Post on 31-Oct-2015
Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira
Wellington Trotta
John William Waterhouse-Penelope and the Suitors(1912)
A HERANA DE PENLOPE _______________________________________________
ESTUDOS PRELIMINARES PARA UMA HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
RIO DE JANEIRO agosto de 2008
2
Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira
Bacharel em Comunicao Social pela FACHA. Bacharel e Licenciada em Filosofia pela UERJ. Especialista e Mestre em Filosofia pela UERJ Bacharel em Direito pela UNESA. Advogada e Professora de Filosofia do Direito, tica Geral e Profissional e Filosofia e tica na Universidade Estcio de S
Wellington Trotta
Bacharel em Direito pela UGF. Licenciado em Direito pela FANIP. Licenciado em Filosofia pela UERJ. Mestre em Cincia Poltica (Poltica e Epistemologia) pela UFRJ. Doutorando em Filosofia pelo IFCS-UFRJ. Advogado e Professor de Filosofia do Direito e Filosofia e tica na Universidade Estcio de S
3
Sumrio
Pg.
Introduo Filosofia: para qu?.........................................................................................
I. A Filosofia e o surgimento de uma nova conscincia.................................................
II. Os filsofos pr-socrticos e o pensamento poltico.................................................
III. O perodo Socrtico....................................................................................................
IV. A dimenso poltica em Plato e a crtica de Aristteles...........................................
V. Estoicismo: a natureza como fundamento da Lei......................................................
VI. A cristandade medieval e a Filosofia..........................................................................
VII. O pensamento jusnaturalista.....................................................................................
VIII Thomas Hobbes: a garantia dos direitos individuais..................................................
IX Direitos civis como extenso dos direitos naturais: da liberdade radicalidade
democrtica................................................................................................................
X. A filosofia prtica de Immanuel Kant..........................................................................
XI. O positivismo jurdico..................................................................................................
XII. A crtica tridimensional realeana ao normativismo-lgico de Kelsen.........................
Concluso...............................................................................................................................
Referncias Bibliogrficas....................................................................................................
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Prezado (a) leitor (a):
Este material foi elaborado para as aulas de Filosofia Geral e Jurdica do Curso de Direito
da Universidade Estcio de S. Nesse sentido, ressaltamos que se destina to somente para uso
interno, sendo vedada a sua utilizao sem autorizao expressa dos autores. A obra encontra-
se depositada no Ministrio da Cultura/Fundao da Biblioteca Nacional.
Clara Maria C.B. de Oliveira
Wellington Trotta
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INTRODUO
Filosofia: Para qu?
Muitos indagam: por que estudar Filosofia? Qual a importncia da Filosofia para o saber
de modo geral, seja ele jurdico, poltico ou social? Nem sempre as respostas que formulamos
so convincentes para esclarecer sobre as conseqncias desse saber. A grande maioria das
pessoas no tem contato com a Filosofia durante o ensino fundamental ou mdio, o que torna
nossa tarefa ainda mais rdua. O que pior, inmeras vezes percebemos que a falta de
interesse pela leitura de maneira geral contribui tambm para certo desinteresse pelo estudo
de Filosofia.
Poucos se interessam por essa disciplina, geralmente ministrada em apenas um
semestre nos primeiros perodos da graduao. Todavia, muitos profissionais do Direito
descobrem a Filosofia em meio aos seus estudos de ps-graduao e experimentam certa
ansiedade em tentar suprir essa falta em sua formao intelectual. Nesse sentido, temos que
ressaltar que estudar Filosofia significa investigar os fundamentos de nossa prpria cultura, nos
impondo, por sua vez, a necessidade de irmos ao que consideramos fonte inspiradora de nosso
patrimnio intelectual: a Grcia antiga. Logo, segundo Werner Jaeger (1888-1961):
A Grcia representa, em face dos grandes povos do Oriente, um progresso fundamental, um novo estdio em tudo o que se refere vida dos homens na comunidade. Esta se fundamenta em princpios completamente novos. Por mais elevadas que julguemos as realizaes artsticas, religiosas e polticas dos povos anteriores, a histria daquilo a que podemos com plena conscincia chamar cultura s comea com os gregos.1
preciso enfatizar que a Filosofia oferece uma abordagem singular para tratar dos
problemas fundamentais contemporneos, em particular, aqueles relacionados ao nosso
cotidiano, centrados na eterna insocivelsociabilidade humana.
Ademais, insistimos em apontar que a histria do pensamento filosfico, que se inicia
com o povo grego, por volta do sc. VII a.C. constitui as bases de nossa prpria cultura, ou seja,
configura o nosso ponto de partida, ou o incio do pensamento racional. Assim, ao lermos um
texto filosfico colocamos em ao todo o nosso sistema de valores, crenas e atitudes que
refletem o grupo social ou a classe social a qual pertencemos e no qual se deu nossa
socializao primria, isto , o meio-valor em que fomos criados. Podemos ento analisar como
1 JAEGER, W. Paidia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1989: 4. [grifo nosso]
6
esse sistema de valores interfere em nossa viso de mundo. Nesse horizonte, a Filosofia nos
proporciona uma reflexo sobre ns mesmos e o nosso prprio pensamento. Nesse caso a
Filosofia ensina a estruturar o prprio pensamento a partir da formulao de perguntas
precisas cujo exame nos leva a consideraes reflexivas.
Ingressar nos estudos filosficos significa, fundamentalmente, assumir a rdua tarefa
do autoconhecimento que implica a transformao do prprio olhar, muitas vezes desatento,
em um olhar cuidadoso diante das obviedades. Significa abolir a pressa e o imediatismo. A
Filosofia significa, sobretudo, a formao de uma atitude crtica diante da vida. Como afirma
Immanuel Kant (1724-1804) em suas lies de Lgica: filosofar algo que s se pode aprender
pelo exerccio, pelo uso prprio da razo. (...) O verdadeiro Filsofo, portanto, na qualidade de
quem pensa por si mesmo, tem que fazer um uso livre e pessoal de sua razo, no um uso
servilmente imitativo. 2
Inicialmente deve-se compreender que Filosofia no se confunde com cultura geral, mas
estudar Filosofia implica estabelecer um dilogo com homens de notrio saber, que viveram
em outras pocas, nesse sentido consideramos crucial no s conhec-los como tambm
compreender seus costumes, pois assim podemos avaliar mais lucidamente os nossos.
Confirmando a presente tese, citamos as clebres palavras de Ren Descartes (1596-1965) na
obra Discurso do Mtodo, enfatizando que:
A leitura de todos os bons livros qual uma conversao com as pessoas mais qualificadas dos sculos passados, que foram seus autores, e at uma conversao premeditada, na qual eles nos revelam to-somente os melhores de seus pensamentos. (...) bom saber algo dos costumes de diversos povos, a fim de que julguemos os nossos mais smente e no pensemos que tudo quanto contra os nossos modos ridculo e contrrio razo, como soem proceder aos que nada viram. 3
Assim, intencionalmente se cuidou de apresentar um trabalho propedutico que
pudesse oferecer uma exposio clara e indispensvel, capaz de configurar um apoio til para
posteriores estudos de Filosofia. Nesse sentido, pesquisamos autores e doutrinas que julgamos
essenciais para o estudo jurdico-poltico. Gostaramos ainda de esclarecer, preliminarmente,
que o presente trabalho tem objetivo modesto, pois se procurou, ao expor, dar certa
objetividade que no comprometesse a verdadeira complexidade da matria. O ponto de
partida est na noo geral da Filosofia como um saber terico e universal que fundamenta
toda a cultura ocidental, desvelando-se o imperativo de observar os diferentes problemas que
2 KANT, I. Lgica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992, A26-27.
3 DESCARTES, R. Os Pensadores. In: Discurso do Mtodo. So Paulo: Abril Cultural, 1973: 39.
7
a nossa cultura formulou ao longo dos tempos com suas respostas e terminologias acerca do
que consideravam relevantes.
Importa tambm ressaltar que a histria apresentada focaliza um dos ramos da
Filosofia, em particular, aquela que estuda a relao entre direito e poltica. Isso porque a
pesquisa foi essencialmente motivada pelo desejo de compreender melhor a relao poltico-
social a partir do devir histrico. Nesse caso as informaes apresentadas fundamentaram-se
em textos clssicos e comentadores consagrados pela tradio filosfica. Acreditamos no ter
incorrido em erros graves, buscando no esquecer que os filsofos so homens e que,
portanto, esto sujeitos s influncias de sua origem, educao e singularidade histrica.
preciso lembrar que todo pensador est fadado a ser de seu sculo, a seu contentamento ou
pesar, 4 com isso assinalamos desde j que os problemas filosficos so to antigos quanto s
inquietaes conscientes dos homens sobre o problema da convivncia humana, e se desvelam
nas concepes fundamentais acerca do Direito e do prprio Estado, a partir das realidades que
serviram como pano de fundo.
Destaca-se que a leitura de tais obras, a partir de uma abordagem filosfica, nos
permite vislumbrar que a transformao das sociedades no implica a superao pura e simples
de um passado, mas antes ressalta que esse passado existe e persiste no presente. Algumas
vezes preciso apontar caminhos que no se devem mais seguir. Nosso interesse por uma
filosofia poltica ressalta a idia segundo a qual a poltica, pertencendo histria humana,
participa do seu desenrolar gradual e do seu reencontro consigo mesma. Por conseguinte, que
importa nesse caminhar a indispensvel tarefa crtica que a Filosofia nos oferece, sem a qual
cairamos inevitavelmente num dogmatismo feroz ou num ceticismo tedioso.
Nosso objetivo tambm ampliar a crtica para com isso fornecer as condies de
possibilidade para uma reflexo filosfica sobre diversas reas do saber e sobre nossa prpria
ao. Por isso, indicamos outras leituras para que o interessado possa ampliar sua capacidade
de anlise. Dessa forma preciso no esquecer que somos como um espelho cuja imagem se
reflete para os demais. Influenciamos uns aos outros, somos mediao para outros seres
humanos e nessa inter-relao nos tornamos humanos. 5
, portanto, inquestionvel que nossa cultura pode ser considerada, em ltima anlise,
herdeira das construes gregas, ou, como alguns preferem dizer, representamos o futuro
daquilo que costumamos assinalar como grecidade. Seja como futuro ou passado intelectual da
4 MARX, K. O capital. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1994: 68.
5 LORIERI, Marcos Antnio. Filosofia na escola: o prazer da reflexo. RJ: Moderna, 2004: 7.
8
cultura grega, o que importa que somos filiados ao imaginrio poltico pensado, discutido e
belicamente defendido pelos gregos, ou melhor, nossa matriz terica passa pelo pensamento
grego, que, segundo Jean-Pierre Vernant, tem sua origem no embate poltico. 6
com esse profundo sentimento de gratido que escolhemos o ttulo fazendo meno a
uma personagem feminina, muitas vezes preterida, que aparece na Odissia e que configura o
paradigma perfeito da lealdade absoluta ao heri da Guerra de Tria. Talvez a nica mulher do
mundo grego que no sucumbiu na solido com a ausncia de Ulisses e que suportou com
astcia pretendentes que afrontaram sua casa e dilapidaram seus bens.
