A narrativa da vontade de Deus: a História do Brasil de...

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

A narrativa da vontade de Deus:

a História do Brasil de frei Vicente do Salvador

(c.1630)

Luiz Cristiano O. de Andrade

2004

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A narrativa da vontade de Deus:

a História do Brasil de frei Vicente do Salvador

(c.1630)

Luiz Cristiano O. de Andrade

Rio de Janeiro

Maio de 2004

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de pós-graduação em história social (PPGHIS), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Professora Dra. Andréa Daher

A narrativa da vontade de Deus:

a História do Brasil de frei Vicente do Salvador

(c.1630)

Luiz Cristiano O. de Andrade

Orientadora:

Professora. Dra. Andréa Daher

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de pós-graduação em história

social (PPGHIS), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em História.

Aprovada por:

_______________________________________ Presidente, Professora Dra. Andréa Daher

__________________________________ Professor Dr. Carlos Fico __________________________________ Professor Dr. Alcir Pécora __________________________________ Professor Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães (suplente)

Rio de Janeiro

Maio de 2004

Andrade, Luiz Cristiano Oliveira de. A narrativa da vontade de Deus: a História do Brasil de frei Vicente do Salvador (c. 1630) / Luiz Cristiano Oliveira de Andrade. Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS, 2004. xi, 220f. Orientadora: Andréa Daher Dissertação (mestrado) – UFRJ / IFCS / Programa de pós-graduação em história social, 2004. Referências bibliográficas: f. 204-220. 1. Historiografia brasileira. 2. Frei Vicente do Salvador. 3. Retórica. 4. ABREU, João Capistrano de. I. DAHER, Andréa. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filososfia e Ciências Sociais, Programa de pós-graduação em história social. III. Título

RESUMO

A narrativa da vontade de Deus:

a História do Brasil de frei Vicente do Salvador

(c.1630)

Luiz Cristiano O. de Andrade

Orientadora:

Professora. Dra. Andréa Daher

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de pós-graduação em história

social (PPGHIS), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em História.

Estudo sobre a História do Brasil (c.1630) de frei Vicente do Salvador, escrita ao

longo da terceira década do século XVII, que considera os preceitos retórico-poéticos e as

categorias teológico-políticas empregadas a fim de fornecer conselhos às autoridades

responsáveis pelo governo do Brasil. Nesse sentido, a narrativa do frade baiano tece

juízos sobre as virtudes e as ações de bispos, governadores e capitães e louva o papel da

ordem de São Francisco de Assis na obtenção da concórdia entre os súditos do império

católico.

Rio de Janeiro

Maio de 2004

ABSTRACT

The God’s will narrative:

the frei Vicente do Salvador’s History of Brazil

(c.1630)

Luiz Cristiano O. de Andrade

Orientadora:

Professora. Dra. Andréa Daher

This study of friar Vicente do Salvador’s History of Brazil (História do Brasil),

written during the third decade of seventeenth century, regards the conventions related to

the rhetorical-poetical pattern and the theological-political categories, used to offer

examples to the authorities that were responsible for the Brazil’s government. The

franciscan’s narrative presents judgments about the bishops, governors, capitains actions

and virtues, and praise the role of Saint Francis Order’s missionaries in order to reach the

concord among the catholic empire vassals.

Rio de Janeiro

Maio de 2004

Nós, os modernos, nos vamos esquecendo que essas histórias de classe, de povos, de raças, são tipos de gabinete, fabricados para as necessidades de certos edifícios lógicos, mas que fora deles desaparecem completamente.

Afonso Henriques de Lima Barreto

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, à professora Andréa Daher, que orientou este trabalho com

precisas intervenções e ricas indicações bibliográficas. Desde o seu primeiro curso no

IFCS, em 1996, ela despertou em diversos estudantes, entre os quais me incluo, o prazer

de buscar a alteridade em relação ao passado, de analisar as invenções e as tensões que

perpassam a história, e de problematizar o ofício historiográfico – em suas mãos sempre

denso e complexo. Muito obrigado pelas inúmeras portas abertas e pelos caminhos que

me ajudou a trilhar. Indubitavelmente, as marcas deixadas em minha formação já são

indeléveis.

No Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, desde 2000, aprendo

com os técnicos da casa sobre as complexas tarefas de atribuir valor e preservar os bens

culturais brasileiros. Às amigas do IPHAN, Bia, Bat, Laura, Fátima e Maria Luiza,

obrgidado pelo apoio nesses dois anos de mestrado. Sem a fundamental ajuda de Luiza e

Mônica, da Biblioteca Noronha Santos, muitos livros não teriam sido achados e outros

ainda me seriam desconhecidos. Agradeço especialmente à Márcia Chuva, historiadora

que abriu clarões nessa densa mata de arquitetos, e à Lia Motta, historiadora ad hoc no

que se refere aos objetos patrimoniais. Ainda na seara patrimonial, devo expressar a

minha gratidão pelo que também aprendi com a arquiteta Dina Lerner durante o breve

período que pudemos trabalhar juntos no INEPAC.

Desde a entrevista de seleção para o ingresso no PPGHIS, em 2001, o professor

Carlos Fico foi um interlocutor generoso e, concomitantemente, rigoroso. Agradeço-lhe,

sinceramente, por ter acreditado em um projeto que ainda ensaiava os seus primeiros

passos. No exame de qualificação, pude contar com os seus necessários ajustes e

sugestões. Nessa mesma ocasião, o professor Alcir Pécora apontou caminhos

fundamentais que tentei seguir, assim como, posteriormente, sanou algumas dúvidas pelo

correio eletrônico. De todo modo, os seus livros e artigos, que conheci de forma mais

extensa e profunda ao longo do mestrado, já haviam ensejado questões importantes para

refletir sobre a História do Brasil de frei Vicente do Salvador.

Agradeço ainda ao professor Manoel Luiz Salgado Guimarães, cujas

preocupações intelectuais certamente perpassam esta dissertação; à professora Margarida

de Souza Neves, pela generosidade que demonstrou ao longo do seu instigante curso na

PUC; e à Maria Fernanda Bicalho, pelas diversas dicas de pesquisa.

Aos colegas do PPGHIS: Marcelo Ferreira de Andrades, ajuda providencial com

os livros da Editora Vozes; ao “maçom” Alex Moreira, à “inspetora” Aline Montenegro,

à “pernambucana” Juliana Sorgine e à “maranhense” Aline Menezes. Pude contar ainda

com imprescindíveis sugestões vindas de Campinas e São Paulo, tanto as de Guilherme

Amaral Luz como as de Eduardo Sinkevisque, cuja dissertação de mestrado foi essencial

para o desenvolvimento deste trabalho. Não poderia deixar de mencionar os dois amigos

que me acompanham nos momentos decisivos desde a graduação: Cláudio Pinheiro e

Ana Cristina.

Ao meu pai, que começou esta história nos lúdicos e perspicazes postais,

enviados dos mais diversos pontos do país e que tanto despertaram a minha curiosidade.

Para minha mãe, pois, sem o seu suporte, esta dissertação não teria chegado ao seu

término. Ambos estiveram sempre presentes.

Para Tatiana, com quem partilho projetos e sonhos. Certamente, a reflexão

sobre a retórica da história iniciou-se pelas suas teorias da argumentação jurídica. Não

tenho palavras para agradecê-la pela paciência diária e pelo apoio nos momentos mais

difíceis nesses dois útlimos anos tão atribulados.

Sou grato a todos.

SUMÁRIO

Introdução..............................................................................12

Ars historica e escriturização do poder nas cortes européias...........................................13

As histórias da América na Península Ibérica....................................................................25

Os gêneros historiográficos e a perspectiva imperial lusitana..........................................40

Capítulo I

Uma história de contornos esfumados:

a leitura documentalista e nacionalista da História do Brasil.............51

1.1 A trajetória do manuscrito e as primeiras publicações................................................52

1.2 A construção do cânone de Capistrano de Abreu........................................................62

Capítulo II

Verdade, clareza e juízo:

as essências da história seiscentista.............................................75

2.1 João de Barros: a celebração imperial.........................................................................85

2.2 Luís de Camões: a memória épica do Império.............................................................93

2.3 Diogo do Couto: o ocaso do Império...........................................................................98

2.4 Auctoritas lusas..........................................................................................................101

2.5 O caráter apologético: a auto-representação franciscana...........................................103

Capítulo III

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro....................119

3.1 A providência Divina, o livre-arbítrio e a graça........................................................142

3.2 O bom e o mau governo na zona tórrida....................................................................152

3.3 Os índios, a catequese e a guerra justa.......................................................................167

3.4 A retórica da construção do herege invasor...............................................................178

Conclusão..............................................................................197

Bibliografia...........................................................................204

INTRODUÇÃO

A melhor pintura produzida no século XV era realizada sob encomenda por um cliente que exigia sua execução conforme suas especificações. As obras já prontas se limitavam a objetos tais como Madonas em série e arcas nupciais, executados pelos artistas menos requisitados, durante os períodos de trabalho escasso; os painéis de altar e afrescos, que nos interessam mais, eram feitos sob encomenda, e geralmente o cliente e o artista assumiam um compromisso legal em que o último se comprometia a entregar aquilo que o primeiro tinha especificado, com mais ou com menos detalhes.

Michael Baxandall

CAPÍTULO I

Uma história de “contornos esfumados”:

a leitura documentalista e nacionalista da História do Brasil

CAPÍTULO II

“Verdade, clareza e juízo”:

as essências da história seiscentista

CAPÍTULO III

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

CAPÍTULO III

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

CONCLUSÃO

BIBLIOGRAFIA

CAPÍTULO I

Uma história de “contornos esfumados”1:

a leitura documentalista e nacionalista da História do Brasil

“Com um século, apenas, de existência, o Brasil já produz um brasileiro que o compreende como um todo solidário, com história própria; um brasileiro – esse Frei Vicente do Salvador – que sente a necessidade de escrever a história da sua pátria, e em cujas páginas tantas vezes se destacam as qualidades novas e próprias do Brasil, em oposição às de Portugal. Por isso mesmo, caídas em mãos do português, essa história, escondem-na, somem-na, no mesmo empenho que procuram velar e afogar a pátria distinta que no Brasil se revela. Mais de dois séculos esteve sepultada nos arquivos oficiais de Portugal, a História do Brasil, do brasileiro Frei Vicente; finalmente o português Varnhagen a descobre e, como português, deixa-a sumida, desconhecida dos brasileiros...”

Manoel Bomfim2

1.1 A trajetória do manuscrito e as primeiras publicações

Assim como outros textos do período colonial, o manuscrito de frei Vicente do

Salvador chegou até o presente através de uma apropriação condicionada pelos

programas nacionalistas de “invenção de tradições”.3 A publicação da narrativa do frade

baiano concluía um primeiro período de recuperação de documentos acerca da história

brasileira, iniciado com a criação do Instituto Histórico e Geográfico e Brasileiro em

1838.4

1 A expressão é do próprio Capistrano de Abreu , escrita na Introdução da primeira edição da História do Brasil. Cf. nota 15, à frente. 2 BOMFIM, Manoel. O Brasil na América, p. 337. 3 HOBSBAWM, Eric; RANGER, T. The invention of tradition. 4 Sobre o projeto político e civilizatório do IHGB ver: GUIMARÃES, Manuel. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história Nacional. Sobre as identidades construídas no Brasil em meados do XIX, após a Proclamação da República e após a Revolução de 1930, ver o artigo Brasil: Nações Imaginadas. In CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados.

Uma história de “contornos esfumados”

53

Os estatutos do IHGB fixavam como seu principal objetivo coligir, publicar ou

arquivar os documentos necessários à escrita da história e da geografia do Império do

Brasil. Essa preocupação esteve presente ao longo das primeiras sessões e, nesse sentido,

o cônego Januário da Cunha Barbosa, primeiro-secretário da instituição, escreve para o

número inaugural da revista, lembrando aos sócios o que deveria ser procurado nas

províncias.5

Além da pesquisa nos arquivos brasileiros, o Instituto apoiou o levantamento de

fontes na Europa, destacando-se nesse campo a figura de Francisco Adolfo de

Varnhagen, sócio correspondente desde 1840, ano em que forneceu à instituição diversos

manuscritos coletados em Portugal. De 1842 a 1846, nomeado pesquisador oficial,

Varnhagen trabalharia sistematicamente nos arquivos da Torre do Tombo e,

posteriormente, na Espanha, onde tratou de coletar fontes acerca dos limites com a

América Espanhola. Investigou, ainda, arquivos franceses e holandeses, a fim de preparar

aquela que seria a sua grande obra, a História Geral do Brasil, publicada a partir de 1854.

Nessa busca pelos arquivos europeus, em meados do século XIX, inicia-se a

história da publicação da narrativa seiscentista. De fato, Varnhagen conheceu o

manuscrito na década de 1840, na Biblioteca das Necessidades em Lisboa, e utilizaria

diversas de suas passagens na História Geral do Brasil, sem contudo se interessar em

publicá-lo na íntegra.6 Em 1858, com o intuito de traçar um esboço biográfico de Gabriel

Soares de Sousa, cuja obra havia sido publicada em volume anterior, publicou um dos

capítulos escritos pelo franciscano sem qualquer destaque, ao lado de cartas e alvarás

régios.7 No mesmo número da revista, publicava-se também a História da Província de

Santa Cruz, de Pero de Magalhães Gandavo.

5 BARBOSA, Januário da Cunha. Lembrança do que devem procurar nas províncias os sócios do Instituto Histórico Brasileiro para remeterem à Sociedade central no Rio de Janeiro. Revista do IHGB, t.1, 1839. O primeiro tomo contém também as atas das primeiras sessões, nas quais essas propostas foram explicitadas. 6 Na introdução à obra do franciscano, publicada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Capistrano critica o Visconde de Porto Seguro: “(...) Varnhagen conseguiu ver o livro de Fr. Vicente, que aliás não cita quando devia. As maiores e melhores novidades que contém a segunda edição de sua História Geral quanto ao período anterior à guerra holandeza foram bebidas em nosso primeiro chronista, como se poderá convencer quem se quizer dar a este trabalho.” Anais da Biblioteca Nacional, v. XIII, p. III. 7 Sobre a transformação do texto de Gabriel Soares de Sousa em documento histórico, ver: CEZAR, Temístocles. “Quando um manuscrito torna-se fonte histórica: as marcas de verdade no relato de Gabriel Soares de Sousa (1587). Ensaio sobre uma operação historiográfica.” História em Revista, v.6, 37-58.

Excluído: como

Uma história de “contornos esfumados”

54

A narrativa de Frei Vicente fora copiada e enviada ao Brasil por João Francisco

de Lisboa, pesquisador oficial no exterior a partir de 1856, mas somente teria sua

importância reconhecida por Capistrano de Abreu alguns anos mais tarde.

Segundo Arno Wehling, o historiador cearense pertenceu a uma geração, surgida

a partir da Guerra do Paraguai, que “procurou reinterpretar a experiência brasileira, não

em termos do Estado Imperial, como o fizera Varnhagen, mas privilegiando o povo e sua

formação étnica, traduzindo a influência do sociologismo de Comte / Taine e dos

diversos determinismos progressistas.”8

Capistrano de Abreu chegara ao Rio de Janeiro em 1875 e, três anos depois, seria

uma peça chave na reabilitação de Francisco Adolfo de Varnhagen, ao escrever em sua

defesa, no necrológio publicado pelo Jornal do Commercio. Ao longo da década de 1880,

abandonou paulatinamente os métodos deterministas, substituindo-os por uma posição

documentalista. Desse modo, afirma o primado da pesquisa documental sobre as leis

sociais enunciadas a priori. Segundo Wehling, “as insuficiências de cada sistema – e de

todos eles reunidos – reforçou-lhe, portanto, a convicção do primado do objeto sobre o

método.”9 Essa postura certamente estava relacionada ao seu emprego, a partir de 1879,

na Biblioteca Nacional, onde entrou em contato com os documentos sob a guarda da

instituição, que, à época, dedicava-se a publicar manuscritos inéditos nos seus Anais.10

Já em 1881, Capistrano de Abreu participou da organização da Exposição de

História do Brasil, da Biblioteca Nacional, ensejando a reunião de textos impressos e

manuscritos, mapas, estampas, medalhas e moedas, que se encontravam dispersos nas

mãos de colecionadores particulares ou sob a guarda de algumas instituições.11 A obra de

8 WEHLING, Arno. Capistrano de Abreu: a fase cientificista. In A invenção da história, p. 169. O termo “geração de 1870”, embora consagrado pela historiografia e crítica literária, confere certa homogeneidade a grupos diversos. É aqui utilizado, uma vez que, de fato, Capistrano iniciou a sua trajetória intelectual na primeira metade da década de 1870, publicando artigos de crítica literária no Ceará. Tais artigos, conforme salienta Arno Wehling, caracterizaram-se pela aplicação das idéias positivistas, spencerianas e do determinismo climático de Buckle. Ainda em 1880, travou um debate veemente com Sílvio Romero em torno do determinismo (racial para este, e geográfico ou climático para Capistrano). 9 Idem, p. 214. 10 Desde o primeiro volume dos Anais da Biblioteca Nacional, publicado em 1876, a revista não apenas transcreve documentos, mas também organiza diversos catálogos e inclui estudos de seus funcionários sobre o acervo. No primeiro volume, após o artigo de Ramiz Galvão sobre Diogo Barbosa Machado, cuja coleção fora doada à Real Biblioteca da Ajuda e, posteriormente, passaria ao Brasil, tem início o Catálogo de manuscritos relativos ao Brasil. 11 O catálogo da exposição foi publicado em dois volumes pelo Anais da BN, 1881, v. 9.

Uma história de “contornos esfumados”

55

frei Vicente ingressou na exposição, doada por um livreiro carioca, João Martins Ribeiro,

que desconhecia o manuscrito adquirido entre outros papéis. O historiador cearense

conclui que o aspecto do códice, indubitavelmente, revelava que

“(...) era um dos numerosos volumes copiados dos arquivos e bibliotecas

lusitanas na era de [18]50 por comissão do governo imperial, confiada primeiro a

Gonçalves Dias e por fim a João Francisco Lisboa. A coleção, depois de ficar

alguns anos na Secretaria do Império, foi remetida para o Instituto Histórico,

donde uma parte escorreu para as mãos dos particulares.”12

O Diário Oficial publicaria os dois primeiros livros da História do Brasil em

1886, mas a obra completa só viria à luz no fim de 1888, no volume 13 dos Anais da

Biblioteca Nacional, precedida de uma introdução na qual Capistrano – que planejava

editar a história seiscentista desde o final da exposição – esclarece o itinerário percorrido

pelo manuscrito até a doação para a biblioteca, discorre sobre outras cópias existentes na

Torre do Tombo, em Lisboa, e, finalmente, tece alguns comentários sobre a biografia do

frade.

Nesse primeiro estudo, Capistrano já deixaria as marcas de uma leitura

nacionalista. Ao inferir quais seriam as razões do manuscrito não ter sido publicado, entre

outras hipóteses, defende que talvez “não agradasse o tom em que falla do Brasil e

parecesse arriscado o modo porque pregava sua grandeza, sua independência do resto do

mundo.”13 No fim do prefácio, o historiador cearense defende o tom popular da História,

na qual aparecem o branco, o índio e o negro, concluindo a sua idéia acerca das origens

nacionais:

“Neste [século XVI], com a dificuldade de communicações, com a fragmentação

do territorio em capitanias e das capitanias em villas, dominava o espírito

municipal: brasileiro era o nome de uma profissão (...) Portuguezes diziam-se os

12 ABREU, Capistrano de. Nota Preliminar, p. 30. In: SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil, 1982. Na introdução dos Anais da BN, p. III, também há uma descrição da trajetória do manuscrito entre 1850 e 1880: “Mesmo em 1857 ou em 1858 a copia deve ter chegado ao Rio de Janeiro. Conclue-se isto sabendo que ficou em poder do Marquez de Olinda”, então ministro do Império. Após a morte do Marquês em 1870, o códice passou aos seus herdeiros, que a leiloaram. 13 ABREU, Capistrano. Anais da Biblioteca Nacional, v. XIII, 1888, p. I. (Grifo nosso)

Excluído: va

Excluído: ¶

Uma história de “contornos esfumados”

56

que o eram e os que o não eram. Fr. Vicente representa a reacção contra a

tendencia dominante: Brasil significa para elle mais que expressão geographica,

expressão histórica e social. O seculo XVII é a germinação desta idéia, como o

seculo XVIII é a maturação.” 14

Capistrano de Abreu procurava as marcas embrionárias da nação brasileira em

pleno Seiscentos. Essa operação era fruto do mesmo anacronismo que lhe fazia censurar

o franciscano por não indicar as suas fontes. Na tentativa de validar a narrativa do frade,

o historiador cearense realizou um rigoroso trabalho crítico, apontando “as autoridades

em que [frei Vicente do Salvador] se apoia.”15 Na introdução à primeira edição, informa

que, para a elaboração do livro, além das informações coletadas e observações realizadas

ao longo de suas viagens, frei Vicente utilizou, entre outros escritos, as Décadas, de João

de Barros e Diogo do Couto, e a História da Província Santa Cruz, de Gandavo.

Entretanto, Capistrano cobra-lhe uma postura mais rigorosa:

“A sua História não repousa sobre estudos archivaes. Haveria difficuldade em

examinar archivos? Ou não era seu espírito inclinado a leitura penosa de papeis

amarelados pelo tempo? Dahi certa laxidão no seu livro: muitos factos omittidos

que hoje conhecemos e que elle com mais facilidade e mais completamente

poderia ter apurado, contornos esfumados, datas fluctuantes, duvidas não

satisfeitas.”16

Não obstante seja possível identificar procedimentos característicos da crítica

documental moderna pelo menos desde o século XV – em 1440, por exemplo, como

assinala Ginzburg, com o Discurso sobre a falsa e enganadora doação de Constantino,

escrito por Lorenzo Valla –, os gêneros historiográficos nos séculos XVI e XVII tinham

na noção de testemunho ocular um de seus princípios fundadores.17 Foi, sem dúvida, fora

de toda preocupação com as fontes arquivísticas que frei Vicente do Salvador citou o que

lhe fora dito por um soldado ou uma mulher de crédito, por homens do tempo de Tomé

14 ABREU, Capistrano de. Anais da Biblioteca Nacional, v. XIII, 1888, p. XVII. 15 Idem, p. XI 16 Idem, ibidem. 17 Vide a esse respeito: LESTRINGANT, Frank. Le huguenot et le sauvage.

Uma história de “contornos esfumados”

57

de Souza, além de personagens como Martim Soares Moreno e Pero de Campos, segundo

observa o próprio Capistrano de Abreu, que chegou a tangenciar o critério utilizado de

autópsia dos fatos, mas a noção romântica de documento prevaleceu.18

Num regime de historicidade em que se atribui valor exclusivo às fontes

documentais para o estabelecimento da verdade histórica, a ausência do recurso

arquivístico constituiu, assim, o cerne das críticas lançadas por Capistrano a Vicente do

Salvador, no final do século XIX e início do XX.

Nos 30 anos que separam a primeira publicação do franciscano nos Anais da

Biblioteca Nacional e a edição crítica, o historiador cearense desenvolveu intensa

atividade. Em 1899, publicou o artigo Caminhos antigos e o povoamento do Brasil. No

ano de 1907, saíram os Capítulos de História Colonial e a anotação do primeiro volume

da História Geral do Brasil, de Varnhagen. Capistrano de Abreu passou então a ser

reputado “a mais incontrastável autoridade na história pátria.”19

Desde 1883, ano em que ingressou no Colégio Pedro II como lente de Corografia

e História, Capistrano dedicava-se intensamente à pesquisa documental. Em carta ao

Barão de Rio Branco, no mês de abril de 1890, comunicou que havia se decidido a

escrever uma história do Brasil até 1807.

“Parece-me que poderei dizer algumas coisas novas e pelo menos quebrar os

quadros de ferro de Varnhagen que, introduzidos por Macedo no Colégio Pedro

II, ainda hoje são a base do nosso ensino. As bandeiras, as minas, as entradas, a

criação de gado pode dizer-se que ainda são desconhecidas, como, aliás, quase

todo o século XVII, tirando-se as guerras espanholas e holandesas.”20

Os novos objetos apareceriam em 1899, quando o artigo Caminhos antigos e o

povoamento do Brasil destacou a importância da conquista do sertão. A primeira versão

fora publicada no Jornal do Commercio e, posteriormente, em 1924, revista e ampliada,

18 Cf. ABREU, Capistrano de. Anais da Biblioteca Nacional, v. XIII, 1888, p. XIV. 19 RODRIGUES, José Honório (org.). Correspondência de Capistrano de Abreu, p. LIV. O primeiro livro de Capistrano de Abreu, O Brasil no século XVI, foi publicado em 1880. Após dois anos publicou Sobre o Visconde de Porto Seguro, além dos diversos estudos publicados na imprensa e pelo IHGB, do qual se tornara sócio em 1887. 20 Idem, p. 130.

Uma história de “contornos esfumados”

58

na revista América Brasileira. Após a morte do historiador cearense, a Sociedade

Capistrano de Abreu publicou uma coletânea de estudos que tratavam justamente das

expedições ao sertão, com o título do eminente artigo.

O tema dos sertões passou a chamar a atenção dos contemporâneos desde que os

seguidores de Antônio Conselheiro enfrentaram o exército republicano e com a célebre

obra de Euclides da Cunha, publicada em 1902, passou a ocupar um lugar permanente na

produção intelectual do país.21 A proeminência de São Paulo na vida política nacional,

sem dúvida, também condicionou o olhar retrospectivo de Capistrano de Abreu, que

conferia aos bandeirantes um papel primordial na história brasileira: “A situação

geographica de Piratininga impellia-a para o sertão, para os dois rios de cuja bacia se

avizinha, o Tietê e o Parahiba do Sul, theatros provaveis das primeiras bandeiras, que

tornaram logo famoso e temido o nome paulista.”22 Chegou mesmo a alimentar o projeto

de escrever uma história sertaneja – questão mais importante do período colonial – com

cerca de 400 páginas, mas não o fez.23

Capistrano de Abreu voltou a escrever sobre o sertão nos Capítulos de história

colonial, cuja primeira edição foi publicada em 1907. Não obstante trate da paulatina

penetração ao longo do rio Amazonas, do papel do Pará e do Maranhão, o historiador

cearense destaca novamente o papel da vila de São Paulo de Piratininga e da criação de

gado que acompanhou o curso do rio São Francisco e ensejou o nascimento de uma época

do couro.

Os Capítulos constituem uma síntese da pesquisa realizada para anotar a obra do

Visconde de Porto Seguro. O limite de 120 páginas da obra fora imposto pelo editor,

fator que lhe impedia de fazer as citações que desejava e que tanto cobrava de frei

Vicente do Salvador e do próprio Varnhagen. Contudo, o ensaio aponta para novas

perspectivas, introduzindo temas desconhecidos, segundo o autor, como as bandeiras, as

minas, as estradas e a criação de gado.

21 Sobre a trajetória do livro de Euclides da Cunha e sua transformação num “clássico” da literatura brasileira, cf. ABREU, Regina. O enigma de Os Sertões. 22 ABREU, João Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil, p. 65. 23 Os projetos que lhe eram mais caros não foram realizados. Além da história sertaneja, Capistrano pretendia publicar uma outra edição para os Capítulos de História Colonial, assim como anotar os outros dois volumes da obra do Visconde de Porto Seguro.

Uma história de “contornos esfumados”

59

O livro inicia-se pelo capítulo intitulado “Antecedentes indígenas”, de forma

propositadamente oposta à introdução de Varnhagen, que tratou da Europa em primeiro

lugar.24 Nesta seção, Capistrano de Abreu discorre sobre os fatores naturais, descrevendo

a geografia, o clima, a fauna e a flora do Brasil – matérias também presentes no primeiro

livro de frei Vicente do Salvador. É interessante notar como o autor reifica o território

nacional, incluindo em sua fronteira países que somente foram criados no século XIX. 25

A mesma operação verifica-se na conversão do português colonizador em “povo

brasileiro”:

“O povo brasileiro, começando pelo Oriente a ocupação do território,

concentrou-se principalmente na zona da mata, que lhe fornecia pau-brasil,

madeira de construção, terrenos próprios para cana, para fumo e, afinal, para

café.”26

Após tratar da fauna, salienta que nenhum dos animais “pareceu próprio ao

indígena para colaborar na evolução social, dando leite, fornecendo vestimenta ou

auxiliando o transporte”, apenas domesticou o papagaio para recreação.27 Capistrano

ainda analisa a divisão das tribos, dividindo-as em grupos lingüísticos. Somente então

aborda a situação portuguesa no século XVI:

“O Estado reconhecia e acatava as leis da Igreja, executava as sentenças de seus

tribunais, declarava-se incompetente em quaisquer litígios debatidos entre

clérigos, só punia um eclesiástico se, depois de degradado, era-lhe entregue por

seus superiores ordinários, respeitava o direito de asilo nos templos e mosteiros

24 José Honório Rodrigues observa que, após severas críticas, o Visconde de Porto Seguro optou por iniciar a segunda edição com a “Descrição do Brasil”, antes na VII seção. Cf. ABREU, Capistrano. Capítulos de História Colonial, p. 35 (Introdução). O programa de Capistrano também é fruto da importância conferida por ele aos fatores antropogeográficos, decorrente da leitura de Ratzel. 25 “Como o Cabo de Orange, limite com a Guiana Francesa, dista 37 graus do Chuí, limite com o Uruguai...”. Idem, p. 43. 26 ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial, p. 50-51. 27 Idem, p. 51-52.

Uma história de “contornos esfumados”

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para os criminosos cujas penas eram de sangue, abstinha-se de cobrar imposto do

clero.”28

A censura de Capistrano à “soberania” eclesiástica no Portugal quinhentista

pertencia ao coro de vozes laicas que se levantaram contra o padroado régio no último

quartel do século XIX. À época, tanto em Portugal como no Brasil, a Igreja Católica era

considerada a principal culpada pelo atraso do país.29 O autor dos Capítulos não estava

em busca das razões da expansão lusitana nem dos fundamentos teológicos do Império

português, mas sim das origens nacionais brasileiras. Capistrano de Abreu afirma que a

população exígua forçava Portugal, interessado em povoar suas possessões, à mestiçagem

– idéia que, na década de 30, foi desenvolvida pelo antropólogo Gilberto Freyre. “Ao

português estranho ao continente cumpre juntar o negro, igualmente alienígena.”30 E

arremata, dissonante aos cientistas da eugenia, da hierarquização das raças e da teoria do

branqueamento racial, em voga na virada do século:

“O negro trouxe uma nota alegre ao lado do português taciturno e do índio

sorumbático. As suas danças lascivas, toleradas a princípio, tornaram-se

instituição nacional; suas feitiçarias e crenças propagaram-se fora das senzalas.

As mulatas encontraram apreciadores de seus desgarres e foram verdadeiras

rainhas. O Brasil é inferno dos negros, purgatório dos brancos, paraíso dos

mulatos, resumiu em 1711 o benemérito Antonil.”31

Ao povo brasileiro, opuseram-se sobretudo os franceses – “intrusos” de acordo

com a sua perspectiva – e os holandeses, vencidos pelo “espírito nacional”.32 A invasão

flamenga, contudo, constituiu “mero episódio da ocupação da costa. Deixa-a na sombra a

28 ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial, p. 55. O fator geográfico aqui é novamente determinante. Na p. 61 afirma que a “posição geográfica de Portugal destinava-o à vida marítima...” 29 Capistrano salienta que a “Igreja dominava soberana” pelo batismo, casamento, sacramentos e pelo ensino. Cf. p. 55. Em Portugal, apenas para citar os nomes mais conhecidos, o anticlericalismo pode ser verificado em Alexandre Herculano, Teófilo Braga e Eça de Queirós. 30 Idem, p. 59. 31 Idem, p. 60. 32 Idem, p. 140.

Uma história de “contornos esfumados”

61

todos os respeitos o povoamento do sertão (...).”33 Condicionado por fatores coevos,

Capistrano de Abreu inicia o seu capítulo sertanejo pela capitania de São Vicente:

“O estabelecimento de Piratininga, desde a era de 530, na borda do campo,

significa uma vitória ganha sem combate sobre a mata, que reclamou alhures o

esforço de várias gerações. Deste avanço procede o desenvolvimento peculiar

de São Paulo.”34

A história da vila de São Paulo de Piratininga demonstrava a vitória do homem

sobre o meio, da civilização sobre a natureza, mesmo que essa vitória tenha sido

resultado de inúmeras atrocidades cometidas pelos paulistas Após narrá-las, o historiador

cearense deixa em aberto a pergunta: “Compensará tais horrores a consideração de que

por favor dos bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?”35 O juízo não

interessava ao historiador, somente os fatos.

Em relação à expansão do território protonacional, segundo sua concepção,

Capistrano de Abreu trata ainda da difícil conquista do Maranhão, da penetração no

Amazonas, da criação de gado e da descoberta das minas de ouro. Todos esses fatores

“influíram consideravelmente na psicologia dos colonos (...) [que] não podiam mais se

reputar inferiores aos nascidos no além-mar.”36 Portanto, a importância dos sertões na

história brasileira foi a de ter ensejado a percepção da diferença entre brasileiros e

portugueses, alteridade hierarquizada de forma que aqueles passaram a ocupar posição

proeminente em relação a estes. O surgimento de um espírito nativista no Setecentos

prenunciava os acontecimentos do século XIX – ponto de chegada do processo iniciado

em 1500 e, claro, objeto de análise do último capítulo da obra.

33 ABREU, Capistrano. Capítulos de história colonial, p. 141. 34 Idem, ibidem (grifo nosso). 35 Idem, p. 146. 36 Idem, p. 191.

Uma história de “contornos esfumados”

62

1.2 A construção do cânone de Capistrano de Abreu

Posteriormente à publicação de Capítulos de História Colonial, Capistrano

dedicou-se aos estudos acerca da lingüística indígena.37 Desejava ainda terminar a

anotação dos outros dois volumes de Varnhagen e publicar uma edição crítica e sem

lacunas da obra de frei Vicente do Salvador. Na sua correspondência, as menções ao

franciscano apenas rivalizam em número com aquelas ao Visconde de Porto Seguro. De

modo geral, Capistrano utiliza a narrativa seiscentista como lastro de suas informações

ou, com maior freqüência, solicita que sejam procurados os códices completos nos

arquivos portugueses.

Entre os destinatários dessas solicitações, destacam-se o Barão do Rio Branco;

Guilherme Studart, seu conterrâneo e amigo desde os tempos de colégio; e João Lúcio de

Azevedo, historiador português, estudioso do Padre Antônio Vieira, com quem trocou

inúmeras cartas, de 1917 ao ano de sua morte.38 A sua rede de relações profissionais

completava-se com José Veríssimo e alguns jovens que recebiam as suas orientações.

Entre eles Pandiá Calógeras, Mário de Alencar, Afonso Escragnole Taunay, Paulo Prado

e Rodolfo Garcia. A este coube o seu espólio intelectual, formado sobretudo pelas

anotações a Varnhagen e frei Vicente do Salvador.

A ânsia documental do historiador cearense não cessou de aumentar. Pouco tempo

antes de morrer, publicou em O Jornal o artigo intitulado A obra de Anchieta no Brasil,

no qual proclamou: “Reunir suas cartas, seus escritos vários, em prosa e verso, é uma

dívida que não admite mais moratória.”39

O trecho acima foi igualmente citado por Afrânio Peixoto na nota preliminar do

livro que reúne as cartas de José de Anchieta, conferindo a Capistrano de Abreu o epíteto 37 Ver: ABREU, Capistrano de. Rã-txa hu-ni-ku-i. A língua dos Caxinauás do Rio Ibuaçu. A obra, cujo título significa “falar de gente verdadeira”, trata da gramática e vocabulário de um grupo indígena do Acre. Capistrano discorre ainda sobre alimentação, vida sexual, crenças e feitiçarias dos Caxinauás. 38 A lista de destinatários mais destacados se completa com Lino Assunção, cujas cartas não foram reunidas no volume publicado por José Honório Rodrigues em 1953, pois já havia sido publicada anteriormente, e Oliveira Lima, não autorizadas pelo diretor da Lima Library, na Universidade Católica de Washington. Lino Assunção teve um papel importante na publicação da História de frei Vicente do Salvador. Saldanha da Gama, então diretor da Biblioteca Nacional, relutava em publicar o códice. Então, Capistrano de Abreu e Vale Cabral solicitaram a Lino uma cópia na Torre do Tombo, publicando os dois primeiros livros no Diário Oficial. 39 ABREU, Capistrano de. A obra de Anchieta no Brasil, p. 27. In ANCHIETA, José de. Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões.

Uma história de “contornos esfumados”

63

de “o Mestre”, então comum a todos que se dedicavam ao estudo da história brasileira.

Paulo Prado, por exemplo, apenas após a leitura dos Capítulos teve despertado o seu

interesse histórico. Taunay seguiu fielmente os passos do historiador cearense,

publicando documentos espanhóis do Archivo General de Indias de Sevilla em alguns

volumes dos Anais do Museu Paulista. Ademais, elaborou a História seiscentista da villa

de São Paulo, em quatro volumes saídos de 1926 a 1929, e a monumental História geral

das bandeiras paulistas, cujos onze volumes foram publicados entre 1924 e 1950.40

Rodolfo Garcia (1873-1949) – “o mais fiel e digno sucessor da obra de Capistrano

de Abreu” 41 – realizou a anotação dos outros dois volumes de Varnhagen, pois o

“Mestre” desistiu da tarefa em função do incêndio na Companhia Tipográfica do Brasil,

que destruíra a edição que estava no prelo. De fato, inversamente ao que sucedeu com os

estudos sobre frei Vicente, a introdução de Capistrano à obra mor do Visconde de Porto

Seguro foi suprimida a partir da quarta edição, permanecendo apenas as suas notas.

O tratamento dispensado à obra do frade baiano, porém, exigiu dedicação intensa

durante anos, conforme pode ser verificado na sua correspondência. Em carta a Assis

Brasil de 1897, solicita ao amigo que verifique se o códice – com que Varnhagen se

deparou na Biblioteca da Ajuda e nunca mais reviu – teria reaparecido e “se nele estão os

capítulos que faltam. Se isto suceder (nem quero pensar nisto, pois teria um ataque de

alegria), ficar-lhe-ia muito obrigado se V. me obtivesse cópia, o mais depressa

possível.”42

A João Lúcio de Azevedo pergunta sobre a existência de notícias da matrícula de

Vicente Rodrigues Palha na Universidade de Coimbra, informa sobre o seu trabalho na

edição crítica – “Meu empenho principal é procurar as fontes”43 – e, por fim, envia ao

historiador português o volume 13 dos Anais da Biblioteca Nacional: “Tenho certeza de

40 A obra monumental foi sintetizada na História das bandeiras paulistas, em dois volumes publicados em 1951 pela edições Melhoramentos de São Paulo. A brasiliana da Melhoramentos, que incorporou a Weiszflog irmãos e seus títulos, era composta pela História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, História Geral de Varnhagen, Cultura e Opulência de Antonil – obras tributárias do trabalho de Capistrano de Abreu. Ademais, a Cia. Melhoramentos publicou a obra de Oliveira Lima. 41 RODRIGUES, José Honório (org.). Correspondência de Capistrano de Abreu, v. I, p. XX. 42 Idem, p. 85. 43 Idem, v. II, p. 77.

Uma história de “contornos esfumados”

64

que a leitura da História do Brasil o incluirá no mesmo empenho de ver a obra

completa.”44

Apesar dos seus incessantes esforços e diversos pedidos, a edição de 1918 saiu

mesmo incompleta. Capistrano substituiu a sua primeira introdução pelos prolegômenos

que antecedem cada um dos cinco livros que compõem a obra do franciscano, além de

uma breve nota preliminar. Em carta de 1919 a Miguel Arrojado Lisboa, engenheiro de

minas, defendeu a importância de se ler o frade baiano, mas não os seus prolegômenos,

“que só interessam a especialistas.”45 Este é justamente o ponto nodal deste capítulo, pois

o tratamento conferido à História do Brasil foi não apenas considerado exemplar como

definitivo pelos “especialistas”. Esta parece ser não só a opinião de Rodolfo Garcia, que

preparou a terceira edição do livro, publicada em 1931 – que manteve os prolegômenos e

as anotações de Capistrano – como também a de José Honório Rodrigues e, mais

recentemente, Francisco Iglésias.

José Honório foi um dos pioneiros no estudo da historiografia brasileira na década

de 1950, lançando A pesquisa histórica no Brasil. Sua evolução e problemas atuais.46

Afirma que o historiador cearense “conhecia como ninguém as deficiências e

necessidades de nossa historiografia: sabia que pouco se poderia fazer enquanto novas

fontes não fossem dominadas e divulgadas.”47 Das pesquisas de Capistrano de Abreu,

segundo Rodrigues, surgiram “edições exemplares.”48 E conclui:

“Só as Cartas Jesuíticas, as Confissões e Denunciações e os textos de Cardim,

Frei Vicente e os Diálogos bastariam para consagrar a sua inesgotável

capacidade de pesquisar e oferecer textos limpos que reformavam velhos erros

ou conceitos.”49

44 RODRIGUES, José Honório (org.). Correspondência de Capistrano de Abreu, v. II, p. 32 45 Idem, v. I, p. 442. 46 RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil. A primeira edição é de 1952, porém, utilizo a de 1982. O autor já havia lançado outros livros, entre eles Teoria da História do Brasil, em 1949. 47 Idem, p. 95. Em 1953, o IHGB, em comemoração ao centenário de nascimento do historiador cearense, realizou uma série de conferências, intituladas Curso Capistrano de Abreu. Entre os conferencistas estavam Afonso Taunay, Barbosa Lima Sobrinho, Gustavo Barroso, além do próprio Rodrigues. Os respectivos artigos foram reunidos no número 221 da Revista do Instituto, p. 44-245. 48 Idem, p. 96. 49 Idem, p. 97 (grifo nosso).

