Post on 31-Jan-2021
A VIDA NARRADA COMO PARTE DA CULTURA HISTÓRICA: A BIOGRAFIA
NO JORNALISMO
MANOEL MESSIAS ALVES DE OLIVEIRA*
Resumo: Este trabalho pretende discutir aspectos da produção de biografias feita por
jornalistas no que diz respeito ao trabalho metodológico de pesquisa e escrita diante da cultura
histórica e levando em conta a presença do jornalismo no cotidiano do público como forma de
propiciar uma imaginação histórica. Assim, este trabalho pretende tratar dos usos e abusos do
passado, discutindo temas como o do testemunho, da verdade e da veracidade dos relatos
históricos. Para isso, é preciso compreendermos a construção do ethos jornalístico na
narrativa e como esses escritores se promovem adquirindo credibilidade e legitimação no
discurso do texto biográfico por meio dos diversos campos da Literatura, da História e do
Jornalismo.
Palavras-Chave: Jornalismo; Biografias; Cultura Histórica
INTRODUÇÃO
O gênero biográfico emerge na história e no jornalismo em um processo de
aproximação destas áreas com a literatura, o que resulta em uma adoção de estilos e técnicas
ficcionais da narrativa. Assim, cada área tem procurado se legitimar diante do texto biográfico
de tal modo que o autor adquira credibilidade na execução de escrita do seu texto e procure se
diferenciar ou igualar a outra em relação a sua posição social.
Como resultado, podemos verificar que o historiador questiona o jornalista por não
estar preocupado com a maneira com que as fontes são apresentadas ou como ocorre a
referencialidade no texto, e o jornalista, por sua vez, aponta a falta de envolvimento do
historiador com a narrativa.
Entretanto, para adentrarmos nos usos públicos e políticos da história e visualizarmos
a sua historicidade e respondermos a questão para de que forma a história é utilizada?, este
texto pretende apontar algumas implicações que podem ser geradas com o trabalho do falsário
e como é possível, a partir dos temas como o do testemunho, da verdade e da veracidade dos
* Graduado em História pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis (2015 - 2018). É integrante do MEMENTO
– Grupo de pesquisa de Memórias, Trajetórias e Biografias, registrado no CNPq. Atualmente é bolsista de
Mestrado Acadêmico Capes pelo Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras de
Assis - FCL/UNESP/Assis (2019-2021), se comprometendo a estudar as narrativas lítero-musicais do jornalista,
biógrafo e escritor Ruy Castro enquanto produções de memória. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9169853982812360;
E-mail: manoeloliveira.unesp@hotmail.com
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relatos históricos, depreendermos sobre a importância que tem a construção do ethos para a
formação da consciência histórica e a forma com que a sociedade pensa a si mesma no tempo,
articulando passado, presente e futuro.
Desse modo, pretendemos explanar aspectos e apontar considerações a respeito da
metodologia de pesquisa e escrita do jornalista ao produzir biografias, procurando,
posteriormente e através das questões referentes aos impasses e embates em torno da
memória, adentrar no campo do saber histórico.
O ETHOS JORNALÍSTICO COMO LEGITIMAÇÃO DO DISCURSO: VERDADE E
VERACIDADE NO RELATO HISTÓRICO
Conforme Alberto Dines, em entrevista citada e produzida por Karine Vieira (2018),
Raimundo Magalhães Júnior foi quem, a partir da atuação no jornalismo, começou a produzir
biografias. Sua extensa pesquisa documental se insere em um contexto de valorização pelo
equilíbrio entre história e ficção, no qual a sobreposição do literário ao histórico foi diluída de
tal modo a ser possibilitada confiabilidade da narrativa e legitimação do trabalho biográfico.
Por isso que Raimundo Magalhães Júnior se opõe à biografia romanceada e busca afirmar-se
pela sua historicidade diante das fontes e da sua metodologia de pesquisa e análise
(OLIVEIRA; SILVA, 2020: 47).
