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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A MEMÓRIA DAS INSIGNIFICÂNCIAS: AGNÈS VARDA E OUTRA HISTÓRIA DO
MUNDO
Laís Ferreira Oliveira1
Resumo: Neste trabalho, buscamos entender, a partir das obras As praias de Agnès (2008), Os
catadores e eu (2000), Saudações, cubanos! (1971) e Um minuto para uma imagem (1982), as
maneiras pelas quais Agnès Varda ensaia uma possibilidade de história e de identidade.
Palavras-chave: Filme-ensaio; memória; documento; Agnés Varda.
Uma mulher se ensaia: identidade em curso e diferença
No início de As praias de Agnès(Les plages d’Agnès, 2008), uma câmera tremula, enquanto
mostra a imagem de uma praia. É um travelling instável, que nos permite ver que há algumas algas
sobre a costa e que é lusco-fusco. De repente, do lado esquerdo dessa imagem, aparece o corpo de
Agnès Varda, que olha para a câmera. Ela nos diz: “Faço um papel de uma velhota, roliça e
tagarela que conta a sua vida”. No entanto, a cineasta belga nos esclarece acerca do seu interesse
primordial: “Contudo, são os outros que me interessam realmente e que eu gosto de filmar”. Por
essa pequena epígrafe, já levantamos alguns do elementos que gostaríamos de discutir neste artigo:
o filme-ensaio e a subjetividade em relação com a história e uma narrativa do mundo que olha para
os pequenos eventos. Para ancorar nossa discursão, retomamos, dentre outos elementos, ao
pensamento de Theodor Adorno e Timothy Corrigan sobre o ensaio; a relação dos tempos para
Bergson; a discussão de identidade por Judith Butler; e o pensamento de Michel Foucault e Walter
Benjamin sobre história e documento. Nossa hipótese é que no filme-ensaio também é possível
ensaiar-se como mulher, permanecendo sempre de forma inconclusa. Para tanto, adotamos como
objetos os filmes As praias de Agnès, Os catadores e eu (Les glaneurs et la glaneuse, 2000) e
Saudações, cubanos!(Salut, les cubains, 1971) e Um minuto para uma imagem (Une minute pour
une image, 1982).
1 Laís Ferreira Oliveira é mestranda no PPGCOM da UFF, com ênfase nos estudos do cinema e audiovisual. É escritora,
poeta, jornalista, crítica de cinema e editora da Revista Moventes: http://revistamoventes.com/.
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Figura 1: Frames de As praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)
Fonte: As praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)
O gênero ensaio atravessa o cinema, mas não se restringe a ele, sendo encontrado
também na literatura e na filosofia. Em O ensaio como forma, o filósofo Theodor Adorno
afirma: “o ensaio provoca resistência porque evoca aquela liberdade de espírito”(ADORNO,
2003, p.16). Essa liberdade convoca uma relação muito particular com a experiência e com
o seu registro. Destacamos ainda do pensamento adorniano:
a relação com a experiência - e o ensaio confere à experiência tanta substância
quanto a teoria tradicional às meras categorias - é uma relação com toda história: a
experiência meramente individual, que a consciência toma como ponto de partida
por sua proximidade, é ela mesma já mediada pela experiência mais abrangente da
humanidade histórica; é um mero auto-engano da sociedade e da ideologia
individualistas conceber a experiência da humanidade histórica como sendo
mediada, enquanto o imediato, por sua vez, será a experiência de cada um. O ensaio
desafia, por isso, a noção de que o historicamente produzido deve ser menosprezado
como objeto da teoria(ADORNO, 2003, p.26).
O que o ensaio parece nos propor e possibilitar é uma relação em que a experiência
individual e subjetiva, o cotidiano corriqueiro, também contribuem para um pensamento sobre a
história. Em As praias de Agnès, Varda atravessa diferentes praias e lugares, as quais parecem ter
como elemento comum a forma subjetiva como construíram parte da memória e da subjetividade da
cineasta. De forma semelhante, em Os catadores e eu se colocar como catadora, aproximar o gesto
de fazer cinema do ato de “catar”, possibilita que a cineasta cruze tempos históricos distintos,
partindo de ícones de catadores advindos de pinturas clássicas até uma aproximação com os gestos
de pessoas pobres que coletam alimentos deixados nas ruas depois de uma feira. É também uma voz
subjetiva que celebra o cotidiano em Saudações, cubanos!, em que não é apenas a recordação dos
atos do guerrilheiros que constroem o pensamento sobre a revolução cubana, mas também como as
pessoas comuns se comportam nas ruas e como a cineasta interage com eles.
