Post on 28-Jul-2015
O TRABALHO INFANTIL NA ERA VITORIANA: UM RETRATO
DA VIDA DO PERSONAGEM PIP NA OBRA GRANDES
ESPERANÇAS DE CHARLES DICKENS1
Marta Maria de Sousa Matos2
RESUMO
O presente trabalho discorre sobre as condições do trabalho infantil na era vitoriana, época de grandes contrastes sociais resultantes da Revolução Industrial. Época que alterou as condições de vida do trabalhador braçal, provocando um intenso deslocamento da população rural para as cidades. Uma das consequências desse deslocamento foram as grandes concentrações urbanas. A vida que já não era fácil tornou-se inapropriada, um quarto que suportava em condições normais três pessoas, era ocupado por doze. Os operários moravam em cortiços sem estrutura física e sem nehuma higiene. Além de tudo isso, os trabalhadores eram submetidos a jornadas de oitenta horas de trabalho por semana. Teremos como base para essa análise a obra Grandes Esperanças, em particular, os relatos do personagem Pip, típico representante da classe operária da sociedade vitoriana.
PALAVRAS-CHAVES: Trabalho Infantil. Era Vitoriana. Grandes
Esperanças.
1. INTRODUÇÃO
A era vitoriana foi assim denominada devido a Rainha Vitória que
chegou ao trono inglês em 1837 e reinou por 64 anos. Nesse período ela
ajudou a Inglaterra a se tornar um poderoso império, o progresso era rápido
e constante, isso nos vários setores, como cultura, religião, política e
literatura.
Segundo Mendes (1983) a era vitoriana faz lembrar do Império
Romano e do Império Espanhol, pelo progresso e esplendor, e chega a se
equiparar com a Era de Péricles, Era de Augusto, Era das Catedrais, da
Renascença, de Luís XIV, Era de Napoleão. O autor destaca ainda que foi
uma “época de grandes e profundas modificações, de ordem material e
espiritual. Não apenas de expansão política, mas de progresso real em
todos os setores, inclusive no literário” (MENDES, 1983, p. 08). Mendes
destaca ainda em seu texto que o progresso era rápido, de década em
década, mas o progresso trouxe fortes contrastes para a sociedade.
A era vitoriana marcou a história da sociedade britânica, pelo
desenvolvimento rápido, as grandes transformações sociais, o destaque da
literatura, do trabalho infantil, da miséria nas favelas que se formaram
devido o êxodo do campo para cidade em busca de emprego. Segundo
Mendes,
“era um mundo de contrastes tão impressionantes, de fausto e de miséria, de grandeza e de vileza, de arte e de decadência estética, de injustiças gritantes e de reivindicações, de lirismo e de realismo, de idéias gastas e de novos surtos de pensamento, de egoísmo e devotamento, de sentimentalismo e de espírito prático, de materialismo e de espiritualidade, […] apesar de suas limitações, de seus erros, de seus altos e baixos, mereceu por tudo quanto nela existiu de esplêndido e de grande, denominar uma época, marcar um estilo de vida, enriquecer sobre posse uma literatura e afirmar perante o mundo, aturdido pelas grandes conquistas de suas máquinas, de seus homens de comércio e de política, a elevada espiritualidade de um povo”. (MENDES, 1983, p. 16).
A Revolução Industrial alterou de forma impactante as condições de
vida do trabalhador braçal da sociedade vitoriana, de início provocou um
intenso deslocamento da população que habitava a zona rural para as
cidades, em busca de melhores condições de vida, trabalhado nas fábricas.
Uma das conseqüências desse deslocamento foram as grandes
concentrações urbanas. A população de Londres cresceu de 800 000
habitantes para mais de 5 milhões.
Os operários, durante o início dessa revolução, moravam em
condições desumanas, viviam em cortiços, superlotados com dez ou doze
moradores, onde apenas três deveriam morar. As ruas eram sujas, desde lixo
doméstico aos dejetos que eram jogados diariamente pelas janelas das casas.