Uma história de “contornos esfumados”

65

A citação acima exemplifica tanto a concepção historiográfica de Rodrigues,

segundo a qual era possível identificar o sentido universal das obras, assim como o seu

juízo acerca do estabelecimento do texto de frei Vicente. Em 1979, na História da

História do Brasil, não emite opiniões divergentes às do historiador cearense.50 Ao

contrário, participa da mesma leitura, definindo o texto seiscentista como uma primeira

manifestação de “historiador nacional”, defendendo que o seu nacionalismo revela-se em

diversas passagens, nas quais, por um lado, louva as excelências do país, e, por outro,

censura a ação dos portugueses. Segundo Rodrigues, a narrativa do franciscano é

saborosa pelas “estórias populares” que quebram a monotonia do enredo:

“Popular porque o povo é o índio, que aparece no texto a todo o momento e

também porque a história dos governadores é também a história dos sacrifícios e

virtudes, dos benefícios e maldades da gente miúda branca, contra a multidão

indígena que começava a avolumar-se.”51

Em publicação póstuma que reúne escritos sobre a historiografia brasileira,

Francisco Iglésias afirma que a edição de frei Vicente do Salvador – apesar dos textos de

Anchieta, dos Diálogos da Grandeza do Brasil, da identificação da autoria de Cultura e

opulência do Brasil por suas drogas e minas – constitui o trabalho mais importante de

Capistrano de Abreu no gênero, “dando o texto definitivo em 1918, com notas e o

admirável ‘Prolegômenos’.”52 Iglésias defende ainda que o frade baiano foi, de fato, “o

primeiro censor do português, o primeiro a fazer crítica fundada e direta ao

colonizador.”53 Em sua obra, percebe-se “um ‘nacionalismo’ tímido, mal esboçado e

pouco explícito, mas real do autor.”54

A aura que envolveu o trabalho de Capistrano também foi reforçada pelos autores

franciscanos, como o frei Venâncio Willecke, que, muito embora tenham realizado

50 RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil. Contudo, nessa década,um outro modelo interpretativo passa a ser adotado pelos historiadores do país. Carlos Guilherme Motta, apesar de não tratar dos escritores coloniais em seu Ideologia da cultura brasileira, opera a leitura dos textos a partir das condições sociais que o determinaram. 51 RODRIGUES, José Honório. Idem, p. 491. 52 IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil, p. 119. 53 Idem, p. 31. 54 Idem, ibidem (grifo nosso).

Excluído: o

Uma história de “contornos esfumados”

66

excelente trabalho erudito, retificando alguns dados, recaem freqüentemente em

anacronismo em virtude de sua abordagem apologética.55

Frei Venâncio Willecke organizou a quinta edição da História do Brasil de frei

Vicente do Salvador, comemorativa do IV Centenário de nascimento do autor, corrigida e

aumentada. Na ocasião, inclusive, o frade baiano foi oficialmente homenageado com um

selo comemorativo que lhe conferia o epíteto de “pai da História do Brasil” ou “Heródoto

Brasileiro”. Conquanto tenha mantido “as notas preliminares e os magistrais

prolegômenos”56 de Capistrano de Abreu, Willecke observou que as edições anteriores

eram oriundas de uma cópia portuguesa “assaz defeituosa até que a quinta edição (...)

obedeceu a um apógrafo mais fiel, que se acha no Arquivo Nacional da Torre do Tombo

de Lisboa.”57 Assim descreve os manuscritos utilizados, o primeiro intitulado “História

do Brasil”e o segundo “Addições e emendas”:

“O papel do códice 49, de 425 páginas e do tamanho de 410 x 275 mm, remonta

aos fins do século XVII, apresentando o códice a letra do século XVIII, o escudo

nacional no frontispício, o título e o nome do autor rodeado por uma moldura e

as letras capitais, no texto finamente desenhadas e ornamentadas. A

encadernação do códice 49 é da época, em carneira, e com ferragens; enquanto o

códice 24, de 139 páginas e de 300 x 207 mm, apresenta o papel e a letra do

século XVII e a encadernação em pergaminho da época.”58

O cuidado que parece ter sido devotado à feitura dessa cópia do início do

Setecentos aponta para a permanência da circulação de manuscritos após o advento da

55 Ver ROWËR, frei Basílio. A ordem franciscana no Brasil. Ver ainda os artigos publicados na revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGPE): WILLECKE, frei Venâncio. O padre mestre franciscano, v. XLVII, p. 141-155; MÜLLER, frei Bonifácio; TEVES, frei Matias; WILLECKE, frei Venâncio. Capítulos da história franciscana em Pernambuco, v. XLVI, p. 249-417. Todos esses estudos utilizam os cronistas da ordem, sobretudo frei Vicente e frei Jaboatão, como argumento de autoridade para a exaltação da atividade franciscana de catequese e educação durante o período colonial. Além dessas atividades, destacam o serviço prestado à pátria, como o combate aos holandeses. 56 WILLECKE, frei Venâncio. Duas palavras. In SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil, p. 25. 57 WILLECKE, frei Venâncio. Os franciscanos na história do Brasil, p. 59. 58 WILLECKE, frei Venâncio. Duas palavras. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 25 (grifo nosso).

Uma história de “contornos esfumados”

67

tipografia.59 Entretanto, nenhum outro comentador ou analista da História do Brasil de

frei Vicente do Salvador ousou trilhar caminhos diferentes daquele de Capistrano. Em

coro com o historiador cearense, todos afirmaram e lamentaram o esquecimento do livro

até o final do século XIX.

Em que pesem os inegáveis méritos de Capistrano de Abreu, a sua canonização –

ainda em vida, decerto – impossibilitou novos juízos em relação à obra do franciscano,

tratada, freqüentemente, como testemunho neutro do século XVII. Esta posição tem a sua

origem nos prolegômenos elaborados para a edição crítica de 1918, cuja concepção

historiográfica não difere da anterior, publicada trinta anos antes pela Biblioteca

Nacional, embora as preocupações com os documentos se façam mais presentes.60

De modo geral, os prolegômenos acrescentam fontes não conhecidas pelo frade,

cotejam documentos que comprovam ou refutam sua narrativa; comparam o texto à

análise de contemporâneos a fim de chegar à verdade sobre o primeiro século de

colonização portuguesa; fornecem informações adicionais sobre as personagens que

aparecem na História, além de complementarem os capítulos perdidos. Alguns exemplos

talvez possam esclarecer melhor o tratamento dado à obra.

Na intervenção ao livro I, Capistrano de Abreu identifica como fontes a Cronica

de D. João III, de Francisco de Andrade, e a História da Província Santa Cruz, de

Gandavo, afirmando que a experiência de frei Vicente do Salvador dispensou a utilização

de outras autoridades. “São-lhe desconhecidos os documentos originais do período.

Dentre estes cabe o primeiro lugar ao tratado assinado em Tordesilhas a 7 de junho de

1494.”61 Menciona ainda a carta de Pero Vaz de Caminha, “narrativa incomparável da

viagem de Pedro Álvares Cabral”, conhecida somente a partir de 1817, após a sua

publicação na Corografia do Padre Aires de Casal.62 O mesmo desejo de preencher as

lacunas deixadas pelo franciscano e atualizar o conhecimento histórico à luz das novas

“descobertas”, leva-o à menção dos estudos sobre as línguas indígenas, desde Martius até 59 Roger Chartier assinala, em diversos estudos, os diferentes usos dos impressos e manuscritos na época moderna. No séculos XVI e XVII, a imprensa era freqüentemente vista como corruptora dos textos. Nas colônias, em particular na América, pela ausência de tipografias, a circulação dos manuscritos era ainda mais recorrente. Este ponto será retomado ao fim do capítulo. 60 SALVADOR, frei Vicente do. São Paulo; Rio de Janeiro: Weiszflog irmãos, 1918. 61 ABREU, Capistrano de. Prolegômenos ao livro I, p. 49. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil. 62 Idem, p. 50.

Uma história de “contornos esfumados”

68

Edgard Roquette-Pinto, através dos quais “tem-se procurado conhecer as relações entre as

diferentes tribos.”63

Nos prolegômenos ao segundo livro, alguns procedimentos são repetidos. Desse

modo, o historiador cearense observa que os capítulos 2 e 7 fundam-se em Gandavo e

Pedro Mariz, além de notícias colhidas nas diversas capitanias pelo franciscano.

Acrescenta informações sobre os donatários, colhidas sobretudo em Varnhagen, “que

precisou nossos conhecimentos” em relação ao tema.64

Os exemplos se repetem e seria fatigante enumerá-los todos aqui. Observe-se

apenas, por fim, a atitude de Capistrano de Abreu frente aos capítulos perdidos do livro

V, que esclareceriam os episódios relativos à expulsão dos franceses e conquista do

Maranhão. Para preencher as lacunas deixadas pelas partes perdidas, listou uma

quantidade enorme de fontes, dividindo-as em três blocos: 1613, 1614 e 1615. Tais

documentos já haviam sido publicados nos Anais históricos do Maranhão, de Berredo; na

separata do volume 26 dos Anais da Biblioteca Nacional, intitulada Documentos para a

história da conquista e colonização da costa leste-oeste do Brasil; ou ainda nos

Documentos para a história do Brasil, especialmente do Ceará, do Barão de Studart.

Em síntese, Capistrano de Abreu, imbuído da concepção cientificista da

disciplina, indagou constantemente se a narrativa de frei Vicente relatava “como as coisas

realmente aconteceram”, e buscou suprir suas lacunas. Em relação a Varnhagen, deu-lhe

os louros que merecia, mas cobrou-lhe a falta de rigor em relação ao uso e citação das

fontes. Se, nesse caso, a censura foi justa – afinal o Visconde de Porto Seguro, filho de

uma alemão, escreveu a sua obra algumas décadas após a nomeação de Ranke para a

cátedra de história na Universidade de Berlim – em relação a frei Vicente do Salvador, a

utilização dos critérios oitocentistas são um tanto anacrônicos.

Decerto, ao zelo do historiador cearense escapou a importância da dedicatória de

frei Vicente, quiçá porque a menção às autoridades não era parte integrante dos

acontecimentos narrados. Em sua nota preliminar, Capistrano de Abreu apenas tratou de

Manuel Severim de Faria, menosprezando a menção aos “três historiadores portugueses,

63 ABREU, Capistrano de. Prolegômenos ao livro I, p. 52. In SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. Roquette-Pinto então acabara de publicar o seu Rondônia, em 1917. 64 ABREU, Capistrano de. Prolegômenos ao livro II, p. 94. In SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil.

Excluído: como uma fonte da época e

Excluído: , portanto, perguntam-se constantemente

Excluído: conta

Excluído: ou ainda se a

Uma história de “contornos esfumados”

69

Luís de Camões, João de Barros e Diogo do Couto”65 – o que remetia, indubitavelmente,

às prescrições retórico-poéticas específicas dos gêneros historiográficos. Ademais, o

franciscano menciona Aristóteles e Santo Agostinho; Plutarco, Ovídio e Homero,

revalorizados e divulgados pelos humanistas europeus. Destarte, é possível identificar na

dedicatória as matrizes letradas que permitem compreender os critérios seiscentistas

utilizados na elaboração da História do Brasil.

O uso de lugares-comuns, por exemplo, era uma técnica recorrente nas práticas de

leitura e escrita da alta Idade Moderna.66 Segundo Fernando Bouza:

“Una primera forma de realizar la lectura, es decir, de transformar el texto

recréandolo en el momento mismo de leer, tiene que ver con el substrato de

lugares comunes y autoridades que tanto autores como lectores compartían al

estar inmersos en la misma cultura letrada. (...) Esta manera de finalizar el texto

sólo puede ser compreendida se partimos de la mencionada cultura de

autoridades y si reconocemos que en muchos géneros el valor del autor no se

reducía a la innovación sino, por contra, a la recreación de argumentos y

temas perfectamente establecidos y conocidos.”67

Em busca da originalidade tão valorizada após o Iluminismo, Capistrano de Abreu

lamenta a “impossibilidade de distinguir o próprio do alheio”68 na obra do franciscano e

assinala que “a comparação do Brasil com uma harpa, a descrição do monstro marinho de

São Vicente, a observação sobre as letras que faltam ao tupi” procedem de Gandavo.69

Na edição de 1888, a obra do franciscano já havia sido comparada com trechos de Diogo

do Couto e Jerônimo Machado.70 De fato, esses topoi eram peças primordiais no século

XVII para a criação do verossímil e respectiva persuasão do leitor, alcançada sobretudo

pela noção de testemunho ocular.

65 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 43. 66 Cf. CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita, p. 94. 67 BOUZA, Fernando. Comunicación, conocimiento y memoria en la España de los siglos XVI y XVII, p.98 (grifo nosso) 68 ABREU, Capistrano de. Nota preliminar, p.38. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil. 69 Idem. Prolegômenos ao Livro I, p. 49. 70 Michel de Foucault destaca a historicidade da função autor, situando a sua criação no final do século XVIII e início do XIX, quando se instaurou um regime de propriedade para os textos. Cf. O que é um autor? Ver ainda o artigo de João Adolfo Hansen, citado nas notas 76 e 77 da Introdução: Autor.

Uma história de “contornos esfumados”

70

Assim, as regras que regiam a cultura letrada durante a “era da eloqüência” –

analisada minuciosamente por Marc Fumaroli71 – não poderiam ter sido consideradas nos

estudos sobre a obra do frade baiano, realizados no final do século XIX e início do XX.

Isso pode explicar a afirmação de Capistrano de Abreu de que o estilo pouco preocupava

o franciscano: “Pode escrever com elegância e graça, mas em geral desenvolvem-se os

períodos descuidosos, à maneira de contas de rosário debulhadas maquinalmente.”72

Nada mais típico da concepção oitocentista, que entendia a retórica meramente como

adorno. Inversamente, no Seiscentos, a retórica encontrava-se no cerne dos debates

acerca do conhecimento, no qual a compreensão da forma passava pela analogia com a

essência.73

Como poderá ser verificado nos próximos capítulos, são diversos os artifícios

retóricos presentes na História do Brasil de frei Vicente do Salvador, que certamente

conheceu os debates coevos na Universidade de Coimbra e mesmo no Colégio Jesuíta da

capital baiana. Desde a dedicatória, observa-se a construção de um lugar humilde para o

narrador:

“Desta maneira, havendo-me Vossa Mercê pedido um tratado das coisas do

Brasil, lhe ofereço dois, leitura que pudera causar fastio, se o diverso método a

não variara e dera apetite; e contudo receio de não satisfazer a curiosidade de

Vossa Mercê, segundo sei que gosta desta iguaria. Donde tomei também motivo

para dedicar a Vossa Mercê, e não a outrem (...).”74

71 FUMAROLI, Marc. L’age de l’eloquence. Rhéthorique et ‘res literaria’ de la Renaissance au seuil de l’époque classique. 72 ABREU, Capistrano. Nota preliminar, p. 39. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil. Sérgio Buarque de Holanda defendeu que o realismo dos cronistas e historiadores portugueses dos séculos XVI e XVII era fruto de uma mentalidade antiquada, apegada antes ao mundo sensível do que ao conceitual e experimental. Para demonstrar a sua hipótese, referendou a postura de Capistrano em relação aos estilo de frei Vicente do Salvador: “O que disse, por exemplo, Capistrano de Abreu do estilo de Frei Vicente do Salvador, quando compara suas frases a contas do rosário mecanicamente debulhadas, estende-se à maneira de narrar os fatos própria do frade historiador. ‘Seu livro, afinal’, disse ainda quem mais pelejou por exumá-lo, ‘é uma coleção de documentos antes reduzidos que redigidos, mais histórias do Brasil do que História do Brasil.’ ” Visão do Paraíso, p. 316. A citação é oriunda da nota preliminar de Capistrano. 73 “As línguas estão com o mundo numa relação mais de analogia que de significação; ou, antes, seu valor de signo e sua função de duplicação se sobrepõem; elas dizem o céu e a terra de que são imagem (...)” FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, p. 51. 74 SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 44 (grifo nosso). Esta passagem será analisada com mais precisão no capítulo II.

Uma história de “contornos esfumados”

71

À acusação de laxidão por não ter examinado arquivos e papéis amarelados, como

desejava Capistrano, estimulado pelos pressupostos de aferição estabelecidos a partir dos

estudos de Leopold Von Ranke, contrapõe-se a inexistência, no Seiscentos, de uma rígida

hierarquia entre o que foi lido, escrito ou ouvido. A legitimidade da noção de testemunho

ocular funda-se justamente na indistinção entre “o que se vê e o que se lê, entre o

observado e o relatado.”75

Os recentes estudos de Fernando Bouza apontam para a ampla utilização política

de textos, vozes e imagens, para diversos fins, assinalando a existência, durante o período

da União Ibérica, de:

“una clara conciencia de que lo oral, lo iconico-visual y lo escrito, tanto en su

versión tipográfica como manuscrita, así como en sus fórmulas de lectura

silenciosa o de lectura en voz alta, cumplían la misma función expressiva,

comunicativa e rememorativa, aunque, claro está, no en las mismas

circunstancias, correspondiendo a las figuras y a los carcateres escritos la

posssibilidad de, además de presentar, re-presentar el comocimiento.”76

Muito embora frei Vicente do Salvador tenha escrito a sua história durante a

dominação dos Felipes, Capistrano de Abreu nem mesmo menciona o episódio nos seus

prolegômenos. Este talvez seja o mais grave, dentre todos os problemas da leitura

nacionalista dos documentos coloniais. Teria sido o franciscano um brasileiro avant la

lettre, que criticava os portugueses, ou as suas críticas dirigiam-se sobretudo aos

espanhóis?

A questão é irrelevante caso não se considere que, mesmo em Espanha e Portugal,

o conceito de nação, nos séculos XVI e XVII, não era definido de forma precisa, ou no

mínimo, não nos nossos termos. Segundo Ricardo García Cárcel,

“En el Antiguo Régimén puede decirse que fue prioritario el concepto de

jurisdicción. Lo que realmente afectaba al individuo de la época era su

vinculación a una família en un régimen de capitulaciones matrimoniales y

75 FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p. 54. 76 Idem, p. 31.

Uma história de “contornos esfumados”

72

testamentarias determinado y su condición de sujeto paciente de la jurisdición

eclesiástica o senõrial y de la administración real, de una corona lejana y sólo

visible a través de funcionarios de tercer grado, encargados del cobro de los

impuestos, de la represión del orden público y de la administración de la

justícia.”77

O conceito de jurisdição pode ser perfeitamente adequado ao estatuto da América

portuguesa no século XVII. Ademais, considerando a formação jurídica de frei Vicente

do Salvador na Universidade de Coimbra e a sua atuação – a de conquistador das almas –

, parece muito improvável que entendesse o “Brasil” de forma independente, ou pelo

menos, autônoma em relação ao Império português, entendido em uma perspectiva

sacramental, na qual o rei era a cabeça do corpo místico imperial.78 Nesse sentido, os

santos assumem um papel de intervenção terrena, protegendo o reino contra seus

adversários, como pode ser verificado nos diversos escritos coevos de autores ibéricos.

A crença portuguesa na intervenção da Virgem e dos santos em seus combates era

tão forte que, em 1705, a pedido do Senado da Câmara, Santo Antônio de Lisboa foi

nomeado tenente-coronel do forte homônimo. Frei Vicente do Salvador, enquanto estava

preso num navio holandês, interpretou da seguinte forma o insucesso dos batavos:

“e um dia lhes disse que se desenganassem de poder fazer presa alguma, porque

estava defronte uma fortaleza, mostrando-lhe uma igreja de Nossa Senhora do

Socorro de muitos milagres, a qual defendia todo aquele circuito, do que muito se

riram, mas enfim se tornaram para o porto sem pilhagem alguma.”79

Os momentos de crise, como os vividos durante a primeira metade do Seiscentos,

quando recrudescia a insegurança frente às investidas dos holandeses, suscitam “um forte

sentimento de solidariedade por parte da família, dos amigos, da comunidade aldeã, dos

77 CÁRCEL, Ricardo García. Catalunã y el concepto de Espanã en los siglos XVI y XVII. In BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. A memória da nação. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1991. 78 Sobre o tema, ver o estudo clássico de KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do Rei. 79 Salvador, frei Vicente do. Op. Cit, p.373.

Uma história de “contornos esfumados”

73

poderes locais e, sobretudo, do poder central, que via a sua função protectora posta em

causa.”80

No artigo intitulado A sociogénese do sentimento nacional, Francisco Bethencourt

analisa o sentimento de pertença a uma mesma comunidade histórica em Portugal, isto é,

a emergência de estados de comunhão, ensejados pela “percepção de uma solidariedade

mais ampla do que as solidariedades tradicionais (a família e a aldeia).”81 O historiador

português assinala a importância da língua comum na geração de um sentimento

gregário, em uma sociedade ainda caracterizada pela fragmentação e forte valorização da

vida local.

Além da língua, das festas e dos momentos de crise, Bethencourt afirma que os

esforços de identificação política das diversas elites sociais portuguesas engendraram

diversas obras, manuscritas ou impressas, sobretudo relativas aos gêneros históricos, que,

a partir de 1580, passaram a legitimar este reino perante Castela, como a Monarquia

Lusitana, de frei Bernardo de Brito; e para as tentativas de síntese, como os Dialogos de

varia historia, de Pedro de Mariz. Esses esforços, segundo o historiador português:

“situam-se num nível de cultura escrita dominante, com um papel decisivo de

modelação da memória, integração das periferias e confirmação dos

sentimentos de pertença, dada a troca desigual de informações entre os diferentes

meios sociais e níveis de cultura. O enraizamento da noção de comunidade

histórica passa, assim, pelo ordenamento erudito da tradição, pelo conhecimento

do território e pelo conhecimento dos homens.”82

As funções de modelar a memória, integrar as periferias e confirmar os estados de

comunhão, defendida por Bethencourt, podem ser utilizadas para analisar a narrativa de

frei Vicente do Salvador, que insere o tempo brasileiro na cronologia ocidental, mais

especificamente, no tempo da administração ibérica. A escrita então detinha um caráter

colonizador, assim como as imagens e as palavras proferidas em voz alta.

80 BETHENCOURT, Francisco. A sociogénese do sentimento nacional. In BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada, Op. Cit., p. 475. 81 Idem, ibidem. 82 Idem, p. 486 (grifo nosso).

Uma história de “contornos esfumados”

74

Por fim, a leitura nacionalista não permite a compreensão da existência de

diversas cópias e versões do manuscrito da História, justamente no momento em que o

Brasil passou a ser a possessão portuguesa de maior importância, ou seja, a partir da

segunda metade do Seiscentos e, sobretudo, do início do Setecentos. Isso reforça a

hipótese de que houve uma circulação manuscrita entre os círculos letrados de Portugal.

A cópia produzida neste período, com o escudo do Império Português – e não da nação

conforme Willecke assinala –, aponta para a utilização da história de frei Vicente do

Salvador pelos responsáveis pelo bom governo da República Cristã.

Em síntese, a interpretação de Capistrano – não colocada à prova pelos seus

sucessores imediatos –, em sua busca pelas origens e identidade nacionais, não podia

considerar o Brasil como parte do Império Católico, no período da União Ibérica, e

tampouco a reunião dos homens em torno de um sentimento comum, que se realizava,

diferentemente das vias decimonônicas, pelas referências cotidianas ao sagrado. É

preciso, assim, problematizar os critérios adotados no século XIX, à luz das questões

historiográficas contemporâneas, para compreender a História do Brasil de frei Vicente

do Salvador não como um testemunho neutro ou segundo critérios de aferição

supostamente científicos, mas a partir dos preceitos retóricos coevos e das tópicas

teológicas, sobretudo as relacionadas ao bom governo do Brasil.

CAPÍTULO II

“Verdade, clareza e juízo”:

as essências da história seiscentista

“O favor ajuda o escritor, alivia-lhe o trabalho,

anima-o e dá-lhe fervor à sua obra; porém o que

agora vemos é que, querendo todos ser

estimados e louvados dos escritores, há mui

poucos que os louvem e estimem, e menos que

lhes façam as despesas. Só temos a V.M. em

Portugal que os estima e favorece tanto como se

vê em sua livraria, que quase toda tem ocupada

de livros históricos, e principalmente no que

fez de louvores dos três historiadores

portugueses, Luís de Camões, João de Barros,

e Diogo do Couto, favor tão grande para

escritores de histórias que se pode dizer, e assim

é, que aos mortos dá vida, ressuscitando a

memória, que já o tempo lhes tinha sepultada e

aos vivos excita, dá ânimo, e fervor, para que

saiam à luz com seus escritos, e folgue cada um

de contar e compor sua história.”

Frei Vicente do Salvador

Assim escreve frei Vicente do Salvador, com o intuito de dedicar a Manuel

Severim de Faria (1583-1655), chantre e cônego da Sé de Évora, a prosa histórica sobre o

Brasil, redigida ao longo da terceira década do Seiscentos. Claramente, as palavras do

frade baiano referem-se às páginas do eclesiástico acerca das vidas dos “três historiadores

portugueses”, inseridas nos Discursos vários políticos, publicados pelo impressor da

Universidade de Évora, Manoel de Carvalho, em 1624.

Manuel Severim de Faria possuía considerável prestígio entre os letrados

ibéricos. Filho de Gaspar Gil Severim, escrivão da Fazenda Real e executor-mor do reino,

e de D. Juliana Faria, tomou posse, em 1608, do canonicato e, em 1609, do chantrado da

“Verdade, clareza e juízo”

77

Sé de Évora, após a renúncia de Baltazar de Faria Severim, seu tio, que se recolheu ao

Convento dos Cartuxos da cidade.1 Mestre em Artes e Doutor em Teologia e Filosofia

pela Universidade Jesuítica, continuou os seus estudos eruditos e passou a reunir, como

parte de seus interesses antiquários, livros e documentos manuscritos que compuseram

excelente “livraria”, aberta aos que desejassem consultá-la.

A estima obtida pelo doutíssimo antiquário levou diversos outros escritores

coevos a mencionarem-no elogiosamente, entre eles Lope de Vega e Manuel de Faria e

Sousa, célebres na corte de Madri. A sua erudição, colocada a serviço do rei e da pátria,

também foi destacada pelos freis Bernardo de Brito, Antônio Brandão e Francisco

Brandão nos sucessivos volumes da Monarquia Lusitana.2 Além dos contatos na Europa,

Manuel Severim de Faria organizou em torno de si uma rede de correspondentes que

enviavam informações da África, América e do Oriente. Os contatos epistolares com os

missionários que partiam para o Ultramar foram mantidos com seu irmão, Cristóvão

Severim ou frei Cristóvão de Lisboa, primeiro Custódio franciscano no Maranhão, a

partir de 1624. Além dos poderes recebidos no reino do Santo Ofício, o frade recebeu do

administrador de Pernambuco, Bartolomeu Ferreira, os de vigário-geral e provisor. Frei

Vicente do Salvador narrou as ações pias do “nosso irmão Frei Cristóvão Severim”:

“Nem trabalhou menos o padre custódio em o edifício espiritual das almas,

que em a visita achou estragadas, e em a conversão dos índios. O mesmo fez no

Pará, onde reduziu à paz dos portugueses os gentios tocantins, que,

escandalizados de agravos que lhe haviam feito, estavam quase rebelados, e

levou consigo os filhos dos principais pera os doutrinar e domesticar, proibiu

com a excomunhão venderem-se os índios forros, como faziam, dizendo que só

lhe vendiam o serviço.

Queimou muitos livros que achou dos franceses hereges e muitas cartas de

tocar e orações supersticiosas de que muitos usavam, apartou os amancebados

das concubinas, e fez outras muitas obras do serviço do Nosso Senhor e bem das

1 Sobre a nobre família Faria, ver: ZÚQUETE, Afonso Eduardo Martins. Armorial lusitano: genealogia e heráldica. O próprio Severim de Faria escreveu o Tratado da família dos Farias. Para mais informações sobre os postos ocupados e os escritos de Manuel Severim de Faria ver a introdução aos Discursos Vários Políticos, de VIEIRA, Maria Leonor Soares Albergaria. 2 Maria Leonor Soares Albergaria Vieira compilou algumas referências elogiosas a Severim de Faria. Discursos vários políticos, p. XII-XVIII, nota 11.

“Verdade, clareza e juízo”

78

almas, não sem muito trabalho e perseguições, que por isto padeceu, sabendo que

são bem aventurados os que padecem pela justiça.”3

Enquanto o chantre de Évora apoiava as atividades de diversos escritores

católicos, franqueando-lhes o acesso aos seus livros e manuscritos, o franciscano lisboeta

destruía a produção herege que chegara indevidamente à América Portuguesa. Entre as

penas apoiadas pelo antiquário, estava a de Vicente do Salvador, que o havia conhecido

na ocasião de sua segunda viagem a Portugal, realizada após ter ocupado o posto de

Custódio da Ordem de São Francisco no Brasil, entre 1614 e 1617. Ao reino, levou

consigo a Crônica da Custódia do Brasil, que, posteriormente, desapareceria sem deixar

vestígios.4

Em 1619, Manuel Severim de Faria encomendou-lhe “um tratado das coisas do

Brasil” e prometeu “tomar a impressão à sua custa”.5 Nesse mesmo ano, Filipe II de

Portugal, III de Espanha (1598 – 1621) visitava o reino e entrava em Lisboa com

magnífico aparato, “similar na sua disposição e nos seus conteúdos ao que tinha sido

realizado por seu pai em 1581.”6 Desde 1583, com o regresso de Filipe II a Castela,

Lisboa ficou sem a assistência régia e perdeu a sua condição de capital. À época, a

escolha por Madri não era definitiva, considerando que Toledo havia abrigado a corte

espanhola até 1561 e Valladolid entre 1600 e 1606.

Os portugueses, de fato, esperavam pela visita régia desde a coroação do novo rei,

sucessivamente adiada. Segundo Fernando Bouza, a visita ao reino português “tinha a

finalidade de fazer jurar o príncipe herdeiro perante os Três Estados, e que acabou por ser

sempre retardada pelo Duque de Lerma. Este, não desejando convocar Cortes, preferia

tratar dos assuntos do reino em juntas particulares (...).”7

3 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 377 (grifo nosso). 4 Essa crônica foi primeiramente utilizada por Frei Manuel da Ilha, que, em 1621, escreveu um suplemento em latim sobre a Custódia de Santo Antônio, tratando também dos missionários anteriores, desde frei Henrique de Coimbra. O livro do Insulano foi editado em 1975, em uma edição bilíngüe, latina e portuguesa, pela Editora Vozes. Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão cita a existência da crônica de frei Vicente, não obstante afirme desconhecer o seu paradeiro. 5 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 44. 6 ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Portugal no tempo dos Filipes, p. 91. 7 Idem, p. 191.

“Verdade, clareza e juízo”

79

As cidades portuguesas dividiram o “serviço dos trezentos e setenta mil cruzados

que tinham sido pedidos como condição para a realização da viagem.”8 Apesar de

brevíssima, a visita propiciou, por um lado, encômios e festas ao monarca, mas por outro,

o recrudescimento do debate sobre a redução de Portugal a uma mera Província de

Castela e os males causados pela ausência do rei às possessões portuguesas. Entre os

debatedores, destacou-se o doutíssimo antiquário Manuel Severim de Faria, que, em um

de seus discursos políticos, defendeu a assistência régia na cabeça do reino lusitano:

“(...) em quanto os Reis residiram em Lisboa, sabemos que além das grandes

frotas, que mandavam pera as suas conquistas, todos os anos saíam deste reino

três armadas, uã que andava em guarda da costa dele, outras nas ilhas, e a terceira

no estreito, com as quais conservaram seus estados de maneira, que nunca em

seu tempo chegou inimigo algum a roubar lugar da costa de Portugal, (...). Porém

depois que sua Majestade se ausentou, começou logo a ausência a fazer seus

efeitos, de modo que em poucos anos cessaram todas as armadas, e achando os

inimigos o mar desamparado delas, roubaram as frotas do Brasil, e de Guiné e

muitas naus da Índia, e saquearam toda a costa do Brasil, Ilhas do Cabo Verde,

e dos Açores, e nos tomaram as Molucas, e finalmente entraram no mesmo reino,

onde destruíram Faro e toda a costa do Algarve, e cercaram Lisboa passeando

muitas léguas com um exército per Portugal, o que tudo aconteceu por os Reis

estarem no sertão, e com a sua ausência faltarem as armadas, que defendessem as

costas do Reino, e as frotas que vêm de suas conquistas.”9

Frei Vicente do Salvador certamente entrou em contato com os debates que

estavam em curso, tanto em Lisboa como em Évora, onde consultou a famosa biblioteca

de Manuel Severim de Faria. Em 1620, o frade retornou à Bahia, pois havia sido eleito

novamente guardião do convento de Salvador. Contudo, renunciou à função, que voltaria

a ocupar em 1630, quando a História do Brasil já estava concluída.

O livro foi dedicado ao licenciado Manuel Severim de Faria, que o encomendou.

Na dedicatória, além de Barros, Camões e Diogo do Couto, são mencionados Aristóteles,

Homero, Plutarco, Diodoro Sículo e Santo Agostinho. Mais do que um simples galanteio 8 ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Portugal no tempo dos Filipes, p. 191. 9 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, pp. 11-12 (grifo nosso).

“Verdade, clareza e juízo”

80

cortesão, inserido na economia das mercês, as dedicatórias e os prólogos dos papéis

históricos seiscentistas remetem o leitor aos preceitos que governavam o bom uso desses

gêneros e, de forma subjacente, ao conceito de história partilhado entre os letrados

ibéricos no século XVII. Se a História do Brasil direcionava-se, de forma geral, aos

discretos letrados portugueses, o antiquário de Évora certamente figurava como seu

primeiro leitor.

Em referência à precípua autoridade aristotélica, as primeiras linhas expõem o

motivo que teve o Filósofo para “escrever livros históricos e morais, quais as suas Éticas

e Políticas e a História de animais, além de lho mandar o grande Alexandre e lhe fazer as

despesas(...).”10 Afirma que o imperador da Macedônia tanto estimava o livro de

Homero que “o fechava em escritório guarnecido de ouro e pedras preciosas, melhor peça

que lhe coube dos despojos de Dário, ficando-lhe na mão a chave que ninguém a fiava.”11

A passagem, de Plutarco, permite a vinculação dos gêneros historiográficos à Ética e à

Política de Aristóteles – alicerces da eloqüência e da teologia da escolástica no século

XVII. Em seguida, o franciscano dá razão a Alexandre, pois, de acordo com Túlio:

“(...) os livros históricos são luz da verdade, vida da memória, e mestres da

vida; e Diodoro Sículo diz in proemio sui operis que estes igualam os mancebos

na prudência aos velhos, porque a que os velhos alcançam com larga vida e

muitos discursos, podem os mancebos alcançar em poucas horas de lição,

assentados em suas casas.”12

A prudência – cabe ratificar – era uma das principais virtudes do cortesão.

Associada diretamente à memória, ela permitia aos homens aprender com os exemplos do

passado e calcular as suas atitudes presentes. Assim, o homem político seiscentista,

ocupante de postos importantes no império, percebe os gêneros históricos como

instrumento auxiliar do bom governo. Nas palavras de frei Vicente, ressuscitar a memória

dos mortos, pela escrita, dava ânimo e fervor aos vivos. A história, à luz da razão de

estado católica, visava o bem comum da república, pois constituía uma prosa de

10 SALVADOR, Frei Vicente do. Op. Cit., p. 43. 11 Idem, ibidem. 12 Idem, ibidem (grifo nosso).

“Verdade, clareza e juízo”

81

aconselhamento aos responsáveis pela condução dos seus negócios. Ademais, o

reconhecimento de bons serviços prestados ao rei, mesmo nas possessões ultramarinas,

possibilitava o acesso a outros postos hierarquicamente mais nobres e garantia lugares de

prestígio àqueles de sua Casa.

A Dedicatória segue conforme os preceitos retóricos adequados. Após informar

que incitou um amigo a compor a mesma história em verso, o franciscano lança mão do

genus humile, essencial para captar a benevolência dos leitores, e da idéia aristotélica

segundo a qual os discursos devem deleitar para persuadir. À escrita, portanto, cabia ser o

antídoto do tédio, resultado atingido pelo uso conveniente de tropos e figuras:

“Desta maneira, havendo-me Vossa Mercê pedido um tratado das coisas do

Brasil, lhe ofereço dois, leitura que pudera causar fastio, se o diverso método a

não variara e dera apetite; e contudo receio de não satisfazer a curiosidade de

Vossa Mercê, segundo sei que gosta desta iguaria.”13

Após a metáfora, frei Vicente traça uma analogia com a passagem bíblica na qual

Jacó oferece ao pai, Isaac, uma iguaria de que gostava e, assim, alcança a sua benção:

“Bem enxergou o santo velho, ainda que cego, que Jacó o enganava, pois o

conheceu pela voz: vere quidem vox Jacob est; mas, levado do gosto da iguaria a

que era afeiçoado, depois da inspiração do céu lhe concedeu a benção. Esta peço

eu a Vossa Mercê, e com ela não tenho que temer a maldizentes.”14

Por fim, faz uso de um hipérbato e encerra o trecho com um lugar comum

encomiástico no mundo católico: “Nosso Senhor vida, saúde e estado conserve e aumente

a Vossa Mercê, como os seus lhe desejamos.”15 A saúde e a conservação dos estados

eram duas tópicas recorrentes entre os teólogos da Segunda Escolástica, cuja perspectiva

confessional forneceu as bases à sobrenaturalização da Monarquia Cristã, instrumento da

Providência Divina. Esse emprego mundano da figura sacramental supõe uma relação

13 SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 44 (grifo nosso). 14 Idem, ibidem. 15 Idem, p. 45.

“Verdade, clareza e juízo”

82

análoga entre os homens e seu criador. Assim, a conservação e aumento dos estados –

reciclados e utilizados engenhosamente em louvor a Severim de Faria – são partes da

ordem natural instituída pelo Criador.

“Nessa sua orientação natural para o fim que forneceu a razão de sua Criação, o

mundo encontraria a sua ‘estabilidade fundamental’. E é preciso lembrar que,

nessa perspectiva, tal orientação se compõe com o voluntário do arbítrio, cuja

escolha concorre precisamente para a ordem realizada já na mente de Deus, em

que não há tempo, mas eternidade.”16

Segundo Alcir Pécora, o modo sacramental de conceber o mundo incorpora três

instâncias principais de sua projeção: a idéia de que Deus se sinaliza no mundo, o que

permite ver a natureza e a história como depósitos de pistas deixadas aos homens; o lugar

privilegiado dos mistérios litúrgicos; e, por fim, “a instituição da figura pessoal de um

eleito, de um favorito da Providência, destinado a ter uma atuação decisiva no desfecho

da história humana.”17

As prosas históricas seiscentistas, portanto, submetiam os acontecimentos

mundanos à hermenêutica cristã e desvelavam o seu sentido sobrenatural. Como magistra

vitae, a narrativa historiográfica fornecia exemplos de homens pios que participavam, por

meio do arbítrio, da ordem desejada e planejada pelo Criador. Assim, se o Estado

Católico era um dos instrumentos da Divina Providência, o serviço prestado ao Rei era

também uma contribuição para que o mundo atingisse o seu telos. Pécora assinala a

articulação entre Providência Divina e Livre Arbítrio, pedra fundamental do edifício

teológico construído em oposição às heresias luteranas:

“Não, claro, que a Vontade [divina] não possa afirmar-se por si mesma, mas

apenas que, nesse caso, os homens teriam falhado em responder ao mais

generoso chamamento do Ser às suas criaturas: o de fazê-las co-autoras do

16 PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento, p. 148 (grifo nosso). 17 Idem, p. 140.

“Verdade, clareza e juízo”

83

estabelecimento de uma ordem em que o humano, sem deixar de o ser, participa

estreitamente, em cada ato voluntário seu, da suprema virtude do Que É.”18

Essa concepção escatológica explicita-se no terceiro livro da História do Brasil,

no qual, após discorrer sobre as dificuldades vicissitudes da viagem de Jorge de

Albuquerque a Portugal, frei Vicente do Salvador roga “aos que lerem este capítulo que

dêem ao Senhor as mesmas graças e louvores e tenham sempre em ele firme esperança,

que os pode livrar de todos os perigos.”19 A intenção do capítulo pode ser estendida aos

demais livros escritos pelo franciscano: interpretar os sinais de Deus no mundo e

defender, com base nos acontecimentos sucedidos no Brasil, que os portugueses

contavam com a proteção divina para realizarem os desígnios do Senhor.

A sua prosa historiográfica fornecia ainda exemplos de bom governo no Brasil e,

desse modo, reafirmava a legitimidade e justiça da colonização católica nessas partes.

Legítima porque justa e católica, pois, o argumento central desenvolvido pelos lusitanos

fundamentava-se na conversão do gentio e na salvação de suas almas. Como católicos, os

indígenas poderiam então ser considerados súditos do rei de Portugal. Todavia, quando

trata das discórdias entre as autoridades, do cativeiro injusto dos indígenas, ou mesmo

quando critica a fixação meramente litorânea do Brasil, frei Vicente do Salvador pretende

denunciar os obstáculos à realização dos desígnios divinos.

Os preceitos retórico-poéticos que presidem a ars historica no século XVII

podem ser identificados quando frei Vicente do Salvador menciona as vidas dos “três

historiadores portugueses”, escritas pelo antiquário de Évora. Em Os Lusíadas e nas

Décadas, livros exemplares, Severim de Faria encontrou excelentes usos dos seus

respectivos gêneros, conforme a preceptiva aristótelico-horaciana em voga no Seiscentos

ibérico.

Os Discursos vários políticos, portanto, constituem um meta-texto da dedicatória.

No livro, as vidas de Barros, Camões e Couto estão dispostas entre discursos que tratam

de práticas cortesãs – como no terceiro em que discorre sobre a caça – e de questões

relacionadas ao exercício político durante a União Ibérica. A preocupação com o novo

estatuto lusitano manifesta-se no Discurso Segundo, uma defesa da perfeição da língua 18 PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento, p. 246 19 SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 165.

“Verdade, clareza e juízo”

84

portuguesa, “uã das melhores do mundo” por ser mais chegada ao latim, corrompido por

vários modos em Itália, França e Espanha.20

As questões relativas ao governo político da Monarquia Hispânica também são

tratadas no Discurso Primeiro, no qual advoga a transferência do rei e de sua corte para

Lisboa. A unidade do império espanhol, em virtude de sua abrangência, necessitava de

um centro marítimo que possibilitasse um contato mais eficiente entre a sua cabeça e o

seu corpo:

“(...) claro fica que a nenhum Príncipe importa tanto o poder do mar, como ao de

Espanha, pois só pelo meio das forças marítimas faz um corpo unido de tantas, e

tão distantes Províncias, como são as de sua Coroa, socorrendo-as a tempo, e

recebendo delas com segurança os imensos tesouros com que a enriquecem, os

quais não sendo os Espanhóis senhores do mar, ficam sujeitos a serem roubados

de seus inimigos.”21

O primeiro procedimento para assegurar o senhorio dos mares, portanto, seria a

transferência do rei do sertão a um lugar marítimo, ou seja, de Madri a Lisboa. Segundo

Manuel Severim de Faria, era necessário considerar que “a Monarquia de Espanha, não

consta só de Espanha, mas de todas as Províncias de suas conquistas e que para estas não

fica Madrid no meio, mas muito desviado.”22 Em seguida, refuta argumentos favoráveis à

cidade hispânica e fornece diversas razões à escolha de Lisboa. Resume, pois, o remédio

indicado à saúde dos reinos e à perpetuidade do império:

“Visto temos com evidência, como a conservação, e aumento da Monarquia

de Espanha consiste em forças marítimas, e que estas as não pode sua Majestade

ter sem assistir em porto de mar, e que em todos os de Espanha Lisboa é o

melhor, por ser situado no coração de seus estados, ser mais capaz, e mais seguro

porto, ter maior cópias de materiais pera armadas, e ser mais abundante, e

20 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 80. 21 Idem, p. 10. 22 Idem, p.13.

