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A Regulação das Sociedades e a Regulação Monetária
25.05.2017
José Conde Rodrigues, ISCTE BUSINESS SCHOOL
“As decisões que afectam o futuro (…) não podem depender apenas da expectativa matemática, pois não há base para fazer tais cálculos; (…) aquilo que mantém as coisas em andamento é a nossa propensão para a actividade, os nossos eus racionais a escolherem (…) mas a deixarem-se levar muitas
vezes pelo capricho, a emoção ou o acaso”
John Maynard Keynes
“A dificuldade não está nas ideias novas, está em
escapar às ideias antigas”
John Maynard Keynes
“Não, eles não podem tocar-me por cunhar moeda, eu sou o próprio rei”
William Shakespeare
1. Introdução
Começarei este seminário com uma referência à última crise global (2007/2011),
tentando apresentar uma hipótese para a sua explicação.
Depois, antes mesmo de fazer uma breve caracterização do sistema financeiro,
abordando as suas funções e tipologia, com realce para o seu papel
fundamental, enquanto pilar do desenvolvimento das economias, revisitarei as
noções de regulação e governação das sociedades comerciais em regime
aberto.
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Por fim, mas não menos importante, procurarei caracterizar o mercado de
capitais e os diversos modelos de supervisão.
A seguir à caracterização do mercado de capitais e da sua regulação,
apresentar-vos-ei algumas conclusões sobre as atuais tendências na regulação
europeia do sistema monetário e financeiro.
1.1. A última Crise Global
A crise dos suprimes (empréstimos imobiliários a famílias de escassos recursos)
iniciou-se nos USA em 2007. Alcançado o pico da bolha, as casas estabilizam e
iniciam a baixa. A oferta é muito alargada e faz equilibrar o preço: acabou a alta
em contínuo. Entretanto: sai a cavalaria: passada a fase inicial, os mutuários são
incapazes de pagar as prestações. O sistema americano é muito rápido: as casas
são penhoradas e vendidas, fazendo baixar os preços. Em pouco tempo, dois
milhões de agregados perdem a habitação, a qual vem aumentar a oferta.
Seguem-se os especuladores. Confrontados com a perda resultante da baixa do
imobiliário, os especuladores pagam juros sem retorno. O roll over torna-se
mais difícil. Pode arrendar a casa: mas as rendas são pouco convidativas,
iniciando uma baixa. Se estiver atento, vai vender quanto antes, fazendo baixar
novamente os preços. Além disso: as dificuldades de refinanciamento levam
alguns especuladores ao incumprimento, à penhora e a vendas de baixo preço.
Finalmente, os hedges: em princípio, não têm problemas. Mas ficam
underwater, logo que a baixa do imobiliário os deixe sem cobertura patrimonial.
Basta que a crise se agrave, que se perca o emprego ou que certas colocações
mobiliárias corram mal para que os próprios primes sucumbam: novas quebras,
nova pressão da oferta, novas baixas e assim por diante. Falou-se numa quebra
de 40% do imobiliário: uma cifra astronómica de riqueza, que despareceu em
meses, atingindo cada família.
A crise do imobiliário passou, mas foram vários os bancos. companhias de
seguros, fundos de investimento, comprados, nacionalizados, intervencionados,
quer nos USA, quer na Europa desde então.
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A crise, do imobiliário, passou à banca e desta ao mercado de capitais e
monetário e deste à dívida dos países (dívida soberana) e desta às intervenções
da troika.
Enfim, tudo o que conhecemos pela história diária dos últimos anos. Uma crise
financeira, a que se somou uma crise monetária, desembocando numa crise
económica e mesmo de solvabilidade de alguns Estados (recorde-se o caso da
Islândia).
1.2. Uma explicação para a crise
Como foi possível? Como foi possível chegar a outra crise depois, de 1929,
1997, 2001?
Hyman Minsky, apresentou em 1992, a sua hipótese de instabilidade financeira
que, entre muitas outras explicações e justificações possíveis, poderá ajudar.
Partindo do “véu keynesiano”. Cabe recordar que, pelo crédito, se compra hoje
o dinheiro de amanhã. A complexidade crescente das estruturas financeiras
confere um papel criativo ao crédito: o banqueiro, como qualquer outro
operador, recebe lucros por via da inovação. O dinheiro não é neutro,
interferindo, com a sua circulação, no valor dos bens e no crédito assente na
expectativa de lucros futuros, el promove esses próprio lucros podendo, perante
eles articular-se de modo distinto.
Minsky aponta três modelos de relação rendimento/ crédito:
- financiamento fechado (hedge):
- financiamento especulativo (speculative);
- financiamento em pirâmide (ponzi)
No financiamento fechado, o devedor pode, como seus rendimentos próprios,
pagar todas as suas obrigações contratuais e, designadamente: o capital e os
juros.
No financiamento especulativo, o devedor pode pagar os juros; mas não o
capital. Terá de haver roll over: a dívida é renegociada e renovada no seu termo,
o que assegura, enquanto for possível, a sustentabilidade do esquema. O
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especulador pode, ainda, obter lucro com a venda do investimento, caso este
tenha valorizado.
No financiamento em pirâmide, o devedor não pode pagar nem o capital, nem
os juros todos. Logo, ele tem de se endividar nova e crescentemente, para
manter a situação. Tal só é possível num ambiente em que a massa disponível
para empréstimos vá aumentando.
Ora, a hipótese de Minsky ilustra bem a situação dos últimos anos. Ilustra bem a
crise dos subprimes e, mais latamente, a bolha total, isto é, a crise global a que
chegámos.
Tudo porque, os mercados atuam tendo por base decisões humanas individuais
e coletivas, onde os famosos animal spirits, de falava Keynes, estão sempre
presentes. Com efeito, se, individualmente, como ensina a doutrina clássica, os
agentes económicos tendem a agir racionalmente, a verdade é que, quando o
comportamento atinge situações massificadas, como acontece hoje nas
economias, formam-se “bolhas” especulativas, cuja irracionalidade gera
desequilíbrio financeiro. Mais ainda, a decisão financeira nestas circunstâncias é
reflexiva, produzindo os resultados não desejados.
2. Regulação e Supervisão: A resposta do Direito
É para fazer face a crises como a atrás descrita que o Direito se afirma, quer
através da atuação dos Estados, quer de Organizações Internacionais e outras
instituições públicas ou privadas.
Perante as crises, perante a natural exuberância dos mercados, como lhe
chamou Alan Greenspan, surge a reação jurídico-institucional. Não, hoje em dia,
para acabar com o mercado e as suas regras concorrenciais, mas para tentar
organizar essa concorrência, dar-lhe algum sentido ou ordem perante o
interesse público da sociedade.