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Varda é uma cineasta que transita pelos espaços e pelos acontecimentos, narrando sobre
eles, comentando sobre aquilo que vê. Como aponta Adorno “o ensaio, porém, não quer procurar o
eterno no transitório, nem destilá-lo a partir deste, mas sim eternizar o transitório”(ADORNO,
2003, p.27). Aquilo que está de passagem, em perene mudança, parece ser, em As praias de Agnès,
o que a constitui também subjetivamente. Na sequência de abertura, logo após destacar o seu
interesse pelos outros, a cineasta vai andando e se aproximando da câmera. Enquanto a vemos mais
de perto, Varda nos avisa: “Desta vez, para falar de mim, pensei: se abríssemos as pessoas,
encontraríamos paisagens”. No entanto, ela se diferencia das outras pessoas e afirma: “Mas se me
abrissem a mim, encontrariam praias”. É curioso pensarmos o porquê de, no pensamento de Varda,
uma praia não constituir uma paisagem, mas possuir outra natureza. Para nos ajudar a entender essa
relação, podemos recorrer a Jean-Luc Nancy em Uncanny Landscape. Segundo o filósofo:
A paisagem contém nenhuma presença: ela é, nela mesma, a presença inteira.
Mas isso é também porque não é uma visão da natureza distinta da cultura, mas é
a apresentada junta com a cultura em um relação dada (de trabalho ou descanso,
de oposição ou transformação, etc). É uma representação de terra como uma
possibilidade de tomar espaço de sentido, uma localização ou uma localidade de
sentido, que significa apenas estar ocupada de si mesma, fazendo de si “ela
mesma”, como esta esquina, este ângulo aberta em uma área posta or dentro de
um espetáculo já posto; mas é um ângulo aberto em si mesmo, criando uma
abertura e então uma perspectiva, não como um olhar sobre um objeto (ou como
a visão), mas como o nascimento ou o surgimento adiante, a abertura e a
apresentação de um sentido que não se refere à nada, mas a essa
apresentação(NANCY, 2005, p.58)2.
Arriscamos a dizer que em As praias de Agnès a cineasta propunha essa distinção entre as
praias e as paisagens porque as praias não poderiam, em momento algum, significar-se apenas em
si. As praias pressupunham sempre alguém que chegasse, outro que partisse, uma mudança em
curso, ainda que na pequena oscilação das marés. Propondo uma aproximação livre de relações e
sentimentos de mundo, podemos recuperar o que comenta Sophia de Mello Breyer acerca de sua
relação com o mar. A poetisa portuguesa escreve:
2 Tradução nossa. Texto original: “A landscape contains no presence: it is itself the entire presence. But that is also why
it is not a view of nature distinguished from culture but is presented together with culture in a given relationship (of
work or rest, of opposition or transformation, etc.). It is a repre- sentation of the land as the possibility of a taking place
of sense, a localization or a locality of sense, which makes sense only by being occupied with itself, making itself
‘‘itself’’ as this corner, this angle opened onto an area opposite or onto a spectacle already laid out; but it is an angle
opened onto itself, creating an opening and thus a view, not as the perspective of a gaze upon an object (or as vision)
but as a springing up or a surging forth, the opening and presentation of a sense that refers to nothing but this
presentation”(NANCY, 2005, p.58).
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“o meu interior é uma atenção voltada para fora (…)
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa sibilada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
(…)
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por métodos é nu meu pensamento.”
(BREYNER, 2010, p.68)
Varda escolhe trazer para a praia espelhos e molduras, construindo reflexos e
enquadramentos de si na areia e na beira do mar. Esses são retratos que não são encerrados, terão
outra imagem sempre que qualquer pessoa transitar pela praia ou houver qualquer mudança no
volume das águas. No presente, passam a ser constituídos, assim, retratos que poderão ser sempre
apreendidos a partir de um futuro, de um outro agora. Essa ação também é acompanhada de uma
rememoração do passado. Enquanto a cineasta dispõe esses objetos na costa, ela comenta de
eventos que aconteceram antes, como a maneira pela qual escutavam música na antiga casa.
