Post on 12-Feb-2019
ANAIS DO CONGRESSO DE DIREITO E LITERATURA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
Reitor Prof. Dr. Valder Steffen Júnior
Vice-Reitor Prof. Dr. Orlando César Mantese
Pró-Reitoria de Graduação
Prof. Dr. Armindo Quillici Neto
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
Prof. Dr. Carlos Henrique de Carvalho
Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis
Prof. Dr. Hélder Eterno da Silveira
FACULDADE DE DIREITO
Direção da FADIR
Prof. Dr. Helvécio Damis de Oliveira Cunha
Coordenação do Curso de Graduação em Direito
Profa. Me. Maria Terezinha Tavares
Coordenação do Curso de Mestrado em Direito
Profa. Dra. Keila Pacheco Ferreira
COMISSÃO ORGANIZADORA
Entremeios – Grupo de Extensão em Direito e Literatura
Núcleo de Produção Científica da Faculdade de Direito
Programa de Pós-Graduação em Direito - Curso de Mestrado em Direito
Esajup – Escritório de Assessoria Jurídica Popular da UFU
COMISSÃO CIENTÍFICA
Profa. Dra. Cândice Lisbôa Alves
Profa. Dra. Égina Glauce Santos Pereira
Prof. Dr. Rodrigo Francisco de Paula
Profa. Ms. Neiva Flávia Oliveira
COMISSÃO ORGANIZADORA DISCENTE
Amanda Figueiredo de Andrade
Ana Raquel Ramos de Assis Pereira
José Renato Venâncio Resende
Suzanna Luíza Pereira Soares
AVALIADORES DOS GRUPOS DE TRABALHO
Profa. Dra. Cândice Lisbôa Alves
Profa. Dra. Égina Glauce Santos Pereira
José Renato Venâncio Resende
Prof. Dr. Rodrigo Francisco de Paula
REALIZAÇÃO
Faculdade de Direito Jacy de Assis - UFU
SUMÁRIO
LIBERTÉ. EGALITÉ. BEYONCÉ.”: DIREITO E “APESHIT………….………….……1
Ana Flávia Tosta Cardoso e Camila Barbosa de Paiva
TIA NASTÁCIA E O PERTENCIMENTO RACIAL…..……………………….…………4
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges e Isadora Machado Pereira
EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL: PARA PENSAR O SISTEMA
CARCERÁRIO FEMININO E O TRÁFICO DE ENTORPECENTES……….……..…..7
Andréa Queiroz Fabri1 e Ebony Stephanie Silva Alberto
O CONTO “A MOÇA TECELÔ E A FIGURA FEMININA NO CÓDIGO CIVIL DE
1916…….………………………….………………………….………………………….….10
Gabriel Oliveira Aguiar Borges e José Renato Venâncio Resende
A (DES)IGUALDADE DE GÊNERO E A “CIRANDA DE PEDRA” DO
PATRIARCADO.…….………………………….……………………….……………….…13
Amanda Figueiredo de Andrade
REDESCOBRINDO AS VIELAS DO CORTIÇO: EXISTÊNCIA E MORTE DE
BERTOLEZA EM TERMOS DE PERFORMATIVIDADE PÚBLICA…….…………..16
Robert Augusto de Souza
MULHER E RESISTÊNCIA: REALIDADE E FICÇÃO NA OBRA DE CAROLINA
MARIA DE JESUS…….………………………….………………………….…………….18
Égina Glauce Santos Pereira
A ESCOLHA DE NÃO ESCOLHER: DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS E A
RUPTURA FEMININA…….………………………….………………………….………..25
Cândice Lisbôa Alves e Suzanna Luiza Pereira Soares
1
“LIBERTÉ. EGALITÉ. BEYONCÉ.”: DIREITO E “APESHIT”
Ana Flávia Tosta Cardoso1
Camila Barbosa de Paiva2
As mulheres sempre foram inspiração, musas. Mas nunca por suas ideias, e sim por
seus corpos. Os traços finos das faces esculpidas por mãos de artistas masculinos, renderam
obras como a Vênus de Milo que não somente ornam exposições do Museu do Louvre, como
também um padrão de imagem sobre o que se considera feminino. Esta é a imagem que
Beyoncé, ao lado de seu esposo, Jay-Z, busca romper com em seu novo vídeo. Juntos, sob o
nome The Carters, lançaram o clipe “APESHIT”, gravado no Museu do Louvre.
Em diversas cenas clipe, os cantores demonstram o contraste da arte exposta com
seus corpos e, principalmente, performances de gênero. As diferenças se evidenciam com
dançarinos mais graciosos e valentes enquanto as mulheres se mostram sempre fortes mesmo
que maternais (HOSKING, 2018). Ao passo em que todas as interações entre diferentes se dá
com toques íntimos e delicados, com respeito e equidade. E no decorrer da narrativa ali
contada, vemos as interações entre esse casal acontecendo sempre num mesmo ponto de vista,
mesmo patamar, sem diferenciação alguma da posição de um para com o outro.
Com vistas a tais interações, o presente trabalho tem como objetivo a análise da
crítica relativa à igualdade entre homens e mulheres em “APESHIT”, diante do que se
pretende responder: como a igualdade representada pelos Carters pode ser trabalhada pelo
Direito? Para tanto, tem-se como hipótese a necessidade do reconhecimento das diferenças
culturais e sociais existentes entre os gêneros e da redistribuição econômica. Utiliza-se
método dedutivo e pesquisa bibliográfica para que uma visão mais completa de toda a obra
audiovisual e sua relação com o direito seja obtida.
Afinal, questionar o quanto de verdade há na ficção e o quanto de fantasia na
realidade é a relação que se estabelece entre o Direito e a Literatura (STRECK; TRINDADE,
2013). Da mesma forma se estabelece também a relação entre o ser e o dever-ser, do Direito
1 Pós-graduanda em Direito Processual Civil e Argumentação Jurídica pela PUC Minas. Graduada em Direitopela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: ana.cardoso.dir@gmail.com2 Advogada. Mestranda em Direito pela UFU. E-mail: advcamilapaiva@gmail.com
2como ôntico, a Arte como o deôntico, e como esta mostra àquele as possibilidades. A Arte
possui uma aptidão para produzir influência na sociedade, posto ser percebida por meio do
seu valor, sendo verdadeiros pareceres acerca da evolução social futura, antecipando-a e,
muitas vezes, impulsionando-a, estabelecendo a inegável relevância da Arte no sistema social
(SCHWARTZ; MACEDO, 2008). Na obra audiovisual em análise, verificamos como os
Carters demonstram que a igualdade pode se verificar entre os gêneros, ou seja, a arte mostra
a possibilidade de uma evolução da relação entre os gêneros, em contraste ao que os trabalhos
artísticos trazem do passado de desigualdades no plano de fundo.
Tem-se que várias das pinturas selecionadas para o clipe trazem imagens de dor e
sofrimento causados pelos momentos históricos nelas retratados, sendo de guerra ou vitórias,
seja do cotidiano ou de momentos consagrados pela humanidade. Como Hoskings (2018)
ilustra, “o vídeo sutilmente contrasta pinturas de tormento em sociedades controladas por
homens, como a Roma antiga, com cenas calmas e atuais de casais que são presumidamente
iguais”. Fazendo uma referência ao título do álbum ao qual a música do clipe pertence,
“EVERYTHING IS LOVE”, vê-se que claramente a mensagem que trazem é que quando há o
amor, e um amor entre iguais, que se reconhecem iguais, tudo se supera. A dor do dia a dia cai
perante um ato de reconhecimento e respeito, como também ilustrado na pintura “A Coroação
de Napoleão” que está ao fundo de uma das cenas em que Beyoncé dança no primeiro plano,
e se consolidando como “rainha” após todos seus desafios. Ou quando, ao mostrar o casal em
frente ao famoso quadro de DaVinci, ambos “vestem calças”, portanto portando poder e
autonomia sobre o destino dos dois e dessa relação, assim como a atemporal Monalisa e seu
olhar sempre enigmático.
