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1 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
A TRINDADE ALM DAS ADULTERAES
TEXTUAIS NO NOVO TESTAMENTO GREGO
Codex Vaticanus1
Por: Damio Bonfim
As discusses entre triniatarianos e antitrinitarianos renderam ao longo da histria
alm de conclios, dissenes comunitrias e divergncias interpretativas, dvidas acerca da
idoneidade, isto , da autenticidade, de alguns textos de que dispomos nas bblias tradicionais,
e que serviram de apoio fundamentao teolgica para o credo cristo.
Assim, trazemos discusso alguns desses textos para que avaliemos o grau de
importncia deles fundamentao da f trinitariana. E com base em cdices2 gregos, no
Texto Recebido3 e no texto crtico
4, discutiremos 1Tm 3,16 e a suposta declarao de que
Deus veio em carne (assumiu a condio humana); 1Jo 5,7-8 e a afirmao de unidade entre
Pai, Filho e Esprito Santo; a suposta adulterao em Mt 28,19 para fundamentar a f
1 Hb 1,3 (coluna da direita), p. 1512, do Codex Vaticanus (identificado como B, nos aparatos crticos do NT
grego), um dos mais importantes manuscritos do Novo Testamento grego, datado do sc. IV. Destaco entre
setas, comentrio tecido margem pelo copista, acerca de adulterao textual que ele identifica, e contesta,
nos seguintes dizeres: (Amathestate kai kake aphes ton
palaion me meta poiei)cuja traduo : "Insensato e rels criadinho, no consegues deixar em paz a antiga leitura, e no a alterar?!" (A ntegra desse cdice disponvel para consulta em:
http://digi.vatlib.it/view/MSS_Vat.gr.1209). 2 Cdices so livros antigos, escritos em papiro ou velo, que substituram os rolos, ainda no sculo I. 3 Tecnicamente chamado de Textus Receptus. Prestigiada edio do Novo Testamento Grego publicada por
Erasmo de Roterd, no sc. XVI. Pelos mais conservadores, contrrios ao texto crtico, tido como o texto
aceito, como se fosse a melhor representao do que seriam os originais gregos (autgrafos). 4 Texto impresso elaborado a partir de pesquisas, cujo propsito, com base na comparao de manuscritos e
outros testemunhos escritos, reconstruir o mais fiel possvel aquilo que seria, segundo as concluses de
anlises cientificas, o documento proximo dos originais. Esse tipo de texto ganhou notoriedade a partir do
sc. XIX, pelos trabalhos dos doutores Westcott e Hort. Atualmente, goza de maior prestigio em mbito
acadmico o texto crtico reconstrudo e identificado como Nestl-Aland, que se encontra na 28 edio (NA
28).
http://digi.vatlib.it/view/MSS_Vat.gr.1209
2 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
trinitariana, alm de discutirmos se o Novo Testamento grego foi mesmo manipulado para
sustentar a doutrina da Trindade.
Tambm, discutiremos como outros textos nos podem ajudar a entender os motivos de
eventuais adulteraes e se de fato a doutrina Trindade depende desses textos, conforme
alegam os unitaristas.
Alertamos que dividimos esta exposio em sees. Mas essas tm cunho didtico, e
quando no tratam sobre textos bblicos especficos, no tm como propsito aprofundar o
assunto, apenas oferecer ao leitor subsdios que o ajudaro a entender como os assuntos
abordados em cada seo se relacionam de alguma forma , com os textos bblicos que so
objetos deste artigo.
SEO 01
QUESTES DE INTERPRETAO
1.1. Texto idntico, opinies divergentes
O leitor interessado por assuntos de ordem apologtica j deve ter percebido que parte
do esforo dos apologistas dedicado a apresentar o que julgam ser a correta compreenso de
textos que, por razes doutrinrias e por causa da diversidade de entendimentos que podem
provocar sobre si, de alguma forma, tornam-se capitais defesa da ortodoxia da f.
Assim, apesar desses estudiosos enfrentarem o mesmo contedo textual, esses podem
divergir quanto compreenso. Exemplo disso a famosa percope5 de Mt 16,13-19, que gera
ao menos trs possibilidades de interpretao e divide opinies acerca de qual a pedra em
que a Igreja seria edificada, segundo aquela passagem bblica6. Mas o texto, preservadas as
peculiaridades da traduo de cada edio da Bblia, em termos de contedo, idntico para
as diversas verses. Desse modo, as discusses limitam-se aos campos da compreenso e da
interpretao textuais, j que no se discute, nesses casos, a autenticidade da referida
passagem.
5 Delimitao de um bloco de texto que trata do mesmo assunto, com princpio meio e fim identificveis. 6. As interpretaes tradicionais, desde a Patrstica, divergem quanto identificao da referida pedra, assim
constando: 1) com base no reconhecimento do primado de Pedro em relao ao colgio apostlico, alguns
sugeriram ser Pedro a pedra em questo; 2) a Confisso de f de Pedro, na messianidade de Jesus, como
exemplar queles que ingressam na comunidade de f e que justificam o surgimento da Igreja como
assembleia dos que acreditam ser Jesus o Cristo e 3) Com base noutras passagens neotestamentrias, a
identificao de que a pedra em questo o prprio Cristo.
3 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
Porm, outra vertente dessa discusso no est diretamente vinculada interpretao
propriamente dita. E isso, quando ocorre, se deve a um fato muito mais delicado e que no
se resolve diretamente pela forma como se entende o texto em si, mas sim, pela determinao
da forma como o texto aparece em nossas bblias.
Quando o fiel de determinado segmento religioso cristo no est ciente dessa
problemtica, tende a supor que se h divergncia, algum agiu de m-f e deturpou o texto, e
fez isso pela simples recusa de aceitar sua integralidade o que, num ou noutro caso, pode
ocorrer, mas no sempre.
Talvez por isso, a confiabilidade textual da Bblia s vezes questionada, sobretudo
pelo fato de que no dispomos de nenhum exemplar original completo de qualquer dos livros
que compem a Literatura Sagrada Crist, seno de cpias milenares do Antigo e do Novo
Testamento, respectivamente. E isso impede que tratemos a questo apenas nos mbitos
crtico-literrios, ou mesmo crtico-textuais cujo propsito seja apenas estabelecer um texto o
mais prximo possvel dos autgrafos7, pois tambm, isso compreende a doutrina e a
ortodoxia crists.
Divergncias textuais catalogadas pelos pesquisadores so usadas por alguns
movimentos para colocar em dvida a integridade8 do texto de que dispomos, sob a
justificativa de que essa foi comprometida por interesses doutrinrios de acomodao de seu
contedo em favor de credos estranhos aos tempos bblicos9, sugerindo maior vulnerabilidade
manipulao textual, aos escritos do Novo Testamento (NT).
Movimentos partidrios dessa idia alegam que eventuais acomodaes textuais foram
feitas para embasar um dos fundamentos comuns f crist (considerado por eles como
heresia), a saber: Deus como entidade trina.
1.2. Uma teoria da conspirao que justifica a heterodoxia
Os contrrios f trinitria, alm de sustentarem ser ela resultado da influncia do
paganismo no cristianismo, reforada por decises de interesse poltico que remontam ao sc.
7 Autgrafo , para a crtica textual, o documento original de qualquer dos livros catalogados no cnon
bblico, tal como concluda sua redao pelo autor, chamado de hagigrafo (autor de obra sacra). 8 Por integridade indico o grau de confiabilidade de um contedo textual, no caso, o do Novo Testamento,
sem intervenes que comprometam o contedo da f por ele expresso, naquilo que essencial para o
cristianismo 9 Essa postura contestatria tem sido mais divulgada por grupos antitrinitarianos, a exemplo dos segmentos
que se autoidentificam como judeus-messinicos e que alegam que o Novo Testamento, originalmente,
fora escrito em hebraico, sendo o Novo Testamento grego apenas uma verso adulterada desses textos.
