perspectiva da - igualdade de condições, pois o Pontífice não se cansa de denunciar o
sistema econômico como sendo perverso e gerador da desigualdade. Acentua, ainda,
que o fato de se ter nascido em um lugar com poucos recursos e menos
desenvolvimento não significa que se está condenado à pobreza e repete o convite
profético feito por Paulo VI (Octogesima Adveniens 23) para que os países mais ricos
reduzam solidariamente seu padrão de vida para que todos possam ter acesso aos bens
necessários à vida. (EG 190)
O Papa Francisco é incisivo ao dizer – não - a uma economia de exclusão, à
idolatria do dinheiro que governa ao invés de servir e a uma desigualdade social que
gera violência. Por isso, para ele esse sistema é injusto em sua raiz porque promove o
consumismo, a cultura do descartável e gera a desigualdade social. (EG 53; 59)
14
DUBET, F. Repensar la Justicia Social. Contra el mito de la igualdad de oportunidades. Argentina:
Siglo Veintiuno, 2011. p. 99.
12
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3.3 A questão ecológica vinculada à social.
No âmbito da DSI o Papa Paulo VI tem diversos ensinamentos sobre a
questão ambiental:
a) discurso à FAO (1970),
b) mensagem ao Congresso da JUC italiana em Roma (1971);
c) mensagem ao Congresso Mundial da ONU sobre o meio ambiente em
Estocolmo (1972);
d) contribuições da Santa Sé às Conferencias de Bucarest (1974);
e) Vancouver (1976).
A carta apostólica Octogesima adveniens de 1971 (OA) enumera entre os
problemas daquele tempo a questão do meio ambiente, denunciando a exploração
desmedida da natureza como um grande problema social, pois o homem arrisca destruí-
la e ser ele mesmo degradado (OA 21). João Paulo II, por sua vez, introduziu esta
temática em sua encíclica programática Redemptor Hominis (RH 8 e 15). No texto do
Dia Mundial da Paz de 1990, cujo lema era “Paz com Deus Criador, paz com toda a
criação”, faz uma apreciação dos aspectos morais da questão ecológica. Na encíclica
Solicitudo rei socialis trata da “preocupação ecológica” no contexto do
subdesenvolvimento (SRS 26; 34). Na encíclica Centesimus Annus qualifica
preocupante a falta de respeito à natureza, vinculada ao problema do consumismo (CA
37), claro expoente, por sua vez, da alienação do homem nos países mais desenvolvidos.
Ademais, inclui o respeito à natureza dentro de “uma autêntica ecologia humana”, que
exige o respeito à vida e à família (CA 38-39).
Há quatro anos (18/06/2015) o Papa Francisco apresentava ao mundo a
Carta Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum. O título deste documento
remete ao Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis, onde o santo louva o
Criador pelas belezas da natureza. Este documento foi recebido com apreço pela opinião
pública internacional e saudado como uma - encíclica verde -, isto é, uma encíclica que
trataria de questões ligadas à ecologia. No entanto, o Papa Francisco fez questão de
enfatizar que essa é uma encíclica social, porque fala da questão ambiental enquanto
relacionada com a questão social. Aqui está a grande contribuição dessa reflexão na
esteira da DSI, isto é, o nexo profundo entre as agendas social e ambiental, pois tanto a
13
A Doutrina Social do Papa Francisco
experiência comum da vida cotidiana como a investigação científica demonstram que os
efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais
pobres (LS 48). Por isso, Paz, Justiça e Conservação da criação são três questões
absolutamente ligadas e que não se podem se separar (LS 92).
A DSI afirma que na origem da questão ambiental está a pretensão da
humanidade de exercer um domínio incondicional sobre as coisas, através de uma
exploração inconsiderada dos recursos da criação. Na encíclica Laudato Si’, o Papa
Francisco chama esse comportamento de - antropocentrismo despótico -, isto é, uma
incorreta interpretação do mandamento do Criador no livro do Gênesis ao homem e
mulher de - dominar a terra -. Contra esse tipo de comportamento baseado em uma
razão instrumental, o Papa Francisco afirma na Encíclica Laudato Si’ que o mundo não
é um problema a se resolver, mas um mistério gozoso que contemplamos na alegria e
louvor (LS 12).
Dentre as propostas levantadas pelo Papa Francisco nesta encíclica está o
apelo a uma mudança no estilo de produção e consumo atualmente determinados pelo
mercado e geradores de necessidades artificiais (LS 26;138; 191), o que João Paulo II
chamou de “conversão ecológica” (Catequese do dia 17 de Janeiro de 2001) e que foi
assumido por ele nesta encíclica (LS 216-221). No que tange às instituições, o Pontífice
pede um compromisso internacional em torno da questão ambiental, para salvaguardar a
vida do Planeta e o direito dos mais pobres.