Penlope cujo nome etimologicamente significa pato ou ganso selvagem, porque na
cultura grega antiga era comum designar as mulheres com nomes de pssaros, casou-se com o
heri de taca, aquele que concebera pela inteligncia e no pela fora a forma certa para
derrotar Tria, o clebre Cavalo de Tria. Este foi Ulisses ou podemos cham-lo tambm de
Odisseu.
Mas atribumos Penlope o sentido da difcil trajetria da Filosofia. Penlope no
queria escolher um pretendente para ocupar o lugar do seu amado Ulisses que ficara 20 anos
na Guerra de Tria. Para ganhar tempo usou a astcia para afastar o assdio de seus
pretendentes. Prometeu-lhes que escolheria um novo consorte to logo terminasse de tecer a
mortalha de Laertes, velho pai de Ulisses.
Assim, tecia durante o dia e desfazia todo o trabalho noite para no ter que escolher
um pretendente para ocupar o lugar do seu amado. Penlope sabia que para tecer era preciso
ter pacincia e manter acesa sua lealdade, pois sabia que era preciso inicialmente fiar, ou seja,
fazer fio enrolando as fibras de l ou algodo. Tecer significa essencialmente entrelaar a trama
na urdidura.
Assim como Penlope, em Filosofia preciso aprender a ter pacincia para fiar, ou seja,
trabalhar conceitos, conceber idias - exercer a liberdade como a faculdade do pensar para
depois estabelecer as tessituras que resultaro no tecido das muitas teses que nossa tradio
concebeu.
Esse fazer paciente e solitrio que desvelamos nos textos (do latim textu, tecido) que os
filsofos nos legaram, nos faz perceber a primeira lio que acreditamos importante para o
estudo na seara Filosfica: para elaborar um texto preciso fiar; preciso trabalhar as idias
como se faz no ofcio de quem tece.
6 VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. RJ: Bertrand Brasil: 1992.
9
Nesta dialtica do fazer e desfazer de Penlope a Filosofia se desvela no sentido da
prpria existncia humana. E aqui nos revela o caminho da Filosofia do Direito que no pode
ser investigado sem o conhecimento da tradio filosfica. Sem dvida, preciso ouvir o
conselho daqueles que vieram antes de ns.
Na verdade, necessitamos nos aconselhar com os mais velhos; talvez pela necessidade
de ouvirmos a experincia daqueles que nos antecederam na experincia citadina; talvez, quem
sabe, nosso referencial terico esteja por demais quantificados sob imagens burlescas,
pensando poltica a partir de jogos lgicos como a dana da galinha ou coisa anloga. Bem,
pensemos moda da Filosofia: esse o nosso maior desafio.
10
Captulo I
A Filosofia e o surgimento de uma nova conscincia
1.1 O sentido de Filosofia.
Na obra Eutidemo de Plato (428-348 a.C.), destaca-se que a Filosofia do grego
o uso do saber em proveito do homem. Assinala, esse clebre filsofo, que no
teria utilidade alguma poder transformar as pedras em ouro se no tiver capacidade para valer-
se desse nobre metal. Nesse mesmo sentido, de nada serviria um saber a quem no sabe servir-
se dele. A Filosofia se desenha, portanto, como a colidncia entre o fazer e o saber valer-se
daquilo que se faz. 7 Plato pretende, com isso, enfatizar que a Filosofia , sobretudo, a posse
ou aquisio de um conhecimento, mas este em benefcio do homem. Certamente se
encontraro inmeras definies para Filosofia forjadas em pocas diversas sob diferentes
pontos de vista.
Segundo Descartes, Filosofia seria o estudo da sabedoria, ou seja, um perfeito
conhecimento de todas as coisas que o homem capaz de conhecer. 8 No foi diferente a
definio elaborada por Thomas Hobbes (1588-1679). Na viso hobbesiana, a Filosofia , de um
lado, conhecimento causal e, de outro, a utilizao desse saber em benefcio do prprio
homem. Immanuel Kant (1724-1804), representante do Iluminismo alemo, a compreendeu
como uma cincia da relao de todo conhecimento com a finalidade essencial da razo
humana. Para este autor, o filsofo no um artista da razo humana, mas o legislador da
razo humana. 9 Segundo Hegel (1770-1831), filosofia um saber conceituante. Na verdade,
tais definies no se distanciam da mensagem platnica e, assim, esse conhecimento, ora
visto como revelao, ora como busca ou aquisio, um privilgio prprio dos seres racionais.
Considerando os estudiosos contemporneos, ressaltamos a definio elaborada por
Marilena Chau, na obra Convite Filosofia, certificando que a Filosofia no se confunde com
Cincia stricto sensu, mas pode ser entendida como reflexo crtica sobre os procedimentos e
conceitos cientficos, pois se trata de um saber que cronologicamente anterior ao surgimento
da prpria cincia. Assim, acrescenta que no tampouco Religio; antes, porm, reflexo
crtica sobre as origens e formas das crenas religiosas; no se reduz Arte, mas se v diante de
uma reflexo crtica sobre os contedos, formas, significaes da obra de arte e do trabalho
7 PLATO. Eutidemo, 288 e 290 d. Apud, ABBAGNANO, N. Dicionrio de Filosofia. SP: Mestre Jou, 1982: 442.
8 DESCARTES, R . Apud, ABBAGNANO, N. Dicionrio de Filosofia. SP: Mestre Jou, 1982: 442.
9 KANT, I. Crtica da Razo Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994, A838/B866 A839/B867.
11
artstico; tambm no pode ser considerada Sociologia ou Psicologia, mas reflexo crtica sobre
os fundamentos dessas cincias humanas de suma importncia; a Filosofia no se limita
esfera Poltica, mas se configura como possvel interpretao, compreenso e reflexo sobre a
origem, a natureza e as formas do poder; por fim, Filosofia no Histria, e sim interpretao
do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e no espao e a compreenso do
que seja o prprio tempo. A Filosofia est na histria, pois produto cultural do homem; um
saber do homem situado, pretendendo desvelar as interpretaes e limites de cada poca.
Pode-se ento, a partir da tica desta ilustre professora, definir Filosofia como a busca
pela fundamentao terica e crtica dos conhecimentos e prticas. Trata-se de um saber que
se volta para as origens, as causas, a forma e o contedo dos valores ticos, polticos, artsticos
e culturais. O seu olhar observa com cuidado as transformaes histricas, a conscincia em
suas vrias modalidades: imaginao, percepo, memria, linguagem, inteligncia,
experincia, reflexo, comportamento, vontade, desejo, paixes; busca compreender as idias
ou significados gerais: realidade, mundo, natureza, cultura, histria, subjetividade,
objetividade, diferena, repetio, semelhana, conflito, contradio e mudana.
Nesse sentido, o olhar filosfico se afasta do senso comum, das crenas, sentimentos,
prejuzos, preconceitos; toma distncia do mundo cotidiano para interrogar e no aceitar as
coisas passivamente. A Filosofia diz no ao senso comum, para indagar o que , como e
por que momentos que constituem o pensamento crtico. Sua ao se realiza por meio da
reflexo em que o pensamento volta-se para si mesmo a fim de indagar como possvel o
prprio pensamento. Assim, pode-se considerar que refletir significa tomar distncia das coisas
para poder enxergar novos ngulos, experimentar a realidade em diversos sabores, 10
porquanto a reflexo filosfica radical, isso porque investiga a raiz, a origem de tudo o que
existe. 11 A Filosofia um pensamento sistemtico, o que significa dizer que no sendo mera
opinio, muito pelo contrrio, na verdade a Filosofia segue uma lgica de enunciados precisos e
rigorosos, opera com conceitos ou idias obtidos por procedimentos de pura racionalizao.
Nesse caso, a Filosofia na condio de saber exige fundamentao racional do que enunciado
e pensado, e deve formar um conjunto coerente de idias racionalmente examinadas e
demonstrveis.
Conclui-se, provisoriamente, que o saber filosfico uma profunda refutao opinio,
conhecido como senso comum. Um saber que exige consistncia terica. Conforme insiste o
10
LORIERI, Marcos Antnio. Filosofia na escola: o prazer da reflexo. RJ: Moderna, 2004: 17. 11
MARX, K. Manuscritos econmicos-filosficos. Lisboa: Edies 70, 1993.
12
filsofo francs Luc Ferry e que sintetiza as idias expostas acima: o filsofo antes de tudo
aquele que pensa que, se conhecemos o mundo, compreendemos a ns mesmos e
compreendendo os outros, tanto quanto nossa inteligncia o permite, vamos conseguir, pela
lucidez e no por uma f cega, vencer nossos medos. 12
O valor da Filosofia repousa, portanto, na possibilidade de fundamentao ou
justificao do trabalho cientfico ao indagar o que o homem?, o que a vontade?, o que
a razo?, como nos tornamos livres?, o que um valor?. Pode-se estudar a Filosofia sob
o aspecto temtico ou compreend-la a partir de seu acontecer histrico, ou seja, a histria da
Filosofia compreendendo perodos que exprimem e manifestam os problemas e as questes
que, em cada poca, os homens colocaram para si mesmos. Ser possvel tambm perceber
que as transformaes no modo de conhecer ampliaram os campos de investigao do filsofo.
Destaca-se que historicamente as abordagens filosficas, em sua dinmica, esto relacionadas
aos problemas historicamente definidos por sua temporalidade, e, por isso a Filosofia tambm
tem sua historicidade, logo os perodos foram classificados pela tradio da seguinte forma:
Antigidade Clssica ou Filosofia Antiga, Filosofia Medieval, Filosofia Moderna e Filosofia
Contempornea.
