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Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
A encenação de Roda Viva de Chico Buarque em 1968: diálogos e apontamentos sobre a historicidade na cena teatral
Jacques Elias de Carvalho
Mestrando em História - UFU
Articular historicamente o passado não significa
conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa
apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo. (Walter
Benjamin)
A década de 1960 foi um período de intensa agitação cultural. Desde o início
da década, o panorama era de diversas possibilidades engendradas por diversos
grupos sociais que encontravam “respaldo” no governo de João Goulart. Tais grupos
vislumbravam, na diversidade das manifestações artísticas, a possibilidade de
mudanças. Zuenir Ventura afirma que:
“serão os nossos anos de chumbo, quando essa geração solar, escancarada e
comunicativa, troca as ruas pela paisagem lunar da clandestinidade – para se
enfurnar nos soturnos aparelhos, ou para mergulhar nos subterrâneos da
droga. A nossa história é a de 68, ou melhor, uma das possíveis histórias de
um período rico demais para ser apreendido em uma só visão”.1
Uma efervescência cultural extremamente vivaz e prioritariamente coletiva
revelava as possibilidades de transformação social e via-se na arte daquele momento
histórico um instrumento de luta. Dessa maneira, a criação cultural foi um dos
importantes pólos de discussão da realidade nacional, interferência e resistência no
período ditatorial. Assim, o teatro, a música, a poesia e muitas outras manifestações
formaram um caleidoscópio de possibilidades que perpassou quase todas as
discussões, questionamentos, expectativas sociais e transformações políticas.
O ano de 1968 é um momento de redirecionamento dessas manifestações
culturais, pois o recrudescimento das práticas autoritárias demonstrava a truculência
do governo em relação aos movimentos de contestação. Contudo, antes de tal
radicalização, podemos destacar como propostas o papel dos artistas e intelectuais
frente às massas populares, o conceito e a função da arte na sociedade brasileira na 1 VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 15.
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tentativa de conscientização política da população2. Após estas experiências, com o
golpe de 1964, a forma de atuação desses artistas começa a ser objetivo de uma
revisão crítica mais aguda por volta do final da década, especificamente nos anos de
1967/68. Um conjunto significativo de artistas e intelectuais procuravam uma nova
forma de expressão estética, artística e de inserção no mercado cultural. A chamada
vanguarda formalista mais radical (Concretismo, Nova Objetividade, Música Nova),
contraria às formas de representações tradicionais da nação, aproximava desse grupo
de “dissidentes”, estimulando a formação de uma nova perspectiva estético-ideológica.
Assim, vale ressaltar diversas produções artísticas que marcaram de forma
singular o período como o Cinema Novo3 de Glauber Rocha, nas artes plásticas a
exposição Tropicália4 de Hélio Oiticica, na música, as canções como Domingo no
Parque de Gilberto Gil e Alegria, Alegria de Caetano Velloso, apresentadas pela
primeira vez durante o Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, em
outubro de 1967, foram responsáveis pela emergência de novos atores e de uma nova
forma de contestação à ordem estabelecida. Tal movimento que não apresentava uma
unicidade de propostas e ficou conhecido posteriormente por Tropicalismo.5
É nesse contexto que desponta a figura do encenador José Celso Martinez
Correa. À frente do Grupo de Teatro Oficina de São Paulo6, juntamente com Fernando
2 Para saber mais, consultar: RIDENTI, Marcelo. Em busca do Povo Brasileiro: artistas da revolução, do
CPC à era da TV. São Paulo: Record, 2000. Nesse livro o autor retoma o conceito de “revolucionário
romântico” de Michel Lowy para pensar a questão do engajamento artístico nos anos de 1960 e suas
contribuições para o debate sobre o papel do intelectual naquele período. 3 O filme Terra em Transe foi produzido por Glauber Rocha em 1966 e desde então tem sido referência,
por diversos autores, para a análise histórica do tropicalismo. 4 A exposição Tropicália foi exibida pela primeira vez no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em
abril de 1967. Tropicália consistia em um ambiente formado por duas tendas, que o autor chamava de
penetráveis. Areia e britas são espalhados pelo chão, araras e vasos com plantas completavam o
ambiente tropical. Depois de atravessar uma espécie de labirinto, já dentro de uma tenda principal, o
público quase às escuras se deparava com um aparelho de televisão devidamente ligado. Além das obras