4 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
IV, sustentam ainda que essa suposta discrepncia em relao f do protocristianismo10
foi
consagrada por interpretaes equivocadas de sees da Bblia, alm de manipulaes que
objetivaram adequar o texto sagrado ao credo apostatado. E neste tempo de ceticismo e
descenso da religio crist mediante o avano da religio mulumana, isso tende a aumentar a
desconfiana quanto credibilidade que merece a Bblia, em partes ou no todo.
Nesse sentido, uma comentada obra que supostamente abalaria a f dos cristos e a
confiabilidade de seu livro sagrado, adotou ttulo impactante e at pretencioso: O que Jesus
disse? O que Jesus no disse? Quem mudou a Bblia e por qu?11
, de autoria de Bart D.
Ehrman, Crtico Textual, declaradamente agnstico.
A referida obra ganhou espao na mdia e foi promovida mais pela suposta polmica
que geraria do que pela contribuio que traria s discusses acadmicas em torno do NT.
Se lida por algum que ignora o processo de estabelecimento de textos bblicos
neotestamentrios como um trabalho criterioso de comparao de textos, pode fazer parecer a
esse que a Bblia de que dispomos um conjunto de documentos manipulados para dar
suporte aos fundamentos da f crist.
Ehrman inclusive parece adotar como diretriz de sua publicao, a conscincia de que
no se deve confiar ser o NT hoje um documento seguro. Opinio que manifestada j na
descrio de sua experincia como estudioso dessa coletnea sagrada: Quanto mais
estudava a tradio manuscrita do Novo Testamento, mais compreendia como o texto foi
sendo radicalmente alterado ao longo dos anos nas mos dos copistas, que no estavam s
conservando as escrituras, mas mudando-as (EHRMAN, 2006, p. 217).
Porm, a essa observao pessimista, quem tem ou teve acesso referida obra, mas
anteriormente teve contato com outras dedicadas Crtica Textual, no tocante s variantes12
neotestamentrias que o referido autor apresenta para justificar sua desconfiana, no
encontrar nenhuma novidade capaz de faz-lo descrer da f crist, nem ser induzido a crer
que o NT resultado de farsa, pelo simples fato de saber que as milhares de variantes, bem
como as milhares de cpias do NT chegadas at ns, praticamente no interferem no contedo
da f, como o prprio Ehrman, na mesma obra, reconhece.
10 Perodo anterior institucionalizao da f crist. Grosso modo, tratado como aquele iniciado no sc. I
d.C., estendendo-se at o sc. III d.C. Porm, o termo indica especialmente o perodo entre os anos 30 d.C e
100 d.C. (que coincide com a morte e ressurreio do Senhor e a redao da ltima obra cannica, o
Apocalipse de Joo, datado de 96 d.C. a 100 d.C.). 11 Ttulo original: Misquoting Jesus: The Story Behind Who Changed the Bible and Why. 12 Variantes textuais so leituras divergentes para um mesmo texto, podendo constar acrscimos, omisses e
termos de significados distintos quando comparadas as cpias entre si.
5 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
Entretanto, sendo certo que o nmero de leitores da Bblia que estabelecem contato
com a Crtica Textual ainda relativamente inexpressivo, embora crescente, permite-nos
reconhecer que qualquer divergncia textual encontrada numa leitura comparativa entre as
edies de Bblia disponveis no mercado nacional e internacional, somada inevitvel
constatao de que a variao textual entre os manuscritos gregos um fato, pode levar a crer
que, no geral, as tradues apenas refletem o credo prestigiado por determinado grupo ou que,
em nome desse credo, a violao textual ocorreu deliberadamente.
1.3. Tese precria e embasamento de doutrina
Sob o pressuposto de que a Bblia, e em especial o NT, fora objeto de manipulao
para respaldar o credo cristo, e sua percepo trina da Divindade, movimentos no
simpatizantes desse conceito colocam sob dvida as bases bblicas em que os trinitaristas se
apiam para destacar sua consonncia com a f expressa em seus escritos sagrados e que so
genuinamente cristos, isto , os que formam a coletnea do Novo Testamento. Pois, de fato,
no meio acadmico, sabido que [o] NT no contm a doutrina desenvolvida da Trindade
(Dicionrio Internacional de Teologia, vol. 1, p.573).
Assim, comum sermos surpreendidos por argumentos pretensos a provar que a m
interpretao textual promovida pelos trinitaristas (segundo essa viso), supostamente
formaliza essa doutrina, somada a manipulaes de copistas que objetivaram obscurecer a f
neotestamentria, que sustentam a f trinitria; pois, segundo seus contestadores, o NT no
respalda a doutrina da Trindade.
Nesse sentido, alguns tm colocado sob dvida a autenticidade de textos que
favorecem essa doutrina, baseados na suposio de que antes de Nicia I, no havia respaldo
escriturstico para essa f. Assim, ao comentar Mt 28,19, o erudito judeu-messinico David
Stern, salienta a dvida de alguns quanto a autenticidade daquela passagem, dado seu teor
trinitrio:
Embora aproximadamente todos os manuscritos antigos tenham a forma
trinitariana, a histria da Igreja, que pode ter sido no trinitariana em seus escritos
anteriores ao Conclio de Nicia em 325 E.C., cita o versculo sem isso. A maioria
dos acadmicos acredita que a frmula original, mas papeis escritos por Hans
Kosmala (The Conclusion of Matthew, Annual of the Swedish Teological Institute
[Instituto teolgico anual da Sucia], 4 (1965), pp 132-147 e David Flusser (The
Conclusion of Matthew in a New Jewish Christian Source [A concluso de Mateus
6 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
no novo cristianismo judaico], ibd. 5 (1966-7), p. 110-119) assume a viso oposta
(sic)13
(STERN, 2007, p. 112)
Para os partidrios dessa tese que Stern destaca, ao longo dos sculos, cristos agiram
desrespeitosa e inescrupulosamente, no sentido de adulterar o NT a fim de fundamentar um
credo que hipoteticamente teria surgido a partir das intervenes do Imperador Romano
Constantino (sec. IV d.C.), quando a Igreja se institucionalizava.
Mas nesse ponto, identificamos um equvoco, para o qual no preciso sequer
adentrar no mrito da participao ou no de Constantino em eventuais formalizaes
dogmticas crists, para perceber que eventuais deturpaes no NT no necessariamente
tiveram como proposta acomodar a Bblia a um credo que satisfizesse algum interesse
imperial. Afinal, as adulteraes eram um evento natural no processo de reproduo de
cpias, em virtude da precariedade em que eram feitas, e no necessariamente por inteno
espria.
Porm, os que ainda imaginam que a doutrina trinitariana advm de atendimento aos
caprichos de Constantino (que era analfabeto e ignorava teologia), fortalecem a iluso de que,
no fosse o interesse daquele imperador, no teramos adulteraes. Um raciocnio
equivocado e que beira a ingenuidade, pois deturpaes em obras manuscritas antigas esto
intimamente relacionadas forma como a transmisso textual era feita em perodo anterior
imprensa e os textos bblicos no ficaram imunes s consequncias da reproduo textual
por vias precrias, como eram as antigas.