1.2. - Surgimento da Filosofia na Grcia Antiga
Como nos lembra Jos Amrico M. Pessanha, buscar as razes que conduziram o
homem grego a fazer filosofia permanece ainda como um problema aberto. 13 O que teria
fundamentado esse novo saber? Por que na Grcia, por volta do sc. VII ou VI a.C., surgiu uma
nova mentalidade diante do real? Quais os fatores que se entrecruzaram e propiciaram esse
fenmeno em uma cultura to antiga? Sabe-se que na Grcia do sc. VI a C., Pitgoras de
Samos (571-496 a.C.) denominou-se Filo-sophos por ser amante do saber e no de sophos
(sbio). 14
Costuma-se lembrar de uma narrativa atribuda a Pitgoras, 15 segundo a qual esse
filsofo teria dito aos seus discpulos que trs tipos de pessoas participavam dos jogos
olmpicos na Grcia, a saber: as que trabalhavam no comrcio, com interesses voltados para o
lucro; as que buscavam disputar os torneios, os atletas e artistas e aqueles que, sem interesses
12
FERRY, Luc. Aprender a viver. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007: 23. 13
PESSANHA, Jos Amrico M. Os pensadores. In: Pr-socrticos. SP: Nova Cultural, 1983. 14
A palavra Filosofia formou-se da juno de Filos-filia (amigo) com sophia(sabedoria, saber), opondo-se ao termo grego polimathia que significa saber comum, desconexo, fragmentado. 15
importante ressaltar que este pr-socrtico nada escreveu. Seus ensinamentos foram transmitidos oralmente e guardados em segredo por seus primeiros discpulos.
13
comerciais ou competitivos, buscavam compreender o significado das coisas e contemplando a
realidade, desinteressadamente. Este ltimo o filsofo, aquele que ama o saber. Essa teria
sido a origem da palavra Filosofia e da idia de filsofo.
O que a tradio literria afirma que a Filosofia foi um fenmeno especfico do povo
grego e teve continuidade com os povos dominados por ele. O seu momento inicial estaria na
prpria curiosidade humana (perplexidade), 16 no instante em que algo desperta a nossa
admirao e exige uma explicao sobre a origem do mundo, dos povos e dos fenmenos da
natureza sem recorrer aos mitos ou explicaes religiosas. Vale esclarecer que a palavra mito
do grego mythos e do latim mythus, aponta, alm da acepo geral de narrativa, para trs
significados distintos, a saber: 1. forma atenuada de intelectualidade; 2. forma autnoma de
pensamento ou de vida; 3. instrumento de controle social.. Para o pensamento grego, mito
significava um discurso ou narrativa considerada verdadeira para seus ouvintes; havia uma
relao de confiabilidade entre a pessoa do narrador e os ouvintes, ou melhor, uma crena na
autoridade do narrador, chamado de poeta-rapsodo. Os gregos acreditavam que ele fora
escolhido pelos deuses e que se tornara o transmissor de suas mensagens, carregadas de
valores compartilhados pelo grupo.
A palavra proferida pelo poeta, o mito, ganhava uma aura de divindade, portanto
inquestionvel e incontestvel, constituindo-se no ponto central de uma educao ainda por
via da oralidade. Sendo assim, a narrativa sobre a origem do mundo foi denominada como
genealogia que pode ser cosmologia ou teogonia. Ser cosmologia quando tratar do
nascimento e da organizao do mundo, pois gonia vem do verbo gennao e do substantivo
genos, assumindo a idia de gerao, nascimento a partir da concepo sexual e do parto.
Cosmo quer dizer mundo ordenado, organizado. J teogonia composta de gonia e theos que
significa em grego, seres divinos, coisas divinas, deuses. Ser teogonia quando a narrativa tratar
da origem dos deuses. A Filosofia vista como uma cosmologia, ou seja, uma explicao
racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformaes das coisas.
O sentido da narrativa mtica foi marcado por uma profunda formulao de valores cujo
fim era a formao do homem grego, levando em considerao uma explicao pedaggica
capaz de instituir laos integrativos entre os homens a partir de uma idealidade divina. O mito
carrega no som das palavras proferidas pelos poetas, orculos dos deuses, as faanhas dos
heris como formao moral dos homens: a supremacia do valor helnico como forma de
manter sua identidade ante a pluralidade de povos existentes. A autoridade do mito sucumbe
16
ARISTTELES. Metafsica. So Paulo: Edies Loyola, 2002.
14
diante dessa nova explicao que no resulta de uma pessoa fsica com poderes msticos, como
no caso dos poetas-rapsodos, mas do poder da razo. Essa mitologia e suas figuras sobrevivem
enquanto se mantm viva na vida cotidiana. Memria, oralidade e tradio so os
componentes indispensveis para a sua sobrevivncia. Assim, a explicao filosfica, que era
apenas uma explicao de homens que buscavam o conhecimento racional, se desenvolveu
paulatinamente e permaneceu por muito tempo concomitante s explicaes mitolgicas que
povoavam o imaginrio desse mundo antigo.
No pensamento de Plato e Aristteles podemos ver que o mito se contrape verdade
ou narrativa verdadeira, embora ao mesmo tempo guarde a verossimilhana que, em certos
pontos a nica validade a que o discurso capaz de aspirar e passa a exprimir o que se pode
encontrar de melhor e de mais verdadeiro. Em outras palavras podemos dizer que a relao da
cultura grega com o mito muito delicada, uma vez que o mito visto em alguns momentos
como oposto verdade e, em outros forma aproximativa do conhecimento verdadeiro.17
O advento do pensamento filosfico marcou o aparecimento de uma indagao que
passa a rejeitar narrativas mitolgicas ou mgicas. No entanto, no se pode negar a ntima
relao da mitologia grega com a histria da civilizao grega, por isso o relato mtico no
resulta necessariamente da inveno individual, mas da transmisso de uma cultura por vrias
geraes e da memria de um povo, o que ressalta a sua dignidade e importncia. A Filosofia ,
portanto, um fenmeno cultural grego que surgiu no momento de estabilizao da sociedade
com a consolidao das cidades-estados (plis); um progressivo enriquecimento do comrcio e
inveno da moeda; expanso martima que propiciou o surgimento de uma classe mercantil
politicamente forte; a inveno do calendrio; a prpria inveno da poltica como idia tica.
Na verdade, no h consenso sobre a origem da Filosofia na Grcia antiga, porque
muitos estudiosos entendem que os povos do oriente j sistematizavam doutrinas filosficas
antes dos filsofos gregos. Todavia, o que se observa freqentemente que no se configurou
nesses povos o que ocorreu na Grcia: o processo de laicizao do saber. Esse processo de
laicizao apresentou caractersticas marcantes como, por exemplo, a noo de physis, a idia
de causalidade interpretada a partir de termos naturais, o conceito de arch, a concepo de
cosmo racionalmente ordenado, o logos como possibilidade de se explicar o mundo, o carter
crtico capaz de operar profundas mudanas no homem.
Segundo esforos de notveis estudiosos da cultura clssica, pode-se ento afirmar com
confiana que a civilizao e a cultura gregas vivenciaram um ambiente completamente
17
ABBAGNANO, N. Dicionrio de Filosofia. So Paulo: Mestre Jou, 1982: 644.
15
original. interessante observar que foram os romanos que criaram o sentido atual do termo
gregos como verso depreciativa da palavra Graeci. O que a histria nos relata que os
gregos se denominavam helenos, aqueles que habitam a Hlade. A Hlade, num sentido
cultural e no necessariamente poltico, se estendia desde o estreito de Gibraltar at a atual
Gergia, na extremidade do mar Negro. Definiam-se assim por uma ancestralidade e lngua
comuns falava-se o grego. Aqueles que no falavam o grego eram denominados brbaros,
porque tais lnguas eram constitudas de um balbuciar de sons ininteligveis bar-bar. 18
1.3 - A plis grega e a formao de uma nova conscincia
Antes do advento da Plis, a Grcia j apresentava uma vida social intensa. Um dos
poetas mais importantes, Homero (sc. IX a.C.), autor dos famosos poemas (Ilada e Odissia)
que narram as guerras troianas (1260 a 1250 a.C.) e as aventuras de Ulisses (Odisseu), nos
desvela em suas narrativas o entrecruzamento de histria, fico, lenda, mitos e deuses, que
segundo pesquisadores exprimem traos da cultura drica. Os drios oriundos do norte,
sculos aps as guerras troianas, construram uma sociedade marcadamente aristocrtica que
paulatinamente se transformou no que denominamos civilizao grega. Segundo muitos
historiadores, Homero considerado o pai da cultura grega por ter sido a sua obra fundamental
para a manuteno das tradies. Alm de Homero, o pensamento de Hesodo (sc. VIII a.C.) foi
igualmente importante, porquanto marcou uma nova fase da cultura grega. Em sua obra
denominada Teogonia, descreveu a criao do mundo, dos deuses e a organizao do Olimpo.
Em Os trabalhos e Os Dias narrou o clebre mito das cinco idades da humanidade.
Por volta do sc. VIII a.C., com a inveno da moeda cunhada, a regio vivenciou um
renascimento das relaes comerciais que resultou na runa das antigas linhagens tribais e no
surgimento de pequenas cidades de agricultores e artesos. Lentamente se formou uma nova
organizao scio-poltica que, segundo J.P.Vernant, destacou a supremacia da razo. Assim, a
palavra, o discurso e a razo ganharam grande relevo nessa nova organizao social. O discurso
tornou-se condio fundamental para a participao nos assuntos pblicos. Tal mudana,
alinhada uma revoluo poltica, ensejou o desenvolvimento do pensamento humano.
Portanto, as discusses polticas, a elaborao das leis, deixaram de ser privilgio da
aristocracia grega.
A palavra polis, do plural pleis, de origem grega que expressa a idia de cidade-
estado autogovernada por um esprito que procura ir alm das formas privadas de organizao
18
CARTLEDGE, Paul. Histria Ilustrada da Grcia antiga. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002: 17-19.
16
do espao pblico. Cada polis tinha suas prprias leis de cidadania, cunhagem de moedas,
costumes, festivais, ritos etc. Segundo Jaeger, a polis desenhou um novo momento para os
gregos, uma nova forma de convivncia humana: A polis o centro principal a partir do qual se
organiza historicamente o perodo mais importante da evoluo grega. Situa-se, por isso, no
centro de todas as consideraes histricas. 19 O termo polis propiciou o aparecimento de
palavras como poltico, poltica e, conseqentemente, a idia de justia. Com a palavra polis
surgiu tambm o direito de cada cidado de emitir, na esfera pblica, o seu pensamento para
possvel debate. E valorizou o humano, a discusso, a persuaso, a fora do melhor argumento,
enfim o prprio desenvolvimento do discurso. Assim, o interesse pela justia se desenvolveu na
vida da polis como um grande valor, semelhante em intensidade fora exercida pelo ideal
cavaleiresco dos primeiros estgios da cultura grega aristocrtica. A idia do homem justo
assumiu um novo locus no pensamento grego, isso porque aquele que se determina pela lei
cumpre o seu dever.