Mendes relata esse fato em seu texto, segundo o autor “o despejo do lixo e
das serventias das casas mal-iluminadas e mal-arejadas era feito nas ruas.”
(MENDES, 1983, p. 10).
Além disso, esses trabalhadores eram submetidos a jornadas de
trabalho que chegavam a 80 horas por semana. O salário era insuficiente
para atender as necessidades básicas daquelas pessoas. Tanto mulheres
como crianças também trabalhavam, recebendo um salário ainda menor.
A Revolução Industrial trouxe muitos impactos à vida das pessoas da
classe baixa. As casas eram desconfortáveis, mal iluminadas e mal arejadas.
O trabalho nas fábricas não era seguro, havia exploração do trabalho
infantil. O salário era baixo e as taxas de desemprego aumentavam a cada
ano. Começaram a se formar favelas, onde não havia coleta de lixo, repletos
de cortiços com higiene precária, sem água encanada e tratada, sem
saneamento. Até o banho era precário, algumas pessoas tomavam três
banhos durante o ano. Eles apenas lavavam o rosto e as orelhas. Nessas
condições não era de se esperar que as taxas de expectativa de vida da
população fossem altas.
Mendes descreve as condições de vida dos trabalhadores da era
vitoriana da seguinte forma:
“As classes pobres e operárias desconheciam inteiramente o banho. Lavavam apenas o rosto, o pescoço, as orelhas. A miséria nos cortiços era tremenda. Mais de uma família abrigava-se, por vezes, num só quarto. A imundície reinante era extrema. Enxameavam baratas, pulgas, moscas, percevejos. Quanto às ratazanas vorazes e até mesmo agressivas corriam por toda parte. Conta-se o caso de uma mãe que passava as noites em claro, para que os ratos não lhe comessem o filhinho.” (MENDES, 1983, p. 10).
É neste contexto que Charles Dickens começa a publicar seus
romances. Tendo escrito quase toda sua obra no período de reinado da
rainha Vitória, Dickens foi testemunha de uma época de intensas
transformações sociais e culturais na sua Inglaterra natal. Segundo Wilson
“Dickens não era apenas um simples vitoriano, mas o maior e
incomparável escritor inglês do seu tempo. Shaw o igualou a Shakespeare.”
(WILSON, 1965, p. 12). O trabalho infantil torna-se uma das características
da economia inglesa. Dickens, então, aflorará estes problemas, mas
conquistará também o público burguês, pois jamais se assumiu como um
revolucionário. LUCAS (1992) ressalta que nos capítulos iniciais de
Grandes Esperanças, Dickens procura apoiar a classe trabalhadora, a
violência da classe e ao mesmo tempo desmitificá-la.
As personagens de Dickens, quando melhoram de vida, devem essa
melhoria às circunstâncias e acasos da vida, e não aos próprios esforços ou à
luta contra a injustiça social. Como exemplo pode-se citar o personagem Pip
da obra Grandes Esperanças, menino simples, pobre, de vida comum, com
destino já traçado, trabalharia como ferreiro ao lado do cunhado Joe. E tudo
causava ao garoto muito contentamento, pois aos pobres já era traçado um
destino ao nascer. Mas ao receber o dinheiro de um benfeitor anônimo muda
de vida, sem fazer esforço algum por essas melhorias.
Álvaro Pina escreve sobre as várias maneiras que se podem
interpretar Grandes Esperanças, destacando a carga de subjetividade
contida na obra. Segundo Pina,
“Dickens, em Great Expectations, criou um processo narrativo de primeira pessoa perante o qual, se o quiser ler bem, o receptor tem de se distanciar tanto do Pip personagem autonarrada como do Pip que se autonarra, para por debaixo da relação entre os dois Pips se encontrar com a subjetividade do autor, e participar plenamente na comunicação literária como âmbito de encontro de autor e receptor no comum, na humanidade que a ambos essencialmente define, em pleno respeito da individualidade de um e de outro que o modo de composição de Great Expectations põe em evidência. Ler Great Expectations em conformidade com o modo da sua composição significa, por um lado, procurar a verdade íntima de um Pip que também a procura; por outro lado, apropriar a tematização e a avaliação estética de condições de vida de seres humanos levados a cabo por Dickens por intermédio de Pip mas independentemente de Pip. Será superficial qualquer leitura do romance que parta de Pip e a ele se confine. Pip é apenas o ponto de encontro de autor e leitor, cuidadosamente diferenciado de ambos” (PINA, 1984, p. 81).
