A flor do lado de lá

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Pacto pela Alfabetização na Idade Certa - Secretaria Municipal da Educação de Marília - SP 2013 Oitavo encontro

Transcript of A flor do lado de lá

Roger Mello diz...

O livro é certamente um dos objetosartísticos mais plenos. Porque desde suaorigem, o livro é anteparo da imagem e dapalavra.

Porque pode ser lido da maneira que o leitorquiser.

Porque nunca será lido da mesma maneira.

Porque é um objeto e pode ser modificadopelo leitor.

Porque sempre modifica o leitor.

Porque apesar de ser um objeto, seuconteúdo permanece mesmo a distância.

Porque é tão simples quanto é complexo.

“A leitura visual não se restringe adecodificar os elementos narrativos,simbólicos, e o contexto em que se insere oobjeto artístico. A imagem possui ritmo,contraste, dinâmica, direção e, ainda, umasérie de outras características que nãosuportam ser traduzidas em palavras. Aimagem tem lá os seus silêncios (...)”.

“É de se espantar, portanto, que ainda hojese desencorajem crianças alfabetizadas ase expressarem de maneira não-verbal. Apalavra não substitui o ato de desenhar.Através do desenho organizamos elementosinsubstituíveis da observação e doraciocínio gráfico (...)”.

O que destacar...

A cena 1 em preto e branco aparece aspersonagens centrais da narrativa: umaanta e uma flor. Procurar descrever osespaços em que cada personagem seencontra e as características físicas eemocionais de cada um. Quais os indíciosdas características emocionais?

A cena 2 em cores que contrastam com ofundo branco, narra a alegria da anta aoperceber que a flor desabrochou. Chamar aatenção para a mudança de comportamentoda anta.

A cena 3 apresenta o conflito da anta aover a distancia que a separa da flor.Analisar as ações da anta e quais as suasintenções.

Na cena 4 a anta toma a decisão de saltar abarreira que a separa da flor. Observar amudança de enquadramento da cena e areação da anta.

Na cena 5 mostra apenas a flor, no mesmoângulo da cena anterior. Observar que aanta não se encontra no espaço e procurarinferir o motivo.

A cena 6 apresenta um golfinho que, numsalto, salva a anta e a lança para fora daágua. Analisar a expressão da anta. O que ogolfinho poderia representar?

Na cena 7 a anta está deitada de barrigapara cima. Inferir o motivo da personagemestar nessa posição. Observar que apareceum novo personagem na narrativa. Poderiaser outro animal marinho? O que essepersonagem pode representar na narrativa?

A cena 8 marca o tempo e dá continuidade ao conflito: é noite de lua cheia. Anta e flor continuam separadas. O que a lua cheia poderia representar?

Na cena 9 a anta aparece encolhida com acabeça apoiada na superfície, mas com oolhar em direção à flor do lado de lá. Porque ela está nessa posição?

Na cena 10 um novo elemento surge nanarrativa, distanciando o ângulo paraampliar o cenário, o autor revela que a florestá na superfície de uma baleia enormesob a água. Observar a reação da antadiante disso. O que a baleia poderiarepresentar?

A cena 11, em preto e branco, narra omovimento da baleia em sentido oposto aoda superfície em que se encontra a anta.Qual o indício de que a baleia estaria indopara o sentido oposto?

Novamente aproximando a imagem, a cena12 traz a seqüência que dá desfecho anarrativa. A cena mostra somente a caudada baleia num mergulho e a anta com a bocaaberta e os olhos arregalados, em suasuperfície.

Na cena 13, em preto e branco, a antaaparece só. Observar as reações dapersonagem.

Concluindo a narrativa, a cena 14 abre oângulo à direita e a anta aparece na margemesquerda do cenário. Chamar a atençãopara a reação da personagem, da imagemque aparece à direita do cenário e do queestá implícito na narrativa.

Análise da história

A fábula conta a história de uma anta,encantada por uma flor separada dela por umtrecho de mar. O ícone da anta gera dúvidasquanto ao animal representante e é por meiodo texto da contracapa que se evidencia seruma anta: “Roger Mello conta uma históriahumanística de uma anta”. O texto tambémtraz uma interpretação da narrativaassociando a atitude e o desejo da anta comreações humanas: é humano chorar pelo quenão se tem, desejar a beleza distante.

