Post on 28-May-2020
A Perseverança da Memória nos escombros do Esquecimento: Constituições e
construções históricas do Patrimônio a partir de uma consideração das salas do trono e
do corpo diplomático do Museu Nacional
Mariah Martins
mariah@mn.ufrj.br
MN e HCTE/UFRJ
Jean Felipe de Assis
jeanfelipe@hcte.ufrj.br
UERJ e HCTE/UFRJ
O Museu Nacional, enquanto objeto de reflexões humanísticas, é singular por encerrar
perspectivas históricas, políticas e culturais. A sobrevivência da instituição museológica e
científica na antiga residência imperial coloca a questão memorial em permanente debate,
perpassando a relação entre memórias coletivas e individuais, projetos, e ausência destes, para
construções identitárias, ressignificações e apagamentos de signos. O edifício sede do Museu,
construção palaciana do período imperial e monárquico brasileiro1, por sua monumentalidade
abrigou o museu de história natural pertencente aos impérios português e brasileiro, evocando
símbolos da memória monárquica a participar de novos processos identitários.
O Paço de São Cristóvão, residência imperial, monumento nacional, e patrimônio da
cultura brasileira, remete-nos a intensas reflexões históricas. Em seus caminhos, encontram-se
cenários específicos que avolumam os diálogos acerca da memória. As Salas Históricas do
Museu Nacional impulsionam o movimento memorial, tornando o ir e vir no circuito
expositivo um contínuo restaurar de lembranças e signos. O “museu de ciências”, os
departamentos científicos e os projetos acadêmicos tomam as notícias, as divulgações e
preenchem os documentos oficiais, não obstante, a vista ao palácio e a mirada pelos salões
históricos do Museu, resgatam lembranças encobertas por uma história institucional e política,
assim também práticas administrativas e acadêmicas, permissivas ao esquecimento e
apagamento daquilo que está presente. Destacam-se, atualmente, a Sala do Trono e a Sala do
Corpo Diplomático, como espaços integrados à área expositiva. Locais primordiais de
continuidade da referência palaciana e imperial, pelos vestígios que apresentam, compõem
1 Maria Paula van Biene demonstra em seu trabalho (2013) que o Paço de São Cristóvão possui aspectos
estruturais e estilísticos que o categorizam na tipologia palaciana das construções arquitetônicas. Em sua
proposição apresenta as fases de construção relacionadas aos imperadores reinantes. Assim, durante o período
regencial até o fim do governo de D. João VI, o bloco I e o II são reformados, e o torreão norte construído em
dois pavimentos.
parte de um todo maior de áreas notadamente imperiais (BIENE, 2013). São objetos para uma
avaliação passível de ser ampliada, definindo-se como espaço singular de identificação e
manutenção da memória.
Devem ser destacadas as múltiplas formas de entendimento da memória em suas
funções intelectivas, psicológicas e sociais. Evidenciam-se, ao longo das tradições ocidentais,
investigações que consideram as relações perceptuais sensíveis como princípios de ordenação
e causas necessárias para o entendimento, mas também características intelectivas a permitir
retenções, recordações e reconhecimentos2. Trata-se de um tema epistemológico caríssimo e
de grandes repercussões, investigado e avaliado constantemente ao longo do tempo. De fato, a
perseverança da memória nos desenvolvimentos teóricos e práticos reflete uma batalha árdua
contra diversos meios de esquecimento nas constituições históricas particulares. Avaliar-se-ão
algumas teorias relevantes sobre a memória para avaliarmos os meios pelos quais os
patrimônios históricos nacionais, representados pelas salas do trono e do corpo diplomático
do Museu Nacional, foram constituídos preteritamente e se constituem em nosso presente.
Observa-se, portanto, que a memória não se limita a uma capacidade mental de coleta de
informações; as dimensões sociais e históricas perpassam o humano em suas percepções, em
seus sentidos, nas variadas formas de idealismos e idealizações (OLICK, 1998: 377-387;
BOYER, 2009: 3-28; RENAN, 1997: 158-162)3. Diante deste quadro conceitual, evoca-se a
árdua tarefa de uma coletividade a superar o esquecimento de projetos institucionais, políticos
e nacionais ao se estudar as salas destacadas do Museu Nacional e as facetas da memória.
Entre os Caminhos da Memória: Identidade, Sociedade e Materialidade
2 Posições bastante comuns a perpassar diversas tradições sucintamente mencionadas no desenvolvimento desta
apresentação sobre a memória em suas características cognitivas e sociais. As controvérsias em torno dos
sentidos e da intelecção suscitam uma variedade de debates. Há paralelos, continuidades e dissociações.