Nos primeiros tempos da Igreja crist, depois que uma carta apostlica havia sido
enviada a uma congregao ou a um indivduo, ou depois que um Evangelho havia
sido escrito para atender s necessidades de um determinado pblico alvo, comeava
o processo de cpia desses textos. Esse processo tinha a finalidade de ampliar o
mbito de influncia desses textos e permitir que mais pessoas se beneficiassem
desses escritos. Essas cpias manuscritas certamente apresentariam diferenas de
texto em relao aos originais. Algumas cpias podiam apresentar um nmero
significativo de diferenas; outras, um nmero bem reduzido. A maioria dessas
diferenas se devia a erros de carter involuntrio, como a troca de uma letra ou de
uma palavra por outra que tinha um formato quase igual (OMANSON, 2010, p.26).
Conforme se observa, copistas contemporneos aos autgrafos do NT, bem como
aqueles que os sucederam, a fim de assegurar a perpetuao desses textos, promoveram
13 Sic expresso em latim, utilizada para indicar que a reproduo de um texto feita conforme escrito,
inclusive com os erros gramaticais que dele constam.
7 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
intensa reproduo manuscrita deles. E por se tratarem de obras relativamente extensas, erros
oriundos de cansao fsico e mental eram comuns.
Pensemos, por exemplo, no esforo empreendido por um copista ao transcrever uma
carta do porte daquela endereada por Paulo aos cristos da Igreja de Roma, sem que o
recurso material fosse abundante, e sem a existncia de um computador.
Ainda assim, mesmo uma corrente que reconhea serem as variantes textuais um
fenmeno natural quando a reproduo de cpias manuscrita, movimentos de doutrinas
pretensamente distintivas, cuja caracterstica enfatizar elementos de pouca ou nenhuma
importncia fora de seu crculo, pois que no expressam o indispensvel para a f tida como
ortodoxa, tendem a se apoiar em interpretaes cuja notoriedade se d pela opo em ser
diferente daquela que consagrada pela maioria, pondo em dvida o que se tem por
ortodoxo. E s por isso que ganham evidncia, sem, contudo contribuir para um
esclarecimento significativo ao que caracteriza o indispensvel identidade crist.
1.4. Negao da f ortodoxa com base em testemunhos prediletos
Se for verdadeiro que a integridade14
do NT objeto de estudos inacabados e de
dvidas levantadas que beiram o sensacionalismo, os que assumem o NT sem contestar sua
integridade, podem, contudo, contestar a interpretao relativamente consensual, ao
procurarem evidenciar desarmonia entre compreenses tradicionais da Escritura e o
testemunho textual dela propriamente dito15
. Isso o fazendo a partir de pressuposies que
orientam sua interpretao, em sentido diverso do convencional.
O procedimento assim descrito semelhante ao desencadeado nas contendas
dogmticas dos primeiros sculos do cristianismo e seus conclios ecumnicos, para discutir
supostas heresias que ganhavam partidrios, a exemplo do arianismo, que apesar de rechaado
no sc. IV, permaneceu como corrente de pensamento cristolgico prestigiado por muitos, e
pode essencialmente ser percebido nos dias de hoje, a partir dos diversos movimentos
pretensamente cristos, mas que negam a real divindade do Filho de Deus e sustentam que
esse credo, dentre outras coisas, emerge da m interpretao da Bblia, devendo por isso ser
rejeitado.
14 Vide nota 8. 15 Exemplo disso a contestao da frmula batismal trinitria apresentada em Mt 28,19 em contraposio
frmula comumente apresentada em Atos, sempre invocada como sendo em nome de Jesus (cf. At 2,38;
8,16; 10,48; 19,5).
8 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
Mas optando pela ruptura ao convencional ou julgado ortodoxo , o interprete
reacionrio assume os riscos de, ao inovar, desconstruir entendimento firmado, muitas vezes
h milnios, e que no s contribuiu para conciliar divergentes, mas tambm para solidificar a
identidade do cristianismo e aquilo que o caracteriza e que se encontra em status de
inegocivel, no sendo refm de particularismos.
Porm, o fenmeno crescente de movimentos religiosos, oriundos no somente de
rupturas internas por questes disciplinares, mas tambm da valorizao de doutrinas
distintivas, que podem ser julgadas por outros como no-escriturstias, multiplicam e mutilam
a comunidade de f, ao fundamentar sua identidade na divergncia, sob a alegao de que
divergem para resgatar as origens. E isso tem os seus riscos, pois, conforme destaca Osborne:
Raramente lemos a Bblia em busca da verdade: o que mais acontece queremos
harmoniz-la com nossos sistemas de crenas e ver seu significado sob a perspectiva de
nosso sistema teolgico preconcebido (OSBORNE, 2009, p.32).
A observao de Osborne pertinente e ajuda a entender por que, por mais
simpatizantes que sejamos da apologtica, foroso reconhecer que o determinante
orientao doutrinria de uma pessoa ou grupo no a substancialidade das provas que
embasam uma defesa, mas o livre convencimento do indivduo que se identifica com uma
corrente de pensamento, ainda que suas bases tericas, logicas e histricas, dentre outras,
demonstrem-se frgeis.
Assim, os que rejeitam a doutrina da Trindade, alm de sustentarem que essa advm
de influncias pags no cristianismo e de erros de compreenso textual ou erros de traduo,
tambm sugerem manipulaes textuais, cuja finalidade era fundamentar doutrina que julgam
no ter respaldo escriturstico. Por isso, analisaremos alguns desses textos e as circunstncias
em que so traduzidos, considerando como a crtica determina a provvel leitura original
dessas passagens.
SEO 02
QUESTES DE TRADUO
2.1. Diferenas substanciais entre Bblias
Alm do vocabulrio adotado se mais popular ou mais erudito; se mais
contemporneo ou mais arcaico (decises que no comprometem o sentido do texto, mas que
9 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
podem comprometer a compreenso do leitor) , h algo mais significativo e que preciso
considerar como um dos fatores que justificam textos diferentes para uma mesma passagem:
como no se tem nenhum exemplar original completo de sequer um livro do NT, o estudioso,
no dispondo dos autgrafos bblicos, precisa fazer opes entre as variantes textuais a
partir dos materiais disponveis, bem como optar quanto ao texto-base que utilizar para
editar a Bblia que traduzir. Se seguir um texto crtico, nalguns pontos, sua edio da Bblia
divergir daquele que seguiu um texto mais antigo, no qual fundamentou sua traduo16
. E
nesse ponto que alguns textos de vocao trinitria podem ser mais bem compreendidos, sem
o preconceito causado pela ideia de que tudo no passa de convenincia do tradutor, conforme
veremos.
2.2. Escolha vocabular, variante textual e polemizao
Diversas so as opes de Bblia no mercado. O que pode se justificar, conforme
explicamos, pelo pblico-alvo da edio (leitura popular; estudos, especialistas, etc.). Porm,
alm de eventuais recursos que auxiliam o leitor a melhor compreender o texto, essa
diversidade chega ao prprio texto.
Assim, quando comparamos duas ou mais edies da Bblia, percebemos que elas
tendem a variar no vocabulrio e at no contedo do texto. Quando isso ocorre, essas
passagens causam dvidas no leitor que faz leitura comparativa, quanto ao que seria o
correspondente ao original.
Sabendo disso, alguns segmentos religiosos polemizam, salientando essas
divergncias, a fim de sustentarem posicionamentos teolgicos com base na verso que mais
atende a seus interesses.