As aventuras vividas pelos personagens infantis de Charles Dickens
levam o leitor a refletir sobre as condições sociais da época vitoriana e como
a criança era vista pela sociedade. Ao ser levada ao trabalho aos cinco anos
de idade, pelos próprios pais, que deveriam ser seus protetores, percebemos
que naquela sociedade a criança era uma peça do jogo econômico dos
adultos. Uma peça que poderia ser vendida, negociada, alugada e até mesmo
abandonada, quando não mais servisse aos propósitos dos adultos. Assim
como desabafou Henry Mayhew, em seu artigo London labour and the
London poor, falando que era no mínimo uma vergonha nacional, as
condições de miséria enfrentadas pela população, em contraste com toda
riqueza que a Inglaterra conquistava na época.
2. A INFÂNCIA NA ERA VITORIANA
As condições de vida na era vitoriana não eram as mesmas para todas
as crianças. O tipo de vida que uma criança tinha dependia diretamente da
posição social que sua família ocupava.
Caso não pertencesse a uma família rica, com direito de frequentar a
escola, ter boa alimentação, condições higiênicas simples como banhar-se
diariamente, a criança na sociedade vitoriana era obrigada a contribuir para
o orçamento familiar. Para isso, era necessário enfrentar longas horas de
trabalho, em condições de perigo, como carregando pedras, limpando
chaminés, rastejando-se nas minas, e tudo isso por um salário muito
pequeno. Elas sequer usavam sapatos, pois a família não dispunha de
condições para tal regalia.
A maioria das crianças não tinha outra escolha, precisavam trabalhar
para ajudar suas famílias a ganhar dinheiro suficiente para sobreviver. Além
das longas jornadas de trabalho, essas crianças enfrentavam condições de
vida desumanas, moravam perto das fábricas em bairros sem nenhuma
higiene. Elas eram desnutridas, a única alimentação feita no dia era
basicamente pão, carne de porco, leite ou queijo. Além da precária
alimentação, essas crianças enfrentavam a sujeira das ruas. Elas começaram
a contrair doenças como cólera, devido à água poluída que bebiam, além
disso apresentavam pulmões infectados devido a poluição das fábricas,
outras mais, contraíram tuberculose, varíola e difteria. Como não havia
vacinas, as taxas de mortalidade infantil eram altas.
Estas condições afetavam não só as crianças, mas os adultos
também. Muitas crianças viviam com suas famílias nessas condições
precárias, mas havia inúmeras que moravam em abrigos, e muitas outras nas
ruas de Londres. Estas crianças eram expulsas de suas casas e jogadas nas
ruas, algumas iam para as ruas porque fugiam de casa por causa dos maus
tratos que recebiam.
Tantas crianças vivendo sem orientação, só viam um caminho a ser
seguido, o crime. Então começaram os pequenos furtos nas ruas de Londres.
Para os moradores era uma verdadeira ameaça para a sociedade, pensaram
então que a educação seria a resposta para solucionar o problema dos furtos
e retirar as crianças das ruas. Outros diziam que o crime não fora causado
pela falta de educação e esta não seria a solução para o problema, e que o
crime só seria combatido através da perseguição aos pequenos infratores.
Porém, uma característica marcante na época era que somente as crianças
ricas iam à escola, os filhos dos comerciantes, industrias, banqueiros e
funcionários públicos.
