Post on 13-Feb-2019
ALÔ AMÉRICA DO SUL! - OS ESTEREÓTIPOS SUL AMERICANOS NA PROPAGANDA DE GUERRA ESTADUNIDENSE.
Aline Vanessa Locastre – Mestranda UEL
Bolsista Capes
O mundo encantado da Walt Disney é sem dúvidas muito conhecido no mundo hoje.
Seus personagens mais importantes como o esperto Mickey Mouse e o engraçado Pato Donald
marcaram a infância de milhares de crianças (e adultos também) ao redor do mundo, tanto em
suas aventuras nos quadrinhos quanto no cinema. Aparentemente ingênuos esses personagens,
assim como as aventuras que os cercam, carregam intenções, mensagens subliminares, que
procuram atender a determinados motivos, em determinados momentos da história.
Assim, o estudo do cinema, ou da mídia, cada vez mais desperta o interesse dos
historiadores, que procuram perceber a intencionalidade dessas produções midiáticas e o
impacto que elas proporcionam em seu público. Marc Ferro em “O Filme: uma contra-análise
da sociedade?”( FERRO, 1989, p.199-215) levanta questões pertinentes sobre esse tipo de
entretenimento, que tomado por historiadores pode se tornar uma “imagem objeto”.
Para Ferro, fica muito evidente que todo filme, que parece proporcionar um puro e
simples entretenimento, defende os interesses de grandes empresas privadas ao mesmo tempo
em que passa por uma ferrenha censura por parte do Estado. O cinema seria capaz, segundo
Ferro, de destruir aquilo que professores, juristas, pensadores demoraram décadas para
construir. Essa fonte de diversão alterou padrões, instaurou outros tipos de pensamentos, fez
surgir uma História que não é necessariamente a História ( FERRO, 1989, P.208).
Porém, várias precauções devem ser tomadas na análise filmitica. Jamais um filme
deve ser tomado como prova do que aconteceu, já que se trata de uma obra de arte que está
concretamente ligada ao seu presente. Ângelo Moscariello, autor da obra “Como ver um filme
(MOSCARIELLO, 1985)” afirma que “fazer dos protagonistas de uma story os supostos
protagonistas de uma História significa repor a esfera do ‘verdadeiro’ sob a do
‘verosímil’”(MOSCARIELLO, 1985, p. 83).
Para uma análise do cinema, ainda segundo Ferro, é necessário haver uma
combinação entre as partes visíveis e não visíveis dos filmes. Assim, “É necessário aplicar
esses métodos a cada substância do filme (imagens, imagens sonoras, imagens não
sonorizadas)”(FERRO, 1989, p. 203), juntamente com “a narrativa, o cenário, o texto, as
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relações do filme com o que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime”
(FERRO, 1989, p.203). Diante dessas problemáticas levantadas poderíamos chegar a
conclusões acerca da “realidade” ao qual o filme, em análise, referencia.
Da mesma forma que as entrelinhas contidas em imagens como fotografias ou pinturas
devem ser levadas em consideração, o filme também deve considerado por meio da ótica não
visual. Na ausência dessas informações, os por quês dessas lacunas podem significar muito
para averiguar os sentidos “ocultos” das imagens estáticas ou em movimento.
Por se tratar de imagens em movimento, diferentes de outros tipos de arte, o cinema
oferece ao seu espectador a sensação de vivenciar aquilo que está sendo reproduzido na
película. Derivado dessa sensação, inúmeras vezes os filmes não se limitam a divertir seu
público. Consciente ou inconscientemente eles reproduzem valores, modismos de seus
produtores. Em sua dissertação de mestrado, Alexandre Maccari Ferreira defende que todos
os filmes poderiam ser enquadrados em algum tipo de propaganda, contudo, há obras em que
esse caráter propagandístico faz mais notável em determinadas épocas (FERREIRA, 2008, p.