Não por acaso, também, ter sido na Alemanha do pós-guerra que muitos destes
conceitos se desenvolveram em torno de um conjunto de ideias que se passou
a designar de ordoliberalismo. Uma economia com regras. Uma economia social
de mercado, como a designa a Constituição de 1949.
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Ora, com o regresso da crise, o tema da regulação económica, incluindo o tema
do governo das sociedades, ganhou renovada importância e atualidade,
porventura inesperadas para os mais distraídos, face a estas realidades ou
tendências de evolução da economia internacional.
Refiro-me, naturalmente aos elementos sistémicos da crise do sistema
financeiro internacional iniciada em 2007 e cujas consequências ainda estão
presentes entre nós.
Essa crise tem suscitado uma renovação da discussão e dos processos de
regulação económica, numa ótica alargada e integrada, quer ao plano nacional,
regional e, mesmo, global.
E por regulação podemos entender, o desenvolvimento de processos jurídicos
de intervenção indireta na atividade económica produtiva- indireta, porque
exclui a participação pública direta na atividade empresarial – incorporando
algum tipo de condicionamento ou coordenação daquela atividade e das
condições do seu exercício, procurando garantir o funcionamento equilibrado
dessa mesma atividade em função de determinados objetivos públicos.
3. A governação das sociedades anónimas abertas
3. 1. Conceito e caracterização de governação das sociedades
Já o governo das sociedades, ou na terminologia anglo-saxónica, corporate governance, pode ser entendido como o conjunto de estruturas de autoridade
e de fiscalização do exercício dessa autoridade, internas e externas, tendo por
objetivo assegurar que as sociedades estabeleçam e concretizem, eficaz e
eficientemente, atividades e relações contratuais consentâneas com os fins
privados para que foi criada e é mantida e as responsabilidades sociais que
estão subjacentes à sua existência.
Ou, dito de outro modo, o enquadramento do governo das sociedades deve
assegurar a gestão estratégica da empresa, um acompanhamento e fiscalização
eficazes da gestão pelo órgão de administração e a responsabilização do órgão
de administração perante a empresa e os seus acionistas, ou ainda perante os
seus diversos stakeholders.
Em suma, os administradores deverão atuar baseados em informações
completas, bem fundamentadas, de boa-fé, com diligência, de forma
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responsável e com a precaução adequada, sempre no melhor interesse doa
acionistas.
Naturalmente que, a importância, quer da atividade regulatória quer da
supervisão é tanto mais decisiva quanto maiores forem as empresas e mais
aberta for a sua estrutura acionista (atuando no mercado de capitais).
É por isso que se torna importante olhar também para o sistema monetário
financeiro e a sua relação com a corporate finance, com o mercado de valores
mobiliários e com a própria estrutura e regulação desse mesmo sistema
monetário e financeiro.
3.2. Objetivos da governação das sociedades
- Equidade no tratamento dos diversos stakeholders, reforço dos direitos dos
acionistas, a proteção dos trabalhadores, credores e outras partes interessadas;
- Transparência da gestão;
- Promoção da eficiência e competitividade das sociedades;
- Criar confiança nos mercados de capitais;
- Desenvolver o alinhamento de interesse na organização;
- Accountability (prestação de contas, responsabilidade e KPIs);
- Fomentar a estabilidade financeira e o crescimento económico;
- Sustentabilidade e responsabilidade social e ambiental.
3.3. Principais modelos de governação das sociedades
3.3.1. Modelo anglo- saxónico
- Propriedade dispersa;
- Investidores institucionais;
- Grandes acionistas;
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- Mercados grandes e líquidos
Problema:
- Proteção dos acionistas face aos gestores;
- Grande discricionariedade dos gestores
3.3.2. Modelo continental
- Propriedade concentrada (famílias, bancos, empresas);
- Mercados estreitos e ilíquidos
Problema:
- Proteção dos pequenos e anónimos acionistas;
- Poder dos acionistas preponderantes ou de referência.
3.4. Recomendações da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários para a o
governação das sociedades
- Divulgação de informação clara e completa;
- Inexistência de restrições ao direito de voto e representação de acionistas;
- Sistemas de controlo interno e externo (grande relevo para a qualidade da
auditoria);
- Inexistência de cláusulas de defensivas que provoquem erosão do património
da sociedade;
- Pluralidade de membros do Órgão de Administração;
- Comissões do Órgão de Administração;
- Divulgação da remuneração do Órgão de Administração;
- Membros independentes da Comissão de Remunerações;
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- Aprovação de planos de atribuição de ações ou opções em A. Geral.
4. A Regulação e Supervisão do sistema monetário e financeiro
4.1. Caracterização do sistema financeiro
O sistema financeiro é um dos pilares do desenvolvimento económico das
sociedades: por um lado, as empresas optam por determinados projetos de
investimento e formas de assegurar o respetivo financiamento e, por outro, os
consumidores tomam decisões sobre a afetação do seu rendimento disponível
entre poupança e consumo.
As instituições financeiras desempenham um papel determinante ao
assegurarem o funcionamento dos sistemas de pagamentos e liquidação,
permitindo ainda o desenvolvimento de uma variedade de produtos financeiros
que facilitam as transações.
Ao mobilizar os fundos dos aforradores, canalizando-os para o sector produtivo,
o sistema financeiro possibilita a transferência de recursos económicos no
tempo e no espaço, entre sectores, facilitando também por esta via a gestão de
riscos através da diversificação.
Tipicamente, podemos distinguir entre dois tipos de sistemas financeiros –
aqueles assentes no sistema bancário, os casos da Alemanha, Japão e França, ou
os sistemas mais dependentes dos mercados de capitais, como o EUA e o Reino
Unido.
Podemos ainda identificar três segmentos, outrora bem distintos – o bancário
(que aceita depósitos e concede empréstimos), o segurador (que garante um
pagamento em caso de ocorrência de uma determinada contingência) e o
financeiro (permite o acesso direto ao mercado).
No entanto, a fronteira de delimitação entre eles tem-se vindo a esbater,
fundamentalmente devido a um processo de integração de natureza
tecnológica, geográfica e funcional.
O facto de se assistir à progressiva integração destes segmentos ao nível de
instituições, instrumentos e mercados, originou situações que, de futuro, terão
de ser evitadas.
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Por um lado, a gestão de muitas destas instituições financeiras manteve-se fiel
aos seus princípios tradicionais, não acautelando devidamente os riscos
inerentes a uma exposição mais global, provocando por vezes situações de
rotura como foram o caso do Barings e Lehman Brothers, no sector bancário ou
da Lloyds e a AIG no sector segurador. Ou, recentemente, entre nós, BPN, BPP e
BES.