“Verdade, clareza e juízo”

85

provida de mantimentos e mais acomodada pera a defensão de seus estados, e

finalmente por ter os melhores ares, e recreações de todas.”23

Além do fortalecimento imperial – “servindo de instrumento da glória de Deus, e

salvação das almas”24 –, com a transferência da corte para Lisboa, teriam fim “as

prolongadas guerras de Flandres, as quais sustentam os rebeldes só com o poder do mar

(...).”25 O alvitre visava ao bem comum, em prol de todos os súditos e não apenas dos

portugueses.

As vidas desempenham um papel análogo aos discursos políticos que as

acompanham. A reminiscência desses três escritores – textos que não devem ser

confundidos com biografias românticas – fornece exemplos de súditos pios, que

colocaram as suas penas a serviço de Deus e do rei. Ao contrário da milícia, onde muitos

trabalham pela conservação de um só Príncipe,

“na escritura um só trabalha pela conservação de todos, e faz com ela viver na

lembrança dos homens, aqueles, que pela pátria entregaram liberalmente as

vidas, e conservando a memória das cousas passadas, dá regra para acertar nas

futuras.”26

Esses argumentos sobre o lugar dos escritores na república iniciam a Vida de João

de Barros, na qual Manuel Severim de Faria também expõe minuciosamente as regras

que constituem a ars historica na alta Idade Moderna.

2.1 João de Barros: a celebração imperial

O fidalgo João de Barros (c.1496-1570) ocupou importantes postos nas cortes de

D. Manuel e D. João III, culminando com o de feitor das Casas da Índia e Mina a partir

de 1533, o que lhe permitiu o acesso a informações privilegiadas da empresa ultramarina.

Em 1535, o rei de Portugal lhe doou a capitania do Maranhão. Muito embora não tenha 23 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p.25. 24 Idem, p.26. 25 Idem, ibidem. 26 Idem, p. 30.

“Verdade, clareza e juízo”

86

logrado êxito na empresa americana, a trajetória do fidalgo foi coroada pelos serviços

prestados na seara das letras, “trabalhando ele toda a vida por ilustrar a pátria, e deixar

de seus naturais gloriosa memória.”27

O projeto original de Barros era amplo e ultrapassava a narração dos feitos

portugueses na Ásia, abrangendo a saga lusa nos quatro continentes, desde a época dos

romanos, passando pela tomada de Ceuta e o descobrimento do Brasil.

A Primeira Década da Ásia foi publicada em 1552. O seu estilo emulava a

história de Roma escrita por Tito Lívio, que compreendia 142 livros divididos em

décadas. Lívio desfrutava de imenso prestígio entre os letrados quinhentistas. Erasmo de

Rotterdan, cujas idéias de fé culta tiveram grande repercussão em Portugal até meados do

século XVI, recomendava a sua leitura aos seus discípulos.28 “Erasmo acreditava que os

princípios do Cristianismo se situavam num plano ético mais elevado do que os

ensinamentos dos antigos filósofos, mas julgava que o estudo dos antigos autores pagãos

conduzia a uma compreensão mais profunda das doutrinas cristãs.”29

Valorizado pela eloqüência de sua obra e pelas máximas morais, o historiador

romano escreveu sobre a ordenação da República e as virtudes necessárias à formação do

Império. A matéria não passou despercebida a Maquiavel, que, entre 1513 e 1517,

escreveu os Discorsi – comentários acerca da primeira década de Tito Lívio com o

objetivo de, com base nos exemplos da Antigüidade, “ordenar uma república, manter um

Estado, governar um reino, comandar exércitos e administrar a guerra ou de distribuir a

justiça aos cidadãos.”30

O prólogo da Primeira Década da Ásia, dedicada ao muito poderoso e

cristianíssimo D. João III, inscreve a obra do português em um funcionamento diverso

daquele proposto pelo florentino às cidades italianas, mais precisamente, entre os

discursos letrados ibéricos caracterizados pela razão de estado antimaquiavélica. Ao

longo do prólogo, João de Barros discorre sobre as diferenças entre as cousas da natureza,

que se renovam de modo cíclico, e os atos humanos, cujo caráter breve e finito fez com

27 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 30. 28 Cf. BURKE, Peter. Da popularidade dos historiadores antigos: 1450-1700 “Lívio foi encarado como conselheiro político, e isto porque a linha divisória entre a moral e a política parecia ser, neste período, difícil de traçar, tal como tinha acontecido na Antigüidade Clássica.” In O mundo como teatro, p. 186 29 HIRSH, Elisabeth Feist. Damião de Góis, p. 6 30 MAQUIAVEL. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, p.17.

“Verdade, clareza e juízo”

87

que buscassem um “divino artificio, que representásse em futuro, o que elles obrávam em

presente.”31 A escrita, desse modo, teria a função de “guardar em futuro nóssas óbras

pera com ella aproveitarmos em bom exemplo (...) pera cõmu e temporal proveito de

nóssos naturaes.”32

Os quatro primeiros livros acerca dos feitos que os Portugueses fizeram no

descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente tratam desde a conquista da

Espanha pelos Árabes e a transformação de Portugal em reino, até o descobrimento da

Índia por Vasco da Gama. A origem portuguesa, segundo João de Barros, teve início com

o dote concedido por D. Henrique a D. Afonso Henriques, na ocasião de seu casamento

com Dona Tereza. O dote consistia em:

“todalas terras q naquelle tempo eram tomadas aos mouros nesta parte da

Lusitania que ora e reyno de Portugal cõ todalas mais que elle podesse conquistar

delles. Em q entraram alguas de Andalusia, porque em todas estas elle e seu filho

el rey dom Afonso Anrriquez verterã seu sangue por as ganhar das mãos e poder

dos mouros.”33

O compromisso assumido por D. Afonso Henriques na gênese do Reino, de ter

sempre “continua guerra com esta perfida gente dos Arabios”, foi passado aos seus

herdeiros, os quais deveriam permanecer em contínua guerra contra os infiéis. A

lembrança do ato fundador assume então um significado importante diante dos obstáculos

erigidos por mouros e gentios nas partes orientais, matéria de diversos capítulos da Ásia,

entre eles o segundo do nono livro:

“Posto que nesse passado capitulo dissemos que toda a térra de Ásia era habitáda

destas quatro nações de gente, Christãos, Judeus, Mouros e Gentios: as primeiras

duas podemos dizer que naquellas partes sam mais cativos que livres, pois por

razam de sua habitaçam sam subdictos dos mouros ou gentios q ocupam toda

aquella terra (...)” 34

31 BARROS, João de. Ásia. Primeira Década, p. 1. 32 Idem, p. 2. 33Idem, p. 8. 34 Idem., p. 347.

“Verdade, clareza e juízo”

88

A missão apostólica do reino de Portugal vinculava-se à própria noção de

império. Segundo Barros, os portugueses sempre trabalharam por merecer, perante Deus,

o título de servos fiéis, espalhando a verdadeira fé pelo mundo:

“Finalmente per excelencia assy como Christo Jesu cõparou a multiplicaçam

do evãgelho ao espirito do grão da mostarda em respecto das outras sementes:

assy em comparaçã da grãdeza q outros reynos desta Európa tem em térra e povo,

bem podemos na virtude da multiplicaçam e fectos illustres em acrescetamento

da igreja e louvor de sua propria coróa, cõparar este reyno a hu grão de mostarda,

o qual tem produzido de si hua tam grande arvóre q a sua grandeza potencia e

doctrina asombra a mayor parte das terras q neste precedente capitulo apontamos.

E toda a sua conquista é com aquelles dous gladios, em q deos pos o estádo

de todo o universo: hu espiritual q consiste em a denunciaçam do evangelho

per todo o pagaismo do mundo q tem descoberto, augmentado, e dilatãdo o

estado da igreja, e o outro material com q offende a perfidia dos mouros que

quérerem empedir estas obras. Assy q recolhendonos a nósso próposito, toda

nóssa contenda na India é com estes dous géneros de gete mouros e gentios

(...)”35

Mas a ars historica, pela narrativa dos feitos humanos, fornecia exemplos que

deviam ensinar os homens a agir com prudência, baseados na razão em detrimento das

paixões. Nesse sentido, o capítulo XVI do livro primeiro, intitulado Das feições da pesoa

do infante Dom Anrique e dos costumes que teve em todo o discurso de sua vida, inicia a

profusão de exemplos veiculados nas Décadas. O infante foi caracterizado pela limpeza

da alma, pela inclinação às letras e aos estudos, foi magnífico em despender e edificar,

ainda que despendesse da própria fazenda, “toda a sua vida pareceo hua perfecta religiã:

nam lhe faleceram pensametos de áltas impresas e obras de generoso animo, quaes

convem aos de real sangue.”36 E Barros, após descrever diversas realizações na África do

infante D. Henrique, paradigma de conduta ao governante cristão, conclui que:

35 BARROS, João de. Op. Cit., p. 348-349(grifo nosso). 36 Idem, p. 61.

“Verdade, clareza e juízo”

89

“mostrando em estas e outras cousas que cometeo de bem comu, ter no coraçam

plantáda a vontáde de bem fazer, como elle trazia per móto de sua divisa nestas

palávras francesas: Talant de bien faire. (...) Posto que nos principios deste

descobrimento ouve grandes dificuldades, e foy muy murmurado: teve tanta

constancia e fé na esperança que lhe o seu espirito favorecido de deos prometia,

que nunca desestio deste descobrimento (em quanto pode) per espáço de

quorenta anos. ”37

Ora, os feitos do infante na África são interpretados à luz das doutrinas da

Segunda Escolástica, que defendiam ser o bem comum o objetivo central dos governos.

Ademais, D. Henrique personificava algumas das virtudes cardeais e cristãs, dentre elas a

fé, a coragem e a prudência.

As palavras encomiásticas estendem-se a outros personagens da Expansão

Portuguesa, como o rei D. Manuel e, já na Segunda Década da Ásia, Afonso de

Albuquerque, capitão-mor enviado para conquistar a costa da Arábia. A valorização de

ambos não foi exclusiva da pena de João de Barros. Em 1551, a celebração do Venturoso

teve lugar no translado dos seus ossos para o Mosteiro dos Jerônimos. D. João III ainda

encomendou a João de Barros uma crônica manuelina, porém, após a sua morte em 1557,

o Cardeal Infante D. Henrique incumbiu Damião de Góis do ofício. Quanto à memória do

capitão-mor, cujos ossos também foram transladados com grande pompa da Índia para

Portugal, seu filho, Brás Afonso de Albuquerque, publicou, sucessivamente, em 1557 e

1576, os Comentários de Afonso de Albuquerque.38

Mas, de acordo com Manuel Severim de Faria, além do serviço prestado a Deus,

ao rei e aos portugueses, lembrando as virtudes dos homens que propiciaram a dilatação

da fé e do império, João de Barros notabilizou-se pelo excelente uso que fez do gênero

histórico. O chantre de Évora lamentava apenas que o seu Clarimundo, livro fabuloso

escrito na juventude, tivesse melhor fortuna nas impressões que as Décadas: “donde se vê

37 BARROS, João de. Op. Cit, pp. 61-62 (Grifo nosso). 38 CURTO, Diogo Ramada. A literatura e o império: entre o espírito cavaleiroso, as trocas da corte e o humanismo cívico, p. 453. In BETHENCOURT, Francisco; CHAUDURI, Kirti (dir.) História da Expansão portuguesa, v.1.

“Verdade, clareza e juízo”

90

que o gosto do vulgo não se governa por razão, mas sim pelo apetite, e que o bom de

ordinário contenta aos menos.”39

Os livros históricos eram apreciados apenas pelo público governado pela razão,

pelos gentis homens que controlavam as suas paixões e instintos. Destarte, os exemplos

fornecidos pela prosa historiográfica eram utilíssimos aos discretos que desejassem

exercitar a eloqüência necessária aos negócios da corte e do império. Segundo Manuel

Severim de Faria:

“É a história (segundo de Túlio em outra parte temos mostrado) o sujeito mais

capaz da Oratória que nenhum outro, porque nela se usa do género

Demonstrativo, contando vários feitos condenando os vícios, e lovando as

virtudes; e do Deliberativo, introduzindo orações, conselhos e discursos, e

muitas vezes do Judicial, o qual raramente se aparta do Deliberativo.”40

A classificação aristotélica dos gêneros retóricos, indubitavelmente, constitui o

alicerce dos argumentos do antiquário, que aprofunda a sua reflexão:

“Em todos estes gêneros é esta história de João de Barros admirável, porque além

do sujeito que trata ser nobilíssimo pela variedade, grandeza, e novidade dos

casos admiráveis, guardou com suma inteireza todas as leis da história, assi

as essências que nela se requerem, que são verdade, clareza, e juízo, como as

outras partes a que chamam integrantes.”41

As respectivas essências da história faziam parte do rol de questões tipicamente

seiscentistas, as quais visavam sobretudo diferenciar os escritos críveis e legítimos

daqueles fantásticos, destinados ao vulgo. Severim de Faria desfia cada uma delas, a

começar pela verdade, a qual deve constar tanto da notícia tratada, “como do verdadeiro

ânimo do mesmo historiador em não calar o bem, ou mal, que fizeram aqueles de quem

trata.”42 João de Barros teve as mais certas notícias, pois lhe foram entregues os mais

39 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 46 (grifo nosso). 40 Idem, ibidem (grifo nosso). 41 Idem, ibidem (grifo nosso). 42 Idem, ibidem.

“Verdade, clareza e juízo”

91

diversos papéis para a empreitada, além de ter mandado buscar crônicas dos reis do

Oriente e ter se valido das informações dos pilotos portugueses. O ânimo verdadeiro, para

o chantre de Évora, era claro nas Décadas, “onde com suma liberdade reprova so vícios,

e louvas as virtudes que alguns Capitães tiveram, dando a cada um o seu (...).”43 Ainda

que apontasse os vícios, Barros não ampliou miúdezas e se manteve ao essencial da

história.

A clareza, de acordo com Severim de Faria, era uma das características da pena de

João de Barros. Descrevia tudo como se visse diante dos olhos e comparava, segundo as

regras da Arte Memorativa, os elementos desconhecidos nas distantes províncias a algum

sinal conhecido. Com esse procedimento, fazia com que os leitores compreendesem “a

figura, ou cousa de que trata, com suma distinção.”44

“A clareza da narrativa é assaz evidente, por falar com palavras muito

próprias, e naturais, e com tudo se vê nele tanta majestade, que causa admiração

poder ajuntar com tanta gravidade tanta clareza, porque nas descrições é tão fácil,

que muitas vezes parece poeta, posto que nesta parte história e poesia sejam

muito conformes.”45

A ecfrase era um dos recursos da ars historica seiscentista que possibilitava a

amplificação dos topoi, mobilizando os afetos, a fim de persuadir os leitores. Desse

modo, o ornamento da elocutio historiográfica – com a pintura dos tipos e descrições

minuciosas que permitem ao leitor visualizar as cenas tal como em uma tela – articulava-

se intrinsecamente aos seus argumentos, pois, de acordo com os preceitos retórico-

poéticos em voga, as artes discursivas deviam docere, movere et delectare. O conceito do

ut pictura poesis aproxima não apenas a história da pintura, mas da poesia. É nesse

sentido que Manuel Severim de Faria afirma a conformidade de história e poesia, embora

fossem definidas por oposição pela preceptiva.

Entretanto, a elocutio historiográfica não tem autonomia em relação à inventio -

repertório de matérias e argumentos necessariamente verossímeis - e à dispositio - ordem

43 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 48. 44 Idem, p.49. 45 Idem, pp. 48-49 (grifo nosso).

“Verdade, clareza e juízo”

92

das partes discursivas. Os gêneros historiográficos eram confeccionados de acordo com a

noção de narrativa in ordo naturalis. Assim, Manuel Severim de Faria chega à terceira

essência da história seiscentista, o juízo, afirmando que a ordem das Décadas foi

“convenientíssima, seguindo os anos e os governos”46, procedimento que foi seguido por

muitos escritores que cuidaram dos feitos do Oriente e do Ocidente, como Diogo do

Couto e Antônio Herrera. Segundo o chantre da Sé de Évora:

“O juízo consta não só em observar as leis integrantes da História, mas na

boa ordem e disposição dela, e no julgar o que se errou, ou se acertou nas acções

públicas e particulares de que trata. As leis da História integrantes seguiu

propondo no princípio a matéria que tratava, introduzindo um excelente exórdio

da origem das guerras entre os Mouros, e Portugueses: no que têm faltado muitos

modernos, que começam suas histórias como se escreveram uã carta; não se

pejando de professarem compor uma Arte, sem aprenderem primeiro os

preceitos, e regras dela.”47

A parte judicial do discurso, onde se acham prognósticos e elogios, fornecia

exemplos e máximas políticas. Pelo emprego do decoro exato, João de Barros era

considerado como “um dos mais insignes Historiadores do mundo.”48 Recebeu louvores

de muitos que escreveram não apenas pelos livros que deixou, mas também pela vida

exemplar que levou:

“Foi varão de vida exemplar, e mui pio, como se vê bem de suas obras, que

podem ser nisto exemplo a outros escritores modernos; os quais compõem seus

livros com tal esquecimento das cousas divinas, que lidos eles não se pode

determinar, se é o Autor Cristão, se gentio, como já se disse de Joviano Pontano,

e de outros.”49

46 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p.49. 47 Idem, ibidem (grifo nosso). 48 Idem, p. 50. 49 Idem, p.62.

“Verdade, clareza e juízo”

93

Em suma, a perfeição de João de Barros não residia apenas no uso engenhoso e

decoroso dos preceitos aristotélico-horacianos. Certamente, as Décadas possuíam as três

essências da prosa historiográfica seiscentista – verdade, clareza e juízo. Ao colocar a sua

eloqüente pena em funcionamento, Barros ainda fornecia exemplos virtuosos a fim de

melhorar os costumes dos demais súditos e, sucessivamente, os serviços prestados ao rei.

Ele próprio era um homem pio, preocupado com o bem comum e com a conservação do

império português. Assim, passou a servir de exemplo aos letrados e a ser considerado

uma autoridade no que se referia aos assuntos ditos históricos.

2.2 Luís de Camões: a memória épica do Império

A conformidade de certas partes da prosa historiográfica e da poesia épica permite

a Manuel Severim de Faria, ao tratar da vida de Luís de Camões (c.1517-1579), discorrer

também sobre o decoro da Perfeita História. O juízo da Poética aristotélica, que opõe a

história à poesia, fornece o ponto de partida ao chantre da Sé de Évora:

“Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a obra de

Heródoto podia ser modificada; não seria menos uma história com o metro do

que sem ele; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos

quais podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerra mais filosofia e elevação do

que a História; aquela enuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares.

Enunciar verdades gerais é dizer que espécie de coisas um indivíduo de natureza

tal vem a dizer ou a fazer verossímil ou necessariamente; a isso visa a Poesia,

ainda quando nomeia personagens. Relatar fatos particulares é contar o que

Alcibíades fez ou o que fizeram a ele.”50

Todavia, antes de tratar da excelência do engenho camoniano e de sua doutrina,

“que nos varões doutos é o que principalmente se considera”51, Severim de Faria discorre

sobre as milícias e peregrinações de Luís de Camões na África e na Ásia. Nascido em

Lisboa, após os estudos em Coimbra – onde aprendeu Latim, filosofia e letras humanas –,

50 ARISTÓTELES. Poética, IX, p. 39 (grifo nosso). 51 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 121.

“Verdade, clareza e juízo”

94

foi desterrado da corte. De acordo com o antiquário, o poeta partiu para a Índia em 1553

e de lá regressou, já com Os Lusíadas, em 1569 – ano da Grande Peste em Lisboa, que

lhe fez esperar até 1572 para imprimir o poema.

O excelente uso que Camões fez do épico lhe valeu os louvores somente

aplicados a mais três poetas desde o “princípio do mundo”: “Homero, entre os Gregos,

Virgílio nos Latinos, Torquato Tasso entre os italianos, e o nosso Poeta em Espanha.”52

Manuel Severim de Faria ratifica que a diferença entre o Poeta Heróico e o Historiador

residia no número de ações a serem imitadas:

“(...) porque o Historiador escreve a narração das cousas como aconteceram

sucessivamente, mas o Poeta escolhe uã só acção de um herói e essa refere, não

pontualmente como foi, mas como convinha ser, ornando a narração com vários

episódios, que são digrssões de fábulas, acontecimentos, e enredos, com que com

suavidade persuadam aos que o lerem, e ouvirem.”53

Em Camões, o descobrimento da Índia constitui uma ação a ser cantada.

Outrossim, a ação devia ser honesta e digna de imitar, porque o fim da poesia heróica “é

ensinar, incitar, e mover deleitando,”54 tal como Severim de Faria argumenta:

“(...) Vasco da Gama rodeou a maior parte da terra, vencendo com singular valor

as forças dos elementos, as traições, e armas dos inimigos, fomes, sedes,

estranheza de climas, injúrias dos tempos, e mostrou ao mundo o verdadeiro

conhecimento de si mesmo, em que desde o seu princípio até então estivera

ignorante achando novas estrelas, e novos mares, comunicando o Oriente com o

Ocidente, de que se seguiu dar aos povos da Europa a notícia de tantas drogas,

frutos, e pedras em que a natureza se mostrou maravilhosa, e benigna para os

mortais, e aos moradores da Ásia o conhecimento das Artes, polícia, ciências de

Europa, e sobre tudo do verdadeiro Deus, de que os mais deles estavam

52 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, pp. 121-122. 53 Idem, p. 122. 54 Idem, p. 124.

“Verdade, clareza e juízo”

95

totalmente ignorantes. Por onde na qualidade da acção heróica fica o nosso

poema superior a todos os antigos, e modernos.”55

A ação era a mais digna de ser imitada, pois os portugueses revelaram aos demais

povos cristãos as maravilhas da natureza e, principalmente, aos hereges, infiéis e idólatras

a verdadeira fé. Em resposta aos que afirmavam que Camões teria profanado a

honestidade da ação por invocar as Musas, “indecentes a Poeta Católico”, e não os

santos, Severim de Faria argumenta que a poesia não é outra coisa “senão uã imitação, ou

fábula, a qual traz sempre consigo, como parte essencial, a invocação das Musas do

Parnaso.”56 Assim, os poemas heróicos invocavam Calíope, uma das musas que, mesmo

os antigos, adoradores de deuses gentílicos, tinham por fingida. A decisão de não

introduzir santos e anjos no poema foi acertada nesse sentido, pois era necessário

“escrever deles com toda a reverência, e decência devida, que não se compadece misturar

cousas sagradas com as profanas.”57

Mas como o livro de Camões tratava de argumentos verdadeiros, era necessário

diferenciar os verdadeiros milagres dos fabulosos, “com que os leitores ignorantes,

podem cair em erro de não conhecerem quais devem de ser cridos.”58 Da mesma forma, a

gravidade dos seus argumentos não prescindia de episódios alegóricos, como os

esposórios celebrados na Ilha de Santa Helena entre Vasco da Gama e seus soldados e as

ninfas do Oceano, “pera entreter os leitores.”59

Além de deleitar, o poema devia ser útil – utile et dulci. E a utilidade dos

Lusíadas era a de fornecer exemplos virtuosos, “porque não há ninguém que o leia que

não fique inflamado de um admirável desejo de glória, e de empregar a vida em feitos

ilustres, aventurando-a pela fé, pelo Rei, e pela pátria.”60 Assim, Vasco da Gama constitui

o modelo de capitão prudente e heróico. Segundo Severim de Faria, deste poema,

55 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 125. 56 Idem, ibidem. 57 Idem, p. 126. 58 Idem, ibidem. 59 Idem, p. 128. 60 Idem, p.129.

“Verdade, clareza e juízo”

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fundado sobre história verdadeira, “se podem tirar excelentes regras para a vida política,

e moral.”61

Não obstante tratasse de acontecimentos verdadeiros, a dispositio épica obedecia

a regras de composição específicas em relação à prosa historiográfica. Ao contrário deste

discurso, narrado in ordo naturalis, o decoro da poesia heróica não prescreve que as

ações sejam dispostas de forma linear:

“Nem se há-de contar a história sucessivamente, mas começando no meio dos

sucessos, alcançar-se-á depois a notícia do precedente com súbito conhecimento.

Estes e os mais preceitos da arte se vêem tão bem guardados neste Poema como a

quem o lê é notório. Pelo que pudera ser, que se Aristóteles o alcançara não

gastara tantas palavras em louvar os de Homero.”62

Assim, Luís de Camões recebeu o epíteto de Príncipe dos Poetas e passou a ser

celebrado em todo o mundo pelos “melhores Poetas, Históricos e Oradores, de maneira

que sua gloriosa memória durará igualmente com os séculos vindouros.”63 Embora não

fosse preceptista, o poeta português passou a ser o exemplo máximo, no Seiscentos

ibérico, de emprego da arte.

Alcir Pécora defende que Camões, bem como o padre Antônio Vieira,

compreendem a sua respectiva arte – a épica e o sermão – “como estímulo, louvor e

documento das proezas memoráveis dos antepassados, de virtudes sublimes dos heróis e

de esperanças futuras do Reino.”64 A lembrança dos feitos passados, quando alia o

engenho ao domínio técnico dos preceitos, permite conceber outro feito ainda maior por

vir. Segundo Pécora:

“Arte é, para estes dois monstros do engenho, publicidade de um passado elevado

e vibrante, e, ao mesmo tempo, fiança de uma história futura ainda mais alta que

ela descobre embutida ou figurada na antiga. Ao revelar esse futuro e torná-lo

61 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 130. 62 Idem, p. 134. 63 Idem, p. 152. 64 PÉCORA, Alcir. As artes e os feitos. In Máquina de gêneros, p. 138.

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97

presente em sua própria perfeição, tal arte antecipadamente participa de sua

existência e assegura a sua vinda.”65

Os letrados desempenham, destarte, um papel proeminente no império, que se

reveste de uma aura providencial assinalada nos feitos pretéritos. A perspectiva imperial

camoniana contempla três ordens de heróis: os navegadores e conquistadores, os reis

portugueses e “os demais varões portugueses cujo esforço e bravura valeu-lhes a

imortalidade.”66 O império era uma construção não apenas das armas, mas das letras, na

medida em que o Bem, inerente às conquistas lusitanas, era emulado das penas

quinhentistas e seiscentistas:

“O Império, a que tanto Camões quanto Vieira pretendiam servir, não era, de

modo algum, o da língua apenas – que foi, afinal, o que puderam ter –, a não ser

na medida em que da língua esperavam, com confiança e audácia desmedidas, o

fogo capaz de animar o seu movimento universal. Era em territórios objetivos

que pensavam, como objetiva supunham a ordem divina que impregnava a

geografia mundial.”67

Se os feitos portugueses superavam os de qualquer outros povos, era necessário

imortalizá-los em um canto superior aos mobilizados pelos poetas antigos. Mas a epopéia

não celebra apenas as proezas pretéritas, pois, sem o poeta, o sentido do feito não pode

ser compreendido.

“Para Camões, o feito histórico não atinge verdadeiramente a sua plenitude

heróica ou sublime antes que se produza o canto que desempenha o seu valor,

isto é, sem que se acrescente aos sucessos das armas o espírito das letras. Ao

passado grandioso da pátria é necessário que se ajunte a inteligênciadele, pela

arte, a fim de que o acidental e particular dos feitos alcance o estatuto necessário

universal e excelência, que comunica perfectibilidade aos seres.”68

65 PÉCORA, Alcir. As artes e os feitos. In Máquina de gêneros, p. 139. 66 Idem, p. 141. 67 Idem, p. 145. 68 Idem, p. 162.

“Verdade, clareza e juízo”

98

Os Lusíadas celebram as conquistas portuguesas a fim de garantir a conservação

do império formado paulatinamente desde o século XV. Nessa altura, a decadência,

apontada posteriormente por Diogo do Couto, ainda não era sentida nem no reino, nem

tampouco nas possessões ultrmarinas. O ano de 1578 marcou especialmente essa

inflexão, com o desaparecimento do rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir e a

sucessiva querela sucessória que dividiu os grandes do reino. Mas a menção de Frei

Vicente do Salvador a Camões como historiador, ao lado de Barros e Couto, somente era

possível porque a História e a Épica eram subgêneros epidíticos que comportavam o

louvor e, desse modo, serviam-se da mesma matriz de modelos teológicos-retóricos-

políticos.

2.3 Diogo do Couto: o ocaso do Império

A vida de Diogo do Couto (1542-1616), cronista e guarda-mor da Torre do

Tombo do Estado da Índia, é um texto mais breve, porém não menos importante para

apreender a “alma das histórias” seiscentistas. A percepção da crescente ruína do império

fez com que Couto tomasse posições nem sempre laudatórias em relação aos feitos

portugueses. Por volta de 1565, escreveu o Soldado Prático, diálogo no qual criticava as

práticas administrativas dos vice-reis da Índia aos mais humildes soldados. O livro não

foi publicado inicialmente. Apenas em 1611, quando já havia se tornado célebre pela

continuação das Décadas, foi impressa uma outra versão intitulada Enganos e

desenganos da Índia, cujo original foi enviado a Manuel Severim de Faria.

O próprio cronista estabeleceu o ano de 1561, quando o vice-rei D. Constantino

encerrou o seu governo e foi sucedido, como o início da decadência das possessões

portuguesas no Oriente. Nas palavras do chantre da Sé de Évora:

“E diz Diogo do Couto, que até seu tempo [de D.Constantino] durou naquele

Estado a primitiva Índia, em que os homens pretendiam somente ser valerosos, e

honrados, e desprezavam o interesse; e que dali por diante começou a ser

idolatrada a avareza, ao qual vício chama a Sabedoria Divina: Raiz de todos os

males; e como este se foi apoderando daquele Estado, tem introduzido nele

“Verdade, clareza e juízo”

99

tantos, que parece já agora irremediável a sua cura, se Deus milagrosamente lhe

não acode.”69

Diogo do Couto fora testemunha ocular da inflexão, pois embarcou para a Índia

em 1556, onde militou durante alguns anos, “mostrando com particular valor que as letras

não impedem, antes favorecem as armas.”70: O título de Cronista da Índia lhe foi

conferido por Felipe II de Espanha, conhecedor da importância dos gêneros

historiográficos nos negócios do governo e desejoso de legitimar a sua majestade frente à

percepção do declínio português, marcado pelo desaparecimento de D. Sebastião no norte

da África e pela união das coroas ibéricas:

“Sucedendo el-Rei Dom Filipe I na Coroa destes Reinos, como era Príncipe

tão prudente, e que sempre trazia nos olhos o bem comum de seus vassalos,

desejou de mandar prosseguir a história da Índia, do tempo em que a deixou o

nosso João de Barros, e que se continuassem as suas Décadas com o mesmo

título, e estilo, pelo grande aplauso com que as três primeiras foram recebidas em

toda Europa.”71

Súdito fiel, o cronista primeiramente escreveu a Décima Década, iniciando-a no

“dia em que o mesmo rei foi jurado, e recebido naquele Estado.”72 Em carta, o rei

agradeceu o serviço prestado e recomendou novamente que continuasse a escrever a

partir de quando João de Barros havia deixado a Ásia. Assim, Couto escreveu a quarta, a

quinta, a sexta, a sétima, a undécima e a duodécima Década. Exerceu o ofício,

incessantemente, até adoecer gravemente no ano de 1614, quando já tinha em mãos a

oitava e a nona Década, que desapareceram de sua casa. Recuperou-se um pouco depois,

mas, como “já neste tempo era de setenta e dous anos”73, remediou o furto compilando as

duas em um só volume.

69 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 119. 70 Idem, p. 171. 71 Idem, p. 172. 72 Idem, ibidem. 73 Idem, 173.

“Verdade, clareza e juízo”

100

Manuel Severim de Faria informa que até 1616, ano de falecimento do cronista da

Índia, apenas foram impressas da quarta à sétima Década, sendo que da sexta apenas

restaram seis volumes em virtude de um incêndio ocorrido na casa do impressor. Mas ao

antiquário interessava tratar ainda da elocutio decorosa mobilizada nestes livros:

“O estilo que nestas Décadas guardou Diogo do Couto é muito claro, e chão,

mas cheio de sentenças, com que julga as ações de cada um, e mostra as causas

dos sucessos adversos, e prósperos que naquelas partes tiveram os Portugueses.

Porém ainda que nesta parte pode ser comparado na verdade do que escreve,

que é a alma da história, no que trata dos Príncipes do Oriente, nos costumes

daqueles povos e remotas províncias, na situação da sua verdadeira geografia,

levou a muitos conhecida ventagem, como se pode claramente ver das suas

Décadas, nas quais se mostram os erros que nestas matérias tiveram os que antes

dele escreveram as cousas do Oriente.”74

A passagem reafirma dois elementos essenciais aos gêneros historiográficos

seiscentistas: a clareza e a verdade, esta última destacada como a alma da história. Na

perspectiva do antiquário, Couto pôde alcançar a verdade pois era cidadão de Goa,

cabeça do Estado da Índia, ponto de partida e chegada das armadas, onde assistiam todos

os vice-reis, “de maneira que recebeu as informações dos mesmos que se acharam nas

empresas, e a tempo, que as testemunhas de vista, que na mesma cidade havia, os

obrigavam a falar a verdade.”75

Além do testemunho ocular, Diogo do Couto se valeu do cargo de guarda-mor da

Torre do Tombo da Índia, mercê recebida de Felipe II no tempo em que o monarca

ordenou ao vice-rei Matias de Albuquerque organizar os dispersos papéis do Estado. A

estima que os contemporâneos nutriam pelas nove Décadas, composta de noventa livros,

residia não apenas em sua grandeza, mas sobretudo no engenho do autor, que não tomou

a história narrada a outros, como fizeram Lívio, “ainda que lhe excedeu o número de

volumes”, e Políbio “o qual confessa de si, que das obras que muitos escritores tinham

74 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 173 (grifo nosso). 75 Idem, pp. 173-174 (grifo nosso).

“Verdade, clareza e juízo”

101

publicado de cada conquista dos romanos, em particular, tinha composto a sua universal

história.” 76

Por fim, mas não menos importante, Diogo do Couto representa um modelo a ser

seguido pelo “grande zelo do bem público da pátria” que o acompanhou desde o início.77

Como cronista, apontou os inconvenientes que existiam no governo da República “e

principalmente no Estado da Índia, onde ele assistia, e onde por ausência dos Reis, e

excessos dos ministros, iam as desordens em maior crescimento.”78

2.4 Auctoritas lusas

Os argumentos do antiquário participam da invenção de três autoridades

portuguesas, superiores aos auctores antigos, pois, além de guardarem de forma excelente

os preceitos retórico-poéticos, empregavam as artes em prol de um império cristão.

Assim, ao tratar de Barros, Camões e Couto, ratifica os preceitos aristotélico-horacianos

que presidiam a confecção dos discursos nos séculos XVI e XVII e reafirma a concepção

sacramental da história.

Em suma, Manuel Severim de Faria, em consonância com os letrados portugueses

seiscentistas e conforme os preceitos aristotélico-horacianos, concebia os gêneros

historiográficos, variantes encomiásticas do epidítico, como uma prosa ecfrásica narrada

in ordo naturalis. Assim, esse discurso deveria combinar de forma engenhosa, a fim de

ensinar, persuadir e deleitar, uma inventio, uma dispositio e uma elocutio peculiares ao

gênero. O estilo desta prosa, que relata fatos particulares e verdadeiros, deveria ser claro

e chão, posto que grave. Para atingir a verdade, que é a alma da história, os “Históricos”-

segundo Manuel Severim de Faria - deviam se valer de testemunhos escritos e oculares.

Para o antiquário, as essências da história eram a verdade, a clareza e o juízo. O

compromisso com a verdade supunha uma chave de leitura sacramental dos

acontecimentos e conferia ao império um sentido providencial e escatológico.

Os livros históricos eram apreciados pelos leitores discretos, pois forneciam

exemplos virtuosos àqueles governados pela razão e sempre dispostos a prestar serviços

76 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 174. 77 Idem, p. 175. 78 Idem, ibidem.

“Verdade, clareza e juízo”

102

ao rei, instrumento temporal da vontade divina. Destarte, os historiadores, como

conselheiros dos negócios da República, participavam da difícil tarefa de construir a

concórdia no seio do corpo imperial. Para confeccionar os seus discursos, deviam lançar

mão, além do epidítico, dos gêneros deliberativo e judiciário. Outrossim, os historiadores

deveriam ser homens pios, súditos fiéis e zelosos do bem público. A probidade do orador

era um dos elementos fundamentais da retórica aristotélica, pois, segundo o Filósofo, as

pessoas de bem inspiram mais confiança em todos os assuntos – o caráter moral do

orador “constitui, por assim dizer, a prova determinante por excelência.”79

Mas se, por um lado, Manuel Severim de Faria louvava os livros que

conservavam a memória das possessões orientais, por outro, preocupava-se com a

escassez de informações sobre a América portuguesa. Na vida de João de Barros, após

discorrer sobre as tentativas do cronista de escrever sobre as milícias lusitanas em outras

partes além da Ásia, que seriam intituladas Europa, África e Santa Cruz, o antiquário

manifesta-se sobre o motivo que o teria levado a encomendar a História a frei Vicente do

Salvador:

“A última parte da milícia Portuguesa intitulou Santa Cruz (que é a Província

que agora dizemos Brasil) e lhe dava princípio no descobrimento de Pedralvrez

Cabral, desta não se acha nada escrito, que não é pequena falta para este

Reino, porque tendo hoje este Província crecido notavelmente em riqueza, e

polícia, com muitas povoações populosas, e nobres, está quasi totalmente falta

de História, defendendo nela os Portugueses aqueles portos e costas marítimas

contra poderosos piratas, que junto com os bárbaros gentios, obrigaram os nossos

a militar mais qua a cultivar as terras por muitos anos: estando naquele tempo os

portos abertos, sem fortalezas, ou castelos que proibissem estas entradas, em que

houve casos mil dignos de memória, e sendo as cousas naturais da terra mui

notáveis, e estranhas a nós, por quão maravilhoso se mostrou a natureza, é mais

pera sentir a falta que nesta parte nos faz a História de João de Barros.”80

79 ARISTÓTELES. Retórica, Livro I, II, p. 33. 80 FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, pp. 53-54 (grifo nosso).

“Verdade, clareza e juízo”

103

Desse modo, Severim de Faria, concomitantemente, afirma a necessidade de se

escrever uma história do Brasil e define algumas matérias a serem necessariamente

tratadas. O programa devia icluir informações acerca da natureza desconhecida, as

diversas povoações fundadas pelos portugueses, as ameaças dos corsários e do gentio.

Deveria ainda constar da inventio a polícia estabelecida pela coroa nessas partes, ou seja,

o governo e a administração do território, o que abrangia desde a construção de sistemas

defensivos, de acordo com as traças de mestre de obras e engenheiros militares, até a

política de catequese do gentio e as guerras justas que eram movidas contra os que se

opusessem à conversão.

2.5 O caráter apologético: a auto-representação franciscana

Frei Vicente do Salvador seguiu, indubitavelmente, o programa delineado de

forma breve pelo chantre da Sé de Évora. A História do Brasil narra a polícia da Coroa

na América portuguesa, celebrando os bons serviços prestados ao rei pelos governadores,

bispos, ouvidores, capitães, clérigos e demais pessoas qualificadas que contribuíam para a

conservação do império católico. Mas, entre os clérigos, o frade louva especialmente as

obras dos seus irmãos da ordem de São Francisco de Assis.

Desse modo, o franciscano contribuía para reivindicar o quinhão dos frades

menores na conquista espiritual do Brasil.81 De fato, as outras ordens religiosas

estabeleceram-se institucionalmente no Brasil somente depois da união das coroas

ibéricas. Em 1581, os beneditinos chegaram a Salvador, seguidos, em 1584, pelos

carmelitas calçados que desembarcaram na vila de Olinda. Os franciscanos, oriundos da

família reformada alcantarina, também fixaram-se primeiramente na cabeça da capitania

de Pernambuco, onde fundaram o Convento de Nossa Senhora das Neves, em 1585.

A vinda dos franciscanos à América portuguesa atendia à solicitação de Jorge

Coelho de Albuquerque, donatário da Capitania de Pernambuco, deferida pelo rei Felipe

II. Desse modo, foi criada pelo Ministro Geral da ordem, frei Francisco Gonzaga, a 81 Pero de Magalhães Gandavo não havia nem mencionado a presença dos frades menores na esquadra de Cabral, tampouco que frei Henrique de Coimbra rezara a primeira missa na terra descoberta. Cf. GANDAVO, Pero de Magalhães. História da Província Santa Cruz, pp. 78-79. Em seu livro, publicado em 1576, Gandavo apenas contempla a atuação dos jesuítas desde 1549, quando os primeiros padres chegaram junto com o governador geral, Tomé de Sousa.

Excluído: o país

“Verdade, clareza e juízo”

104

Custódia de Santo Antônio do Brasil, subordinada à Província de Santo Antônio de

Portugal, que enviou inicialmente sete religiosos para Olinda.82 Em 1587, após pedido do

Bispo e da Câmara de Salvador, o custódio frei Melquior de Santa Catarina ordenou a

construção de um Convento na cidade. Até o início do século XVII, os padres seráficos

ainda fundariam casas em Igaraçu (1588), Paraíba (1589), Vitória (1591), Recife (1606)

e, finalmente, no Rio de Janeiro (1606).

A abertura de novos territórios missionários na América e no Oriente e,

conseqüentemente, a profusão de conventos, ensejaram uma preocupação com a narrativa

sistemática das atividades seráficas. Desde 1619, o Ministro Geral da ordem, frei

Benigno de Gênova, havia ordenado que todas as províncias nomeassem um de seus

religiosos para escrever a sua própria história. No caso da Custódia do Brasil, frei Manuel

da Ilha foi incumbido da tarefa, apesar de nunca ter pisado na América. O insulano

baseou-se nos relatos dos frades que voltavam ao reino e, sobretudo, na Crônica da

Custódia do Brasil, escrita por Frei Vicente Salvador alguns anos antes.83

Escrita em latim, a Narrativa da Custódia de S. Antônio do Brasil inicia-se com a

decisão, tomada em 1584, de “enviar novos operários do santo evangelho para aquele

novo Portugal.”84 A crônica discorre sobre a fundação dos conventos e das missões a

cargo dos franciscanos, fornecendo relatos de martírios e necrológios dos frades que se

destacavam na milícia espiritual. Refere-se ainda aos irmãos seráficos que estiveram

anteriormente no Brasil, como o frei Henrique de Coimbra, os dois protomártires de

Porto Seguro e o frei Pedro Palácios, fundador do santuário de N. S. da Penha na

capitania do Espírito Santo.