68). Um exemplo foi a década de 1940, onde em decorrência da Segunda Guerra Mundial,
várias empresas, como a Walt Disney estava diretamente ligadas ao esforço de guerra, ora
lançando produções que justificavam o conflito, ora desmoralizando o inimigo.
Analisaremos nesse artigo o desenho/documentário produzido pelos estúdios da Walt
Disney chamado “Alô Amigos”, datado de 1943. Nele encontramos uma grande quantidade
de elementos para análise sobre o teor da propaganda de guerra estadunidense na América
Latina, assim como a visão de seus produtores sobre a população e as sociedades localizadas
abaixo das fronteiras estadunidenses. Enfocaremos nossas atenções às imagens sul americanas
disseminadas pela produção, que de alguma maneira, reflete uma visão não apenas dos
empregados Disney, mas de uma parcela muito mais ampla da sociedade estadunidense sobre
os vizinhos americanos em meados dos anos 1940.
“Novas” relações entre americanos
Foi em um contexto conturbado, após a depressão de 1929 e estranhamento da
imagem estadunidense com os latino-americanos que o presidente Franklin Delano Roosevelt
assumiu a presidência da república dos Estados Unidos. Durante seu mandato viabilizou uma
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série de programas econômicos e políticos (o New Deal), que tiraram o país do abismo
financeiro que ainda se encontrava no pós crise (TOTA, 2000, p. 38).
A necessidade de exportação e comércio dos artigos industrializados dos Estados
Unidos, assim como a carência por alguns gêneros de matérias primas requeriam a urgência
do estreitamento das relações diplomáticas com os países latino-americanos. O livre comércio
teria que encontrar uma fresta para entrar definitivamente nas fronteiras americanas. Entre
1935 e 1939 buscou-se a tentativa de provar que a melhor maneira de transação comercial
teria que advir do livre comércio entre as nações (MOURA, 1984, p. 18).
Franklin Roosevelt será eternizado como o grande implementador da ‘Política da
Boa Vizinhança’, como estratégia de estreitamente nas relações Estados Unidos e América
Latina. Porém, atento aos empecilhos que a Doutrina Monroe causava ao próprio
desenvolvimento econômico de seu país, o anterior presidente da república, Herbert Hoover,
em uma viagem que fez a Honduras, proferiu pela primeira vez o termo “Good Neighbor’, em
referência aos vizinhos de continente (TOTA, 2000, p.28).
Vemos que não foi apenas uma iniciativa de Franklin D. Roosevelt a tentativa de
mudança nas relações diplomáticas dos Estados Unidos com a América Latina. Esse caráter
impositivo e inflexível perante a liberdade de governabilidade dos vizinhos latinos afetou por
demasia a imagem estadunidense na América.
A disparidade cultural existente entre americanos também era um fator de
desagregação. Enquanto os Estados Unidos praticavam o protestantismo (religião de vertente
cristã), os latino-americanos professavam, em grande parte, a religião Católica (também
vertente do cristianismo). Os aspectos culturais, como mistura étnica, organização econômica
e política fomentavam um abismo entre a América de origem Anglo Saxã e a América Latina.
No imaginário estadunidense, durante muito tempo, não era possível estabelecer laços entre as
Américas, uma vez que, a superioridade civilizacional dos Estados Unidos parecia
inquestionável. Não havia sentimento de irmandade, já que eles não pareciam irmãos.
Americans eram os nascidos nos Estados Unidos da América e seus vizinhos, de origem latina
os Other Americas, eram os residentes em terras distantes, com imensos vazios populacionais
(TOTA, 2000, p.36).
Em um momento primordial da história dos Estados Unidos, o mundo natural já
havia sido vencido, principalmente após a Marcha para o Oeste. O Mundo natural, nesse
sentido, havia sido transformado em função do progresso material que os desbravadores
almejavam. Ao comparar esse ideário com a América Latina, automaticamente “provava-se”
que os imensos territórios despovoados dessa região representavam o “atraso” dos habitantes
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latino-americanos. O modelo estadunidense precisava ser aceito e praticado para a América
Latina crescer economicamente (JUNQUEIRA, 2000).