Observa-se que a plis introduziu uma verdadeira revoluo no pensamento: O ideal
antigo e livre da Arete 20 herica dos heris homricos converte-se em rigoroso dever para com
o Estado, ao qual todos os cidados sem exceo esto submetidos, tal como so obrigados a
respeitar a fronteira entre o prprio e o alheio. 21 Nesse momento, com a mudana das formas
de vida, surgiu um novo esprito centrado na vida pblica, e a literatura que testemunha a idia
de justia como fundamento da sociedade humana estende-se desde os tempos primitivos da
epopia, ou seja, do sc. VIII at o sc. VI a.C.
Conforme explicao de Jaeger, nos tempos homricos:
Toda manifestao do direito ficou sem discusso na mo dos nobres que administravam a justia segundo a tradio, sem leis escritas. Contudo, o aumento da oposio entre os nobres e os cidados livres, a qual deve ter surgido em conseqncia do enriquecimento dos cidados alheios nobreza, gerou facilmente o abuso poltico da magistratura e levou o povo a exigir leis escritas.22
A reclamao universal pela justia j figura claramente em Hesodo e, atravs desse
poeta, que a palavra direito, dike, se converte no lema da luta entre as classes ento existentes.
No temos fonte sobre a histria da codificao do direito grego, mas sabe-se ao menos que ao
ser escrito assumia o carter de universalidade. J em Homero temos o direito como Themis
19
JAEGER, Werner W. Paidia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1989: 73. 20
aret, aretai (pl.) excelncia, virtude. 21
JAEGER, Werner W. Paidia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1989: 94. 22
Idem, 1989: 91.
17
que etimologicamente significa lei. Segundo a narrativa homrica, Zeus ofertava aos reis o cetro
e themis. Esta ltima seria o smbolo da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres
homricos. Na prtica, significava que os nobres dos tempos patriarcais julgavam de acordo
com a lei procedente de Zeus. As normas que constituam as leis de Zeus fundamentavam-se no
direito consuetudinrio e no prprio saber do homem daquela poca.
18
Captulo II
Os Filsofos pr-socrticos e o pensamento poltico
2.1. Os filsofos pr-socrticos e a arch
Comumente tem-se por filsofos pr-socrticos aqueles pensadores que viveram antes
de Scrates (470-399 a.C.), que se tornou marco histrico na Filosofia por inaugurar a reflexo
tico-poltica, diferentemente daqueles que dissertavam sobre o problema da causa primeira
na natureza. As obras dos filsofos pr-socrticos perderam-se na Antigidade, restando
apenas fragmentos e uma extensa doxografia 23 disponvel, que apresenta citaes e passagens
desses pensadores como fonte para o conhecimento do primeiro momento do pensamento
filosfico como reflexo racional.
Estudiosos relatam que duas escolas dividiram-se em duas concepes filosficas
diferentes. A Escola Jnica interessada na physis, ou seja, Filosofia da Natureza, tambm
chamada de Escola de Mileto cujos expoentes foram Tales (625 - 546 a.C.), Anaximandro (sc.
VII-VI a.C.), Anaxmenes (sc. VI a.C.) e Herclito de feso (sc. VI-V a.C.). A outra a Escola
Italiana que apresentou uma viso de mundo mais abstrata, prenunciando o surgimento da
lgica e da metafsica, marcada pelos filsofos Pitgoras (sc. VI-V a.C.), Parmnides (510-470
a.C), Zeno (488-430 a.C) e Melisso de Samos, entre outros.
Num segundo momento dessa fase pr-socrtica destacam-se os pensadores
Empdocles de Agrigento (484-424 a.C.), Anaxgoras de Clazmena (500-428 a.C.) e a Escola
Atomista, denominados pluralistas e eclticos. Nosso intento nesta parte to-somente
mencionar os pr-socrticos mais conhecidos. Assim, para um maior aprofundamento no tema
sugerimos a obra de Gerd Bornheim. 24
Quando pensamos em Grcia Antiga, pensamos em uma regio que compreende o
conjunto de vrias cidades autnomas entre si. Sabe-se que o bero da Filosofia teria sido a
polis de Mileto, situada na regio da Jnia, litoral ocidental da sia menor prspera do ponto
de vista econmico-comercial. Nessa cidade temos trs pensadores pr-socrticos de grande
importncia: Tales, Anaximadro e Anaxmenes. Esses primeiros filsofos, denominados filsofos
da physis, tinham por objetivo construir uma explicao racional e sistemtica do universo,
23
Comentrios proferidos por filsofos posteriores Aristteles a Simplcio ( sc. VI d.C.). 24
BORNHEIM, G. (org) Os Filsofos Pr-socrticos. So Paulo: Cultrix, 1997.
19
tendo por modelo a matemtica, pois percebiam a existncia de leis gerais e permanentes a
reger os fenmenos naturais. Tais pensadores buscavam a matria-prima, a arch, existente em
todos os seres. Seria, portanto, a busca pelo princpio originrio, ou substancial de todas as
coisas.
Tales de Mileto foi considerado efetivamente o primeiro filsofo e sabe-se que era
estudioso de astronomia que, segundo conta a tradio, chegou a prever um eclipse total do sol
ocorrido por volta do ano de 585 a.C. Esse pensador apresentou grande desempenho em
geometria e demonstrou que todos os ngulos inscritos no meio crculo so retos e que a soma
dos ngulos internos de um tringulo igual a 180. Ademais, concluiu que o princpio
originrio era a gua, porque somente a gua permanece a despeito de todas as
transformaes. Infelizmente no conhecemos nenhum fragmento desse pensador, mas os
comentrios de alguns filsofos posteriores, como Aristteles que menciona em passagem de
sua obra De Coelo:
Outros julgavam que a terra repousa sobre a gua. Esta a mais antiga doutrina por ns conhecida e teria sido defendida por Tales de Mileto. Ou ainda na obra De Anima onde menciona: E alguns sustentam que a alma est misturada com o universo; talvez por isto chegou Tales opinio de que todas as coisas esto cheias de deuses. 25
Anaximandro de Mileto, discpulo de Tales, concebeu que o princpio primordial
transcendia os limites do observvel e que, logo, estaria fora do alcance dos sentidos.
Denominou de peiron, termo grego que significa o indeterminado, o infinito a massa geradora
de todos os seres. Anaximandro nos legou trs fragmentos, so eles: 1. Todas as coisas se
dissipam onde tiveram a sua gnese, conforme a necessidade, pois pagam umas s outras
castigo e expiao pela injustia, conforme a determinao do tempo. 2. O ilimitado eterno. 3.
O ilimitado imortal e indissolvel.26
Anaxmenes de Mileto, por sua vez, discpulo de Anaximandro, admitia que a origem de
todas as coisas fosse realmente algo indeterminado, mas no o concebia como inalcanvel aos
sentidos. Segundo seu entendimento, o ar seria o princpio de todas as coisas, o elemento
invisvel, impondervel e, no entanto, observvel. Em seu nico fragmento nos diz: Como
nossa alma, que ar, nos governa e sustm, assim tambm o sopro e o ar abraam todo o
cosmo. 27
25
Apud, BORNHEIM, G. (org) Os Filsofos Pr-socrticos. So Paulo: Cultrix, 1997: 23. 26
Idem, 1997: 25. 27
Idem, 1997:28.
20
Pitgoras de Samos viveu na ilha de Samos e posteriormente deslocou-se para Crotona,
localizada no sul da Itlia (Magna Grcia), onde fundou sua escola filosfica preocupada com
questes polticas e religiosas. Em seu modo de ver, a essncia de todas as coisas residia nos
nmeros que representavam a ordem e a harmonia. A arch teria uma estrutura matemtica
que configuraria a origem do finito-infinito, par-mpar, multiplicidade-unidade etc, enfim, para
Pitgoras, ao fim e a ao cabo, a diferena entre os seres repousava sobre os nmeros. Suas
contribuies foram numerosas, alm da matemtica, as concepes da imortalidade da alma,
reencarnao, o rigor moral etc. Pitgoras no deixou obra escrita, porm, conforme Porfrio:
O que Pitgoras dizia a seus discpulos, ningum pode saber com segurana, pois nem o silncio era causal entre eles. Contudo, eram especialmente conhecidas, conforme o juzo de todos, as seguintes doutrinas: 1) a que afirma ser a alma imortal; 2) que transmigra de uma a outra espcie de animal; 3) que dentro de certos perodos, o que j aconteceu uma vez, torna a acontecer, e nada absolutamente novo, e 4) que necessrio julgar que todos os seres animados esto unidos por laos de parentesco. De fato, parece ter sido Pitgoras quem introduziu por primeira vez estas crenas na Grcia.28
Herclito de feso foi considerado um dos mais importantes filsofos pr-socrticos.
Sabe-se que floresceu pelo ano 500 a.C. e se tornou o representante do pensamento dialtico.
Herclito concebeu o mundo como dinmico, em inesgotvel transformao. Sua escola
filosfica foi denominada de mobilista, pois para ele a vida era fluxo constante, impulsionado
pela luta de foras contrrias. Acreditava que a luta dos contrrios seria o princpio de todas as
coisas e por meio dessa luta o mundo se modifica e evolui. Entendeu que o fogo era a arch.
Dentre os 126 fragmentos existentes como de sua autoria, destaca-se: No se pode entrar
duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e rene-se; avana e se retira.29
Uma das marcas fundamentais da doutrina de Herclito o sentido dialtico que deu ao
movimento do pensamento, capaz, por sua vez, de perceber a natureza dicotmica da
natureza, da vida, dos homens e de sua histria. Essa viso inaugura, por assim dizer, uma
tradio de pensar problemas a partir de suas possibilidades contrrias, levando em
considerao que o verso faz parte do anverso, que a guerra faz parte da paz etc. Herclito se
torna, dentro da filosofia, um autor preocupado com a ordem dicotmica.
Parmnides de Elia foi um grande opositor de Herclito. Acreditava que o ser era
eterno, nico, imvel e ilimitado. Essa era a tica da razo, da essncia, a via a ser buscada pela
filosofia. Por outro lado, a tica da aparncia, da doxa, no desvela a verdade, mas em funo
do movimento ou vir-a-ser da realidade denota apenas uma aparncia enganosa. Parmnides
28
Apud, BORNHEIM, G. (org) Os Filsofos Pr-socrticos. So Paulo: Cultrix, 1997: 48. 29
Idem, 1997: 41.
