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AS MULHERES DO MULHERIO (1981-1982): IMPRENSA, FEMINISMO E
POLÍTICA.1
Renata Cavazzana da Silva2
RESUMO: Os movimentos feministas insurgem no Brasil na década de 1970, articulados
com a luta contra a ditadura militar. A imprensa feminista, que tem suas origens na imprensa
alternativa, tornou-se um veículo dessa luta pela democracia e pelo espaço da mulher na
política, alargando o próprio significado do que é política. Neste artigo pretendemos analisar
as edições dos dois primeiros anos do periódico Mulherio a fim de conhecer as formas de
fazer política e de resistir das mulheres acadêmicas e jornalistas no cenário da ditadura.
INTRODUÇÃO
De acordo com a historiadora Joan Scott, gênero é uma forma de representação social
que define o que é ser mulher ou homem a partir da diferenciação biológica dos corpos, ou
seja, esta categoria “é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças
percebidas entre os sexos e [...] é uma forma primária de dar significado às relações de poder”
(SCOTT, 1995, p. 86). Essa diferenciação provoca o estabelecimento de uma hierarquia em
que a mulher é relegada pela sociedade à posição subalterna, sendo contemplada como a
fragilidade e a impotência encarnadas. A mulher é como “o último grau da escala, o cachorro
do batalhão que aguenta o desabafo agressivo até do mais mísero e mais oprimido dos
homens” (Mulherio, 1981, ed. 0, p. 4), como escreve Carmen da Silva em seu primeiro texto
publicado no periódico feminista Mulherio.
O jornal Mulherio, fonte e objeto deste artigo, é um herdeiro do formato da imprensa
alternativa brasileira (CRESCÊNCIO, 2016), e resistiu ao governo militar durante os últimos
anos da ditadura no Brasil, entre 1981 e 1988. Suas páginas são fontes privilegiadas para o
estudo do cenário brasileiro na década de 1980 a partir de perspectivas feministas e de gênero,
que politizam o cotidiano. Ao discutir uma miríade de questões consideradas de ordem
1 Trabalho apresentado com Auxílio para Participação de Estudantes em Eventos (APEE) da Pró-Reitoria de
Assuntos Estudantis (Proaes), em parceria com a Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Esporte (Proece) e da Pró-
Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (Propp) da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. 2 Graduanda do curso de História da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lagoas.
Bolsista PIBIC (CNPQ). Pesquisa: “A vez das mulheres e as mulheres da vez: a emergência do feminismo e dos
estudos de gênero no Brasil através das páginas do jornal Mulherio (1981-1988)”, orientada pela Prof.ª Dr.ª
Cintia Lima Crescêncio. Integrante do grupo de estudo e pesquisa História, Mulheres e Feminismos (HIMUFE).
E-mail: renata.cavazzana@gmail.com.
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privada como uma forma de fazer política, o periódico em questão subverte a dicotomia entre
público e privado, conforme a ressignificação da política proposta pelo movimento feminista
da década de 1970.
Em vista disso, pretendo refletir essas questões no campo da história, que durante
longo tempo lutou contra a “banalidade do cotidiano” (SMITH, 2003, p. 156) para a
construção de uma historiografia considerada objetiva e racional, negando às mulheres
(supostamente emocionais e irracionais) o direito à participação da construção da história e da
política. Nego a concepção que dissocia e estabelece uma hierarquia entre público e privado,
que correspondem à hierarquia social entre homens e mulheres. Dessa forma, me proponho a
escrever uma breve análise histórica deste periódico no que diz respeito a uma concepção de
política alargada e ao movimento feminista brasileiro nesse período, partindo da categoria de
gênero como proposto por Joan Scott.
Em um primeiro momento, localizarei o papel do jornal Mulherio no contexto do
movimento e das discussões feministas, bem como no cenário dos jornais alternativos
feministas, cuja política está articulada com o movimento. Tendo em vista que esse período
foi marcado pela efusão de pesquisas acadêmicas sobre a mulher no Brasil, será possível
refletir ainda a relação do periódico com a academia e a superação da dicotomia entre público
e privado.
O MULHERIO DA IMPRENSA FEMINISTA
Fortemente ligada à resistência contra a ditadura e aos movimentos de mulheres, que
lutavam para a melhoria das condições e custo de vida, reivindicando direitos trabalhistas
como salário digno e a implementação de creches que atendessem os filhos de mães
trabalhadoras, a imprensa feminista brasileira tem suas origens na imprensa alternativa – uma
das formas de resistência à ditadura militar no Brasil. A imprensa alternativa (também
chamada de imprensa nanica)3 pode ser compreendida como o fenômeno do surgimento de
diversos jornais, que se posicionavam contra e questionavam o regime militar, em desafio à
3 A imprensa alternativa era chamada também de nanica, devido ao formato menor das publicações em
comparação com a imprensa tradicional (TELES e LEITE, 2013). Tania Regina de Luca chama a atenção para “a
força persuasiva dos empréstimos, verbas publicitárias e outros favores estatais” (2005, p. 129) que
influenciavam a grande imprensa – elemento que constituía uma das diferenças fundamentais entre esta e a
imprensa alternativa.