Entretanto, como adentrar no solo vizinho sem criar hostilidades, uma vez que,
durante tanto tempo, os Estados Unidos representavam uma ameaça à soberania dos governos
Latino americanos? A estratégia foi optar por uma forma mais sutil, onde o jeito de viver, o
American Way Of Life, fosse almejado pelas mais diversas camadas sociais das ‘outras
Américas’. Assim, a sociedade estadunidense foi disseminada através dos meios de
comunicação, programas de apoio à saúde e empréstimos para o desenvolvimento dos países
latino-americanos.
A forma pelo qual a Política de Boa Vizinhança foi implementada, no que diz
respeito a uma coerção militar ou sanções econômicas, foi mais branda. Podemos dizer que a
‘roupagem’ da política de Roosevelt destoava da do Big Stick, porém, os objetivos de ambos
eram idênticos: impedir que países europeus adentrassem as fronteiras econômicas da Latino-
América; proteger o livre comércio estadunidense na região; garantir ao governo de ‘Tio Sam’
o território americano, pois ele possuía uma posição estratégica importantíssima aos Estados
Unidos. (MOURA, 1984, p. 18)
Para adentrar o território vizinho, de uma forma que não ocasionasse maiores
problemas, o governo Roosevelt buscou parcerias, nesse caso com os estúdios Walt Disney,
com o qual incentivou a produção de filmes com o sentido de transmitir aos americanos
informações sobre o território e sua população, lançando mecanismos para impedir que as
forças nazi-fascistas penetrassem no território americano. Elaborando desde desenhos
animados que abordavam a escassez de comida em decorrência do conflito armado, até gibis
ou produções onde retratavam a inferioridade moral dos alemães, japoneses e italianos, a Walt
Disney foi uma grande parceira das Forças Armadas estadunidense na década de 1940.
(FERREIRA, 2008, p. 13-25)
A América do Sul segundo Walt Disney
O desenho animado “Alô Amigos”, no original “Saludos Amigos” datado de
1942/43, tem uma duração de 42 minutos e até hoje impressiona pela tecnologia empregada
para sua produção. O desenho/documentário pode ser dividido em quatro partes, sendo que,
em cada uma delas, uma região da América do Sul é enfocada. O Rio de Janeiro, no Brasil, os
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pampas argentinos, o Lago Titicaca no Peru e Bolívia e o monte Aconcagua no Chile, servem
de cenário para as aventuras dos personagens da Disney e de inspiração para seus roteiristas.
Entretanto, nessa produção percebemos inúmeros estereótipos, ainda hoje presentes, acerca da
América do Sul e da sua população.
Em um estudo elaborado pela historiadora Mary Anne Junqueira, desde o
desbravamento do Oeste estadunidense a conquista de um território hostil foi necessário para
a implantação da civilização. Assim, o wilderness (que na tradução de Junqueira adquire um
caráter de espaço ‘selvagem’, com ‘vazios populacionais’) serviu de motivação para a luta dos
cidadãos estadunidenses em vários momentos da História, entre eles as lutas nazi-fascistas,
comunistas e em guerras como a do Vietnã. (JUNQUEIRA, 2000, p. 70-71)
Esse mito, da conquista de espaços selvagens, fez e ainda faz sucesso na literatura e
cinema estadunidenses, que mostram cowboys desbravando o West do país. No século XX
esse Wilderness será comumente associado ao território sul americano, que constantemente é
mostrado pela imprensa como um lugar de vazios populacionais, homens e mulheres com
culturas primitivas e uma natureza ainda não desbravada. É a partir desse pensamento de
Junqueira, em pensar a associação entre Wilderness e América do Sul no imaginário dos
Estados Unidos, que procuraremos analisar a difusão desse pensamento através da mídia,
partindo do desenho animado “Alô Amigos”.