Em relação a Álvaro Lins, este associava a biografia à história no que se refere aos
seus compromissos com a constante busca pela verdade, exatidão e justiça. Assim, o escritor
também se opunha às narrativas biográficas romanceadas, “fruto de uma fusão antinatural
entre biografia e romance, rotulando-as de mera literatura industrial”. Já Luís Viana, nesse
sentido, era menos categórico, afirmando que apesar da biografia moderna ter sido mais
ousada no uso de elementos da narrativa do romance como o humor e a linguagem clara e
concisa, esta continuava ligada às limitações impostas pela investigação histórica, tal qual
podemos visualizar em Strachey, Ludwig e Maurois. Para Viana Filho, apesar de tais
escritores terem buscado novos elementos na construção de suas narrativas, estes não
pretendiam afastar a biografia da história, o que os colocava como comprometidos com a
verdade e a exatidão (GONÇALVES, 2009: 191).
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Desse modo, biografar tem sido colocado como um trabalho jornalístico dentro do
campo de produção do jornalismo tal qual o trabalho em redações. Afinal, biografar envolve
um lugar de fala cujo discurso arquétipo sobre a percepção de si no contexto do grupo é
colocado diante de uma delimitação de identidade. Entretanto, podemos dizer que os
discursos dos jornalistas permeiam a posição de autoria e adentram temas transversais cuja
história, literatura e jornalismo se interseccionam (VIEIRA, 2018: 426).
A afirmação como repórter/jornalista parece ter disponibilizado a autores como Mário
Magalhães e Lira Neto “um suporte para atuarem como biógrafos: do jornalismo, de um
campo plenamente estabelecido, detentor de um ethos1 definidor da sua representação social,
da sua noção de sujeito e grupo”. A denominação de repórter parece assegurar credibilidade,
verdade, objetividade, entre outros valores que estão relacionados ao ethos jornalístico.
“Dizer-se repórter determina o seu lugar de produção e ainda rearticula o significado do status
biógrafo quando este é assumido por um jornalista. Também diferencia a sua posição em
relação aos historiadores e literatos quando biógrafos” (VIEIRA, 2018: 428).
Nesse sentido, ao narrar uma vida os jornalistas adquirem uma autorização que está
relacionada ao lugar de fala, devendo se levar em conta a instituição que estão vinculados e as
marcas discursivas e o estilo de escrita que permeiam o trabalho biográfico desses
profissionais. Além disso, é preciso mencionar também que essa autorização passa a ser
impulsionada por biógrafos-jornalistas quando estes deixam de falar de seus personagens e
abrem espaço para a autoconstrução, legitimando suas abordagens de pesquisa e investigação
ao narrar uma vida.
Se os historiadores se preocupam com o seu estatuto social de historiadores,
demarcando seus arcabouços profissionais com texto hermético a fim de preservar a
cientificidade ao utilizarem uma rigorosa metodologia, terem cuidado com a apresentação das
fontes e disporem de regras de referencialidade, os jornalistas, por sua vez, procuram ancorar
seus trabalhos a um campo diferente do acadêmico da História (PROCÓPIO, 2016).
1 O Ethos utilizado neste trabalho remete a um “comportamento verbal e não verbal dos envolvidos em um
processo de interação social e que se traduzem como modos de enunciação (maneiras de dizer e de se apresentar)
com base em indícios de tom, caráter e corporalidade [...], e na qual a manifestação discursiva possui uma
especificidade que desenha uma imagem de si, que será (ou não) incorporada pelo auditório, ou seja, o possível
público-leitor” (SILVA, 2020: 4, no prelo).
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Por isso, ao invés de construírem um ethos de erudição, informando que a obra é fruto
de uma dissertação de mestrado ou que estão ligados a um determinado grupo de estudo ou
departamento, como fazem os historiadores na tentativa de legitimarem seus compromissos
com a verdade e adquirirem credibilidade de suas narrativas biográficas - em detrimento de
outras áreas -, os jornalistas se preocupam com a construção de uma narrativa envolvente
juntamente de qualidade estética, no qual a literalidade e a preocupação com a verdade
pertencem ao enredo da narrativa (PROCÓPIO, 2016).