Desenvolvem-se as posições platônicas, aristotélicas e agostinianas; o problema da evidência e a segurança dos
dados relativos à memória em que se distinguem imaginação, memória e fantasia, mesmo que elas sejam
impossíveis de serem desassociadas, nas considerações de René Descartes e David Hume; além de implicações
contemporâneas destas discussões nos debates epistemológicos e cognitivos. 3 As formas de vivências particulares em grupos sociais específicos integram a formação de heranças culturais
em constante transformação. Para Olick, "Uma sinergia peculiar entre Nação e memória" é sempre pensada
mediante as formas de identificação individual e coletiva, evitando particularismos e generalizações. Deste
modo, as interfaces entre coletividade e seus modos de identificação reunidos na memória são nuances de
processos de conscientização histórica. Carecem-se, portanto, de rememorações e esquecimentos para agregar e
“fundir” diferentes populações e interesses em conflito.
Abordagens multidisciplinares contemporâneas reanimam antigos debates e atualizam
ideias relevantes presentes ao longo dos discursos intelectuais sobre a memória desde a
antiguidade. Por um lado, temas de destaque são reconsiderados nas possibilidades
epistemológicas da apreensão sensível, do conhecimento a partir dos dados percebidos, do
reconhecimento de si e das interfaces da coletividade4; nas considerações éticas em que as
identidades pessoais e sociais são avaliadas por meio de seus laços culturais e institucionais
nas diversas camadas das constituições sociais em que dever, responsabilidade e a busca pelo
bem viver são articulados5; nas associações entre as teorias da mente e as experiências
estéticas em que relações impossíveis de serem racionalmente articuladas, em todas as suas
implicações e seus processos de causalidades, expressam atos individuais e coletivos na
interface entre história, estórias e memória6. Por outro lado, necessidades específicas de
algumas áreas de atuação ou de grupos particulares exigem abordagens a inter-relacionar
variadas áreas do conhecimento7, e.g., investigações sobre a cognição8, associações entre
neurociências e mente9, abordagens a pensar a coletividade e o social curso (BARASHA,
2016: 60-71; PENNEBAKER e GONZALES, 2009: 171-193)10. Em nosso estudo particular
4A imprescindibilidade da memória para o estabelecimento do saber, sua sistematização e o armazenamento de
dados é complementada por questões sobre a justificação das evidências ou dos processos racionais, o
estabelecimento das crenças para o saber e a precisão dos dados obtidos pela memória (ANNIS, 1980: 324–333;
SHOEMAKER, 1967: 265–274). 5 Práticas decorrentes de interesses políticos e sociais impulsionam estudos de memória coletiva em que
indivíduos se associam e interagem em múltiplas performances (ROEDINGER e ABEL, 2015: 359–361). 6 Tentativas de promover uma educação estética a integrar memórias individuais e coletivas permitem articular
variadas formas de identificação em que a performances artísticas conectem experiências subjetivas, realidades
históricas e necessidades políticas (ZATZMAN, 2005:95-103). 7 Destacam-se os desenvolvimentos da neurociência, as investigações psicológicas, os estudos sobre a cognição e
as investigações sociais, históricas e culturais. Cogitam-se não abordagens específicas para a memória, mas um
campo disciplinar e científico particular que conjugue dados quantitativos e qualitativos. (ROEDINGER e
WERTSCH, 2008: 9-22; SEGESTEN e WÜSTENBERG, 2016: 474-489). 8 Cognição humana e memória são pensadas conjuntamente desde a antiguidade, perpassando manifestações
míticas e históricas sem abordagens metodológicas específicas. HERRMANN e CHAFFIN, 1988:5-7. Todavia,
ao longo das transições filosóficas, epistemologia, cognição e memória são estudadas amiúde, e.g., Agostinho,
Descartes, Hume, Kant. Recentemente, as mediações entre mente individual e o meio em que o humano se situa
ganharam destaque (ADAMS e AIZAWA, 2008:1-15; RUPERT, 2009:242-244). Por um racionalismo crítico, as
divergências nestas posições apontam para uma posição mediadora nas constituições sensíveis da intuição entre
a mente, apreensão e cognição, inclusive ao rejeitarem extensões cognitivas ao ambiente e determinações
biológicas no corpo humano (MENARY, 2010: 1-26). 9 Com os avanços dos diversos estudos cerebrais e neurológicos, a memória é vista por abordagens distintas ao
longo do tempo, à luz de novas evidências (SQUIRE, 2009: 12711–12716). 10 As associações entre cultura, sociedade, história e memória são variadas e constantemente investigadas. A
multiplicidade de meios pelos quais a memória de um povo se estabelece e se articula nas variadas constituições
de uma cultura, propiciam comunicações simbólicas variadas em contextos históricos específicos, os quais
podem ser investigados por suas identificações públicas e individuais. Nossas memórias, portanto, não se
sobre o patrimônio histórico a utilizar duas salas históricas do Museu Nacional, enfatizam-se
as características individuais e coletivas da memória, tanto a promover processos de
identificação e reconhecimento pessoais, mas também na constituição da coletividade
nacional alicerçada nas variadas marcas arquitetônicas e artísticas nas salas do Trono e dos
Diplomatas. Nas interfaces entre saber, fluir estético e prática histórica, ponderações sobre a
memória propiciam reflexões perenes para o entendimento humano mediante constantes
reconsiderações.