Figura 2: Frames de As praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)
Fonte: As praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)
Para pensarmos no passado, no presente e no futuro não mais separados por divisas nítidas,
podemos recuperar as teses de Henri Bergson. Em A evolução criadora, o filósofo afirma: “o tempo
tem, para um ser vivo, exatamente tanta realidade quanta para uma ampulheta, na qual o
reservatório de cima se esvazia enquanto o reservatório de baixo se preenche e na qual podemos
recolocar as coisas no lugar virando o aparelho”(BERGSON, 2005, p.19). Escolher o mar como
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uma constituição de si, um retrato possível é reconhecer uma certa indiscernibilidade entre o tempo
da natureza e o tempo da vida de uma mulher. As praias de Agnès, é um filme que, em diversas
sequências, reflexiona sobre o tempo, numa cineasta que, ao se ver com a idade avançada, recupera
os lugares que passou, as amizades e amor que teve, o princípio do trabalho com o cinema, o
significado da infância. Com 74 anos, Varda retorna a Bélgica e rememora a infância vivida no
país. Ela comenta sobre a imagem de duas garotas, que brincam na areia. Indaga-se sobre como
poderia construir a representação daquela cena, algo que não considerada possível, na medida em
que pensava o cinema como um jogo, antes que uma ferramenta de reconstrução do que foi. Nesse
sentido, Varda convoca antes a liberdade da imaginação que o acúmulo dos anos na determinação
da uma faixa etária. Afirma: “imaginarmo-nos como criança é como correr para trás. Imaginarmo-
nos velhos é divertido”. Na sequência seguinte, depois da imagem de uma senhora andando com um
aparador, Varda tenta repetir o mesmo gesto, agora, posicionando-os as mãos como se tivesse um
aparador imaginário.
Figura 3: Frames de As praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)
Fonte: As praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)
Envelhecer não é se separar totalmente de uma possibilidade da infância e construir a
memória é estabelecer relações entre os acontecimentos que não se resumem a uma ordem
cronológica ou à restituição daquilo que foi vivido. Como coloca Bergson,
é preciso que a mudança se reduza a um arranjo ou a um desarranjo
das partes, que a irreversibilidade do tempo seja uma aparência
relativa à nossa ignorância, que a impossibilidade de voltar atrás
não seja mais que a incapacidade dos homens de recolocar as
coisas no lugar. Desde então, o envelhecimento só poderá ser
aquisição progressiva ou a perda gradual de certas substâncias,
talvez as duas coisas ao mesmo tempo (BERGSON, 2005, p.19).
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Essas relações com o tempo são favorecidas pela forma do filme-ensaio. Em O filme-ensaio:
desde Montaigne e depois de Marker, Corrigan coloca “o ensaístico executa uma apresentação
perfomativa do eu como uma espécie de autonegação em que estruturas narrativas ou experimentais
são subsumidas no processo do pensamento por meio de uma experiência
pública”(CORRIGAN,2015,p.10). Ao nosso ver, o que Varda parece realizar, a todo o momento, é
desestruturar qualquer possiblidade de identidade ou personalidade encerrada. A velhice, a infância,
parecem voltar sempre, misturar-se pelos locais em que a cineasta transita. A maneira pela qual o
“eu”, o sujeito aparecem podem constituir um retrato do outro - aqui também compreendido como
a realidade - e de si. Corrigan categoriza: “a concentração do ensaístico em imagens do eu e da
autoexpressão produziu duas das suas versões mais proeminentes e onipresente do filme-ensaio: o
ensaio retratístico e o ensaio autorretratísco” (CORRIGAN, 2015, p. 81). No caso das obras de
Varda que escolhemos para esse texto, não é nítida a discernibilidade entre a abordagem do outro de
si. A caracterização das praias, mesmo aquelas habitadas pelo outros, só se torna possibilidade a
partir do que Varda busca do seu passado, dos sentimentos que ela decide viver daquilo que já foi.
De forma semelhante, em Os catadores e eu, o gesto histórico de catar só se torna interessante,
objeto de investigação, por se colocar em relação com uma percepção da cineasta da sua existência
- e do cinema por ela produzido - como forma de garimpo.
Se pensarmos o filme-ensaio nos processos de construção do “eu”, na forma que podem
construir um eu subjetivo junto com um lugar da história, é curioso como eles podem estar
relacionados com lugares de representação e política em uma perspectiva de gênero. Em Problemas
de gênero, Judith Butler destaca:
Por uma lado, a representação serve como termo operacional no seio de um
processo político que busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres como
sujeitos políticos; por outro lado, a representação serve como termo operacional no
seio de um processo político que revelaria ou distorceria o que é tido como
verdadeiro sobre a categoria das mulheres. Para a teoria feminista, o
desenvolvimento de uma linguagem capaz de representá-las completa ou
adequadamente pareceu necessário, a fim de promover a visibilidade política das
mulheres. Isso parecia obviamente importante, considerando a condição cultural
difusa na qual a vida das mulheres era mal representada ou simplesmente não
representada (BUTLER, 2003, p.18).