O vídeo sob estudo demonstra, portanto, a necessidade do reconhecimento entre
homem e mulher como iguais, com foco àqueles que vivem juntos uma relação heterossexual.
Ao falar de reconhecimento recíproco, Axel Honneth (2009) destaca três esferas: amor, direito
e solidariedade. Na primeira delas, tem-se as relações amorosas, seja de parentesco ou erótica,
como aprovação e incentivo afetivo. Na forma de relação jurídica, destaca que apenas é
possível alcançar um entendimento de si mesmo como detentor de direitos quando se possui
conhecimento acerca das obrigações que devem ser observadas frente ao outro. Somando-se
às duas primeiras, a esfera da solidariedade diz respeito à valores partilhados socialmente que
geram estima social para o sujeito, com habilidades úteis para a comunidade.
3Nancy Fraser (2006), por sua vez, desenvolve uma teoria crítica, traz o
reconhecimento cultural aliado à redistribuição. A autora defende um remédio não apenas para
a injustiça cultural como também algum tipo de reorganização político-econômica. A injustiça
cultural ou simbólica que Fraser tenta combater é claramente demonstrada no clipe
“APESHIT”. Este traz o retrato preponderante de homens nas obras clássicas, como símbolo
de poder e dominação cultural, que ela define como submissão a modelos de interpretação,
além do desrespeito com outras figuras da sociedade, por exemplo com a desqualificação das
mulheres com representações estereotipadas. Já a redistribuição é apresentada como a
redistribuição de renda, novos modos de distribuição do trabalho, investimentos e mudanças
na estrutura básica da economia, também tem sua relevância para dar autonomia às mulheres
e outros grupos injustiçados.
“APESHIT”, portanto, retrata a igualdade e a paridade entre homens e mulheres que
se reconhecem reciprocamente como iguais. Trata-se da Arte a impulsionar a mudança, em
contraste com um passado (e um presente) de discriminação e desigualdades, demonstrando o
valor do respeito mútuo entre mulher e homem.
Referências
APESHIT. The Carters. 06’05”. Disponível: < https://youtu.be/WDZJPJV__bQ>. Acesso em:22 jun. 2018.
FRASER, Nancy. Da Redistribuição ao Reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Tradução: Júlio Assis Simões. In: Cadernos de Campo. n. 14/15. São Paulo,2006.
HONNETH, Axel. Luta Por Reconhecimento. Tradução: Luiz Repa. São Paulo: Editora 34,2003.
HOSKING, Taylor. 2018. Beyoncé and Jay-Z’s New Vision of Gender in ‘Apeshit’.Disponível em: <https://theatln.tc/2luYmaE>. Acesso em: 22 jun. 2018.
SCHWARTZ, G. A. D. SCHWARTZ, Germano. SCHWARTZ, G.A. ; MACEDO, ElaineHarzheim . Pode o Direito ser Arte? Respostas a Partir do Direito & Literatura. In: XVIIEncontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI, 2008, Salvador. Anaisdo Conpedi. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 1013-1031.
STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam (Org.). Direito e Literatura: da realidadeda ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013.
4TIA NASTÁCIA E O PERTENCIMENTO RACIAL
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges3
Isadora Machado Pereira4
Palavras Chave: Racismo; Igualdade; Denúncia literária.
Tia Nastácia é uma personagem da obra de Monteiro Lobato, Sítio do Picapau
Amarelo ganha destaque mais especificadamente em "Histórias de tia Nastácia". A
personagem é retratada com extrema bondade, habilidade e sabedoria popular.
Na história a negra representa o passado escravocrata do país ao se portar como
funcionária de Dona Benta, senhora branca e culta. A obra foi escrita entre os anos de 1920 e
1947, em um após a Abolição da Escravatura esse onde a cozinha é lugar das empregadas,
quase sempre negras e pobres.
Ao se fazer uma leitura crítica da obra percebe-se o quanto Tia Nastácia é
discriminada como se percebe no trecho:
– Mais respeito com os velhos, Emília! – advertiu Dona Benta. – Não quero quetrate Nastácia desse modo. Todos aqui sabem que ela é preta só por fora (LOBATOapud LIMA)
A obra, assim, toca num ponto extremamente sensível, em meio a falsas ideologias,
como a “democracia racial”, que sustenta a existência de uma convivência harmônica entre
brancos e negros, livre de preconceitos e com igualdade de oportunidades (SILVA, s.d.). Por
isso, o presente trabalho almeja analisar a influência da personagem sobre a identidade racial
especialmente às crianças que estão em processo de concepção do pertencimento racial.
A hipótese de trabalho é a de que apesar de o Direito ser dinâmico e a sociedade,
complexa, o que se percebe é que o racismo é problema estrutural, incrustrado em vários
setores sociais, até mesmo entre as próprias vítimas, tomadas por um sentimento de não
pertencimento, reiterado pela sociedade, não raro de modo involuntário.
O trabalho tem, por objetivo geral, analisar a obra de Monteiro Lobato sob o enfoque
da igualdade racial e da questão da identidade e pertencimento dos negros à sociedade, mas
também será possível alcançar alguns outros objetivos, como identificar mecanismos
3 Bacharel em Direito e Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândiagabrieloab@outlook.com4 Graduanda em Direito da Universidade Federal de Uberlândia isadoramape@hotmail.com
5psicossociais que subjazem formas de racismo e verificar as diferentes formas de racismo, e a
maneira como eles ferem o princípio da isonomia.
O método de abordagem é o dedutivo, com método de procedimento histórico, tendo a
investigação bibliográfica como principal técnica de pesquisa. Como marco teórico, utiliza-se
a obra Identidade, de Zygmunt Bauman, em que discute a questão da identidade e do
pertencimento na sociedade.
As “identidades” flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outrasinfladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alertaconstante para defender as primeiras em relação às últimas (BAUMAN, 2005, p.19).
Analisando-se a forma como Lobato desenvolve a personagem Tia Nastácia (e o
tratamento dirigido pelas demais personagens a ela) sob a ótica de Bauman, espera-se
alcançar os objetivos a que o presente trabalho se propõe.
Anos de segregação propiciaram a enorme ferida social da desigualdade econômica,
social, política e educacional. Há, claro ações afirmativas, como as cotas para negros em
universidades públicas, política que possibilitou a abertura do Brasil para as chamadas ações
afirmativas que têm como fulcro a imposição de benefícios para a futura diminuição das
desigualdades que evidenciam a necessidade de tal diferenciação (ROCHA,1996).
Apesar do reconhecimento Estatal sobre o preconceito e a desigualdade que sofre o
negro, muito ainda tem de ser alcançado para efetivar o direito à igualdade racial. O
preconceito institucional é velado e silencioso, mas brutal e presente.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar,2005. JULIO, Ana Luiza dos Santos; STREY, Marlene Neves. Pertencimento Racial: a identidadeem Questão. III Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação, PUCRS, 2008. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. ´´O Conteúdo Jurídico Do Princípio Da Igualdade``,3° ed. São Paulo: Malheiros, 2011.LOBATO, José Bento Renato Monteiro, apud LIMA, Yasmin. Tia Nastácia: a negra deestimação. Disponível em: https://cartografiasdainfancia.wordpress.com/2016/02/26/tia-nastacia-a-negra-de-estimacao/ (acesso em 23 jun. 2018)ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípioda igualdade jurídica. Revista de informação legislativa. Brasília a. 33 n. 131 jul./set. 1996,p. 283 – 295. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/176462>. Acesso em:25/03/2018.SILVA, Marcos Antônio Batista. Racismo institucional: pontos para reflexão. CentroUniversitário Fieo - UNIFIEO. Laplage em Revista (Sorocaba), vol.3, n.1, jan.-abr. 2017,p.127-136 ISSN:2446-6220. Disponível em:
6<http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/223/472>. Acesso em:25/03/2018.SILVA, Mateus Lôbo de Aquino Moura. Casa Grande & Senzala e o Mito da DemocraciaRacial, s.d. Disponível em: < https://www.anpocs.com/index.php/papers-39-encontro/gt/gt28/9704-casa-grande-e-senzala-e-o-mito-da-democracia-racial/file> Acesso em:03/04/2018.
7EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL: PARA PENSAR O SISTEMA
CARCERÁRIO FEMININO E O TRÁFICO DE ENTORPECENTES
Andréa Queiroz Fabri5
Ebony Stephanie Silva Alberto6
Palavras-chave: Mulheres, Sistema Carcerário, Questão social, Direito e Literatura.
O tema para a presente pesquisa volta-se para promover a reflexão sobre a importância
da interdisciplinaridade, pois ainda há muito o que desbravar nesse campo de trabalho, em
especial, por meio das artes, do direito e da literatura, juntamente com a questão da violência
contra a mulher que atinge diversos certames da vida social, política e econômica. Para
discutir essas questões por intermédio do Direito e da Literatura, analisa-se a vulnerabilidade
das mulheres no tráfico de entorpecentes. A indagação mostra-se necessária porque, hoje, no
Brasil, conforme o Departamento Penitenciário – DEPEN, 60% da população carcerária
feminina encontra-se presa em razão do tráfico nacional de drogas, tendo passado de 10.112
no ano 2000 para 35.039 em 2013 (Relatório da CPI do Sistema Carcerário). De uma maneira
geral, os motivos para essas mulheres adentrarem no tráfico de entorpecentes são facilmente
compreendidos pela sociedade e pouco problematizados.
Como fonte para este estudo, utiliza-se a obra “Presos que Menstruam”, da jornalista
Nana Queiroz, publicada em 2015, que traz a realidade das mulheres presas no Brasil,
relatando visitas em prisões femininas e questionando os verdadeiros problemas do sistema
carcerário no que diz respeito às mulheres. O livro traz diversas repercussões, principalmente
em um país que muitas pessoas acreditam que “bandido bom é bandido morto”, para
refletirmos o modo que pensamos sobre o sistema carcerário brasileiro.
Vítimas da estrutura social, pode-se considerar que as mulheres experimentam uma
atividade que é considerada masculina, servindo para atestar a formação de identidade. As
mulheres, apesar de ser estereotipadas como “frágeis”, estão bem operantes no crime. Assim,
para entender a discussão de gênero que é refletido na criminalidade feminina, é necessário
pensar nas funções que essas mulheres desempenham na atividade do tráfico de drogas.
5 Doutora em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente é diretora docurso de Direito da mesma universidade. E-mail: andrea.fabri@uniube.br 6 Graduanda em Direito pela Universidade de Uberaba (UNIUBE). Graduanda em Licenciatura em História pelaUniversidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). E-mail: stephaniealberto12@gmail.com
8Nesse processo, a maioria das mulheres presas não apresentam uma relação direta com
a venda das drogas, são usadas como “vapor” (BARCINSKI 2010), ou seja, aquelas que
transportam a droga entre os pontos de venda, por chamarem menos atenção da polícia. As
mulheres são inseridas nessa função pela baixa visibilidade como traficantes.
Várias circunstâncias caracterizam a entrada de mulheres no tráfico, sendo seus perfis
chefe de família, mãe, sem estudo formal ou com pouco estudo na escola elementar,
pertencente à camada financeiramente hipossuficiente, desempregada (na época do crime),
várias foram vítimas de violência em algum momento da vida, e em geral negras ou pardas
(VINGERT, 2015).
Considerando-se a motivação, essas mulheres tornam-se traficantes por múltiplos
fatores, caracterizando-se como mais comuns a dificuldade de inserção no mercado formal de
trabalho, tal qual se observa no capítulo da obra inspiradora deste trabalho, destinado à
história de “Gardênia”, e a necessidade de sustentarem seus filhos e famílias, também
observado no capítulo “Leite, fraldas e potes de açúcar”. Mulheres relatam (BARCINSKI
2010), que diante da discriminação sofrida entre os jovens de favela, sobretudo negros, eles
buscam, muitas vezes, no tráfico a única alternativa (ou a falta dela) para pertencerem a uma
rede de trabalho, momento em que se unem a outras pessoas em grupos criminosos
trabalhando na segurança dos pontos de vendas ou na segurança dos chefes do tráfico da
comunidade.
Dessa forma, o comportamento dessas mulheres seria resultado do envolvimento
afetivo ou sexual com homens/parceiros criminosos, o que permite, muitas vezes posicioná-
las na condição de vítimas e cúmplices dos crimes cometidos por seus companheiros. A
expressão “mulher de bandido” também surge nas falas das presas (BARCINSKI 2010), que
recebem essa denominação por se envolverem com bandidos para buscar respeito, poder
social (status) e econômico, sendo que a maioria tolera a violência, a infidelidade, agressões
físicas e psicológicas e outras formas de violação a direitos e à dignidade de vida.
No que tange ao empoderamento e à autonomia, as mulheres traficantes são
subordinadas aos homens e ao crime organizado, construindo uma imagem de dependência,
mesmo aquelas que exercem funções mais “prestigiadas” dentro do sistema do tráfico de
drogas. Dessa maneira, é preciso refletir o motivo de tantas mulheres presas, já que a maioria
delas apenas transportaram a droga, e os grandes traficantes não são encontrados. É possível
compreender as formas de violência e opressão vividas por essas mulheres, bem como refletir
9que somente uma mudança drástica na sociedade brasileira poderá diminuir o número de
mulheres presas por tráfico de drogas.
REFERÊNCIAS
BARCINSKI, Mariana. Women in drug trafficking: the identity construction of Brazilianreformed criminals. Saarbrücken: VDM, 2008.
BARCINSKI, Mariana; CAPRA-RAMOS, Carine; WEBER, João; DARTORA, Tamires. OMarianismo e a vitimização de mulheres encarceradas: formas alternativas de exercíciodo poder feminino. Ex aequo, n. 28, p. 87-100, 2013.
CÉSAR, Maria auxiliadora, (1996) Exílio da vida: o cotidiano de mulheres presidiárias,Brasilia, Thesaurus.
COLOMBAROLI, Ana Carolina de Morais. Violação da dignidade da mulher no cárcere:restrições à visita íntima nas penitenciárias femininas. São Paulo.
LLANOS, Leonor Suárez. Literatura do direito: entre a ciência jurídica e a críticaliterária. ANAMORPHOSIS - Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v.3, n. 2, p. 349-386, jan. 2018. ISSN 2446-8088. Disponível em:<http://seer.rdl.org.br/index.php/anamps/article/view/320>. Acesso em: 15 abr. 2018.doi:http://dx.doi.org/10.21119/anamps.32.349-386.
TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa Giuliani. O estudo do "direito e literatura" noBrasil: surgimento, evolução e expansão. ANAMORPHOSIS - Revista Internacional deDireito e Literatura, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 225-257, jun. 2017. ISSN 2446-8088.Disponível em: <http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/326>. Acesso em: 15abr. 2018. doi:http://dx.doi.org/10.21119/anamps.31.225-257.