Mas preciso ficar atento, porque na maioria dos casos, os textos que podem causar
polmica so esclarecidos por outros de contedo menos discutveis (quanto a sua forma
original) e elucidam a dvida sem que precisemos nos tornar refns daqueles textos que no
gozam de consenso quanto traduo, ou quanto ao que seria a declarao original (porque
algumas Bblias divergem entre si quanto ao que consta do texto).
16 Isso ajuda a explicar por que as discusses se acirram acerca de qual o texto mais confivel; geralmente,
reduzindo-se as discusses a duas fontes de traduo: o Textus Receptus (que data do sc. XVI) e o chamado
Texto Crtico (que se desenvolve melhor a parti do sc. XIX).
10 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
Um exemplo disso 1Tm 3,16, que conforme leitura da verso Almeida Corrigida e
Revisada Fiel (ACRF), : ...grande o mistrio da piedade: Deus se manifestou em carne, foi
justificado no Esprito, visto dos anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, recebido acima
na glria (grifo meu).
Essa mesma passagem, na Almeida Revista e Atualizada (ARA) : ...grande o
mistrio da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em esprito,
contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glria17 (grifo
meu).
Note que o estudo comparativo identifica uma divergncia capital compreenso
desse versculo. No primeiro caso, h uma declarao expressa de f na divindade real de
Cristo, supostamente identificado como Deus feito homem (feito carne, num bom
hebrasmo). Na segunda traduo, porm, v-se trocado o substantivo Deus por pronome
demonstrativo (Aquele), descaracterizando assim a declarao de uma kenosis18
divina
envolvendo Cristo.
Em todo caso, pela compreenso sistmica da passagem, no se percebe qualquer
prejuzo ou violao teolgica em ambas as opes. Pois que ambas as leituras esto em
perfeita harmonia com o credo neotestamentrio de que Cristo veio em carne (1Jo 2,22).
Tambm, est de acordo com a f de que Ele no era apenas ser humano (Jo 1.1,14; Fl 2,619
).
Por outro lado, a chegada ao consenso de que ambas as tradues remetem a um credo
expresso noutros textos de semelhante contedo, isto , o de que Cristo veio em carne (ex. Jo
1,14) e de que era Deus (Jo 1,1) no resolve a questo da autenticidade da daquela declarao
(a 1Tm 3,16), isto , acerca de qual a leitura mais segura para o versculo em lide (se ali h
declarao expressa de que Cristo era Deus, ou no).
Noutros termos: o que constava do texto original a declarao de que Deus apareceu
na forma humana, ou apenas se diz que em Cristo o mistrio da f revelou-se?
17 Cf. Novo Testamento Trilingue: grego, portugus e ingls, 1998, p. 587. 18 Termo tcnico teolgico que significa esvaziamento, usado para se fazer referncia encarnao do
Messias, cuja natureza era divina. Porm, por ele, salienta-se que Jesus assumiu a condio humana (ver Jo
1.1-3 , 14; Cl 2.5-9), sem deixar de ser divino. De modo que ainda nos primeiros sculos, entendeu-se que
Jesus no era metade Deus e metade homem, mas totalmente Deus e totalmente homem. 19 Em nota de rodap, sobre Fl 2,6, porm, a Bblia de Jerusalm indica serem equivalentes os termos forma
de Deus e imagem de Deus, assim esclarecendo: Uma vez que forma usada intercambiavelmente
com imagem na LXX sinnimo para imagem de Deus, que predicado de Ado (Gn 1,27;
1Cor 11,7) e de Cristo (2Cor 4,4). Desse modo, entende que o texto paulino contrape o sentimento de
Ado, que na condio de homem quis ser como Deus, ao de Cristo, que sendo Deus, na condio humana
(forma de Deus= imagem de Deus), no usou de seu direito. De modo que a expresso forma de Deus seria
o mesmo que ser humano ( imagem e semelhana do Criador), visto que (morph = forma) termo
que indica aparncia externa.
11 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
SEO 03
ANLISE DE ALGUNS TEXTOS POLMICOS
3.1. O problema de 1Tm 3,16
Lidamos com um versculo cujas variantes divergem substancialmente, no sendo essa
divergncia mera questo estilstica do copista, ou oriunda de erro gramatical que viciou a
traduo, pois, h de fato, uma divergncia de contedo, conforme vimos ao comparar duas
verses da Almeida para um mesmo versculo.
A Nova Verso Internacional, bem como a King James Atualizada, por exemplo,
apoiam a verso da ACRF. Mas a Traduo Ecumnica da Bblia; a Nova Bblia de Jerusalm
e a Bblia do Peregrino apoiam a verso da ARA, para esse texto. Assim, percebe-se que
confrontar verses no oferece segurana quanto a qual a opo mais coerente leitura
original dessa passagem.
3.1.2. Como solucionar o problema de 1Tm 3,16
Verificada a divergncia com apoio de ambos os lados, a questo no se resolve pela
eventual credibilidade que se atribui a alguma verso verncula em detrimento de outras,
restando-nos saber o que consta dos testemunhos escritursticos mais antigos que essas
verses.
Um primeiro passo seria consultar a mesma passagem nalguma edio do NT grego.
Entretanto, qualquer dessas edies impressas no surgiu antes do sc. XVI, quando a
imprensa foi desenvolvida pelos trabalhos de Gtemberg. Assim, um passo mais seguro seria
buscar testemunhos mais antigos. Logo, recorrer aos cdices20
pode ser uma via segura. Por
isso, abaixo, apresentamos imagem do Codex Sinaiticus21
, cujo acesso pblico22
:
20 Cdices so livros antigos, escritos em papiro ou velo, que substituram os rolos, ainda no sc. I. 21 Tambm chamado de Cdice Sinatico. Trata-se de manuscrito uncial, que contm integralmente o
Novo Testamento (NT) grego, em material de velo, datado do sc. IV, por volta do ano 350 d.C., e
reconhecido juntamente com o Codex Vaticanus, como das mais antigas e importantes cpias do NT grego. 22 Cdice acessvel em: http://www.codex-sinaiticus.net/en/
12 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
Imagem parcial de 1Tm, Cap. III,, constante do Codex Sinaiticus.
O leitor habituado a ver ou ler edies impressas do NT grego, mas que nunca teve
acesso a um texto uncial23
, certamente acha desconfortvel e confusa a imagem reproduzida,
pois essa contm um texto sem separaes de vocbulos e sem sinais de pontuao. Mas
uma das cpias mais importantes e antigas do NT grego, e capital para que os eruditos
estabelecessem o que provavelmente a leitura que remonta aos autgrafos.
Na coluna central desse cdice, conforme se v, temos os vv. 15-16 de 1Tm 3, sados
das mos do copista que o redigiu. Ou seja, temos aos nossos olhos uma cpia do NT grego
ainda dos primeiros sculos do cristianismo.
Grifei em azul o vocbulo polmico. E para simplificar a leitura, reproduzi o trecho
em que se insere, separando, porm, os vocbulos. Assim constando:
cccMYSTERION OS 24 EPHANEROTHE EN
SARKI).
Em letra uncial, o (sigma) escrito em formato semelhante o nosso C. Assim a
expresso grega, em uncial, OC, corresponde forma impressa (HOS), que em
minscula, com esprito spero25
e acento grave conforme as edies impressas do NT
grego, facilmente encontrveis no mercado , assim se escreve: (hs). Trata-se de um
pronome demonstrativo, podendo ser parafraseado como ele (pronome pessoal) ou aquele
(pronome demonstrativo).