Apesar de sua grande importância, a educação desempenhou um
papel muito pequeno na vida das crianças. Na Era Vitoriana existia a crença
de que a educação não era necessária. Então, em 1870, a Lei da Educação
foi aprovada afirmando que todas as crianças, com idades entre cinco a dez
anos, deviam freqüentar a escola. No entanto, muitas crianças tentaram
evitar a escola, principalmente por causa do calor, barulho, odores e meio
ambiente insalubre em sala de aula. As crianças pobres preferiam trabalhar
do que ir à escola, isso porque se estivessem na escola estariam perdendo o
dinheiro que ganhariam se estivessem trabalhando.
3. AS CONDIÇÕES DO TRABALHO INFANTIL NA ERA
VITORIANA
As relações sociais na época eram baseadas no jogo do poder
aquisitivo, as crianças eram muito mais baratas do que os adultos para o
trabalho nas fábricas, indústrias e minas. Não se queixavam, tinham dedos
ágeis, podendo arrastar-se sob as máquinas. Como os empresários queriam
lucrar e não ter grandes prejuízos, o trabalho infantil passou a ser um bom
negócio.
Por serem pequenas o suficiente, o trabalho das crianças consistia em
recuperar bobinas de algodão, rastejar sob máquinas para amarrar os fios
partidos. Um trabalho bem perigoso, pois elas não dispunham de nenhuma
proteção para realizá-lo e arriscavam-se a ser pegos pelas máquinas,
correndo risco de perder membros como pernas e braços ou até mesmo
morrerem caso fossem esmagados pelas enormes máquinas.
Além do trabalho nas fábricas, as crianças também eram requisitadas
nas minas. Como o carvão passou a ter um ótimo valor comercial, o trabalho
das crianças consistia em empurrar caminhões de carvão ao longo de túneis,
rastejar através dos túneis, que eram muito estreitos e baixos para um
adulto. Elas eram responsáveis por abrir e fechar as portas de ventilação.
Algumas crianças começavam a trabalhar às duas da manhã e ficavam sob o
solo por dezoito horas seguidas.
Havia também os “limpa-chaminés”, trabalho este muito perigoso,
como descreve Mendes.
“Havia a classe dos meninos que limpavam as chaminés das casas. Os perigos e sofrimentos dos limpa-chaminés estarrecem, subiam e desciam por estreitas chaminés, a limpá-las da fuligem interior que lhes invadia sufocamente os pulmões, além de transformá-los em verdadeiras caricaturas de pretos. Banhavam-se apenas três vezes por ano. Um deles confessava que levara 15 meses sem um banho sequer”. (MENDES, 1983, p. 10).
A jornada de trabalho era de segunda a sábado, o único dia de folga
era aos domingos, porque eles iam à igreja. Muitas crianças ficaram órfãs,
outros foram simplesmente abandonados. Eles trabalhavam muitas horas por
pouco dinheiro e para se alimentarem tinham ainda que venderem objetos
como jogos, lenha, botões, flores, sapatos de verniz ou até varreram as ruas,
por onde os ricos passavam, no intuito de receberam algum dinheiro para no
mínimo comprarem um simples pedaço de pão.
Mendes relata ainda sobre as condições do trabalho infantil na era
vitoriana, segundo ele “as condições de trabalho na época que Dickens
viveu e descreveu nos seus romances eram deploráveis. As leis que
proibiam essa profissão [dos meninos que limpavam chaminés] aos
menores de 20 anos eram burladas.” (MENDES, 1983, p. 10).
4. A CONCEPÇÃO DO TRABALHO INFANTIL NA OBRA
GRANDES ESPERANÇAS
Dickens conviveu com a realidade do trabalho infantil, então tentou
aflorar ao máximo esse problema em suas obras. Em Grandes Esperanças, o
personagem Pip já tem definido desde os primeiros dias de vida o seu futuro
profissional. Ele irá ajudar seu cunhado Joe na ferraria. Pip não tinha outra
perspectiva de vida, nem mesmo estudo era destinado a ele. Como era um
garoto bem curioso frequentava as aulas na casa da tia avó de Mr. Wopsle,
mas assim com ele define, a professora não era muito eficiente.