82 Para a história dos franciscanos na América Espanhola, ver: PÉREZ, Antolín. Los Franciscanos en América. O papel da ordem de São Francisco na descoberta e colonização do Novo Mundo é conhecido. Os frades do Convento de la Rábida – sobretudo Frei Juan Pérez, confessor de Isabel, e Frei Antônio de Marchena, Custódio de Sevilha – não só acolheram os projetos de Colombo como facilitaram o seu acesso à corte. Desde a segunda viagem do genovês à América, em 1493, os franciscanos estiveram presentes ao lado dos conquistadores, e foram os primeiros a estabelecer uma organização permanente no Novo Mundo. Em 1502, foi criada a Província de Santa Cruz de las Indias, com sede em São Domingos. Em 1543, o primeiro convento da ordem foi criado em terra firme. 83 Ver a nota 4 deste capítulo. 84 ILHA, frei Manuel. Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil ou relação e número das casas e das doutrinas nela existentese outras coisas dignas de menção, etc. ou, originalmente, Divi Antonii Brasiliae Custodiae enarratio seu relatio numerique domorum et doctrinarum quae in illa sunt, necnom aliarum rerum narrationes dignarum, etc, p. 13.

Excluído: Os

Excluído: sete religiosos

Excluído: estudariam

Excluído: tentariam covertê-los ao cristianismo

Excluído: Em meados do século XVIII, Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695 – 1779) foi encarregado de escrever a história da ordem no Brasil, percorrendo todos os arquivos conventuais da colônia a fim de realizar tal tarefa. Sua obra, Novo Orbe Seráfico Brasílico, constitui o mais completo relato sobre a atuação dos franciscanos durante os três séculos de colonização e, certamente, será também considerada nesta pesquisa.

“Verdade, clareza e juízo”

105

A questão de maior relevo no livro de frei Manuel da Ilha talvez seja a querela

que envolveu, no fim do século XVI, franciscanos e jesuítas nas missões da Paraíba. A

questão tomou um vulto maior para os frades menores, pois esta era a primeira doutrina

da ordem na América portuguesa. O custódio, frei Melchior de Santa Catarina, aceitou a

conversão do gentio da aldeia de Pyraiuba ou Piragibe, não obstante os jesuítas já

tivessem construído uma capela e erguido cruzes no local. Os padres da Companhia não

residiam na aldeia, pois, segundo o Insulano, esperavam os estipêndios régios para iniciar

a sua missão. Nessa primeira menção, o episódio encerrou-se, aparentemente de forma

serena, após os frades menores deixarem a aldeia,:

“O Custódio agiu desse modo porque desejava manter a paz com estes e

todos os demais religiosos e fugir a qualquer ocasião de perdê-la, o que

procurava fazer sempre de novo o demônio, inimigo da nossa salvação e da paz.

Deixando, portanto essa doutrina, dirigiu-se imediatamente às outras, pelas quais

ele e seus companheiros foram acolhidos de braços abertos.”85

Entretanto, ao final da Narrativa, frei Manuel da Ilha trata novamente da

Controvérsia e desentendimento suscitado pelo inimigo do gênero humano entre nós

Frades Menores e os padres da Santíssima Companhia de Jesus, acerca das doutrinas e

aldeias da Capitania da Paraíba do Brasil, etc. A culpa da discórdia é integralmente

imputada ao demônio, que não desejaria a conversão do gentio. De forma complementar,

o Insulano advoga a legitimidade da ação de frei Melchior de Santa Catarina, superior da

ordem no Brasil, que aceitou as aldeias da dita capitania.

“Nós Frades Menores sempre fomos obedientes e submissos à Santa Sé

Apostólica e jamais demos a alguém ocasião de se insurgir contra qualquer

autoridade, nem de arrogar-se jurisdição e bens temporais; sempre vivemos

contentes com um só hábito freqëntemente remendado, com a corda e as roupas

internas, levando na mão o santo evangelho que professamos e pregamos, nada

deixando abaixo do céu senão aquilo que o próprio evangelho concede para o

sustento da vida. No entanto, fomos acusados de tirar de outros religiosos as

85 ILHA, frei Manuel da. Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil, p. 82.

“Verdade, clareza e juízo”

106

aldeias dos índios, sem permissão e sob o pretexto de doutriná-las, erguendo

cruzes em territórios alheios para os usurpar. Acusam-nos outrossim de sermos

incapazes de doutrinar, quando, na realidade, por 40 anos seguidos esta tarefa,

antes de quaisquer outros, coube aos franciscanos na Índia Oriental e em outras

conquistas.”86

Nesta passagem, o Insulano obviamente responde às acusações feitas pelos

jesuítas à época do desentendimento. Concomitantemente, reafirma os votos de pobreza e

de obediência às autoridades temporais e espirituais. Em seguida, o franciscano afirma

omitir outras acusações para não ofender os “ouvintes e leitores” e, assim, os remete às

ordens régias de Felipe II, nas quais o monarca determina a permanência dos frades

menores na capitania da Paraíba, e, conseqüentemente, “que os Padres da Santíssima

Companhia de Jesus, seus acusadores, dela saíssem sem demora.”87

Frei Manuel da Ilha ainda fortalece os seus argumentos pela transcrição de

testemunhos de Frutuoso Barbosa a favor dos frades seráficos. No primeiro deles, consta

que os frades “instruíram o gentio com sua licença e autoridade.”88 Portanto, nada podia

ser objetado aos irmãos de São Francisco de Assis, a não ser “a decisão de obedecer um

rescrito do Sumo Pontífice Sisto V, de feliz memória, e aos alvarás do rei Filipe II da

Espanha, que os obrigara a viajar para lá a fim de auxiliar os demais Religiosos (...).”89

Desejosos de conservar a amizade com os jesuítas e zelosos no serviço de Deus,

“os pobres Frades pediram humildemente ao dito governador e à Câmara os aliviassem

daquele compromisso” e entregaram as aldeias aos padres da Companhia. No fim deste

primeiro relato oficial sobre as atividades seráficas no Brasil, os documentos transcritos

são certificados pelo frei Leonardo de Jesus e pelo tabelião da Vila de Xira, Fernão Vaz.

Este relato apologético possui uma relação intrínseca com os escritos de frei

Vicente do Salvador. Em primeiro lugar, frei Manuel da Ilha utilizou a Crônica perdida

de frei Vicente como sua principal fonte. Em segundo lugar, os especialistas franciscanos

aferiram que a Narrativa possui muitas partes em comum à História do Brasil. Baseado

nos estudos de frei Adriano Hipólito, o frei Ildefonso Silveira afirma que: 86 ILHA, frei Manuel. Op. Cit., pp. 117-118. 87 Idem, p. 119. 88 Idem, ibidem. 89 Idem, pp. 123-124.

“Verdade, clareza e juízo”

107

“Na Narrativa há trechos idênticos a alguns que ocorrem na História do Brasil

de Frei Vicente do Salvador. Chega-se à conclusão que Frei Vicente repetiu em

sua História do Brasil o que havia escrito na Crônica, e foi desta que Frei

Manuel da Ilha traduziu para o latim diversas passagens.”90

O procedimento do frade somente pode ser compreendido levando-se em conta

que a paráfrase, a compilação e a cópia eram práticas correntes. Ademais, entre os

séculos XVI e XVIII, não havia dicotomia entre as crônicas apologéticas e as histórias.

Ambas compunham os diversos papéis então classificados como gêneros históricos na

medida em que os sucessos da verdadeira fé – as aparições, os milagres, os martírios –

deviam ser matéria dos historiadores, o que absolutamente não se chocava com a

afirmação de Manuel Severim de Faria, para quem a verdade era a alma da história.

Nesse sentido, Eduardo Sinkevisque também assinala que a função “do discurso

historiográfico seiscentista é celebrar e não apenas fornecer informações objetivas de

conteúdos positivos e empíricos.”91

Os relatos missionários, escritos pelas diversas ordens no início da Idade

Moderna, apresentam uma estrutura, segundo Pascale Girard, similares ao relato mítico,

aproximando-se, pois, do gênero hagiográfico. Embora Girard trate dos territórios

orientais, assinala que “a ambiência profética que caracterizou a conquista espiritual da

América parece se repetir em relação à Ásia.”92 A autora afirma que essas crônicas

tinham como um dos seus objetivos precípuos a refundação das respectivas ordens

religiosas e que, portanto, não pretendiam apenas fornecer informações acerca da

geografia ou da atividade missionária, não obstante contivessem, indubitavelmente, tais

notícias:

“Elles sont avant tout des oeuvres d’autoprésentation des missionaries. L’analyse

des procédés narratifs montre que l’histoire de chacun est un mythe construit à

l’interieur de chaque ordre par l’effet des ‘générations de chroniques’, et par

90 SILVEIRA, frei Ildefonso, O.F.M. Introdução. In ILHA, frei Manuel. Op. Cit., p. 10. 91 SINKEVISQUE, Eduardo. Retórica e política: a prosa histórica dos séculos XVII e XVIII, p. 212. 92 GIRARD, Pascale. Les religieux occidentaux en Chine à l’époque moderne, p. 143 (tradução nossa).

“Verdade, clareza e juízo”

108

rapport aux autres ordres par les phénomènes de démarquage et de

différenciation que nous avons pu observer. L’identité de chaque ordre est mise

en scène dans ces chroniques, mais elle est aussi rejouée, à l’occasion du

nouveau terrain missionaire que représente l’Éxtrême Orient.” 93

A apologia aos franciscanos – explícita e contínua no relato do Insulano e,

provavelmente, na Crônica perdida de frei Vicente – encontra-se dispersa na História do

Brasil. Contudo, uma leitura mais atenta revela já nas primeiras páginas a lembrança de

importante evento para a afirmação das obras dos franciscanos nas possessões

portuguesas. O primeiro capítulo da História trata de como foi descoberto o Estado do

Brasil. Discorre sobre o desembarque de Cabral e de seus soldados, chamados pelos

nativos de caraíbas, “que quer dizer na sua língua coisa divina.”94 O franciscano faz uma

analogia com os eventos ocorridos na América espanhola e destaca o papel dos seus

irmãos seráficos neste primeiro contato com o gentio:

“Donde, assim como os índios da Nova Espanha, quando viram desembarcar

nela os espanhóis, lhes chamaram viracoches, que significa escumas do mar,

parecendo-lhes que o mar os lançara de si como escumas, e este nome lhes ficou

sempre, assim somos ainda chamados caraíbas e respeitados mais que homens.

Mas muito mais cresceu neles o respeito quando viram a oito frades da

ordem de nosso padre São Francisco, que iam com Pedro Álvares Cabral, e

por guardião o padre frei Henrique, que depois foi bispo de Cepta, o qual

disse ali missa e pregou, onde os gentios ao levantar a hóstia e cálix se

ajoelharam e batiam nos peitos como faziam os cristãos, deixando-se bem nisto

ver como Cristo senhor nosso neste divino sacramento domina os gentios (...)”95

Há uma grande semelhança entre esta e a descrição de Gandavo – os gestos dos

índios e a sua disposição de aceitar a fé cristã –, mas a inclusão da menção aos frades 93 GIRARD, Pascale. Les religieux occidentaux en Chine à l’époque moderne, p. 142. 94 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 56. 95 Idem, ibidem (grifo nosso). Em 1584, o padre jesuíta José de Anchieta, em sua Informação do Brasil e de suas capitanias, já afirmava que os franciscanos foram os primeiros religiosos que vieram ao Brasil, mas não tratou da primeira missa, apenas dos protomártires de Porto Seguro. O trecho intitula-se Dos frades que antes e depois da Companhia vieram ao Brasil. Cf. ANCHIETA, José de. Cartas: informações fragmentos históricos e sermões.

“Verdade, clareza e juízo”

109

revela o intuito de afirmar a primazia dos franciscanos na catequese do gentio também na

América portuguesa. Em seguida, frei Vicente justifica a partida desses primeiros

missionários:

“Bem quiseram nossos frades, pela facilidade que nisto mostraram para

aceitarem nossa fé católica, ficar-se ali, pera os ensinarem e batizarem, mas o

capitão-mor, que os levava pera outra seara não menos importante, se partiu daí a

poucos dias com eles pera a Índia, deixando uma cruz ali levantada como

também dois portugueses degredados pera que aprendessem a língua (...)”96

No segundo livro da História, cuja matéria são as capitanias do Brasil, há poucas

referências aos frades menores, com destaque, porém, à presença do frei Pedro Palácios

no Espírito Santo. Assim como o Insulano, frei Vicente confere uma aura santa ao

ermitão:

“Nesta ermida [de N. S. da Penha] esteve antigamente por ermitão um frade

leigo da nossa ordem, asturiano, chamado frei Pedro, de mui santa vida, como se

confirmou em sua morte, a qual conheceu alguns dias antes, e se andou

despedindo das pessoas devotas, dizendo que, feita a festa de Nossa Senhora,

havia de morrer. E assim sucedeu, e o acharam morto de geolhos, e com as mãos

levantadas como quando orava, e na tresladação de seus ossos desta igreja pera o

nosso convento fez muitos milagres, e poucos enfermos os tocam com devoção

que não sarem logo principalmente de febres, como tudo consta do instrumento

de testemunhas que está no arquivo do mesmo convento.”97

O trecho, sem dúvida, poderia constar de uma hagiografia. Mas os freis Henrique

de Coimbra e Pedro Palácios apenas precediam e sinalizavam as gloriosas obras da

ordem de São Francisco de Assis, cujo estabelecimento definitivo e institucional fornece

matéria ao quarto livro, que abrange o período entre 1582 e 1612. Neste livro, o

franciscano dedica, sucessivamente, quatorze capítulos – do terceiro ao décimo sexto – às

tentativas de conquista da capitania da Paraíba. 96 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 56-57. 97 Idem, p. 109.

“Verdade, clareza e juízo”

110

Nessas páginas, narra sobretudo os conflitos entre portugueses e os índios

potiguares, então aliados dos franceses. Este gentio, empecilho à fixação lusa em 1579,

havia se unido aos tabajaras da aldeia do principal Braço de Peixe ou Piragibe, aliados

dos portugueses até que estes tentaram cativá-los – vicissitude descrita no vigésimo

capítulo do Livro III. Posteriormente, em 1585, a gente do Braço de Peixe pediria nova

trégua aos portugueses, cujos desdobramentos foram relatados por frei Vicente:

“Pera se aperfeiçoarem estas pazes pareceu necessário não se perder tempo,

antes ir-se logo fazer um forte, recuperar a artilharia do outro e assentar a

povoação. Pera o que por todos foi assentado que ninguém podia fazer todas

estas coisas senão o ouvidor-geral Martim Leitão, ao qual o pediram e

requereram todos, e ele o aceitou por serviço de Deus e de el-rei e por bem

destas capitanias e assim se partiu pera a Paraíba (...).”98

Após a chegada do ouvidor-geral, Martim Leitão, o franciscano descreve

minuciosamente o virtuoso serviço de sujeição dos potiguares e conquista da Paraíba,

uma guerra indubitavelmente justa. O destaque conferido à aldeia tabajara do Braço de

Peixe, ou Piragibe, explica-se pela importância deste gentio no episódio que, alguns anos

depois, envolveria jesuítas e franciscanos. Além dos potiguares e tabajaras, o quarto livro

da História trata de forma residual da guerra movida contra os aimorés em Ilhéus e do

gentio de Cerigipe, que também teria feito uma “grande traição” aos homens da Bahia.

A longa exposição sobre os males causados pelos índios à conquista portuguesa

constitui o prelúdio da chegada definitiva dos franciscanos ao Brasil, onde atuariam em

prol da concórdia e da salvação das almas dos bárbaros gentios. O advento dos frades

seráficos, estrategicamente, é narrado no décimo oitavo capítulo do Livro IV, no qual frei

Vicente trata da morte do bom governador Manuel Teles de Barreto em 1587 e,

sucessivamente, da constituição de uma junta administrativa formada pelo bispo, D.

Antônio Barreiros, o provedor-mor, Cristóvão de Barros, e o ouvidor-geral. Este

momento representa uma inflexão nas guerras que eram travadas com os indíos e

corsários europeus: “E foi próspero o tempo do seu governo, assim por as vitórias que se

98 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 236 (grifo nosso).

“Verdade, clareza e juízo”

111

alcançaram contra os inimigos, de que faremos menção em os capítulos seguintes, como

por este tempo se abrir o comércio do Rio da Prata (...).”99

E é justamente neste momento de inflexão que os franciscanos chegam à vila de

Olinda – a fim de auxiliar os outros religiosos, nas palavras do Insulano. Na História do

Brasil, o tratamento apologético repete-se e a Ordem de São Francisco de Assis aparece

como um dos remédios eficazes aos males causados pelo gentio:

“Também neste tempo e era do Senhor de 1587 (sic) vieram ao Brasil fundar

conventos os religiosos da nossa província capucha de Santo Antônio, com o

irmão frei Melchior de Santa Catarina, religioso de muita autoridade e bom

púlpito, por comissário, por um breve do senhor papa Xisto Quinto, e patente do

nosso reverndíssimo padre geral frei Francisco Gonzaga, que faz do breve

relação do fim do livro que fez de nossa seráfica ordem, e por virem à instância

de Jorge de Albuquerque, senhor de Pernambuco, fizeram lá o primeiro

convento, pela qual causa, e por termos naquela capitania quatro conventos, se

fazem nela os nossos capítulos e congregações custodiais.”100

Não surpreende que frei Vicente do Salvador tenha errado a data de chegada da

própria ordem ao Brasil. Assim, o advento dos franciscanos passava a coincidir com a

formação de um novo governo que anuncia um período benfazejo à política imperial.

Destarte, o capítulo seguinte discorre sobre como Cristóvão de Barros, logo após a

formação dessa espécie de junta provisória, organizou um contra-ataque às três naus

inglesas que haviam tomado os navios que se encontravam no porto da Bahia e

bombardeado a cidade.

No capítulo vigésimo, a reviravolta em andamento nos negócios brasílicos fica

ainda mais evidente. A matéria é a “guerra tão justa”101 aos índios de Ceregipe, dada com

licença régia e, portanto, da qual os portugueses esperavam trazer muitos escravos. Este

gentio era responsável pela morte do pai de Cristóvão de Barros, Antônio Cardoso de

99 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 250. 100 Idem, p. 251. Os franciscanos chegaram à vila de Olinda em 1585. No ano de 1587, houve o lançamento da pedra Fundamental do Convento de São Francisco, em Salvador. Em nota, Capistrano de Abreu informa que os quatro conventos citados localizavam-se em Olinda, Igaraçu, Recife e Ipojuca. 101 Idem, p. 253.

“Verdade, clareza e juízo”

112

Barros, o primeiro provedor-mor do Brasil, “que ali mataram e comeram indo pera o

reino com o primeiro bispo desta Bahia (...).”102

“Alcançada a vitória e curados os feridos, armou Cristóvão de Barros alguns

cavaleiros, como fazem em África, por provisões de el-rei que pera isso tinha, e

fez repartição dos cativos e das terras, ficando-lhe de uma coisa e outra muito

boa porção, com que fez ali uma grande fazenda de currais de gado (...).

(...) E assim ficou Cristóvão de Barros não só castigando os homicidas de seu

pai, mas tirando esta colheita aos franceses que ali iam carregar suas naus de pau-

brasil, algodão e peimenta da terra, e sobretudo franqueando o caminho de

Pernambuco e mais capitanias do norte pera esta Bahia e daqui pera elas,

que dantes ninguém caminhava por terra que o não matassem e comessem os

gentios.”103

O bom serviço prestado significava ligar a cabeça ao corpo do Estado do Brasil,

ou seja, a cidade de Salvador às capitanias do norte, que ainda necessitavam de polícia,

pois os franceses continuavam a ajudar os índios potiguares na Paraíba. Nesta, os

primeiros movimentos franciscanos mostravam-se imprescindíveis. Os frades “trataram

de fazer amigo o governador Frutuoso Barbosa com D. Pedro de la Cueva”104, espanhol

que ocupava o posto de capitão da infantaria na Paraíba e, desse modo, promoveram a

concórdia entre as autoridades.

À junta provisória segue-se a vinda de D. Francisco de Sousa como sétimo

governador geral, em 1591. A sua administração estendeu-se até 1602, coroando esse

período benfazejo aos lusitanos. Segundo frei Vicente do Salvador, D. Francisco –

caracterizado pela prudência, liberalidade e magnificência – “foi o mais benquisto

governador que houve no Brasil, junto com o ser mais respeitado e venerado.”105 Este

juízo, indubitavelmente, era imputado ao conjunto das ações de Sousa, apoiadas pelo rei

Felipe II de Espanha:

102 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 253. 103 Idem, p. 255 (grifo nosso). 104 Idem, p. 258. 105 Idem, p. 261.

“Verdade, clareza e juízo”

113

“Não houve igreja que não pintasse, aceitando todas as confrarias que lhe

ofereciam, murou a cidade de taipa de pilão que depois caiu com o tempo, e fez

três ou quatro fortalezas de pedra e cal, que hoje duram; as principais, que têm

presídios de soldados e capitães pagos são a de Sto. Antônio na boca da barra e a

de São Filipe na ponta de Tapuípe (...). E tudo então podia fazer porque tinha

provisão de el-rei, pera que, quando não bastasse o dinheiro dos dízimos, que é

só o que cá se gasta a el-rei, o pudesse tomar de emprétimo a qualquer outra parte

(...). Porém a nem um outro governador a passou depois tão ampla, antes os

apertou tanto que nem dívidas velhas deel-rei podem pagar sem nova provisão,

nam fazer alguma despesa extraordinária. O motivo que el-rei teve pera alargar

tanto a mão de D.Francisco foi por as guerras da Paraíba, e por os muitos

cossários que então custavam esta costa do Brasil, como veremos em capítulos

seguintes.”106

Frei Vicente, portanto, passa a discorrer sobre o sucesso obtido nas guerras da

Paraíba, às pazes com os potiguares e, sucessivamente, com os índios aimorés. O frade

baiano faz uma síntese das ações de polícia estabelecida pela coroa para as capitanias do

norte. Entretanto, o louvor de D. Francisco Sousa deve-se ainda a motivos assinalados no

relato de frei Manuel da Ilha e, muito provavelmente, em algum dos capítulos perdidos da

História do Brasil.107

O Insulano descreve um milagre ocorrido em 1595, quando franceses luteranos

partiram para tomar e arrasar a cidade de Salvador da Bahia. Em resumo, os hereges

passaram pela fortaleza portuguesa de Arguim, na África, assassinaram os portugueses e

roubaram uma imagem do Santo Antônio de Lisboa, colocando-a no convés do navio.

Em seguida, os franceses “fizeram com ela tamanha abominações e maldades, indignas

até de luteranos.”108 Além de chacotear e ofender o santo, deram-lhe várias cutiladas, e,

por fim, instigaram-no de forma jocosa a levar o navio para a Bahia. Após faltar gêneros

alimentícios à esquadra, outros castigos vieram:

106 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 261-262 (grifo nosso). 107 Os capítulos que não constam da História são o 26, 27, 28, 29 e parte do trigésimo do Livro IV. Esses capítulos, considerando a narrativa in ordo naturalis, tratam do período entre 1591 e 1597. 108 ILHA, frei Manuel. Op. Cit., p. 34.

“Verdade, clareza e juízo”

114

“Aos companheiros, cúmplices e testemunhas dos crimes, reservou Deus

suplícios e castigos que não puderam evitar, pois a breve espaço pereceram

repentinamente: com tal violência enfureceu-se o mar contra os sobreviventes

que, arrojando-os de si como se fosse a espada de Deus vinda com poder judicial

para os ligar e punir, formando uma horrível tempesdade, afogou a maioria deles.

Ficou incólume e intata a nave em que viajava a imagem do beatíssimo pai

Antônio.”109

Depois de muitos infortúnios, os capitães luteranos dividiram-se já na costa

brasileira: o Pão de Milho foi ao rio Real a fim de abastecer a sua embarcação de água,

onde foi preso pelo gentio aliado aos portugueses; o Malvirado entregou-se ao

governador, após lançar ao mar a imagem do santo português. De acordo com o relato do

Insulano, a imagem de Santo Antônio de Lisboa teria sido levada milagrosamente até

uma praia e, desse modo, os franceses presos em Sergipe, quando levados a Salvador,

achariam-na de pé à espera de seus detratores hereges. Frei Manuel da Ilha narra os

episódios que se seguiram aos milagres do santo franciscano:

“Com a chegada dos católicos à cidade da Bahia, divulgou-se logo o milagre

feito em favor de seu santo. Diante disso, os Frades Menores Capuchinhos desta

cidade foram à casa de Guarcia pedir a imagem, transladando-a com grande

solenidade e alegria ao convento de S. Francisco, onde se conserva com muita

devoção e reverência num altar a ela dedicado. A imagem é sobremaneira bela,

com estas chagas vermelhas parece ornada com o martírio. Aliás, tal martírio

Santo Antônio sempre desejou em vida; foi este incontido desejo que o levou da

Ordem dos Cônegos Regulares de S. Agostinho para a nossa ordem. (...)

Todos estes hereges que escaparam incólumes da fúria tempestuosa do mar

devorador e nele não receberam os castigos merecidos por suas abominações

foram, por sua vez, punidos com os outros na cidade da Bahia, onde juntamente

com seu comandante foram torturados e enforcados; eles mesmos foram suas

testemunhas ao confessarem seu crime iníquo diante de todos os magistrados

eclesiásticos e civis; com o apoio neles fez-se um sumárioautêntico o qual se

conserva neste convento, e mais um que foi remetido ao rei da Espanha, Filipe II, 109 ILHA, frei Manuel. Op. Cit, p. 37

“Verdade, clareza e juízo”

115

que logo decretou que a cidade tomasse Santo Antônio por seu padroeiro e que

em sua honra anualmente se celebrasse uma festa solene.”110

Em virtude dos milagres, D. Francisco de Sousa, em comunhão com os

vereadores e nobres da Bahia, instituiu a confraria de Santo Antônio no Convento de São

Francisco de Salvador. Assentaram ainda que o governador seria sempre o juiz desta

irmandade. A deliberação do governador é transcrita na Narrativa do Insulano.

É possível inferir que os episódios acima tenham sido objeto da prosa de frei

Vicente do Salvador, pois, além da Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil,

fazem parte do Santuário Mariano escrito, já no século XVIII, pelo Frei Agostinho de

Santa Maria, que afirma ter utilizado largamente a História do franciscano.111

Os milagres do santo lisboeta conferem aos franciscanos um papel importante na

conservação do Estado do Brasil em mãos católicas. O período que se segue à chegada da

ordem de São Francisco de Assis coincide com o governo de D. Francisco de Sousa,

marcado pelas vitórias frente aos índios e aos corsários franceses e ingleses. D. Francisco

era um súdito pio que primou pela união da cruz e da espada na conquista do território

americano. Nos relatos escritos pelos frades, os franciscanos não apenas tiveram um

papel imprescindível na conquista espiritual do Brasil e na salvação das almas indígenas,

mas destacaram-se, sobretudo, pela atuação miraculosa de Santo Antônio, na proteção

militar dos portugueses.

Mas o santo de Lisboa não era o único a intervir nos negócios terrenos. Há outras

partes da História em que frei Vicente do Salvador relata a intervenção mística a favor

dos portugueses. No livro V, o frade baiano conta que teria testemunhado um desses

milagres quando viajou à capitania de Pernambuco, em uma caravela de castelhanos, com

o governador Gaspar de Sousa. A embarcação enfrentava uma grande tormenta e o

governador mandou soltar os presos, solicitando também aos franciscanos que lhes

dessem alguma relíquia e rezassem.

110 ILHA, frei Manuel. Op. Cit., p. 34 111 O trecho do Santuário Mariano que trata dos respectivos milagres de Santo Antônio são transcritos por Willecke e inseridos ao fim do Livro IV, pp. 303-306.

“Verdade, clareza e juízo”

116

“(...) E meu companheiro lhe mandou o cordão com que estava cingido, o

qual penduraram do bordo até o mar, e quis Nosso Senhor que a caravela

incontinente se quietasse e moderasse o vento e os mares, de modo que ao dia

seguinte entramos com bonança.

O que visto pelos castelhanos não quiseram tornar o cordão, dizendo que por

ele esperavam de ir seguros de tempesdades ao rei da Prata. Nem foi só a vez,

mas infinitas, as que Deus por meio do cordão de nosso seráfico padre São

Francisco há livrado a muitos de naufrágios e feitas outras muitas

maravilhas, pelo que sejam dadas infinitas graças e louvores.”112

Em relação aos jesuítas, que haviam sido seus primeiros mestres no Colégio de

Salvador, frei Vicente destaca, com certa veneração, as figuras de Nóbrega, Anchieta,

Fernão Cardim e Luís Figueira. Conquanto as questões que envolveram os padres

inacianos e os frades menores na capitania da Paraíba não sejam mencionadas na

História, o franciscano, em uma passagem, não deixa de enaltecer a experiência destes no

trato com o gentio.

O exemplo da eficiência franciscana provém da mesma capitania da Paraíba, onde

um índio chamado Surupiba, após descer o rio apregoando a paz, foi preso em ferros

pelos portugueses, os quais lhe conferiram bom tratamento pela “persuasão dos padres da

Companhia, posto que contradizendo-o o nosso irmão frei Bernardino, que conhecia

bem suas traições e enganos.”113 Afinal, o índio foi solto, prometeu apaziguar o gentio

potiguar e trazê-lo aos católicos. Ao invés de entregarem-se, os potigures armaram mais

uma emboscada para os soldados portugueses.

Nas demais passagens em que trata dos frades menores, frei Vicente sempre tece

elogios ao auxílio prestado às autoridades lusitanas, em virtude da perícia na língua

brasílica e da facilidade em converter o gentio. A menção aos franciscanos não se fazia

sem um epíteto encomiástico. Assim, o frei Cosme de Damião é descrito como “varão

prudente e observantíssimo de sua regra” e frei Manuel da Piedade como letrado e

112 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 349-350 (grifo nosso). 113 Idem, p. 268 (grifo nosso).

“Verdade, clareza e juízo”

117

pregador mui perito na língua do Brasil, e respeitado dos índios potiguares e

tobajares.”114

No Livro V, o papel dos franciscanos portugueses – mais especificamente dos

irmãos da Custódia de Santo Antônio do Brasil – destaca-se, ainda mais durante a

retomada do Maranhão aos franceses. Os serviços pios foram prestados mesmo antes de

1621, quando foi fundado o Estado do Maranhão e Grão-Pará, apartado do Estado do

Brasil, e de 1624, ano de criação da Custódia do Maranhão, também subordinada

diretamente à Província franciscana de Portugal. O papel da custódia maranhense seria

mencionado já no fim da História, quando frei Vicente tece elogios à excelente atuação

de frei Cristóvão de Lisboa. Diante da presença anterior dos capuchinhos franceses, frei

Vicente afirma:

“E também se foram logo os frades franceses, vendo o pouco fruto que

faziam na doutrina dos gentios por lhe não saberem a língua, deixando aos dois

da nossa custódia que os entendiam e sabiam os seus modos, e não foram

pouco admirados de ver que nestas partes tão remotas houvesse religiosos

tão observantes da regra do nosso seráfico padre São Francisco. Não menos

o ficaram os nossos de ver que religiosos de tanta virtude e autoridade viessem

em companhia de hereges, posto que nem todos o eram, que muitos eram

católicos romanos, que ouviam missa, confessavam-se e comungavam.”115

Na descrição da disputa pelo litoral norte da América, os adjetivos empregados

para qualificar a pátria subordinam-se às representações de católicos e hereges. Os

capuchinhos franceses, não obstante estivessem ao lado de hereges, apresentavam tanta

virtude quanto os portugueses, mas estes já sabiam a língua dos índios e, portanto,

obtinham mais êxito em sua conversão.

Em poucas palavras, os franciscanos da Custódia de Santo Antônio do Brasil

demonstravam-se eficentes na conversão do gentio, respeitosos às autoridades temporais

e espirituais, e, desse modo, imprescindíveis ao bom governo do Brasil. A associação das

ordens religiosas com o governo fica evidente no trigésimo nono capítulo do Livro IV,

114 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 337-338. 115 Idem, p. 343 (grifo nosso).

“Verdade, clareza e juízo”

118

trecho que, segundo o frei Venâncio Willecke, constaria também da Crônica de Vicente

do Salvador, visto que se encontra também na Narrativa de frei Manuel:

“[É tão necessário ao bom governo do Brasil zelarem os governadores a

conversão dos gentios naturais e a assistência dos religiosos com eles que, se

isto viesse a faltar, seria grande mal porque, como estes índios não tenham bens

que perder por serem pobríssimos e desapropriados e por outra parte tão variáveis

e incostantes, que os leva quem quer, facilmente se espalham donde não podem

acudir aos rebates dos inimigos, como acodem das doutrinas que os religiosos os

têm juntos] e principalmente contra os negros da Guiné, escravos dos

portugueses, que cada dia se lhes rebelame andam salteandopelos caminhos e se

o não fazem pior é com medo dos ditos índios, que com um capitão português os

buscam e os trazem presos a seus senhores ”116

Os relatos de ambos franciscanos – Manuel da Ilha e Vicente do Salvador – não

posicionam a sua ordem em uma relação de disputas com os outros missionários.

Inversamente, os frades menores encontram-se lado a lado com as demais ordens

religiosas no sentido de promover a concórdia no interior do império católico. A

concórdia, conceito escolástico fundamental, representava um dos valores políticos a ser

perseguido pelo Estado cristão, em oposição ao acirramento das facções que debilitavam

a saúde do corpo imperial. Assim, também na História do Brasil, o conceito ocupa um

lugar importante, pois frei Vicente do Salvador fornece exemplos a fim de garantir a

união mística dos súditos, ordenados em uma hierarquia providencial, encabeçada pelo

rei e posta em serviço da Vontade do Senhor.

116 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 285 (grifo nosso). Em nota ao trecho entre colchetes, Willecke afirma pertencer à Crônica, conforme Capistrano de Abreu supunha. Infere ainda que todo o capítulo 39, com exceção das estatísticas, faziam parte da Crônica escrita em 1617 pelo frei Vicente do Salvador.

CAPÍTULO III

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

A narrativa de frei Vicente do Salvador divide-se em cinco livros, compostos e

ordenados conforme o decoro prescrito aos gêneros historiográficos no Seiscentos. Essa

combinação específica das categorias retóricas da inventio, dispositio e elocutio fornecia

exemplos de ações virtuosas e conselhos prudentes ao governo do Brasil, além de

mobilizar encômios às autoridades religiosas e seculares portuguesas responsáveis pela

conquista e conservação deste Estado. Este capítulo discorre sobre a confecção dos livros

da História do Brasil e, depois do breve panorama, aprofunda a análise das tópicas mais

importantes que perpassam o escrito do franciscano.

O Livro Primeiro, composto de 17 capítulos, inicia-se com o descobrimento,

episódio fundamental não apenas pela participação virtuosa dos franciscanos que

acompanharam Cabral, mas pela legitimidade que confere à ocupação portuguesa na

América. À opção, que certamente contempla o preceito da narrativa in ordo naturalis,

subjaz a concepção de que os índios não possuíam história “porque entre eles não há

escrituras, nem houve algum autor antigo que deles escrevesse”.1 Ademais, define que o

tempo do império português constitui a referência à história do frade baiano e confere à

escrita um caráter colonizador, “pela imposição sistemática da referência ao tempo

ocidental e cristão, já que a colonização dos tempos acompanhou a colonização do espaço

em todas as partes”.2

O Brasil, segundo frei Vicente do Salvador, “não se descobriu de propósito e

principal intento, mas acaso (...)”.3 Pedro Álvares Cabral navegava em direção à Índia e

“achou estoutra ao Ocidente, da qual não havia notícia alguma”.4 Desta forma, o frade

baiano pôde creditar o descobrimento do Brasil como parte dos desígnios de Deus, que

governa os destinos deste mundo e teria reservado essa parte da América aos lusitanos. 1 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 77. Neste capítulo, apenas foi utilizada a edição de 1982, que incorporou a crítica documental de frei Venâncio Willecke, realizada para a 5ª edição, após consulta do apógrafo guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. 2 GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da monarquia católica e outras connected histories, p.184. 3 SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 56. 4 Idem, ibidem.

Excluído: do Brasil

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

121

Do ponto de vista do tomismo, “quando um efeito escapa à ordem de uma causa

particular, nós o chamamos de casual ou fortuito, em relação a esta causa particular;

porém, em relação à causa universal, de cuja ordem não se pode escapar, nós o

chamamos previsto.”5

A missão portuguesa de levar a verdade cristã aos pagãos evidencia-se já no

segundo capítulo, em que trata do nome da terra, com base no lugar comum do

esquecimento do primeiro topônimo “Santa Cruz”:

“Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha

sobre os homens, receando perder também o muito que tinha em os desta terra,

trabalhou que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa

de um pau com que tingem panos, do qual há muito, nesta terra, como que

importava mais o nome de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha

com que tingem panos que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos

os sacramentos da Igreja, e sobre que ela foi edificada e ficou tão firme e bem

fundada como sabemos”.6

O lugar comum enseja a primeira menção à conservação ou firmeza do Estado do

Brasil, tópica, por sua vez, que constitui um dos pilares da teoria política escolástica. Era

necessário fundar este estado em bases sólidas, ou seja, na Santa Cruz, símbolo da

verdadeira fé levada pelos portugueses às quatro partes do mundo. De acordo com frei

Vicente, o Brasil era “tão pouco estável que, com não haver hoje cem anos, quando isto

escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoados alguns lugares e, sendo a terra

tão grande e fértil como ao diante veremos, nem por isso vai em aumento.”7 Mas a razão

da instabilidade não era fruto apenas do equívoco dos nomes, mas dos reis portugueses,

que, com exceção de D. João III, “que o mandou povoar e soube estimá-lo”, não se

interessaram pela terra “senão para colher as suas rendas e direitos”.8

Desse modo, os exemplos fornecidos ao longo da narrativa visavam auxiliar na

conservação do Brasil e, sucessivamente, do império católico, visto como um corpo

5 AQUINO, São Tomás de.Suma teológica, p. 442. 6 SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 57 (grifo nosso). 7 Idem, ibidem. 8 Idem, ibidem.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

122

político no qual o rei representaria a cabeça. O bom funcionamento e, respectivamente, a

saúde desse corpo – a concórdia entre os súditos conduzidos pelo monarca para o mesmo

fim – levariam ao estabelecimento do bem comum e à prosperidade de cada uma das

partes. Como a missão do império revestia-se de uma aura sacramental, as ações de cada

súdito conferiam-lhes uma parcela de responsabilidade no processo escatológico, embora

nem sempre os seus atos contribuíssem plenamente à realização da Providência Divina:

“E deste mesmo modo se hão os povoadores, os quais, por mais arraigados

que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pertendem levar a Portugal e, se

as fazendas e bens que possuem souberam falar também lhe houveram de ensinar

a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é: papagaio

real pera Portugal, porque tudo querem para lá(...).

Donde nasce também que nem um homem nesta terra é republico, nem

zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular.

(...) Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma

piedade, porque, atendo-se uns aos outros, nenhum as faz, ainda que bebam água

suja e se molhem ao passar dos rios ou se orvalhem pelos caminhos, e tudo isto

vem de não tratarem do que cá há de ficar, senão do que hão de levar para o

reino.” 9

A preocupação do franciscano com a dicotomia, existente no Brasil, entre o bem

comum e o bem particular parece derivar de um dos pontos da Política aristotélica, no

qual o Estagirita propõe a seguinte questão: “que vida preferir, a que toma parte do

governo e dos negócios públicos ou a vida retirada e livre de todos os embaraços do

gênero?”10

Segundo Aristóteles, a felicidade dos cidadãos constitui a natureza e o fim das

sociedades políticas, formadas para que os homens possam bem viver juntos. É da

natureza do homem que viva civicamente: “nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele

que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um

9 SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., pp. 57-58 (grifo nosso). 10 ARISTÓTELES. A Política, pp. 58-59.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

123

deus, ou um bruto”.11 Destarte, o filósofo conclui que “a fonte da felicidade é a mesma

para os Estados e para os particulares”.12

Em uma leitura teológico-política, caracteristicamente escolástica, a concórdia

entre os súditos do rei era um elemento fundamental ao êxito do Estado Cristão, por sua

vez, instrumento dos desígnios divinos entre os homens. Se, para Aristóteles, o governo

justo é aquele que busca senão a felicidade geral, para São Tomás de Aquino e os

tomistas, a felicidade última do homem está na contemplação da Verdade. Assim, a

respublica cristiana deveria buscar a felicidade geral pela via de propagação e

estabelecimento da verdadeira fé entre pagãos, hereges e infiéis. As três categorias,

embora distintas, eram percebidas como ameaças aos alicerces deste Estado fundado em

bases teológicas.