VINGERT, Ana Carolina. Mulheres Invisíveis: Uma análise sobre a presidiária brasileira. /Ana Carolina Vingert. Fundação Educacional do Município de Assis – FEMA – Assis, 2015.
10O CONTO “A MOÇA TECELÔ E A FIGURA FEMININA NO CÓDIGO CIVIL DE 1916
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges7
José Renato Resende8
“O Direito na Literatura é o ramo da disciplina Direito e Literatura que estuda as
formas sob as quais o Direito é representado na Literatura. Cada forma de tratamento poderá
interessar a um determinado campo jurídico” (SCHWARTZ, 2008). Na linha do que aduzem
os estudos sobre as intersecções entre essas duas áreas, tem-se que, especificamente,
distinguindo-se as três vertentes - quais sejam, o Direito como, da e na Literatura - esta última
é a que mais interessa no presente estudo.
O conto ora tratado é “A Moça Tecelã”, publicado por Colassanti (2000), que faz parte
de um universo cheio de imprecisões de tempo e espaço e que narra a história fantástica
bastante diacrônica de uma mulher que tecia, dia e noite, o que ela quisesse, pois, com suas
linhas de lã, poderia construir qualquer coisa. Quando tinha fome, podia tecer “um lindo
peixe”, por exemplo.
Mas, um dia, por se sentir sozinha, pensou que seria bom ter um marido ao seu lado e
teceu um companheiro com suas linhas mágicas. Contudo, esse homem - criado a partir da
mulher, subvertendo-se, assim, a narração bíblica da criação - mostra-se autoritário e
desagradável. Obriga a moça a tecer-lhes um palácio excessivamente luxuoso. Para isso, ela
trabalhava todo o tempo, sem parar. Até que percebeu como sentia falta de viver só e puxou a
linha de tudo o que havia tecido e, por fim, a de seu próprio marido, desmanchando-lhe.
Ainda que tal texto seja posterior às reformas do Código de 1916, tem-se que ele
remonta a uma figura feminina extremamente servil que, legalmente, é a estabelecida pelo
codex revogado. Por isso, a partir do D. na Literatura, compara-se a “moça tecelã” à mulher
do Código de 1916, considerada relativamente incapaz, junto aos menores de idade, os
pródigos e os silvícolas, fazendo-se a leitura do conto pelos olhos do Direito e a leitura do D.
Privado no Brasil pelos olhos da literatura, utilizando o conto para explicar, metaforicamente,
a evolução do D. Civil rumo a uma emancipação feminina.
7Graduado e mestrando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. 8Graduado e mestrando em Direito pela UFU.
11Lima Marques e Miragem (2014, p. 49-50), na obra O novo direito privado e a
proteção dos vulneráveis identificam, como principal fator que ordenou a formação da ordem
jurídica brasileira, a influência portuguesa, com a recepção forçada do direito português no
Brasil colônia, trazendo o direito romano incorporado, bem como uma forte influência do
direito canônico, o qual, aliás, até a República de 1889, era uma das mais importantes fontes
do direito brasileiro (PONTES DE MIRANDA, 1928, p. 23). Em 1871, o Visconde de Seabra
ofereceu ao Imperador Brasileiro 392 artigos para um primeiro projeto de Código Civil, o
qual foi uma das principais fontes do Código de Bevilaqua, aprovado em 1899, e que entrou
em vigor em 1916.
Levando a discussão para as relações de família e, especialmente, para o lugar da
mulher no ordenamento jurídico, temos que
A doutrina brasileira sempre destacou que a visão de pessoa do Código Civil de1916, mesmo nas relações de família, sob a influência do liberalismo individualista,era uma visão “patrimonialista”, onde os interesses patrimoniais tinham prevalência,tanto na formação da família [...] quanto na sucessão (MARQUES; MIRAGEM,2014, p. 105).
Assim, “acaba-se por decretar a insuficiência do modelo familiar tradicional, modelo
patriarcal do direito civil moderno, o que leva à evolução dos conceitos, a maior
maleabilidade na jurisprudência, nos valores e visões por ela consolidadas, seja
ideologicamente seja discursivamente” (MARQUES; MIRAGEM, 2014, p. 105). Em 1962
que o chamado Estatuto da Mulher Casada começou o rompimento da hegemonia masculina
nas relações de família, levando a mulher à condição de colaboradora na administração da
sociedade conjugal, dispensando a outorga marital para que ela pudesse trabalhar e se
instituíram os chamados “bens reservados”, que pertenciam à esposa e não respondiam por
dívidas contraídas pelo marido.
Já em 1977, a Lei do Divórcio tornou facultativa a adoção do patronímico do marido e
possibilitou que todos pedissem alimentos, inclusive o próprio marido, não mais apenas a
“mulher honesta e pobre”, como vigorava no codex de 1916. Depois é que vieram a
Constituição de 1988 e, posteriormente, o Código de 2002, para garantir a igualdade e colocar
o afeto como elemento principal na formação da família, rompendo com a visão patriarcal e
patrimonialista do D. Privado moderno.
Trazendo a discussão de volta ao conto estudado, temos que, quando a moça tecelã
cria o homem, aparece, na relação entre eles, a estrutura falocêntrica institucionalizada pelo
12Código de 1916, com influência de doutrinas oitocentistas e do D. Canônico medieval. Por
outro lado, conforme ela vai desconstruindo tudo, até desconstruir o homem e se ver livre
novamente, pode-se dizer que ocorre o que ocorreu com nosso D. Privado, que,
paulatinamente, foi promovendo a igualdade entre homem e mulher até chegar aos tempos
hodiernos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L3071.htm#art1806> Acesso em: 22 jun 2018.
COLASANTI, Marina. A moça tecelã. In: Doze reis e a moça no labirinto do vento. Rio de Janeiro: Global Editora, 2000.
MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: RT, 2014.
PONTES DE MIRANDA, Francisco. Brasil: Código Civil. In: HEINSHEIMER, Karl (coord.) DieZivilgesetze der Gegenwart. 3. ed. Mannheim: Mannheim, 1928.
SCHWARTZ, Germano; MACEDO, Elaine Harzheim. Pode o Direito ser Arte? In: XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI, 2008, Salvador. Anais do Conpedi. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 1013-1031.
TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa. O estudo do Direito e Literatura no Brasil: surgimento,evolução e expansão. In: Anamorphosis, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 225-257, 2017. Disponível em: <http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/326/pdf> Acesso em: 22 jun 2016.
13A (DES)IGUALDADE DE GÊNERO E A CIRANDA DE PEDRA DO PATRIARCADO
Amanda Figueiredo de Andrade9
Palavras-chave: direito e literatura; igualdade de gênero; feminismo; patriarcado.
Cotidianamente percebe-se necessária uma reflexão sobre o jurídico que possa
transpor a sua perspectiva meramente deontológica. Isso porque o Direito, se desconectado da
realidade social, destitui-se de sentido; se conectado, porém, tem a capacidade de adentrar a
própria noção de cultura e modificá-la.
Grande aliada a este fim é a Literatura, que aloca-se na perspectiva do poder-ser,
enquanto o direito, cujo linguajar busca construir condutas adequadas, volta-se para o aspecto
do dever-ser. Assim, o diálogo aberto entre os campos facilita a resolução de conflitos,
despertando a criticidade do leitor através das particularidades do poder da linguagem.
Conforme Godoy: “a prática jurídica é perene exercício de interpretação, a exemplo da
descoberta de significado dos textos, postura que plasma atitudes literárias” (GODOY, 2003,
p.133).
Nesse ínterim, “Direito e Literatura” constituem importantíssima fonte de inspiração à
reflexão acerca das possibilidades e limites de compreensão do jurídico, surgindo como fortes
aliados à luta pela igualdade de gênero.