O que o ensaio parece nos sugerir é que mesmo a definição da identidade de um sujeito não
encontra limites em um processo de representação. Esses limites já estavam presentes e produziam
conflitos dentre as teorias do feminismo. Butler retoma o pensamento de Simone de Beauvoir para
poder pensar a mulher como construção. Ela pontua: “para Beauvoir, o gênero é ‘construído’, mas
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há um agente implicado em sua formação, um cogito que de algum modo assume ou se aproxima
desse gênero, podendo, em princípio, assumir algum outro”(BUTLER, 2003, p.26). A perspectiva
dessa construção também apresenta desafios a serem considerados. Butler argumenta: “a
controvérsia sobre o significado de construção parece basear-se na polaridade filosófica
convencional entre livre-arbítrio e feminismo”(BUTLER, 2003, p.27). Em contraposição à teoria
de Beauvoir, Butler recupera as teses de Luce Irrigaray. A autora diferencia: “para Irigaray, o
feminino jamais poderia ser a marca de um sujeito, como sugeriria Beauvoir. Além disso, o
feminino não poderia ser teorizado em termos de uma relação determinada entre o masculino e o
feminino em qualquer discurso dado, pois a noção de discurso não é relevante aqui”(BUTLER,
2003 p.30).
É curioso pensarmos o discurso e um possível feminino na obra Varda - e na forma do
filme-ensaio. É pelo discurso, pela narração, que percebemos a distinção entre a situação de homens
e mulheres em Cuba em Saudações, cubanos. Em Salut les cubains, o filme se inicia com uma festa
de celebração dos dez anos da revolução cubana. Vemos um grupo, que toca percussão na rua, uma
imagem dos líderes da revolução cubana. Em um plano breve, misturada na multidão, avistamos o
rosto de Varda. Ela observa atenta ao que acontece no cotidiano daquele país, ao mesmo tempo em
que tenta nele se inserir. Ao longo do filme, ouvimos duas vozes que comentam os eventos da vida
diária: uma masculina, outra feminina.
Figura 4: Frames de Saudações, cubanos (Agnès Varda, 1971)
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Fonte: Saudações, cubanos (Agnès Varda, 1971)
A distinção entre ambas as vozes é perceptível na maneira com contam relações com as
situações vividas. A voz de uma mulher nos informa a data daqueles acontecimentos: 1963. A voz
de um homem esclarece a distinção de natureza entre como o país era percebido por seres de
gêneros diferentes. Ele esclarece o que era Cuba na época: “uma ilha em forma de cigarros para os
homens” e “uma ilha em forma de crocodilos para as mulheres”. É a voz da mulher que nos
apresenta as figuras de ícones de liderança cubanos - Che Guevara, Fidel Castro, dentre outros. Mas
é a voz de um homem que nos propõe às características das mulheres cubanas.
Figura 5: Frames de Saudações, cubanos (Agnès Varda, 1971)
Fonte: Saudações, cubanos (Agnès Varda, 1971
Em Os catadores e eu e Um minuto para uma imagem, porém, o discurso e a narração do
ensaio estabelecem outras posições para um lugar feminino e outro masculino. Em francês, o título
de Os catadores e eu é Les glaneurs et la glaneuse. Ao contrário do título em português, aqui temos
uma distinção pelo gênero, há os catadores e uma catadora. Em português, o “eu” se torna essa
forma de trabalho, o lugar da “catadora”. Em francês, ser “uma catadora” não corresponde, de
imediato, a identidade de si. No entanto, logo na abertura do longa-metragem, ouvimos Varda dizer:
“O catador é alguém que cata”. Ela nos esclarece: “No passado, somente mulheres catavam”. No
entanto, hoje homens também são encontrados coletando frutas jogadas no chão após a feira. Varda
pontua: “Não há vergonha, apenas preocupações”. A cineasta aponta que, na passagem do tempo,
homens se juntaram às mulheres no ato de catar.
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Figura 6: Frames de Os catadores e eu (Agnès Varda, 2000)
Fonte: Os catadores e eu (Agnès Varda, 2000)
É também uma mulher que propõe outro olhar sobre a história em Um minuto por imagem.