Além da conservação, a razão de estado seiscentista prescrevia o aumento dos

impérios como elemento indispensável à saúde dos corpos políticos, quase sempre

articulada à noção de guerra justa. É nesse sentido que frei Vicente do Salvador, ao tratar

da demarcação das terras portuguesas com as Índias de Castela, formula a engenhosa

alegoria:

“Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até

agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses, que, sendo

grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de

as andar arranhando ao longo do mar feito caranguejos.”13

Ao longo da narrativa, outros diversos tropos são utilizados a fim de ornamentar

os argumentos e deleitar o discreto leitor. Para descrever a terra do Brasil, por exemplo,

frei Vicente tece uma analogia com a forma de uma harpa, “cuja parte superior fica mais

larga ao norte correndo do Oriente ao Ocidente, e as colaterais (...) se vão ajuntar no rio

11 ARISTÓTELES. A Política, p. 5. 12 Idem, p. 64. 13 SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 59. No Livro IV, ao tratar da Ilha de Santa Catarina, o frade baiano afirma que estava despovoada “por ser os portugueses que não sabem povoar nem aproveitar-se das terras que conquistam.” Idem, p. 218.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

124

da Prata”.14 Além da descrição, o franciscano indica inúmeras imagens ao longo do texto

com o mesmo intuito de ensinar, persuadir e deleitar.15

O interesse nos sertões não se vinculava apenas à possível existência de metais e

pedras preciosas nessas partes do Brasil, matéria do quinto capítulo. A catequese do

gentio, que havia se deslocado da costa ao interior, também era um motivo para a

presença dos representantes espirituais da Coroa no sertão, conforme pode ser apreendido

na seguinte passagem:

“(...) agora me é necessário continuar com murmuração, havendo de tratar das

minas do Brasil, pois, sendo contígua esta terra com a do Peru, que a não divide

mais do que uma linha imaginária indivisível, tendo lá os castelhanos descobertas

tantas e tão ricas minas, cá nem uma passada dão por isso, e quando vão ao

sertão é a buscar índios forros, trazendo-os à força e com enganos para se

servirem deles e os venderem com muito encargo de suas consciências. E é

tanta a fome que disto levam que, ainda que de caminho achem mostras ou novas

de minas, não as cavam, nem ainda as vêm ou as demarcam”.16

Ao gentio são dedicados os últimos seis capítulos deste primeiro livro, ainda que a

necessidade de catequese dos pagãos perpasse toda a História do Brasil. Nas linhas

acima, o franciscano combina duas reprimendas aos súditos da Coroa no Brasil. Refere-

se, primeiramente, ao desinteresse pelos metais e pedras preciosas, que, se descobertos,

serviriam para fortalecer e aumentar o poder da Monarquia Católica. Da mesma forma, o

tratamento que era conferido aos indígenas não estava de acordo com as leis imperiais e

romanas, as quais estabeleciam que a escravidão dos indígenas só seria permitida quando

fossem movidas guerras justas.

Os argumentos utilizados para descrever os índios e seus costumes, analisados

mais adiante, fazem parte da descrição minuciosa dos elementos naturais à terra. No que

se refere à natureza, frei Vicente discorre sobre o clima em primeiro lugar, pois era

14 SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 59. 15 Capistrano de Abreu informa que essas estampas foram perdidas. No entanto, de acordo com frei Venâncio Willecke: “Parece que nunca chegou a haver as estampas previstas, mas sim que frei Vicente as pretendia encomendar em Portugal.” Cf. Prolegômenos ao Livro I da História do Brasil, p. 49. 16 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp.62-63 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

125

necessário responder a Aristóteles e a outros filósofos antigos, que defendiam a

impossibilidade de se habitar a zona tórrida. O franciscano valoriza a experiência diante

da opinião do filósofo:

“Donde se responde ao argumento de Aristóteles que o sol aquenta mais na

zona tórrida que na temperada intensivè, mas não extensivè, e que esta intensão

de calor se modera com os ventos frescos do mar e umidade da terra, junto com a

frescura do arvoredo de que toda está coberta; de tal sorte que os que a habitam

vivem alegremente. O em que se verifica a opinião dos filósofos é nas coisas

mortas, porque, estando nas outras terras a carne três ou quatro dias sã e

incorruta, e da mesma maneira o pescado, nesta não está vinte e quatro horas que

se não dane e corrompa.”17

Em seguida, frei Vicente, como os demais tratadistas coevos, discorre sobre as

árvores agrestes; as ervas medicinais e suas qualidades ocultas; os mantimentos,

destacando a mandioca como principal alimento dos habitantes; os animais e os bichos;

as aves e “outras coisas que há no mar e terra do Brasil”. A descrição da natureza

emprega diversas hipérboles – como, por exemplo, o juízo de que o Brasil era “o mais

abastado de mantimentos que quantas terras há no mundo”.18 Antes de começar a tratar

do gentio, frei Vicente do Salvador conclui que “digna é de todos os louvores a terra do

Brasil”.19

Na perspectiva seiscentista, essa exposição inicial sobre a natureza associava-se

aos negócios do governo, pois as teorias da razão de estado fundavam-se no direito

natural. A concepção tomista de natureza como ordem do mundo estabelecia fins

específicos para cada coisa, entre elas a própria sociedade política, a qual, de acordo com

os teóricos da Segunda Escolástica, inseria-se em um universo hierarquicamente

ordenado e governado, em última instância, pelos desígnios divinos. Deus é a causa

primeira, que instaurou esse sistema de leis e depositou no universo marcas passíveis de

serem interpretadas pelos homens. História e natureza, portanto, convergiam.

17 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 62. 18 Idem, p.68. 19 Idem, p. 76.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

126

O Livro Segundo, composto de 14 capítulos, trata sobretudo das capitanias

hereditárias até a criação do Governo Geral, em 1549. A partir deste livro, todos os

demais iniciam-se pelas ações ou ordens régias. Assim, D. Manoel, D. João III, Felipe II

e Felipe III, respectivamente, são citados nas primeiras sentenças dos livros II, III, IV e

V.20 A estrutura narrativa da História do Brasil, portanto, é análoga à hierarquia do

poder vigente no império católico. Os atos virtuosos da cabeça imperial constituíam fonte

de exemplos emulados aos súditos responsáveis pelo bom governo no Ultramar, matéria

principal desta prosa encomiástica, alegoria do poder régio.

O primeiro capítulo do Livro II discorre sobre as expedições costeiras ordenadas

pelos reis portugueses D. Manoel II e D. João III. Talvez por isso, frei Vicente inverta a

ordem adotada na narrativa de Gandavo e inicie a sua exposição do sul para o norte, com

as capitanias dos irmãos Pero Lopes e Martim Afonso de Sousa, os quais já haviam

“andado por estas partes do Brasil”.21 Há um roteiro que perpassa a descrição das

capitanias, contemplado não necessariamente nesta ordem: o nome do donatário que

recebeu a mercê régia, sempre seguido de epítetos como “fidalgo mui honrado”; as vilas

e povoações fundadas; as primeiras lavouras e criações; os conflitos com o gentio ou a

presença de corsários franceses; milagres havidos em prol dos portugueses.

A eloqüência prescrita ao gênero historiográfico nos séculos XVI e XVII

manifesta-se ainda pelas hipérboles e metáforas, entre as quais a da cabeça e do corpo é a

mais recorrente, sobretudo para designar a vila onde se estabelecia o governo de cada

uma das terras doadas. O capítulo que trata da capitania da Bahia, nesse sentido, é

retoricamente exemplar aos demais:

20 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, Livro II: “Posto que el-rei D. Manuel, quando soube a nova do descobrimento do Brasil (...), andava mui ocupado com as conquistas da Índia Oriental, (...) não deixou, quando teve ocasião, de mandar uma armada de seis velas (...).”, p. 103. Livro III: “Depois que El-Rei soube da morte de Francisco Pereira Coutinho (...) determinou povoá-la e fazer nela uma cidade (...).”, p.143. Livro IV: “Como a Majestade de El-Rei Filipe Segundo de Castela e Primeiro de Portugal foi jurado nele por rei no fim do ano de 1580, (...) mandou como governador a Manuel Teles Barreto (...).”, p. 216. Por fim, o Livro V inicia-se com as seguintes palavras: “Sabida por sua Majetasade a nova da morte de D. Francisco de Sousa, tornou a juntar todo o governo do Brasil em um e o deu a Gaspar de Sousa.”, p. 336. O livro primeiro, embora informe que Pedro Álvares Cabral navegava “por mandado de el-rei Dom Manoel”, inicia-se de forma diferente: “A terra do Brasil, que está na América, uma das quatro partes do mundo (...)”, p. 56. 21 Idem, p. 104.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

127

“Toma esta capitania o nome de Bahia por ter uma tão grande que por

antonomásia e excelência se levanta com o nome comum e apropriando-se a si se

chama a Bahia, e com razão, porque tem maior recôncavo, mais ilhas e rios

dentro de si que quantas são descobertas no mundo, (...); nem há terras que

tenha tantos caminhos por onde se navega.

As ilhas que tem dentro de si tem, entre grandes e pequenas, trinta e duas: só

tem um senão que é não se poder defender a entrada dos corsários, porque tem

duas bocas ou barras uma dentro da outra: (...).

Está esta baía a treze graus e um terço, e tem em seu circuito a melhor terra

do Brasil; (...) pelos que os índios velhos comparam o Brasil a uma pomba,

cujo peito é a Bahia, e as asas outras capitanias, porque dizem que na Bahia

está a polpa da terra, e assim dá o melhor açucar que há nestas partes”.22

De modo geral, a estratégia narrativa repete-se: depois de louvar as qualidades e

potencialidades da terra, o capítulo expõe a dificuldade em se manter povoações estáveis

na terra, ora com referências ao gentio, ora com referências aos corsários. No último

capítulo deste livro, frei Vicente lamenta que o Maranhão não tivesse sido povoado, o

que havia permitido a fixação dos franceses, e adverte que, até aquele ponto do discurso,

adotara uma ordo artificialis, mas que, doravante, seguiria o preceito da narrativa in ordo

naturalis:

“Mas hão se aqui por fim deste advertir duas coisas: a primeira que não

guardei nele a ordem de tempo e antiguidade das capitanias e povoações, senão a

do sítio, contiguação de umas com outras, começando do sul pera o norte, o que

não farei nos seguintes livros, em que seguirei a ordem do tempo e sucesso das

coisas. A segunda, que não tratei das do Rio de Janeiro, Serigipe, Paraíba e

outras, porque estas se conquistaram depois e povoaram por conta del-rei,

por ordem dos seus capitães e governadores gerais, e terão o seu lugar quando

tratarmos deles, em os livros seguintes”.23

22 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 112 (grifo nosso). 23 Idem, p.129 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

128

O Livro Terceiro, composto de 26 capítulos, tem início com a chegada de Tomé

de Sousa ao Brasil e termina com o episódio da sucessão do Reino de Portugal, e a

coroação de Felipe I, em 1580. Se o tempo do império – parte da era do Senhor – fornece

os marcos que balizam a História, o seu principal foco, conforme pode ser apreendido do

trecho acima, são os sucessivos governos e as ações dos representantes da autoridade

régia no Ultramar, julgados com base nos critérios da Segunda Escolástica. Destarte, o

capítulo primeiro deste livro trata da determinação régia de povoar a Bahia “e fazer nela

uma cidade, que fosse como coração no meio do corpo, donde todas se socorresem e

fossem governadas”.24

Os representantes do rei chegavam para remediar os males do Brasil e unir o

corpo à cabeça do império. No coração do estado, ficariam sediados, além do governador

e o ouvidor-geral, os jesuítas, enviados para doutrinar o gentio. Assim seria o caso da

cidade do Salvador, cujo próprio nome já denuncia as suas atribuições vitais frente às

necessidades dos donatários envolvidos em conflitos com índios e corsários. De acordo

com frei Vicente, por volta de 1550, o estado do Brasil era muito estimado pelos

lusitanos, que cogitavam, hipoteticamente, a possibilidade de transferir o reino a essas

terras em caso de invasão de Portugal, pois as Índias eram muito distantes e as ilhas

atlânticas pequenas para abrigar a corte. “Mas toda esta reputação e estima do Brasil se

acabou com el-rei D. João, que o estimava e reputava.”25

Os capítulos seguintes narram as ações dos governadores Tomé de Souza, que se

cansou de lutar com os degredados e solicitou ao rei que o substituísse, e D. Duarte da

Costa, que veio a Salvador em companhia de seu filho, D. Álvaro, e de mais irmãos da

Companhia de Jesus, “um dos quais era José de Anchieta, que depois foi cá seu

provincial e se pode chamar apóstolo do Brasil pelas obras e milagres que nele fez, como

o padre São Francisco Xavier se chamou da Índia.”26 Entre as autoridades desse tempo,

destaca-se ainda o primeiro bispo, D. Pedro Fernandes Sardinha, “pessoa de muita

autoridade e exemplo e extremado pregador.”27

24 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 143 (grifo nosso). 25 Idem, p. 145. 26 Idem, p. 147. 27 Idem, p. 146.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

129

Entre todos os governos tratados no terceiro livro, o de Mem de Sá, que esteve à

frente do Brasil durante 15 anos, decerto recebe mais encômios, posição defendida

primeiramente pelo padre Manoel da Nóbrega e reafirmada, desde então, pelos jesuítas.

Os louvores, contudo, não se devem apenas ao tempo que fora dedicado aos serviços

prestados à Coroa. Mem de Sá, segundo frei Vicente do Salvador, “com razão pode ser

espelho de governadores do Brasil, porque, concorrendo nele letras e esforço, se sinalou

muito na guerra e justiça.”28 O franciscano refere-se aos conflitos nas capitanias do Rio

de Janeiro, Espírito Santo e Pernambuco, contra o gentio e seus aliados franceses.29

Entretanto, a linearidade da narrativa dos governos é composta ainda de algumas

digressões que relacionam os acontecimentos do ultramar ao reino, ou, mais

precisamente, à cabeça do império. Nesse sentido, após discorrer sobre cinco naus,

capitaneadas por D. João de Menezes de Sequeira que arribaram na Bahia antes de

seguirem para as Índias, frei Vicente do Salvador conclui o capítulo com a primeira

referência a Felipe II:

“Também este mesmo ano de 1555 se recolheu o imperador Carlos Quinto à

religião no convento de S. Jerônimo de Juste, por ser lugar sadio, e acomodado a

quem larga o governo e inquietações do mundo, que ele deixou ao muito católico

príncipe D. Filipe seu filho.”30

O interesse pelo início do governo de Felipe II se explica pelos acontecimentos

que, posteriormente, resultaram na união das coroas ibéricas. O mesmo procedimento de

ligar o Brasil à futura cabeça do império repete-se no capítulo seguinte:

“Seguiu-se o ano de 1557, mui sinalado assim pela morte do imperador

Carlos Quinto, que nele morreu na idade de cinqüenta e oito anos e sete meses,

renunciando ainda em vida em seu filho Filipe os seus reinos, e em seu irmão

Fernando o império, e recolhendo-se em um mosteiro onde acabou

28 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p.151. 29 As tópicas do bom governo e da guerra justa serão analisadas posteriormente, ainda neste capítulo. 30 Idem, p. 149.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

130

felicissimamente a vida; como pela morte de el-rei D. João, que faleceu em 11

de junho de idade de cinqüenta e cinco anos, tendo reinado trinta e cinco.”31

Este tipo de referência constitui parte fundamental da História do Brasil de frei

Vicente do Salvador. A digressão acima assinala que, em 1557, as histórias de Portugal e

Espanha se vincularam pela primeira vez em virtude da morte dos dois monarcas.

Apenas o sucessor do trono espanhol foi mencionado, afinal, em 1580, Felipe II tornar-

se-ia também o I de Portugal, episódio tratado no último capítulo deste terceiro livro,

quando as histórias providencialmente se encontram.

O franciscano inicia o epílogo do Livro III pelo breve reinado de D. Henrique,

“por morte de el-rei D. Sebastião seu sobrinho”, e pela preocupação “sobre quem havia

de lhe suceder no reino.”32 Esta é a última menção da História ao rei morto em África; as

anteriores são igualmente breves, conquanto encomiásticas. A primeira delas informa

que, em 1559, na regência de D. Catarina, D. Sebastião não tinha mais que cinco anos de

idade.33 Posteriormente, o franciscano cita a morte de Duarte de Albuquerque Coelho em

companhia do monarca, que, mais adiante, recebe os devidos louvores:

“Tão zeloso era el-rei D. Sebastião da honra de Deus e de guerrear por ela

contra os infiéis, que só por isto aceitava o casamento (a que não era afeiçoado) e

não queria outro dote. Mas, não se concluindo este matrimônio, que tantos males

e desventuras pudera escusar, casou com ela Henrique de Bourbon, duque de

Vandoma e príncipe de Biarne, e el-rei D. Sebastião continuou com suas guerras,

que era o que desejava sobre todas as coisas da vida, até que nelas a perdeu.”34

Destacam-se ainda as ações régias no Brasil, sempre a serviço de Deus, quando

nomeou Cristóvão de Barros – “homem sagaz e prudente e bem afortunado em as

guerras”35 – governador do Rio de Janeiro, a fim de submeter definitivamente os tamoios,

31 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 151. 32 Idem, p. 193. 33 Idem, p. 154. 34 Idem, p. 177. A morte do donatário de Pernambuco está na página 173. 35 Idem, p. 178.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

131

e quando dividiu o governo em dois centros, para as capitanias do sul e do norte,

ordenando a conquista da Paraíba, contra franceses e índios potiguares.

Se neste último capítulo, por um lado, a referência a D. Sebastião é fugaz, por

outro, frei Vicente define precisamente a linhagem dos candidatos à sucessão de Portugal,

“todos netos de el-rei D. Manuel, pai dos seus genitores e do mesmo Henrique, seu tio.”36

De modo prudente, frei Vicente confere legitimidade a todos, embora tome partido,

sutilmente, de um dos lados da contenda:

“El-rei, posto que de princípio se inclinou à parte da duquesa de Bragança,

contudo por ser fêmea e el-rei católico varão e por outras razões se resolveu que

a ele pertencia o reino; mas não o quis declarar por sentença, nem em testamento,

porque era melhor pera os pertensores e pera o mesmo rei de Portugal, que lho

dessem por concerto.

Já a este tempo el-rei se achava mui fraco e foi apertando o mal de maneira

que morreu sendo de idade de sessenta e oito anos e os perfez no mesmo dia em

que morreu, que foi o último rei de Portugal de linha masculina e, como o

primeiro senhor de Portugal, se chamou Henrique, assim se chamou o último.”37

Era necessário, portanto, que os direitos do novo monarca fossem reconhecidos

pelas diversas partes do corpo político, para que Portugal pudesse ser governado em

concórdia, buscada pelo próprio Felipe II:

“(...) E já estava assegurado de consciência, com pareceres de teólogos e

canonistas, que o podia fazer e se aparelhava pera isso; mas escreveu primeiro

aos governadores e a cinco principais cidades do reino e aos três estados que

estavam em cortes em Almeirim, pedindo que os declarassem conforme à

vontade do rei defunto seu tio e a sei direito.”38

36 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 193. Refere-se ainda aos pais dos pretendentes ao trono. 37 Idem, ibidem (grifo nosso). 38 Idem, p. 194 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

132

Além da tentativa de convencimento da nobreza portuguesa com argumentos

teológico-jurídicos, Felipe II ordenou que as tropas do Duque de Alba entrassem no reino

lusitano para debelar os partidários de D. Antônio. O episódio ensejou novamente a

ligação entre os acontecimentos do reino e do ultramar, pois Tristão Vaz da Veiga –

partidário do prior do Crato e irmão de Lourenço da Veiga, governador do Brasil –

entregara a torre de São Gião ao exército castelhano em troca das mesmas mercês que lhe

seriam dadas por D. Antônio. Em nenhum momento frei Vicente do Salvador questiona a

legitimidade de Felipe II, mas apenas a ação de Tristão da Veiga:

“Hei dito estas coisas em suma, não sem prepósito, senão para declarar o

achaque ou ocasião da morte do governador do Brasil Lourenço da Veiga, que,

como se prezava de português, sentiu tanto haver seu irmão Tristão Vaz da Veiga

entregue a torre de São Gião da maneira que temos visto, que ouvindo a nova

enfermou e morreu.

E assim acabou o governador Lourenço da Veiga, e nós com ele acamos

também este livro.”39

O Livro Quarto compreende o período entre 1582 e 1612, ou seja, desde o

governo de Manuel Teles Barreto até a vinda de Gaspar de Sousa. A julgar pela relação

entre quantidade de páginas e período analisado, os dois últimos livros são os mais

importantes da História do Brasil, respectivamente, compostos de 47 e 49 capítulos, o

que significa, em uma primeira análise, um destaque ao período da União Ibérica.40 Mas

há outros elementos que devem ser considerados, como a chegada dos franciscanos, os

combates contra o gentio e as ameaças de corsários.

O primeiro capítulo deste livro já anuncia a presença de naus francesas e inglesas

no Rio de Janeiro e São Vicente. O seguinte discorre sobre a passagem do estreito de

Magalhães realizada pelo corsário inglês Francisco Drake, que, no ano de 1579, colocou

o vice-reino do Peru em desassossego. Entretanto, a presença de armadas a serviço de 39 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 194 (grifo nosso). 40 O Livro II possui 14 capítulos relativos à primeira metade do século XVI; o Livro III, com 26 capítulos, refere-se a cerca de 32 anos – entre 1549 e 1581. O quarto livro narra 30 anos de história em 47 capítulos, dos quais foi perdida a parte que vai do fim do XXV até o início do XXX. Por fim, o quinto livro trata de cerca de apenas 15 anos em 49 capítulos, dos quais também foram perdidos a parte que vai do fim do IX ao XVII capítulo.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

133

outras coroas, embora prenuncie os acontecimentos do último livro da História do Brasil,

constitui apenas desvios em meio ao principal propósito dessa parte da narrativa. Os

franceses, aliados dos potiguares, representavam um obstáculo à catequese dos pagãos e,

portanto, ao fim cristão da conquista que, concomitantemente, fornecia-lhe o seu esteio

moral.

De acordo com a pena de frei Vicente do Salvador, os sucessos mais importantes

relacionam-se à conquista da capitania da Paraíba, nos quais os franciscanos

desempenharam importante papel. De fato, os conflitos com os potiguares, que se

iniciaram em 1574 e estenderam-se até 1599, estruturam o Livro IV ao lado das não

menos importantes guerras justas contra o gentio de Cerizipe e os aimorés em Ilhéus. O

capítulo vigésimo terceiro marca um ponto de inflexão da narrativa, expresso pela

chegada de D. Francisco de Sousa, o qual, segundo juízo do franciscano, fora o melhor

governante que houve no Brasil, à frente dos negócios públicos entre 1591 e 1602.

As ações virtuosas de D. Francisco, indubitavelmente, destacam-se como a

principal matéria deste terceiro livro, sobretudo pelos resultados obtidos frente aos índios

e hereges, os quais propiciam palavras encomiásticas, adequadas aos gêneros

historiográficos. O penúltimo capítulo ainda menciona o seu retorno para governar as

capitanias do sul em 1609. Segundo o franciscano, o posto de governador do Rio de

Janeiro e capitanias meridionais foi conferido a D. Francisco em virtude dos bons

serviços prestados à coroa:

“Muito se receava no Brasil, pelo muito dinheiro que D. Francisco de Sousa

havia gastado da fazenda de Sua Majestade, que lhe tomassem no reino estreita

conta; porém, como nada tomou pera entesourar, antes do seu próprio gastou,

como o outro grão-capitão, não tratou e-l-rei senão de lhe fazer mercês. E, porque

ele não pediu mais que o marquesado das minas de São Vicente, o tornou a

mandar a elas, com o governo do Espírito Santo, Rio de Janeiro, e mais

capitanias do Sul, ficando nas do Norte governando D. Diogo de Menezes (...).

(...) D. Francisco foi pera as minas, e D. Antônio pera o reino com as mostras

do ouro delas, de que levava feita uma cruz e uma espada a Sua Majestade, o que

tudo os cossários no mar lhe tomaram. Nem o governador teve lugar de mandar

outra com uma enfermidade grande que teve na vila de São Paulo, da qual

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

134

morreu, estando tão pobre que me afirmou um padre da Companhia, que se

achava com ele à sua morte, que nem uma vela tinha pera lhe meterem na mão,

se a não mandara levar do seu convento; mas queria Deus alumiá-lo em aquele

tenebroso transe, por outras muitas que havia levado adiante, de muitas

esmolase obras de piedade que sempre fez.”41

A morte do governador na vila de São Paulo, em 1611, cumprindo as ordens

régias de descobrir metais nos sertões, exemplifica uma conduta virtuosa do bom súdito

e, conseqüentemente, do bom cristão. Mas entre os dois governos de Sousa, o período de

Diogo Botelho, entre 1602 e 1608, também recebe tratamento laudatório da pena de frei

Vicente do Salvador. O oitavo governador zelou muito pela conversão do gentio e, com

esse objetivo, essencial ao bom governo do Brasil, conferiu aos franciscanos importantes

obras:

“Entendendo isto muito bem, o governador Diogo Botelho apertou muito

com o nosso custódio, que então era, que pois doutrinávamos tobajares (do que

os potiguares estavam mui invejosos), desse também ordem e ministros que os

doutrinassem, pois essa foi a principal condição com que aceitaram as pazes na

Paraíba, e havia cinco anos que os entretínhamos, dizendo que fizessem primeiro

igrejas, ornamentos, sinos e o mais que era necessário. E, vendo que o custódio

se escusava por não ter frades peritos na língua brasílica, escreveu a Sua

Majestade e ao nosso ministro provincial grandes, pelo que, vindo do reino o

irmão custódio frei Antônio da Estrela, veio sobre isto muito encarregado e

ordenou três doutrinas pera os potiguares da Paraíba, além das duas que tínhamos

dos tobajares (...).”42

Ao contrário da atenção conferida aos governos de D. Francisco Sousa e Diogo

Botelho, há apenas um capítulo dedicado ao período de Diogo de Menezes nas capitanias

do Norte, entre 1608 e 1612, com destaque à vinda do Tribunal da Relação. Com a

pacificação do gentio, seria então possível o estabelecimento definitivo de engenhos,

cujas técnicas novas são tratadas no último capítulo deste livro: 41 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 300-301 (grifo nosso). 42 Idem, p. 286 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

135

“Como o trato e negócio principal do Brasil é de açúcar, em nenhuma outra

coisa se ocupam os engenhos e habilidades dos homens tanto como em inventar

artifícios com que o façam, e por ventura por isso lhe chamam engenhos.”43

Entretanto, os índios não eram os únicos males à saúde da América portuguesa.

As constantes ameaças ao território brasileiro, de 1612 a 1627, constituem a matéria

primordial do Livro Quinto. Neste, o franciscano descreve a tomada de Salvador pelos

holandeses e a sua prisão durante quatro meses num navio. A partir de então, descreve

como testemunha ocular a luta com os batavos, expulsos em 1625.

Dos 49 capítulos deste último livro, os cinco primeiros tratam da conquista do

Maranhão aos franceses. Outros oito capítulos, que provavelmente narrariam o governo

de Luís de Sousa, sobrinho de D. Francisco de Sousa, de 1617 ao ano de 1621, foram

perdidos. Todavia, a partida deste governador ao reino proporciona referências elogiosas

ao “bom cortesão”, que deixou, segundo o franciscano, “a todos saudosos com a sua

absência, porque nunca por obra ou por palavra fez mal algum, e foi mui rico sem tomar

o alheio, senão pelo grande cabedal que trouxe seu e retorno que sempre lhe vinha.”44

Às guerras contra os hereges holandeses em Salvador, frei Vicente dedica nada

menos do que 22 capítulos, os quais fornecem importantes lições às autoridades ibéricas,

principalmente com base na tópica da conservação dos estados. A condição de

testemunha ocular, outro topos fundamental dos gêneros historiográficos, é recurso

corrente ao longo do Livro V. Assim, menciona os primeiros preparativos de defesa, após

o aviso dado pelo rei de que partira uma armada holandesa, composta de 26 naus, em

direção ao Brasil:

“Sem esta, foram muitas as preparações de guerra que fez Martim de Sá

nesta ocasião. As mesmas fariam nas outras capitanias (que a todas se deu aviso,

até o rio da Prata), mas faço menção do Rio de Janeiro como testemunha de

vista, porque ainda lá então estava.”45

43 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 301. 44 Idem, p. 354. 45 Idem, p. 361 (grifo nosso). Ver ainda p. 373: “O que eu sei como testemunha de vista, porque neste tempo estava cativo nesta nau (...)”; ou p. 352: “(...) segundo alcancei algumas vezes que com ele falei em

Excluído: participante

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

136

Ao descrever os episódios entre maio de 1624 e abril de 1625, distribui encômios

a todos os que prestaram valorosos serviços ao rei a fim de recuperar a cabeça do Estado

do Brasil. Nesse sentido, o frade baiano apresenta diversas “pessoas qualificadas” como o

governador Diogo de Mendonça Furtado, que preferiu enfrentar os holandeses a fugir da

cidade; o bispo D. Marcos Teixeira, que, aclamado pelo povo capitão-mor, ordenou

vários assaltos aos holandeses; Matias de Albuquerque, que substituiu Mendonça

Furtado; o governador do Rio de Janeiro Martim de Sá e seu filho, Salvador Correia de

Sá e Benevides, entre outros.

Outrossim, o capítulo 34 fornece uma extensa listagem, “seguindo a ordem do

alfabeto”, dos fidalgos lusitanos que compuseram a célebre Jornada dos Vassalos.

Informa ainda, o capítulo seguinte, a quantia doada para o apresto da armada pelos

grandes portugueses, como, por exemplo, os duques de Bragança, de Vila Hermosa e de

Caminha, o marquês de Castelo Rodrigo e D. Luís de Sousa, “alcaide-mor de Beja,

senhor de Bringel e governador que foi do estado do Brasil.”46

A construção retórica da retomada de Salvador permitiu a relação entre as

diversas partes do corpo imperial em torno de um objetivo comum. Desse modo, frei

Vicente não trata apenas de clérigos e fidalgos lusitanos ou de “pessoas qualificadas” do

Brasil, mas dos súditos cristãos de Castela e Nápoles. A junção dos súditos de Felipe IV,

III de Portugal, realizou-se na Ilha de Cabo Verde, onde as naus portuguesas esperavam a

armada vinda de Castela:

“Na capitânia real vinha por generalíssimo do mar e terra D. Fadrique de

Toledo, por almeirante D. João Fajardo, general do estreito, em a sua; na

capitânia de Nápoles capitão o marquês de Cropani; na almeiranta o marquês de

Torrecuso, mestre de campo de terço de Nápoles (...), e em outros de todas as

esquadras outros capitães, sargentos e oficiais de guerra, a que não sei os nomes,

mas em os tratados particulares que se imprimiram da jornada se poderão ver, e

Lisboa, onde me achei em aquele tempo (...).” Nos livros anteriores, frei Vicente do Salvador recorre ainda a “uma mulher de crédito”ou a “um soldado de crédito”. 46 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 389.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

137

neste e no capítulo seguintes se verão as obras, das quais, mais que dos

nomes, se colige a verdadeira nobreza.

Juntas pois estas armadas em o Cabo Verde, e feitas suas salvas militares e

cortesãos cumprimentos, se partiram daí em 11 de fevereiro de 1625 em dia de

entrudo pera esta Bahia, à qual chegaram em 29 de março, véspora de Páscoa, a

salvamento.”47

Com a Restituição da Bahia – à época, representada também pelo espanhol Lope

de Vega, pelo padre jesuíta Antônio Vieira e pelo cartógrafo João Teixeira Albernaz – a

História do Brasil passa a se encaminhar paulatinamente ao seu fim. Frei Vicente do

Salvador ainda menciona as guerras contra o gentio que se rebelou na ocasião dos

holandeses, o retorno da armada católica ao reino, o envio do governador Francisco

Coelho de Carvalho ao estado do Maranhão, entre outros atos de Matias de Albuquerque

à frente do Brasil.

A eloqüência buscada pelo franciscano manifesta-se nas hipérboles, nos epítetos,

hipérbatos e metáforas, entre outros tropos e figuras que perpassam todos os cinco livros,

que, de modo geral, adotam o genus medium ou modicum, caracterizado pelo uso de

ornatus suaves, que deleitam ao proporcionar graus leves de estranhamento.48 A ironia

destaca-se como um dos expedientes retóricos recorrentes na História do Brasil, utilizada

por exemplo, para censurar a demora do envio de um primeiro governador ao recém-

criado Estado do Maranhão:

“Sabendo sua Majestade da morte de Jerônimo de Albuquerque, capitão-mor

do Maranhão, proveu na capitania com título de governador, independente do

governador do Brasil, a D. Diogo de Carcome, espanhol casado em Lisboa, o

qual se deteve tanto tempo em seus requerimentos e pretensões, ou os

ministros del-rei em o despachar, que primeiro o despachou a morte e

morreu em sua casa antes que de Lisboa se partisse.”49

47 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 391 (grifo nosso). 48 Cf. LAUSBERG, Heinrich. Elemementos de retórica literária. 49 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 355 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

138

Em outra passagem, ao discorrer sobre os primeiros momentos em que ficou

cativo dos holandeses, em companhia de jesuítas, frades beneditinos e um franciscano,

frei Vicente lança mais um dos seus engenhosos gracejos. Os religiosos, o governador

Diogo de Mendonça Furtado, o ouvidor-geral e o sargento-mor, também presos nas naus,

haviam sido enviados para a Holanda:

“E a nós deixaram pera nos trocarem pelos seus que estavam cativos dos assaltos,

sobre o que andavas um português, morador da terra, que falava a língua

flamenga, o qual depois acharam que lhe era tredo e os enganava, pelo que o

prenderam e o enforcaram com um irmão seu e um mulato que os acompanhava,

e a nós se ficaram dilatando as espqranças da nossa liberdade, de tal sorte que

meu companheiro teve por melhor arriscar-se a ir a nado, o que eu ainda que

quisera não podia fazer, porque quem não sabe nadar vai-se ao fundo.”50

O uso de linguagem jocosa manifestava, ainda, a espirituosidade do escritor

frente à situação adversa na qual se encontrava. A espirituosidade era uma das

excelências morais definidas pela ética aristotélica, que considerava o meio-termo como a

medida ideal a todas as disposições da alma. No Seiscentos, a autoridade do filósofo,

cristianizada, impunha um decoro próprio para gracejar com bom gosto:

“As pessoas que tendem para o excesso na ânsia de gracejar são consideradas

bufões vulgares, esforçandos-se por provocar o riso a qualquer preço; seu

interesse maior é provocar uma gargalhada, e não dizer o que é conveniente e

evitar o desgosto naquelas pessoas que são o objeto de seus gracejos. Aquelas

que, ao contrário, são incapazes de fazer um gracejo e não suportam aqueles que

o fazem, são consideradas enfadonhas e grosseiras. As pessoas, porém, que

gracejam com bom gosto, são chamadas espirituosas, ou seja, dotadas de

presença de espírito, que se traduz em repentes pertinentes; tais repentes são

considerados movimentos do caráter, e da mesma forma que o corpo é apreciado

por seus movimentos, o caráter também o é.”51

50 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 375 (grifo nosso). 51 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 190.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

139

Portanto, os gracejos de uma pessoa polida, ou discreta, deviam diferir dos de

uma pessoa vulgar. No último capítulo da História, que trata da vinda de Diogo Luís de

Oliveira ao Brasil, frei Vicente do Salvador – depois de dedicar encômios ao ex-

governador, Matias de Albuquerque, que partia ao reino depois de bons serviços

prestados ao império – emprega o recurso para concluir a narrativa de forma elegante e

proporcionar um derradeiro deleite aos seus leitores,:

“[Matias de Albuquerque] Teve boa fortuna em seu governo, por serem os

tempos tão infortunos e calamitosos, e na viagem o livrou Deus de inumeráveis

cossários, de que o mar estava povoado, levando-o sem os ver a salvamento, em

cinqüenta e dois dias a Caminha, onde achou o duque dela e marquês de Vila

Real D. Miguel de Menezes, seu parente, onde os deixaremos, e darei fim a esta

minha história, porque sou de sessenta e três anos de idade e já é tempo de tratar

só da minha vida, e não das alheias.”52

O emprego do hilari dicendi genus visa terminar a narrativa com gratia e

elegantia. Ao longo dos cinco livros, frei Vicente emprega variações engenhosas como

antídoto do tédio: da ordo artificialis à ordo naturalis, do genus medium ao hilari

dicendi. As diversas digressões também funcionam com esse objetivo, oferecendo

iguarias variadas aos leitores – funcionamento que, contudo, não esgota as suas

possibilidades, pois, com o intuito de persuadir, tratavam muitas vezes dos corsários

franceses, ingleses ou holandeses ou da cabeça do corpo imperial.53

Por fim, a descrição de monstros – como o que apareceu na capitania de São

Vicente em 1564, mencionada anteriormente pela pena de Pero de Magalhães Gandavo –

e de outros elementos fabulosos, visam proporcionar o gozo dos leitores, conforme pode

ser observado na pintura dos goitacazes, que, até o início do século XVII, inviabilizaram

a colonização efetiva da capitania de São Tomé ou Paraíba do Sul:

52 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 422. 53 Sobre os corsários, ver, por exemplo, no Livro Quarto, os capítulos I, que trata da presença de naus francesas e inglesas no Rio de Janeiro e São Vicente; XIX, no qual informa sobre três naus inglesas na BahiaXLII, que discorre sobre uma nau flamenga na capitania do Espírito Santo; e, no Livro Quinto, os capítulos VI e IX, que tratam de holandeses e franceses.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

140

“No distrito desta terra e capitania cai a terra dos Aitacases, que é toda baixa

e alagada, onde estes gentios vivem mais à maneira de homens marinhos que

terrestres. E assim nunca se puderam conquistar, posto que a isso foram algumas

vezes do Espírito Santo e Rio de Janeiro, porque, quando se há de vir às mãos

com eles, metem-se dentro das lagoas, onde não há entrá-los a pé nem a cavalo.

São grandes buzios e nadadores e a braços tomam o peixe ainda que sejam

tubarões, pera os quais levam em uma mão um pau de palmo pouco mais ou

menos, que lhes metem na boca direito e, como o tubarão fique com a boca

aberta, que a não pode cerrar com o pau, com a outra mão lhe tiram por ela as

entranhas, e com elas a vida, e o levam pera a terra, não tanto pera os comerem

como pera dos dentes fazerem as pontas de suas frechas, que são peçonhentas e

mortíferas (...).

Estas e outras incredíveis se contam deste gentio; creia-as quem quiser, que

o que daqui eu sei é que nunca foi alguém a seu poder que tornasse com vida

para as contar.”54

A mesma fabulação pode ser exemplificada pelo caso da cobra, iguaria servida

pelo franciscano, ainda no Livro Primeiro:

“Também me contou uma mulher de crédito na mesma capitania de

Pernambuco que, estando parida, lhe viera algumas noites uma cobra mamar em

os peitos, o que fazia com tanta brandura que ela cuidava ser a criança e, depois

que conheceu o engano, o disse ao marido, o qual a espreitou na noite seguinte e

a matou.”55

De acordo com João Adolfo Hansen, a introdução de elementos fantásticos na

prosa dos séculos XVI e XVII constituía uma licença poética, fruto de um hibridismo

estilístico que se apropriava do ut pictura poesis horaciano. “Figurações fabulosas são

deleitosas, mas provavelmente nada ensinam, pois não têm a utilidade ponderada do

54 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 107 (grifo nosso). 55 Idem, p. 72. Há outras passagens igualmente deleitosas, como por exemplo: “E não hei de deixar aqui o que me contou um soldado desta companhia que fez um principal destes que vieram, o qual diz-se foi à estrebaria onde estava um cavalo dos nossos e assentando-se pôs-se a falar com ele e dizer-lhe que o tomava por compadre (...).”, p. 257.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

141

docere.”56 Os leitores discretos certamente saberiam diferenciar as passagens verdadeiras

das fabulosas, aprendendo com as primeiras e fruindo as segundas.

Portanto, não parece correto afirmar que tais passagens devem-se à ingenuidade

do franciscano “de aceitar como verdadeiras algumas coisas absurdas.”57 Segundo

Francisco Iglésias, “o livro é simples, direto, com o máximo de naturalidade, quando a

história, notadamente em Portugal, era tratada com eloqüência e retórica.”58 Esse tipo de

juízo originou-se na definição de Capistrano de Abreu, para quem “o estilo pouco

preocupa o autor.”59

O estilo, de acordo com os preceitos retóricos vigentes nos séculos XVI e XVII,

definia-se como o decoro necessário a cada tipo de gênero e frei Vicente certamente

zelou pela conveniência de sua narrativa.60 Em segundo lugar, seria impensável que

algum escritor desse período não tivesse como parâmetro a preceptiva retórica, então

concebida como a arte responsável pela elaboração de discursos que deviam ensinar,

persuadir e deleitar.

Para aprofundar algumas questões tratadas brevemente nessa perspectiva

panorâmica, é necessário dar um vôo rasante nas tópicas que fundamentam a História do

Brasil. A eloqüência de frei Vicente do Salvador mobilizou de forma aguda argumentos

teológicos característicos do tomismo, valorizados pelos teólogos da Segunda Escolástica

opostos ao agostinianismo de luteranos e calvinistas.

56 HANSEN, João Adolfo. Prefácio. In PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento, p. 29. Sobre o conceito de ut pictura poesis, ver também: MUHANA, Adma. A epopéia em prosa seiscentista: uma definição de gênero; SINKEVISQUE, Eduardo. Retórica e política: a prosa histórica dos séculos XVII e XVIII. Introdução a a um debate sobre gênero. 57 IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil, pp. 29-30. 58 Idem, p. 29. 59 ABREU, J. Capistrano de. Nota preliminar, p. 39. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil. 60 No caso dos gêneros historiográficos, ver a dissertação de SINKEVISQUE, Eduardo. Retórica e política: a prosa histórica dos séculos XVI e XVII – introdução a um debate sobre gênero.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

142

3.1 A providência Divina, o livre-arbítrio e a graça

“Onde é que os advinhos viram as coisas futuras

que vaticinaram, se elas ainda não existem?

Efetivamente, não é possível ver o que não

existe. E os que narram fatos passados, sem

dúvida não os poderiam veridicamente contar, se

os não vissem com a alma. Ora se esses fatos

passados não existissem, de modo nenhum

poderiam ser vistos. Existem, portanto, fatos

futuros e pretéritos.”

Santo Agostinho61

No século XVII, os gêneros historiográficos, fundados sobre as bases do direito

natural, estavam impregnados de uma concepção sacramental do universo, que derivava

sobretudo da teologia escolástica. No interior do sistema tomista, “le même Dieu de la

religion fût à la fois l’Auteur de la Nature e le Dieu de l’histoire.”62 Ainda nessa

perspectiva, a imanência de Deus manifesta-se em tudo o que existe e, portanto, tudo está

ligado ao sentido escatológico instaurado pela Causa Primeira no momento da criação.

Segundo Étienne Gilson:

“Tel est en effet le Dieu de Saint Thomas d’Aquin. Non pas seulement le

principe, mais le créateur, et non pas seulement le Bien, mais le Pére. Sa

providence s’étend jusqu’au moindre détail de l’être, parce que sa providence

n’est que sa causalité. (...) Ce qu’il est éternellement em soi-même, le Dieu de

Saint Thomas le reste donc comme cause des événements. (...) L’homme pèche

et se perd, mais le Verbe se fait chair pour sauver l’homme: il nomme Dieu

son Rédempteur. Toute cette histoire se développe selon le temps e dans un

monde qui change, mais Dieu lui-même n’en est pas plus changé qu’une

colonne qui passé de droite à gauche selon que nous allons et venons devant

elle.”63

61 Confissões, p. 325. 62 GILSON, Étienne. Le thomisme, pp. 205-206. 63 Idem, p. 205 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

143

O movimento do mundo, toda essa história escatológica, deve-se ao Criador,

Causa Primeira e Fim do Universo. Nessa perspectiva, os misteriosos desígnios divinos

poderiam ser interpretados pelos sinais deixados às criaturas na Natureza e na História.