“A tia-avó de Mr. Wopsle mantinha uma escola noturna em nossa vila; ou melhor, ela era uma velha ridícula, de recursos limitados e enfermidades ilimitadas, que costumava dormir das seis horas ás sete horas, todas as noites, na frente dos alunos, que pagavam, cada um, dois pence por semana pela “instrutiva” oportunidade de vê-la dormir. Acreditava-se que Mr. Wopsle aplicava um “exame” aos alunos uma vez por trimestre. Mas o que ele fazia nessas ocasiões, era arregaçar as mangas, passar os dedos pelos cabelos e nos brindar com a oração de Marco Antônio sobre o corpo de César [...] eu atacava o alfabeto como
se ele fosse um espinheiro, arranhando-me e dilacerando-me em cada letra [...] nas aulas de aritmética, defrontava-me com aquele pequenos larápios, os nove algarismos que pareciam cada noite, fazer alguma coisa nova para se disfarçar e evitar que fossem reconhecidos […] enfim, comecei, meio as cegas e capenga, a ler, escrever e fazer contas.” (Cap. 07, p. 65 – 66).
Sobre o trabalho como ferreiro, era unanimidade na casa de Pip, não
haveria possibilidade de ele sonhar com outras carreiras. Não havia outras
carreiras para as quais ele serviria. Quando vai pela primeira vez à casa de
Miss Hasvisham ele acha que a sua função lá seria trabalhar, e aceita isso
naturalmente, “respondi de coração mais aberto a essa indagação, dizendo
que sim, que queria muito trabalhar” (Cap. 11, p. 107). A frieza da
sociedade em relação ao trabalho infantil está presente no livro através do
personagem de Mr. Pumblechook, típico cidadão da sociedade vitoriana.
O próprio Pip se mostra satisfeito com o destino que lhe é concedido,
ele aguarda ansioso para trabalhar como ferreiro, como se esse destino fosse
sua libertação dos maus-tratos que sofria de sua irmã. Pip relata “que a
ferraria era o caminho iluminado para a vida adulta e a independência.”
(Cap. 14, p. 131). Ressalta ainda que
“Quando tivesse idade suficiente, iria ser aprendiz de Joe, e até que pudesse assumir tal distinção, não deveria ser aquilo que Mrs. Joe chamava de mimado, ou (segundo minha interpretação) mal-tratado” (Cap. 07, p. 64).
Vemos então a importância do papel da família na formação do
caráter do indivíduo, a própria irmã de Pip empurra o menino ao trabalho,
dizendo que ele era um peso em sua vida. Joe também estimula Pip para
trabalhar, pois isso sempre fez parte da realidade do pobre cunhado de Pip.
Quando se refere à irmã, percebemos certa amargura nos sentimentos de Pip
em relação a ela.
“A forma como minha irmã me educou tornou-me demasiadamente sensível. No mundinho em que as crianças vivem, não importa o que, as eduque, não há nada que seja
mais percebido e sentido tão claramente quanto a injustiça. É verdade que é apenas uma injustiça pequena aquela a que uma criança pode ser exposta; mas ela é pequena, o mundo dela é pequeno, e o pequeno cavalo de brinquedo parece, para ela, se erguer muito alto, como um enorme caçador irlandês. Dentro de mim, eu havia suportado, desde a mais tenra idade, um perpétuo conflito com a injustiça. Sempre soube desde que aprendera a falar, que minha irmã, com o seu modo caprichoso e violento de me tratar e castigar, era injusta comigo […] e a convivência com tudo isso, de um modo solitário e desprotegido, resultou, em grande parte, no fato de eu ser moralmente tímido e muito sensível.”(Cap. 08, p. 84 – 85).
Pip era apenas um garoto comum, e não tinha noção de como era
visto pela sociedade e por quais motivos era excluído por ela.