O signo anta pode representar umafigura de linguagem. Como sugere Ferreira(1986, p. 27) no Novo dicionário Aurélio daLíngua Portuguesa, anta pode ter o sentidode pouco inteligente, tolo. No desfecho dahistória esse sentido fica bem evidente, aoapresentar várias flores da mesma espécie aoalcance da anta.

As primeiras seqüências da narrativa (cenasde 1 a 7) sugerem, por meio da alternância decenários em preto e branco e em cores, oestado de humor da anta. Para as seqüências empreto e branco, observa-se a personagem emmomentos de tristeza, dúvida e desolação. Para asseqüências em cores, observa-se a personagemalegre, tomando uma decisão e sendo salva. Asdemais seqüências (de 8 a 14), embora sigam amesma alternância de cores, ilustram a desolação, oespanto e o desespero da personagem.

A narrativa desperta no leitor umasensação de constante movimento, a começarpelas pequenas ondas do mar que balançam,pelos saltos da anta, pela movimentação dogolfinho e da baleia, até mesmo pelo choro dapersonagem que desperta a impressão de umaseqüência ritmada.

Na cena 1, o indício da tristeza está naexpressão da anta, com a curva da bocavoltada para baixo e a lágrima despontandonos olhos. Não é somente a distancia queprovoca a tristeza da anta, mas também ofato da flor não ter desabrochado. O nãodesabrochar significa a falta de percepçãoda flor para a vida, um estado desonolência, o amor não correspondido. Noentanto a posição da anta é de espera.

Na cena 2, a flor abre-se e geracontentamento na anta, que salta ao percebero despertar da flor. O único indício de amorcorrespondido está no desabrochar da flor,pois as demais seqüências narram uma florespectadora. Um recurso que poderia geraralguma reação na flor poderia ser, porexemplo, a representação da haste emposições diferentes: ereta ou com maiorinclinação.

A cena 3, retrata a dúvida, ainsegurança da personagem sobre a atitudede se lançar ao mar e alcançar a flor.

Na cena 4, a anta toma uma decisão eesta atitude de coragem gera novocontentamento.

Na cena 5, há uma sensação de vazio,pois a personagem principal não estáretratada.

Conclui-se que a anta afundou naágua. A leitura dessa cena gera uma ligeiraqueda de movimento, preparando o leitor paraa súbita ação da cena 6.

Até a cor amarelo intenso no plano defundo traz o efeito de ação. Um golfinhoarremessa a anta para fora da água. Ogolfinho simboliza a amizade, ocompanheirismo e a brincadeira.

Um caranguejo faz companhia para aanta na cena 7. A anta está deitada debarriga para cima, refazendo-se do susto.

O caranguejo representa uma açãomal sucedida, o andar para trás e voltarao ponto inicial.

A cena 8, apresenta o forte indício dapassagem do tempo. É noite, céu e marganham uma tonalidade azul escuro. Umaimensa lua cheia traz a luminosidade para ocenário. A lua cheia pode ser um sinal demaré alta. Anta e flor permanecem imóveis,em atitude de espera. Esta cena produz noleitor uma sensação de esperança e soluçãopara o conflito, mas o que se vê na cenaseguinte é a anta em total desolação,encolhida e cabisbaixa.

Na cena 10, por meio de um recurso dedistanciamento das imagens (um zoom) a ilustraçãoganha nova dimensão revelando mais o mar e o que hásubmerso: uma imensa baleia que serve de superfíciepara a flor, ela é uma “baleia – ilha”. A baleia provocaum movimento diferente no cenário e deixa a anta emposição de alerta. Os olhos abertos da baleiaindicam seu despertar e gera no leitor umatensão. Há naturalmente um fascínio pela baleia quesimboliza a escuridão abissal e misteriosa, oinconsciente. Simboliza também a grande mãe domar e a sabedoria.

No mito do herói, a luta da baleia oucontra outra espécie de animal marinho degrande porte se constitui num símbolo deluta pela libertação da consciência davitória do consciente sobre o inconsciente.Nessa fábula a anta precisa despertar paraoutras possibilidades a seu redor.