3
censura do Estado sobre produções culturais e intelectuais consideradas subversivas, e a
conivência da grande mídia com o regime implantado.
De maneira geral, os jornais alternativos são caracterizados por sua posição não-
conformista frente à ditadura (CRESCÊNCIO, 2017). A imprensa alternativa é, nesse sentido,
a apropriação da escrita e de veículos de informação como prática para a transformação
social, e se constituiu como uma das formas mais importantes da resistência à repressão do
governo militar.
Segundo Bernardo Kucinski (2001) pode-se dizer que os jornais alternativos surgem
da confluência de duas forças: o desejo da esquerda (com seus partidos relegados à
clandestinidade) de participar ativamente do cenário político, e a busca de jornalistas e
intelectuais por espaços alternativos à grande imprensa. Para o jornalista, o sentido da
articulação entre estes agentes sociais (jornalistas, intelectuais e militantes políticos), reside,
portanto em uma “dupla oposição ao sistema representado pelo regime militar e às limitações
à produção intelectual-jornalística sob o autoritarismo” (KUCINSK, 2001, p. 6).
Apesar de o Mulherio seguir características da imprensa feminista alternativa, as
condições em que este jornal foi criado eram bastante diferentes dos primeiros jornais
feministas, o Brasil Mulher e o Nós Mulheres. Tais jornais dependiam da contribuição das
integrantes, frequentemente faziam apelo ao público leitor para que contribuísse com o jornal
(tanto financeiramente como na divulgação e na venda) e as vendas se realizavam de mão em
mão, sendo distribuídos voluntariamente (TELES e LEITE, 2013).
Por outro lado, o Mulherio nasceu da iniciativa de pesquisadoras, jornalistas e
militantes feministas financeiramente subsidiadas por uma instituição, a Fundação Carlos
Chagas (onde se encontrava a sede do jornal), que contavam com apoio financeiro desta, além
do apoio da Fundação Ford4. Estas instituições realizaram a mais importante iniciativa no
estudo do tema mulher e das relações de gênero no Brasil, contando com concursos e
4 A Fundação Ford atua no Brasil de 1962 e, percebendo a emergência do interesse por estudos sobre mulher
(que já eram financiados pela fundação nos EUA desde 1962) por parte de pesquisadores brasileiros começa a
atuar como principal fonte de financiamento de estudos sobre o tema. A fundação detinha grande credibilidade
devido a sua política liberal, de apoio a diversas correntes de pensamento e de preservação da autonomia dos
pesquisadores financiados (COSTA, BARROSO & SARTI, 1985).
4
captação de recursos para pesquisas (que eram divulgadas no Mulherio), tornando-se
referência nacional e internacional no estudo da mulher brasileira (PINTO, 2003, p. 86).
O periódico surge após o período de emergência do feminismo como movimento
político no Brasil, que se desenvolveu ao lado de partidos ilegais de esquerda. Ecoava aqui
uma mobilização causada pelo mote “o privado é político”5, que se fortalecia de forma
gradual, juntamente com iniciativas como a declaração da ONU do Ano Internacional das
Mulheres, em 1975. Paradoxalmente, o movimento se mostrou como uma grande força motriz
para a mobilização social em um contexto de repressão, tanto por parte do Estado como por
parte dos companheiros de resistência da esquerda, que acusavam o feminismo de diluição da
luta de classes e de ser uma ideologia da burguesia6. Portanto,
Assim como a existência de uma imprensa alternativa estava vinculada ao
próprio contexto nacional, a imprensa feminista, integrante do nicho
intitulado alternativo, não só está articulada à emergência de uma forma
diferente de fazer jornalismo, como também à efervescência feminista pela
qual passava o país (CRESCÊNCIO, 2016, p. 22).
5 A expressão ficou conhecida como um lema da segunda onda feminista. 6 Como analisa Michelle Perrot (1989, p. 17) existe a “concepção de uma indecência do privado [...]
particularmente forte na classe operária, toda voltada para a realização do homem de mármore da consciência de
classe. Falar de sua vida é expor-se, entregar-se ao olhar de seus inimigos, esta burguesia sempre pronta ao
desprezo”.