ambiências (para serem penetradas) temos também a criação dos chamados parangolés (para serem
vestidas) se inspiram numa nova relação estética com a arte e cultura dos morros cariocas. As
ambiências são inspiradas nas bricolage das moradias do morro e os parangolés nos adereços das
escolas de samba. 5 PATRIOTA, Rosangela. A cena tropicalista no Teatro Oficina de São Paulo. Revista História. São Paulo:
Editora da UNESP, 2003, p.135/163. 6 “...Foi no ano de 1958 que um grupo de teatro nasceu dentro da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco. O nome ainda não era o Teatro Oficina. Tudo aconteceu quando um grupo de estudantes de
direito, dentre os quais José Celso Martinez Correa, Carlos Queiroz Telles e Hamir Hadad, resolveu
encenar duas peças: Vento Forte para Papagaio Subir de José Celso Martinez Correa e A Ponte de
Carlos Queiroz Telles ... Eles não representavam e nem tinham o nome de nenhuma instituição
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Peixoto, Ítala Nandi, Renato Borghi e Etty Fraser, que vieram integrar o grupo
posteriormente, realizou espetáculos com uma linguagem cênica muito forte,
dialogando intensamente com a realidade nacional ao longo da década de 1960, como
é o caso de O Rei da Vela de Oswald de Andrade e Na Selva das Cidades de Bertolt
Brecht. Nas palavras de Fernando Peixoto:
“...Ainda no princípio afirmou-se diante da crítica lançando um novo autor que
logo em seguida encerraria sua promissora carreira como dramaturgo para
transformar-se no mais criativo e corajoso encenador do teatro brasileiro
contemporâneo (José Celso Martinez Corrêa)...”7.
Além de sua atuação junto ao Teatro Oficina, José Celso foi responsável pela
encenação de Roda Viva, texto de Chico Buarque de Hollanda, no ano de 1968. É o
único trabalho do diretor fora do Teatro Oficina. A peça, uma comédia musical em dois
atos, narra a trajetória da personagem Benedito Silva. Ao longo da peça, o anônimo é
transformado em um ídolo das massas chamado Ben Silver. Tendo como seu
empresário a personagem Anjo, todos os créditos dessa mudança são elevados ao
papel da televisão nessa sociedade massificada. Outra personagem importante é o
Capeta, sempre procurando alguma brecha para destruir esse ídolo forjado na
indústria fonográfica.
Ao longo da peça, outras personagens ocupam lugar importante no enredo,
como Juliana, mulher de Benedito Silva, Mané, o amigo sambista que não consegue
entrar nessa indústria musical, portanto é um dos maiores críticos de Benedito. Devido
a alguns “problemas”, o ídolo Ben Silver é obrigado a trocar de nome, tornado-se
Benedito Lampião, o cantor de protesto mais badalado do país. Na seqüência,
acontece uma série de escândalos e para salvar a sua reputação, Benedito Lampião
morre. Morre-se um ídolo, coloca-se outro no lugar. Juliana agora será a viúva que
entrará na engrenagem da Roda Viva da fama.
De todas as polêmicas que Roda Viva protagoniza, a maior vítima acaba sendo
ela mesma. Quando se apresentava em São Paulo no Teatro Galpão, o espetáculo foi
invadido por um grupo de extrema direita conhecido por C.C.C (Comando de Caça aos
Comunistas). Os cenários foram destruídos, o elenco foi agredido e seguido de um
acadêmica, pelo contrário, eram, de certa maneira, um grupo marginalizado dentro da sua própria
faculdade. Seu núcleo principal existiu antes das Arcadas, na cidade de Araraquara...” In: SILVA,
Armando Sérgio da. Oficina: do Teatro ao Te-ato. São Paulo: Perspectiva, 1981, p.17. 7 PEIXOTO, F. Teatro Oficina (1958-1982): trajetória de uma rebeldia cultural. São Paulo: Brasiliense,
1982, p. 07.
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descaso das autoridades, provocando desde já uma inquietação e manifestações de
protestos por parte toda a classe artística. Após o incidente, a peça é proibida em todo
território nacional. O acontecimento foi notícia em toda a imprensa local. Segundo um
jornal da época, a invasão deu-se da seguinte maneira:
“... Às onze e meia da noite de ontem, o elenco da peça “Roda Viva”, no Galpão
do Teatro Ruth Escobar, tinha agradecido os aplausos e, já estava nos camarins,
começavam a mudar a roupa, quando ouviram os primeiros gritos e, o grande
barulho que vinha da platéia. Ninguém sabia o que estava acontecendo. Muita
gente ainda nem tinha se levantado das cadeiras, quando mais de vinte rapazes,
armados de cassetetes e revólveres, deram um grito, e começaram a depredar
tudo dentro do Teatro Galpão. Não deu tempo para nada: os guardas de três
radiopatrulhas que estavam na porta, em frente do número 209 da rua dos
Ingleses, correram, mas não puderam entrar. Foram impedidos por mais de 100
pessoas que queriam sair daquela confusão...”8.
