Post on 06-Mar-2018
Artigo | Joe Garcia
A indisciplina e seus impactos no currículo escolar1
Joe Garcia
Doutor em Educação e docente da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), se dedica à pesquisa de práticas
pedagógicas inovadoras, com focoem currículo, indisciplina e interdisciplinaridade.
O currículo pode ser pensado de diferentes formas. Algumas abordagens atuais o
descrevem como um artefato cultural, um conjunto de elementos selecionados da cultura que
irão constituir, orientar e significar diferentes processos de ensino- aprendizagem. Essa
seleção, entretanto, é complexa. Ela reflete visões sociais particulares e interessadas
(MOREIRA e SILVA, 2011, p. 7-8), bem como diferentes mecanismos de poder, instâncias
decisórias, influências e forças, e a participação de múltiplos agentes (SACRISTÁN, 2000, p.
101), que tornam o currículo um "território contestado" (SILVA, 2012; SILVA e MOREIRA,
2004). Assim, parte da complexidade do currículo decorre de ele ser reconfigurado no
cotidiano, quando o planejado é exposto à resistência dos estudantes e pode sofrer
transformações.
O currículo oficial e o praticado
Na literatura educacional, o termo currículo tem diferentes significados, tais como
conhecimento escolar, conjunto de experiências de aprendizagem proporcionadas aos
estudantes na escola (MOREIRA, 2011), ou um modo pelo qual a cultura é representada e
reproduzida no cotidiano das instituições escolares (PEDRA, 2000, p. 38). E há muitas outras
concepções.
Aqui, consideramos o currículo como uma seleção de diferentes elementos da cultura,
exercida por diferentes sujeitos, em conflito ou confluência, segundo vários propósitos,
interesses e condições de poder.
Em termos gerais, o currículo engloba diferentes possibilidades, situadas entre aquilo
que se planeja ensinar e o que é efetivado.
O currículo oficial contém as expectativas formais sobre o que deve ser proporcionado
aos alunos, enquanto o currículo praticado refere-se àquilo que é de fato ensinado e
aprendido na escola. Embora o praticado tenha por referência o oficial, reflete também um
processo de reelaboração decisória, uma reconfiguração por meio de negociação entre
professores e alunos (ERIKSON e SHULTZ, 1992). Assim, o currículo praticado pode estar mais
ou menos distante do que está proposto no oficial.
O currículo praticado reflete diversas decisões que são tomadas não apenas pelos
professores. Tal como observa Sacristán (2000, p. 101-102), o que é implementado na prática
pedagógica está sujeito a um processo de deliberação aberto, envolve diferentes sujeitos e
resulta de uma série de influências, convergentes ou contraditórias. Em sala de aula, os
professores experimentam um "fluxo mutante de acontecimentos" (p. 205), em meio ao qual
precisam tomar decisões sobre o currículo. Esse processo, nem sempre claro e explicitado,
está muito presente no cotidiano escolar.
Os professores atuam de diversas formas na configuração do currículo praticado,
impondo intencionalidades, racionalidades, valores, perspectivas culturais e suas próprias
identidades. Fazem escolhas com base em sua autoridade, formação e experiência,
considerando circunstâncias e contextos e as expectativas em relação ao desenvolvimento dos
estudantes. Mas a decisão sobre os rumos do currículo envolve um processo complexo de
relação e construção social, que recebe também a influência dos alunos.
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1 Versão revista e atualizada do artigo Currículo e questões de indisciplina, publicado nos Anais
do 7º Congresso Nacional de Educação (Educere) da Pontifícia Universidade Católica (PUC-PR).
Indisciplina e mudanças no currículo
Há diversas formas pelas quais os estudantes introduzem mudanças no currículo.
Uma delas é a indisciplina, força capaz de mudar a direção do currículo praticado, que
os coloca em uma inevitável e complicada posição de negociação sobre o que será ensinado.
Ela produz mudanças qualitativas e quantitativas no currículo por meio de ênfases e omissões,
pelo modo como controla o tempo da explicação, conduz debates e decide as tarefas em sala.
Cuban (1992) afirma que os alunos são capazes de mudar o currículo pela forma como
participam e alteram as atividades em sala. Eles conseguem, por exemplo, dissuadir os
professores de ensinar o que foi originalmente planejado, resultando em alterações menores
ou maiores nos conteúdos e o esvaziamento de suas importâncias.
Os estudantes também exercem controle sobre o currículo pelo modo como exibem
cooperação em sala de aula (WALTER e SOLTIS, 1992, p. 5). Eles podem não realizar as
atividades propostas, resistir a determinadas aprendizagens, bem como afirmar interesses
divergentes daqueles representados pelos educadores. Além disso, a indisciplina questiona
não somente a noção de conhecimento válido embutida no currículo mas também a ideia de
sujeito por ele veiculada. O currículo deseja mudar os jovens e as crianças, mas não consegue
sair imune da relação com esses sujeitos.
Outra forma de alteração ocorre quando os professores deixam de abordar alguns
conteúdos a serem apresentados para evitar confrontos, indisposições, bagunça ou até a
revolta em sala de aula. Fazem isso minimizando temas planejados que possam gerar
controvérsias ou resistências, por exemplo.