21
afirmou que: o ser ; o no-ser no .Pensava que o mundo o lugar das aparncias, o
mundo da iluso e que, somente pela razo, no plano lgico, compreendemos a essncia da
realidade. Para Parmnides o ser e o no-ser no . Diz-nos um dos seus fragmentos:
Necessrio dizer e pensar que s o ser ; pois o ser , e o nada, ao contrrio, nada . Pois
pensar e ser o mesmo30
Zeno de Elia, discpulo de Parmnides, buscou argumentos capazes de legitimar as
afirmaes de seu mestre e fortaleceu a idia de que a noo de movimento era contraditria.
O mais clebre foi denominado Aquiles, que apresentava o complexo estudo dos conceitos de
movimento, espao, tempo e infinito. Nesse argumento Zeno nega o movimento da seguinte
maneira: afirma que o mais lento em uma corrida jamais ser alcanado pelo mais rpido, se e
somente se, o mais lento sair bem frente, porque o mais rpido ter que primeiro alcanar o
ponto de onde partiu o mais lento que, por sua vez, continuaria se movendo. Para
entendermos melhor esse paradoxo de Zeno, preciso compreender o exemplo que nos
forneceu e que, resumidamente, o seguinte: em uma determinada corrida, se a tartaruga
(mais lenta) sasse frente de Aquiles (de ps ligeiros), este heri no conseguiria alcan-la,
em face da vantagem que a tartaruga obteve por ocasio da largada.
Uma das grandes contribuies dos estudos de Parmnides e, conseqentemente, de
Zeno, est justamente dentro do campo da reflexo de uma linguagem fundamentada no
argumento lgico. Embora a problemtica parmendica parea, a primeira vista,
eminentemente ontolgica, o pano de fundo de sua problemtica passa pelo rigor dos
enunciados, que, por sua vez, implica a mais profunda abstrao, o que nos leva admitir
Parmnides como aquele filsofo que inaugura, de certa forma, o pensamento metafsico.
Empdocles de Agrigento tentou conciliar as idias de Parmnides com o pensamento
de Herclito, ou seja, conciliar a idia de essncia imutvel obtida pela razo com a idia de
movimento, o vir-a-ser, captado pelos sentidos. Acreditou que o elemento primordial era
constitudo por quatro elementos: o fogo, a terra, a gua e o ar. Tais elementos seriam
misturados de modos diversos a partir de dois princpios universais, a saber: de um lado, o
amor, personificando a idia de fora de atrao ou harmonizao das coisas; de outro, o dio,
responsvel pela desagregao ou separao das coisas. Em um dos seus fragmentos
menciona: No h nascimento para nenhuma das coisas mortais, como no h fim na morte
30
Idem, 1997: 55.
22
funesta, mas somente composio e dissociao dos elementos compostos: nascimento no
mais do que um nome usado pelos homens. 31
O leitor convir conosco que resta claro que a Filosofia desde o seu nascedouro
apresentou posturas bem definidas quanto ao seu contedo, mtodo e objeto de investigao.
Portanto, focalizou a realidade para compreender o verdadeiro sentido de todas as coisas a
partir de uma explicao racional sobre a realidade pelo puro desejo de conferir outro
significado a todas as coisas e a si mesmo, na medida em que realiza a reflexo. Os antigos
compreenderam esse movimento que, na verdade, est radicado na prpria natureza humana.
2.2. O sentido de justo no perodo pr-socrtico
Para estudiosos como Jaeger e Rodolfo Mondolfo (1877-1976), a preocupao dos
primeiros filsofos teria sido com o universo, ou seja, os pr-socrticos inauguraram o
pensamento filosfico quando iniciaram um estudo racional sobre o homem, a vida e a
Natureza. Outros estudiosos do pensamento grego revisaram essa tese e concluram que certa
reflexo acerca do mundo dos homens teria precedido a reflexo sobre o mundo fsico.
Destarte Truyol y Serra apresenta, nesse sentido, o seguinte argumento:
Isto verdade se tivermos em conta a primitiva concepo helnica do mundo e da vida em sua totalidade, ou seja, incluindo as teogonias mticas. Efectivamente, estas, fundadas num politesmo antropomrfico, concebem os problemas csmicos como problemas humanos, o que traz consigo a personificao dos elementos e das foras naturais e a apreenso das suas relaes segundo a natureza das relaes entre os homens. 32
A filosofia do mundo natural precisou trabalhar com categorias nascidas da experincia
da vida humana, de uma forma ou de outra expressa na literatura disponvel poca, a
mitologia. So categorias cuja origem social: a noo de lei, por exemplo. A imagem da
comunidade foi til para a representao da Natureza. O enigma que perturbava o esprito dos
pensadores pr-socrticos era o movimento, a mudana, o que justificou a necessidade de
buscar um elemento primordial que permanecesse sempre o mesmo. O homem dessa poca
vivia em uma comunidade autrquica e sagrada, uma espcie de microcosmo. Cada cidade,
guardando sua autonomia, apresentava no s peculiaridades jurdico-poltica, como tambm
dispunha de proteo particular por parte de seus respectivos deuses, baseando-se em normas
e regulamentaes 33 tradicionais de fundamento religioso.
31
Apud, BORNHEIM, G. (org) Os Filsofos Pr-socrticos. So Paulo: Cultrix, 1997: 69. 32
SERRA, A. T. Histria da Filosofia do Direito e do Estado. Portugal: Instituto de Novas Profisses, 1985: 85-86. 33
Nomos
23
Para o preciso entendimento do sentido de justia construdo pelos gregos, preciso
antes de tudo, compreender a sua relao com o cosmos. A cultura grega compreendia o
universo como um ente organizado e animado. Havia a concepo de uma ordem csmica, uma
estrutura ordenada do universo que perfeita e divina. 34 Nesta ordem e harmonia h o
movimento regular dos planetas, a dinmica da vida em sua mais completa perfeio, a prpria
existncia dos seres at o mais nfimo dos insetos. Cada membro desse imenso Ser est
perfeitamente colocado em seu lugar em harmonia com os outros. Essa estrutura revela o
logos, ou seja, a lgica que permite e sustm a harmonia entre os seres. Esse cosmos justo,
harmnico, lgico e racional porque podemos compreender seu movimento. Nesse sentido
esclarece Luc Ferry que:
(...) se compreendermos bem os Antigos, o que queriam dizer no tem nada de absurdo: ao afirmar o carter divino do universo todo, eles exprimiam sua convico de que uma ordem lgica operava por trs do caos aparente das coisas, e que a razo humana poderia traz-lo luz 35
Trata-se da mesma idia que ser transportada para a dimenso moral do homem. Os
gregos viveram sob o imperativo de imitar a perfeio da Natureza enquanto justa e boa na
vida na polis anunciando uma teoria do justo que desvela a necessidade de uma conduta que
respeite essa harmonia, dando a cada um, o que lhe pertence, conforme o seu lugar natural no
cosmos. Esse o modelo de beleza para alcanar a felicidade e a vida boa. 36 Sob essa tica,
podemos entender por nomos a idia de ordem da polis, ou seja, as regras morais e os
preceitos jurdicos indistintamente misturados. O cuidado com os valores culturais de cada polis
garantia uma convivncia pacfica. No fica difcil perceber que a idia de justia significava
garantir essa convivncia harmnica a partir de uma represso a tudo que pudesse
comprometer a ordem estabelecida. Esse sentido seria alargado diante das novas necessidades
que a vida comunitria exigia: estabilidade visando solues polticas diante de conflitos
resolvidos belicamente.
Truyol y Serra aponta, numa viso contrria, que Anaximandro teria deslocado a idia
de justia da polis para o universo, 37 constitudo como uma grande polis, ou seja, uma grande
comunidade sujeita a uma lei ordenadora, invarivel, afirmando a existncia de uma justia
csmica de carter imanente que preside a gerao e a dissoluo dos seres particulares. Para
este autor, idias semelhantes seriam usadas mais tarde por Parmnides de Elia e Empdocles
34
A idia de divino no se relaciona com o sentido cristo de ser divino, mas antes com o significado de perfeio. 35
FERRY, Luc. Aprender a viver. Rio e Janeiro: Objetiva, 2007: 41. 36
FERRY, Luc. Aprender a viver. Rio e Janeiro: Objetiva, 2007: 41-43. 37
Esta idia estaria presente no nico fragmento existente da obra Sobre a Natureza.
24
de Agrigento nos poemas que cada qual escreveu, ambos intitulados Acerca da Natureza.
Parmnides teria personificado a Justia nas deusas Themis e Dike entre o dia e a noite, entre a
verdade e a opinio. A justia aparece no seu poema como um princpio esttico que assegura a
imutabilidade do ser que ele afirma com vigor: o ser e o no-ser no . Empdocles usa a
idia de justia para tentar uma explicao do universo; o amor e o dio como foras originais
fazem e desfazem as coisas; a lei estende-se sem alterao.
Sabe-se que Pitgoras e Herclito apresentaram consideraes mais explcitas sobre a
vida social. Com Pitgoras ganha relevo a preocupao tica e religiosa, crescendo o interesse
pela vida scio-individual, tendo a Filosofia como especulao possvel de uma purificao
interior. Pitgoras antecipa, tambm, a relao entre Filosofia e poltica, cabendo aos seus
discpulos, os pitagricos, os primeiros a organizar uma teoria da justia no interior de sua
doutrina dos nmeros. Desse modo, concebeu os nmeros como essncia das coisas e
expresso de harmonia e regularidade no sentido especfico de totalidade ordenada. Essa
harmonia, transposta para a esfera humana, assume o sentido de uma correlao de condutas.
Os pitagricos formularam uma definio de justia como aquilo que algum sofre por algo
a justia como uma relao aritmtica de igualdade entre dois termos. Esta igualdade aparece
como elemento essencial da justia. Simbolizavam a justia nos nmeros 4 e 9, porque a
multiplicao de um nmero par (2) por ele mesmo daria 4; a multiplicao de um nmero
mpar (3) por ele mesmo alcanaria o nmero 9. A justia nessa concepo funda-se na ordem
natural presidida pelo nmero.