As perenes investigações entre memória, cognição e saber devem ser complementados
em suas características práticas, as quais interconectam subjetividade e social. Alguns
desenvolvimentos atuais se fazem presentes desde os debates antigos, especialmente nas
discussões decorrentes da academia e retidos nas variadas tradições platônicas e
aristotélicas11. Conforme atesta Ferrater Mora, os debates em torno da memória na história da
Filosofia perpassam características que se associam a uma capacidade, uma disposição, uma
faculdade a possuir funções epistemológicas relacionadas ao reconhecimento, a recordação e
a crença12. Após avaliar as justificativas lógicas, as propostas de representação, os realismos
imediatos e o ceticismo às justificativas para a relação entre memória e saber, Sydney
Shoemaker assevera a necessidade de diferenciar a memória ostensiva, estipulada mediante
evidências, e a memória verídica, relacionada a fatos ocorridos (SHOEMAKER, 1967: 265-
274; BERNECKER, 2009: 24-30)13. Destas recapitulações necessárias nas tradições do
resumem a retratar com fidelidade um passado, mas nossas presentes atualizações e tradições a partir das quais é
possível criar um sentido de coletividade, transformando indivíduos e o processo histórico em curso. 11 De fato, as interconexões entre o sensível e o inteligível, entre objetos passíveis de serem apreendidos pelos
sentidos e os eide platônicos são entendidos à luz da anamnesis.. Além de suas implicações epistemológicas, são
deduzidas propostas sobre a imortalidade da alma, mas também sobre o bem e o agir humano em comunidade.
Aristóteles, ao estipular de maneira ainda mais clara as distinções entre memória e reminiscência, enfatiza que a
memória não é uma sensação ou um conceito, mas um estado de atualizações para aquele que se recorda.
(ARISTÓTELES, 2007: 25-29; KING, 2009: 20-22; BLOCH, 2007: 58-71). Santo Agostinho ao investigar a
coexistência do passado, do presente e do futuro na alma, afirma que o presente das coisas passadas é memória
(Conf. XI. 20). Articulando tempo, sensibilidade, subjetividade e memória, o bispo de Hipona promove uma
investigação introspectiva, pois a memória não se resume a uma mera faculdade de si, mas traz nela mesma
todas as possibilidades do humano se conhecer e bem viver (MARION, 2008: 69-100). 12 No verbete em seu famoso dicionário, o filósofo catalão enfatiza as relações com as correntes antigas,
medievais, moderna e contemporâneas, salientando de início a distinção entre a ação de recordar e as atividades
da memória. Destaca os modos pelos quais os problemas decorrentes das investigações a respeito da memória se
associam às ideias, em seu sentido metafísico, mas também as discussões decorrentes das bases psicofísicas,
racionais e das semânticas lógicas (FERRATER MORA, 2004: 2357-58). 13 Tais problemas são significativos para os estudos históricos e jurídicos em particular, merecem maior atenção
em espaços específicos de reflexão, nos quais certeza e evidência devem ser discutidas pelas bases de inferência,
pensamento filosófico, as dimensões pragmáticas da memória se tornam imprescindíveis,
mesmo diante da impossibilidade da existência de uma relação causal objetiva entre os modos
de apreensão, representação e atuação das experiências pela memória. As funções sociais da
memória, portanto, não se restringem a “uma literal reprodução”, mas ocorrem em
desconstruções e algumas “reconstruções moderadas”, as quais são mediadas em
circunstâncias e contextos específicos14.
Devem ser lembradas também as recorrentes críticas às capacidades da memória e
suas funções para o estabelecimento de um saber seguro. Descartes se utiliza de experimentos
biológicos para tentar desvendar as bases da imaginação e da memória, acreditando que esta
seria recorrência das impressões deixadas pelas sensações no cérebro15. De maneira similar
aos antigos, pensadores modernos enfrentam as nuances presentes nas investigações
filosóficas sobre o intelecto, a imaginação, as sensações e a memória. Hume, em seu Treatise
of Human Nature, preocupa-se fortemente em distinguir entre ideias relativas à memória e
aquelas associadas à imaginação: as primeiras repetem as impressões recebidas; as últimas
perdem a vivacidade (HUME, 2003: I.I.3). Deste modo, para Hume a memória possui maior
vigor para a retenção dos dados sensíveis do que a imaginação. Acrescenta ainda que a
memória preserva formas originais em que os objetos são apresentados, enquanto a
imaginação não se restringe a este princípio de manutenção (HUME, 2003: I.III.5). Tais
distinções, “fenomênicas” e “formais”, permitem uma separação entre as opiniões, as ideias e
as bases rigorosas da crença e do saber16. Não é possível olvidar que as transformações
científicas e os novos métodos de abordagem dos problemas epistemológicos que estes
autores tradicionais consideraram permeiam as considerações culturais e políticas presentes
nas formações dos Estados Nacionais europeus. Entre memórias, esquecimentos e
imaginações históricas, os projetos nacionais perpassam diferentes manifestações estéticas e
meios de obtenção de dados, a formação de conceitos e uma discussão profunda sobre a subjetividade e a
intersubjetividade. 14 Contextos, interesses, usos e práticas possuem relação direta com os modos pelos quais a memória deve atuar
em casos particulares, visto que: “the level of authenticity with which memories must reproduce (or represent)
past contents is, to some extent, dependent on the conversational context in which the memory state is employed”
(BERNECKER. 2008: 169-170). 15 Evidentemente que tais pressuposições conduzem o pensador francês a suspeitar das bases seguras pelas quais
ele poderia assegurar a veracidade dos dados da memória, visto que os dados sensíveis podem conduzir a um
julgamento equivocado da razão (CLARKE, 2005: 99-100). 16 Um sentido positivo do ceticismo de Hume, não apenas em críticas às afirmações que não consideram suas
próprias bases para os princípios de causalidade (FLAGE, 1984:168-188).