Ennis (1996) realizou uma investigação junto a educadores do Ensino Fundamental e
observou que eles modificavam o currículo planejado por receio de haver confrontos com a
turma. Os professores evitavam conteúdos que acreditavam não ser do interesse dos alunos
ou que gerassem atividades em que estes talvez se recusassem a participar. Também
descartavam aqueles que pudessem gerar discussões para as quais eles não se sentissem bem
preparados.
Assim, antevendo situações de confronto e resistência, os professores podem mudar a
direção do currículo. Tal como observou Sacristán (2000, p. 260), diante da ingovernabilidade
da classe, eles podem excluir do currículo tarefas em que sintam mais insegurança, nas quais é
mais difícil manter a ordem e que exigem mais atividades.
Algo similar observou Oliveira (2004), com uma pesquisa sobre as atitudes dos
educadores diante da indisciplina. O material sugere que os docentes a enxergam como um
elemento capaz de alterar o desenvolvimento da aula e impedir que sigam lecionando o
planejado, afetando ou inviabilizando seu trabalho. Em complemento, Garcia (2012) verificou
que o sentimento de confiança dos educadores em relação aos alunos é vulnerável à
indisciplina.
O tom pedagógico da indisciplina
Há um papel produtivo, de agente reflexivo, exercido pela indisciplina. Ela pode mover
o currículo na direção de atender expectativas e necessidades dos alunos. Quando eles
resistem a cumprir certos percursos curriculares, podem estar sinalizando que não desejam
agir como sujeitos passivos, incondicionalmente dispostos a internalizar valores e atitudes e a
desenvolver habilidades que lhes darão passagem para posições sociais similares à dos seus
pais (CUBAN, 1992, p. 236).
Com a resistência para aprender o que está no currículo, os alunos forçam não só a
revisão nos conteúdos e a renovação em métodos de ensino e avaliação mas também uma
reflexão sobre os meios, as relações, os ambientes e os contextos que sustentam a Educação
oferecida na escola.
A indisciplina pode ser definida como uma instabilidade e ruptura no contrato social da
aprendizagem. Ela é, assim, uma força que atua no tecido da relação entre educadores e
alunos, que sustenta o desdobrar do currículo. Dessa forma, por meio da interferência sobre o
currículo, a indisciplina deseja transformar relações pedagógicas insatisfatórias. Tal como
sugerem as pesquisas mencionadas anteriormente, as escolhas dos professores também
refletem o estado da relação com os alunos - afinal, o currículo não somente articula
conhecimentos mas também corporifica relações sociais (SILVA, 2004, p. 201).
A indisciplina também pode questionar a autoridade que os professores detêm sobre o
currículo - e consequentemente sobre o comportamento da turma. Isso traz o poder dos
educadores ao centro das críticas. Ou seja, o currículo deve mudar não somente quando não
atende às necessidades dos alunos mas também se reflete em excesso as escolhas e os
privilégios dos professores. A indisciplina, assim, não seria só um modo de criticar o currículo
praticado pelos professores, mas a forma como esse grupo o utiliza como um instrumento de
poder.
Considerações finais
No cotidiano escolar, os eventos de indisciplina se conectam a diferentes questões a
respeito do currículo. Por que foi escolhido determinado currículo? De quem e para quem é o
currículo seguido pela escola? Existe alguma sintonia entre o currículo e as expectativas e
necessidades das crianças e dos jovens?
Se a indisciplina é capaz de esvaziar os conteúdos do currículo, também questiona a
autoria e a qualidade das relações pedagógicas que o sustentam. Assim, a indisciplina deveria
nos remeter não só à discussão sobre os conteúdos e as experiências de aprendizagem mas
também pôr em questão a qualidade da relação entre professores e estudantes e a
legitimidade da autoridade docente para decidir sobre o currículo da forma como
tradicionalmente ocorre. A indisciplina, nessa perspectiva, promove uma crise reflexiva sobre a
natureza, a composição, a experiência e a autoria do currículo.
O currículo, como analisa Pinar (2011, p. 186-188), é uma "conversa complicada", na
qual nem sempre os alunos conseguem explorar a si mesmos e a sociedade. Ele é altamente
abstrato e, não raro, está divorciado do mundo ao seu redor.
Nessa conversa complicada estão diversas vozes. Entre elas, a da indisciplina escolar,
que deseja questionar o currículo, embora suas mensagens nem sempre sejam conexas ou
desejadas. Mas ela expressa posições e sinaliza que o currículo precisa ser uma conversa
aberta, reflexiva, atenta às vozes e à autoria dos diversos sujeitos envolvidos em sua prática.
Resumo
A indisciplina é um elemento que tem força para modificar o currículo praticado pelos
professores, chegando muitas vezes a inviabilizar parte do que havia sido planejado para as
aulas. Mas não é somente isso. Ela também é capaz de induzir mudanças em ideias e práticas
educacionais insatisfatórias - e isso precisa ser considerado por professores, coordenadores
pedagógicos, diretores e outros membros da equipe escolar.
Referências
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Publicado em NOVA ESCOLA Edição 261, Abril 2013.