Herclito de feso associa justia ordem universal. Como concebeu a realidade em
perptuo devir, afirmou ainda que o devir nasce dos contrastes e que este surge da luta, logo o
sentido de justia luta. Todavia esse perptuo fluir presidido por uma lei eterna e universal,
o logos, por sua vez o responsvel pela harmonia invisvel entre os opostos. Essa unidade
realizada pelo logos manifesta-se no fogo, que Herclito evoca das Ernias, personagens
mitolgicas servidoras de Dike, que, segundo a narrativa mtica, foravam o Sol a voltar rbita
se por acaso se afastasse. Assim, por analogia, o logos estaria oferecendo ao homem a norma
para a ao correta. Todos os homens participam dessa ordem, embora nem todos a revelem
em sua conduta. Essa lei nica e divina alimenta a lei humana, conferindo o seu sentido de
sagrado e justificando qualquer sacrifcio em seu nome. Importa perceber que a moralidade,
tanto para os pitagricos como para Herclito, fundamenta-se numa lei natural.
preciso ressaltar que na fase pr-socrtica se afigurou um suposto direito natural
cosmolgico de cunho pantesta. Essa filosofia natural pr-socrtica conferiu validade
25
concepo helnica de justo percebida em Hesodo e Homero. Sabe-se ainda que a idia de
igualdade na reciprocidade, apresentada na narrativa hesidica, superou o sentido de
autoridade expresso nos poemas homricos na condio de sentido da justia. Esse predomnio
da concepo de Hesodo aconteceu por ocasio de profundas transformaes polticas,
econmicas e sociais nos sc. VII e VI a.C., conduzindo as codificaes legais pela liderana de
Slon (640-558 a.C.), legislador e poeta, assinalando em suas Elegias, o conceito de eunomia,
ou seja, a ordem equilibrada fundada na justia. Slon observou a necessidade de
homogeneidade social que excluiria as desigualdades excessivas. A cidade deve ser comum a
todos e todos devem se interessar por sua conservao. Slon fustigou a hybris como a mxima
negao da ordem.
No mbito literrio, os poetas trgicos como Eurpides (480-406 a.C.), squilo (525-456
a.C.) e Sfocles (496-406 a.C.) foram os herdeiros dessa concepo de justia pr-socrtica. A lei
representa o equilbrio e a hybris a desmedida. A negao da lei deve ser resolvida com uma
sano conforme o princpio que conhecemos pelo nome de talio: quem praticou a violncia
sofrer violncia. 38 Resgatar o equilbrio entre o crime e o castigo funo da polis cuja idia
de retribuio est fundada na mais antiga tradio e configura uma legalidade csmica que
para os homens assumia o carter de frreo destino. Sfocles acrescenta um problema novo: o
do antagonismo entre as leis humanas e as leis divinas. Este conflito constitui o ncleo
dramtico da tragdia Antgona. Ao apresentar esse conflito, Sfocles conduz-nos, de certo
modo, filosofia jurdica da sofstica, todavia reconhea e enfatize o carter sagrado das leis
no escritas. 39
Herdoto de Halicarnasso (484-420 a.C.) transps para o mbito da histria a concepo
de justia oferecida pela tradio. Trata-se de uma concepo religiosa de justia em que os
deuses, ansiosos por justia, procuram manter os homens longe da demasia e dos excessos do
orgulho, longe da desmedida. Esse pensador, considerado pai da histria, apresenta um novo
problema: a diversidade das convices e instituies humanas, ou seja, a relatividade dos
costumes, a no universalidade das leis entre as polis, o que de certa forma conduz
problemtica sofstica.
Segundo Aristteles (384-322 a.C.), Demcrito de Abdera (460-370 a.C.) foi o ltimo dos
pr-socrticos, ou filsofos da physis. A importncia de mencion-lo separado dos demais que
38
SQUILO. Agamenon. 39
Chamamos a ateno para um ponto interessante: a figura do coro na tragdia Antgona desvela certo vestgio da antropologia sofstica que exalta o homem e suas obras, embora apresente a advertncia que a obra humana tambm poder gerar um grande mal.
26
ele inaugura o que denominamos de perodo sistemtico da filosofia helnica que, por sua vez,
culminar no pensamento de Plato e Aristteles. Um estudo atravs dos fragmentos de
Demcrito permite perceber que sua reflexo tica apresenta um desenvolvimento
independente de sua filosofia natural.
Sabe-se que Demcrito professou um materialismo mecanicista que considerava os
tomos, mveis no vazio, os elementos ltimos da realidade. A tradio atribui a Leucipo a
inspirao deste pensamento que a rigor despoja o universo de qualquer concepo divina. Sua
tica apresenta o que podemos denominar de hedonismo esclarecido, ou seja, concebia a
felicidade na moderao, na preeminncia da alma sobre os sentidos, cuja meta era a eutimia
que significava um estado de alma sereno e alegre, de tranqilidade e equilbrio. O seu
individualismo se refletia na esfera da famlia e, nesse sentido, combatia o casamento e a
paternidade, isso porque acreditava que tais coisas perturbavam o esprito. Essa concepo
no se estendia ao mbito poltico, pois compreendia que a prosperidade do indivduo est
vinculada vida na polis. Da preocupar-se com questes sobre o bom governo e sobre normas.
Como Scrates, Demcrito inclina-se para uma aristocracia vinculada ao conceito de sabedoria:
em seu modo de ver os melhores deveriam governar.
27
Captulo III
O perodo Socrtico
3.1. O advento da democracia ateniense e suas implicaes polticas
A democracia ateniense no foi obra de um nico homem, sabe-se que esteve presente
por pelo menos dois sculos de existncia no mundo grego-ateniense (508 a 322 a.C.).
Tradicionalmente, comentamos que Clstenes desenvolveu um sistema de democracia, em 508-
7 a.C., entendido como isonomia, ou seja, igualdade perante a lei, mas observa-se que a palavra
democracia foi inventada tardiamente para expressar tal princpio. Demokrata considerada
uma palavra ambgua no universo grego; nesse sentido, krtos significa literalmente poder
soberano do demos. Demos tinha acepes diversas na Atenas do sc. V e poderia significar o
povo como um todo; o conjunto dos cidados adultos do sexo masculino; a maioria pobre do
corpo dos cidados, ou ainda uma denominao dada a pequenas reas dentro da plis
(espcie de diviso em bairros ou comunidades). Demokrata poderia significar tambm
constituio, ou o prprio povo de Atenas na ekklesa (assemblia). Demokrata poderia ser
vista como o governo do povo como um todo ou, para um opositor, como o governo das
pessoas comuns que estabelecem uma ditadura da maioria sobre os melhores cidados.
As fontes fidedignas no revelam quem inventou a palavra demokrata ou quando
comeou a ser efetivamente utilizada, todavia acredita-se em uma apario indireta ou virtual,
registrada em squilo, na tragdia A suplicante, a partir de um equivalente potico: demou
kratousa kheir, que significa a mo soberana do demos. A palavra demokrata somente
aparece em Histrias de Herdoto e na Constituio de Atenas de Xenofonte,
aproximadamente em 420 a.C. Afirma-se que os ideais democrticos no eram aceitos por
todos, havendo inmeros adversrios. Muito dos opositores defendiam um retorno ao sentido
de democracia de Slon, outros pretendiam uma volta forma oferecida por Clstenes e alguns
defendiam ferozmente uma oligarquia. A teoria democrtica tal como se desenvolveu em
Atenas viu-se diante da tarefa de uma reconstruo, sobretudo em face das crticas elaboradas
por Aristteles na obra Poltica.
Sem dvida a Antigidade nos legou um rico acervo sobre poltica, igualdade,
despotismo e liberdade. Muitas vezes no fica claro para o estudante interessado no
pensamento poltico da Antigidade, como compatibilizar o sentido de cidadania ou a idia de
28
liberdade dentro de uma viso aristocrtica que vigorava na poca. Muitas so as crticas, por
exemplo, ao pensamento de Aristteles na Poltica, em que apresenta a dialtica senhor-
escravo. O fato que precisamos compreender o sentido desses termos naquele contexto
histrico, ou seja, compreender o prprio nascimento da liberdade do cidado numa Atenas
arcaica, marcadamente aristocrtica. Em seu Ensaio sobre a mobilizao poltica na Grcia
Antiga, Jos Antnio Dabad Trabulsi relata que a idia de liberdade grega comportava um
aspecto positivo e outro negativo. No sentido positivo, implicava a possibilidade de
participao na direo dos assuntos da polis; no negativo, estaria diretamente relacionado
situao de no ser dependente de outrem, no ser escravo, nem estrangeiro.
A origem da liberdade do cidado estaria no perodo conhecido como Grcia Arcaica
(800-500 a.C.), 40 momento da formao das cidades-estados. As reformas operadas por Slon
teriam contribudo para a criao dessa idia de liberdade no momento em que este legislador
probe a escravido por dvidas de atenienses em razo de dvidas. Na ocasio, havia o instituto
da escravido por dvida e o endividamento de inmeros camponeses colocava a possibilidade
de vrios atenienses experimentarem esse tipo de explorao interna. Essa modificao
conduziu a uma importante separao entre o cidado e o escravo, esvaziando o sentido de
uma explorao da prpria comunidade em favor da difuso da escravido-mercadoria.
Entretanto que motivos teriam levado a nobreza grega a no reagir de forma eficiente para
evitar o desconforto de ter que conceder s camadas inferiores da plis privilgios que
monopolizavam? Pode-se pensar que tal aceitao encontra fundamento na prpria idia de
polis, ou melhor, na fragilidade ou instabilidade da polis grega. Com o seu advento surge
tambm um demos que, paulatinamente, adquire certa conscincia poltica e passa a
reivindicar alguns direitos. Essa transformao decorre de avanos sociais que naturalmente
ampliam o sentido de igualdade at ento restrita classe dos nobres, ou seja, queles a quem
de direito pertencia a partilha do esplio de guerra.
Segundo Trabulsi, nesse aspecto, o modelo grego se destacou do modelo oriental de
acordo com o qual as crises internas eram sufocadas pelas elites. Na Grcia, as crises internas
deviam ser evitadas, pois fragilizavam a cidade diante do estrangeiro. Nesse sentido, era
necessrio garantir um mximo de coeso interna para fazer face ameaa exterior. Donde a
busca da harmonia que uma boa constituio poderia criar. 41 Na obra de Herdoto
40
TRABULSI, Jos Antnio D. Ensaio sobre a mobilizao poltica na Grcia Antiga. BH: UFMG, 2001.A tradio abraou a seguinte diviso: Perodo Pr-Homrico (2500-1100 a.C.); Perodo Homrico (1100 800 a.C.); Perodo Arcaico (800- 500 a.C.); Perodo Clssico ( 500-400 a.C.); perodo Helenstico ( 336-146 a.C.) 41
Idem, 2001: 54.