Em virtude dessa analogia tomista entre o mundo e o seu Criador, a Natureza constituía

um lugar de interpretação e de iniciação à fé. Esta concepção hermenêutica em relação à

natureza pode ser observada ainda no primeiro livro da História, no capítulo em que o

franciscano discorre sobre as árvores do Brasil:

“Maracujás é outra planta que trepa pelos matos, e também a cultivam e

põem em latadas nos pátios e quintais (...). E o que mais se pode notar é a flor,

porque, além de formosa e de várias cores, é misteriosa: começa no mais alto em

três folhinhas, que se rematam em um globo que representa as três divinas

pessoas em uma divindade, ou (como outros querem) os três cravos com que

Cristo foi encravado, e logo têm abaixo do globo (que é o fruto) outras cinco

folhas, que se rematam em uma roxa coroa, representando as cinco chagas e

coroa de espinhos de Cristo Nosso Redentor.”64

A mesma concepção é utilizada em relação aos episódios ocorridos no Brasil a

partir de 1500, como por exemplo a passagem na qual relata que o governador Gaspar de

Sousa ordenou a Jerônimo de Albuquerque conquistar o Maranhão aos franceses. A

expedição partiu no dia de São Bartolomeu, 24 de agosto de 1614, e aportou no Buraco

das Tartarugas, onde dezoito arcabuzeiros portugueses, liderados pelo capitão Manuel de

Sousa, enfrentaram com sucesso duzentos franceses:

“E deu por causa o Monsiur a quem lhe perguntou por que se retirara, que viram

muita gente na trincheira donde os nossos saíram e temera que vindo socorro lhes

não poderiam escapar, não tendo por possível que tão poucos homens tivessem

cometido a tantos senão com as costas quentes (como diziam), e confiados nos

muitos que trás eles saíram. E os muitos eram vinte soldados que haviam ficado

por não terem pólvora e munição, e se assumavam por cima da trincheira a ver de

64 SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil, pp. 66-67.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

144

palanque a briga, que na praia se fazia, mas melhor causa dera se dissera que o

quis assim Deus. E foi esta vitória como um presságio da que havia de

conseguir no Maranhão (...).”65

Entretanto, a História do Brasil não era composta apenas de bons presságios. No

capítulo anterior à conquista de Salvador pelos holandeses, o franciscano discorre sobre a

discórdia entre as duas principais cabeças deste Estado, o bispo D. Marcos Teixeira e o

governador Diogo de Mendonça Furtado. Menciona ainda o conflito entre o mesmo bispo

e os desembargadores e conclui:

“(...) Enfim estas eram as guerras civis que havia entre as cabeças, e não eram

menos as que havia entre os cidadãos, prognóstico certo da dissolução da

cidade, pois o disse a suma verdade, Cristo Senhor Nosso, que todo o reino

onde as houvesse entre os naturais e moradores seria assolado e destruído.

Outro prognóstico houve também, que foi arruinarem-se as casas del-rei,

em que o governador morava, de tal maneira que, se as não sustentaram com

espeques, se vieram todas ao chão, sendo assim que eram de pedra e cal, fortes e

antigas, sem nunca até este tempo fazerem alguma ruína.”66

Esse procedimento – que resulta na sacralização da história – só era possível em

virtude da concepção tomista do Deus criador e ordenador do mundo, pois os signos

forneciam pistas acerca da direção instituída aos homens pelo Senhor. De acordo com

São Tomás de Aquino:

“(...) é necessário dizer que todas as coisas estão sujeitas à providência divina,

não só em geral, mas também no particular. O que assim se demonstra: como

todo agente age em vista a um fim, a ordenação dos efeitos ao fim deve se

estender tanto quanto se estende a causalidade do primeiro agente. Por isso

acontece nas obras de um agente que algo provenha sem ser ordenado ao fim,

porque este efeito procede de alguma outra causa fora da intenção do agente.

Ora, a causalidade de Deus, o agente primeiro, se estende a todos os entes, não

65 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 338-339 (grifo nosso). 66 Idem, p. 361 (grifo nosso)

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

145

apenas quanto a seus princípios específicos como também quanto a seus

princípios individuais; tanto aos das coisas incorruptíveis quanto aos das

corruptíveis. (...) Portanto, como a providência de Deus nada mais é do que a

razão da ordenação das coisas a seu próprio fim, como foi dito, é necessário

que todas as coisas, na medida em que participam do ser, estejam sujeitas à

providência divina.”67

A vontade inexorável de Deus fornece, evidentemente, o fundamento da estrutura

narrativa da História de frei Vicente do Salvador. No que se refere aos metais e pedras

preciosas, por exemplo, o Senhor revelaria providencialmente a sua existência, a fim de

auxiliar o aumento da Monarquia Católica, instrumento dos Seus desígnios. Isso era uma

certeza para os portugueses, que incentivaram, em 1591, uma jornada liderada pelo mui

nobre Gabriel Soares de Sousa, por haver indícios de metais no sertão:

“O intento que Gabriel Soares levava nesta jornada era chegar ao rio de São

Francisco e depois por ele até a lagoa Dourada, donde dizem que tem seu

nascimento, e pera isto levava por guia um índio chamado Guaraci, que quer

dizer sol, o qual também se lhe pôs e morreu no caminho, ficando de todo as

minas obscuras até que Deus, verdadeiro sol, queira manifestá-las.”68

Nesse ponto reside uma das diferenças mais importantes entre os católicos

tomistas e os luteranos ultra-agostinianos. Estes pregavam a idéia do Deus absconditus,

cuja vontade seria incompreensível aos homens, pela sua natureza decaída. Em oposição

aos hereges, os tomistas defendiam o bem inerente ao homem, redimido do pecado

original pela Encarnação de Deus em Cristo. Desse modo, apesar dos seus pecados e

fraquezas morais, os homens eram portadores da graça e, portanto, capazes de

compreender os sinais divinos e, em virtude do seu livre-arbítrio, atuar – como causa

segunda – no sentido da sua realização.

A concepção tomista, difundida pelas universidades ibéricas e pelos colégios

jesuítas no ultramar, constitui o parâmetro de frei Vicente do Salvador ao narrar as ações

67 AQUINO, São Tomás de. Suma teológica, questão 22, 2, p. 442 (grifo nosso). 68 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 264 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

146

dos portugueses no Brasil, relacionando-as à escatologia cristã, à Causa Primeira e ao

Fim. É nesse sentido que o franciscano, embora não desse crédito ao gentio, afirma a

presença pretérita de São Tomé nessas terras, com base ainda em indícios encontrados na

natureza:

“Também é tradição antiga entre eles [os índios] que veio o bem-aventurado

apóstolo São Tomé a esta Bahia, e lhes deu a planta da mandioca e das bananas

de São Tomé (...); e eles, em paga deste benefício e de lhes ensinar que

adorassem e servissem a Deus e não ao demônio, que não tivessem mais de uma

mulher e comessem carne humana, o quiseram matar e comer, seguindo-o com

efeito até uma praia donde o santo se passou de uma passada à ilha de Maré (...).

Devia ser indo pera a Índia, que quem tais passadas dava bem podia correr todas

estas terras, e quem as havia de correr também convinha que desse tais passadas.

Mas, como estes gentios não usem de escrituras, não há disto mais outra

prova ou indícios que achar-se uma pegada impressa em uma pedra em aquela

praia, que diziam ficara do santo quando passou à ilha, onde em memória fizeram

os portugueses no alto uma ermida do título e invocação de São Tomé.”69

Aos portugueses cabia, portanto, completar a missão do apóstolo e colocar fim

aos costumes gentílicos que atentavam contra as leis naturais e, em conseqüência, contra

as leis civis do império. De acordo com São Tomás de Aquino, a providência de Deus

compreende “a razão da ordem das coisas destinadas a seu fim e a execução dessa ordem,

o que se chama governo.”70 No que se refere ao segundo ponto, Deus vale-se de

intermediários, as causas segundas, não pela “deficiência de seu poder, mas por

superabundância de bondade, a fim de comunicar às criaturas a dignidade da causa.”71

Em síntese, a ordem instituída pela Causa Primeira é executada pela causas segundas,

portadoras de livre-arbítrio e da graça, estado sobrenatural da alma humana, pois o

espírito de Deus habita em cada criatura. Assim, a vida dos homens reveste-se de uma

missão histórica e, ao mesmo tempo, transcendente.

69 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 112. 70 AQUINO, São Tomás de. Suma teológica, questão 22, 3, pp. 445-446. 71 Idem, p. 446.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

147

No caso específico da História do Brasil de frei Vicente do Salvador, o bem a ser

atingido parece ser a conversão dos pagãos ao catolicismo – dando fim à missão iniciada

pelo apóstolo e cumprindo a ordem de Cristo de levar a Sua Palavra aos quatro cantos do

mundo.72 Esse também era o objetivo do Estado Católico pós-tridentino, na medida em

que a sua cabeça, o Rei, constituía instrumento privilegiado da vontade de Deus. Desse

modo, os portugueses, cristãos e súditos leais, concorriam para a perfeição do mundo, o

que legitimava combater todos os que erguessem obstáculos a esse fim. Ainda de acordo

com São Tomás de Aquino:

“É próprio, com efeito, da providência ordenar as coisas a seus fins. Ora, depois

da bondade divina, que é o fim transcendente, o principal bem imanente às coisas

é a perfeição do universo; perfeição que não existiria caso todos os graus de ser

não se encontrassem nas coisas.”73

Na História do Brasil, Deus está sempre do lado português, tanto nas lutas contra

o gentio como contra os hereges. A primazia lusitana adquire contornos nítidos pela

intervenção dos santos nos combates. Segundo Francisco Bethencourt, “a invocação de

anjos e santos protetores assume, numa sociedade imersa em referências quotidianas ao

sagrado, uma função primordial de securização do reino.”74 Frei Vicente cita uma das

tantas guerras contra os tamoios, “industriados pelos franceses”:

“Os tamoios, não ainda bem começada a batalha, viraram as costas, (...) e

meteram os nossos, que atrevidamente os iam seguindo, em a cilada, donde

saíram as mais canoas inimigas e subitamente as cercaram por todas as partes.

Mas nem por isso perderam o ânimo os portugueses, antes resistiram

valerosamente ajudados do divino favor, o qual ainda das coisas que parecem

adversas sabe tirar prósperos sucessos, como aqui se viu que, acaso

acendendo-se a pólvora em uma das nossas canoas, chamuscou a alguns dos

72 Mateus, 28. 19. Jesus, depois de sua ressurreição, apareceu aos discípulos e falou-lhes: “Portanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;”ou ainda em Mateus, 24.14; Lucas 24.47; Marcos, 16.15. 73 AQUINO, São Tomás de. Suma teológica, questão 22, 4, p. 447. 74 BETHENCOURT, Francisco. A sociogênese do sentimento nacional. In BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. A memória da nação, p. 479.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

148

inimigos que a tinham abordada. Com o que e com a chama que levantou a

pólvora se alterou tanto a mulher do general tamoio que, dando gritos e vozes

espantosas, atemorizou a todos e, sendo seu marido o primeiro que fugiu com ela,

os seguiram os mais, deixando livres os nossos, os quais, tornando às suas

fronteiras, deram graças a Deus por tão grande benefício, e por os haver livres de

perigo tão grande pela voz e assombro de uma fraca mulher, ainda que depois

declararam os inimigos que não fora por isto, senão por haverem visto um

combatente estranho, de notável postura e beleza que, saltando atrevidamente nas

suas canoas, os enchera de medo. Donde creram os portugueses que era o

bem-aventurado São Sebastião, a quem haviam tomado por padroeiro desta

guerra.”75

Na História do Brasil, é obra da Divina Providência a vitória de portugueses

católicos frente a hereges, sejam franceses ou holandeses, e ao gentio que se opunha à

catequese. Desse modo, frei Vicente do Salvador justificava a posição dos portugueses

como eleitos.

Para São Tomás de Aquino, Deus, pela vontade antecedente, deseja a salvação de

todos os homens; contudo, pela vontade conseqüente, elege apenas alguns e reprova os

pecadores. Pois, se todos os homens são escolhidos e predestinados em Cristo, alguns, ao

pecar, tornam-se réprobos. Em virtude da redenção de todos os homens pela morte de

Cristo, a graça estende-se a todos, mas a criatura pode se tornar infiel e desmerecer o

divino dom.

O pensamento aquinate defende que a predestinação – execução da ordenação de

alguns à salvação e, portanto, parte da Providência, já que as escolhas são conhecidas

desde o princípio – é atemporal e tem com a graça relação de causa e efeito:

“Ora, é próprio à providência permitir alguma deficiência nas coisas que lhe

estão sujeitas, como acima foi dito. Por isso, sendo os homens destinados à vida

eterna pela providência divina, cabe igualmente à providência permitir que

alguns não alcancem este fim. É o que chamamos reprovar.

75 SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil, p. 161 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

149

(...)A predestinação inclui a vontade de conferir a graça e a glória, assim

também a reprovação inclui a vontade de permitir que alguém caia em culpa e de

infligir a pena da condenação por esta culpa.

(...)Porque a predestinação é causa tanto do que esperam os predestinados na

vida futura, a saber, da glória, quanto do que recebem nesta, a saber, da graça. A

reprovação, pelo contrário, não é causa do que acontece no presente, a saber, da

culpa; ela é causa do abandono por parte de Deus. É causa, porém, da sanção

futura, a saber, da pena eterna. A culpa provém do livre-arbítrio daquele que é

reprovado e que separa da graça.”76

O pecado, pois, é uma iniciativa puramente humana, que resulta na recusa da

graça. Isso não significa, absolutamente, que Deus não ame todas as criaturas. Entretanto,

além de misericordioso, o Senhor é justo e pune os pecadores.

“Porém, mesmo na condenação dos réprobos, a misericórdia aparece, não

relaxando totalmente, mas mitigando de algum modo as penas, pois Deus pune

menos do que o merecido. Assim, na justificação do ímpio, a justiça aparece,

pois relaxa as faltas em razão do amor, que o próprio Deus infunde por

misericórdia.”77

Deve-se salientar que, para São Tomás de Aquino, Deus apenas permite o pecado,

deixando intacto o livre arbítrio dos homens, “pelo qual o efeito da predestinação se

realiza de maneira contingente.”78 O mal, todavia, não é uma manifestação dicotômica no

que se refere à perfeição do universo, à qual “são requeridos diversos graus de coisas,

sendo que umas se encontram num alto nível e outras no mais baixo nível do universo.”79

O Senhor – que sabe de todas as escolhas, embora não seja responsável por elas – permite

alguns males para evitar que muitos bens deixem de acontecer.

Mas se a predestinação é parte da Providência, ela apenas se realiza pelas orações

e boas obras neste mundo, conforme transparecia nas palavras do fundador da

76 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, questão 23, 3, pp. 454- 455. É preciso não confundir com o emprego luterano desta categoria, que constituiu um dos pontos de divergências com os católicos. 77 Idem, questão 21,4, pp. 436-437. 78 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, questão 23,6, p. 463. 79 Idem, questão 23, 5, p. 461.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

150

Companhia de Jesus, Santo Inácio de Loiola: “Trabalha como se tudo dependesse de ti;

reza como se tudo dependesse de Deus.”80 Em suma, a predestinação é uma potência de

realizar a Providência, de ser instrumento dos desígnios divinos. Nas palavras de São

Tomás de Aquino:

“Dessa maneira, Deus é ajudado por nós na medida em que executamos o

que decidiu, como está dito na primeira Carta aos Coríntios: ‘pois somos

colaboradores de Deus’. E isto não resulta de uma deficiência do poder divino;

mas, porque se vale das causas intermediárias a fim de que nas coisas se conserve

a beleza da ordem, e também para comunicar às criaturas a dignidade de serem

causas.”81

O universo só existe para Deus, que nos homens realiza o seu fim. Frei Vicente do

Salvador articula os conceitos de providência Divina, livre-arbítrio e graça, a fim de

vincular o tempo de sua narrativa ao tempo contínuo e escatológico que a transcende,

porém no qual todos os episódios narrados se inserem. Os portugueses – “tão firmes na fé

da santa igreja católica romana e tão leais a seus reis como são”82 – agiam na direção

providencial, o que lhes conferia certamente um papel proeminente na história da

salvação humana.

Diretamente relacionado ao sentido transcendente conferido à história pela

concepção tomista, frei Vicente do Salvador pinta uma profusão de cenas de morte, pois,

como magistra vitae, era fundamental que a história lembrasse a fugacidade da vida

humana e, portanto, o inexorável acerto de contas com o Senhor, momento em que os

efeitos encontram a sua Causa. A morte, não raro, propicia um derradeiro comentário

acerca das obras do morto em vida. Segundo o franciscano, “todos os contentamentos do

mundo são aguados”.83 A oposição entre a vida neste mundo e a vida eterna aparece na

passagem em que discorre sobre a morte do governador Manuel Teles Barreto, em 1587:

80 Citado por MULLET, Michael. A contra-reforma, p. 20. 81 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, questão 23, 8, p. 469. 82 SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil, p. 364. 83 Idem, p. 249.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

151

“Como o governador Manuel Teles Barreto era tão velho, ainda antes de ver

o fim destas guerras, enfermou e passou desta vida, que também é uma

contínua guerra, como diz o santo Jó; quereria Deus que fosse pera a

triunfante, donde tudo é uma suma paz, glória e bem aventurança. Foi este

governados mui amigo e favorável aos moradores e o que mais esperas concedeu

pera que os mercadores não os executassem nas fábricas de suas fazendas (...)”.84

A tópica da fugacidade da vida foi intensamente veiculada ao longo do Seiscentos

em diversas representações, as do teatro de Shakespeare, assim como as imagens

pictóricas e esculturais produzidas no ultramar. Talvez os franciscanos sejam os

responsáveis pelo seu uso mais veemente, realizado na Capela dos Ossos em Évora, onde

os frades, ainda no século XVI, mandaram gravar em uma das paredes o apanágio

também comum às outras ordens: “Nós os ossos que aqui estamos pelos vossos

esperamos”. O topos manifesta-se novamente no capítulo em que o franciscano trata da

invasão dos holandeses e censura todos os que deixaram de lutar contra os invasores

hereges:

“Mas como [o governador] se não pôs em um cavalo correndo e discorrendo

por toda cidade que lhe não fugisse a gente, todos se foram saindo, o que não

podia ser sem que os capitães das portas e mais saídas fossem os primeiros. (...)

O mesmo fizeram clérigos e frades e seculares, que só trataram de livrar as

pessoas e algumas coisas manuais, deixando as casas com o mais, que tinham

adquirido em muitos anos. Tanto pôde o receio de perder a vida, e enfim se

perde tarde ou cedo, e às vezes em ocasião de menos honra.”85

Esse discurso, confeccionado com base nos preceitos retóricos do XVII, produz

uma hierarquia dotada de lugares específicos para cada um dos súditos do império,

hierarquia temporal que se articula no plano teológico, à medida que fornece exemplos de

ações convergentes ao sentido salvífico cristão. João Adolfo Hansen assinala a unidade

dos discursos seiscentistas no Brasil:

84 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 251 (grifo nosso). 85 Idem, p. 363 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

152

“Na síntese disjuntiva da agudeza, a representação é virtualmente infinita

porque sua unidade pressuposta é a da Luz teológica, espelhada como luz natural

na natureza, na história e nas consciências. (...) Nada foge nesses discursos à

difusão da Luz difusa que, oferecendo-se como consolo das instituições, espelha-

se nítida, sublime, no tenebrismo. Ou se obscurece e clarifica no claro-escuro.

(...) Ou simplesmente Luz, sinderése, centelha da consciência em São Tomás,

que determina a ocasião e o ato de prudência, e que faz discernir o mal, e

encaminha para o bem, na honesta dissimulação. Ou Luz teórica, visão

intelectual, como em Sór Juana ou Vieira. (...) E, sempre, Luz estritamente

beata, ortodoxa, tipicamente ibérica, como é o caso dos inumeráveis centões,

dos poemas encomiásticos, dos sermões celebratórios de tanta festa litúrgica,

entradas de bispo, autos-da-fé, vitórias contra hereges, gentio bravo e negros

rebelados. E, principalmente, Luz terrível da morte sempre anunciada no

vazio onde todos os efeitos encontram a sua Causa: como uma arte

cenográfica, os discursos encenam o ponto fixo como perspectiva adequada para

que suas misturas sejam fruídas como integração, quando se reduzem à justa

proporção de sua unidade.”86

A ordem teológico-política, construída pelas práticas e representações do

Seiscentos ibérico, pressupunha que todas as ações humanas participassem da

Providência e, como a execução desta denomina-se governo, a sociedade política,

segundo a leitura católica do aristotelismo, constitui parte do universo sacramental

direcionado para o Fim. Desse modo, os sucessivos governos do Brasil fazem parte de

um processo escatológico mais amplo, conforme será analisado a seguir.

3.2 O bom e o mau governo na zona tórrida

As formulações da Segunda Escolástica ibérica – que teve os padres jesuítas Luís

de Molina e Francisco Suárez entre os seus principais representantes – forneceram o

parâmetro de frei Vicente do Salvador para definir a excelência dos serviços prestados

86 HANSEN, João Adolfo. Colonial e Barroco, pp. 358-359 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

153

pelas autoridades à Coroa. Portanto, a presença da doutrina católica pós-tridentina na

História evidencia-se também no juízo acerca do governo do Brasil, em que o

franciscano utiliza conceitos da teologia de São Tomás de Aquino, da Política e da Ética

de Aristóteles.

Os tomistas defendiam que a sociedade política, fundada na lex naturalis,

constituía uma invenção humana – ao contrário da Igreja, fundada pelo próprio Cristo.87

Entretanto, muito embora fosse concebido como criação humana, o Estado, inserido em

um universo regido por uma hierarquia de leis, revestia-se de uma aura sobrenatural, pois

os atos humanos, sempre de acordo com a teologia aquinate, participam do mistério

divino. Nesse sentido, a imposição de leis positivas – lex civilis – e de uma autoridade

consentida e, portanto, legítima, deveria garantir que as leis da natureza, implantada por

Deus nos homens, fossem respeitadas. Ao contrário dos luteranos, os tomistas afirmavam

que mesmo as ordens de um governante ímpio eram de cumprimento obrigatório, pois

desrespeitar qualquer lei significava pecar contra a lei eterna de Deus. Nas primeiras

páginas da Política, Aristóteles expõe um dos argumentos que fundamentaram a questão

no Seiscentos ibérico: “É para a mútua conservação que a natureza deu a um o comando e

impôs a submissão ao outro.”88

De fato, o Estagirita definia que o princípio de todo o governo era a esperança de

um bem e a sua finalidade era o bem comum de seus cidadãos. A Política estabelece que

a melhor forma de governo “é necessariamente a que é administrada pelos melhores

funcionários.”89 A monarquia, conforme o juízo aristotélico, constituía um dos melhores

regimes, conveniente aos grandes Estados que desejassem estabelecer a felicidade geral.

Segundo Aristóteles, “mesmo os príncipes que detêm sozinhos as rédeas do governo

multiplicam os seus olhos, suas mãos e seus pés, confiando a seus favoritos uma parte

dos negócios de Estado.”90

A felicidade não se alcançava sem virtude e, para estabelecer o reinado da virtude,

era necessário que os responsáveis pelos negócios públicos praticassem ações boas e

justas, objeto de reflexão da Ética a Nicômaco. De acordo com o Filósofo, a excelência 87 Esta concepção da Igreja foi afirmada no “Decreto sobre as escrituras canônicas”, promulgado pelo Concílio de Trento em 1546. Cf. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. 88 ARISTÓTELES. A Política, p. 2. 89 Idem, p. 151. 90 Idem, p. 155.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

154

moral, produto do ethos, é uma disposição da alma que consiste no meio-termo,

determinado pela razão humana. Definidas em oposição, as deficiências morais consistem

na falta ou no excesso de uma determinada ação, em agir com base na paixão. Assim, a

moderação, relacionada aos sentidos e prazeres do corpo, tem a concupiscência como o

seu inverso. Em relação aos prazeres da alma, o amor às honrarias e ao conhecimento, a

prudência define a justa medida, expressa pelos conceitos de liberalidade, magnificência

e magnanimidade, além da própria justiça, “que é a disposição da alma graças à qual elas

se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo.”91

Aristóteles define que a liberalidade “é a observância do meio termo em relação à

riqueza.”92 O excesso em relação aos gastos consiste na prodigalidade e a falta na

avareza. “Chamamos pródigas as pessoas incontinentes, que gastam dinheiro para

satisfazer a sua concupiscência.”93

A magnificência também constitui uma excelência moral relacionada ao uso que

se faz da riqueza, porém, ultrapassa a liberalidade em amplitude, “pois como sugere o

próprio nome, ela consiste em um dispêndio consentâneo com seus objetivos e em grande

escala.”94 À ação magnificente, contrapõem-se a mesquinhez e a vulgaridade, esta última

em alusão aos dispêndios ostentatórios em ocasiões erradas, de maneira equivocada.

Da mesma forma, a magnanimidade, coroamento de todas as formas de

excelência moral, relaciona-se aos grandes objetivos. Trata-se de uma disposição própria

da “pessoa que aspira a grandes coisas e está à altura delas, pois quem aspira a grandes

coisas sem estar à altura delas é insensato.”95 As deficiências correspondentes são a

pretensão e a pusilanimidade.

Aristóteles discorre ainda sobre a dicotomia entre a amabilidade e a cólera, a

sinceridade e a jactância. Por fim, assinala a necessidade de zelar pelo meio-termo

também nas ocasiões de repouso ou entretenimento, ou seja, precreve a espiritualidade,

virtude das pessoas situadas entre os bufões, que pecam pelo excesso, e os enfadonhos,

que pecam pela falta.

91 ARISTÓTELS. Ética a Nicômaco, p. 193. 92 Idem, p. 173. 93 Idem, ibidem. 94 Idem, p. 178. 95 Idem, p. 180.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

155

Às virtudes morais antigas, somam-se as cristãs, tão importantes quanto às

primeiras para as autoridades do império católico e, portanto, presentes na História

escrita pelo frade baiano como critério de aferição do valor das autoridades. A narrativa

dos sucessivos governos do Brasil – exercidos pelos olhos, mãos e pés do Rei na América

– inicia-se em 1549, com a vinda de Tomé de Sousa, “homem muito avisado e prudente e

muito experimentado, nas guerras de África e Ásia.”96 Dentre as boas e justas ações do

primeiro governador geral, destaca-se a fundação de Salvador, em terras férteis, de bons

ares e de boas águas, conforme descrição do primeiro capítulo do Livro III, convergente

com as prescrições políticas aristotélicas. Segundo o Filósofo, se possível for escolher a

localização, “a proximidade do mar é não apenas mais segura para a cidade e suas

dependências, mas também mais propícia à abundância.”97

No Livro II da Política, Aristóteles destaca quatro elementos importantes para a

comodidade dos habitantes: em primeiro lugar, a salubridade, para o que concorre a

abundância de fontes e a exposição aos ventos; em seguida, recomenda que o local seja

próprio para os exercícios e para as reuniões civis, “tenha saídas fáceis para os cidadãos e

acesso difícil aos inimigos e seja ainda mais difícil de sitiar”98; em terceiro lugar, as casas

particulares devem ser adequadas, bem como o alinhamento das ruas; e, por fim, “se não

se quer morrer, nem se expor ao ultraje, deve-se considerar como uma das medidas mais

autorizadas pelas leis da guerra manter suas muralhas no melhor estado de fortificação”.99

A fundação de Salvador, portanto, atendia em grande parte aos requisitos

aristotélicos, apropriados em um viés absolutista pós-tridentino. Tomé de Sousa, com o

intuito de se estabelecer num lugar defensável tanto dos corsários como dos indígenas,

trouxe consigo instruções régias de como fundar a cidade, encarregando o mestre Luís

Dias de executá-las, o qual ergueu muros de taipa que circundavam o núcleo da

povoação. Ainda que Tomé de Sousa tivesse solicitado, inúmeras vezes, licença para

regressar ao reino, arrependeu-se quando o navio com o seu sucessor chegou ao porto,

conforme um dito, “entre outros que tinha mui galantes”, reproduzido pelo franciscano:

96 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 146. Já foi afirmado que o tempo dos governadores gerais fornece os marcos da narrativa. 97 ARISTÓTELES. A Política, p. 89. 98 Idem, p. 91. 99 Idem, p. 92.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

156

“(...) Respondeu-lhe ele depois de estar um pouco suspenso: vedes isso,

meirinho? Verdade é que eu o desejava muito, e me crescia a água na boca

quando cuidava em ir pera Portugal; mas não sei que é que agora se me seca a

boca de tal modo que quero cuspir e não posso. Não deu o meirinho resposta a

isto, e nem eu a dou, porque os leitores dêem a que lhes parecer.”100

A atitude prudente de frei Vicente do Salvador repete-se em relação ao segundo

governador, que também foi objeto de comentários elogiosos. Não obstante o seu período

tenha se caracterizado pelos conflitos com o primeiro bispo, D. Pero Sardinha, Duarte da

Costa, “além de ser grande servidor del-rei”, tinha uma virtude singular:

“(...) sofria com paciência as murmurações que de si ouvia, tratando mais de

emendar-se que de vingar-se dos murmuradores, como lhe aconteceu uma noite

que, andando rondando a cidade, ouviu que em casa de um cidadão se estava

murmurando nele altissimamente, e depois que ouviu muito lhes disse de fora:

Senhores, falem baixo, que os ouve o governador.

Conheceram-no eles na fala, e ficaram mui medrosos que os castigaria, mas

nunca mais lhes falou nisso, nem lhes mostrou ruim vontade ou semblante.”101

No entanto, entre os governadores nomeados antes da União Ibérica, matéria do

Livro III, o mais louvado, indubitavelmente, foi Mem de Sá. O frade baiano o

considerava espelho dos governadores do Brasil, em virtude de seus esforços para

remediar os males causados pelo gentio:

“Este, pondo os pés no Brasil que foi o ano de 1557, nenhuma coisa do seu

regimento executou primeiro que o que el-rei lhe mandava em favor da religião.

Pera isto mandou logo chamar os principais índios das aldeias vizinhas desta

baía, e assentou com eles pazes com condição que se abstivessem de comer carne

humana, ainda que fosse de inimigos presos ou mortos em justa guerra, e que

recebessem em suas terras os padres da Companhia e os outros mestres da fé, e

lhes fizessem casas em suas aldeias onde se recolhessem, e templos onde

100 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 147. 101 Idem, p. 151.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

157

dissessem missa aos cristãos, doutrinassem os catecúmenos e pregassem o

evangelho livremente. E, porque a cobiça dos portugueses tinha dado em cativar

quantos podiam colher, fosse justa ou injustamente, proibiu o governador isto

com graves penas, e mandou dar liberdade a todos os que contra justiça eram

tratados como escravos.”102

Por um lado, Mem de Sá promoveu guerras justas contra o gentio, nas quais

perdeu o seu sobrinho, Estácio de Sá, e o seu filho, Fernão de Sá – “depois de haver feito

grandes coisas em armas contra a multidão destes bárbaros”103 – perdas que

exemplificam o seu empenho em bem servir ao rei. Por outro, o terceiro governador

zelou pela justiça no trato com os índios, permitindo apenas a escravidão daqueles que

recusavam a catequese e eram cativos nas guerras justas. Mas o zelo pela justiça era uma

tarefa ainda mais ampla. Nesse sentido, frei Vicente discorre sobre a medida exata para o

bom desempenho nos negócios públicos:

“O tempo que lhe vagava da guerra gastava o bom governador na

administração da justiça, porque, além de ser a em que consiste a honra dos

que regem e governam, como diz Davi: Honor regis judicium diligit, a trazia ele

particularmente a cargo por uma provisão del-rei, em que mandava que nenhuma

ação nova se tomasse sem sua licença. O que mandou el-rei por ser informado

das muitas usuras, que ja em aquele tempo cometiam os mercadores no que

vendiam fiado.”104

Aristóteles considerava a justiça não uma parte da excelência moral, mas a

excelência moral inteira. Todavia, o justo em sentido político “se apresenta entre as

pessoas que vivem juntas com o objetivo de assegurar a auto-suficiência do grupo –

pessoas livres e proporcionalmente ou aritmeticamente iguais.”105 O governante justo se

opõe ao tirano, pois “a função do governante é ser o guardião da justiça e, se ele é

102 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 151-152 (grifo nosso). 103 Idem, p. 153 104 Idem, p. 152 (grifo nosso). 105 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 205.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

158

guardião da justiça, também é guardião da igualdade.”106 O franciscano trata novamente

da administração da justiça no governo de D. Diogo de Menezes, informando sobre a

vinda do Tribunal da Relação em 1608, e na administração de Gaspar de Sousa, entre

1612 e 1617:

“O primeiro dia que [Gaspar de Sousa] foi presidir na relação fez uma prática

aos desembargadores, acerca das queixas que deles tinha ouvido, que não ficaram

mui contentes e, se as de ouvido lhes não ficaram no tinteiro, menos lhes ficou

depois alguma, se havia, que logo a não repreendesse.

É incrível o cuidado com que Gaspar de Sousa vigiava sobre todos os

ministros e ofícios de justiça e fazenda, da milícia e da república, sem lhe escapar

o erro ou descuido do almotacé ou de algum outro, que não emendasse. Esta era a

sua ocupação, não jogos e passatempos, com que outros governadores diziam

evitam a ociosidade, os quais ele desculpava, dizendo que teriam mais talento,

pois, com lidar e trabalhar de dia e de noite nas coisas do governo, confessava de

si que não acabava de remediá-las.”107

Mas além da justiça, Mem de Sá, “espelho dos governadores do Brasil”, fundou a

cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Se São Salvador, fundada na parte central da

costa brasileira, auxiliou a conquista efetiva das capitanias do norte, a cidade de São

Sebastião inicialmente investiu-se da função de garantir a ocupação da parte meridional

da América portuguesa e rechaçar a ameaça herege francesa. Ambas constituíam as

cabeças das primeiras capitanias da Coroa, enquadravam-se na sentença aristotélica

acerca da boa localização da cidade e, estrategicamente, situavam-se em baías que

possibilitavam a defesa de seus portos. Frei Vicente discorre sobre a escolha do sítio para

a fixação do núcleo português na Baía de Guanabara:

“Sossegadas as coisas da guerra, escolheu o governador sítio acomodado ao

edifício de uma nova cidade, a qual mandou fortalecer com quatro castelos, e a

106 Idem, ibidem. 107 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 348-349.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

159

barra ou entrada do Rio com dois; chamou a cidade de São Sebastião, não só

por ser nome do seu rei, senão por benefícios recebidos do santo (...).

O sítio em que Mem de Sá fundou a cidade de São Sebastião foi o cume de

um monte, donde facilmente se podiam defender dos inimigos; mas depois,

estando a terra de paz, se estendeu pelo vale ao longo do mar (...).

Fundada pois a cidade pelo governador Mem de Sá em o dito outeiro,

ordenou logo que houvesse nela oficiais e ministros da milícia, justiça e

fazenda.”108

As homenagens ensejadas pelos episódios de fundação de cidades remetem à

hierarquia temporal e mística do império. Mem de Sá, depois do bom serviço prestado ao

rei e a Deus, ordenou “todas as coisas tocantes ao governo político”109, encarregou seu

outro sobrinho, Salvador Correia de Sá, de governar a terra e retornou para a Bahia, onde

esperou até 1571, ano de sua morte, que o rei lhe mandasse sucessor. Frei Vicente

emprega engenhoso eufemismo para descrever o episódio:

“Neste mesmo ano (...), que foi o de 1571, morreu de sua enfermidade o

governador Mem de Sá, que o estava esperando pera ir-se pera o reino, mas

quereria Nosso Senhor levá-lo pera outro reino melhor, que é o do céu, como por

sua vida e morte principalmente pela misericórdia divina se pode confiar.”110

Entre as autoridades nomeadas até 1580, ainda recebem referências elogiosas o

governador Luís de Brito de Almeida, que recebeu ordens régias de fundar uma forte

povoação próxima ao rio Paraíba, para se defender de franceses e do gentio; o Doutor

Antônio Salema, bom letrado, que atacou franceses e tamoios no Cabo Frio; e Lourenço

da Veiga, o qual “por mais negócios que tivesse, não deixava de ouvir missa.”111

Durante a União Ibérica, já no Livro IV, destacam-se os dois governos de D.

Francisco de Sousa, chamado D. Francisco das Manhas em virtude de sua prudência. Ao

chegar, o governador logo recebeu a notícia da morte de sua mulher, com o que resolveu

108 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 166 (grifo nosso). 109 Idem, p. 167. 110 Idem, p. 175. 111 Idem, p. 192.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

160

não mais tornar ao reino. D. Francisco reunia em si as virtudes necessárias a um bom

governante, como transparece no trecho que o apresenta aos leitores:

“(...) foi o mais benquisto governador que houve no Brasil, junto com o ser mais

respeitado e venerado; porque, com ser mui benigno e afável, conservara a sua

autoridade e majestade admiravelmente. E sobre tudo o que o fez mais famoso

foi sua liberalidade e magnificência, porque tratando os mais do que hão de

levar e guardar, ele só tratava do que havia de dar e gastar, e tão inimigo era do

infame vício da avareza que, querendo fugir dele, passava muitas vezes o meio

que a virtude da liberalidade consiste e inclinava pera o extremo da

prodigalidade, dava a bons e a maus, pobres e ricos, sem lhes custar mais do que

pedi-lo, donde costumava dizer que era ladrão quem lhe pedia a capa, porque

pelo mesmo caso lha levava dos ombros.”112

D. Francisco das Manhas, conforme já analisado, empenhou-se nas guerras contra

o gentio da Paraíba e os corsários hereges que andavam pela costa do Brasil. Outrossim,

tentou encontrar as minas do sertão, enviando ao rei pequenas amostras de ouro e pérolas.

Eis porque o franciscano define este governador como magnificente, pois os seus

dispêndios eram tão altos quantos os seus objetivos. Segundo Aristóteles, a pessoa

magnificente “gastará também tais importâncias tendo em vista a nobreza da ação, pois

esta característica é comum às várias formas de excelência moral.”113

Além das virtudes, o homem nobre ainda devia conhecer bem os assuntos

militares, entre os quais, destacava-se a construção de fortalezas, outro aspecto

importante relacionado à tópica do bom governo.114 Nesse sentido, frei Vicente discorre

sobre a construção dos fortes de São Felipe e São Tiago na capitania da Paraíba e sobre

os serviços prestados pelo arquiteto-mor de Sua Majestade no Brasil, Francisco de Frias,

112 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 261 (grifo nosso). 113 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 178. 114 Sobre a formação de um sistema integrado de defesa e as suas relações com a formação urbana de Salvador, ver: ANDRADE, Luiz Cristiano de. A cidade Real: história urbana de Salvador da Bahia (1549- 1649). Em Salvador os fortes de Santo Antônio e São Felipe, atual Fortaleza de Nossa Senhora de Monte-Serrate, foram construídos pelo governador Manuel Teles Barreto. Os fortins de Santo Alberto, São Tiago e São Francisco foram erigidos durante o governo de D. Francisco de Sousa.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

161

como a traça do forte de Santa Maria, ao leste da ilha de São Luís.115 Segundo Fernando

Bouza, desde pelo menos o século XVI, em Portugal, havia uma tradição consolidada de

unir o saber arquitetônico à cortesania:

“No panorama seiscentista da cultura de corte européia destaca-se, por mérito

próprio, o extraordinário interesse pelos saberes arquitetônicos que tiveram

alguns membros da nobreza portuguesa, o qual parece chegar a constituir-se

como um traço original do seu ethos enquanto grupo corporativo.”116

Ainda de acordo com Bouza, na época de Felipe II, passou a ser uma obrigação de

quem governava Portugal “ter de se ocupar de traças e despachar com engenheiros e

desenhadores, já que o próprio monarca seguia de muito perto a prossecução de obras em

palácios, fortalezas, igrejas ou mosteiros.”117 Pois essa idiossincrasia do ethos cortesão

português também pôde ser observada no ultramar. Entre as boas obras que fez Diogo de

Mendonça Furtado, governador que era “liberal e gastava muito em esmolas”118, frei

Vicente do Salvador destaca as fortificações, traçadas também pelo arquiteto-mor,

Francisco de Frias.

Entretanto, as atividades de governo da América portuguesa não eram exercidas

apenas pelas autoridades seculares, mas também pelas eclesiásticas. Afinal, não havia

uma separação nítida entre a cruz e a espada, nem mesmo no que se refere à competência

jurisdicional. De fato, em situações emergenciais, os bispos poderiam assumir o governo

e tomar a frente dos assuntos militares, como no episódio da prisão do governador pelos

holandeses, em que “elegeu o povo e aclamou por seu capitão-mor que os governasse o

bispo D. Marcos Teixeira, o qual a primeira coisa que intentou foi recuperar a cidade se

pudesse”, nomeando coronéis e determinando a entrada na cidade.119 O bispo assentou o

seu arraial a uma légua dos muros de Salvador e, de lá, ordenou vários assaltos contra os

hereges.

115 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, respectivamente, p. 223 e p. 339. 116 BOUZA, Fernando. Portugal no tempo dos Filipes, p. 27. 117 Idem, p. 29. 118 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 359. 119 Idem, p. 366.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

162

O governo de D. Marcos Teixeira é narrado em sete capítulos do Livro V, até a

morte do bispo, “deixando todos assaz saudosos e desconsolados com a falta de sua

presença.”120 O franciscano tece então diversos comentários encomiásticos, “porque era

mui esmoler e liberal, devotíssimo do santíssimo sacramento, o qual levava ele próprio

aos enfermos.”121 Frei Vicente do Salvador destaca as suas obras espirituais, parte apenas

dos serviços prestados a Deus e ao rei:

“Celebrava cada dia derramando em a missa muitas lágrimas de devoção,

pregava sem ser teólogo, posto que grande canonista, melhor que muitos

teólogos, com muito zelo da salvação de suas almas. Enfim dele se podia dizer

(..) que o levou Deus deste mundo, e em tão pouca idade, que ainda não chegava

a cinqüenta anos, porque não era o mundo digno de tanto bem. E se isto se pode

dizer dos seus merecimentos pera com Deus, não menos pera com el-rei,

como bem se viu em esta ocasião, em que o serviu de capitão-mor e governador

depois da Bahia tomada; porque ele foi o que, andando os homens espalhados

pelos matos, morrendo de fome, e nem neles se rendo por seguros, os fez ajuntar

em um arraial (...) e ali deu ordem a que se levassem mantimentos de todas as

partes a vender, sustentando ele os pobres à sua custa, que o não podiam

comprar.”122

E como as contendas não se definiam apenas neste mundo, o bispo orou muito

pedindo que Deus desse vitória aos católicos, “que não só governava estas guerras com

sua indústria, conselho e agência, como Josué e outros famosos capitães, mas com

lágrimas e orações como Moisés.”123 Por fim, o frade baiano conta que D. Marcos

Teixeira entendia a tomada da cidade como castigo divino causado pelos vícios e pecados

de seus moradores, por esse motivo

“(...) fazia tão áspera penitência que nunca mais fez a barba nem vestiu

camisa, senão uma sotaina de burel, dormia mui pouco e jejuava muito, pegava e

120 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 378. 121 Idem, ibidem. 122 Idem, ibidem (grifo nosso). 123 Idem, p. 379.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

163

exortava a todos à emenda de suas culpas pera que aplacassem a divina ira, até

que destes trabalhos o tirou Deus pera o descanso da bem-aventurança, como se

pode confiar em sua divina misericórdia.”124

Entretanto, era justamente a sobreposição de atribuições dos bispos e dos

governadores que engendravam discórdias entre as autoridades eclesiásticas e seculares.