Diante desses acontecimentos, Roda Viva figura na memória nacional como
mais um dos espetáculos destruídos pela truculência governo ditatorial, reforçada pela
atuação de grupos paramilitares de direita. Por outro lado, suscita inúmeros debates,
acadêmicos ou não, sobre as possibilidades do texto, visto como apenas um roteiro de
encenação no qual o diretor paulista imprimiu a sua “marca escandalosa” e
“agressiva”. Alguns autores já se debruçaram sobre o tema e um dos trabalhos mais
importantes sobre Roda Viva é o texto da pesquisadora Iná Camargo Costa. Para a
autora:
“Roda Viva, quando estréia em janeiro de 1968, acabou por se beneficiar da
imagem de marca do Oficina – elemento de apoio nem um pouco desprezível,
sobretudo numa estratégia de propaganda cujo target group é o grande público.
A alquimia de Orlando Miranda deve ser reconhecida no mínimo como ousada:
lançamento um dramaturgo já conhecido como compositor de sucesso na área
da MPB, seção ‘protesto’, com a assinatura do festejado diretor de maior
sucesso de São Paulo no ano de 1967 e, por extensão, com a griffe ‘Oficina’...”.9
8 O Teatro todo destruído a paulada. In: Jornal da Tarde. São Paulo, 19/07/1968, p. 03. 9 COSTA, I. C. A Hora do Teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1996, p. 176.
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Essas considerações, levadas a cabo pela autora, propiciam alguns
questionamentos diversos. Ressaltando a “jogada” empresarial do espetáculo,
questão que não podemos deixar de levar em consideração, diretor e autor são
alocados como aglutinadores de público, a presença de ambos “certifica” o êxito de
bilheteria e aumenta as possibilidades do espetáculo. Ambos, naquele momento
histórico, aglutinavam em torno de seus trabalhos, uma parcela significativa de um
público bastante jovem, consumidores de teatro e música. Em uma outra perspectiva,
o texto de Costa demonstra uma dicotomia entre texto e espetáculo, logo entre
dramaturgo e diretor. O diretor pode dar vazão a toda a sua criatividade, entendendo
por isso a possibilidade de ampliar ao máximo as potencialidades do texto, ou então
criar com apoio dos cenários e figurinos os mais diferentes subtextos, com os quais o
dramaturgo nem teria sonhado.10 Assim, “só por essas observações iniciais já se vê
que o dramaturgo seguia um caminho e o diretor cumpriu outro.11 O espetáculo criado
nos subtextos da escrita dramatúrgica é o grande deflagrador dos debates.
“Com esse material nas mãos e dicas de Artaud e Grotowski na cabeça, José
Celso não teve dúvidas em criar um espetáculo com a mais desabusada troca de
sinais, os da peça e os que vinham da vanguarda européia. De Grotowski, tratou
de reaproveitar a cena da Pietà (espetáculo O príncipe constante), variando-a até
chegar à idéia da profanação; de Artaud, tomou ao pé da letra a proposta de um
‘teatro da crueldade’, criando desde a entrada do teatro situações em que,
confortavelmente, os artistas pudessem agredir o público, inclusive fisicamente.
E, como a antropofagia de Oswald de Andrade parecia combinar bem com todas
essas idéias, tratou de tomar ao pé da letra também a idéia de canibalismo,
encenando-a com o verismo de um Antoine, no momento da devoração do
ídolo”.12(grifos nossos)
Nesse momento perde-se a inserção do espetáculo em um determinado
momento histórico e a discussão aproxima-se da identificação, ou seja, do gosto
estético. Tais considerações deslocam a cena do seu lugar, perdendo as
possibilidades e os questionamentos localizados, tornando-se a-histórico. Fernando
Peixoto oferece outras questões para o debate:
10 Ibidem, p. 177. 11 Ibidem, p. 178. 12 Ibidem, pp. 182-183.
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“Trata-se, é preciso afirmar, de um espetáculo extraordinário. O texto de Chico,
que chegou a estar antes em cogitação no Oficina, era apenas um roteiro. José
Celso, depois de O Rei da Vela, teve uma compreensão lúcida e sensível do
material que tinha nas mãos. Soube retirar do texto imaturo um espetáculo
inesperado e surpreendente inclusive pela coragem de penetrar, sem pudor, no
desnudamento do mito. Um ímpeto tribal definia a vitalidade intensa do
espetáculo”.13
Saudando o espetáculo como uma realização vigorosa, Fernando Peixoto
revela que Roda Viva dava uma dimensão maior ao que foi chamado de “teatro de
agressão” e contrapõe à visão de que o espetáculo afastou o público do teatro, pelo
contrário, a carreira brilhante, com casas lotadas no Rio e São Paulo, depois em Porto
Alegre, é uma “marca registrada” de Roda Viva.
Outro trabalho que recoloca Roda Viva em destaque é o balanço feito por Yan
Michalski. Para ele, o ano de 1968 é peculiar, pois a censura torna-se ainda mais
implacável apertando o cerco ao teatro.
“Dentro deste quadro de pesadelo, o teatro faz o que pode. E o faz com uma
raiva que as circunstância justificam e que talvez se reforçada pelos ecos que
anunciam a radicalização dos movimentos da juventude em vários países (...) A
expressão mais incisiva dessa raiva é o espetáculo mais polêmico do ano, Roda-
viva, de Chico Buarque, cuja estréia no Rio, logo no início de janeiro,
desencadeia uma tempestade de protesto e de adesões entusiásticas.”.14
Ao situar o espetáculo em um movimento mais amplo de radicalização da
juventude e do processo de acirramento do regime ditatorial brasileiro, o autor tenta
uma abordagem histórica do espetáculo. Ainda assim, qualifica o espetáculo como
uma realização ingênua, não obstante alguns momentos de grande ritualística e a
magnífica música de Chico; mas a sua ousadia o credencia como um intérprete
autêntico do seu tempo.15
É nessa perspectiva, como um intérprete do seu tempo, que nos interessa o
espetáculo Roda Viva. Deflagrador de inúmeras polêmicas, pois os diversos
comentadores do espetáculo, que não se esgotaram aqui, não conseguiram realizar
essa tarefa, ou pelo menos, uma realização a contento, pois deixaram o espetáculo 13 PEIXOTO. F. Op. Cit. p. 67. 14 MICHALSKI, I. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989, p.
35. 15 Ibidem, p.35.
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como um fragmento esquecido de radicalização cujo repensar nos insere num teatro
“devorador”, “agressivo”, “artaudiano”, sem nenhuma reflexão histórica.
Pois bem, quando estabelecemos a dicotomia entre autor e encenador logo
perdemos a dimensão do espetáculo teatral. Claro que texto e cena representam
momentos diferenciados, possuem sua historicidade dependendo do seu enfoque,
porém não são dicotômicos, ambos, no caso de Roda Viva, representam a junção de
duas grandes figuras no cenário nacional naquele momento histórico. Dois artistas,
com trajetórias diferentes, que se cruzam para a elaboração de uma obra de arte.
Toda a criação, nas entrelinhas do texto dramático, do diretor, foi saudada pelo autor
como ingrediente enriquecedor desse espetáculo. Enquanto Chico vivenciava todo um
processo de idolatria, criação do “mito de olhos verdes”, do grande interprete nacional
de A Banda, José Celso experimentava todo um processo de criação cênica
extremamente conturbado para aquele momento histórico.
O sufocamento das propostas das esquerdas, a opção pela luta armada, a luta
contra censura, o papel dos intelectuais frente ao governo criava um momento
histórico extremamente conturbado. José Celso dialogava com todas essas
proposições e conseguiu criar um espetáculo intenso e que conseguia demonstrar a
situação de uma significativa parcela de artistas.
A peça Roda Viva protagoniza desta forma um episódio decisivo nos embates
do diretor Jose Celso Martinêz Correa com o acirramento da censura no final da
década de 1960. Sendo referência como um dos grandes “happenings” do momento,
tendo na base de sua realização um dos principais teóricos do teatro moderno, o
francês Antonin Artaud16, o espetáculo é mais do que uma simples fonte documental.
Representa uma parcela pulsante de artistas, intelectuais e evidencia a criatividade e a
radicalização na luta contra a repressão e na busca de novas saídas num momento
crítico da realidade nacional.