culturais a promoverem uma unidade política necessária em meio às inúmeras transformações
sociais iniciadas desde o Medievo (ANDERSON, 2006)17.
Sem nenhuma pretensão em delinear uma solução definitiva para os inumeráveis
problemas que as investigações sobre a memória suscitaram ao longo do tempo, deseja-se
avaliar os modos pelos quais artifícios da memória permitem identificações culturais
mediante processos cognitivos, epistemológicos, estéticos e éticos à luz das transformações
históricas ocorridas no Museu Nacional. Conforme atestado ao longo desta sucinta exposição,
as memórias individuais e coletivas são essenciais nas constituições históricas particulares,
seja na promoção de heranças culturais, no compartilhar de valores ou na formação social de
grupos específicos. Estudos recentes articulam investigações neurológicas, cognitivas e
históricas em constituições formais e simbólicas particulares. Ao se-significarem problemas
filosóficos antigos em nossos contextos contemporâneos, tais desenvolvimentos nos permitem
avaliar nossas tradições intelectuais à luz de nossas realidades material e cultural. A
multiplicidade de mídias e de meios pelos quais os humanos se articulam, permitem variadas
formas de entendimento das memórias individuais e coletivas na promoção do saber e das
atuações político-sociais. Na área limítrofe entre as possibilidades e os limites do
entendimento, as faces da memória devem promover nossas tradições e também possibilitar
um olhar crítico para as bases de sustentação das mesmas. Conforme nos ensina este breve
panorama, ao mesmo tempo em que a memória nos auxilia em nossa busca por conhecimento
e reconhecimento, ela também pode nos conduzir a imagens errôneas, bases equívocas e
inferências enganosas. Nossas instituições de ensino e de cultura devem promover espaços
nos quais nossas heranças culturais, nossos anseios sociais, nossas ações políticas e nossas
investigações intelectuais floresçam harmonicamente. O estudo das salas históricas do Museu
Nacional é de grande valia ao viabilizar uma materialidade das transformações históricas,
institucionais e intelectuais do país. Serão apresentados aspectos e elementos que introduzem
o debate acima exposto a partir do exemplar das conhecidamente salas históricas do Museu
Nacional, Sala do Trono e Sala dos Diplomatas, refletindo conhecimentos históricos,
iconográficos e documentais, já desenvolvidos em outros estudos, objetivando demarcar
17 De fato, as origens da consciência nacional possuem heranças múltiplas em diversas camadas perpassadas
pelas ações e conscientizações históricas, as quais perpassam constantes situações políticas específicas e
necessidades de resgatar meios de identificação e agregação na criação de tradições culturais e manifestações
nacionais.
possibilidades na relação entre a memória e o patrimônio cultural pelos caminhos da história
política e institucional brasileira, em especial, às construções e usos na antiga residência
imperial e atual Museu Nacional.
As Ruínas do Patrimônio e a Identidade Nacional: Salas do Trono e do Corpo
Diplomático
A Sala do Trono e a Sala dos Diplomatas18 constituem dois salões contíguos no 2º
pavimento do Torreão Norte, no Paço de São Cristóvão. Estes espaços se caracterizam por seu
valor histórico avultado primordialmente pela arte decorativa que seus tetos e paredes
possuem. As salas históricas foram retratadas nos relatos de viajantes19, comuns ao século
XIX, tornando-se singulares registros de características materiais e de usos da época.
Detinham as funções de recepção das autoridades e lugar para rituais da época, e.g., como o
beija-mão20. Na busca pelo entendimento sobre o Paço de São Cristóvão e o Museu Nacional,
e sobre os processos memoriais e de identidade passíveis de desenvolvimento juntamente a
eles, trataremos da análise acerca dos espaços, em sua materialidade, significações, históricos
e hábitos, relacionando as perspectivas entre as Salas Históricas, o local em que se situam, e a
integralidade do edifício.