Estas eram tomadas como exemplos de mau governo e, portanto, censuradas pelo frade

baiano. Os desentendimentos iniciaram-se já com o primeiro bispo do Brasil, D. Pero

Sardinha, ao longo do governo de D.Duarte da Costa. Frei Vicente do Salvador discorre

sobre o episódio:

“Porém o demônio, pertubador da paz, a começou a pertubar de modo

entre estas cabeças eclesiástica e secular, e houve entre eles tantas diferenças

que foi necessário ao bispo embarcar-se pera os reinos com suas riquezas

aonde não chegou por se perder a nau em que ia no rio Cururuípe, seis léguas do

de São Francisco, com toda a mais gente que nela ia, que era Antônio Cardoso de

Barros, que fora provedor-mor, e dois cônegos, duas mulheres honradas, muitos

homens nobres e outra muita gente, que por todos eram mais de cem pessoas, os

quais, posto que escaparam do naufrágio com vida, não escaparam da mão do

gentio caité que naquele tempo senhoreava aquela costa, o qual, depois de

roubados e despidos, os prenderam a ataram com cordas, e poucos a poucos os

foram matando e comendo, senão a dos índios que iam desta Bahia, e um

português que sabia a língua.”125

O frade baiano narra com prudência as situações de discórdia. Se, neste primeiro

caso, imputou a culpa ao demônio, outras contendas, como as diferenças e desgostos

entre o bispo D. Antônio Barreiros – “homem benigno, esmoler e dotado de muitas

virtudes” – e o governador Luís de Brito, foram representadas de outra forma.126 A

discórdia girou em torno da prisão de um homem chamado Sebastião da Ponte, que,

conquanto fosse honrado e rico, castigava os seus servos – brancos ou negros – de

124 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 379. 125 Idem, p. 148 (grifo nosso). 126 Idem, p. 183.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

164

maneira cruel. Um dos brancos foi marcado com o ferro das vacas e solicitou justiça ao

rei, que ordenou ao governador que prendesse e enviasse ao reino o tal Sebastião da

Ponte:

“Teve ele notícia disto e acolheu-se a uma ermida de Nossa Senhora da

Escada, que está junto a Pirajá, onde o réu então morava. Demais disto chamou-

se às ordens, dizendo que tiha as menores, e andava com hábito e tonsura porque

não era casado, pelas quais razões deprecou o bispo ao governador não o

prendesse. Mas não lhe valeu. Começou logo a proceder censuras e finalmente

chegou o negócio a tanto que houveram de vir às armas, correndo com elas o

povo néscio e inconstante já ao bispo com o temor das censuras, já ao governador

com o temor da pena capital que ao som da caixa se publicava e, o que mais era,

que, ainda depois de todos os acostados ao governador seus próprios filhos, que

estudavam pera se ordenarem, com pedra nas mãos contra seus pais se acostavam

ao bispo e a seus clérigos e familiares.

Porém enfim jussio regis urgebat, e se mandou o preso ao reino, como el-rei

o mandava, onde foi metido na prisão do Limoeiro, e nela acabou como suas

culpas mereciam.”127

Com efeito, nessa perspectiva sacramental do império, adotada pelo franciscano, e

considerando o regime de padroado ibérico, só havia um partido a ser tomado: o de Deus

e, conseqüentemente, o do rei. Ademais, também existiam diferenças exclusivamente

entre as autoridades seculares, como a que houve na capitania da Paraíba, onde o capitão

da infantaria espanhol, D. Pedro de la Cueva, e Diogo Nunes Correia desentenderam-se:

“(...) estes dois capitães (como se só o foram pera se fazerem guerra um ao

outro) começaram logo a ter contendas entre si, deixando os inimigos andar

livremente salteando as roças e fazendas dos brancos e aldeias dos índios amigos,

em tal modo que já não ousavam ir a pescar ou mariscar, porque a qualquer hora

que iam achavam inimigos que os matavam, sem estes capitães porem nisto

remédio (...).”128

127 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 183 (grifo nosso). 128 Idem, p. 258.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

165

Essas discórdias tomaram maiores proporções no governo de Diogo de Mendonça

Furtado, na medida em que foram percebidas como prognósticos da tomada de Salvador

pelos holandeses. O conflito tornou-se público quando o bispo, D. Marcos Teixeira, que

não aprovava a construção da fortaleza sobre um recife, recusou-se a benzer o

lançamento da pedra fundamental da edificação, “dizendo que se lá fosse seria antes

amaldiçoá-la, pois fazendo-se o dito forte cessaria a obra da Sé.”129 Frei Vicente

novamente emprega a tópica das cabeças discordantes a fim de explicar o episódio:

“Mas não foi este o mal, que o governador lhes reservou seis mil cruzados

pera correr a obra da sé, senão que do dia que chegou o bispo a esta cidade, que

foi a 8 de dezembro de 1622, desconcordaram estas cabeças, não querendo o

governador achar-se no ato de recebimento e entrada do bispo, senão se houvesse

de ir debaixo do pálio praticando com ele, no que o bispo não quis consentir,

dizendo que havia de ir revestido da capa de asperges, mitra e báculo, lançando

bênçãos ao povo, como manda o cerimonial romano, e não era decente ir

praticando. Por isto não foi o governador, mas mandou o chanceler e os

desembargadores, e depois o foi visitar à casa (...).”130

Outrossim, houve uma contenda acerca dos lugares adequados ao governador e ao

bispo no interior da igreja, problema que, segundo frei Vicente, também ocorreu entre as

respectivas autoridades de Cabo Verde. Em seguida, os desembargadores ainda

desentenderam-se com o bispo “sobre o espiritual e jurisdição que tem pera a correição

dos vícios”, o qual excomungou o procurador da coroa, desencadeando uma guerra civil

entre as cabeças, fator desestabilizador do corpo imperial.

De acordo com as formulações políticas da Segunda Escolástica ibérica, todas as

ações dos súditos deviam concorrer para a conservação e o aumento do império católico,

pois o rei era instrumento do bem de Deus. Frei Vicente do Salvador faz uso engenhoso

desses argumentos ao tratar da retomada de Salvador pelas forças luso-espanholas, pois a

129 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 359. 130 Idem, ibidem (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

166

restituição do poder político do rei Felipe IV sobre a cidade significava também a

restituição da verdadeira fé:

“Donde se colige o gosto que seria depois vermos nossas lágrimas tornadas

em alegria e restituído o nosso pão de cada dia que é o mesmo Deus em espécies

de pão, ao qual depois de havermos dados as graças as dávamos também ao

nosso católico rei por haver sido por meio de suas armas o instrumento deste

bem, conhecendo todos que, se o seu reino de Espanha se pinta em figura de uma

donzela mui formosa, com a espada na mão e espigas de trigo em a outra, não é

pera denotar a sua fortaleza e fertilidade, mas pera significar como pelas armas

de seus exércitos se goza este divino trigo em todas as terras de sua

conquista.”131

A propagação da verdadeira fé, pois, constituía a natureza e o fim do império

católico, providencialmente encabeçado pelo monarca espanhol. Nessa perspectiva de

sobrenaturalização do Estado, a conversão do gentio era concebida como uma atribuição

essencial do governo no Brasil. Frei Vicente do Salvador destacou veementemente a

importância das missões de catequese dos índios, “meio eficacíssimo pera com muita

facilidade os pacificarem e povoarem a terra.”132

Em síntese, os homens responsáveis pelo governo do Brasil deviam possuir, a

julgar pelos exemplos ao longo da História, virtudes morais como a prudência, a

liberalidade e a magnificência – conceitos entendidos com base na Ética de Aristóteles.

Como governantes de um império cristão deviam ainda ser pios e devotos aos

sacramentos. Entre as boas obras que constam da narrativa de frei Vicente do Salvador,

destacam-se a fundação de cidades, a administração da justiça, a projeção de sistemas

defensivos e construção de fortes; a administração dos sacramentos aos fiéis e, por fim

mas não menos importante, a conversão do gentio.

O frade baiano sempre descreve elogiosamente as autoridades responsáveis pelo

governo do Brasil, mesmo aquelas que se envolviam em contendas. Desse modo, era

mantido o decoro adequado às prosas encomiásticas como os gêneros historiográficos. As

131 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 405 (grifo nosso). 132 Idem, p. 336.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

167

censuras não eram feitas às autoridades, mas às ações que resultavam em discórdia entre

as partes do corpo imperial. Nessas ocasiões, frei Vicente do Salvador, com urbanitas et

elegantia, sugeria tacitamente pelos exemplos que as diferenças fossem resolvidas para

que todos, em concórdia, caminhassem em uma única direção, conforme os desígnios

divinos.

3.3 Os índios, a catequese e a guerra justa

“Uma cousa têm estes peior de todas, que quando vêm a minha tenda, com um anzol que lhes dê, os converterei a todos, e com outros tornarei a desconverter por serem inconstantes, e não lhes entrar a verdadeira fé nos corações; ouvi eu já um evangelho a meus padres, onde Christo dizia: ‘Não deis o santo aos cães, nem deiteisas pedras preciosas aos porcos’. Se alguma geração há no mundo, por quem Christo Nosso Senhor isto diga, deve ser esta; porque vemos que são cães,cem se comerem, e matarem e são porcos, por vicios, e na maneira de se tratarem, e esta deve ser a razão, por que alguns padres, que do reino vieram, os vejo resfriados, porque vinham cuidando de converter a todo o Brasil em uma hora, e vêm-se que não podem converter em uma anno, por sua rudeza e bestialidade.”

Pe. Manuel da Nóbrega133

Embora o Livro Primeiro da História do Brasil dedique os seis últimos capítulos

exclusivamente aos naturais da terra e aos seus costumes gentílicos, os esforços pela

conversão e pacificação dos índios constituem o pano de fundo de toda a narrativa. Os

ataques indígenas impediram a fixação dos portugueses em diversas capitanias, matéria

do segundo livro. Nas duas partes seguintes da História, que tratam dos esforços do

governo entre 1549 e 1612, o gentio aparece como o grande obstáculo ao domínio efetivo

da costa – em virtude das alianças celebradas com os franceses – ou ainda à expansão do

domínio imperial – tanto em direção ao sertão como ao norte da capitania de

Pernambuco, passando pela Paraíba e pelo Ceará em direção ao Maranhão. Ademais, as

tribos inimigas impediam a ligação entre os esparsos núcleos portugueses, como em

Sergipe, Ilhéus e Porto Seguro. Mesmo no Livro Quinto, que trata sobretudo dos

133 Diálogo da conversão do gentio. In Cartas do Brasil, p. 230.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

168

franceses em São Luís e dos holandeses em Salvador, a questão dos índios faz-se

presente.

Mas é no primeiro livro que frei Vicente do Salvador define a natureza do gentio

a ser catequizado. Com base na Miscelânea Austral, de D. Diogo de Avalos, informa que

essa gente bárbara habitava, em tempos remotos, as serras de Altamira em Espanha, onde

já comiam carne humana. Os espanhóis teriam lhes movido uma guerra na Andaluzia e os

sobreviventes migraram para as Ilhas Canárias, depois Cabo Verde e, finalmente, ao

Brasil. “Saíram dois irmãos por cabo desta gente, um chamado Tupi e outro Guarani; este

último, deixando o Tupi povoando o Brasil, passou a Paraguai com a sua gente e povoou

o Peru.”134

Segundo o franciscano, esta opinião não era certa, porém havia outras que não

tinham nenhum fundamento: “o certo é que essa gente veio de outra parte, porém donde

não se sabe, porque nem entre eles há escrituras, nem houve algum autor antigo que deles

escrevesse.”135 A falta da escrita entre esses povos significava, concomitantemente, a

ausência de história e, portanto, a sua exclusão do processo escatológico cristão. Esses

elementos condicionam a escolha do ano de 1500 como marco inicial da História do

Brasil, em conjunto com a instituição do tempo imperial.

A escrita era, contudo, apenas mais uma lacuna observada entre os gentios. Da

mesma forma, não possuíam médicos, mas feiticeiros, nem números “por onde contem

até mais que cinco”, tampouco utilizavam de pesos ou medidas.136 O conjunto de faltas,

que lhes definia como bárbaros, era expresso no lugar comum veiculado em tantos outros

discursos, como a História de Pero de Magalhães Gandavo:

“Mas nenhuma palavra pronunciam com f, l ou r, não só das suas mas nem

ainda das nossas, porque, se querem dizer Francisco, dizem Pancicu e, se querem

dizer Luís, dizem Duí; e o pior é que também carecem de fé, de lei e de rei, que

se pronunciam com as ditas letras.”137

134 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 77. 135 Idem, ibidem. 136 Idem, p. 82. 137 Idem, p. 78.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

169

A missão lusitana era a de suprir as carências de fé com a verdadeira religião,

protegendo-os da ameaça herege; preencher a ausência de lei, pela imposição da lex

naturalis e do ius gentium em oposição aos gentílicos costumes, entre os quais o

canibalismo forneceu o mais persuasivo argumento à catequese e à guerra justa; e, enfim,

estender o imperium do monarca católico, cujo dever, como instrumento do bem de Deus,

era o de zelar pela salvação de seus súditos. Destarte, os índios, posto que de uma forma

passiva, participariam do sentido divino deste mundo e ingressariam na sua história pelas

mãos portuguesas.

O frade baiano discorre, ainda, sobre as aldeias, o casamento e a criação dos

filhos, a cura dos enfermos e o enterro dos mortos. Em relação aos fracos e doentes, frei

Vicente afirma que o gentio tinha pouca caridade, o que permitia, no entanto, perceber

“a misericórdia do Senhor e efeitos de sua perdestinação, (..) ordenando que

percam os religiosos em o caminho que levam e vão dar nos tijipares ou cabanas

com enfermos que estão agonizando, os quais, recebendo de boa vontade o

sacramento do batismo, se vão a gozar da bem-aventurança em o céu.”138

A natureza do gentio era belicosa, mas a guerra dos índios não era justa como a

dos católicos, pois não eram justos os seus motivos, tampouco o tratamento que era

conferido aos cativos:

“Os que podem cativar na guerra levam para vender aos brancos, os quais

lhes compram por um machado ou foice cada um, tendo-os por verdadeiros

cativos, não tanto por serem tomados em guerra, pois não conta da justiça

dela, quanto por a vida que lhe dão, que é maior bem que a liberdade.

Porque, se os brancos os não compram, os primeiros senhores os têm em prisões

atados pelo pescoço e pela cinta com as cordas de algodão grossas e fortes, e dão

a cada um por mulher a mais formosa moça que há na casa, a qual tem o cuidado

de o regalare lhe dar de comer até que engorde e esteja pera o poderem comer.

138 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 83.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

170

Em morrendo este preso, logo as velhas o despedaçam e lhe tiram as tripas e

forçura, que mal lavadas cozem para comer e reparte-se a carne por todas as

casas e pelos hóspedes que vieram a esta matança (...).

(...) E é tão cruel este gentio com os seus cativos que não só matam a eles,

mas, se acontece a algum haver filho da moça que lhe deram por mulher, a

obrigam que o entregue a um parente mais chegado, pera que o mate quase com

as mesmas cerimônias, e a mãe é a primeira que lhe come a carne; pos to que

algumas, pelo amor que lhes têm, os escondem, e às vezes soltam também os

presos e se vão com eles pera suas terras ou pera outras.”139

Assim termina o Livro Primeiro da História do Brasil. De acordo com a narrativa,

os bárbaros costumes persistiriam até 1549, quando a coroa portuguesa interveio

providencialmente a fim de doutrinar e catequizar o gentio, enviando seis padres da

Companhia de Jesus. O Livro Segundo expõe a as dificuldades dos donatários em se fixar

efetivamente nas terras doadas pelo rei. Frei Vicente do Salvador menciona a presença

dos índios em todas as capitanias, com exceção de Porto Seguro, quase sempre como um

obstáculo à fixação dos portugueses. Assim, na capitania de São Vicente, cita as muitas

guerras que houve contra os gentios e franceses; descreve fabulosamente os temidos

goitacazes que habitavam as terras de Pedro de Góis; lamenta a morte à flechadas de D.

Jorge de Menezes, locotenente do donatário no Espírito Santo, após a queima dos

engenhos e fazendas, entre outros episódios que visavam convencer que os índios eram

um mal a ser remediado.

Na Bahia, por exemplo, embora Francisco Pereira Coutinho tivesse inicialmente

feito pazes com o gentio, os engenhos também foram queimados e houve diversas

guerras, “de maneira que lhe foi forçado e aos que com ele estavam embracarem-se em

caravelões e acolherem-se à capitania dos Ilhéus.”140 Depois de ter assentado nova trégua

com os índios, Coutinho retornou à sua capitania, “onde o mesmo gentio os matou e

comeu todos, exceto um, Diogo Álvares, por alcunha posta pelos indios o Caramuru,

porque lhes sabia falar a língua.”141

139 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 87. 140 Idem, p. 113. 141 Idem, p. 114.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

171

De acordo com o franciscano, o único donatário que obteve êxito foi Duarte

Coelho. Se a capitania de Tamaracá fornece matéria para dois capítulos e todas as outras

apenas para um, frei Vicente dedica três capítulos a Pernambuco, nos quais destaca as

diversas guerras movidas tanto aos gentios como aos franceses. Os seus feitos indicavam

o caminho a ser seguido pelos portugueses a fim de participar dos desígnios divinos para

essa terra:

“Com estas e outras vitórias, alcançadas mais por milagres divinos que

por forças humanas, cobrou Duarte Coelho tanto ânimo que não se contentou

ficar na sua povoação pacífico, senão ir-se em suas embarcações pela costa

abaixo até o rio São Francisco, entrando nos portos de sua capitania, onde achou

naus francesas que estavam ao resgate de pau-brasil com o gentio e as fez

despejar os portos e tomou algumas lanchas de franceses (...). E contudo não se

quis recolher até não alimpar a costa destes ladrões e fazer pazes com os

mais dos índios, e isto feito se tornou pera sua povoação com muitos escravos

que lhes deram os índios, dos que tinham tomados em suas guerras que uns lá

tinham com os outros, o que o fez muit temido e estimado dos circunvizinhos de

Olinda, dizendo todos que aquele homem devia ser algum diabo imortal, pois se

não contentava de pelejar em sua casa com eles e com os franceses, mas

ainda ia buscar fora com quem pelejar.”142

A narrativa da vinda de Tomé de Sousa – com “grande alçada de poderes e

regimento em que [D. João III] quebrou os que tinha concedido a todos os outros

capitães-proprietários”143 – aponta para essa direção providencial. Aqui tem início a

história da imposição do governo sobre o gentio, da providência divina sobre as

artimanhas do demônio. Mas ao governador geral, além de dar fim aos costumes

gentílicos, cabia ainda submeter à justiça régia, da qual era representante, as relações

entre os moradores do Brasil e os índios. Nesse sentido, frei Vicente do Salvador opõe a

cobiça daqueles que apresavam o gentio ao zelo pela sua conversão e pacificação:

142 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 118 (grifo nosso). 143 Idem, p. 143.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

172

“Com estes enganos e com algumas dádivas de roupas e ferramentas que

davam aos principais e resgates que lhes davam pelos que tinham presos em

cordas pera os comerem, abalavam aldeias inteiras e em chegando à vista do mar,

apartavam os filhos dos pais, os irmãos dos irmãos e ainda às vezes a mulher do

marido, levando uns o capitão mamaluco, outros os soldados, outros os

armadores, outros os que impetraram a licença, outros quem lha concedeu, e

todos se serviam deles em suas fazendas e alguns os vendiam, porém com

declaração que eram índios de consciência e que lhes não vendiam senão o

serviço, e quem os comprava, pela primeira culpa ou fugida que faziam, os

ferrava na face, dizendo que lhes custaram dinheiro e eram seus cativos.

Quebravam os pregadores os púlpitos sobre isto, mas era pregar em

deserto.”144

Era preciso achar um meio-termo – conforme as prescrições ético-políticas de

Aristóteles – entre a cobiça dos moradores, que injustamente cativavam o gentio, e os

bárbaros costumes como a antropofagia. Para o franciscano, a justa medida, a fim de

conservar este estado, seria atingida pela adoção de dois procedimentos que vinculavam a

cruz e a espada: a conversão e a guerra justa àqueles que resistissem à catequese. É nesse

sentido que frei Vicente do Salvador censura as atitudes de alguns portugueses que não

diferenciavam aqueles que mereciam, de fato, o cativeiro:

“Não sei eu com que justiça e razão homens cristãos, que professavam

guardá-la, quiseram aqui que pagasse o justo pelo pecador, trazendo cativo o

gentio que não lhes havia feito mal algum nem lhes constava que houvessem

feito aos vendedores injustiça deixando em sua liberdade os rebeldes e homicidas

que lhes haviam feito tanta guerra e traições.”145

O conceito de guerra justa implicava no estabelecimento da concórdia entre as

autoridades. O frade baiano descreve um episódio em Pernambuco, à época de Duarte de

Albuquerque Coelho, sucessor de seu pai no governo desta capitania, que havia enviado

144 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 181 (grifo nosso). 145 Idem, p. 192 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

173

línguas para propor que os índios da região fossem pacíficos e não salteassem os

engenhos, nem inquietassem o gentio que já estava sujeito:

“(...) Ao que eles com muita arrogância responderam que não o haviam com os

brancos nem com ele, senão com aqueles que eram seus inimigos e contrários

antigos; mas, se os brancos queriam por eles tomar pendências, ainda tinha

braços pera se defenderem de uns e de outros.

Tornados os línguas com esta resposta, fez Duarte de Albuquerque Coelho

uma junta de oficiais da câmera e mais pessoas da governança, onde se

julgou ser causa bastante pera se lhes fazer guerra justa e os cativar a

todos.”146

A vitória das milícias organizadas pelo donatário de Pernambuco atemorizou de

tal forma os índios “que se deixavam amarrar dos brancos como se foram seus carneiros

e ovelhas.”147 Mais uma vez, os portugueses pecavam pelos excessos e pela cobiça. A

atitude foi devidamente censurada pelo franciscano: “Isto não faziam os que temiam

Deus, senão os que faziam mais conta dos interesses desta vida que da que haviam de dar

a Deus.”148

O exemplo de guerra justa, de acordo com os princípios éticos do império, volta a

ser veiculado no fim do Livro Quinto, em que frei Vicente do Salvador discorre sobre o

combate ao gentio da Serra da Copaoba que se rebelou na ocasião da ocupação de

Salvador pelos holandeses. Terminada a guerra contra os hereges, era, pois, necessário

concentrar os esforços a fim de corrigir os pagãos:

“Do que tudo foi informado, o governador Matias de Albuquerque mandou

suster na jornada Antônio Lopes de Oliveira e os mais capitães que iam da

Paraíba, até se informar melhor do caso e tomar conselho sobre a justiça da

guerra, pera o que fez ajuntar em sua casa os prelados das religiões, teólogos

e outros letrados canonistas e legistas. E concluindo-se entre eles ser causa de

guerra justa, e pelo conseguinte os que fossem nela tomados escravos, que são

146 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 172 (grifo nosso). 147 Idem, 173 148 Idem, ibidem.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

174

no Brasil os despojos dos soldados, e ainda o soldo, porque o gentio não possui

outros bens, nem os que vão a estas guerras recebem outro soldo, logo o

governador mandou os capitães Simão Fernandes Jácome e Gomes de Abreu

Soares, e por cabo deles Gregório Lopes de Abreu, com suas companhias.”149

Entretanto, as guerras movidas contra o gentio eram apenas um meio de se

realizarem os objetivos precípuos da conquista, a salvação das almas pagãs pela

catequese e seu respectivo ingresso na Igreja, o que significava também o pertencimento

desses povos ao corpo místico imperial. Desse modo, a conversão era concebida como

uma tarefa fundamental do império católico e, no que se refere aos índios, os argumentos

formulados pelo padre Manoel da Nóbrega, em seu Diálogo da conversão do gentio,

continham as bases das representações e das práticas catequéticas no Brasil.

Nessa questão, em que pese a rivalidade entre franciscanos e jesuítas, os

argumentos de frei Vicente do Salvador convergem com os de Nóbrega e dos inacianos,

como também no juízo acerca do governo de Mem de Sá. De fato, durante mais de trinta

anos, a Companhia de Jesus foi a única ordem institucionalmente estabelecida no Brasil.

A chegada das demais ordens, a partir de 1581, não modificaria as tópicas defendidas

pelos jesuítas. A mais célebre delas, em virtude da estreita relação com a catequese,

referia-se à inconstância dos índios. O frade baiano emprega este topos a fim de

descrever o trabalho dos capuchos nas missões da Paraíba:

“Confesso que é trabalho labutar com este gentio com a sua inconstância,

porque no princípio era gosto ver o fervor e devoção com que acudiam à igreja, e

quando lhes tangiam o sino à doutrina ou à missa corriam com um ímpeto e

estrépito que pareciam cavalos, mas em breve tempo se começaram a esfriar de

modo que era necessário levá-los à força, e se iam morar nas suas roças e

lavouras, fora da aldeia, por não os obrigarem a isto. Só acodem todos com muita

vontade nas festas em que há alguma cerimônia, porque são mui amigos de

novidades, como o dia de São João Batista, por causa das fogueiras e capelas

(...).”150

149 Idem, pp. 407-408 (grifo nosso). 150 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p.286 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

175

Ainda que a inconstância fosse um obstáculo à conversão, era preciso persistir

nesta árdua tarefa.151 Em um dos momentos da narrativa, o frade baiano expõe o bem que

seria realizado ao gentio pela voz de um deles. Tratava-se de um índio chamado Ilha

Grande, feiticeiro e principal de uma tribo dos potiguares, enviado pelo padre jesuíta

Gaspar de Sampares e Jerônimo de Albuquerque para propor as pazes com os parentes:

“ ‘Vós, irmãos, filhos e parentes meus, bem conheceis e sabeis quem eu sou,

e a conta que sempre de mim fizestes assim na paz como na guerra. E isto é o que

agora me obrigou a vir dentre os brancos a dizer-vos que, se quereis ter vida e

quietação e estar em vossas casas e terras com vossos filhos e mulheres, é

necessário sem mais outro conselho irdes logo comigo ao forte dos brancos a

falar com Jerônimo de Albuquerque, capitão dele, e com os padres, e fazer com

eles pazes, as quais serão sempre fixas, como foram as que fizeram com o

braço de peixe e com os mais tobajaras, e o costumam fazer em todo o Brasil,

que os que se metem na igreja não os cativam, antes o doutrinam e

defendem, o que os franceses nunca nos fizeram e menos os farão agora, que

têm o porto impedido com a fortaleza, donde não podem entrar sem que os

matem e lhes metam com a artilharia no fundo os navios’ ”.152

Como em todas as outras ações políticas, a prudência era fundamental no trato

com os inconstantes e ardilosos índios, características que se evidenciam no caso “de uma

grande traição e engano que fez [ao governador-geral Manuel Teles Barreto] o gentio de

Cerigipe.”153 Este havia manifestado o desejo de ir à Bahia, onde seria doutrinado pelos

jesuítas da Companhia. Nesse sentido, solicitaram que alguns soldados lhes

acompanhassem pelo caminho e os defendessem de eventuais contrários:

“Fez o governador sobre isto uma junta de oficiais da câmera e outras

pessoas discretas, onde o primeiro que votou foi Cristóvão de Barros, provedor-

151 Sobre as representações do índio docilmente convertível, veiculadas pelo capuchinho francês Claude d’Abbeville e pelo huguenote Jean de Léry, ver o artigo de DAHER, Andréa. Do selvagem convertível. 152 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 273. 153 Idem, p. 249.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

176

mor da Fazenda, dizendo, como experimentado nas traições deste gentio, que

se lhes respondesse que se queriam vir viessem embora, e seriam bem recebidos

e favorecidos em tudo, mas que lhes não davam soldados, porque lhes não

fizessem alguns agravos, como costumam. E o mesmo votaram os mais

experimentados.

Porém pôde tanto a importunação e a autoridade dos terceiros, alegando a

importância da salvação daquelas almas que se queriam vir ao grêmio da Santa

Madre Igreja, que o bom governador lhes veio a conceder o que pediam e lhes

deu cento e trinta soldados brancos e mamalucos que os acompanhassem com os

quais e com alguns indíos das aldeias e doutrinas dos padres se partiram mui

contentes aos embaixadores (...).”154

Escoltados pelos soldados, os índios, em uma madrugada, mataram todos “como

vê-lhes o cordeiro, sem ficarem vivos mais que alguns índios dos padres, que trouxeram a

nova.”155 Nesses casos de traição, cabia responder com a guerra justa, como quis o

governador, mas a conversão, segundo frei Vicente do Salvador, constituía um remédio

aos males do Brasil, meio eficacíssimo de pacificar os índios e povoar a terra:

“[É tão necessário ao bom governo do Brasil zelarem os governadores a

conversão dos gentios naturais e a assistência dos religiosos com eles que, se isto

viesse a faltar, seria grande mal porque, como estes índios não tenham bens que

perder por serem pobríssimos e desapropriados e por outra parte tão variáveis e

inconstantes, que os leva quem quer, facilmente se espalham donde não podem

acudir aos rebates dos inimigos, como acodem das doutrinas que os religiosos os

têm juntos] e principalmente contra os negros da Guiné, escravos dos

portugueses, que cada dia se lhes rebelam e andam salteando pelos caminhos e se

o não fazem pior é com medo dos ditos índios, que com um capitão português os

buscam e os trazem presos a seus senhores ”156

Destarte, converter os índios significava, além da salvação de suas almas,

transformá-los em súditos do rei e, portanto, em aliados dos portugueses na conservação 154 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 249 (grifo nosso). 155 Idem, p. 250. 156 Idem, p. 285 (grifo nosso). Ver nota 116 do capítulo 2.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

177

do Brasil contra os inimigos hereges e os negros. Sobre estes, contudo, paira um silêncio

significativo na História do Brasil. Ao contrário dos índios, os negros são tratados

esporadicamente pela pena do franciscano e sempre de forma fugaz, como no capítulo

sobre a capitania de Porto Seguro em que informa sobre a existência de muito zimbo,

“dinheiro de Angola, que são uns buziozinhos mui miúdos de que levam pipas cheias e

trazem por elas navios de negros”157, ou ainda em uma passagem na qual discorre sobre o

retorno dos homens do capitão Simão Falcão da Paraíba a Pernambuco, “onde lhes

morreram muitos cavalos e escravos à míngua.”158 Os negros aparecem mais na tomada

de Salvador, como eventuais traidores à espera de uma ocasião para se rebelar contra os

seus senhores:

“Nem só andavam os holandeses insolentes por estes caminhos, mas muito

mais os negros que se meteram com eles, entre os quais houve um escravo de um

serralheiro que prendeu a seu senhor em a roça de Pero Gracia, onde se havia

acolhido e, depois de o esbofetear, dizendo-lhe que já não era seu senhor, senão

seu escravo, não contente só com isto lhe cortou a cabeça, ajudado de outros

negros e de quatro holandeses e a levou ao coronel, o qual lhe deu duas patacas e

o mandou logo enforcar, que quem fizera aquilo a seu senhor também o faria a

ele, se pudesse.”159

Em uma única ocasião, o franciscano cita o nome de um negro, “que nos servia na

horta, chamado Bastião”.160 Este também se meteu com os holandeses, mas porque

queriam lhe tomar um facão, saiu da cidade. O descrédito parece ser a marca

característica da natureza dos negros, conforme narra frei Vicente de Salvador:

“Mas, como Bastião levava ainda seu facão (...) o escondeu em o peito de

um, e matando-o lançou a correr pelo caminho que vai pera o rio Vermelho, onde

encontrou uns criados de Antônio Cardoso de Barros, os quais informados do

caso fingiram também que fugiam com o negro e se foram todos embrenhar

157 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 110. 158 Idem, p. 223. 159 Idem, p. 365. 160 Idem, ibidem.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

178

adiante, donde depois que os holandeses passaram lhes saíram nas costas e os

foram levando até um lamarão e atoleiro, onde mataram quatro e cativaram um.

E será bem saber-se pela glória dos valentes que o era tanto um dos mortos,

homem já velho, que metido no atoleiro quase até à cinta ali guardava as frechas

tão destramente com a espada que todas as desviava e cortava no ar, o que visto

por Bastião se meteu também no lodo e lhe deu com um pau nos braços

atormentando-lhos de modo que não pôde mais manear a espada.”161

Portanto, cabia conferir aos negros traidores, que se aliaram aos holandeses, os

mais severos castigos, embora estes não fossem matéria importante a constar em sua

História do Brasil. Frei Vicente do Salvador descreve apenas um desses castigos para

tratar de um desafio feito aos holandeses:

“Não trato dos assaltos que se deram aos negros seus confederados, que

algumas vezes saíram fora pelas roças, como quem bem as sabia e os caminhos, a

buscar frutas pera lhes venderem, dos quais foram alguns tomados, e a um destes

cortou o capitão Padilha ambas as mãos e o tornou a mandar pera a cidade com

um escrito pendurado ao pescoço, em que desafiava o capitão Francisco, que era

o mais conhecido (...).”162

Se, por um lado, negros e índios – os quais adquiriam a salvação de suas almas

em virtude dos sacramentos administrados pelas pias mãos portuguesas – deviam ser

tratados, a priori, com amor e misericórdia, por outro, era preciso agir com justiça

quando erguessem obstáculos à realização dos desígnios divinos. Todavia, nesse caso, a

principal lição que se tira da História é a de que os primeiros são traidores e os segundos

inconstantes e, portanto, era necessário prudência no trato com esses homens nitidamente

inferiores na hierarquia providencial do mundo, incapazes de entender os mais elevados

fins do império católico.

161 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 365 (grifo nosso). 162 Idem, p. 385.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

179

3.4 A retórica da construção do herege invasor

Para frei Vicente do Salvador, além do gentio, a presença de franceses, ingleses e

holandeses na costa do Brasil é mais um elemento perturbador ao estado de comunhão

no império católico. Porém, não se pode atribuir um caráter nacional às categorias que

estruturam a História de frei Vicente do Salvador tal como foram formuladas no

Oitocentos. A percepção de elementos relacionados à alteridade e à identidade, no século

XVII ibérico, fundamentava-se na teologia da Segunda Escolástica, definindo os

católicos – espanhóis, franceses ou portugueses – em oposição aos hereges protestantes,

aos infiéis muçulmanos, aos judeus e aos índios pagãos.

O historiador Francisco Bethencourt defende a existência de um sentimento

gregário, impulsionado a partir do século XVI sobretudo pela exaltação das virtudes da

língua pátria, ainda que o bilinguismo fosse uma prática comum na Península Ibérica. De

acordo com Bethencourt:

“(...) a sociedade medieval e, em certa medida, a sociedade moderna, são

sociedades debilmente integradas, com uma forte valorização do quadro de vida

local, onde as rivalidades de vizinhança são vividas no dia-a-dia e ritualizadas

através de cerimônias públicas (...). Nesta situação, caracterizada por uma

relativa fragmentação de poderes e pela distância do poder central, a percepção

de uma solidariedade mais ampla do que as solidariedades tradicionais (a família

e a aldeia) fez o seu caminho através da experiência de emoções partilhadas, que

testemunham fortemente a presença dos outros e permitem o aparecimento de

estados de comunhão. Entre essas emoções partilhadas destacamos o medo e a

festa, dois pólos de efervescência colectiva, bem como as revoltas e revoluções,

tempos fortes de crise e conscientização.”163

A integração do reino e de suas possessões ultramarinas revestia-se de um caráter

místico, na medida em que o império era percebido como um corpo sacralizado, cuja

cabeça era o rei. Segundo o historiador português, a guerra, por um lado, constituía um

163 BETHENCOURT, Francisco. A sociogênese do sentimento nacional. In BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. A memória da nação, pp. 474-475.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

180

dos fatores de insegurança dos povos – além das epidemias e crises de subsistência –,

mas, por outro, suscitava forte sentimento de solidariedade por parte da comunidade e

dos poderes locais e, “sobretudo, do poder central, que via a sua função protetora posta

em causa.”164 Bethencourt acrescenta que esses sentimentos foram ensejados, no

Quinhentos, também pelas atividades de corsários franceses e ingleses, ao longo da faixa

costeira do reino, ilhas atlânticas e Brasil.

Os franceses já são mencionados no Livro II da História, relacionados à extração

do pau-brasil ao longo da costa, com a qual quebravam o legítimo monopólio da coroa

portuguesa – prática prescrita pela Política de Aristóteles para aquisição de recursos

financeiros pelos Estados.165 Contudo, passaram a representar um risco mais grave à

conservação do Estado do Brasil quando tentaram se fixar no Rio de Janeiro, em aliança

com os índios tamoios. Posteriormente, os franceses se aliaram aos potiguares na Paraíba,

o que levou os portugueses a lhes atribuir responsabilidade nos levantes gentílicos

ocorridos no último quartel do século XVI. O ápice narrativo da presença francesa na

América – possessão luso-espanhola, no início do Seiscentos – constitui a fundação de

São Luís do Maranhão, à qual todos os outros episódios contados fornecem o preâmbulo.

Segundo frei Vicente do Salvador, os franceses chegaram ao Rio de Janeiro no

ano de 1556, terra que “esteve por povoar até que Nicolau Villaganhon, homem nobre de

França e cavaleiro do hábito de São João”, fortificou-lhe a entrada, “solicitou o gentio e

fez liga e amizade com eles.”166 Ordenado pela rainha D. Catarina, que então governava

Portugal, Mem de Sá, auxiliado pela providência divina na figura de São Sebastião,

iniciou a restituição desta terra à Coroa. Mais adiante, o franciscano informa que

acompanhava Villegagnon um herege calvinista chamado João Bouller, o qual, após a

vitória católica, fugiu para a capitania de São Vicente, onde fingiu professar a verdadeira

fé: “dourava as pílulas e encobria o veneno aos que o ouviam e viam morder algumas

vezes na autoridade do Sumo Pontífice, no uso dos sacramentos, no valor das

164 BETHENCOURT, Francisco. A sociogênese do sentimento nacional, p. 475. 165 De acordo com o Filósofo: “Em geral, o monopólio é um meio rápido de fazer fortuna. Assim, algumas cidades, quando precisam de dinheiro, usam desse recurso. (...) É bom que os que governam os Estados conheçam esse recurso, pois é preciso dinheiro para as despesas públicas e para as despesas domésticas, e o Estado está menos do que ninguém em condições de dispensá-lo.” A Política, pp. 30-31. 166 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 154.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

181

indulgências, e em a veneração das imagens.”167 Entretanto, o herege francês foi

reconhecido – “que ao lume da fé nada se esconde” –, denunciado ao bispo e sentenciado

à pena capital pelo governador. Frei Vicente narra a verdadeira vitória católica, que nem

sempre era oriunda das coisas aguadas deste mundo:

“Achou-se ali pera ajudar a bem morrer o padre José de Anchieta (...), posto

que no princípio achou rebelde, não premitiu a divina providência que se

perdesse aquela ovelha fora do rebanho da igreja, senão que o padre com

suas eficazes razões, e principalmente com a eficácia da graça, o reduzisse a

ela. Ficou o padre tão contente deste ganho, e por conseguinte tão receoso de o

tornar a perder que, vendo ser o algoz pouco destro em seu ofício e que se

detinha em dar a morte ao réu e com isso angustiava e o punha em perigo de

renegar a verdade que já tinha sido confessada, repreendeu o algoz e o

industriou que fizesse com presteza seu ofício, escolhendo antes pôr-se a si

mesmo em perigo de incorrer nas penas eclesiásticas, de que logo se absolveria,

que arriscar-se aquela alma às penas eternas.”168

Além de professarem heresias, os franceses ajudavam os tamoios que andavam

pela costa do Rio de Janeiro até São Vicente, “salteando os índios novos cristãos,

prendendo, matando e comendo a quantos podiam alcançar.”169 Nas palavras do

franciscano, os franceses são percebidos como principal obstáculo ao fim da

antropofagia:

“Durou esta moléstia dois anos, sem que força alguma pudesse reprimir o

atrevimento dos bárbaros insolentes, que cada dia crescia com o favor e ajuda

dos franceses com que já se não contentavam do mal que faziam aos outros

índios, mas a todos os moradores de São Vicente ameaçavam com cruel

guerra, e aprestavam uma armada de canoas pera por mar e por terra os

combaterem.”170

167 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil p. 167. 168 Idem, ibidem (grifo nosso). 169 Idem, p. 158. 170 Idem, ibidem (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

182

A vitória dos portugueses no Rio de Janeiro não afastou de todo a ameaça

francesa, deslocada para o Cabo Frio, onde continuou a industriar os tamoios. No entanto,

os hereges não eram somente um perigo na América, mas na própria travessia do

Atlântico. Frei Vicente conta que, em 1570, os corsários luteranos assassinaram D. Luís

Fernandes de Vasconcelos, que vinha suceder o governador Mem de Sá. O mesmo

destino tiveram os quarenta jesuítas que vinham ao Brasil com o padre Inácio de

Azevedo, os quais embarcaram em uma nau que se apartou das outras em virtude de uma

tormenta.171

Os franceses são mencionados logo no primeiro capitulo do Livro IV, novamente

na capitania do Rio de Janeiro. Desta vez, não atuaram ao lado dos tamoios e de seus

gentílicos costumes, mas ainda assim contra o legítimo rei católico Felipe II, I de

Portugal. Segundo o frade baiano, corria o ano de 1582, no qual Manuel Teles Barreto,

primeiro governador-geral nomeado pelo monarca espanhol, havia chegado à Bahia e

informado a todas as outras capitanias “que conhecessem a Sua Majestade por seu rei e

foi de importância este aviso, porque daí a poucos dias chegaram três naus francesas ao

Rio de Janeiro (...) dizendo que iam com uma carta de D. Antônio para o Capitão

Salvador Correia de Sá.”172 O governador estava em uma guerra contra o gentio no

sertão, porém a sua mulher utilizou engenhoso artifício para enganar os franceses, que

deixaram a Baía.