Por outro lado, com a crescente integração dos mercados financeiros,
nomeadamente as diversas tentativas de alianças entre bolsas de valores no
espaço Europeu, as fusões e aquisições entre bancos, empresas financeiras e
seguradoras, mesmo além-fronteiras, aumentou a dificuldade em manter a
regulamentação e a supervisão a um nível nacional.
4.2. A Regulação Monetária e Financeira
Estes desenvolvimentos de produtos, serviços e mercados têm sido
acompanhados, ao longo do tempo, pela regulação e pela supervisão.
i) Objetivos
Um objetivo fundamental é a prevenção do risco sistémico, ou seja, do risco de
ocorrência de um evento não antecipado, imprevisto, repentino, que afete o
sistema financeiro de tal forma que acarrete repercussões significativas na
economia real.
É o caso da insolvência de operadores importantes no sistema financeiro, um
choque político, falhas de natureza tecnológica nos sistemas de pagamentos ou
ainda a imposição de controlos em importantes centros financeiros.
Como exemplos recentes, podemos referir os fatídicos acontecimentos do dia
11 de Setembro de 2001, ou a já aludida crise do subprime de 2007/2008 ou,
ainda, a situação de instabilidade vivida na Argentina nos anos noventa e que
abalou todo o seu sistema financeiro, assistindo-se a uma corrida aos bancos
para levantamento de depósitos e a imposição de medidas fortemente
restritivas por parte do governo.
Com efeito, existência de um vasto sistema de controlo e auditoria justifica-se
pelo papel essencial que a acumulação de capital e a alocação de recursos
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financeiros assumem no processo de desenvolvimento económico e pelas
particularidades da atividade de intermediação financeira e dos operadores que
a exercem.
De facto, a regulação do sistema financeiro poderá ser encarada como um caso
particularmente importante de controlo público sobre a economia, em que a
intervenção do Estado é justificada através de argumentos relacionados com a
necessidade de corrigir imperfeições e falhas do mercado, em busca de uma
distribuição “justa” e eficiente de recursos.
O sistema financeiro também está sujeito a risco sistemático por via dos
mercados de capitais, uma vez que as bolsas, ao transacionarem ativos cada vez
mais elaborados e complexos, fazem com que os intermediários financeiros
fiquem mais dependentes desses mercados para gerir a sua exposição ao risco
e obter o seu funding.
Este fenómeno, aliás, está bem espelhado na tendência crescente de
securitização dos ativos dos bancos.
Nesta perspetiva, os problemas de liquidez no mercado de capitais poderão
com alguma facilidade contagiar o sistema bancário, principalmente os bancos
de investimento.
Os bancos comerciais estarão mais protegidos já que a maior parte dos seus
recursos são obtidos através de depósitos de clientes.
A proteção dos consumidores é outro objetivo clássico da regulamentação
financeira.
Mas proteção contra quê? Contra preços excessivos e comportamento
oportunista por intermediários financeiros.
Nesta medida, uma política adequada de concorrência deverá ser uma
prioridade, não só para proteger os consumidores de preços monopolistas mas
também para procurar que as forças de mercado fomentem a eficiência dentro
do sector financeiro e entre este e o resto da economia.
Uma outra questão diretamente associada à proteção dos consumidores é a da
existência de assimetrias de informação em prejuízo dos consumidores.
Estes, ao avaliar os serviços financeiros, são vulneráveis à seleção adversa
(possibilidade de escolher uma empresa incompetente ou desonesta) e ao risco
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moral (possibilidade de que o intermediário financeiro coloque os seus próprios
interesses à frente dos interesses do consumidor).
Para enfrentar estas questões, os reguladores geralmente submetem as
entidades financeiras a testes de “fit and proper” como forma de estabelecer ex-ante a sua qualidade. Numa perspetiva ex-post, espera-se que a imposição de
sanções incentive as empresas a cumprir as regras estabelecidas.
Os requisitos de disclosure, a estandardização das práticas contabilísticas, o
encorajamento de desenvolvimento de agências de rating, são outras medidas
que contribuem para minorar os efeitos da assimetria de informação. Incentivar
a eficiência do sistema financeiro é o outro objetivo primordial da regulação.
Esta deverá procurar minimizar as barreiras à entrada na indústria de serviços
financeiros e estimular a concorrência; implicará a existência de regras para
controlar a estrutura e competição dos mercados; ao nível micro, deverá existir
regulamentação relativa a concentrações, cartéis e abuso de posição dominante.
É importante ter presente que a confiança é um fator crítico de sucesso para a
operacionalidade dos mercados financeiros, pelo que deve transparecer que os
próprios mercados e as instituições que nele participam agem de acordo com
regras e procedimentos que são transparentes e colocam os interesses do
cliente em primeiro lugar.
ii) Tipos de regulação
Estes objetivos são concretizados utilizando dois tipos distintos de
regulamentação, que poderemos designar de regulação prudencial e regulação
comportamental.
A regulação prudencial está relacionada com preocupações de solvência e
solidez financeira das instituições intervenientes. É necessária para minorar os
efeitos de imperfeições na informação ao consumidor e problemas de agência
associados à natureza do negócio das instituições financeiras.
A regulação comportamental está associada à forma como é conduzido o
negócio pelas instituições financeiras junto dos seus clientes. Abrange temas
como a divulgação obrigatória de informação, honestidade e integridade da
empresa e dos seus empregados, competência e forma de comercialização dos
produtos. Estes dois tipos de regulação podem ser implementados de formas
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muito distintas, com implicações organizacionais importantes, nomeadamente
ao nível da supervisão.
iii) Modelos de supervisão
Irei agora apresentar, de forma muito sintética, três possíveis modelos de
supervisão.
a) Supervisão Institucional
Um primeiro modelo, mais tradicional, é o da supervisão institucional, adequado
a sistemas financeiros onde haja uma clara distinção entre os três segmentos de
mercado – o bancário, financeiro e segurador - e onde cada operador exerça a
sua atividade em apenas um destes segmentos.