Para compreendermos como o ethos do jornalista, pesquisador e escritor é construído
nos elementos constitutivos do paratexto de um livro biográfico, visualizamos os alicerces do
ethos jornalístico em um fragmento de texto disponível na contracapa de Olga, de Fernando
Morais, atribuído a Jorge Amado:
nos últimos anos, poucas obras alcançaram no Brasil sucesso tão estrondoso
quanto esta biografia de Olga Benário Prestes. Jornalista renomado, Fernando
Morais revelou-se também um pesquisador competente, e escritor dotado de
sensibilidade e talento. Com simplicidade, sabedoria e grandeza, ele soube recriar
um drama profundamente humano de nossa época. (MORAIS apud PROCÓPIO,
2016: 54).
Desse modo, percebemos que o estatuto social ocupado pelo biógrafo é o de
“jornalista renomado”, tornando-se com essa obra um “pesquisador competente” e “escritor
sensível e talentoso”, utilizando de uma “simplicidade, sabedoria e grandeza” para recriar o
cenário, visto que é sabido que os jornalistas possuem a função social de facilitar o acesso à
informação através de uma linguagem clara, precisa e simples. Percebemos, portanto, que
Jorge Amado diferencia jornalista, pesquisador e escritor, apontando, com isso, que a
narrativa compõe traços de um notório profissional com a autenticidade de um historiador e
com a projeção de emoções por meio de sua narrativa assim como faz um literato
(PROCÓPIO, 2016: 55).
Essa mesma exemplificação também é possível ser verificada em Ruy Castro nas
obras Carmen: uma biografia (2005); A noite do meu bem: a história e as histórias do
Samba-Canção (2015) e Chega de Saudade: a história e as histórias sobre a Bossa Nova
(2016). Na obra sobre a intérprete está escrito na orelha do livro que se trata de “uma história
profundamente humana – temperada pelo humor e pelo estilo inconfundível de Ruy Castro”, o
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que denota uma narrativa que traz sensibilidade e que não está embebida de palavras eruditas
com vocabulário denso, mas sim um estilo narrativo único que procura envolver o leitor com
o seu humor. Em relação às outras duas obras podemos notar a preocupação com a
credibilidade e notoriedade do jornalista. Desse modo, na obra sobre a Bossa Nova procura-se
afirmar o sufoco gerado com o desgastante trabalho com as entrevistas:
para contar a história da Bossa Nova, Ruy Castro penetrou nos seus bastidores e
ouviu dezenas de seus participantes – compositores, músicos e cantores, além dos
amigos e dos inimigos deles. Todo o Rio da Bossa Nova foi reconstituído, boate por
boate, tiete por tiete, história por história (CASTRO, 2016).
Assim, pretende-se dizer que teremos uma narrativa descritiva e imparcial acerca da
história da Bossa Nova de igual modo a atuação do repórter no jornalismo, enquanto a obra
sobre o Samba-Canção parece legitimar o prestígio, a importância, e as honrarias que Ruy
Castro possui ao ser apresentado como cidadão benemérito do Rio de Janeiro.
Logo, Ruy Castro é visto como um memorialista que por detrás do seu discurso existe
um resguardo do discurso jornalístico, cumprindo protocolos e regras específicas. Com isso,
podemos dizer que além da sua autoridade no relato se encontra não apenas um cidadão
benemérito do Rio de Janeiro, mas também alguém que possui “bagagem” e um ofício que
está vinculado a ética do trabalho jornalístico.
Esses procedimentos utilizados pelos jornalistas se caracterizam, portanto, em conferir
credibilidade às narrativas. Podemos ressaltar também, quanto a esse compromisso com a
verdade, o detalhamento que os jornalistas fazem ao mencionar seus processos de
investigação com as entrevistas, visto que estas são tidas como um momento de partilha, de
construção entre o entrevistado e o entrevistador.