Salas e salões decorados minuciosamente são característicos de palácios da
modernidade. Construções grandiosas e decorações opulentas compunham os signos daqueles
que detinham o mais alto status de governo (ELIAS, 2001). Características tradicionais nos
estados modernos europeus foram partilhadas nos territórios de colonização e expansão. O
Paço de São Cristóvão, residência real e imperial no Brasil, em estilo neoclássico, caracteriza-
se pela simetria em seus volumes, harmonia também observada nas esquadrias (portas e
janelas) das fachadas e nos pavimentos, em seus 21 metros de altura e 74 de largura (BIENE,
2013: 125).
18 A sala tem recebido os nomes de sala do Corpo Diplomático, dos Diplomatas, e ainda dos Embaixadores. 19 Ver notas 30, 31 e 33. 20 O “ritual do beija-mão” foi cerimonial comum aos reinados portugueses que estabeleciam um espaço de
aproximação física entre o rei e seus súditos. Neste contato o rei fica em seu trono recebendo visitas e pedidos,
acompanhados da prática de beijar a mão do imperador e da imperatriz (SCHWARCZ, 1998).
O Paço de São Cristóvão se configura arquitetonicamente em quatro blocos, sendo o
primeiro o maior deles, caracterizado pela existência de dois torreões localizados em cada
uma das laterais na parte frontal. Os quatro blocos, constituídos por 3 pavimentos, um deles
térreo e dois superiores, se posicionam ao redor de um jardim interno. Além disso, o palácio
possui um jardim lateral, de movimentos históricos, conhecidamente por ser área privada de
sociabilidade familiar da juventude imperial (DANTAS, 2007: 173-180).
Simetria, horizontalidade e volumetria,
aspectos da composição de uma arquitetura palaciana, são facilmente identificados na fachada
frontal do palácio. Há um equilíbrio entre as alas laterais da construção, observado pelo
número de esquadrias e pelo estabelecimento dos torreões, repetidos em cada lado. Harmonia
ainda encontrada na comparação entre os pavimentos, que apresentam formações semelhantes
e o alinhamento dos elementos entre eles, contudo há detalhamento específico ao conjunto de
itens a cada pavimento. O detalhe de capitéis jônicos em todo 2º pavimento na fachada
frontal, como os elementos em estilo dórico no 3º pavimento, assim como as cantarias,
somente utilizadas no 1º pavimento (térreo), estabelecem a horizontalidade estilística na
composição arquitetônica do edifício. A fachada frontal também apresenta aspectos da
volumetria a ser avaliada, onde se tem a parte central destacada, e os torreões em maior
destaque, compondo o movimento da fachada frontal (BIENE, 2013: 126-131).
FIGURA 2: Paço de São Cristóvão: blocos
(térreo). Fonte: BIENE, 2013: p.13 FIGURA 1: Paço de São Cristóvão:
visão superior. Fonte: Google Maps.
FIGURA 3: Paço de São Cristóvão: Fachada Frontal. Fonte: BIENE, 2013: 127.
Caracterizado por detalhamentos decorativos, alguns mais expostos, outros apenas
com partes de seu estilo visível, o bloco I, construção frontal, é compreendida como área
nobre do Paço. Seu grau de preservação, notadamente da época imperial, permitiram aos
pesquisadores compreenderem sua importância tanto para a arquitetura palaciana, quanto aos
usos da residência, situando o maior número de salões (DANTAS, 2007).
Vislumbra-se que em um futuro não muito distante o Museu Nacional possua um
circuito histórico de característica expositiva, caminho que dialogue diretamente com os
espaços notadamente imperiais assim também com os símbolos existentes no palácio,
atualmente encobertos ou desconhecidos. Para isso é necessário o detalhamento do plano de
restauração, do qual parte importante da pesquisa para seu desenvolvimento ocorrerá nos
próximos meses, com a abertura de mais de 100 janelas de prospecção estratigráfica nas
paredes e tetos das salas do palácio, permitindo a melhor identificação de funções e usos
espaciais pelos períodos de ocupação, conhecendo estilos decorativos das salas históricas,
possibilidades de restaurações e sua manutenção, assim como a viabilidade ao espaço
expositivo. Tudo isso, além de aprofundar a grandiosidade do espaço museal que o Paço de
São Cristóvão agrega, será fulcral para um novo processo memorial ao visitante do museu, em
sua dimensão cidadã: ao adentrar nos espaços imperiais, lugar de memória nacional, partilha-
se de uma imersão em símbolos e simbologias, por meio das cores, imagens, formas e relevos
que a pintura decorativa das salas históricas imperiais revelam.
O Torreão Norte, onde estão localizadas as salas históricas analisadas neste estudo,
integra o segundo momento de ampliação da residência, entre os anos 1819 e 1821. Por si só
esta ala possui singular história nas referências da implementação de um projeto de palácio,
nas transformações e nos interesses familiares, assim como na própria relação entre o Museu
Nacional e o Paço de São Cristóvão. Foi uma das primeiras áreas palacianas construídas e
posteriormente foi área de singulares intervenções21. Logo após sua construção a área foi
ocupada pelos cômodos privados da Imperatriz Leopoldina22. D. Pedro II, enquanto regente,
foi responsável pela significativa intervenção no Paço de São Cristóvão, a partir das obras de
unidade estilística do edifício e de ampliação dos pavimentos23. A concepção das Salas
Históricas do Torreão Norte ocorre também durante as ações do período de D Pedro II,
caracterizando ainda como um dos poucos remanescentes integrais de períodos monárquicos.