A supervisão é efetuada por segmento de mercado, a que corresponde uma
autoridade de supervisão distinta e que monitoriza todas as vertentes da
atividade do intermediário financeiro, abrangendo desde os processos de
seleção de entrada, à sua atividade propriamente dita (controlo, inspeções e
sanções) e até às eventuais saídas do sistema financeiro.
i)Vantagens
Como principais vantagens, poderemos referir o facto de facilitar o controlo
efetivo dos supervisionados, permitir um elevado grau de especialização da
autoridade de supervisão no segmento de mercado respetivo, destacando-se
ainda o facto de evitar a duplicação de controlos e de os custos de supervisão
serem reduzidos.
ii) Desvantagens
No entanto, face à tendência atual de diversificação de atividades nos vários
segmentos, a crescente integração de mercados e instrumentos e a emergência
de grandes conglomerados financeiros, a sua implementação é difícil.
Por outro lado, como a supervisão pretende abarcar toda a atividade dos
operadores financeiros, a mesma pode originar conflitos entre os variados
objetivos a que se propõe.
a) Supervisão por Objetivos
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A supervisão por objetivos é um outro modelo em que as autoridades de
supervisão não se concentram nos segmentos de mercado mas sim nos
objetivos da própria regulamentação.
Desta forma, todos os intermediários e mercados seriam sujeitos ao controle de
mais do que uma autoridade, independentemente da sua natureza jurídica, das
atividades ou funções que desempenhem.
Isto significaria que uma autoridade, que não o Banco Central, seria responsável
pela regulamentação prudencial e estabilidade microeconómica dos mercados e
seus intermediários, independentemente de serem bancos, financeiras ou
seguradoras, outra autoridade iria supervisionar a transparência e
comportamento desses intervenientes junto dos clientes e uma terceira
entidade iria salvaguardar a competição em todo o mercado financeiro e entre
intermediários.
i) Vantagens
Este modelo é particularmente eficaz num contexto de mercados muito
integrados e na presença de operadores multifuncionais, conglomerados e
grupos a operar em diferentes áreas de atividade, para além de permitir uma
regulação uniforme para entidades distintas mas que desempenham as mesmas
atividades.
ii) Desvantagens
Tem, no entanto, algumas desvantagens.
Por um lado, poderá induzir ou à duplicação ou à falta de determinados
controlos se as áreas de responsabilidade não forem corretamente delimitadas
e, por outro lado, como cada intermediário está sujeito ao controle de mais do
que uma autoridade, os custos associados à supervisão tenderão a ser elevados.
No entanto, esta segregação de funções não se aplica a todo o sistema
financeiro mas apenas aos serviços financeiros.
c) Supervisão com um único regulador
Por fim, temos o modelo de supervisão com um único regulador.
Baseia-se na existência de uma única autoridade de controlo, separada do
Banco Central, com responsabilidade em todos os mercados e intermediários, e
com funções que abrangem todos os objetivos da regulamentação, desde a
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estabilidade do sistema financeiro, transparência, proteção do consumidor ou
eficiência dos mercados.
i) Vantagens
As vantagens mais imediatas são os benefícios decorrentes das economias de
escala assim obtidas, o facto de permitir à autoridade ter uma visão unificada,
integrada e global da realidade do sistema financeiro, ao mesmo tempo que
reduz a possibilidade de arbitragem “regulatória”.
ii) Desvantagens
O reverso da medalha será o facto de o sucesso deste modelo estar fortemente
dependente dum elevado grau de organização interna, de estruturação e de
coordenação por forma a não ser moroso o processo de decisão.
Haverá ainda a considerar os problemas relacionados com objectivos
conflituosos de regulação, como seja o trade off entre competição e
estabilidade.
É interessante constatar que este modelo já esteve presente na fase inicial da
regulação do sistema financeiro, papel desempenhado muitas vezes pelo Banco
Central.
Em face da globalização e integração de mercados, o Reino Unido, por exemplo,
recuperou este modelo com a criação do Financial Services Authority, fundindo
as anteriores entidades de supervisão.
Na União Europeia, apenas os países nórdicos (em particular a Dinamarca e a
Suécia) e, recentemente, o referido Reino Unido, adotaram o modelo de um
único supervisor.
Noutras situações, o Banco Central é muitas vezes responsável pela supervisão
bancária, apesar de existirem países em que essa tarefa é atribuída a uma
agência separada – casos da Áustria, Alemanha, Luxemburgo, Finlândia e
parcialmente da França.
Por outro lado, o sector financeiro é fortemente regulamentado na maioria dos
países, com legislação específica e sob a alçada de agências governamentais
separadas, o mesmo sucedendo com o sector segurador.
Assim, poderemos concluir pela coexistência de versões “mix” mas com o
predomínio do tradicional modelo de Supervisão Institucional.
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4. 3. Mercado de capitais
4.3.1. Caracterização do mercado de capitais
O mercado de capitais apresenta-se como um mecanismo vital para o
crescimento, desenvolvimento e reforço das economias de mercado,
viabilizando as iniciativas das empresas e financiando a exploração de novas
ideias.
As suas funções são semelhantes às que já foram referidas para o sistema
financeiro.
Saliente-se, no entanto, a particularidade de permitir avaliar, agregar, e
disseminar nova informação através dos preços financeiros, possibilitando aos
agentes económicos uma mais eficiente tomada de decisões.
Dados disponibilizados pela International Federation of Stock Exchanges permitem verificar que, nos últimos anos, o peso da capitalização bolsista no PIB
tem tido um crescimento sustentado em países como os EUA e o Reino Unido,
mas também noutros com uma menor tradição do mercado de capitais, como a
França e a Alemanha.
No entanto, estes dados não deixam transparecer a grande disparidade, em
valores absolutos, entre a capitalização bolsista dos EUA e nos restantes países.
Ao longo dos tempos existiram períodos de estagnação ou retrocesso no
desenvolvimento dos mercados de capitais devido à introdução de legislação
restritiva como reacção a situações de instabilidade e especulação.
Os primeiros exemplos significativos remontam ao século XVII, o caso da bolha
especulativa Tulips bubble, que ocorreu entre 1620 e 1637 na Holanda, ou ao
século XVIII, mais precisamente no ano de 1720 - palco da South Sea bubble.
A título de curiosidade, de referir que a queda vertiginosa dos preços da South Sea Company terá levado Sir Isaac Newton, a afirmar: I can calculate the motions of the heavenly bodies but not the madness of people” (depois de ele
próprio ter sido prejudicado pela especulação).
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Estes acontecimentos originaram reações oficiais e legislativas contundentes e
que impediram o desenvolvimento dos mercados de capitais por um longo
período de tempo. O mesmo sucedeu entre a II Guerra Mundial e a década de
oitenta, com mais ou menos oscilações.
No entanto, as abordagens à regulamentação financeira têm-se vindo a
modificar. Embora a proteção do investidor permaneça como um dos objetivos
fundamentais da regulação, assistiu-se à emergência da preocupação com a
eficiência em detrimento da estabilidade.