Logo no início do desenho/documentário Ed PLumb e Paul Smith, ambos
funcionários da cinematográfica, compõem uma pequena música que simboliza a ‘amizade’
entre os vizinhos americanos:
“Saudamos a todos, da América do Sul
A terra onde o céu sempre é bem azul
Saudamos a todos, amigos de coração
Que lá deixamos, de quem lembramos
Ao cantar essa canção”
Quem possivelmente, em meados da década de 1940, lembrava do histórico
intervencionista estadunidense na América Latina e das enormes disparidades sócio-culturais
entre os Estados Unidos e os vizinhos americanos, possivelmente questionaria o verdadeiro
sentimento dessa canção. “Amigos de coração” retrata a política de aproximação entre as
Américas, pretendida por Franklin D. Roosevelt, que tentava transformar as Américas em seu
protetorado para impedir sua adesão às forças nazi-fascistas.
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A América do Sul, nessa canção, é também descrita como uma terra onde “o céu
sempre é bem azul”. Um lugar onde possui sempre um céu azul nos dá a impressão de um
lugar paradisíaco, sem problemas, de clima agradável e de belas paisagens. O solo sul
americano possui inúmeras paisagens, lugares belíssimos e encantadores, porém, possui
grandes problemas que passam a ser irrelevantes face a esse céu azul.
Os objetivos que motivaram vários músicos, roteiristas, desenhistas da Disney a
saírem em expedição pela América do Sul são colocados logo no início do
desenho/documentário. As motivações teriam sido encontrar novos companheiros para
Mickey e Donald e conhecer novas músicas e danças. O primeiro objetivo foi alcançado já
que, é a partir desse desenho, que o personagem José Carioca ou Zé Carioca (representando o
malandro do Rio de Janeiro) se junta aos companheiros da Disney World.
Zé Carioca em sua primeira aparição no mundo Disney (Cenas: Alô Amigos)
O segundo objetivo, que pretende conhecer a dança e música sul americana nos
mostra a forma como os estereótipos dessa região são apresentados no desenho. A cultura
desses países é apresentada como ‘estranha’, ‘pitoresca’, ‘esquisita’. Por vezes, assemelham
as tradições americanas com a cultura local estadunidense. Nas imagens abaixo, em que
retratam música e dança típicas dos pampas gaúchos o narrador faz uma aproximação com as
danças e músicas do Faroeste.
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Bailes e músicas típicas argentinas: (Cenas: Alô Amigos)
Junqueira narra que por muito tempo houve o mito da superioridade do povo
argentino, por este ser predominantemente branco. Ao contrário do restante da América
Latina que foi formada por povos indígenas e negros, a Argentina ganhava um lugar de
destaque na produção “Alô Amigos”, já que foi esse país comparado ao Oeste estadunidense.
Segundo Junqueira, essa ‘similaridade’ cultural entre Argentina e Estados Unidos, confirma
um pensamente muito disseminado entre os estadunidenses de que a civilidade pertence aos
povos de pele branca. (JUNQUEIRA, 2000, p. 140)
A música boliviana e peruana é caracterizada como herança direta dos Incas e
segundo a narração do desenho é uma música ‘nostálgica’ e ‘exótica’. Assim, toda essa
nostalgia é ressaltada na tentativa de uma aproximação com as antigas tradições do Oeste
estadunidense. Há uma tentativa em criar uma origem comum que assemelha e une os
americanos, mesmo que essa tradição seja, na realidade, muito diferente.
Música nostálgica e exótica herdada dos Incas (Cenas: Alô Amigos)
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No caso do gaúcho argentino essa tentativa de aproximação com o Cowboy dos
Estados Unidos é tão explícita que em uma parte do desenho eles trocam a roupa do
personagem Pateta (vaqueiro do Faroeste) pelos trajes típicos do gaúcho, pois segundo o
narrador do desenho, os dois possuem muita semelhança, apesar de seu vestuário variar
“ligeiramente” entre um e outro.