29
encontramos alguns exemplos para esta tese, como o da cidade de Samos que, fragilizada
internamente, caiu em domnio persa. 42 Nesse sentido afirma o autor que: , portanto, pela
necessidade de manter essa coeso interna da polis, para poder defender a comunidade contra
os eventuais agressores, que as concesses so feitas. Em caso de tal agresso, os aristocratas
se arriscavam a perder tudo de uma vez. 43 Em suma, foi a necessidade premente de garantir
aquele modelo de vida social e poltica que provocou o alargamento da idia grega de liberdade
e o conseqente sentido de cidadania em Atenas, isto , buscou-se na representao
democrtica a constituio de laos integrativos face aos perigos externos de naes com base
territorial e populacional numerosas.
O perodo mais conhecido ou famoso da demokrata ateniense o da segunda metade
do sculo V a.C. Todavia, as fontes disponveis que tratam do tema remontam ao sculo IV a.C,
o que compromete seu estudo, visto que esse sistema aperfeioou-se ao longo do tempo. A
democracia descrita por Aristteles na obra Constituio de Atenas (Athenaion Politea) no ,
portanto, a democracia de Pricles. 44
A democracia ateniense, participativa, difere da democracia moderna, representativa.
As decises eram tomadas e executadas diretamente pelos cidados de Atenas. Duas
instituies eram fundamentais para configurar a imediatez dos procedimentos polticos de
Atenas: a ekklesia (Assemblia) e a boul (conselho dos 500) com seu subcomit de prutneis
(presidentes). Segundo alguns historiadores, todos os problemas da cidade eram observados
primeiramente pelos cinqenta prutneis, que viviam em constante vigilncia. Se constatada a
relevncia do problema, os prutneis convocavam uma reunio plenria da boul dos 500 e, se
necessrio, convocar-se-ia a ekklesia, rgo encarregado da tomada de decises da democracia
direta ateniense. A palavra ekklesia significa, literalmente, um grupo que chamado; esse
grupo se reunia em uma colina chamada Pnix a sudoeste da agor que era o centro cvico de
Atenas.
Os cidados de mais de vinte anos que estivessem inscritos nos registros do seu demo
(comunidade) poderiam integrar a ekklesia. O assunto principal era a poltica externa. Esse
rgo no s deliberava sobre as polticas a serem seguidas, como tambm legislava. Tal funo
foi posteriormente delegada a um rgo menor de legisladores (nomothtai), por volta de 403
a.C. De acordo com os relatos de Aristteles, na dcada de 320 a ekklesia realizava quatro
42
Herdoto, III, 143-144 apud TRABULSI, Jos Antnio D. Ensaio sobre a mobilizao poltica na Grcia Antiga. BH: UFMG, 2001: 55. 43
TRABULSI, Jos Antnio D. Ensaio sobre a mobilizao poltica na Grcia Antiga. BH: UFMG, 2001: 55. 44
Pricles: estadista e general, incentivador da democracia ateniense. JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introduo cultura clssica ateniense. So Paulo: Martins Fontes, 1997.
30
reunies fixas em cada um dos meses que constituam os dez meses civis. A primeira reunio
era denominada de ekklesia soberana (Kria). Cada participante era inicialmente verificado, em
seguida iniciavam as oferendas de purificao, pronunciavam maldies contra traidores e, a
partir de ento, comeavam as sesses. Sabe-se que uma reunio ordinria durava menos do
que um dia. Outro fator importante a ser destacado que na prtica nem todos os cidados
participavam da ekklesia ou poderiam subir tribuna.
Acreditam alguns historiadores que a populao de cidados de Atenas flutuava em
torno de 20 ou 50 mil pessoas, mas que somente cinco mil efetivamente participavam da
ekklesia. Isso porque, alm de o local no comportar um grande nmero de cidados, muitos
no se sentiam atrados pelo debate, ou ainda viviam desmotivados pela longa distncia que
teriam que percorrer dos demos at a Pnix. Portanto, no sc. IV introduziram uma espcie de
pagamento para compensar o comparecimento que implicava perda de horas de trabalho. Por
razes no difceis de compreender, entre 400 e 330 a.C. a Pnix sofreu reformas para acomodar
um nmero cada vez crescente de cidados alcanando o quorum de 13 mil participantes.
A ekklesia exigia qualidades especiais de seus oradores, que lanavam mo da
persuaso para obter xito em relao aos seus interesses. Essa habilidade imperiosa para o
cidado ateniense proporcionou um grande desenvolvimento da educao sofstica. Os
cidados que falavam tribuna eram denominados de rhetores, ou seja, oradores ou ainda
politeumenoi, os polticos. Esses rhetores falavam na ekklesia na qualidade de lderes de
pequenos grupos polticos ou pessoas com idias parecidas (no confundir com o que
chamamos hodiernamente de partidos polticos). Eram agrupamentos informais, em que
aquele que expressava com maior clareza suas idias freqentemente tornava-se o porta-voz.
Alguns desses oradores foram tambm denominados de demagogs que significa
literalmente, o condutor do demos. 45 A conduo da justia em Atenas era responsabilidade
dos thesmothtai, seis funcionrios. A democracia ateniense implicava tambm uma grande
participao do cidado nos tribunais. Em Atenas, ou melhor, na antiga Grcia no havia a
separao dos poderes. Foi Aristteles em sua obra Poltica que ressaltou que o cidado de
uma democracia no s participava da boul e ekklesia, como tambm, participava nos
tribunais.
3.2. Os tribunais em Atenas: graph paranmom
45
JONES, P.(org) O mundo de Atenas. Uma introduo cultura clssica ateniense. SP: Martins Fontes, 1997: 210.
31
O surgimento de um tribunal popular como recurso contra as decises das autoridades
se deu com Slon em 594 a.C, denominado de Eliaia. Aps 462-61, todos os tribunais do jri
passaram a figurar como Eliaia, no s como fase recursal, mas como primeira instncia. Tais
tribunais eram constitudos por jurados em um nmero que poderia variar entre 201 a 2.501
membros e, nesse caso, tambm foram chamados de dikastria. Sabe-se que o jri era
escolhido de acordo com a necessidade a partir de uma lista anual de seis mil jurados e, mais
tarde no sc. IV a.C, eram escolhidos dentre os que se ofereciam para tal. Observa Peter V.
Jones, na obra supramencionada, que o termo jurado inapropriado para designar os
dikastai, pois no havia juzes no sentido moderno, mas jurados, que eram, ao mesmo
tempo, juzes. Os dikastai eram pagos por cada dia de sesso; pagamento que fora introduzido
por Pricles. 46 Pode-se presumir que o cidado que comparecia para ser jurado era o mesmo
que tinha o hbito de comparecer s ekklesias.
Muitas vezes a ekklesia funcionava como tribunal. Observa-se ainda a inexistncia de
um rgo que funcionasse como Ministrio Pblico ou fora policial especfica. O procedimento
especfico desses rgos ficava a cargo da iniciativa particular, embora houvesse a distino
entre casos pblicos e casos particulares. Neste ltimo, somente a parte ofendida poderia
mover a ao, que por sua vez era denominada de dke. Nos casos pblicos, a iniciativa ficava a
cargo de quem quisesse emitir uma intimao por escrito (graph).
O homicdio, por exemplo, era considerado como dke por prejudicar o papel da famlia.
Se um orador na ekklesia apresentasse uma proposta inconstitucional, configuraria um caso
pblico para quem quisesse salvaguardar a democracia. Rumores de subverso e problemas de
desafeto poltico tambm possibilitariam uma graph. Uma vez emitida a intimao, graph
paranmom, 47 ao orador com proposta de lei inconstitucional, esta ficaria suspensa at o
julgamento e, sendo considerado culpado, pagaria uma multa e seu projeto seria
imediatamente cancelado. Em Atenas, o povo como jurado julgava o prprio povo na ekklesia o
que assinala, em certo sentido, o princpio da responsabilidade democrtica alcanando a
todos.
Na obra Apologia de Scrates, que narra a verso platnica sobre o julgamento de
Scrates, condenado morte em 399 a.C., percebemos as peculiaridades do tribunal ateniense.
No havia advogados; os querelantes falavam em causa prpria, sem regras para apresentao
46
Cf. As vespas (422) de Aristfanes que constitui uma stira sobre os tribunais. 47
O primeiro uso da graph paranmom foi verificado em 415, momento em que houve rumores de subverso. Tambm foi utilizada na competio pelo sucesso poltico. A graph paranmom substituiu o ostracismo que foi abandonado por volta de 416.
32
de provas e sem juiz. As testemunhas, embora fundamentais, no eram ouvidas pelas duas
partes e os jurados reagiam conforme suas emoes e preconceitos morais. Os jurados
votavam imediatamente aps o discurso dos querelantes, sem fazer uso de recintos reservados
ou de conselhos de juiz. O testemunho de escravos somente poderia ser aceito se obtido sob
tortura, porque eram considerados objetos sem alma, coisas. Na verdade, o escravo era tido
como um bem familiar valioso para o senhor que preferia no submet-lo a qualquer tortura, o
que contribuiu como argumento vlido para a limitao de testemunhos considerados pouco
confiveis.
Sabe-se que no sculo IV a.C. havia o recurso da arbitragem. Ambas as partes
concordavam com a participao de rbitros particulares e se comprometiam a aceitar as
decises. Segundo os historiadores, as partes poderiam invocar a arbitragem a qualquer tempo
em um processo civil. Se tal mtodo no fosse eficaz, procedia-se a uma intimao. A parte
ofendida se dirigia agora e verificava se as leis que l estavam expostas apoiavam seus
interesses e qual o procedimento adequado sua causa. Inicialmente, a intimao era feita
verbalmente, o ru comunicado perante testemunhas deveria apresentar-se ao rkhon,
conselho judicirio em dia estabelecido. Na data prevista, tal conselho decidia sobre a
possibilidade ou no do processo. Se vivel, a queixa era registrada por escrito e ambas as
partes depositavam um sinal referente as custas que o perdedor pagava por inteiro aps o
julgamento. O conselho judicirio fixava um dia para a audincia e determinava que uma cpia
da queixa fosse exposta publicamente na agor.
No caso de uma dike, a aplicao da sentena era funo do ofendido. A recusa em fazer
um acerto ou acordo poderia ensejar mais processos e at mesmo a perda dos direitos civis
(atmia). Se o condenado se recusasse a pagar a quantia estipulada, o querelante vencedor
poderia apossar-se de suas propriedades no valor referente quantia imposta. Os julgamentos
em uma graph e as sentenas de morte proferidas eram atribuies de funcionrios da cidade.