“Assim, não era mais que o garoto da ferraria, e sempre que algum vizinho quisesse um garoto para espantar passarinhos, pegar pedras ou qualquer trabalho dessa espécie, eu era o escolhido para o trabalho. A fim de que, contudo, nossa 'posição superior' não ficasse comprometida.” (Cap. 07, p. 64).
O garoto não questiona os motivos pelos quais ele é obrigado a
trabalhar ainda criança, e porque ele não poderia estudar, brincar, estas
atitudes eram vistas por sua irmã como falta de atividades a serem feitas ou
até mesmo dizia que Pip era um garoto mimado por querer essas regalias.
5. A RELAÇÃO COMMOM – GENTLEMAM NA
PERSPECTIVA DO TRABALHO
Um gentleman na sociedade vitoriana era um homem bem vestido,
de bons modos, que sabia usar a linguagem corretamente, encantador pelo
discurso, invejado pelo modo que se comportava nos lugares. Era um
homem assim que Pip queria se tornar quando passa a morar em Londres.
Há um contraste fortíssimo entre Herbert e Pip, aquele fora
incumbido de ensinar Pip a se comportar como um gentleman. Pip era de
origem comum, tinha disposição ao aprendizado, mas não partilhava da
mesma educação recebida por Herbert, este fora educado para ser um
cavalheiro, e Pip recebera educação condizente ao que se tornaria no futuro,
um ferreiro.
O curioso na obra é que Pip, ao receber o dinheiro do benfeitor passa
a fazer uso desse dinheiro como se fosse um gentleman, e não pensa mais
em trabalhar. “Eu não deveria ser destinado à profissão alguma, e deveria
receber a educação apropriada caso conseguisse acompanhar a média dos
jovens em circunstâncias prósperas. (Cap. 24, p. 224).
Então pode-se deduzir que na era vitoriana a classe dos comuns era a
classe trabalhadora e os gentlemans eram os patrões. Mas Pip tinha origem
humilde, ele poderia mudar o frasco, mas não sua essência. No entanto,
percebemos que no decorrer da obra Pip começa a ficar deslumbrado com a
vida de um gentleman, passa a gastar seu dinheiro com coisas supérfluas,
começa a se endividar pela falta de controle e organização. Ele mesmo
relata que
“Ao habituar-me às minhas esperanças, comecei, em sentir, a notar o efeito delas sobre mim mesmo e sobre os que cercavam. A influência sobre meu caráter, eu procurava dissimular, mas não podia ser considerada como inteiramente benéfica. Eu vivia em um estado de inquietação crônica...” (Cap. 34, p. 304).
Vemos então que a sociedade começa a manifestar influência sobre
Pip, e a transformar o caráter do garoto. Tiramos essas conclusões dos
próprios relatos de Pip.
“O que eu me tornaria vivendo em um ambiente assim? Como seria possível que meu caráter não ficasse influenciado por ele? Seria de espantar que meus pensamentos ficassem ofuscados, da mesma forma como meus olhos, ao deixar aqueles quartos amareleciso e sombrios e voltar à luz do dia?” (Cap. 12, p. 119).
Herbert é nobre por essência, mas sua família não tem dinheiro,
então ele precisa trabalhar, mas não o faz com grande competência. Seria
parte da essência de um gentleman não ter vocação para o trabalho? Herbert
só consegue prosperar com a ajuda de Pip nos negócios. Pip pede ajuda a
Wemmick “...para [orientá-lo] quanto à melhor maneira de ajudar a
Herbert, com meus recursos, propiciar a Herbert, no momento, uma certa
renda...” (Cap. 37, p. 328).
Quando o leitor começa a pensar que Pip voltou a ser simples e
honesto se depara com uma cena de egoísmo e prepotência quando Pip
retorna ao vilarejo na intenção de casar-se com Biddy. No entanto, Biddy
está casada com Joe e eles têm um filho fruto da união. O leitor percebe o
quanto Pip tem de ingênuo e prepotente ao considerar que Biddy o esperaria
eternamente, e que ela não teria vida própria e sentimentos que poderiam ser
controlados por ele.