Assim, durante as décadas de 80 e 90 e na maior parte dos países ocidentais, o
sector financeiro foi sendo progressivamente desregulamentado. Portugal não
foi exceção e em 1991 foi promulgado o Código do Mercado de Valores
Mobiliários, reformulado em 1999, em 2009 e 2013, 2014 e já em 2015, para
uma abordagem mais flexível, simplificada e moderna, dos mercados de valores
mobiliários.
Este movimento foi acompanhado por uma consciencialização crescente da
importância que os mercados financeiros desempenham na economia e
também da limitação que determinado tipo de regulamentação pode impor no
desempenho das suas funções.
4.3. 2. A Regulação do Mercado de Capitais
Hoje em dia, os reguladores estão particularmente atentos às falhas do
mercado e estabelecem objetivos a alcançar com a regulação que, nas suas
grandes linhas, são comuns às intenções subjacentes à regulamentação dos
sistemas financeiros.
Destacarei os aspetos mais específicos do mercado de capitais:
a) Evitar Riscos sistémicos
A já referida preocupação com o risco sistémico é um dos principais objetivos e
princípios da regulação dos mercados de capitais e tem subjacente a existência
de uma falha de mercado, geralmente uma externalidade, com impacto ao nível
da economia.
Ora, o risco sistémico é o risco do colapso do sistema financeiro, ou do colapso
de pelo menos uma parte importante do sistema financeiro e não apenas de
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uma ou duas instituições financeiras, com implicações negativas significativas
para a economia do país.
A globalização aumentou a importância do risco sistémico porque veio alargar o conjunto de fatores que podem dar origem ao risco sistémico; este risco passou a poder resultar não só de problemas internos ao país mas também de acontecimentos vindos do exterior, como assistimos nos últimos anos com a referida crise do subprime ou a ainda atual, crise da divida soberana. A principal razão que justifica a regulação das instituições financeiras é o risco sistémico. No entanto, pese embora esta justificação, apenas uma parte da regulação financeira implementada até a data foi especificamente desenhada para fazer face a certas formas de risco sistémico. É o caso do seguro de depósitos e da chamada função de “lender of last resort” (emprestador de último recurso) exercida pelos bancos centrais. Muitas outras regulações, como sejam por exemplo os Acordos de Basileia sobre o capital dos bancos, não foram desenhadas a pensar na importância relativa de cada banco para o risco sistémico. Em resultado, na prática as instituições financeiras não estavam a ser reguladas em função da sua importância ou contribuição para o risco sistémico. Esta deficiência facilitou a prossecução de estratégias e modelos de negócio assentes na tomada de risco, com as consequências que todos conhecemos. Várias das alterações que estão a ser consideradas à regulação do sistema financeiro na Europa e nos Estados Unidos visam incorporar de forma mais explícita o risco sistémico. É cedo para avaliar estas tentativas, dado que elas ainda estão em curso, mas
subsistem duas preocupações fundamentais: os sistemas de pagamentos e de
liquidação, e a liquidez dos mercados.
Por exemplo, se o vendedor de um ativo financeiro não estiver em condições de
proceder à entrega do título, pode provocar um efeito dominó noutras
transações.
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Este efeito de contágio poderá ser agravado se estiver implementado um
sistema de netting que, apesar de diminuir a necessidade de afetar um colateral
a cada pagamento, vai aumentar a interdependência entre várias transações.
Por outro lado, ainda, podemos sublinhar o facto de estes sistemas de
pagamento e liquidação possuírem características de monopólios naturais, com
substanciais economias de escala, pelo que a maioria dos países tem apenas
uma organização de settlement para o mesmo tipo de ativos financeiros.
Em caso de falhas nesse sistema, seriam de esperar severas repercussões
macroeconómicas.
Ora, a regulamentação pode minorar estes efeitos através de medidas
concretas, como sejam a regulamentação prudencial, fazendo uma triagem dos
agentes autorizados a participar nos sistemas de pagamento e liquidação, a
introdução do recurso a créditos temporários, suprindo impossibilidades
momentâneas de cumprimento dos contratos ou ainda encontrar formas de
reduzir o intervalo de tempo em que os brokers estão sujeitos à exposição a
este tipo de riscos.
Nesta matéria, é premente existir uma cooperação à escala internacional.
De facto, a globalização dos fluxos de capital faz com que distúrbios nos
sistemas de pagamentos de um país rapidamente afetem outros países (veja-se
o que se passa atualmente com a dívida da Grécia).
Por outro lado, a coexistência de sistemas de pagamentos e liquidação distintos
entre países origina ciclos de settlement diferentes, agravando os efeitos e a
probabilidade de ocorrência do risco sistémico.
A regulamentação terá ainda de ponderar o risco de induzir comportamentos
de moral hazzard, que resultam do facto de os investidores se sentirem seguros
e aumentarem a sua propensão para assumir riscos, aumentando por esta via a
probabilidade de incorrer em risco sistémico.
Associado à questão do risco sistémico, temos de considerar a liquidez do
mercado.
Tipicamente, os investidores preferem intervir no mercado quando há mais
liquidez e um agente económico, ao contribuir para uma maior liquidez faz com
que todos os agentes fiquem melhor.
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No entanto, ao transacionar no mercado e incrementar a sua liquidez, os
agentes não incorporam o benefício agregado que provocam e, nesta
perspetiva, a liquidez constitui uma externalidade positiva.
No entanto, também se verifica o efeito contrário: se a liquidez falta, o agente
económico tende a desaparecer rapidamente, pelo que, em cenário de crise, o
custo de fornecer liquidez deverá aumentar. É nesta medida que a liquidez tem
associada uma potencial falha de mercado, fonte de risco sistemático.
b) A eficiência do mercado
Um outro objetivo da regulamentação é a eficiência.
Nas palavras da International Organization of Securities Commissions (IOSCO), a
regulamentação deverá assegurar “that markets are fair, efficient and
transparent”.
A prossecução deste objetivo está diretamente relacionado com questões
transversais e atualmente muito debatidas. A assimetria da informação é uma
delas.
Ao negociar no mercado de capitais, o investidor enfrenta a possibilidade de a
outra contraparte estar mais bem informada, o que constitui um desincentivo a
investir.
Há assim um fenómeno de adverse selection que irá diminuir o bem-estar de
todos os investidores e que funciona como um custo de transação.
Um exemplo que ilustra bem esta situação é o caso das ofertas públicas iniciais,
onde claramente a assimetria de informação é substancial: o vendedor das
ações está em vantagem face ao comprador, que não tem pontos de referência
de valorização de mercado daqueles títulos.