Figuras 4 e 5: Paço de São Cristóvão em 1822 e 1831. Debret.24
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/48132289746447780
21 A existência do projeto arquitetônico com elementos que compunham um palácio, no período de D. João VI,
denotam a projeção de ampliação e desenvolvimento da antiga casa senhorial do comerciante Elias Antonio
Lopes para uma residência imperial. Além das reformas no bloco central existente, o Torreão Norte se
estabeleceu como acréscimo singular na primeira fase de profunda extensão e caracterização do novo centro de
representatividade imperial, a partir dali sediado no Brasil. Os registros indicam que a área recebeu a Imperatriz
Leopoldina em possível período de distanciamento do marido D. Pedro I, e, posteriormente as salas do Trono e
dos Diplomatas, a biblioteca, gabinete de ciências e observatório astronômico do D. Pedro II (DANTAS, 2007).
Além disso, toda fachada do Torreão recebeu tratamento estilístico para compor a unidade do projeto
arquitetônico integral do Paço. 22 Maria Graham (1785-1842), escritora inglesa, foi preceptora da princesa D. Maria da Glória no Brasil, durante
alguns anos da década de 1820. Os escritos “Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante
parte dos anos 1821, 1822, 1823” são considerados registros singulares das práticas na residência imperial no
país, assim como de características do próprio palácio e do cotidiano em seus espaços. Graham relata a
localização de seu apartamento no sótão superior aos aposentos da Imperatriz Leopoldina. Juntamente aos
registros iconográficos considera-se que o Torreão Norte era a ala ocupada pela Imperatriz e a preceptora. 23 A construção do Torreão Sul, em D. Pedro I, se caracterizou por certo ecletismo diante da distinção de estilos
que os dois torreões estabeleceram, aspecto registrado apenas em pinturas (Figura 5). 24 DEBRET, 1940, 4 desenho da prancha 20, Melhoramentos sucessivos do Palácio de São Cristóvão (Quinta da
Boa Vista) de 1808 a 1831.
Figura 6: Palácio Imperial de São Cristóvão. Revert Henry Klumb, 1860.
Fonte: CORRÊA DO LAGO, 2008.
O estabelecimento da Assembleia Constituinte Republicana25 no Paço de São
Cristóvão a partir de 1890, apesar das diversas ações de descaracterização do ambiente
residencial da Família Imperial, não atingiu da mesma maneira o espaço nobre do Torreão
Norte, especificamente as Salas Históricas, do Trono e dos Diplomatas. A preservação das
pinturas das salas históricas, objetos neste estudo, propõem reflexão aos interessados pela
existência de contínuo distanciamento26 dos símbolos monárquicos após a nova ocupação no
palácio, com a proclamação da República brasileira, a partir de 1889. Poucos esforços são
necessários para se identificar ali símbolos imperiais que forneciam significados ao espaço, ao
mesmo tempo em que construíam mensagens positivas e egrégias acerca do poder político
anterior. Todavia, a escolha de mantê-los, inclusive de assumir a notoriedade da área,
estabelecendo no espaço a sala de reuniões da Congregação do Museu Nacional e Salão
Nobre da instituição, fornece-nos algumas ponderações, dentre as quais a ressignificação de
símbolos pictóricos, processo comum às práticas culturais, além do processo educacional que
a memória estabelece, onde é necessário o “treinamento dos olhos” para se dignificar os
significados existentes.
O caminhar aqui apresentado remete ao processo primordial da memória, em suas
facetas de identificação, ressignificação e ausência de sentido. Estabelece-se que a relação
25 O Paço de São Cristóvão foi cenário do leilão dos objetos da Família Imperial que permaneceram no edifício,
promovido pelo Governo Provisório durante os meses a novembro de 1890. Posteriormente estabeleceu-se o
Congresso Nacional Constituinte, com o funcionamento da Assembleia no pátio interno central. Em três meses a
primeira constituição republicana brasileira estava publicada. Para o funcionamento da Assembleia construiu-se
uma cúpula para fechamento da cobertura do pátio, anteriormente aberto. Todavia, já na ocupação do Museu
Nacional, a cúpula foi retirada com a justificativa de promover riscos à integridade do imóvel (DANTAS, 2007). 26 O distanciamento não é físico, se dá acerca dos significados e identificações. Não se propagava o uso imperial
dos símbolos e dos espaços. O significante e o significado que compõem um signo se estabelecem por lógicas
distintas, a forma que um signo toma pode estar mais ou menos relacionada ao entendimento que ele possui. As
mudanças que sofrem, apesar da influência que estabelecem mutuamente, não caracteriza homogeneidade
(GONÇALVES, 2002).
entre presenças e ausências está para além da materialidade, já que a invisibilidade de
significação incide na sensibilidade, podendo ocasionar uma quase inexistência de signos em
sua presença física num determinado espaço, por momentos e não em sua completude. O uso
da Sala do Trono, espaço dominado por símbolos imperiais, sem significativas intervenções
estilísticas, pelo conselho supremo do Museu Nacional, e anteriormente pelo Governo
Republicano, remete a possíveis apreensões que vão desde a ressignificação de símbolos,
aproveitamento de signos pictóricos, e o esvaziamento de significados. Ali conviveram
símbolos notadamente imperiais, símbolos clássicos e organismos de poder institucional27.