Para o historiador, a cena, no caso o espetáculo Roda Viva, é também um
importante documento de pesquisa, pois é a centelha que pulsa em um determinado
momento histórico. O estudo da encenação concerne em abordagem mais ampla do
fenômeno teatral. A cena, enquanto acontecimento, não consegue dar conta da
dimensão, do emaranhado de informações que abarcam o processo de criação da
16 Antonin Artaud é um dos teóricos mais importantes do teatro moderno. Passou grande parte de sua
vida doente e internado em manicômios. Sua proposta teatral vislumbra uma integração entre ator,
personagem e espectador par uma realização total do rito teatral. Para saber mais sobre Artaud,
consultar: ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993, FELÍCIO, Vera
Lúcia G. A procura da lucidez em Artaud. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 1996 e VIRMAUX, Alain.
Artaud e o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2000.
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obra teatral. Portanto, a recuperação do fenômeno teatral pelo viés da encenação é
uma das possíveis histórias no processo de construção do conhecimento
historiográfico.
O teatro, em toda a sua dimensão e possibilidades, caracteriza-se pela sua
capacidade de reflexão sobre a sociedade na qual está inserido. Dessa maneira, não
consiste num reflexo do real ou como reprodução do mesmo, mas, uma referência, às
vezes mais explícita ou apenas fazendo pequenas alusões à determinadas questões,
postuladas na realidade. Isso pode ser aplicado ao espetáculo e a qualquer elemento
que compõe o teatro enquanto uma atividade artística diferente das demais. Portanto,
“aos olhos do historiador a encenação firma-se como arte autônoma – ‘em pé de
igualdade com as outras...” 17.
A afirmação de Roubine, não descaracteriza texto dramático, pelo contrário,
revela a necessidade e urgência da pesquisa que tenha como objetivo recuperar a
história do espetáculo, incorporando o texto teatral como parte do fenômeno. Nesse
sentido, a cena também configura-se como uma das possibilidades de apreender as
nuanças de um determinado momento histórico. Ao lado do texto dramático, a cena,
apesar da aparente efemeridade, o que não revela a impossibilidade de pesquisa,
traduz os anseios de um determinado personagem que ordena os diversos elementos
no palco na tentativa de dar sentido aos segmentos do espetáculo. Assim:
“reconhecemos o encenador pelo fato de que a sua obra é outra coisa - e é mais
– do que a simples definição de uma disposição em cena, uma simples
marcação das entradas e saídas ou determinações das inflexões e gestos dos
intérpretes. A verdadeira encenação dá um sentido global não apenas à peça
representada, mas à prática do teatro em geral. Para tanto, ela deriva de uma
visão teórica que abrange todos os elementos componentes da montagem: o
espaço (palco e platéia), o texto, o espectador, o ator...” 18.
Nesse sentido, é importante citar o trabalho de Luiz Fernando Ramos19 que faz
alusão, como o próprio autor afirma, a uma parte da literatura dramática marginalizada
pelos estudiosos. “O Parto de Godot e outras encenações imaginárias: a rubrica como
poética da cena” é um trabalho que estabelece uma ligação entre o texto e o
17 ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da encenação teatral. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998,
p.14. 18 Ibidem, p. 24. 19 RAMOS, Luiz Fernando. O Parto de Godot e outras encenações imaginárias: a rubrica como poética da
cena. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1999.
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espetáculo através das rubricas. “Pressupõe, também, que as rubricas sejam, no
fenômeno teatral, um território privilegiado de interseção entre os planos literário e
cênico...” 20
Segundo Ramos, o trabalho que focaliza as rubricas não hierarquiza o texto em
relação ao espetáculo, mas busca as relações e eventuais tensões que existem nos
dois níveis do processo teatral. Ainda sobre as rubricas vale ressaltar:
“Como espaço da literatura dramática que oferece ao pesquisador um ponto
privilegiado de observação, será sempre o vestígio de uma encenação passada
(real ou imaginária) e o mapa de todas as encenações futuras... o registro
literário de uma certa poética cênica, o vestígio ou a marca de um método. O
estilo de cada encenador e, ou, dramaturgo, quando exerce essa condição de
montador de um espetáculo imaginário, estará estampado nas didascálias.”21
Nesse breve texto, apontamos algumas discussões que norteiam nosso
trabalho inicial de Mestrado em História. Diversas questões ainda estão para serem
problematizadas sobre a inserção do espetáculo Roda Viva no ano de 1968.
20 Ibidem, p. 15. 21 Ibidem, p. 16/17.