Por outro lado, o oferente tem incentivo a colocar o preço o mais alto possível
de forma a maximizar o encaixe obtido com a operação, o que leva a que os
potenciais compradores desconfiem da valorização apresentada pelos
primeiros.
Neste caso, um banco de investimento atua como intermediário, produzindo
uma avaliação externa com mais credibilidade, uma vez que tem uma reputação
a defender.
20
Esta reputação alivia o problema da assimetria de informação. Noutros casos, a
reputação pode ser menos eficaz e os argumentos de intervenção externa são
substanciais.
É a situação particular do insider trading. As medidas introduzidas impedem os
detentores de informação privilegiada de intervirem no mercado, forçando-os a
revelar as suas transações. Estas medidas visam reduzir a assimetria de
informação e restaurar a confiança no mercado.
A problemática da assimetria de informação está também intimamente ligada à
confiança, sentimento que é consensualmente considerado como crucial para o
bom funcionamento dos mercados de capitais.
No entanto, no contexto de regulamentação, é importante distinguir entre a
confiança do investidor no mercado e num determinado intermediário
financeiro.
A preocupação do regulador é com a confiança depositada na infraestrutura do
mercado, ou seja, saber se a transação decorre conforme indicado pelo
investidor.
A confiança do investidor num intermediário financeiro específico é uma outra
questão. Não se trata de um problema económico, desde que seja circunscrito a
esse intermediário.
Só a partir do momento em que contagia outros agentes e reduz a confiança
dos investidores em geral é que estaremos perante uma externalidade que
justifica a existência de regulação específica.
Um outro aspeto que a regulamentação deverá acautelar é a promoção da
concorrência.
Os mercados de capitais estão particularmente expostos a tendências de
concentração devido aos seus baixos custos de transação (tais como custos de
transporte ou legais) e à existência de outras regulamentações que podem
aumentar as barreiras à entrada e reduzir a concorrência.
Como exemplo, temos os testes de “fit and proper” que, se por um lado,
procuram aferir da qualidade do intermediário e combater a assimetria de
informação, por outro constituem uma barreira à entrada.
21
Por fim, referirei apenas mais um exemplo de regulação necessária para
incentivar a eficiência do mercado, que é um caso clássico de dilema do
prisioneiro.
Os participantes no mercado de capitais estariam melhor se todos seguissem
elevados padrões éticos. No entanto, muitas vezes eles têm fortes incentivos
para quebrar esse comportamento, desde que todos os outros o mantenham.
Sem regulação, poderia acontecer que muitos participantes efetivamente não
atuassem de acordo com os referidos padrões e todos acabariam por ficar pior.
Haverá uma falha de mercado se os incentivos dos participantes no mercado
não estiverem em sintonia (sejam bolsas, brokers, grandes investidores ou
empresas), o que dificilmente acontece uma vez que não podem coordenar as
suas ações.
c) Proteção do Investidor
O terceiro grande objetivo da regulação é a proteção do investidor.
Em geral, uma forma eficiente de proteger os investidores no mercado de
capitais é garantir que a formação de preços é, ela própria, o mais eficiente
possível, incorporando toda a informação disponível e que há concorrência
suficiente entre traders, brokers e outros participantes do mercado. Isso traduz-
se em medidas que reduzam custos de transação e barreiras à entrada,
garantam mecanismos eficientes de trading e introduzam políticas anti-trust.
4.3.3 Tipos de Regulação
Quanto aos tipos de regulação, podemos identificar fundamentalmente dois
tipos de regulamentação: a regulamentação pelo governo e a autorregulação.
Relativamente à primeira, podemos distinguir genericamente três níveis: os
Acordos Supranacionais, subjacentes, por exemplo à Organização Mundial do
Comércio ou à União Europeia, as leis nacionais e as agências governamentais,
que são corpos legislativos onde se podem delegar a especificação de leis.
No que respeita à autorregulação, são igualmente três as distinções mais
comuns:
22
• Regras definidas por Self Regulatory Organizations (SRO): é o caso das bolsas
de valores mobiliários que são incumbidas de supervisionar o mercado,
identificando insider trading, manipulação de preços ou outro tipo de condutas
danosas;
• Outra possibilidade de auto regulação decorre de organizações da própria
indústria e que definem regras de práticas aceites nessa mesma indústria. É o
caso de regras de conduta dos intermediários financeiros (brokers), definidas
pelas suas próprias organizações representativas.
• Por último, poderão ainda existir regras adotadas por uma única empresa,
possivelmente com significativo poder de mercado.
A autorregulação é feita por entidades com uma maior proximidade ao
mercado, pelo que é mais flexível e sensível às alterações que nele ocorrem.
O próprio sancionamento é eficaz, pois implica perca de reputação no mesmo
mercado. No entanto, apresenta algumas desvantagens, de que se destaca o
facto de apenas se aplicar a membros uma vez que se trata dum sistema
assente numa adesão voluntária. Isso não invalida que as normas definidas
sejam muitas vezes adotadas por toda a indústria (soft law).
5. O atual modelo de regulação e supervisão em Portugal
Se a supervisão tem o intuito de garantir a estabilidade e a solidez do sistema financeiro e a eficiência do seu funcionamento, a regulação pretende prevenir o risco sistémico, ou seja, a possibilidade de ocorrência de um evento não antecipado ou repentino que possa afetar o sistema financeiro como um todo. O facto de existir um conjunto de normas e regulamentos implica o controlo da sua observância pelas instituições financeiras a elas sujeitas e, desta forma, garantir a confiança no sistema financeiro. O Sistema Financeiro Português assenta num modelo de Supervisão Institucional com uma clara distinção entre os três segmentos de mercado existentes - o bancário, o financeiro e o segurador. O atual modelo de Supervisão do Sistema Financeiro Português está dividido da seguinte forma:
23
O Modelo de Supervisão Português Autoridade de supervisão
Comissão do Mercado de Valores Mobiliários
Banco de Portugal
Autoridade de Seguros e Pensões
Âmbito de supervisão
Mercados de valores mobiliários e instrumentos financeiros derivados de atividade dos agentes que neles atuam
Instituições de crédito e Sociedades financeiras
Atividade seguradora e resseguradora
Segmento de mercado
Financeiro Bancário Segurador
Supervisão Horizontal Supervisão Vertical
Supervisão Vertical
O modelo de Supervisão do Sistema Financeiro Português atualmente em vigor encontra-se em fase de revisão, estando prevista a sua evolução para um modelo com apenas duas autoridades de supervisão – Modelo Twin Peaks. 6. Sistema Europeu de Supervisão Financeira (SESF)
O Sistema Europeu de Supervisão Financeira (SESF) foi criado sob a forma de um sistema descentralizado e multiestratificado de autoridades micro e macro - prudenciais, a fim de garantir a consistência e coerência da supervisão financeira na UE.