Poucos são os registros que nos permitem assumir com fidedigna certeza a localização
e características da Sala do Trono dos primeiros imperadores, D. João VI e D. Pedro I. Não
obstante alguns registros como pinturas de Jean Baptiste Debret28, e Manuel de Araújo Porto
Alegre29, reconhecidamente retratos de estado30, assim como descrições bibliográficas de
viajantes, compostas por narrativas do cotidiano e do uso dos ambientes, como produzido por
Maria Graham, se não definem as ocupações iniciais em sua completude, ao menos
contribuem na certeza de que as intervenções arquitetônicas no Paço de São Cristóvão durante
a regência de D. Pedro II, de maior vulto e posteriormente melhor preservadas, são as
evidências genuínas sobre os programas histórico e memorial nacional que predominam na
materialidade espacial das salas e que permaneceram até os dias atuais.
Mario Bragaldi, pintor e arquiteto italiano, foi o responsável pela execução das atuais
salas do Trono e dos Diplomatas. Contudo, data de 1857 um projeto não executado para estas
salas. Uma planta baixa do palácio, parte do acervo do Arquivo Noronha Santos do IPHAN31,
27 Relatório anual de 1919, do Diretor Bruno Lobo, informa sobre o uso da Sala do Trono para sessões da
Congregação do Museu Nacional. 28 Debret (1768-1848) foi pintor e professor, nascido em França, e fundador da Escola de Artes e Ofícios do
Império em 1816, antecedente da Academia Imperial de Belas Artes. É responsável por diversos registros acerca
do Brasil, incluindo a obra Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, volumes publicados durante a década de
1830. O pintor francês produziu a obra Retrato de D. João VI, que compõem o acervo do Museu Nacional de
Belas Artes, apresentando a figura do Imperador no ambiente oficial, a sala do trono. 29 Porto Alegre (1806-1879), pintor brasileiro, teve Debret como mestre na Academia Imperial de Belas Artes, e
desenvolveu diversas atividades no campo político, comunicacional, artístico e das letras no Brasil. Araújo Porto
Alegre produz o Retrato de D. Pedro I no Paço, pertencente ao acervo do Museu Histórico Nacional, seguindo as
métricas de retratos solenes, e mantendo vistas e posicionamentos semelhantes à iconografia do imperador
anterior. Porto Alegre coordenou as reformas no Paço de São Cristóvão entre 1841 e 1859 para intervenção no
bloco central e equiparação de pavimentos entre os dois torreões. 30 Peter Burke (2004 e 2009) refere-se à prática de representar retoricamente a imagem de governantes oficiais.
Há itens comuns a estes retratos solenes que garantem a compreensão das figuras de poder. 31 Ref. ANS 05028.
identifica a atual Sala do Trono como Sala do Trono Provisória. O mesmo projeto previa um
amplo salão no Bloco I, lado Sul, atualmente Sala de exposição do Egito Antigo, como a sala
definitiva para o trono. Não é encontrada indicação na planta do futuro local da Sala dos
Diplomatas, este ambiente por ser de uso contíguo à primeira, deveria ser transferido também
(BIENE, 2013: 260).
Compondo um conjunto de salões caracterizados por apresentar o maior número de
resquícios do palácio imperial, a Sala do Trono e a Sala dos Diplomatas não passaram pelo
processo de cobertura das pinturas decorativas em suas paredes e teto, conforme a quase
totalidade dos cômodos. Destaca-se o tipo de pintura trompe-l'oeil que por meio de técnicas
de sombra, luz e perspectiva, apresenta uma pintura ilusionista com relevo aparente. Há
poucos exemplares deste tipo de tipologia de pintura mural no Brasil. As duas salas, apesar de
configurarem ornamentações distintas, possuem elementos e estilos próximos que dialogam32.
A Sala do Trono, local de representação de poder, detém ornamentação de maior
monumentalidade, das paredes ao teto, com douramentos, brasões, coroas, e figuras clássicas,
representantes das virtudes esperadas por um monarca (DANTAS, 2007: 110). A Sala dos
Diplomatas, conseguinte, área de recepção e encontro antecedente às práticas representativas
da sala do Trono, caracteriza-se pelas representações dos continentes e províncias nacionais
no teto. Espalhadas repetidamente nos dois espaços estão as insígnias "PII" ou "P2",
representando o monarca que se estabelecia naquele palácio.