No filme, Varda recupera a imagem de uma mulher argelina, fotografada por Marc Garanger. Ela
nos diz que a mulher foi obrigada a fazer isso, como as outras pessoas da aldeia. O rosto da mulher,
triste e fechado, parece-nos apontar isso. Essa recusa é provocada, também, pelo fato dela ter
retirado o véu para isso. Varda, nessa cena, analisa elementos pequenos, aproxima-se dos cabelos
das mulher que estão soltos. A aproximação da imagem, anos depois a tomada da imagem original,
e agora realizada por uma mulher cineasta, reconfigura o lugar da revolta do outro.
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Figura 7: Frame de Um minuto por uma imagem (1982)
Fonte:Um minuto por uma imagem (1982)
Butler concorda com Beauvoir em um ponto: o fato de que ser mulher é ser colocada em
processo. Nas palavras daquela autora, “se há algo de certo na afirmação de Beauvoir que ninguém
nasce mulher, sim torna-se mulher decorre que mulher é um termo em processo, um devir, um
construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou fim”(BUTLER, 1990,
p.59). Ensaiar é apostar em algo inconcluso: uma suspeita sobre. O que Varda realiza nos filmes
que estudamos até então é propor, pelo cinema, uma outra percepção da história, em que os
significados e narrativas já estabelecidos são confrontados com a perspectiva subjetiva de uma
mulher.
A crônica do pequeno, documento e a história
Em O diário íntimo e a narrativa, Maurice Blanchot aponta:
ninguém deve ser mais sincero do que um autor de um diário, e a
sinceridade é a transparência que lhe permite não lançar sombras
sobre a existência confinada de cada dia, à qual ele limita o
cuidado da escrita. É preciso ser superficial para não faltar com a
sinceridade, grande virtude que também exige coragem
(BLANCHOT, 2005, p.270)
Nos filmes que estudamos neste trabalho, Varda não constitui diários; estabelece porém, um relação
muito próxima com o cotidiano, em que é o elemento que concentra a atenção de suas obras. São
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esses eventos corriqueiros que permitem uma história menor, convocam outra natureza dos
documentos.
Para pensar a natureza do documento e a forma como se estabelece como mecanismo da
história, recuperamos o que diz Michel Foucault em Arqueologia do saber. Segundo Foucault, “o
documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma, e de pleno direito,
memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e a elaboração à massa
documental de que ela não se separa” (FOUCAULT, 2016, p.8). Varda, ao se atentar nos elementos
que estão à superfície, seja nos espaços das praias, no estudo do gesto de “catar” ou no estudo de
fotografias montar um outra perspectiva da história. É um gesto de uma cronista, marcada pela
invenção. Podemos, aqui, voltar ao que nos ensina Walter Benjamin em Sobre o conceito de
história:
O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os
pequenos, leva em conta a verdade de que nada que aconteceu pode ser
considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade
redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente
para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos
(BENJAMIN, 1985, p.223)
O que Varda estabelece é uma forma de entendimento da história do mundo em que é impossível
apagar a subjetividade de quem a conta. Nesse caso, o uso do filme-ensaio propõe à uma cineasta
mulher uma busca constante de como ser inserir na história. Essa maneira, como discutimos, não é
por meio de uma categoria geral da identidade feminina, mas aquela que se transforma, a todo
momento, no encontro com o o mundo, com os outros e consigo.
Referências
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In. Notas de literatura. Trad. Jorge de Almeida. São
Paulo:editora34, 2003. p. 15-45
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Walter Benjamin, Obras escolhidas I.
Brasiliense, 1985.
BERGSON, H. A Evolução Criadora. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2005.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero - Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2003.
BREYNER, Sophia de Mello. Poemas - Gedichte : Mit einem Nachwort von Maria Joao.
Alemanha: Beck C. H, 2010.
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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
CORRIGAN, Timothy. O filme-ensaio: Desde Montaigne e depois de Marker. Campinas:
Papirus, 2015.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016
MAURICE, Blanchot. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
NANCY, Jean-Luc. “Uncanny Landscape.” In The Ground of the Image. New York: Fordham
University Press, 2005.12
The memory of insignificance: Agnès Varda and other world history
Abstract: In this article, we try to understand, based on Les plages d’Agnès (2008), (Les glaneurs
et la glaneuse (2000) ,Salut, les cubans (1971) and Une minute pour une image (1982), the ways
through Agnès Varda essays a possibility of history and identity.
Keywords: Movie essay; ; memory; document; Agnés Varda.