Na sequência da introdução de uma união bancária, o sistema de supervisão é presentemente objeto de importantes alterações.
6.1. Contexto e objetivos
O relatório Larosière, elaborado em 2009 a pedido da Comissão Europeia,
recomendou a criação de um Sistema Europeu de Supervisão Financeira (SESF)
sob a forma de uma rede descentralizada.
24
Esta proposta resultou na criação de um sistema de supervisão micro e macro -
prudencial composto por supervisores europeus e nacionais.
A nível europeu, o pilar micro - prudencial é constituído pela Autoridade
Bancária Europeia (EBA), a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos
Mercados (ESMA) e a Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões
Complementares de Reforma (EIOPA), que colaboram no quadro do Comité
Conjunto das Autoridades Europeias de Supervisão (ESA).
A supervisão macro - prudencial é exercida pelo Comité Europeu do Risco
Sistémico (ESRB).
As respetivas autoridades nacionais de supervisão dos diferentes Estados-
Membros fazem igualmente parte do SESF.
O SESF tem nomeadamente por objetivo desenvolver uma cultura de supervisão
comum e facilitar a realização de um mercado financeiro único a nível europeu.
A regulamentação de base do SESF está atualmente a ser revista.
No quadro de um procedimento de iniciativa legislativa, o Parlamento aprovou
uma resolução relativa à revisão do SESF, que contém recomendações
pormenorizadas à Comissão.
A União Bancária também irá trazer alterações ao quadro europeu de
supervisão.
a) Supervisão e Regulação micro - prudenciais
Na União Europeia, a supervisão micro - prudencial, ou seja, a supervisão das
instituições individuais, caracteriza-se por um sistema multiestratificado de
autoridades.
Os vários estratos podem ser separados segundo a área de supervisão e
regulação sectorial (banca, seguros e mercados de valores mobiliários) e o nível
de supervisão e regulação (europeu e nacional).
25
A fim de garantir a consistência e a coerência entre os diferentes estratos, foram
criados vários organismos e instrumentos de coordenação. Além disso, é
necessário assegurar a coordenação das instituições a nível internacional.
b) Autoridade Europeias de Supervisão (ESA)
A nível europeu, compete às ESA exercer a supervisão micro - prudencial,
enquanto a supervisão quotidiana é exercida a nível nacional. A EBA, a EIOPA e
a ESMA são organismos da União dotados de personalidade jurídica própria,
que são representados pelos respetivos presidentes. São independentes e agem
no interesse exclusivo da União no seu conjunto.
i) Autoridade Bancária Europeia (EBA)
A EBA tem a sua sede em Londres. O âmbito das suas competências abrange as
instituições de crédito, os conglomerados financeiros, as empresas de
investimento e as instituições de pagamento.
O regulamento de base confere à EBA múltiplas atribuições, nomeadamente
garantir uma regulação e uma supervisão sólidas, eficazes e coerentes,
contribuir para a estabilidade e a eficácia do sistema financeiro, impedir a
arbitragem regulamentar, garantir idênticos níveis de supervisão e de proteção
dos consumidores, reforçar a coordenação internacional da supervisão e regular
adequadamente a supervisão das instituições de crédito.
A EBA contribui para o desenvolvimento de um conjunto de regras único,
elaborando projetos de normas técnicas de regulamentação e de normas
técnicas de execução, os quais são adotados pela Comissão (sob a forma de
atos delegados e de atos de execução). Emite orientações e recomendações e
dispõe de certos poderes relativamente a violações da legislação da União
praticadas pelas autoridades nacionais de supervisão.
Os órgãos de direção da EBA são o Conselho de Supervisores (principal órgão
decisório, composto pelo Presidente, pelo mais alto dirigente da autoridade de
supervisão competente de cada Estado-Membro e por um representante,
respetivamente, da Comissão, do BCE, do ESRB e de cada uma das outras duas
26
ESA), o Conselho de Administração, o Presidente, o Diretor Executivo e a
Câmara de Recurso.
ii) Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Complementares de Reforma
(EIOPA)
A EIOPA tem a sua sede em Frankfurt. A sua estrutura é semelhante à da EBA,
mas tem por objeto as empresas de seguros.
iii) Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA)
A ESMA situa-se em Paris. A sua estrutura é semelhante às outras ESA, mas tem
por objeto os mercados de valores mobiliários e as instituições neles
participantes. A ESMA é a única entidade competente para o registo e a
supervisão das agências de notação de crédito na UE.
iv) Comité Conjunto das Autoridades Europeias de Supervisão
Compete ao Comité Conjunto exercer a coordenação global e intersectorial,
com o objetivo de garantir a coerência intersectorial da supervisão.
Como previsto nos regulamentos que criam as ESA, estão incluídos os seguintes
domínios: conglomerados financeiros, contabilidade e auditoria, análises micro -
prudenciais dos acontecimentos, riscos e vulnerabilidades intersectoriais para a
estabilidade financeira, produtos de investimento de retalho, medidas de luta
contra o branqueamento de capitais, intercâmbio de informações entre o ESRB
e as ESA e desenvolvimento das relações entre estas instituições.
Compete, ainda, ao Comité Conjunto a resolução dos diferendos intersectoriais
entre autoridades do SESF.
27
O Comité Conjunto é composto pelos Presidentes das ESA (e de eventuais
subcomités), sendo presidido rotativamente, por mandatos de doze meses, por
um dos presidentes das ESA.
O Presidente do Comité Conjunto é o Vice-Presidente do ESRB.
O Comité Conjunto deve reunir-se pelo menos duas vezes por ano.
O secretariado é assegurado por pessoal das ESA.
c) A evolução do atual modelo europeu de supervisão
A crise financeira demonstrou que a simples coordenação da supervisão
financeira através do SESF não é suficiente para impedir a fragmentação do
mercado financeiro europeu.
A fim de ultrapassar este obstáculo, a Comissão Europeia propôs, em meados
de 2012, uma União Bancária, que adota uma abordagem mais integrada e que
completa a área da moeda única e o mercado único.
Esta estrutura é composta por um Mecanismo Único de Supervisão (MUS), um
Mecanismo Único de Resolução (MUR), propostas relativas a sistemas de
garantia de depósitos e um conjunto único de regras de supervisão,
acompanhado de um manual único de supervisão.