23 Escrita uncial aquela pela qual o texto elaborado em letras maisculas. 24 Para ser fiel ao texto uncial, no transliterei a expresso OC (como hs, ainda que no grego koin o sinal grfico esprito spero, escrito semelhantemente a um apstrofo em portugus (') seja transliterado
como um h. Mas visto que no Codex Sinaiticus no consta esprito spero, nem o brando, transliterei sem o
emprego da letra convencionalmente empregada na transliterao de palavras iniciadas por esprito spero. 25 Esprito spero um sinal grfico (), semelhante ao nosso apstrofo, aberto para a direita, e encontrvel em textos gregos antigos. Indica que a palavra deve ser pronunciada como se contasse dela um r logo no
seu incio, cujo som a ser emitido como na palavra carro. Porm, a transliterao desse sinal grfico, para
o portugus, h. Assim, no caso, o pronome grego translitera-se como hs, e pronuncia-se rrs.
13 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
Como o texto grego, constante do Codex Sinaiticus ()26
no escrito em letras
minsculas e outras cpias antigas tambm no o eram, certas expresses causavam dvidas
nos copistas, quando esses redigiam seus textos acompanhando uma outra cpia escrita em
letras maisculas. Veremos a seguir.
3.1.3. Manipulao grosseira (1Tm 3,16)?
costumeiro lermos artigos que contestam a doutrina da Trindade, nos quais se alega
que essa, carecendo de respaldo escriturstico, tende a ser fundamentada em textos discutveis,
ou que foram manipulados.
No blog intitulado Analisando o Cristianismo27
, de vertente judeu-messinica, foi
publicado um artigo cujo ttulo : Escrituras Adulteradas. Nele cita-se o erudito Daniel B.
Wallace que, ao comentar 1Tm 3,16, defende aquele texto no descrever explicitamente a
divindade de Cristo.
Com base nessa interpretao, o autor do referido artigo comenta: Como se v, em
suas declaraes [,] o prprio trinitariano reconhece a adulterao grosseira do texto...
salvaguardando sua reputao de erudito (grifo meu).
Na mesma linha de raciocnio, um site de confisso jeovista, intitulado Em defesa da
Traduo do Novo Mundo, no artigo: Tentativa de enxertar a Trindade nos textos da Bblia
Sagrada, antes de citar especificamente o texto de 1Tm 3,16, alega: Tradutores da Bblia
comearam, a partir do segundo sculo, a remover o Nome de Deus Jeov e o substituir
pela palavra SENHOR. Preparando o caminho para a doutrinao trinitria...
comearam a adulterar textos... de modo sutil e at descarado28
(Grifo meu).
Em ambos os casos, fica a impresso de que a aludida adulterao injustificvel. E
mais que isso, no caso do segundo artigo, atribui-se a adulterao a um trabalho do tradutor, o
que no verdade. Do contrrio, realmente tal adulterao seria de uma grosseria
descomunal, pois caso nos deparemos com qualquer cpia impressa do NT grego, percebemos
facilmente, ainda que no conheamos o alfabeto grego, que h muita diferena entre os
termos (thes= Deus) e (hs= quem).
26 A letra hebraica (aleph), a que, em aparatos crticos do Novo Testamento grego, indica o Codex Sinaiticus. 27
Disponvel em: http://analisandocristianismo.blogspot.com.br/p/adulteracoes.html 28Disponvel em: https://traducaodonovomundodefendida.wordpress.com/2016/10/06/tentativas-de-enxertar-
a-trindade-nos-textos-da-biblia-sagrada/
14 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
Mas o caso menos simples do que parece. E para demonstrar, reproduzirei a imagem
de uma cpia adulterada (o Codex Alexandrinus29
) e a compararei com a imagem do Codex
Sinaiticus:
Codex Alexandrinus (Imagem 01):
Codex Sinaiticus (Imagem 02):
Observe que a imagem 01, extrada do Codex Alexandrinus, para o trecho circulado,
em comparao com a segunda imagem, extrada do Codex Sinaiticus, apresenta detalhes
divergentes, a saber: um trao acima do termo circulado e a letra grega theta (),em lugar da
letra grega micron (, se tomada como referncia a segunda imagem.
Visualmente, ambas as letras, em maiscula, so muito parecidas, diferindo apenas no
fato de que o micron no tem um trao em seu interior.
Esses cdices so anteriores imprensa, e a reproduo de suas cpias configurava-se,
entre outras coisas, como medida preventiva, cuja finalidade era preservar escritos que se
deterioravam pela ao do tempo e do uso constante.
Observe que a letra , na primeira imagem, apresenta desgaste. Assim, imaginemos
que o copista, ao ler seu material de consulta para reproduzi-lo, pelo fato de o movimento da
frase ser muito semelhante ao que se diz em Jo 1,1.14 ( Deus era o Lgos (v.1) e que o
29 O Codex Alexandrinus (A), data do sc. V, e est sob posse da Biblioteca Britnica, podendo ser acessado
pelo endereo: http://www.bl.uk/manuscripts/FullDisplay.aspx?ref=Royal_MS_1_D_VIII
15 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
Lgos se fez carne (v.14)), ao se deparar com 1Tm 3,16, entendesse que se tratava de uma
declarao com mesmo sentido que Jo 1,1.14, pois o texto assevera incontestavelmente:
...grande mistrio da piedade: ... foi manifestado na carne....
Ou seja, quem se fez carne, segundo Jo 1,1.14, era Deus. Assim, provvel que o
copista julgasse que 1Tm 3,16 fosse declarao paralela a outro texto (Jo 1,1.14 ou Fl 2,16,
por exemplo), j que ali se diz que o mistrio da f se fez carne. O que favorece entender que
a declarao de 1Tm 3,16 tambm se referia a Jesus como Deus feito carne.
evidente a semelhana dessa declarao com o escrito em Jo 1,1.14. Naturalmente,
caso dispusesse de uma cpia desgastada, possvel que ao conseguir identificar em
1Tm 3,16 algo parecido com outro texto bblico (Jo 1,1.14), o copista entendesse que a
primeira letra no seria um micron, mas um theta desgastado, e assim, passasse um trao no
meio da letra.
A consequncia dessa leitura : a expresso ento seria no mais OC, mas c. E isso,
fatalmente, altera o sentido do texto sem comprometer, porm, a doutrina , conforme
veremos a seguir.
3.1.4. Uma adulterao textual que no adultera o contedo da f
Para compreender como a expresso Aquele deu lugar a Deus, alm de ter-se
claro que todo o texto do cdice grego escrito em maiscula, sem separao de vocbulos e
acentuao, preciso tambm considerar outro fenmeno comum nos escritos unciais, tal
como o so os das imagens anteriormente reproduzidas: a economicidade.
A escassez de material para produo de cpias de escritos e a consequente
necessidade de economizar material eram algumas das razes por que, costumeiramente,
vocbulos no eram separados, assim facilitando um melhor aproveitamento do espao da
folha em que se copiavam manualmente os textos. Esse mesmo senso de economicidade
estimulava outra prtica: a abreviao de termos conhecidos, o que tambm implicava em
mais espao para escrever no cdice.
Deste modo, termos como Cristo, Davi, Maria, dentre outros, apareciam nos
cdices ou em obras sacras30
em forma abreviada, tecnicamente chamados de Nomina
30 Refiro-me aos cones produzidos no Oriente.
16 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
Sacra31
. De modo que, Cristo (Gr: CC), abreviado , Davi (Gr:
DAVIDabreviado aria (Gr:MARIAabreviado como 32
Para Deus, grego C (THEOS)a abreviatura com um trao acima das
letras, o que ocorre com todos os nomina sacra.