Diante disso, tratando a respeito de Mário Magalhães, Regina Zappa e Lira Neto,
Karine Vieira (2018: 433) apontou que
a posição desses jornalistas na autoria está condicionada a sua posição de repórter
que, na ambiência, do gênero biográfico, se coloca, em determinados momentos,
como pesquisador - no trabalho com entrevista em profundidade, revisão
bibliográfica, uso de notas de referências de fontes -, e como escritor ao explorar
uma narrativa criativa, mas que precisa se sedutora. É o repórter quem articula
esses outros sujeitos. É a cabeça de um repórter que constrói a identidade narrativa
dos biografados na biografia. A reportagem é a expressão do texto biográfico.
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Essa preocupação com a verdade que tanto aflige os jornalistas (e também os
historiadores) é criticada por Vilas-Boas (2014) ao se referir a Fernando Morais, Ruy Castro,
Bojunga e Claudia Furiati. Para o autor, tais jornalistas-biógrafos parecem condicionados a
uma ideia de que a verdade pode ser atingida em sua totalidade ao se apresentar grande
volume de informações, como pudemos visualizar na orelha do livro de Ruy Castro que a
narrativa reconstituiu “todo” o Rio da Bossa Nova, “boate por boate”, “tiete por tiete”,
“história por história”. Dessa forma, quando se constrói um personagem as fronteiras do real e
do imaginário acabam sendo diluídas, já que o biógrafo na biografia não ficcional deve buscar
a coerência,
fazendo com que esse quebra-cabeças existencial tenha ordem e sentido instituídos
pela linearidade. E se assim enxerga o biógrafo o seu trabalho - ou seja, um puzzle
(...) – o tipo de contratação que norteará o seu trabalho já está definido: a crença
de que a narrativa tem verdadeira possibilidade de reconstituir uma trajetória de
vida e que esta se dá a partir de uma linearidade de coerência e um todo-sentido
(BRUCK, 2008: 123).
Para Vilas-Boas (2014: 159), “biografias revelam tanto quanto ocultam. Podem nos
parecer superconsistentes sob o disfarce da historiografia, da psicologia, do ensaio literário e
da linguagem jornalística ágil, às vezes criativa e instigante”, mas não reproduzem o humano
e seus contornos. Apesar dessas palavras um tanto quanto exageradas no que se refere aos
seus sentidos, o autor pretende afirmar que a trajetória de um personagem da história é
imensurável, incalculável, indecomponível. Mas, produzir uma trajetória desse personagem é
possível diante da objetividade, e por isso o autor estabelece alternativas para que a escrita
biográfica seja mais coerente e reflexiva.
Dentre tais alternativas, Vilas-Boas (2014) cita a transparência, cuja narrativa deve
expor as dúvidas, escolhas, conflitos, impasses e caminhos, incluindo o making of,
percorridos para o jornalista concluir sua biografia. Com isso, podemos dizer que a
metodologia de pesquisa e escrita dos jornalistas passam a adentrar o campo dos historiadores
- apesar de não disporem em seus textos de linguagem acadêmica - e, por isso, a necessidade
de se afirmar (ou ser caracterizado) como jornalista, pesquisador e escritor.
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Desse modo, podemos afirmar que o jornalista passa a ser considerado um autodidata
no sentido de que deve ser “possuidor de bagagem” a respeito das diversas áreas do
conhecimento, o que é uma informação relevante para adentrarmos na função social e política
do jornalista, visto que na biografia do Barão de Mauá, escrita por Jorge Caldeira (Jornalista,
Mestre em Sociologia e Doutor em Ciência Política), podemos verificar em um paratexto de
apresentação da obra o que o motivou para escrevê-la: a curiosidade pela “figura de Mauá”:
aos poucos, o que era apenas curiosidade foi se tornando problema. Trabalhando
como jornalista de economia – na Folha de S. Paulo, IstoÉ e Exame – num país em
convulsão monetária permanente, comecei a perceber que muitos problemas atuais
não o eram tanto assim, e me senti tentado a olhar mais para a figura de Mauá,
buscando futuro no conhecimento do passado (CALDEIRA apud PROCÓPIO,
2016: 58)
Desse modo, a curiosidade de Jorge Caldeira demonstra que o escritor está cumprindo
a sua função de jornalista, no que tange o imaginário da profissão, já que o jornalismo
demanda atuação nas mais diversas áreas. Além disso, podemos apontar também que o trecho
compõe a experiência e a credibilidade adquirida por Jorge Caldeira ao citar os veículos de
comunicação que trabalhou e sua especialidade enquanto jornalista de economia, podendo
falar sobre a vida de seu personagem e a história do país (PROCÓPIO, 2016: 58).