O processo de instauração da União Bancária está ainda em curso.
i) Mecanismo Único de Supervisão (MUS)
O objetivo do MUS consiste em assegurar uma supervisão coerente e
consistente das instituições de crédito, a fim de impedir a arbitragem
regulamentar e a fragmentação do mercado de serviços financeiros na União.
Participam no MUS todos os Estados-Membros da área do euro e os Estados-
Membros que, não pertencendo à área do euro, decidam aderir.
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O MUS é composto pelo BCE e pelas autoridades nacionais competentes.
Compete ao BCE assegurar o funcionamento eficaz e consistente do
mecanismo.
O BCE e as autoridades nacionais competentes cooperam e trocam informações
entre si. A partir de Novembro de 2014, o Regulamento ao BCE atribuições
específicas no que diz respeito à supervisão prudencial das instituições de
crédito nos Estados-Membros participantes.
Estas atribuições incluem a autorização de instituições de crédito, o controlo da
observância de requisitos prudenciais e de outros requisitos regulamentares, a
realização de avaliações periódicas de supervisão, etc.
Além destas atribuições micro prudenciais, o BCE dispõe de atribuições e
instrumentos macro- prudenciais em relação, por exemplo, aos amortecedores
de capital.
Para este fim, a estrutura de governação do BCE foi adaptada através da criação
de um Conselho de Supervisão.
A fim de assegurar uma supervisão coerente, o BCE coopera de forma estreita
com as outras autoridades que fazem parte do SESF, nomeadamente a EBA.
ii) Mecanismo Único de Resolução (MUR)
Em abril de 2014, o PE aprovou um regulamento que criou o Mecanismo Único
de Resolução (MUR) e o Fundo Único de Resolução Bancária (FUR).
O MUR prevê ferramentas e instrumentos para a recuperação e resolução de
instituições de crédito e de determinadas empresas de investimento na área do
euro e noutros Estados-Membros participantes.
O Comité de Resolução é o órgão decisório.
O FUR serve de apoio financeiro.
29
Alguns aspetos do FUR, como por exemplo a transferência e a partilha do risco
nas contribuições nacionais, estão abrangidos por um acordo
intergovernamental.
Refira-se que este novo mecanismo já foi testado em Portugal com a Resolução
do BES e a Criação do Novo Banco (2014).
iii) Sistema de Garantia de Depósitos (SGD)
Os SGD estão estreitamente associados ao procedimento de recuperação e
resolução de instituições de crédito e constituem uma salvaguarda importante
para a estabilidade financeira.
Em 2010, a Comissão apresentou uma proposta de reformulação da Diretiva
existente sobre sistemas de garantia de depósitos.
Em Abril de 2014, o Parlamento Europeu aprovou esta reformulação. Em caso
de não pagamento dos depósitos devidos, os depósitos cobertos beneficiam de
proteção até 100 000 euros (em determinados casos é possível beneficiar,
temporariamente, de um nível de proteção mais elevado).
Outras realizações importantes incluem contribuições baseadas no risco, prazos
de restituição reduzidos (de 20 para 7 dias úteis) e a concessão facultativa de
empréstimos entre SGD em diferentes Estados-Membros.
7. Conclusões
Gostaria de, para finalizar esta apresentação, deixar alguns tópicos de reflexão
sobre as tendências que estão a influenciar diretamente a regulação do sistema
financeiro e, em particular, do mercado de capitais e, indiretamente, o governo
das sociedades.
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Vivemos atualmente uma fase em que a globalização dos mercados e o salto
tecnológico no domínio da informação e comunicação produzem fortes efeitos
colaterais obrigando-nos a uma reforma constante da regulação e supervisão
por parte do Estado e dos outros atores na cena internacional.
Os três objetivos da regulação de que falámos são afetados pela globalização.
Nesta medida, a emergência de bolsas pan-europeias tem encontrado resposta
na exigência de uma maior eficiência na regulação.
A Euronext – que inclui as bolsas de Paris, Amesterdão, Bruxelas e Lisboa - é
paradigmática do sucesso na harmonização de procedimentos regulatórios, de
supervisão, sistemas de liquidação, disclosure e enforcement.
A Internet coloca novos desafios à regulação e supervisão dos mercados de
capitais, levantando questões relacionadas com o acesso ao mercado,
segurança, proteção do investidor, problemas de capacidade e falhas
tecnológicas, como regular serviços eletrónicos, como guardar o histórico de
informação para provar más condutas, quem deverá ser regulado e
supervisionado, quem responsabilizar pela informação que circula na internet,
entre outras.
A dimensão e complexidade das empresas, nomeadamente dos intermediários
financeiros, têm aumentado, e tem-se assistido à criação de inúmeros
conglomerados, a exigir forte aplicação dos princípios de corporate governance
e corporate finance.
Estes desafios colocam problemas relativos, por um lado, à supervisão por parte
das autoridades nacionais e, por outro, à questão das empresas too big to fail
face ao impacto da sua insolvência no sistema financeiro.
Face a estes desenvolvimentos, a tendência é para a harmonização da regulação
e supervisão nos diversos estados membros da União Europeia.
A harmonização fomenta a competitividade para lá das fronteiras entre
diferentes operadores de serviços financeiros em benefício dos investidores e
consumidores.
Para além disso, a harmonização permite reduzir custos na medida em que a
existência de sistemas de regulamentação diferentes implica custos de
compliance acrescidos para as empresas internacionais.
31
Outra área onde a harmonização é desejável é nos princípios contabilísticos,
ajudando os investidores a aferir o valor da empresa: a qualidade e
independência das auditorias é crucial.
Ao tornar as demonstrações financeiras mais comparáveis, a harmonização irá
estimular o investimento para lá das fronteiras e aumentar a diversificação
internacional. Ainda num contexto europeu, o Financial Services Action Plan (1999) delineou um primeiro pacote de melhoramentos na legislação relativa
aos mercados de valores mobiliários e o Relatório Lamfalussy veio contribuir
com algumas recomendações para acelerar o processo de constituição de um
mercado interno único para serviços financeiros.
No entanto, esta tarefa é muito complexa e difícil face às diferentes tradições
legais e de regulação. O direito anglo-saxónico e o direito continental possuem
abordagens distintas em matérias fundamentais como sejam o regime dos
valores mobiliários, a proteção do investidor ou os princípios contabilísticos.
Mesmo entre países com tradições legais semelhantes, as diferenças nestas
matérias são substanciais, colocando grandes desafios à tentativa de
harmonização.
Ainda, assim, conservemos a esperança num mundo melhor:”with a better
regulation”!
Antes que chegue a próxima crise….
32
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