Logo, se o copista entendeu que a expresso que grifei na imagem 02, do Codex
Sinaiticus, c, era, na verdade, um nomina sacra desgastado, inseriu um trao na letra
micron, e essa tornou-se um theta. Por fim, sugerindo que se tratava mesmo de nomina
sacra, passou um trao acima das duas letras, para no deixar margem de dvida de que se
tratava de uma referncia a Deus (Cfazendo constar , e no C, conforme a cpia
adulterada abaixo indica, na parte circulada em azul:
Codex Alexandrinus
Ehrman, apesar das reservas que faz em relao inteno do copista, comenta
razoavelmente, sobre esse texto, que a mudana foi introduzida para enfatizar a divindade
de Jesus, num texto que, quanto a isso, era AMBGUO (Ehrman, 2006, p. 167 grifo meu)
Observa-se, ento, que a adulterao no Codex Alexandrinus no algo grosseiro, se
consideramos que se trata de um texto manuscrito, em que as letras maisculas envolvidas so
parecidas (O e ), o que poderia gerar dvida ao escriba. Mas essa uma adulterao que
parece emergir de interpretao do copista, pois esse ao ler OC (HS), entendeu que se
referia a C (THES).
31 Expresso latina que significa nome sagrado.
32 O nomina sacra , isto , , para referir-se a Maria, um nomina sacra comum aos cones orientais, mas no catalogado no NT grego.
17 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
Tambm, possvel que, sendo o copista partidrio da f de que Jesus Deus feito
carne (conforme ensina Jo 1,1.14), ainda que no tenha tido qualquer problema com o texto
de 1Tm 3,16 que o forasse a ler OC como C, entendesse dever ser explicitado que Aquele
que se manifestou em carne era Deus, dando origem variante: Deus se manifestou em
carne.
Nessa perspectiva, o copista estaria se apoiando em Jo 1.1,14; Fl 2,6, alm de perceber
aluso a 1Jo 2,22, para assim realar um credo j expresso noutras passagens semelhantes
que copiava, sendo ainda respaldado por um credo considerado ortodoxo antes mesmo de que
seu trabalho de escriba assim reproduzisse a passagem em discusso.
Nesse sentido, essa adulterao no interfere na f trinitria, pois que,
reconhecidamente, 1Tm 3,16 se refere a Cristo como algum que assumiu a condio humana
(se fez carne). O mesmo Cristo que o quarto evangelho chama de (lgos) e o
identifica com Deus (Thes). Declarao que torna muito prxima 1Tm 3,16 de Jo 1.1,14, ou
melhor, faz de ambos, textos correlatos.
Assim, o acesso a cdices unciais ajuda a perceber que uma traduo aparentemente
absurda no extravagante, nem necessariamente desonesta, mas possvel e visualmente,
passvel de confuso.
3.2. Um texto sob suspeita (1Jo 5,7-8)
Quando o assunto Trindade e o testemunho neotestamentrio, quase certo que os
unitaristas e unicistas citam o famoso Coma Joanino (1Jo 5,7-8)33
, a fim de sustentar que
mediante a ausncia de apoio do NT a esse credo, a insero de contedo trinitrio foi uma
via adotada para respald-lo.
Desse modo, sugerem que, se a suposta mais robusta evidncia de testemunho
escriturstico em favor da Trindade no autntica, restaria provado que o respaldo
neotestamentrio quela doutrina no passaria de arranjo inescrupuloso.
Conforme se divulga, a consolidao dessa glosa34
no NT ocorre a partir do Texto
Recebido35
, que base da King James, e que tambm influencia diversas edies da verso
Almeida.
33 Tambm chamado de Parntese Joanino. 34 Nota explicativa ou acrscimo a um texto. Neste caso, a segunda opo. 35 Vide nota de rodap 3.
18 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
Entretanto, justia seja feita, o discutido texto no aparece nas duas primeiras edies
do Textus Receptus36
e no era propsito de Erasmo inseri-lo em sua obra. O fazendo apenas
aps apresentao de manuscrito cuja autenticidade ele mesmo duvidava, mas no podia
provar sua falsidade, razo por que o inseriu na 3 edio de sua famosa obra.
Observe, porm, imagem da p. 522, 2 edio37
dessa obra erasmiana, e perceba que
dela no consta o Coma Joanino.
Conforme o texto acima, escrito em ligaduras38
que ainda no apresentava diviso em
versculos39
, o que hoje corresponde ao v.7 : = hti
tres eisin hoi maryrntes (lit: porque trs so os que testemunham), seguindo-se assim
o v.8: , , . = t Pnema
ka t Hdor ka t hama, ka hoi tres eis t hn eisin (lit: o esprito e a gua e o
sangue, e os trs para o um so).
parte eventual manipulao textual com o propsito de respaldar a doutrina da
Trindade, ao que se sabe, os escribas cristos, ao produzirem cpias do NT grego, alm de
efetuarem correes em texto que eventualmente contivessem algum tipo de erro, tambm
desenvolviam comentrios margem do manuscrito que copiavam40
. E isso deve ser levado
em conta quando discutimos a origem do famoso acrscimo constante de 1Jo 5,7-8.
consenso entre crticos textuais do NT que o famoso Coma Joanino um exemplo
de insero de um comentrio em nota marginal que fora assumido posteriormente como parte
36 Titulo Original: Novum Instrumentum Omne, de 1516 e Novum Testamentum Omne (2 edio), publicada
em 1519, de autoria de Erasmo de Roterd. 37 Toda a obra digitalizada por Princeton Teological Seminary Libray, e disponvel para download, pode ser
consultada em: https://archive.org/details/novumtestamentum00eras 38 Texto grego escrito em cursiva, cuja caracterstica ligar duas letras por traos, sendo, portanto, de
estilstica diferente das verses gregas atualmente impressas. 39 A diviso da Bblia em captulos foi realizada em 1220 d.C., por Estephen Langton (que foi Arcebispo de
Canterbury, na Inglaterra). Mas a diviso em versculos ocorreu a partir do ano 1528, pelo dominicano
Santes Pagnino. Seu trabalho foi adaptado pelo erudito protestante Robert Estienne, em 1551, para o NT. 40 Cf. PAROSCHI. Critica Textual do Novo Testamento, p. 100.
19 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
integrante do texto. Tal tipo de insero passou a ser procedimento comum durante a
reproduo das cpias do NT grego, fenmeno no-exclusivo de 1Jo5,7-8, ao contrrio do que
alegam os antitrinitarianos, no intuito de tratar aquela passagem como algo anmalo.
Todavia, se a declarao de unidade entre Pai, Filho e Esprito Santo, ou o fato de
esses serem elencados conjuntamente, tal como ocorre em 1Jo 5,7, forte indcio de confisso
trinitria, cujo prestgio eliminado ante a certeza de que essa declarao provavelmente no
constava do autgrafo, supe-se que se a fora do argumento contrrio Trindade persiste em
descredibilizar a autenticidade daquele texto, caso se comprovasse sua autenticidade, no
haveria que se discutir a teologia trinitariana do NT. Pelo menos o que indiretamente
ensinam os antitrinitarianos, pois, se h esforo para divulgar que esse texto glosa41
,
tacitamente admite-se que, se por um lado aquela declarao contundente, por outro, no
vlida por tratar-se de acrscimo. Tese que s aumenta o problema para os antitrinitarianos,
pois, se encontrando algo na mesma estrutura, o efeito de contundncia seria
consequentemente o mesmo.
3.2.1. Uma declarao contundente de unidade
Se no a autntica a declarao de que estes trs so um (1Jo 5,742
), isto ,
, = O patr, ho lgos kai t hgion pnema (lit.: o pai, o
filho e o santo esprito), quem pode negar que a mesma expresso empregada no NT para
descrever a relao do Pai para com seu Filho?