O resultado disso é que temos uma narrativa que pertence a um instrumento político
cuja função é abastecer a população de informações visando formar a opinião pública. Assim,
a imprensa age como um quarto poder2 e atua como um singular-coletivo3, o que nos remete
a pensar a respeito das implicações relacionadas a memória na construção de biografias
produzidas por jornalistas, visto que a vida narrada pertence a uma cultura histórica4 cujo
2 A expressão provém de um discurso de um deputado do Parlamento inglês, Lorde MacCaulay, em que apontou
os repórteres como o “quarto poder”. Essa imprensa surge da vontade de emancipação da sociedade civil, o que a
colocou como agente social responsável pelo funcionamento da sociedade. Como resultado, temos uma
metalinguística de discurso único possibilitado pela função institucional atribuída à imprensa através da nova
sociedade civil, formada também na nova esfera pública da modernidade (CORREIA, 2017: 70). 3 Conforme Correia (2017: 64), o singular-coletivo está presente em Koselleck e “aponta para uma situação em que diversas singularidades centram-se sobre um mesmo eixo semântico definidor resultando em uma única
expressão, reconfigurada, a representar aquele novo coletivo”, como podemos depreender da ideia de que das
várias revoluções na História criou-se a Revolução. 4 Diante das questões levantadas a respeito da função social do jornalismo, podemos afirmar que a expressão
cultura histórica utilizada nesse texto condiz com aquela emprestada por Le Goff (1990) de Bernard Guenée,
para caracterizar como os homens constroem e reconstroem o seu passado, ou seja, o lugar que o passado ocupa
nas sociedades e qual a relação que as sociedades mantém com ele, remetendo “para as formas pelas quais
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ethos jornalístico busca credibilidade ao se construir a narrativa e legitimação para o seu
conteúdo. Afinal, a memória está condicionada a afirmação de identidades e pode ser mantida
entre grupos em relação à sustentação de memórias marginalizadas.
Dessa forma, podemos citar os personagens venerados pela história oficial como
símbolos cívicos, no qual através de um processo de afirmação de valores e referências,
grandes feitos e datas, tais homens extraordinários acabam sendo relacionados a essa
construção identitária que visa “ao passado legitimar o presente, em um processo de
construção da memória que na maioria das vezes se distancia da vigilância crítica e fidelidade
ao passado” (SILVA, 2009: 155).
Assim, no texto biográfico, é possível analisar a atitude dominante de algumas
sociedades históricas perante o seu passado e a sua história e, no qual o jornalista na produção
de biografias pode acabar atuando como detentor da veracidade dos relatos históricos e,
portanto, como dissipador da mentalidade coletiva. Afinal, é preciso reconhecer a crescente
demanda sócio-cultural existente pelas publicações biográficas a respeito de poetas, cientistas,
políticos, escritores, artistas que através do voyeurismo e da bisbilhotice passaram a ser alvo
da curiosidade pública.
Com isso, podemos afirmar que a memória é uma possível
forma de manutenção de mitos, mas que desenvolvem uma característica dinâmica,
de manutenção e transformação que permite a presença do passado a partir do
presente, que seleciona e representa em termos individuais e coletivos [a]
experiência vivida e seu significado em processos de construção de identidades e
alteridades, do contraste do eu e do outro, de nós e eles (SILVA, 2009: 156).
Esse aparato narrativo confirma, portanto, que a memória coletiva é apropriada pelo
indivíduo ao se identificar com os acontecimentos públicos e representativos do seu grupo.
determinada sociedade pensa a si mesma no tempo, articulando as categorias de passado, presente e futuro e
constituindo modalidades variadas de representação desta mesma experiência temporal. A historiografia seria
apenas uma destas modalidades que, em uma cultura histórica específica, insere-se em um contexto de tensões e
disputas discursivas com outras modalidades distintas, tais como os registros testemunhais, os relatos de
memória, as narrativas elaboradas por não historiadores entre outros. Considera-se ainda que estas modalidades
de representação são também formas de tornar utilizável o passado representado em função das demandas
colocadas pelo presente e em função das perspectivas de futuro elaboradas” (BAUER; NICOLAZZI, 2016: 814).