É certo dizer que a Constituição Federal de 1988 igualou homens e mulheres em
direitos e deveres. Nesse aspecto surge o presente problema de pesquisa: a mulher, hoje, é
submetida a mecanismos opressivos cada vez mais discretos que, camuflados em discursos de
igualdade de gênero, tendem a reservar-lhes pequenas concessões que façam os ortodoxos
sentirem-se mais democráticos, mantendo-se a desigualdade a eles traz segurança.
Tomando como premissa tal pressuposição, esta análise objetiva ao estudo da obra
Ciranda de Pedra (1954), para por meio dela questionar acerca das opressões veladas do
patriarcado em face da igualdade de gênero. Busca-se analisar em quais aspectos a evolução
deste princípio constitucional acompanhou o cotidiano social, denunciado por muitas
escritoras brasileiras desde antes da promulgação da Constituição de 1988.
9 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: amandafdeandrade@gmail.com
14Em Ciranda de Pedra, Lygia Fagundes Telles traz à tona a desestruturação de uma
família burguesa, em virtude do adultério cometido por Laura. Apaixonada por outro homem,
tem sua insanidade forjada pelo marido e é internada por ele em um hospital psiquiátrico.
Nesse sentido, destaque-se que, ao apontar para o surgimento das sociedades
patriarcais, na introdução da obra O Martelo das Feiticeiras, Rose Marie Muraro afirma que
esta teve início nas sociedades de caça aos grandes animais. Quando o homem passa a
dominar e controlar sua função biológica reprodutora, passa também a dominar e controlar a
sexualidade feminina.
Embora tal constatação remonte ao período neolítico e a leitura social de Telles se
refira à década de 50, importa notar que o controle exercido pelo marido de Laura coaduna
perfeitamente com o afirmado: o princípio constitucional da igualdade de gênero só pode ser
admitido quando respeitados os limites sociais do que o homem considera aceitável.
Andrea Ferreira Bispo, em Discursos Feministas por um Direito Menos Machista,
aponta para a leitura de que, se uma mulher casada sucumbe aos desejos carnais – como Laura
– é considerada uma meretriz, não importando se o marido prefere ignorar a traição. Isso
porque “entre os machos se admite o corno selvagem ou o semicivilizado, jamais o corno
manso” (BISPO, 2016, p.27).
No caso em tela, cuja reflexão é proporcionada pela seara literária do poder-ser,
percebe-se que os direitos fundamentais de Laura foram mitigados em face do machismo que
se percebia no surgimento das sociedades neolíticas, percebeu-se na classe burguesa brasileira
da década de 50 e mostra-se ainda nas idiossincrasias presentes trinta anos após a
promulgação da Constituição.
Por conseguinte, diante do exposto, é imprescindível que haja uma releitura jurídico-
social do que o princípio constitucional da igualdade de gênero representa em uma sociedade
obviamente patriarcal, fazendo da literatura um artifício para que as reflexões não só
alcancem reflexões acadêmicas, mas que sejam instrumentos aptos a modificar a realidade
social.
REFERÊNCIAS
15BISPO, Andrea Ferreira. Manifesto clitoriano: gozo, logo não sou idiota. In: GOSTINSKI,Aline et al. Estudos feministas por um direito menos machista. 1. ed. Florianópolis:Empório do Direito, 2016. p. 21-37.
CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: CÂNDIDO, Antônio. Vários escritos. 3. ed.São Paulo: Duas Cidades, 1995.
GODOY, Arnaldo Morares. Direito e Literatura. Revista CEJ, Brasília, n. 22, p.133-136jul./set.2003.
MURARO, Rose Marie. Breve introdução histórica. In: KRAMER, Heinrich; SPRENGER,James. O martelo das feiticeiras: Malleus maleficarum. 20. ed. Rio de Janeiro: Rosa dosTempos, 2009. p. 5-17.
TELLES, Lygia Fagundes. Ciranda de Pedra. 22. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
16REDESCOBRINDO AS VIELAS DO CORTIÇO: EXISTÊNCIA E MORTE DE
BERTOLEZA EM TERMOS DE PERFORMATIVIDADE PÚBLICA
Robert Augusto de Souza10
Palavras-chave: gênero; cor; performatividade; violência; abjeção.
“O Cortiço”, obra mais conhecida de Aluísio Azevedo, trata dos processos de
transformação das relações humanas consubstanciado no entrelaçamento de barracos
construídos por João Romão, âmbito em que se busca afirmar a capacidade de influência
espacial na subjetivação dos indivíduos.
A vida de João Romão se imbrica, logo nas primeiras linhas da narrativa, com a de
Bertoleza, “crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada
com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade” (AZEVEDO, 2012,
p. 1). Após ganhar a confiança da mulher, tendo Bertoleza lhe transmitido seus anseios e
confidências, João Romão a convence a fugir e a morar com ele, passando, a partir de então, a
manter com ela um relacionamento e a usar de seus serviços em sua quitanda.
Ao longo da história, percebe-se um cenário de constante ascensão social de João
Romão, acompanhada de perto por um declínio progressivo da valorização da existência de
Bertoleza, que passa a servir simplesmente para atender aos propósitos financeiros de seu
antigo companheiro. O clímax da história nos indica as pretensões de João Romão a se casar
com uma moça mais jovem, parte da alta sociedade, que lhe possibilitaria almejar uma
posição de baronato. Para tanto, Bertoleza representaria um empecilho a ser eliminado, à
medida que se apresentava como uma mácula à imagem de seu algoz.
Na tentativa de pôr fim a essa ameaça, João Romão denuncia a condição de Bertoleza
a seu antigo senhor, que se dirige até a quitanda de João Romão, à qual a mulher dedicou sua
existência, para reavê-la. Vislumbrando o destino que lhe aguardava, Bertoleza recorre ao
suicídio, preferindo a morte ao regresso a sua condição pretérita.
A partir disto, este trabalho se dedica a compreender a condição existencial de
Bertoleza sob a perspectiva da obra de Judith Butler, visando a compreender de que forma a
personagem – considerada enquanto mulher negra – é alvo de processos de apagamento
enquanto inserta num contexto de transição entre a escravidão explícita e a subserviência
invisível.
10 Estudante de Graduação em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais. Bolsista pela Fundação deAmparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais. E-mail: robert96@hotmail.com.br.
17Entendemos, portanto, que os atos performativos que levaram à constituição do sujeito
“Bertoleza” se revelam profundamente banhados de violência, levando a uma precarização
sistemática dessa existência. A narrativa de “O Cortiço” jamais demonstra o entendimento de
Bertoleza enquanto mulher, mas sempre como um instrumento utilizado por João Romão em
sua jornada para o cume da pirâmide. O próprio texto delata que “João Romão, de roupa
mudada como os outros, mas sempre em mangas de camisa, aparecia de espaço em espaço,
servindo os comensais; e a Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia
santo, lá estava ao fogão, mexendo as panelas e enchendo os pratos” (AZEVEDO, 2012, p.
27).
O asco progressivamente contraído por João Romão em relação a Bertoleza também é
um sintoma da abjeção que recai sobre a personagem. Todo o tempo, entende-se a figura
desse corpo cujo lugar é a periferia do enquadramento social, quiçá o vácuo para além do
quadro. Percebe-se aí, portanto, aquilo que Butler define como a “dimensão invariavelmente
pública do corpo”, isto é, a construção intrínseca do corpo pela esfera pública. Assim, por
mais que a personagem se dedicasse ao trabalho, ao agrado de seus senhores e à satisfação de
seus desejos, por mais que sua presença fosse o mais silente possível, a construção
performativa de seu ser lhe delegaria o esquecimento.