Roupas típicas do gaúcho (Cenas: Alô Amigos)
O samba brasileiro é a dança que parece chamar mais a atenção dos funcionários da
Disney. Tal é o encanto que eles próprios tentam aprender alguns instrumentos para a sua
execução e os passos da dança. Mesmo sem executar os passos e os instrumentos
corretamente, a equipe de Disney parece muito compenetrada em aprender com os brasileiros.
Em momento algum a origem da dança é citada, concomitantemente, a população negra no
Brasil parece não existir.
O samba brasileiro (Cenas: Alô Amigos)
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Outro ponto a ser destacado nessa análise é o carinho que a população sul americana
parece sentir pelos seus vizinhos continentais. Por meio do personagem Zé Carioca, que
representa o povo brasileiro, Pato Donald é recebido prazerosamente pelo papagaio. Com um
abraço “quebra costelas, típico carioca”, segundo Zé Carioca, o Pato Donald é recebido
calorosamente no Brasil. Essa possível “hospitalidade” e “alegria” dos brasileiros é até os dias
de hoje disseminado pelos meios de comunicação como marca de seu povo.
A hospitalidade brasileira (Cenas: Alô Amigos)
A malandragem do carioca perante os problemas cotidianos também se faz presente
no cartoon. Em um passeio de Donald e Zé Carioca pelo Rio de Janeiro, os dois sentam em
uma mesa de bar e tomam a tradicional cachaça brasileira. O papagaio parece muito
familiarizado com a bebida e não sofre alteração nenhuma em sua fisionomia. Donald,
entretanto, não agüenta uma dose de cachaça e passa mal. Fica claro na animação que o
objetivo é mostrar que o sul americano induz o estadunidense ao consumo de bebida
alcoólica, este por sua vez parece ingênuo ao ponto de se deixar levar pelo convite de seu
‘novo’ amigo.
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Zé Carioca leva Donald para um passeio no Rio de Janeiro (Cenas: Alô Amigos)
A paisagem natural da América do Sul é muito ressaltada, dando a impressão de um
grande vazio populacional, como aborda Mary Anne Junqueira. O mundo natural ainda não
foi desbravado e se apresenta como algo a ser conquistado e ‘domado’ pelo homem
‘civilizado’. Na parte do desenho que se destina ao Chile, Walt Disney optou por homenagear
os pioneiros dos correios que enfrentavam jornadas perigosas e longas para a entrega de
correspondências. Para tal, o personagem principal, um aviãozinho de nome Pedro, enfrenta
todo o tipo de perigo para cumprir sua missão: entregar a tempo as correspondências de
Mendoza a Santiago. A paisagem que cerca tal história está concentrada na Cordilheira dos
Andes e em nenhum momento cidades ou populações humanas são mostradas.
Aquarelas dos Alpes chinelos (Cenas: Alô Amigos)
Na cena em que o aviãozinho Pedro atravessa o monte Aconcágua, ele é atingido por
uma grande tempestade, que por sorte e por suas habilidades não é destruído. Vemos que, em
terras sul americanas a natureza mostra-se hostil ao personagem principal. Essa hostilidade
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adquire um sentido de América ‘selvagem’. Para Junqueira, a Cordilheira sul americana foi
vista, na maioria das vezes, como “ entrave geográfico para o progresso, barreira que impedia
a comunicação entre os povoados espalhados pela região”(JUNQUEIRA, 2000, p. 137).
O aviãozinho Pedro em meio a uma tempestade (Cenas: Alô Amigos)
Nas partes do desenho/documentário Alô Amigos que aborda os pampas argentinos
e o Lago Titicaca, essa natureza hostil também pode ser observada. Nas cenas abaixo vemos
um cavalo dominando o vaqueiro Pateta, ao invés deste o dominar e uma Lhama, animal
típico da região andina, dominando o personagem Donald. Em ambos os casos, percebemos
uma América do Sul com personalidade, que não modifica seu cotidiano, nem sua ‘natureza’
quando em seu contato com os seus vizinhos estadunidenses.