No mesmo capítulo, frei Vicente do Salvador menciona dois galeões ingleses que

foram à capitania de São Vicente, interessados nas “minas de ouro e outros metais que há

naquela terra, e publicavam que el-rei católico era morto e D. Antônio tinha o reino de

Portugal, oferecendo da parte da rainha da Inglaterra grandes coisas.”173 Os lusitanos

perceberam a artimanha e como estavam “mui firmes por el-rei católico”, não quiseram

admitir os ingleses, expulsos pelas três naus de Castela que navegavam em direção ao

estreito de Magalhães. O franciscano conclui o capítulo de forma encomiástica:

171 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 174. 172 Idem, p. 216. 173 Idem, ibidem.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

183

“Entraram as naus castelhanas em o porto, sendo bem recebidas dos portugueses,

que rogavam mil bens a Sua Majestade, pois (ainda que acaso) tão presto os

começava a defender.”174

Os dois episódios evidenciam, primeiro, a lealdade dos súditos portugueses ao

monarca espanhol, em um momento imediatamente posterior à sucessão do reino de

Portugal, e, segundo, a inexistência de qualquer sentimento nacional, invenção

oitocentista que resulta em anacronismo se aplicada ao Seiscentos absolutista. Ainda no

Livro IV, os franceses aparecem como aliados dos bárbaros potiguares, que os

auxiliavam carregando pau-brasil na Paraíba.

Em relação ao Maranhão, a posse dos portugueses parecia ser assegurada pela

Providência desde o naufrágio das naus enviadas pelo feitor da Casa das Índias João de

Barros às suas terras, vicissitude narrada pelo franciscano no Livro II. Os muitos

sobreviventes recolheram-se à Ilha de São Luís, onde fizeram pazes com o gentio tapuia:

“E chegou o trato e amizade a tanto que alguns houveram filhos de tapuias,

como se descobriu depois que cresceram, não só porque barbaram e barbam

ainda hoje todos os seus descendentes, como seus pais e avós, senão pelo amor

que tem aos portugueses, em tanta maneira que nunca mais quiseram paz com os

outros gentios, nem com os franceses, dizendo que aqueles não eram

verdadeiros perós (que assim chamam aos portugueses, parece por respeito

de algum que se chamava Pedro) e todavia, quando na era de 614 entraram

os nossos no Maranhão, logo os vieram ver e fazer pazes com eles, dizendo

que estes eram os seus perós desejados, de que eles descendiam.”175

A ocupação efetiva da ilha de São Luís, a partir de 1612, fornece matéria aos

primeiros capítulos do Livro V da História do Brasil. Os franceses alegavam que tinham

direito ao Maranhão, “pois Adão o não deixara em testamento mais a uns que a outros, e

com este pretexto trouxeram doze religiosos da nossa ordem dos capuchinhos pera

174 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 217. 175 Idem, p. 127 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

184

converterem os gentios.”176 Em que pese a ajuda dos católicos, essa tentativa de ocupação

era liderada pelo “general Daniel de Touche, que era Monsiur de Reverdière e

calvinista.”177 Em resposta, o governador-geral, Gaspar de Sousa, enviou Jerônimo de

Albuquerque a fim de reconquistar essa possessão, o qual ajuntou o “nosso gentio

pacífico”e solicitou religiosos franciscanos da Custódia de Santo Antônio do Brasil. A

expedição obteve sucesso e, enfim, foram feitas as pazes entre os dois lados da contenda,

cujos termos encontram-se transcritos no capítulo 4 deste último livro.

Os capuchinhos de França deixaram a ilha, “vendo o pouco fruto que faziam na

doutrina dos gentios por lhe não saberem a língua.”178 Frei Vicente do Salvador descreve

a admiração mútua entre os religiosos de ambos os reinos, não obstante estivessem os

franceses em companhia de hereges. Em seguida, depois de enviados reforços

capitaneados por Francisco Caldeira de Castelo Branco, a questão foi finalmente

resolvida. Para o franciscano, o gentio do Maranhão já estava inclinado a ajudar os

lusitanos, “porém, eles se resolveram em largar tudo o mais sem contenda, dando-lhes

embarcações em que se fossem pera a França, pelo que se passaram os nossos pera a

ilha.”179

A conquista do Maranhão aos franceses, posto que comandada pelo calvinista La

Ravardière, não proporciona a construção efetiva de um inimigo cruel e que em tudo se

opunha aos portugueses, certamente pela presença de capuchinhos de França, entre outros

“católicos romanos que ouviam missa, confessavam-se e comungavam.”180 Não obstante,

frei Vicente, alguns capítulos adiante, afirma que frei Cristóvão Severim, enviado como

custódio franciscano, vigário-geral e provisor do estado do Maranhão, em 1624,

“queimou muitos livros que achou dos franceses hereges e muitas cartas de tocar e

orações supersticiosas de que muitos usavam.”181

A construção retórica do invasor herege, em oposição ao bem que representava a

povoação portuguesa, é coroada, sem as tensões apresentadas acima, pela narrativa da

tomada de Salvador pelos holandeses. De fato, frei Vicente já havia assinalado sinais que

176 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 336 177 Idem, p. 340. 178 Idem, ibidem. 179 Idem, p. 346. 180 Idem, p. 343. 181 Idem, p. 377.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

185

prenunciavam o episódio no capítulo em que trata das urcas flamengas que, embora

proibidas pelo rei, vinham ao Espírito Santo e ao Cabo Frio com o intuito de carregar

pau-brasil. Já no Livro V, informa ainda sobre uma armada de holandeses que passou

pelo Rio de Janeiro. Os riscos potenciais à conservação do Estado do Brasil são

enunciados na passagem acerca da vinda de Diogo de Mendonça Furtado, governador

geral enviado para tempos de guerra, conforme pode ser interpretado pelas suas primeiras

preocupações:

“Em 12 de outubro de 1621, a uma terça-feira, que o vulgo tem por dia

aziago, chegou o governador Diogo de Mendonça Furtado, que foi o duodécimo

governador do Brasil, à Bahia, e desembarcando foi levado a sé com

acompanhamento solene e daí a sua casa, onde, antes de subir a escada, foi ver o

almazém das armas e pólvora que estava na sua loge, demonstração de se prezar

mais de soldado e capitão que de outra coisa. E na verdade esta era em aquele

tempo a mais importante de todas, por se haverem acabado as pazes ou

tréguas entre Espanha e os holandeses, e se esperarem novas guerras nestas

partes transmarinas, que estas são sempre as que pagam por nossos pecados

e ainda pelos alheios, e assim é necessário que as ilhas e costas do mar

estejam sempre em arma.”182

Portanto, a invasão dos hereges holandeses apresenta-se claramente como um

castigo aos pecados e às discórdias entre as partes do corpo imperial católico. Com o

intuito de expor as causas que levaram à tomada da Bahia, frei Vicente discorre sobre as

“guerras civis que havia entre as cabeças” do Brasil – entre o governador e o bispo, D.

Marcos Teixeira, entre este e os desembargadores – e também entre os cidadãos,

“prognóstico certo de dissolução da cidade.”183

Os flamengos iniciaram a conquista de Salvador pelo porto da vila velha e,

segundo o franciscano, não houve resistências dos homens enviados para dar o primeiro

combate, pois os “que estavam com seus arcabuzes feitos detrás do mato pera os

dispararem ao desembarcar dos batéis, porém, vendo ser muito maior o número dos

182 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 354 (grifo nosso). 183 Idem, p. 360

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

186

inimigos, não os quiseram esperar.”184 O medo, “como mal contagioso”, espalhou-se aos

moradores, cuja maior parte fugiu antes mesmo da queda do núcleo da cidade. Em meio à

pusilanimidade que se abateu sobre as milícias lusas, frei Vicente destaca ações virtuosas

em outra frente de combate, na qual destaca-se um franciscano que participou

devidamente protegido pela Providência:

“Melhor o fizeram os da fortaleza nova, a qual o almirante Petre Petrijans ou,

como os portugueses lhe chamamos, Pero Peres, com o resto da sua soldadesca

valorosamente combateu, e não com menos valor e ânimo lha defendeu Vasco

Carneiro e Antônio de Mendonça que o ajudou com mui poucos dos seus

soldados, que já os mais lhe haviam fugido. Também os socorreu com muito

ânimo Lourenço de Brito, capitão dos aventureiros; porém, como eram muitos os

holandeses e o forte não estava acabado nem com os repairos necessários, foi

forçado larga-lho, estando já Lourenço de Brito ferido e treze homens mortos,

sendo dos últimos que se saiu o nosso irmão frei Gaspar do Salvador, que os

esteve exortando e confessando e, quando se abaixou pera entender o que lhe

dizia um castelhano a quem um pelouro havia levado a perna, o livrou Deus

de outro, que lhe passou por cima da cabeça, havendo-lhe já outro levado

um pedaço de túnica.”185

O exemplo mais engenhoso e eloqüente, ainda neste capítulo, é o de Pero Gracia,

o qual, após ser fatalmente atingido pelo bombardeio batavo, zelou pelos sacramentos

católicos e buscou a concórdia. Mesmo doente, Gracia havia se posicionado na praia,

junto com seus criados, a fim de combater os inimigos hereges. Após ser perguntado pelo

governador como estava, respondeu:

“‘Senhor, já estou bom, que neste tempo os enfermos saram e tiram forças da

fraqueza’, ânimo por certo que os próprios inimigos deveram ter respeito e assim,

depois que o souberam, mostraram pesar, pondo a culpa à diabólica arma de

fogo, que aos mais valentes mata primeiro, e como raio onde fortaleza acha faz

mais dano. O pelouro lhe deu pelas queixadas, e ainda lhe deu lugar a se 184 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 362. 185 Idem, pp. 362-363 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

187

confessar e de se reconciliar com alguns de seus inimigos, que ali se acharam, um

dos quais era Henrique Álvares, a quem também outro pelouro matou pouco

depois.”186

Os holandeses instalaram-se no convento dos beneditinos, no limite de uma das

portas da cidade, onde passaram a noite. O governador mandara vir toda a gente do

recôncavo e determinou que “a gente não lhe fugisse”, mas não foi atendido. Frei Vicente

conclui o capítulo com uma articulação das tópicas da fugacidade da vida e da honra

advinda do serviço ao Rei: “Tanto pôde o receio de perder a vida, e enfim se perde tarde

ou cedo, e às vezes em ocasião de menos honra.”187

O capítulo seguinte inicia-se com mais um exemplo de bom governo, fornecido

pela constatação de que, ao contrário da gente, o governador não foge, pois não teme

perder a vida de forma honrada, ou seja, prestando um serviço ao seu rei. Diogo de

Mendonça Furtado, após se confessar com um franciscano que passava, recolheu-se em

sua casa acompanhado do filho, Antônio de Mendonça, do sargento-mor Francisco de

Almeida de Brito, de Lourenço de Brito e Pero Casqueiro da Rocha. Os holandeses

entraram e tomaram posse pacífica de Salvador, o governador e as demais autoridades

foram presas e espalhadas pelas naus. Depois de narrar esses episódios, frei Vicente

discorre sobre o coronel João Vandort, que começou a governar as coisas da terra:

“O coronel era homem pacífico, e se mostrava pesaroso do dano feito aos

portugueses e desejoso da sua paz e amizade, e assim aos que quiseram tornar

passou passaportes e lhes mandou dar quanto quiseram, não sem os seus lho

estranharem, porque, segundo o princípio que levava, lhe houveram de levar

tudo; porém, a não serem os portugueses tão firmes na fé da santa igreja

católica romana e tão leais a seus reis como são, não lhes fizera menos guerra

com estas dádivas, sujeitando os ânimos dos que as recebiam, do que os seus a

faziam por outra parte com as armas, tomando quanto podiam pelas roças

186 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 363. 187 Idem, p. 363.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

188

circunvizinhas da cidade, e isto com tanto atrevimento como se foram senhores

de tudo.”188

O episódio ratifica a lealdade dos súditos portugueses ao monarca espanhol,

virtude que não era característica dos holandeses, os quais, desde o fim do século XVI,

lutavam contra o imperium de Felipe II e de seus sucessores. A lealdade ao rei significava

também seguir à Igreja romana. Desse modo, frei Vicente do Salvador estabelece uma

primeira oposição entre as duas partes da contenda. Esta relação fica evidente na

descrição do enterro do coronel João Vandort, morto em um dos assaltos ordenados pelo

bispo, D. Marcos Teixeira:

“E no dia seguinte o enterraram na sé com a pompa que costumam, muito

diferente da nossa, porque não levaram cruzes, música, nem água benta,

senão o corpo em um caixão coberto de baeta de dó. Os capitães que o

levaram aos ombros, e um filho do defunto, um cavalo à destra, que também ia, e

as caixas que se tocaram destemperadas, tudo isto ia coberto de dó, e diante as

companhias todas dos mosqueteiros, e diante as companhias todas dos

mosqueteiros, com os mosquetes debaixo do braço e as forquilhas arrastando. Os

quais, entrando na igreja o defunto, se ficaram de fora ao redor dela, e ao tempo

que o enterraram os dispararam todos três vezes (...).”189

A heresia flamenga manifestava-se principalmente pela profanação dos templos

católicos e das suas imagens. Portanto, a luta contra os holandeses revestiu-se de um

caráter místico, na medida em que, conforme relatos coevos, a Providência operava

milagres a favor dos portugueses. O próprio Vicente do Salvador, preso em uma das naus

dos hereges, afirma ter dito à sua tripulação que não tentasse tomar a fortaleza,

posicionada em frente a uma “igreja de Nossa Senhora do Socorro de muitos milagres, a

qual defendia todo aquele circuito, do que muito se riram, mas enfim se tornaram pera o

porto da cidade sem pilhagem alguma.”190

188 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 364 (grifo nosso). 189 Idem, p. 368 (grifo nosso). 190 Idem, p. 373.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

189

O frade baiano conta ainda um episódio no qual os holandeses foram à ilha de

Taparica, em busca de azeite de baleia. Ao chegarem no engenho de Gaspar de Azevedo

não lhe fizeram nenhum dano, entretanto, como hereges, não deixaram de magoar uma

cruz que havia no local:

“E somente a uma cruz de pau, alta, que estava no terreiro do engenho,

deram algumas cutiladas, a qual milagrosamente se torceu e virou logo pera

outra parte, pera qual caminhando depois os holandeses acharam alguns

moradores da ilha com Afonso Rodrigues da Cachoeira, que então ali chegou

com o seu gentio e, mortos oito a frechadas e arcabuzadas, lhes tomaram uma

lancha com três roqueiras e fizeram embarcar os mais com a água pela barba e

muitos mui mal feridos. Pelo que se ficou tendo aquela cruz em tanta

veneração e estima dos católicos que fazem dela relíquias, com que saram

muitos enfermos de maleitas e outras enfermidades.”191

A descrição das primeiras medidas tomadas por Matias de Albuquerque, tão logo

recebeu a provisão do governo, em substituição a Diogo de Mendonça Furtado, destaca

quem eram as cabeças responsáveis pelas decisões sobre o governo do Brasil. Segundo

frei Vicente:

“[Matias de Albuquerque] fez logo uma junta dos oficiais da câmera,

capitães, prelados das religiões, e outras pessoas qualificadas sobre se viria em

pessoa socorrer a Bahia, o que por todos lhe foi contradito, assim porque não

bastaria o socorro que de lá podia trazer pera recuperá-la, como pelo perigo em

que deixava estoutra capitania, de cuja fortificação e defensa se devia também

tratar, pois viam arder as barbas dos seus vizinhos.”192

O ponto de inflexão da luta contra os holandeses, de acordo com a prosa

historiográfica do frade baiano, foi o início da ação régia em Madri, determinando o

envio de armadas ao Brasil. Afirma que “sabida pelo nosso rei católico Filipe Terceiro a

nova da perda da Bahia, a sentiu grandemente, não tanto pela perda quanto por sua 191 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 372 (grifo nosso). 192 Idem, pp. 373–374 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

190

reputação.”193 A partir desse capítulo, frei Vicente inicia a distribuição de louvores aos

discretos fidalgos ou às pessoas qualificadas que, ao travarem os primeiros combates para

restituir a cidade de São Salvador, prestaram excelente serviços ao império. Esses

atributos lhes transformavam em potenciais alvos encomiásticos do escritor, em

prováveis agraciados pelas mercês régias e, por fim, mas não menos importante, esses

serviços garantiam a salvação das suas almas. Desse modo, conta que os governadores do

reino de Portugal, D. Diogo de Castro e D. Diogo da Silva, enviaram os capitães

Francsico Gomes de Melo e Pero Cadena a Pernambuco; Salvador Correia de Sá e

Benevides ao Rio de Janeiro, D. Francisco de Moura, que já havia sido governador de

Cabo Verde, à Bahia.

A integração mística do império católico evidencia-se de forma mais clara nos

momentos de socorro às partes que o compunham. A construção retórica da unidade

substancial e transcendente desse corpo teológico-político inclui, além das ações

empreendidas pela aristocracia ultramarina, o apresto das armadas de Portugal, Biscaia e

Castela. Em Portugal, D. Afonso de Noronha, fidalgo velho, eleito vice-rei da Índia, foi o

primeiro a se alistar na jornada. O posto de capitão-mor da esquadra portuguesa foi

ocupado pelo fidalgo Tristão de Mendonça Furtado.

O capítulo 34 fornece uma listagem, dividida hierarquicamente em duas partes,

dos mais importantes fidalgos que embarcaram a fim de libertar a Bahia do jugo

protestante. A primeira parte da lista destaca os nomes daqueles que ocuparam os postos

de comando, como o próprio Tristão de Mendonça Furtado ou Antônio Moniz Barreto,

que vinha investido das patentes de capitão e mestre de campo na galeão Conceição. Em

alguns casos, frei Vicente do Salvador fornece o nome, patente e, quando necessário,

ascendência do súdito que embarcava:

“Partiu esta armada de Lisboa a 22 de novembro de 1624, dia de Santa

Cecília, por general dela D. Manuel de Menezes em o galeão São João, do qual

vinha por capitão seu filho D. João Teles de Menezes e juntamente de uma

companhia de soldados, e D. Álvaro de Abranches, neto do conde de Vila-

193 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 381.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

191

Franca, e Gonçalo de Sousa, governador do reino de Angola, de outras duas, que

por todos eram seiscentos soldados.”194

Em poucas palavras, frei Vicente menciona, primeiramente em quatro pequenos

parágrafos, os capitães dos quatro galeões que compunham a armada portuguesa; em

seguida, num único e longo parágrafo fornece o nome dos capitães que vinham em 14

naus ou navetas, sem, no entanto, contemplar a sua ascendência. Por fim, novamente em

um parágrafo curto, informa laconicamente: “Os mais navios eram patachos e caravelas,

que por todos eram vinte e seis, dez do Porto e Viana, e os mais de Lisboa.”195

Na segunda parte do capítulo, o franciscano lista os fidalgos que “vinham

embarcados por soldados, seguindo a ordem do alfabeto.”196 Por fim, afirma que havia

“muitos outros nobres, que parece se não tinham por tais os que se não embarcavam nesta

ocasião.”197 No capítulo seguinte, a extensa lista de súditos leais abrange ainda aqueles

que não embarcaram, mas financiaram o apresto da esquadra. Frei Vicente do Salvador

discorre sobre as virtudes da nobreza de Portugal e Espanha, sempre de acordo com os

critérios aristotélicos:

“E, se tão liberais se mostraram de suas pessoas os portugueses em esta

ocasião, não o foram menos de suas fazendas, não somente os que se

embarcaram, que estes claro está que aonde davam o mais haviam de dar o

menos, e onde arriscavam as vidas não haviam de poupar dinheiro, e assim

fizeram grandíssimas despesas, mas também os que não puderam embarcar

deram um grande subsídio pecuniário pera o apresto da armada.”198

Entre os grandes nobres e instituições liberais citados, destacam-se a Câmara da

cidade de Lisboa; “o excelentíssimo duque de Bragança D. Teodósio Segundo”; os

duques de Caminha e Vila Hermosa, este último presidente do Conselho de Portugal; o

marquês de Castelo Rodrigo; D Luís de Sousa, “alcaide-mor de Beja, senhor de Bringel e

194 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 386. 195 Idem, ibidem. 196 Idem, ibidem. 197 Idem, p. 388. 198 Idem, p. 389.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

192

governador que foi do estado do Brasil.”199 Os prelados eclesiásticos também

contribuíram, como o “ilustríssimo e reverendíssimo arcebispo de Lisboa D. Miguel de

Castro”; o arcebispo primaz D. Afonso Furtado de Mendonça; e o “ilustríssimo arcebispo

de Évora D. Joseph de Melo.200 Por fim, frei Vicente cita genericamente os mercadores

de portugueses, italianos de alemães. O montante reunido – ao todo duzentos e vinte mil

cruzados – foi suficiente para os gastos da armada portuguesa, “sem entrar nele a fazenda

de Sua Majestade, e assim veio provida abundantissimamente de todo o necessário pera a

viagem.”201

A construção da concórdia inclui ainda a armada real de Espanha, matéria do

capítulo 36, que apresenta, de forma mais breve, o nome dos principais nobres de Castela

e de Nápoles, entre os quais se destaca “o generalíssimo do mar e terra D. Fadrique de

Toledo.”202 Unidas as até então disperas partes do corpo imperial no arquipélago de Cabo

Verde, torna-se possível, no capítulo 37, anunciar o momento em que os católicos iniciam

providencialmente a sua vitória. Esta tarefa quase profética cabe a um franciscano,

durante confronto ocorrido no Espírito Santo, entre Salvador Correia de Sá e Benevides,

que, do Rio de Janeiro, também dirigia-se à Bahia, e o almirante holandês Pero Peres, que

retornava sem sucesso de Angola:

“Também o guardião da casa do nosso padre São Francisco, frei Manuel do

Espírito Santo, que andava com os seus religiosos animando os nossos

portugueses, vendo já os inimigos junto às trincheiras, se assomou por cima delas

com um crucifixo dizendo: ‘Sabei, luteranos, que este senhor vos há de

vencer’. E, com isto, vendo-se livre de uma chuva de pelouros, se foi ao sino da

igreja matriz que ali estava perto, e o começou a repicar publicando vitória, com

que a gente se animou mais a alcançá-la, de sorte que o general dos holandeses se

retirou pera as naus com perto de cem feridos de trezentos que haviam

desembarcado, e alguns mortos (...).”203

199 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 389. 200 Idem, ibidem. 201 Idem, p. 390. 202 Idem, p. 391. 203 Idem, p. 393 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

193

Com a chegada da armada católica à Bahia e o desembarque de “dois mil

castelhanos, mil e quinhentos portugueses e quinhentos napolitanos”, frei Vicente passa a

descrever as batalhas ocorridas nas duas portas da cidade – a do Carmo e a de São Bento.

De acordo com o preceito do ut pictura poesis, as cenas são minuciosamente pintadas a

fim de reconstituir a participação dos fidalgos que serviam Felipe IV. Para o melhor

entendimento dos leitores, o frade baiano pretendia inserir, no fim do capítulo 40, uma

imagem com a “descrição da cidade e sítio das fortalezas, donde se tirava de dentro e fora

dela.”204 Em meio aos conflitos, as preces flamengas pareciam não ser atendidas pelo

Senhor:

“Nem deixavam com toda esta ocupação os holandeses todos os dias, manhã

e tarde, de se ajuntar em a sé a cantar salmos e fazer deprecações a Deus que os

ajudasse: donde um domingo pela manhã deu um pelouro que vinha da nossa

bateria de São Bento e, passando a parede da capela de São José, levou a perna a

quatro que estavam assentados em um banco ouvindo a sua pregação, de que

morreram dois.”205

Destarte, sem o auxílio divino, só restava a rendição aos hereges. Frei Vicente

discorre sobre o favor de Deus à parte mais justificada da contenda, a qual lutava pela

honra das majestades celeste e terrena:

“Quão enganados vivem os homens que põem a sua confiança em as forças e

indústria humana experimentaram brevemente os holandeses em esta cidade da

Bahia, cuja guarda e defensão cuidavam estar em tirarem um capitão e porem

outro mais diligente e industrioso, sendo o certo o que diz Davi que, se o senhor

não guarda a cidade, em vão vigiam os que a guardam.”206

Depois da vitória, os católicos encontrariam os seus templos profanados. O

colégio dos jesuítas serviu de depósito de mercadorias e morada dos comerciantes. A

204 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 400. 205 Idem, pp. 396-397. 206 Idem, p. 402.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

194

igreja dos inacianos foi utilizada como adega e enfermaria. As igrejas dos franciscanos e

da Misericórdia serviram de armazém de pólvora.

“E assim não houve outra igreja que fosse necessário desviolar-se senão a sé,

coisa que os hereges sentiram muito, ver que desenterraram dois seus coronéis e

outros capitães que ali estavam enterrados, e chamaram alguns pera que

mostrassem a sepultura e os levassem a enterrar no campo, pera se haver de

celebrar no campo a primeira missa in gratiarum actionem, a qual cantou

solenemente o vigário geral do bispado do Brasil, o cônego Francisco Gonçalves

(...).”207

Embora a Providência deseje somente o bem das criaturas fiéis, Deus permite o

mal para que depois aconteça ainda um bem ainda maior. Se, por um lado, a tomada de

Salvador foi percebida pelo franciscano como um castigo em função da discórdia e dos

pecados, por outro, serviu para atar as diferentes partes do império em torno de um

objetivo comum. Desse modo, a justiça divina se manifesta no castigo infligido aos

católicos e, posteriormente, na restituição da Bahia, revelar-se-ia toda a Sua Misericórdia.

A ação do rei é fundamental para a passagem da justiça para a misericórdia de Deus. Esse

movimento subjaz às eloqüentes linhas em que frei Vicente do Salvador descreve a

sensação dos católicos após a vitória:

“Aqui confesso eu minha insuficiência pera poder relatar os júbilos, a

consolação, a alegria que todos sentíamos em ver que nos púlpitos, onde se

haviam pregado heresias, se tornava a pregar a verdade de nossa santa fé

católica, e nos altares, donde se haviam tirado ignominiosamente as imagens dos

santos, as víamos já com tanta reverência restituídas, e sobretudo víamos já o

nosso Deus em o santíssimo sacramento do altar, do qual estávamos havia um

ano privados, servindo-nos as lágrimas de pão de dia e de noite, como a Davi,

quando lhe diziam os inimigos cada dia: Onde está o teu Deus?

Donde se colige o gosto que seria depois vermos nossas lágrimas tornadas

em alegria e restituído o nosso pão de cada dia que é o mesmo Deus em espécies

207 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 405.

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

195

de pão, ao qual depois de havermos dado as graças as dávamos também ao

nosso católico rei por haver sido por meio de suas armas o instrumento deste

bem, conhecendo todos que, se o seu reino de Espanha se pinta em figura de uma

donzela mui formosa, com a espada em uma mão e espigas de trigo em a outra,

não é pera denotar sua fortaleza e fertilidade, mas pera significar como pelas

armas de seus exércitos se goza este divino trigo em todas as terras de sua

conquista.”208

Ainda no quadragésimo terceiro capítulo, frei Vicente de Salvador afirma que,

depois de saber da notícia em Madri, Felipe IV “fez dar solenemente as graças a Nosso

Senhor pela mercê recebida.”209 O rei, portanto, situa-se entre Deus e seus súditos. Esse

caráter místico estende-se a todo o império, cujo destino providencial frei Vicente do

Salvador relaciona a Roma e ao Estado do Brasil:

“Em Flandres foi tomada aos hereges a poderosa cidade de Breda e no

Brasil (como temos dito) recuperada de outros a Bahia, que o ano dantes a

tinham ocupada. Bem parece que foi aquele bissexto e estoutro de jubileu, em

que o vigário de Cristo em Roma tão liberalmente abre e comunica aos fiéis o

tesouro da Igreja, pera que confessando-se sejam absolutos de culpas e censuras,

que são muitas vezes as que impedem as mercês e benefícios divinos, e nos

acarretam os castigos. E principalmente se pode atribuir a felicidade deste

ano a Espanha em ser nele celebrada a canonização de Sta. Isabel, rainha de

Portugal e natural do reino de Aragão, por cuja intercessão e merecimentos

podemos crer que fez e fará Deus muitas mercês a estes reinos.”210

Os argumentos teológico-políticos da História do Brasil, longe de pertencerem a

uma perspectiva autonomista, sacramentam a união das coroas ibéricas como meio de

promover a concórdia entre os reinos católicos para combater os inimigos da fé. Assim,

no confronto que opõe os católicos portugueses, espanhóis e napolitanos aos hereges

holandeses e franceses, frei Vicente do Salvador destaca, como virtudes necessárias aos

208 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 405 (grifo nosso). 209 Idem, p. 406. 210 Idem, pp. 406-407 (grifo nosso).

A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro

196

homens a serviço de Felipe IV, a coragem e o ânimo, mas, sobretudo, a lealdade ao Rei e

à Igreja Romana. A liberalidade, excelência moral de acordo com Aristóteles, também é

“própria da nobreza castelhana.”211 O papel dos religiosos, entre os quais,

indubitavelmente, destacam-se os seus irmãos da ordem de São Francisco de Assis,

devia ser o de exortar os soldados, animá-los e confessá-los, para que, em caso de morte,

pudessem chegar puros ao reino do céu.

O Brasil havia sido providencialmente revelado aos homens e, nesse sentido,

cabia aos portugueses, reunidos em torno do seu Rei, instrumento do Bem neste mundo,

fazer com que Sua Vontade predominasse nessas partes até então governadas pelas

artimanhas do demônio, expressas nos bárbaros costumes do gentio. Em oposição a esse

tempo de trevas, o governo lusitano devia fazer reinar a Luz e, nesse sentido, nas últimas

páginas do Livro V, que tratam da presença de holandeses ao longo da costa, frei Vicente

do Salvador adverte “que os quis Deus deixar ainda no Brasil (como deixou os cananeus

aos filhos de Israel) pera freio de nossos pecados.”212

211 SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 406. 212 Idem, p. 410.

CONCLUSÃO

“A fortaleza louvada

Anda em braços com a prudência,

Irmã sua muito amada.

Põe na avante a experiência.

Tudo sem saber é nada/

Por forças nós que podemos?

Isso que é do saber veio:

O bem todo está no meio,

O mal todo nos extremos.”

Francisco de Sá de Miranda

Estes versos, elaborados pelo irmão do governador Mem de Sá, no século XVI,

foram citados na segunda metade do Oitocentos pelo Visconde do Uruguai, em seu

Ensaio sobre o direito administrativo, publicado em 1862. Nesse livro, o autor discorre

sobre o papel do Estado e sua relação com a sociedade, criticando a eficiência das

instituições que havia ajudado a fundar. Se, por um lado, a obra é tributária das leituras

de Alexis de Tocqueville e François Guizot, por outro, as tópicas da moderação, do mau e

do bom governo – fundamentadas na filosofia ético-política de Aristóteles, e apropriadas

pelos teóricos ibéricos da Segunda Escolástica – estão presentes na argumentação do

Visconde do Uruguai. Ao longo do duradouro século XIX brasileiro, essas tópicas

continuaram a ser utilizadas, certamente em um quadro diverso, de construção do Estado

e de invenção da nacionalidade brasileira.

O funcionamento político-administrativo do Império brasileiro, não obstante a

ruptura política com Portugal e o desprezo pelas repúblicas latino-americanas, deitou as

suas raízes na longa tradição ibérica, firmada sobretudo pelos teólogos e juristas

escolásticos a partir do Quinhentos.1 Segundo José Murilo de Carvalho, que analisa a

1 Sobre a Segunda Escolástica e a sua relação com a Contra-Reforma, ver SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Acerca da opção tomista ibérica e o uso dos seus conceitos para governo do Novo Mundo, ver MORSE, Richard. O espelho de próspero: cultura e idéias nas Américas.

Conclusão

199

construção de sucessivas imagens nacionais, entre 1822 e 1945, a representação

romântica do Brasil como um índio foi adotada com unanimidade pela imprensa

decimonônica. Entretanto, ao lado desse novo elemento simbólico – percebido como

elemento genuinamente nacional – é possível verificar também a permanência de

conceitos políticos escolásticos: “A nação era também raramente representada como

índia. Quando o era, tornava-se Brasília em vez de Brasil. Ou era entidade abstrata como

a Concórdia.”2

A permanência de certos termos do léxico aristotélico-tomista pode ser verificada

mesmo entre aqueles que tentaram romper com a tradição absolutista portuguesa,

associando-a ao domínio colonial e ao atraso do país. Em oposição ao vínculo ibérico,

Tavares Bastos propunha a adoção do sistema político norte-americano – a república.3

Em Os males do presente e as esperanças do futuro, publicado em 1861, Bastos já

defendia que as raízes dos problemas brasileiros encontravam-se na herança colonial,

condenando de forma veemente o despotismo burocrático lusitano.

No século XX, a linha do americanismo foi seguida pelo médico sergipano

Manoel Bomfim, autor de A América Latina: males de origem, publicado em 1905. Nessa

altura, havia outros elementos que fundamentavam a obra de Bomfim, sobretudo as

teorias biológicas e os conceitos marxistas. Entretanto, as ações portuguesas na América

continuavam a ser interpretadas ou como um bem, responsável pela vocação branca e

católica, pela catequese do gentio e pela instituição da cultura civilizada européia no

Brasil; ou como um mal, responsável pelo parasitismo metropolitano, procedimento que

continuou a permear as ex-colônias depois das independências. Os termos da operação

apenas invertiam-se.

Manoel Bomfim, em meados da década de 1920, escreveu O Brasil na América,

livro dedicado à memória de frei Vicente do Salvador, que, segundo o autor, foi o

“primeiro definidor da tradição brasileira”.4 O uso nacionalista da História do Brasil

identificou no livro do franciscano críticas à colonização portuguesa. Ademais, para

Bomfim, frei Vicente, “que não cala verdades a respeito dos reinos do seu tempo”5,

2 CARVALHO, José Murilo de. Brasil: nações imaginadas, pp. 243-244 (grifo nosso). 3 Cf. Idem, p. 243. 4 BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. 5 Idem, p. 89.

Conclusão

200

parece ser portador de uma intenção objetiva, prenúncio da disciplina historiográfica

oitocentista. Concomitantemente, esse uso transformou a História em um meio

privilegiado para, supostamente, apreender a realidade da Colônia, porque vista por um

brasileiro. Ainda de acordo com Manoel Bomfim, frei Vicente do Salvador era “o melhor

espelho da vida colonial no primeiro século do Brasil”.6

A leitura nacionalista e documentalista da História do Brasil foi primeiramente

instituída pelos comentários de Capistrano de Abreu, tanto em sua primeira publicação

completa, no volume 13 dos Anais da Biblioteca Nacional em 1888, como na edição

crítica do livro, de 1918. Para o historiador cearense, a idéia de Brasil, como expressão

histórica e social e não apenas geográfica, teria suas raízes no Seiscentos e frei Vicente

do Salvador teria sido um de seus artífices. Essa perspectiva foi absolutizada pelos

sucessores de Capistrano, transformado em cânone da historiografia brasileira, sobretudo

pela crítica realizada aos escritos produzidos na América portuguesa entre os séculos XVI

e XVIII. Desde então, o frade baiano recebe os epítetos de primeiro historiador brasileiro,

crítico da colonização portuguesa, além do uso, ainda comum, que institui a História

como um reflexo fiel dos acontecimentos seiscentistas.

A operação que levou a tais leituras devia-se à paulatina laicização e à

nacionalização das teorias políticas ao longo do Oitocentos, bem como à ruptura com a

preceptiva retórica, transformada em parte da disciplina literária com fins meramente

estéticos.

Desse modo, nem Capistrano nem seus sucessores teceram comentários mais

profundos à dedicatória da História do Brasil, uma das partes fundamentais da narrativa,

como defendido no segundo capítulo, pois contém passagens que permitem a análise dos

princípios retórico-poéticos que presidiam a confecção dos gêneros historiográficos

seiscentistas. Nesse sentido, esta dissertação assinalou o papel desempenhado pelo

antiquário Manuel Severim de Faria, letrado português que encomendou o livro a frei

Vicente do Salvador, que lho dedica. O antiquário de Évora, que mantinha uma rede de

correspondentes em diversas possessões ultramarinas, era irmão do eminente frei

Cristóvão de Lisboa, custódio dos franciscanos no Maranhão, onde chegou em 1624,

investido também das funções de visitador eclesiástico e comissário do Santo Ofício. Em

6 BOMFIM, Manoel. O Brasil na América, p. 90.

Conclusão

201

1642, Cristóvão de Lisboa foi nomeado bispo do Congo e Angola. No mesmo ano da

chegada do irmão em São Luís, Manuel Severim de Faria publicou os seus Discursos

vários políticos, em que discorre sobre a vida dos três célebres letrados portugueses: João

de Barros, Luís de Camões e Diogo do Couto. Essas vidas, ao fornecerem exemplos de

súditos que colocaram as suas penas a serviço de Deus e do rei, explicitam os preceitos

de composição da ars historica seiscentista, cuja alma, segundo o antiquário, era

composta de verdade, clareza e juízo.

De modo geral, a fortuna crítica da História do Brasil mencionou Manoel

Severim de Faria apenas para tratar da questão relativa à sua impressão, que o antiquário

prometera ao franciscano ao encomendar o livro. Entretanto, como não há vestígios

documentais que possam servir de esteio a argumentos mais elaborados, discorrer mais

amplamente sobre o assunto implicaria em suposições, o que foi evitado. Mais importante

do que a publicação da narrativa do frade baiano, foi o uso conferido às histórias no

mundo cortesão ibérico, o que inclui as autoridades ultramarinas, e a circulação

manuscrita dessas prosas como um gênero de aconselhamento político. Os gêneros

historiográficos no Seiscentos, sempre de acordo com os modelos da preceptiva retórico-

poética, deviam, concomitantemente, ensinar, persuadir e deleitar os leitores ou ouvintes

do discurso.

No que se refere ao primeiro elemento, docere, a concepção ciceroniana de

historia magistra vitae, em uso católico pós-tridentino, manifestou-se pelos exemplos de

bom governo. Na história de frei Vicente do Salvador, destacam-se dois governadores

exemplares: Mem de Sá, no período anterior ao Portugal dos Felipes, que chega ao Brasil

depois da brigas entre o bispo e o governador e funda a cidade do Rio de Janeiro, contra

tamoios e franceses. O outro, já no período da União Ibérica, é D. Francisco Sousa, que

definiu a guerra com o gentio da Paraíba, além de outras muitas boas obras que fez.

Ambos destacam-se pela sua piedade e habilidades militares, duas características

vinculadas, na medida em que as guerras que moviam eram justas, com o objetivo de

expandir a verdadeira fé. Pela narrativa do franciscano, na qual bispos comandam

assaltos a hereges holandeses e santos intercedem a favor de católicos portugueses,

observa-se a unidade das atribuições de governo, ao contrário de uma suposta autonomia

pós-iluminista das esferas política, militar e religiosa.

Conclusão

202

Nesse quadro de unidade teológico-política, em que os fins do império, em última

instância, são transcendentes, a conversão do gentio constitui atribuição primordial do

governo do Brasil e, portanto, perpassa os cinco livros da História do Brasil. Se por um

lado, frei Vicente do Salvador louva as virtudes dos governantes e suas ações, por outro,

prescreve remédios à saúde política do Estado do Brasil. Esses remédios fundamentam-se

sobretudo nos conceitos ético-polílicos aristotélicos e na teologia tomista. Assim, as

tópicas do bom e do mau governo abrangem as virtudes necessárias às autoridades, como

a prudência, a liberalidade, a magnificência e a magnanimidade, além da própria justiça,

da piedade cristã e da concórdia.

Os episódios narrados visavam ainda louvar a ação da ordem de São Francisco e,

nesse sentido, destacam-se a guerra dos potiguares na Paraíba – quando os capuchos

ganharam a sua primeira missão catequética –, a conquista de São Luís aos franceses –

quando também desempenharam importante papel ao substituir os religiosos de França –

e a tomada da cidade da Bahia pelos holandeses. Nesses três episódios, frei Vicente do

Salvador realiza uma ligação entre o rei católico, já na época da União Ibérica, a Igreja

Romana e o Estado do Brasil, em oposição ao gentio, aos holandeses e à heresia luterana.

Nesse sentido, o franciscano emprega diversas analogias com passagens bíblicas, nas

quais o império católico, encabeçado pelo monarca espanhol, ocupa o lugar de Israel,

como reino eleito para a realização dos desígnios divinos neste mundo. O posicionamento

de frei Vicente do Salvador em relação ao passado, ao presente e ao futuro do Estado do

Brasil confirmava os planos da Providência Divina: a propagação da verdadeira fé ao

gentio, completando a missão do apóstolo São Tomé. A História era um dos argumentos

persuasivos – movere – acerca da importância dos missionários franciscanos para a

realização dos desígnios do Senhor.

Por fim, mas não menos importante, a narrativa do frade baiano atendia ao

propósito retórico de delectare. O emprego engenhoso de diversos tropos e figuras –

como na alegoria do caranguejo ou na analogia com a harpa – e do hilari dicendi genus e

de passagens fabulosas, para a fruição dos leitores discretos que saberiam distinguir entre

a fantasia de monstros e homens marinhos – como os goitacazes, que matavam tubarões

com as próprias mãos – encontram-se lado a lado com os testemunhos ocular e auditivo

Conclusão

203

do franciscano ou dos homens de crédito sobre assuntos graves como o governo dessas

partes do império e os milagres operados pelos santos católicos.

A História do Brasil de frei Vicente do Salvador, escrita aproximadamente entre

1619 e 1630, não deve ser tratada de forma incauta como espelho que fornece o reflexo

objetivo da suposta sociedade colonial brasileira, nem como livro – expressão da “gênese

do Brasil” – repleto de lacunas e omissões. Essa suposta carência de base arquivística da

sua narrativa é fruto do juízo instituído pelo cânone capistraniano, imbuído, por sua vez,

dos critérios de validação da disciplina decimonônica. Com efeito, essas perspectivas não

deixam de lado a crença positivista de testemunho neutro, transparente, que prevalece até

hoje, a despeito da consonância da prosa historiográfica de frei Vicente do Salvador aos

princípios retórico-poéticos, ao decoro prescrito a esses subgêneros epidíticos, e às

concepções teológico-políticas do Seiscentos ibérico.

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