A experiência de Bertoleza traz um reflexo preocupante para a sociedade
contemporânea, à medida que a precariedade e a violência recaem mais sobre certos corpos do
que outros. Faz-se necessário compreender de que forma o espaço público estabelece gênero e
cor como critérios objetivos de incidência da abjeção, ou seja, a razão pela qual mulheres
negras como Bertoleza são reféns de forças violentadoras de sua performatividade. É o que
este trabalho se dedica a descobrir.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 1 ed. Cotia, SP: Editora Ateliê, 2012.BUTLER, Judith. Precarious life: the powers of mourning and violence. New York: Verso, 2004.______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.STRECK, Lênio Luiz; TRINDADE, André Karam (org.). Direito e Literatura: da Realidade da Ficção à Ficção da Realidade. 1 ed. São Paulo: Atlas, 2013.TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa Giuliani. O estudo do Direito e Literatura noBrasil: Surgimento, evolução e expansão. ANAMORPHOSIS: Revista Internacional deDireito e Literatura, São Paulo, vol. 3, n. 1, p. 225-257, jan./jun. 2017.
18MULHER E RESISTÊNCIA: REALIDADE E FICÇÃO NA OBRA DE CAROLINA MARIA
DE JESUS
Égina Glauce Santos Pereira
Após a Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, as mulheres
esperavam que o reconhecimento da igualdade naquela época começasse um processo de
construção da imagem da mulher na sociedade diferente da constituída até aquela data. Como
afirma Déborah Duprat (2010, n.d.), o Direito anterior à Constituição trabalhava com
classificações binárias, de um lado homem, de outro, mulher; homem heterossexual, mulher;
branco, outras etnias; proprietário, despossuído. Aos citados na primeira parte da polaridade, o
Direito concedia valor positivo, aos outros, valor negativo, e isso se reproduzia em
reconhecimento ou não de direitos.
Dentro dessa qualificação, temos a autora do Quarto de Despejo “Carolina Maria de
Jesus”, que viveu de 1914 -1977 e de seu texto escrito na década de 50, inserida no pólo dos
valores negativos do Direito imposto à época. Ressaltamos que a autora sequer chegou a
cogitar a formalização da igualdade que a Constituição formulou para se implementar a partir
de 1988. A autora-personagem é mulher, negra, despossuída de bens formais, sem marido,
mãe solo de três filhos, sem emprego formal, sem formação educacional, a figura completa de
todos os preconceitos possíveis. Por isso, desenhou-se, em um primeiro momento, uma
desconfiança de que uma mulher negra, pobre e pouco letrada pudesse escrever um diário na
intensidade que o texto da autora possui (DANTAS, 1963), dentro de uma simplicidade de
uso da língua, mas cujo conteúdo era surpreendente, tendo em vista que a autora frequentou
apenas dois anos de grupo escolar, “mas buscou formar o caráter” (JESUS, 1963, p. 13). A
autora ressalta o papel da leitura em sua vida, como um ideal11, anunciado também por
personagens, como Seu João, o qual diz que: “– Nunca vi uma negra gostar tanto de livros
quanto você” (JESUS, 1963, p. 23).
É nesse assombro da personagem que temos uma perspectiva histórica da mulher
negra na sociedade brasileira, a qual se obrigava ao fazer e não ao educar-se, pois, o papel da
mulher na sociedade brasileira é o de excluída, mas o papel de mulher negra na sociedade
brasileira é mais do que excluída, é o de invisibilidade, são as que estão na cozinha e na cama,
11 Mestre e doutoranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais.
19quando aparecem, mas nunca na sala. A “abolição” não fez com que os negros fossem
absorvidos socialmente, ao contrário, exclui-os geograficamente, enviando-os para os
cortiços, favelas e periferias, onde a maioria ainda está até os dias de hoje, lugar social em que
se insere a autora e personagem, além de excluí-los do espaço social, já que a mão de obra
que passou a ser utilizada foi a do imigrante no pós “abolição”, colocando os negros em
possibilidades limitadas de empregabilidade e existência digna. Nesse contexto,
A única parcela de ex-escravos capaz de desempenhar uma função queinteressava ao novo modo de produção eram as mulheres negras com seutrabalho doméstico. No fogão, de onde a maioria ainda não saiu, a mulhernegra garantiu a sobrevivência da família negra. (REVISTA REVOLTAFEMININA, 2008).
Nesse sentido, as mulheres negras continuaram cozinhando, lavando, passando,
limpando, trabalhando na cozinha dos ex-senhores, agora denominados patrões, que
sustentaram os homens até eles encontrarem uma ocupação que um ex-escravo pudesse
desempenhar. Temos que ressaltar que somente em 1972, o Direito reconheceu, parcialmente,
a atividade desenvolvida por essas negras com a publicação da Lei n° 5.859/72, que dispunha
sobre a profissão de empregado doméstico, mas, mantendo as diferenças sociais entre o
trabalhador e o doméstico. A autora reproduz o contexto social ao apresentar uma situação
específica em que ao conversar com uma senhora que cria “uma menina de cor” disse: “É tão
boa para a menina. Lhe compra vestidos de alto preço. Eu disse: – Antigamente era os pretos
que criavam os brancos. Hoje são os brancos que criam os pretos” (JESUS, 1963, p. 22).
No nosso texto, a autora não se inseriu na cozinha ou na cama, ou seja, sequer um
papel social de mulher negra assumiu, ficando na sua invisibilidade econômica, mas
sobreviveu dos restos deixados pela sociedade na dura vida de catadora de papel. Esse lugar
nunca foi o que aceitou para si, sempre sonhou com meios de mudar de lugar, de moradia,
assombrada pela sua fome e de seus filhos, qualificando a fome de “amarela” por retirar a cor
dos elementos do dia: o céu, as aves: “Que efeito surpreendente faz a comida no nosso
organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que
comi, tudo normalizou aos meus olhos” (JESUS, 1963, p. 36). Segundo Jesus (1963, p. 26),
“É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la”. Foi também a fome que a motivou a
escrever, pois, quando não tinha nada o que comer, ela escrevia ao invés de xingar, sendo o
xingar fato cotidiano no dia a dia dos moradores da favela. O ato de comer é descrito como o
mais lindo espetáculo:
20
É quatro horas. Eu já fiz almoço- hoje foi almoço. Tinha arroz, feijão ereponho e linguiça. Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguém.Quando vejo meus filhos comendo arroz e feijão, o alimento que não está noalcance do favelado, fico sorrindo atôa. Como se eu estivesse assistindo umespetáculo deslumbrante (JESUS, 1963, p.44).
A violência era a palavra de ordem, motivada pela bebida, que envolvia crimes e
problemas de saúde, reprimida pela polícia, único Estado que comparecia na favela, a autora
descreve a violência doméstica, influenciada por muitas questões que conduzem a vida dos
moradores, além de assédios, abusos, estupros e do evidente caráter misógino de nossa
sociedade. A autora demonstra muito bem as questões de gênero, as quais deixam as mulheres
mais vulneráveis do que os homens em todas as esferas sociais:
Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil,porque eu lia a história do Brasil e ficava sabendo que existia guerra, só liaos nomes masculinos como defensores da pátria então eu dizia para minhamãe: – Porque a senhora não faz eu virar homem?”(JESUS, 1963, p. 48).