Em 2016, no dia 1º de setembro, em sua Mensagem para o Dia Mundial de
Oração pelo Cuidado da Criação, o Pontífice acrescentou uma oitava obra a cada um
destes elencos - cuidar da criação -, porque, segundo ele, todas as obras convergem para
o cuidado com a vida. Nas obras de misericórdia corporais, esse cuidado se manifesta
com pequenos gestos de respeito ao meio ambiente; nas obras espirituais, manifesta-se
como um louvor ao Criador por todas as suas obras.
3.4 A transformação da sociedade
A DSI fala timidamente de transformação das estruturas sociais. Pio XI, há
40 anos da Rerum Novarum, falou de - restauração e aperfeiçoamento da ordem social -,
que é o subtítulo da encíclica Quadragesimo anno. O Papa Paulo VI, na Populorum
Progressio, utilizou a expressão “mudança das estruturas”, que às vezes acontecem por
14
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via revolucionária (n. 31), mas salienta a necessidade de que estas ocorram
paulatinamente, através de iniciativas pessoais, comunitárias e governamentais. João
Paulo II, por sua vez, fala de “pecado social e estruturas de pecado” (Reconciliatio et
Paenitentia 16) e diz ser dever do cristão mudar essas estruturas que obstaculizam o
Reino de Deus (CA 39).
O Papa Francisco indica que a DSI não pode ficar em generalidades -
Os ensinamentos da Igreja acerca de situações contingentes estão sujeitos a
maiores ou novos desenvolvimentos e podem ser objeto de discussão, mas
não podemos evitar de ser concretos – sem pretender entrar em detalhes –
para que os grandes princípios sociais não fiquem meras generalidades que
não interpelam ninguém. É preciso tirar as suas consequências práticas, para
que possam incidir com eficácia também nas complexas situações hodiernas.
(EG 182)
Salienta, ainda, o Pontífice, a dimensão transformadora que comporta a fé
cristã, que não pode ter uma perspectiva individualista -
Uma fé autêntica – que nunca é cómoda nem individualista – comporta
sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a
terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela./.../ Embora «a justa
ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política», a Igreja «não
pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça».[150] Todos os cristãos,
incluindo os Pastores, são chamados a preocupar-se com a construção dum
mundo melhor. É disto mesmo que se trata, pois o pensamento social da
Igreja é primariamente positivo e construtivo, orienta uma ação
transformadora e, neste sentido, não deixa de ser um sinal de esperança que
brota do coração amoroso de Jesus Cristo. (EG 183)
O discurso aos movimentos populares na Bolívia teve “mudança” como palavra-chave -
1. /.../ Se é assim – insisto – digamo-lo sem medo: Queremos uma mudança,
uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável:
não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o
suportam as comunidades, não o suportam os povos.... E nem sequer o
suporta a Terra, a irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco.
Esta mudança não vem de cima para baixo, mas os movimentos populares são
protagonistas, seus semeadores, a partir do que o Papa entende como um processo de
mudança –
1. /.../ “Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande
medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover
alternativas criativas na busca diária dos “3 T” (trabalho, teto, terra), e
também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de
mudança nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem!
2. Vós sois semeadores de mudança. Aqui, na Bolívia, ouvi uma frase de que
gosto muito: «processo de mudança». A mudança concebida, não como algo
que um dia chegará porque se impôs esta ou aquela opção política ou porque
se estabeleceu esta ou aquela estrutura social. Sabemos, amargamente, que
uma mudança de estruturas, que não seja acompanhada por uma conversão
sincera das atitudes e do coração, acaba a longo ou curto prazo por
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A Doutrina Social do Papa Francisco
burocratizar-se, corromper-se e sucumbir. Por isso gosto tanto da imagem do
processo, onde a paixão por semear, por regar serenamente o que outros
verão florescer, substitui a ansiedade de ocupar todos os espaços de poder
disponíveis e de ver resultados imediatos. Cada um de nós é apenas uma
parte de um todo complexo e diversificado interagindo no tempo: povos que
lutam por uma afirmação, por um destino, por viver com dignidade, por
«viver bem».
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Infelizmente algumas pessoas olham com desconfiança a DSI por julgarem-
na reacionária e favorável à manutenção do status quo burguês. Para outras, esta é uma
temática enfadonha por causa de citações de documentos de Igreja e nomes de Papas. O
Papa João XXIII, em 1961, pedia que essa doutrina fosse conhecida e praticada por
todos os filhos da Igreja e pessoas de boa vontade, insistindo para que fosse ensinada
nas paróquias, bem como nas escolas e universidades católicas e associações de leigos
(MM 220-222). Atualmente o Papa Francisco tem recomendado também no estudo e
aprofundamento da DSI (EG 184), sobretudo aos jovens, lançando em Cracóvia o
Docat, o compêndio da DSI para jovens, pedindo que eles fossem a DSI viva e em
movimento. O fato é que a DSI ganha em visibilidade com o atual Pontífice, não
somente pelos seus ensinamentos, mas pelo que ele é. Vida longa ao Papa Francisco.
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