Em Jo 10,30, Jesus utiliza semelhante expresso empregada no Coma Joanino, ali
constando o dito: = eg ka ho patr hn esmen (lit.: eu e o pai
um somos).
Os que negam a Trindade se esforam primeiramente para negar a real divindade de
Cristo. Assim, se o texto 1Jo 5,7 que declara que o Pai, a Palavra e o Esprito so um deve
ser recusado como tentativa espria de estabelecer unidade entre os trs, o que dizer de
Jo 10,30, que emprega a mesma compreenso para ilustrar a relao de Pai e Filho, se esse
texto no esprio?
Algum defender: Jo 10,30 no menciona o Esprito. Argumento discutvel, porque a
situao em que Jesus trata dessa relao entre Ele e o Pai diz respeito sua autoridade para
41 Sobre o termo, vide nota 34. 42 Segundo edies do Novo Testamento que no adotam o texto crtico como base para sua traduo.
20 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
agir da forma como agia, quando reclama origem dessa autoridade no Pai, e que Ele e o Pai
so um. No mencionada a condio do Esprito nessa unidade, pois que esse no era objeto
de discusso no caso, tal como quando Jesus fala sobre a blasfmia de se atribuir a um esprito
impuro o que era prprio do Esprito Santo, e no tratar sobre o Pai, porque a questo ali
envolvia apenas o Filho e o Esprito (Cf. Mt 12,28-31).
SEO 04
TEXTOS DE AUTENTICIDADE POUCO QUESTIONADA
4.1. Frmulas trinitrias no NT
Frmulas trinitrias43
so encontradas ao longo do NT, cuja autenticidade no se
costuma discutir. Citemos o exemplo da saudao paulina, nos seguintes termos: A graa do
Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunho do Esprito Santo seja com todos vs
(2Cor 13,13)44
Observa-se nessa saudao uma dinmica que envolve a comunidade de fieis na
graa, no amor e na comunho, como ligadas a trs entes.
Chama a ateno, a percepo trinitria em que o autor envolve os cristos. Ainda que
a graa seja associada a Jesus Cristo, o amor a Deus e a comunho ao Esprito Santo, a
realidade de graa, de amor e de comunho so concebidas como concomitantes, sendo
resultado da interveno dos trs entes para solidificar a Igreja como ato cujo efeito nico (a
beno). Mas conforme o costume, nos textos paulinos Deus referncia pessoal ao Pai.
Porm, a ideia ali formulada elenca conjuntamente o Filho, o Pai e o Esprito Santo , na
condio de promotores dessas ddivas. Nela [n]o feita nenhuma distino entre eles
(Filho, Pai e Esprito) e razovel supor que Paulo os considerava pessoas coiguais
(HAWTORNE; MARTINS; REID, 2008, p. 395).
Num sentido mais igualitrio, outra equiparao dos entes ocorre com a frmula
batismal apresentada por Mt 28,19, que trata do batismo em ,
43 Empregamos o termo para indicar colocaes textuais que exprimem relao de unidade envolvendo Pai,
Filho e Esprito Santo, sem que necessariamente tenham o propsito de defender a doutrina, mas apenas de
demonstrar que implicitamente essa parece ser a conscincia do autor ao relacionar esses entes divinos. 44 Na 28 ed. do texto grego de Nestl-Aland, a citao 2Cor 13,13. Porm, algumas tradues fazem
constar desse texto o v.14, sendo, portanto, nessas a citao 2Cor 13,14.
21 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
= t noma to patrs to hyio ka to hagou pnematos (lit: o nome do Pai e do
Filho e do Santo Esprito).
Uma relao curiosa, sobretudo por ser consagrada a frmula batismal em nome de
Jesus (que era a identificao pessoal do filho de Maria), mas que em Mt 28,19 perde esse
carter acentudamente humano para uma relao em nvel espiritual que equipara Pai, Filho e
Esprito Santo.
Esperar-se-ia que o natural fosse consagrar a frmula difundida noutros textos do NT,
citando-se apenas Jesus, ou que ao se inovar, para evitar confuses, que se distinguiria Deus
(o Pai) daqueles que no podem ser equiparados a Ele, isto , seu Filho e o Esprito Santo. O
que no ocorreu na passagem, tornando inevitvel a equiparao e a indicao de
pessoalidade de cada um, inclusive do Esprito, pela expresso noma (nome), que um
hebrasmo a indicar a pessoa representada ou a pessoa em si.
Noutras palavras, tanto o NT respalda o Pai ser um com algum, que seu Filho,
como tambm elenca trs entes sem qualquer interesse em distinguir o que no deveria ser
colocado na mesma categoria, caso nela no se inclusse, ou no estivesse.
Os relutantes alegam que a frmula batismal consagrada aquela exclusivamente em
nome de Jesus, sugerindo que o uso tardio, apenas a partir do sc. IV dessa frmula trinitria
depe contra a autenticidade daquele versculo.
Ainda assim, textos como o Codex Siniticus, que datado de 350 d.C. (sc. IV),
apresenta Mt 28,19 da forma como o conhecemos, sem contudo apresentar uma inovao na
teologia crist, pois antes desse cdice, h testemunho de que essa frmula j era conhecida e
o versculo assim era citado45
.
Mesmo verses que propem resgatar a mentalidade judaica do NT, no omitem o
verso em lide, da forma como o conhecemos. o caso do Novo Testamento Judaico, que
assim traduz esse mesmo versculo: ... vo e faam talmidim dentre pessoas de todas as
naes, imergindo-os na realidade do Pai, do Filho e do Ruach HaKodesh46
45 Irineu de Lion (sc. II) Tertuliano (que viveu nos sculos II d.C., e III d.C.) e a Didaqu, so alguns dos
testemunhos de que o texto de Mt 28,19 no inveno do sc. IV d.C, ao contrrio do que ensinam alguns. 46 Apesar de se tratar de uma verso judaica do NT, seu autor, Davi H. Stern, utiliza como texto-base para
sua traduo o The Greek New Testament, adotado e distribudo pela United Bible Societies (UBS), que uma
edio crtica do NT grego. Assim, o NT judaico apenas apresenta uma verso judaica de um texto grego,
cujo propsito resgatar a matiz hebraica de um texto no-escrito em hebraico. relevante o fato de essa
edio no omitir ou adulterar sua traduo a fim de descaracterizar uma meno conjunta envolvendo Pai,
Filho e Esprito Santo, reconhecendo, portanto, a autenticidade da passagem.
22 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
4.2. Mt 28,19: um texto que equipara Pessoas distintas
Desde muito cedo, Mt 28,19 foi consagrado como texto de respaldo doutrina da
Trindade. Agostinho de Hipona, em seu Tratado, intitulado De Trinitate47
, ao versar sobre a
doao do Esprito Santo, por Jesus, comenta: Mesmo admitindo outra razo para o duplo
envio do Esprito, no devemos duvidar que o mesmo, o Esprito outorgado quando Jesus
soprou sobre os apstolos e o que consta nas palavra: Ide batizai todas as naes em
nome do Pai, do Filho e do Esprito Santo (Mt 28,19), onde se menciona explicitamente a
Trindade (AGOSTINHO (354-430), 1994, p. 547).