Isso demonstra o que argumentou Duprat, no STF (2010), entre valores negativos e
positivos. A autora apresenta que foi chamada algumas vezes para comparecer ao Juizado de
Menores para buscar seus filhos ou para retirar o dinheiro da pensão paga pelo pai de seus
filhos, enfrentando filas, atrasos de pagamento, e burocracias que complicavam ainda mais a
sua situação econômica, por ter que sustentar três filhos só. Em uma dessas visitas, quando foi
tratar da conduta do filho de 09 anos, descreve a atuação do Tenente e o seu pensamento
político sobre o evento:
Que homem amável. Se soubesse que ele era tão amável teria ido nadelegacia na primeira intimação (...). O tenente interessou-se pela educaçãodos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que aspessoas tem mais possibilidades dos delinquir do que tornar-se útil a partia eao país. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um relatório e envia para ospolíticos [...] Agora falar pra mim, que sou uma pobre lixeira. Não possoresolver nem as minhas dificuldades.
Sobre a representação de maior delinquência na favela, a autora expõe ocorrências de
delitos, dentro e fora da favela. Sobre esse fato, a propensão, ou seja, o juízo de valor do
tenente aparece na criminalização seletiva da população da favela por parte da polícia, em que
21pessoas com o estereótipo de “negro, pobre e favelado” normalmente são as selecionadas pela
polícia:
Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendoum jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um pretoe amarrou numa árvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos quetransforma preto em bode expiatório. Quem sabe se guarda civil ignora quejá foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata? (JESUS,1963, p. 96).
Nesse contexto, a autora descreve situações em que o aparato repressor do Estado,
através da rádio patrulha, intervém nos conflitos, encaminhando pessoas para a prisão ou
detenção nas delegacias; há também relatos de furtos e roubos dentro da favela, acerto de
contas de dívidas, e faz alusão ao problema da vingança privada, através dos linchamentos,
que reflete o total desamparo daquela população no tocante aos serviços governamentais.
No meio da falta de tudo, a dignidade da autora-personagem não se perde, pois a
integridade mental e moral da autora é mantida atrás da leitura e da escrita como meio de
sobreviver em meio ao caos da favela, no qual escrever é um ato subversivo, determinando-a
como estranha e louca pelos moradores representado pela fala do filho: “José Carlos ouviu a
Florenciana dizer que eu pareço louca. Que escrevo e não ganho nada” (JESUS, 1960, p. 53).
O livro é a luta da autora para se significar enquanto pessoa, para ter voz, para não ser
silenciada, mesmo ocupando o espaço dos excluídos. Assim, há o desejo de uma mulher
negra, que vivendo em meio às condições degradantes de existência, com pouca instrução,
mas, ainda assim, politizada, que se constitui enquanto ser humano que pensa, sente, comove-
se, indigna-se e que tem como ideal de vida escrever tudo o que vivência. Nessa perspectiva,
encontra na escrita a possibilidade de ser diferente dos outros moradores da favela, com os
quais não se identifica, pois soube separar, segundo ela, as “banalidades” nas quais estão
envolvidas as outras mulheres. Segundo a autora, formou seu caráter na leitura e na escrita.
Enfim, apesar de pouco letrada, a autora emprega uma narrativa testemunhal, um
retrato literário, permitindo compreender que a literatura é oriunda da sociedade e de quem a
vivência, não apenas destinada a ser produzida por letrados. A escrita pode ser utilizada como
arma de liberdade, por isso, a literatura é democrática, capaz de ser produzida por qualquer
pessoa. No contexto literário, conseguimos perceber a combinação de dois tipos de referentes
utilizados pela autora, sem, no entanto, conhecer a respeito de teoria literária: os dados
22autobiográficos ou pessoais da autora e os eventos históricos ou sociais em que identificamos
a vida nas favelas. Essa combinação do pessoal e do social tem sido vista por vários
estudiosos como uma propriedade fundamental da narrativa na América Latina, diferente da
tendência confessional européia e americana (SÁNCHES, 2013). Ainda segundo Sánches
(2013, n.d), a “função testemunhal resultante da identificação por parte do leitor dos
referentes e das intenções do autor, ou, por outras palavras, dos princípios de Referencialidade
e Intencionalidade. que cumpre perfeitamente essa função”.
Assim, temos uma narrativa testemunhal sobre o cotidiano da autora, na fala de uma
mulher, negra, excluída, que incluem as memórias tanto suas como as reconstruções do estilo
de vida dos moradores, no meio da explosão urbana de São Paulo no período, demonstrando
claramente os sofrimentos, as indignações, as revoltas e angústias que a população
marginalizada era obrigada a superar diante de sua situação de miséria e desamparo, e a
mulher ainda mais. Nesse ponto, há claramente a apresentação da problemática individual
como eixo da narrativa e também os referentes históricos, inserindo a narrativa como
contextual.
Foi isso que o jornalista Audálio Dantas viu ao deparar-se com os 20 cadernos escritos
pela autora, quando visitava a favela, a fim de escrever um artigo jornalístico. Porém,
reconheceu nos textos da autora, que ela tinha muito a dizer, já que ninguém melhor que o
próprio morador para apresentar o dia a dia da favela. A autora não poupou expressões para
detalhar suas dores e os absurdos da vida que levava em condições de extrema
marginalização. Na fala do próprio jornalista (1963, p. 05) “repórter nenhum, escritor nenhum
poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela”.
A realidade nua e crua descrita pela autora e personagem no dia a dia da favela, ainda
é recorrente nos aglomerados sociais, os espaços sociais ainda não mudaram em termo de
representatividade da mulher negra, da violência e de como o Estado interfere nesses locais.
Assim, a cada dia, surgem novas Carolinas, mulheres fortes, que buscam denunciar as
injustiças ainda que num lugar social a parte, pois apesar da Constituição ter materializado a
igualdade, os direitos da mulher ainda não são reconhecidos e necessita ser forjada no seio
social a cada dia para realizar-se plenamente através das lutas de poder. A ética política
discutida na atualidade ainda fala das condições de vida das pessoas pobres, da miséria, da
fome, da falta de educação e instrução, da divisão de classes, exclusão social e ideologia da
23época. A autora comparava a cidade como uma espécie de sala de visitas e favela, por sua vez,
como um quarto de despejo:
As oito e meia da noite eu ja estava na favela respirando o odor dosexcrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho aimpressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seustapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenha aimpressão que sou um objeto fora do uso, digno de estar num quarto dedespejo (JESUS, 1963, p. 40)
Se por um lado o país atual cresce com cresceu na década de 60, mais relatos
semelhantes podem surgir repletos de miséria e violência, mais quartos de despejo, pois, em
nome do desenvolvimento, gera-se ainda mais exclusão social, principalmente para as
mulheres que nem têm reconhecido ainda o direito de escolha sobre o seu próprio corpo, que
os direitos fundamentais estão sendo discutidos, na resistência feminina que cuida dos seus na
ficção da Constituição buscando ser reconhecida como realidade.
REFERÊNCIAS
BENEVENUTO, Silvana José. Quarto de despejo: A escrita como arma e conforto à fome.Revista online do Grupo de Pesquisa e Estudos em Cinema e Literatura. Disponível em:<http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/baleianarede/article/viewFile/1359/1184>Acesso em: 29 de set. 2014.
DANTAS, Audálio. Prefácio Edição Popular. Quarto de despejo, 1963.
JESUS, Carolina Maria de. O quarto de despejo. Edição Popular, 1963.
GONÇALVEZ, Ricardo Juozepavicius. O livro “Quarto de Despejo” e suas questõesjurídicas. Carta Capital. Disponível em<http://justificando.cartacapital.com.br/2018/02/21/livro-quarto-de-despejo-e-suas-questoes-juridicas/ > Acesso em 10 de março de 2018.
REVISTA REVOLTA FEMININA. 120 anos de pós-abolição. E a mulher negracom isso? Disponível em <http://revoltafeminina.blogspot.com/2008/05/quando-o-congo-foi-invadido-pelos-jagas.html> Acesso em 05 de outubro de 2017.