32 Os elementos compositivos da decoração em pintura mural da Sala do Trono remete aos estilos Luís XIV, que
objetivava a monumentalidade por meio dos materiais escolhidos. São molduras espessas que pesam o ambiente
e dividem a área. O uso pigmentação dourada, junto a complementação do espaço com nichos, colunas e
molduras compõem a estética para efeito monumental. A roseta central no teto mais claro da sala dos Diplomatas
segue a ornamentação do Estilo Luís XIV em sua segunda versão. As salas também podem ter sua decoração
atribuída ao estilo Regência, que dá continuidade a elementos de Luís XIV com variação de maior liberdade,
assim como o estilo Luís XV e a aproximação ao rocaille, largamente explorado pelo rococó. In: DUCHER, R.
Características dos estilos. Editora Martins Fontes, 1992.
Figuras 7 e 8: Sala do Trono. Museu Nacional
Figuras 9 e 10: Sala dos Diplomatas. Museu Nacional.
O Imperador Pedro II foi responsável pela maior parte dos vestígios do período do
palácio residencial existentes no Paço de São Cristóvão. Enquanto único Imperador nascido
em terras brasileiras, investido antes de sua maioridade, D. Pedro II empreendeu singulares
modificações na residência símbolo de sua representatividade. Unificou o estilo neoclássico
da fachada, ampliou os torreões, dedicando também espaços de valorização do conhecimento,
como seu museu particular, sua biblioteca e o observatório astronômico (DANTAS, 2007:
190). Abaixo dele localizou as salas representativas do poder central e das relações políticas
estrangeiras e nacionais, por meio das salas do Trono e dos Diplomatas. O caminhar entre o
interior residencial e as áreas externas palacianas demonstra que a memória está viva e pronta
para ser conservada. Das salas históricas às portas de entrada, as iniciais PII recebem o
visitante. O passeio pelo grande jardim frontal leva ao anfitrião, posicionado para receber
aqueles que queiram adentrar num passeio pela história e a memória nacionais.
Há perdas irreversíveis no palácio, não apenas pelo descuido corrente, mas
principalmente pela necessidade de mudanças que se estabeleceram ao longo dos mais de dois
séculos de existência da construção. As ruínas tendem a estabelecer uma relação direta com a
destruição e a decadência, contudo, a consideração premente de que toda formação se dá
diante de um processo de escolha, onde há perdas e o próprio esquecimento é dinâmica
fundamental, inclusive para construções históricas e memoriais, a ruína pode ser evocada por
seu caráter de perda natural, resultante da passagem do tempo, e mantenedora de seu valor de
antiguidade. A existência das ruínas possibilita a preservação. Os escombros, partes que se
desagregam em formação disforme e ininteligível, podem ser evitados e devem ser
conhecidos. O esquecimento inevitável, mas por vezes compelido, não deve ser, ele mesmo,
esquecido, desconhecido e ignorado. Há que se atentar para sua existência, para as funções
que ocupa e ainda para os efeitos que induz.
Não se pode esquecer que a memória deve ser preservada. Não se deve permitir que as
ruínas se aprofundem quando há possibilidades de controle, assim como não se pode ignorar o
que se perde juntamente às mudanças, à passagem do tempo, e às perdas materiais. As Salas
Históricas do Museu Nacional se fazem presentes, assim como seus símbolos. Em diálogo
constante com a construção do Palácio e sua história, estes espaços são exemplares para a
memória e para a identidade nacional que se constroem, esquecem, perdem, ressignificam,
edificam, e dignificam. Nas dificuldades encontradas na contemporaneidade, reavivar a
memória social aparentemente adormecida em algumas áreas internas do Paço de São
Cristóvão, Museu Nacional, é fundamental. A história que germina a partir daqueles limites
amplia-se em pavimentos, espaços de ciências, jardins, até encontrar a imagem do imperador
brasileiro que desejou marcar a colina de São Cristóvão na história do país.
As reflexões engendradas por essas páginas introduzem perspectivas aprofundadas por
algumas pesquisas (DANTAS, 2007; BIENE, 2013; SILVA, 2017). Sem almejar delações, há
hoje usos anacrônicos da defesa do Patrimônio Cultural e sua preservação. A salvaguarda da
memória social e do patrimônio cultural se dá pelas reflexões conceituais e pelas práticas
sócio-culturais vigentes, na busca por compreender os desafios, propor soluções e viabilizar a
aplicabilidade de planejamentos de extrema complexidade. Os debates estimulados aqui
devem compor as atividades cotidianas dos grupos atuantes no campo cultural, que
necessitam compreender sua participação nas construções da coletividade nacional,
reconhecendo ainda a relação entre as individualidades e as referências coletivas da memória.
Espaços de ensino e cultura devem se abrir ao diálogo comunitário, se tornando extensões dos
ambientes comuns, contudo não se pode ausentar do estímulo para que entusiasmos
particulares, demandas sociais e responsabilidades institucionais possam desenvolver
colaborativamente valores e fascínios da cultura humana.
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