Na cena 11, é confirmada a intenção dabaleia em se retirar. O indício do movimentode saída está na posição oposta da baleia eda flor em relação à anta. A expressão daanta é de espanto, pois ainda não lhe foirevelado que a baleia é a ilha. Espanto maior éa sua expressão na cena seguinte em que abaleia mergulha levando a flor.

Na cena 13, a anta está só, triste, com umadas patas levantadas, como se estivesse acenandoum adeus. E, finalizando, na ultima cena, o autoramplia o cenário para a direita, para mostrar maisdetalhes da superfície em que a anta está amparada.Esta cena representa a anta em prantos, esgoelandodesesperadamente, enquanto surgem as suas costasvárias flores da mesma espécie da flor levada pelabaleia. São ramos de flores viçosas, algumas ainda embotão. As gotas de água e as joaninhas que passeiampor elas dão a sensação de frescor, alegria ejuventude. As flores comunicam ao leitor que odesespero da anta é desnecessário.

Outros comentários sobre a obra...

O livro A flor do lado de lá, de RogerMello (2004), retrata a possível cegueira deuma anta ao que lhe é próximo. A narrativa écomposta apenas por imagens em seqüênciasalternadas em preto e branco e coloridas.

A primeira impressão que se tem é que as paginasforam propositalmente feitas em preto e branco parasugerir momentos de conflito da personagem, e asimagens em cores para sugerir os momentos de superação,alegria, idéia. Na primeira seqüência de imagens em pretoe branco, a anta está triste porque a flor está do lado delá e não desabrochou. Na segunda, que é colorida, ela estáfeliz porque teve uma idéia. Na terceira seqüência,entristece novamente, indecisa, com medo da água ou pelaincapacidade de pular; e na quarta se investe de corageme decide pular para o lado de lá. Porém, as últimasseqüências deixam esta disposição e narram umaseqüência de conflitos tanto em cores quanto em preto ebranco.

Em entrevista informal com o ilustrador RogerMello, na 26ª Feira do Livro de Brasília, ao relatar aleitura feita das imagens, ele afirmou que não teve aintenção de conduzir a narrativa por estainterpretação e que a alternância das seqüências empreto e branco foi para diminuir o custo da edição.Nas edições seguintes, o ilustrador foi consultadosobre a possibilidade de colorir todo o livro e eledecidiu que deveria manter a disposição. Como bemlembrado por Roger Mello nessa ocasião, o preto e obranco também são cores, no entanto, para explicarmelhor as seqüências, foi usado o termo “em cores”para as ilustrações que usam muitas cores.

É tentando vencer a distância que a separa daflor que a anta passa pelos conflitos – indicados pelaexpressão facial da personagem. Em algunsmomentos ela está triste e desanimada, em outros vêa possibilidade de vencer o obstáculo e se alegra. Noentanto, toma a importante decisão: saltar oobstáculo. Sua intenção é mal sucedida, o que gerauma frustração. A Anta afunda no mar e é salva porum golfinho que a arremessa de volta a suasuperfície. O golfinho representa a amizade e ocompanheirismo. Para se refazer do susto, a anta tema companhia de um caranguejo.

A presença do caranguejo é sinal da tarefaincompleta, é andar para trás, voltar ao pontoinicial. Muito tempo se passa e a anta continua namesma posição: a de contemplar a sua flor semencontrar solução para o conflito. Usando o recursodo distanciamento da imagem, o ilustrador apresentao cenário que completa a ideia desta separação: asuperfície em que a flor se instalou é uma baleia. Aresolução se dá de forma inesperada, pois a baleiaacorda e desaparece no mar. A baleia representa asabedoria, a grande mãe do mar que liberta aanta de uma idéia fixa e por isso não consegueenxergar o que está ao seu redor.

A anta acompanha a movimentação dabaleia com perplexidade e quando não vê maisa flor chora desesperadamente. O desfechoda narrativa pode conduzir a umainterpretação de frustração pela anta não terconseguido atingir o seu objetivo, ou para oleitor imaginativo, a narrativa pode conduzirao entendimento que, em breve, a anta seráconsolada por várias outras flores. A grandemãe do mar a libertou da paralisia geradapelo seu fascínio pela flor.

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