6. O PODER DA SOCIEDADE CAPITALISTA SOBRE O
CARÁTER DO PERSONAGEM PIP
A primeira deformação de caráter do personagem Pip aparece antes
mesmo dele ser contemplado com o dinheiro pelo anônimo. Ao visitar
constantemente Miss Havisham e Estella, Pip começa a se envergonhar da
vida simples que levava, ele mesmo o diz “É uma coisa muito dolorosa
sentir vergonha da própria casa. Deve haver nisso uma infame ingratidão,
e a punição deve chegar e é bem merecida. Mas que em si só é um
sofrimento, posso asseverar”. (Cap. 14, p. 131).
Antes de ter contato com a riqueza de Miss Havisham, Pip, no
âmbito de sua inocência infantil acredita que sua casa era a mais elegante de
todas.
“eu acreditava que aquela sala de visitas era o mais elegante dos salões; que a aporta da frente era um misterioso portal do Templo do Estado, cuja solene abertura se fazia com o
sacrifício de galinhas assadas; que a cozinha era um aposento íntegro, apesar de não ser magnífico. (Cap. 14, p. 131).
Ao receber influências dos preconceitos existentes em Miss
Havisham e Estella, Pip começa a mudar o seu conceito e diz que “passado
um único ano, e tudo isso havia mudado. Agora tudo era grosseiro e vulgar,
e eu de maneira alguma deixaria que Miss Havisham ou Estella vissem
aquilo.” (Cap. 14, p. 131). Em pouco de tempo de convivência com Miss
Havisham Pip muda sua visão dos fatos e começa sentir o desejo de se
tornar rico para estar à altura de Estella, sua amada.
Mesmo tendo mudado tanto, Pip reconhece suas novas concepções,
mas não culpa Miss Havisham ou qualquer outra pessoa por ter lhe
influenciado a pensar de uma nova maneira.
“O quanto de ingrata condição de minha mente se devia a mim mesmo, o quanto se devia a Miss Havisham ou à minha irmã, não vem ao caso, nem para mim nem para ninguém. A mudança já se processava dentro de mim; a coisa já estava feita. Bem ou mal, justificada ou não, já estava feita”. (Cap. 39, p. 352).
Mesmo com o desejo de tornar-se rico, Pip não tem escolha e
começa a trabalhar como ferreiro, no entanto, as suas expectativas infantis
foram completamente dissipadas
“Antes me parecia que quando, eu pudesse estar empregado na ferraria como aprendiz de Joe, sentir-me-ia honrado e feliz. Agora que isso se realizara, sentia-me apenas enegrecido com o pó do carvão, e, em comparação com o peso que eu carregava, dia a dia, de minhas recordações, a bigorna era uma pluma”. (Cap. 14, p. 131).
A sociedade contaminou Pip e alterou seus princípios morais, sua
simplicidade, lealdade e seu caráter. Pip conseguiu tornar-se um gentleman,
reconhecido e respeitado. Quando seu benfeitor aparece sente-se orgulhoso
pela contribuição dada para levar o pobre garoto a ser um cavalheiro.
Mahwith diz:
“Olhe só, um relógio de ouro! É uma jóia rara! Só um cavalheiro usaria assim! Um brilhante montado com rubis! Sim, senhor, isso é ser um cavalheiro! E a sua roupa de baixo, fina, maravilhosa! Seu traje: impossível haver coisa melhor! Os seus livros, centenas deles! E o senhor lê tudo, não é?” Cap. 39, p. 352).
Mas será que Pip sente-se totalmente realizado, em ser um
gentleman, possuir dinheiro, ser respeitado pela sociedade. É o bastante para
a felicidade de um ser humano. O fato de ter abandonado Joe, seu amigo
leal de todas as ocasiões e ter sentido vergonha dele, da casa onde fora
educado. Será que apenas o fato de não ter o amor de Estella é que impede a
completa felicidade de Pip.