Atenas tinha um grande nmero de funcionrios com mandatos anuais, embora a cidade no
possusse uma burocracia, no sentido moderno do termo. Segundo Aristteles, na segunda
metade do sc. V a.C., Atenas contava com setecentos funcionrios, o que ressalta o sentido
democrtico na oportunidade de ocupar cargos pblicos por turnos.
A situao de atima equivalia a estar fora da lei e, nesse sentido, o homem na condio
de timos poderia ser morto ou roubado sem ter direito reparao legal. A atima no
acarretava a perda das propriedades ou o exlio; antes, porm, equiparava-se morte no
sentido poltico, a privao absoluta dos direitos civis: falar na ekklesia, participar nos tribunais,
33
integrar a boul, entrar nos templos e na agor. Em geral, a perda dos direitos civis era de
carter perptuo, sobretudo nos casos considerados, particularmente graves e era at mesmo
dirigida aos descendentes. Peter Jones nos relata um caso curioso, o de Andcides, em 415 a.C.,
que sofreu a perda parcial dos direitos civis por se envolver na profanao dos Mistrios de
Elusis. Segundo seus relatos, tal sentena foi revogada por ocasio de uma anistia geral
extraordinria concedida em 403. 48 Enfim, Atenas foi a polis grega que mais contribuiu
intelectualmente para o desenvolvimento das cincias e artes. A sua importncia envolve a
matemtica, a retrica, a histria, a tica, a poltica, a lingstica, a lgica e as artes (poesia,
escultura e arquitetura). Seus pensadores desenvolveram teorias que permaneceram vlidas
durante milhares de anos e algumas perduram at hoje.
3.4. O advento da Sofstica: do cosmo para o homem.
O sculo V vivenciou um esplndido apogeu cultural na cidade de Atenas, considerada a
capital intelectual do mundo helnico. Essa cidade-estado experimentou um verdadeiro
entrecruzamento de pensamentos filosficos que contribuiu para a passagem do perodo
cosmolgico para a fase antropolgica. Foi nesse contexto que surgiram os sofistas. O
movimento sofstico em Atenas mobilizou um grande nmero de professores e causou um
efeito perturbador na antiga educao do jovem grego, construindo um novo tipo de instruo
no interior do sistema at ento existente. Pode-se observar a educao grega antes do
aparecimento da sofstica a partir das obras de Aristfanes e dos dilogos Repblica e
Protgoras de Plato. A educao ateniense se dividia em duas partes fundamentais: a
gymnastik (educao fsica) e a mousik (intelectual).49 Na verdade, no havia um sistema
elaborado, mas a escolaridade no ultrapassava o estgio elementar. Consistia simplesmente
nos rudimentos da gymnastik e da mousik e dependia da iniciativa individual, dependia da
capacidade financeira da famlia. 50
Nesse sentido, no havia nmero obrigatrio de anos de estudo e para cada ramo de
saber havia professores especficos. Para a mousik tinham o kitharists e para a gymnastik, os
paidotribs que vem do grego paidia, jogos para crianas dos 7 aos 14 anos. Todos recebiam
honorrios e eram contratados diretamente pelas famlias. Quando alcanavam a adolescncia
eram dispensados do acompanhamento formal, pois se acreditava que a prpria vivncia na
48
JONES, P (org). O mundo de Atenas. Uma introduo cultura clssica ateniense. SP: Martins Fontes, 1997: 231-2. 49
PLATO. Repblica. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian: 1993: 376 e. 50
PLATO. Protgoras. Belm: Edufra, 2002: 326 c.
34
plis iria complementar a educao. Segundo Aristfanes, na obra As Nuvens, o objetivo da
educao grega era atingir a excelncia moral, a transformao em boas pessoas, ou seja, bons
cidados, ou cidados teis. Na fase da adolescncia o jovem experimentava o tempo de cio,
do grego schol como complemento sua primeira formao. Dos 18 aos 20 anos os jovens do
sexo masculino, epheboi, experimentavam o servio militar obrigatrio.
O movimento sofstico ganhou expresso nesse vcuo da formao do jovem grego.
Construa um novo tipo de instruo no interior de um sistema que no se estendia alm do
nvel elementar. Os sofistas criaram um nvel secundrio valorizando temas de natureza
intelectual em detrimento da gymnastik. No precisamos mencionar que os contedos
variavam de acordo com a viso educacional de cada sofista ou da famlia. 51 Assim, ensinavam
como tutores privados, competindo entre si, formando grupos com certa identidade,
profissionalizando as idias de schol e diatribe. Protgoras foi considerado o primeiro a
ensinar mediante pagamento. Nas palavras de Iscrates, quando fala de seu mestre Grgias,
percebe-se essa nova realidade:
Ele ensinava na rea da Tesslia onde os gregos mais prsperos viviam e onde dedicavam a maior parte da sua vida ao trabalho. No estabeleceu residncia fixa em nenhuma cidade e, portanto, no gastou dinheiro nos interesses da comunidade nem foi obrigado a pagar impostos. 52
Buscando outra leitura da sofstica, podemos pensar que Scrates, Plato e Aristteles,
como para muitos dos seus coetneos, seriam mais um dentre uma grande variedade de
sofistas. A possvel distino estaria num certo ponto de vista platnico. Plato se considerava
mais philosophoi do que sophistai, mas temos que desconfiar que nos sc. V e IV a.C. no havia
tal distino. Ademais, Plato nos chamou a ateno para a diferena de mtodo entre Scrates
e os sofistas. Scrates no havia desenvolvido um currculo secundrio moda sofista. Tanto
Plato como Xenofonte nos relatam o pensamento socrtico mais prximo da educao antiga
grega. Segundo relatos de Xenofonte, Scrates saa ao amanhecer e freqentava o que eles
chamavam de peripatoi, gymnasium, gora. Assim, ganhou muitos discpulos e teria fundado
uma escola, mas no aceitava pagamento. Sua paidia tratava de uma educao para a vida em
cidade.53 Outro relato interessante que nos permite visualizar a diferena entre Scrates e os
sofistas est nas palavras de um discpulo de Aristteles quando menciona:
51
Iscrates, Antidosis, 304, apud PATRICK, John.. Aristotle' s School. A study of a Greek Educational Institution (1972) Londres: University of California Press, p. 32-67. 52
Ibidem. 53
XENOFONTE. Os pensadores. Ditos e feitos memorveis de Scrates. SP: Abril, 1973, p, 33-b.
35
Scrates era, de qualquer maneira, um filsofo embora no tenha assentado ou no se tenha estabelecido a si mesmo num trono ou mesmo fixado uma hora para conversar (diatribe), ou para caminhar (peripatos) com seus conhecidos (gnonimoi). Ao invs, estava com eles sempre que podia e servia no exrcito ou ia para o gora com alguns deles. 54
A sofstica se tornara uma exigncia da prpria democracia ateniense: formar cidados
capazes de viabilizao de idias polticas nas assemblias. Esses senhores cultivaram a
retrica, qualidade pedaggica de convencer pela argumentao o que se concebia como
verdade. Tratava-se de uma tendncia para institucionalizar a educao grega. Interessante
observar que na viso de Aristfanes, Scrates e os sofistas promoveram uma transformao
na educao do jovem grego: desenvolveram uma educao secundria com forte contedo
intelectual. Muitos estudiosos denominaram essa fase como o Iluminismo grego, pois a
tendncia retrica baseava-se num racionalismo de esprito crtico sobre a tradio helnica.
Ressaltaram a contraposio entre o natural e o convencional, ou seja, o costume, o arbtrio
dos homens que estabelece o que justo ou injusto, certo ou errado.
Os sofistas, com suas teses acerca da relativizao da verdade, causaram receio e
escndalo que se refletiram nas comdias de Aristfanes e nos dilogos de Plato. Na verdade,
as informaes que temos dos sofistas foram obtidas atravs dos dilogos de Plato, seu
opositor declarado. O nico estudo da sofstica repousa na existncia de alguns fragmentos ou
fontes indiretas, alm de no constituir uma unidade sistemtica. Nos dilogos de Plato os
sofistas figuram como os interlocutores de Scrates. Nesse sentido, resta-nos a mxima
prudncia possvel ao tentar compreend-los.
Mas o que fizeram tais homens? Os sofistas freqentemente criticavam o fundamento
que conferia validade s leis e costumes da tradio. Atacavam o aspecto sagrado da tradio
helnica. Eles observavam a diversidade cultural de sua poca e percebiam a mudana na
esfera das instituies. A lei e os costumes assumiam um carter essencialmente humano,
convencional, vinculado vontade dos homens. Assim como nos pensadores jnicos, o ponto
de partida dos sofistas foi o movimento e a procura de uma realidade nica capaz de
permanecer idntica a si mesma. Sendo assim, surgiu com os sofistas a dicotomia natureza
(physis) e lei (nomos) ou conveno. A moralidade passa a estar desligada da ordem natural e o
interesse pela convenincia assume o status de pilares da vida social. preciso mencionar que
o termo sofista significa sbio ou especialista do saber, por isso a palavra em sua origem
apresentou um sentido positivo, mas ganhou conotao negativa a partir do pensamento
54
Plutarco. An seni res publica gerenda sit, XXVI, 796d.
36
platnico, vinculando-a ao saber aparente e no efetivo. Esses especialistas do saber
promoveram uma verdadeira revoluo espiritual, deslocando a reflexo filosfica da physis
para o homem e a plis. Ganhavam relevo problemas ticos, polticos, lingsticos, religiosos e a
prpria educao como objeto do pensamento. Os sofistas constituram, na verdade, o
primeiro e efetivo movimento intelectual de cunho poltico.
Alguns autores costumam dizer que podemos experimentar o advento de uma fase
humanista da filosofia grega, um movimento com dois momentos bem distintos. O primeiro foi
com a filosofia da physis e a emergncia da vida urbana acompanhada de uma crise de valores
da aristocracia grega, com afluxo de estrangeiros na plis e a ampliao do comrcio. Assim, as
cidades gregas passavam por uma mudana de olhar provocada pela difuso dos
conhecimentos e experincias dos viajantes e a virtude passava ento a ser adquirida, no mais
ligada ao nascimento nobre. O segundo com o advento da sofstica. O problema educacional
assumiu lugar de destaque quando enfatizou que a nova aret se desvinculara da nobreza e se
fundara no saber. Nas lies de Giovanni Reale e Dario Antiseri, tivemos trs grupos de
sofistas: os que formaram a primeira gerao, os mais famosos; os que podem ser
denominados de crticos, porque estav