O cavalo domina o personagem Disney ( Cenas: Alô Amigos)
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A Lhama domina Pato Donald (Cenas: Alô Amigos)
Pudemos perceber que o governo de Franklin Roosevelt procurou estratégias para
conter o nazi-fascismo nas Américas e manter os latino-americanos sobre seu protetorado.
Uma das medidas foi buscar parcerias com estúdios (no caso analisado a Disney) para, através
de produções midiáticas e de entretenimento, disseminar o modelo estadunidense de
sociedade, assim como descaracterizar os inimigos de guerra (Alemães, Japoneses e Italianos)
e ressaltar os demais países da América Latina.
Porém, ao estudarmos a produção “Alô amigos”, percebemos que, muitas vezes, ao
tentar abordar os latino-americanos nas produções midiáticas, muito estereótipos acerca da
cultura dos vizinhos dos Estados Unidos eram reproduzidos. O peso do imaginário
estadunidense de dominação do Wilderness (espaço vazio, selvagem) para a concretização da
civilização foi difundido nas Américas, na medida em que a única alternativa para o
desenvolvimento econômico, político e cultural da América do Sul parecia depender da
dominação de seu povo sobre os espaços despovoados.(JUNQUEIRA, 2000)
Algumas características atribuídas à cultura da América do Sul, como a de possuir
músicas e danças semelhantes às do Oeste estadunidense, nos oferece indícios de que se
tentou criar uma aproximação cultural entre americanos, mesmo estando nitidamente claro a
disparidade cultural entre eles. O país em que essa tentativa de semelhança cultural é mais
enfocada é a Argentina, onde o vaqueiro Pateta é transportado para os pampas gaúchos, a fim
de mostrar a grande semelhança entre sua vida do Texas com a vida dos campos argentinos.
A difusão do carioca como ‘malandro’ e adorador do samba, ganha em ‘Alô
Amigos’, grande destaque. Em todo o episódio dedicado ao Brasil, o samba e a malandragem
de Zé Carioca estiveram presentes. Uma imagem do povo brasileiro como acolhedor e
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receptivo aos estrangeiros, assim como envolto por belíssimas paisagens naturais estão até os
dias de hoje presentes na imagem que o Brasil adquire no exterior. Concomitantemente, serve
como quesito de identificação de uma grande parcela da população, que acredita realmente
possuir essas características.
Uma América do Sul ‘selvagem’, ainda hostil, de padrões culturais muito diferentes
dos Estados Unidos, está contido de forma enfática em ‘Alô Amigos’. A todo o momento os
personagens Disney são dominados pelos personagens ou território sul americanos.
Intencional ou não, nos dá a impressão de ingenuidade por parte dos visitantes e da não
alteração dos costumes sul americanos quando em face da interação com os vizinhos
estadunidenses.
Assim, visando não somente ao entretenimento, vemos que muitas vezes as
produções cinematográficas trazem consigo intenções e pontos de vista, pois atendem a
interesses privados e em algumas vezes estatais. Não podemos desvincular um filme do
contexto que o permeia, por esse motivo Marc Ferro o trata como “imagem objeto”. Uma
produção cinematográfica contribui para o entendimento do momento histórico ao qual
pertence e nos oferece elementos para a análise do jogo de poder que este reflete.
Referências:
FERREIRA, Alexandre Maccari. O cinema Disney agente da História: A cultura nas Relações Internacionais entre Estados Unidos, Brasil e Argentina (1942-1945). Dissertação apresentada em 2008 ao programa de Mestrado em Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria – RS.
FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.) História: novos objetos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989. JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao sul do Rio Grande. Imaginando a América Latina em Seleções: oeste, wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista, SP: EDUSF, 2000. MOSCARIELLO, Angelo. Como ver um filme. Lisboa: Presença, 1985.
MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1984.
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TOTA, Antonio Pedro. O Imperialismo sedutor. A americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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