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Para ilustrar essa questão, podemos trazer o caso Marco Bettle que relatou
emocionadamente no ano de 2005 sobre o dissabor sofrido por ele e por outros nos campos de
concentração nazista:
Quando chegávamos aos campos de concentração nos trens infectos feitos para o
gado, nos desnudavam completamente, retiravam nossos pertences; não apenas
como um ato de rapina, mas sim para nos deixar completamente nus e
desprotegidos: a aliança, a pulseira, a corrente de ouro, as fotos. Sozinhos,
desassistidos, sem nada. Nada que lhe pudesse recordar o exterior, nada que lhe
pudesse recordar a ternura de alguém que lhe permitiria seguir vivendo com a
esperança de que voltaria a recuperá-la. Nós éramos pessoas normais, como vocês,
mas eles nos desnudavam e logo seus cachorros nos mordiam, nos cegavam suas
luzes de lanterna, nos gritavam em alemão ‘esquerda, direita’. Nós não
entendíamos nada e não entender uma ordem poderia lhe custar a vida (BAUER;
NICOLAZZI, 2016: 812).
Desse modo, Marco Bettle apresentava “as lembranças coletivas ocultadas pelo trauma
ou pela conivência, transformava sua própria memória em uma espécie de trabalho de luto
para aquela sociedade, assumindo com o seu testemunho uma função cívica importante” que
lhe garantiu a cruz de Sant Jordi (máxima condecoração cívica do governo catalão). Essa
credibilidade adquirida pelo autor certamente recebeu força com o fato de Marco ter se
matriculado na faculdade de história em meados dos anos 70 (com mais de cinquenta anos de
idade), atribuindo autoridade ética ao seu testemunho, mas colocando-o em uma posição
“amparada pelos fundamentos que sustentam a história enquanto saber, fazendo dela algo
distinto e, por vezes, antagônico à memória” (BAUER; NICOLAZZI, 2016: 814).
Quanto a isso, podemos visualizar o que adverte Nora (2009: 9) ao tratar de nossa
cultura histórica
Entretanto, boa parte do que Marco narrara era falso, conforme provara o historiador
Benito Bernejo, levantando questionamentos acerca das atribuições que a mentira pode ser
assumida pela história. Apesar da narrativa possuir veracidade, Marco não informara ao
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ouvinte tal particularidade do seu relato, mas usara em defesa que “mentiu para ressaltar a
verdade”, visando explicar com veemência e eloquência aquilo “que eles não eram capazes de
explicar” (BAUER; NICOLAZZI, 2016: 815-817).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com isso, ficamos diante do questionamento a respeito da função da história e suas
próprias modalidades de uso do passado, no qual podemos problematizar questões que
envolvem a cultura histórica e seu uso e abuso na confecção de biografias jornalísticas e
históricas ao tratarmos da credibilidade e legitimação da narrativas que estes profissionais
pretendem ao saturarem seus textos na busca de receberem notoriedade frente a construção de
intelectuais, escritores, jornalistas, artistas e demais personagens que podem ser venerados,
monumentalizados, e até se tornarem símbolos cívicos de uma época.
Essa constatação nos aponta, portanto, que o saber histórico não é uma virtude apenas
dos historiadores e que, portanto, no que diz respeito a função social da história esta pode ser
“objeto de uso de vários indivíduos ou grupos de indivíduos que nem sempre se reconhecem
ou são reconhecidos social, institucional e epistemologicamente como historiadores”. Desse
modo, podemos dizer que “a história enquanto tal é atravessada por múltiplos discursos que
vão desde a literatura até o jornalismo, passando por campos como o direito, a educação, a
teologia, a filosofia e, por que não, o mundo dos falsários” (BAUER; NICOLAZZI, 2016:
819).
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