Pip se torna amargurado e não é feliz diante da atual condição, ser
gentleman, reconhecido pela sociedade não significa nada, pois sua essência
não é essa. Segundo Pina,
“O dinheiro surge como um poder deturpador da qualidade humana da vida e das relações sociais (como é particularmente evidente em Estella enquanto expressão do poder de Miss Havisham) e intimamente ligado ao crime, à inversão e falsificação de valores, ao poder da exterioridade sobre o ser humano”. (PINA,1984, p. 130).
Pip talvez não soubesse disso, a sociedade pode tê-lo corrompido,
mas não o manterá sob seu domínio para sempre. Com a maturidade o ser
humano percebe que os seus valores valem mais do que qualquer quantia
em dinheiro, ou respeito de uma sociedade prepotente e injusta.
4. CONCLUSÃO
Conclui-se com este estudo que a era vitoriana, em particular, a
Revolução Industrial, exerceu grande influência no que diz respeito às
mudanças ocorridas na época. No entanto, talvez o maior dos impactos
tenha sido a exploração do trabalho infantil. Dickens retrata esses problemas
de forma excepcional em Grandes Esperanças, o leitor consegue entender a
crítica que Dickens faz de forma satírica à sociedade da época, que
valorizava as roupas, os modos, a maneira de falar do indivíduo. Uma
sociedade que desprezava os pobres, que explorava suas crianças, que
visava somente o capital e a ostentação do luxo. Grandes Esperanças traz
uma reflexão profunda sobre a forma como as crianças eram tratadas e já
antecipa como será a concepção de infância nos séculos seguintes. Elas
ditarão as regras amanhã, então o que se pode argumentar, se elas
destruírem o nosso planeta, se foi dessa forma que as educaram. Cabe a cada
ser humano refletir sobre suas atitudes, sobre o exercício de cidadania. E a
literatura é um dos meios mais práticos e dinâmicos de se promover essa
reflexão. As ideias de escritores como Dickens não deveriam ficar apenas na
estante, deveriam ser colocadas em práticas e vivenciadas. Grandes
Esperanças nos leva a reflexão para muito além do conflito entre capital e
sociedade e o amor impossível entre Pip e Estella, essa obra estimula o
leitor para percepção dos valores atribuídos à infância e que serão
preservadas no adulto, e a importância de ensinar valores morais para que
sejam formados adultos dignos, que tenham caráter e não se deixem
corromper ou dominar por qualquer discurso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. DICKENS, Charles. Grandes Esperanças: texto integral / Charles
Dickens: tradução Daniel R. Lehman. São Paulo: Martin Claret,
2006. Coleção a obra-prima de casa autor; 49. Série ouro.
2. LUCAS, John. 1992. “Becoming a novelist”. In: Id. Charles
Dickens: The major novels. Harmondsworth: Penguin. (Penguin
Critical Studies), p. 1-21.
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Penguin, 1985 (publicado originalmente 1851).
4. MENDES, Oscar. 1983. “A era vitoriana”. In: Id. Estética literária
inglesa. São Paulo; Brasília: Itatiaia; INL, (Col. Ensaios, v.10), p. 8-
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5. PINA, Álvaro. 1984. “Great Expectations: A subjectividade como
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Horizonte Universitário, p. 85-134.
6. WILSON, Edmund. 1965 [1941]. “Dickens: os dois Scrooges”. In:
Id. Raízes da criação literária. Trad.: Edilson Alkmim Cunha. Rio
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9. Sociedade Vitoriana. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/schools/primaryhistory/victorian_britain. Acesso em 18 de maio de 2010. Às 22h30min.
9. Trabalho Infantil na Sociedade Vitoriana. Disponível em: http://www.freeessays.cc/db/18/ehc33.shtml. Acesso em 20 de maio de 2010. Às 14h40min.