A Didaqu, ao instruir sobre o batismo, testifica que a frmula batismal de teor
trinitrio, conforme Mt 28,19, j era praticada pelas comunidades crists de sua poca:
Quanto ao batismo, faa assim: depois de ditas todas essas coisas, batize em gua
corrente, em nome do Pai e do Filho e do Esprito Santo. Se voc no tiver gua
corrente, batize em outra gua. Se no puder batizar com gua fria, faa com gua
quente. Na falta de uma ou outra, derrame gua trs vezes sobre a cabea, em nome
do Pai e do Filho e do Esprito Santo. Antes de batizar, tanto aquele que batiza
como o batizando, bem como aqueles que puderem, devem observar o jejum. Voc
deve ordenar ao batizando um jejum de um ou dois dias. (Didaqu, cap. VII)48
.
De fato, a Didaqu , sem dvida, um documento autntico que nos conduz para
bem perto das origens da prpria Igreja (ZILLES, 1983, p. 12), e um testemunho muito
antigo sobre o batismo.
Sobre a frmula batismal ali empregada, comenta Zilles: A frmula (profisso de f)
empregada a trinitria. Mas tambm sabemos que, apesar de Mt 28,19, essa no era a
nica em vigor na Igreja primeva. O prprio NT conhece uma frmula cristolgica alm da
trinitria (ZILLES, 1983, pp.50-51).
Em todo caso, a datao da Didaqu remonta entre a primeira e segunda gerao
apostlicas49
, sendo ela muito anterior ao sc. IV d.C. Assim, eliminando qualquer dvida
quanto a autenticidade de Mt 28,19, tal como esse chegou a ns o que acaba por enfraquecer
os argumentos que colocam sob dvida cdices gregos antigos quanto a apresentao da
verso da referida passagem mateana tal como a conhecemos.
Tambm, alegao de que a frmula batismal em nome de Jesus a mais
prestigiada em todo o Novo Testamento, no definitiva suposio de que Mt 28,19 tal
47 Publicado no Brasil pela Editora Paulus, sob o ttulo A Trindade. 48 Conforme traduo de Reinaldo de Souza, em Didaqu A Instruo dos Doze Apstolos, 2015, p. 16. 49 A Didaqu costumeiramente datada entre os anos 60 e 90 d.C.
23 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
como encontrada nas bblias convencionais, ser resultado de manipulao empreendida a
partir do sc. IV, pois a consagrao de uma frmula no necessariamente depe contra a
autenticidade de um texto.
Exemplo disso, a orao do Pai-Nosso; pois se comparados os textos mateano (Mt
6,9-13) e lucano (Lc 11,2-4), percebemos que a frmula lucana, ligeiramente distinta da
frmula mateana, foi preterida em relao primeira, que por sua vez, foi consagrada como a
orao modelo. E nem por isso legtimo colocar sob dvida a autenticidade da verso
lucana para o Pai-Nosso, no sentido de constar ou no do texto originalmente escrito sem que
passasse por qualquer processo de reproduo que eventualmente a adulterasse.
Noutras palavras, os textos variam, mas ambos gozam de testemunho de sua
autenticidade, mesmo que no reproduzam idntico teor, pois no devemos achar que a
inspirao para a produo desses evangelhos ocorria por ditado.
Assim, mesmo que Mt 28,19 apresente uma frmula batismal que no encontra
correspondente noutros textos bblicos, no se pode com propriedade alegar que essa
resultado de adulterao pelo simples fato de ela expressar teor trinitrio. Os estudiosos no
geral no colocam sob dvida a autenticidade dessa passagem. E ela reconhecida e
acentuadamente trinitria!
Se no encontramos outras frmulas trinitrias ao longo do NT com essa mesma
literalidade, leitura aguada de outras passagens revelam que h algumas passagens em que
so usadas frmulas trinitrias...[:] 1 Corntios 12,3-7; Efsios 1,3-14; 2,18; 4,4-6; Tito 3,4-
6, e esto de forma concebvel e sugestiva ligadas a um credo batismal e/ou iniciatrio
(HAWTORNE; MARTINS; REID,2008, p. 395).
Concluso
Dirimidas eventuais dvidas quanto autenticidade de textos que, em tese,
explicitavam a dinmica da Unidade Trina de Deus, mas que no remontam aos j perdidos
originais, conclumos que essa f no refm dessas supostas adulteraes, visto que,
suprimidos tais textos, ainda assim, a teologia trinitria bblica persiste, pois eventuais
adulteraes, quando intencionais, visaram reforar, ainda que de forma questionvel, um
credo que existia anteriormente a tais adulteraes.
O credo trinitrio cristo emergiu da contemplao da espiritualidade bblica, e da
observao de como a Histria da Salvao foi lida, especialmente pelo NT, como um evento
24 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
que envolve uma realidade divina, manifestada na unidade50
de entes (que expressa
comunho entre esses), no na unicidade51
(Ef 1,3-14), pela qual a divindade concebida
como nica pessoa.
Cabe a ns meditar como esse Deus amoroso agiu e age na histria criando, salvando e
santificando (tal como a f expressa no Antigo e no Novo Testamento).
E, ainda que diversas sejam as concepes sobre os textos sagrados que registram essa
Histria, nenhuma delas incompatvel com a tese de que os diversos livros que compem a
Bblia so tambm registros de f do povo que a produziu, assistido pelo Esprito Santo. No
sendo seu interesse apresentar conceitos teolgicos ou filosficos bem elaborados acerca de
contedo e realidades cujas palavras nunca sero capazes de limitar, a exemplo de Deus
mesmo, pois Ele sempre ser muito mais do que o homem, ainda que inspirado, possa
expressar.
E nisso, so pertinentes as palavras de Osborne, acerca da relao texto sagrado e
sistematizao da f: Mesmo sendo fato que o finito ser humano jamais produzir um
sistema absoluto da verdade bblica, no se pode dizer que a verdade das Escrituras
jamais poder ser sistematizada52
. E ainda: O segredo est em permitir que o sistema
venha do texto pela via da teologia bblica e em buscar categorias bblicas que possam
resumir a unidade que est por trs das diversas expresses das Escrituras53
.
Portanto, em lugar de irmos s Escrituras a fim de buscar conceitos ou sistemas bem
elaborados, devemos estar atentos e sensveis a compreender o registro da experincia de f
que fez o povo da Bblia, para desse modo perceber como esse mesmo povo se relacionou
com esse Deus, que de diversas formas se revelou como ser relacional, e no como um eterno
solitrio, que caso nada tivesse trazido existncia, nem a si mesmo poderia se ver como
amor (1Jo 4,8), pois essa realidade, necessariamente implica dinmica relacional de algum
que ama e amado. Por isso mesmo, a Trindade no deve ser tratada como inveno sem
embasamento bblico, mas como expresso cunhada54
para ilustrar, em palavra, o ser do Deus
que amor, porque em si mesmo ama e amado, antes mesmo do princpio da criao.
50 O que pressupe unio de entes para um fim comum. 51 Carter do que nico. Para o caso, sugesto de que o monotesmo apenas comporta a ideia de que a
Divindade pode ser uma nica Pessoa (unicidade), no comportando a ideia de comunho de entes que agem
conjunta e harmoniosamente (unidade). 52 Em A Espiral Hermenutica: uma abordagem interpretao Bblica, p. 34. 53 Idem nota 51. 54
O termo Trindade (lat: Trinitas) foi empregado por Tertuliano de Cartago, em 193 d.C., a fim de combater uma heresia denominada patripassionismo, que persistia na f de que Jesus era o Pai, e que foi este
quem sofreu na cruz. O termo tinha como propsito evitar confuses envolvendo Pai, Filho e Esprito Santo
e suas particularidades.
25 A Trindade Alm das Adulteraes Textuais no Novo Testamento Grego
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