SÁNCHES, Darío Gómes. A função testemunhal na narrativa latino-americana de temahomossexual. XIII Congresso Internacional da ABRALIC Internacionalização do Regional,2013.
SANTOS, Estela. Quarto de despejo – Diário de uma favelada: a escrita comoválvula de escape. Homo Literatus. Disponível em<https://homoliteratus.com/quarto-de-despejo-a-escrita-como-valvula-de-escape >Acesso em 05 de outubro de 2017.
24SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Notas taquigráficas da audiência pública ADPF n⁰186 realizada no dia 03 de março de 2010. Disponível em<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa/anexo/Notas_Taquigraficas_Audiencia_Publica.pdf> Acesso em 30 de maio de 2018
25
A ESCOLHA DE NÃO ESCOLHER: DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS E A
RUPTURA FEMININA
Cândice Lisboa Alves12
Suzanna Luiza Pereira Soares13
Tendo em vista a Literatura como uma forma de expressão cultural e um modo acessível de
explicar e expandir o Direito, e acreditando na sua importância como objeto de análise, escolhemos
utilizá-la como instrumento de percepção das liberdades femininas ao longo das ultimas décadas no
Brasil. Para tanto, os escritos de Jorge Amado serão percebidos como elementos de informações, em
especial por meio da análise das personagens femininas. Por meio delas, do seu sentir, transcrito
como o centro da narrativa escolhida pode-se atingir o olhar e o sentir femininos sobre as
inquietações relacionadas à liberdade sexual da mulher.
A desigualdade de gênero na época da publicação da obra, em meados de 1960, já era
problema e ainda o é. Porém é na literatura de Jorge que a mulher baiana se liberta, sonha e sente.
Socialmente marginalizada e estereotipada, a mulher tinha seu lugar somente no âmbito privado, ou
seja, no lar. Enfrentava enormes e duras barreiras quando ousava sentir e querer. Não podia querer
trabalhar fora e nem sentir prazeres de qualquer modo, desde os de realização pessoal e até mesmo
os da carne.
Assim, o que é proposto aqui é analisar sob a ótica do Direito e Literatura e buscar, em
especial nessa obra literária elementos que descrevam a vivencia da sociedade, ao lado das
interpretações possíveis, por um ângulo diverso do normativismo puro kelseniano. Assim, por
exemplo, são descritas por maneiras peculiares institutos jurídicos como justiça e liberdade, por
exemplo.
Para Antônio Cândido, a Literatura além de ser um Direito Fundamental, é modo eficaz de
revelação de violações de direitos, restrições e denunciam as mazelas sociais estando assim ligada à
luta pelos Direitos Fundamentais.14 Assim, a Literatura se mostra como uma expressão da
sociedade, através de seus anseios, desejos, medos e moral transpassando o âmbito da escrita e
fazendo o leitor reconhecer a si e seu redor levando à critica, observação e questionamentos.
12
Doutora em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora
Adjunta II do Curso de Direito e Mestrado em Direito da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: candicelisboa@ufu.br 13 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: suzannalps@hotmail.com
14 CÂNDIDO, Antonio. Vários escritos. 3ª ed. São Paulo: Duas cidades, 1995. P.241
26Dona Flor é uma personagem vanguardista na medida em que rompe com os
padrões sociais da época e se deixam levar por seus desejos e vontades. Embora estejam
inseridas em um cenário social de domínio machista, é símbolo de poder e ruptura, força e
beleza. Tem em comum o fato de enfrentar e resistir às barreiras impostas pelo meio no
intuito de terem suas vontades satisfeitas15.
Quando Flor vê Vadinho nu diante de si, recebe o turbilhão de sentidos e desejos e
tem certeza que o quer, mas as imposições monogâmicas fazem parecer tal excitação
imoral, irregular e coercitiva. Mas Flor o deseja. A dúvida então cerca a personagem que na
imaginação de quem lê imagina que ela terá que escolher entre um, pois estamos
condicionados a pensar da forma mais moral possível.
Mas como mulher Amadiana, Flor é transgressora e cheia de movimento. Opta por
não escolher. Flor é irregular, e é tal irregularidade que faz de Flor uma mulher livre e feliz.
Ela escolhe seus desejos frente ao padrão monogâmico imposto.
A escolha de não escolher de Flor revela a relação que se tem com a ambiguidade, a
duplicidade, as oposições e contrastes. Revela que existe medo e receios sobre o que é
ambíguo, colocando a ambiguidade como algo ruim, irregular e que deve ser corrigido
através da escolha entre somente uma coisa ou outra, não podendo duas.
A liberdade feminina incomoda e causa mudanças profundas no pensamento e
expressão social, e isso, não é algo desejável em uma estrutura planejada e gerenciada por
homens e seus machismos velados. Nesse sentido, Pierre Bourdieu traz à tona a questão da
desvalorização do feminino, do trabalho feminino e sua posição quando no âmbito público.
Para ele, o masculino já nasce com privilégios e uma aceitação tácita.16
Essa mesma moralidade que dá força ao homem e fraqueza a mulher é responsável
pela visão e cultura da época. O homem é retratado como herói e a mulher como uma
donzela sempre em perigo, e isso sé dá através das artes, literatura, cinema e até mesmo
ditados populares. Principalmente no que tange a literatura, que é fonte de estudo aqui, os
15 Nesse sentido, Suzana Zanon explica que “Flor é um símbolo de uma identidade dupla, elemento que oscilaentre o desejo sexual, como metáfora da liberdade humana, e a liberdade coibida, fruto da postura honrada ecorreta que expressa através da fidelidade e pudor ante o matrimônio.” ZANON, Suzana Raquel Bisognin.DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: O DESEJO COMO PRINCÍPIO DO AVESSO. 2010. 138 f.Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras, Departamento de Linguística, Letras e Artes, UniversidadeRegional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Frederico Westphalen, 2010. Avesso p. 3116 BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina; Tradução Maria Helena Kühner. – 11ª Ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. 160p. p. 75.
27homens são retratados com grande frequência como dominadores, aventureiros e
conquistadores de grandes feitos.
Por isso Jorge Amado é um expoente de uma mudança na literatura brasileira, Jorge
retrata em várias de suas obras mulheres protagonistas, com personalidades complexas,
dilemas, problemas, vontades, vitórias e aventuras. Amado sai da ótica do protagonismo
masculino e da dualidade homem dominador - mulher dominada, e traz heroínas femininas
atoras de suas próprias histórias e guiadas por seus ideais e anseios.
A escrita de Jorge Amado é um relato tanto da sociedade da época, como uma leitura
do papel feminino naquele momento temporal e social, quais suas funções e a descrição do
lugar feminino na hierarquia da família e do universo externo ao lar, quanto dos anseios e
desejos dessas mesmas mulheres. Essa última, é fruto do fortalecimento do movimento
feminista em meados de 1960 no Brasil.
REFÊRENCIAS
AMADO, Jorge. Dona Flor e Seus Dois Maridos.São Paulo: Martins, 1966.
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina; Tradução Maria Helena Kühner. – 11ª Ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. 160p.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3ª ed. São Paulo: Duas cidades, 1995.
COVER, Robert M.. NOMOS E NARRAÇÃO. Anamorphosis: Revista Internacional deDireito e Literatura, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p.187-268, Julho/Dezembro 2016. Disponívelem: <http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/299/pdf>. Acesso em: 01 dez.2017.
DAMATTA,Roberto. “Dona Flor e seus dois maridos: um romance relacional.” A casa & a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.
ZANON, Suzana Raquel Bisognin. DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: O DESEJOCOMO PRINCÍPIO DO AVESSO.2010. 138 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras,Departamento de Linguística, Letras e Artes, Universidade Regional Integrada do AltoUruguai e das Missões, Frederico Westphalen, 2010