5
(Fonte: Mulherio, São Paulo, março-abril 1982, n. 6, capa)
Ademais, é também o momento do surgimento de uma preocupação com a situação da
mulher na sociedade dentro das universidades, que se revela em pesquisas que abordavam a
categoria “mulher” e, como analisa Albertina de Oliveira Costa, “atuando dentro de um
mesmo campo intelectual, estabelecia-se tacitamente uma aliança tática, universidade e
movimento de mulheres eram bastiões na luta contra o autoritarismo” (1998, p. 68). O
Mulherio, portanto, foi criado em um contexto caracterizado pelo surgimento e
desenvolvimento do que podemos chamar de “feminismo acadêmico”,
ancorado no Departamento de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, em São
Paulo, e em pesquisas de ciências humanas e educação realizadas nas
6
grandes universidades do país, em algumas das quais surgiram Núcleos de
Pesquisa em Estudos da Mulher (PINTO, 2003, p. 68).
Deve se considerar ainda que, diferentemente da década de 1970, em que a repressão
era ainda intensa devido ao AI-5, o jornal Mulherio foi publicado em um período de abertura
e anistia política em função da Lei da Anistia em 1979. Ou seja, o jornal surgiu após o retorno
de exilados políticos – dentre eles, muitas mulheres que tiveram contato com o feminismo no
exílio nos Estados Unidos ou na Europa por meio dos chamados grupos de consciência ou de
reflexão7. Para Céli Pinto, a anistia “marcou o início de uma época de maior liberalização,
menos repressão, menos medo e mais possibilidades de manifestação” (2003, p. 67).
Esse contexto possibilitou trazer à tona a existência das mulheres como sujeitos
políticos, participantes da vida pública, que antes eram limitadas ao ambiente doméstico e às
relações interpessoais, assim como assuntos considerados privados, separados da esfera
pública. O Mulherio trata de assuntos como reprodução, contracepção, aborto e maternidade,
e a frase “prazer é revolucionário” estampa uma de suas páginas (Mulherio, 1982, número 7,
p. 21).
Desde sua primeira edição de número zero – em formato de boletim, como foi
idealizado a princípio – o periódico se compromete a tratar as questões da mulher brasileira ao
mesmo tempo com seriedade e leveza (veiculando pesquisas acadêmicas, charges e tirinhas),
sendo proposto como um meio para a divulgação de material consistente, contendo
informações e discussões pertinentes à situação e à vivência das mulheres, características
analisadas em uma série de periódicos feministas, publicados entre 1980 e 1990, que
conformam para Elizabeth Cardoso a segunda fase da imprensa feminista8.
O jornal alcançou até mil assinaturas por todos os estados brasileiros logo após o
segundo número publicado, fato que indica grande receptividade do público em relação às
propostas do Mulherio. Essa rápida difusão do jornal nos permite perceber a necessidade que
7 Os grupos de reflexão eram grupos fechados, compostos por mulheres intelectuais que se reuniam (geralmente
em espaços privados) para discutir política, feminismo ou outras questões concernentes às mulheres. Algumas
exiladas políticas importaram esse modelo ao retornar ao Brasil. Ver mais em COSTA, Albertina de Oliveira. É
viável o feminismo nos trópicos? Resíduos de insatisfação. Cad. Pesq., São Paulo (66) 63-69, agosto 1988. 8 Elizabeth Cardoso divide a imprensa feminista após 1974 em duas gerações: a primeira mais preocupada com
as questões de classe, da qual fazem parte Brasil Mulher e Nós Mulheres; e a segunda, que passa a usar o
conceito de gênero, em que se insere o Mulherio, entre outros jornais feministas (tais como ChanacomChana e
Fêmea) que não poderão ser abordados neste artigo, devido às limitações de recorte, objetivos e extensão.
7
se sentia à época de um veículo que integrasse ciência, discussões sobre a mulher e
movimento feminista. Tanto que, algumas de suas publicações, segundo Constância de Lima
Duarte, se tornaram até mesmo “verdadeiros documentos da trajetória da mulher na
construção de uma consciência feminista” (DUARTE, 2003 apud. ZILBERL, 2003, p. 81).
MULHERIO E FEMINISMO ACADÊMICO
Mulherio foi um jornal realizado por “uma grande porção de mulheres” pesquisadoras,
jornalistas e militantes feministas9, financiado pela Fundação Carlos Chagas e pela Fundação
Ford, com a editoração de Adélia Borges e Fúlvia Rosermberg. O grupo tinha o objetivo de
“recuperar a dignidade, a beleza e a força que significam as mulheres reunidas para expor e
debater seus problemas” (Mulherio, São Paulo, 1981, n. 0, p. 1) – expressado mesmo na
preocupação em positivar o termo “mulherio”, pejorativamente usado como sinônimo de
histeria ou “gostosura”.
Sem se prender a uma única vertente do feminismo, o Mulherio articula diversas
formas de fazer política: falando sobre corpo feminino, trabalho doméstico, maternidade,
lutando para estabelecer um espaço democrático, articulando-se com outros movimentos
(movimento de classe e movimento negro), denunciando a violência contra a mulher, e
participando das reivindicações das Diretas Já, trazendo mulheres candidatas em entrevistas
ao jornal. De acordo com Ilze Zirbel,
A proposta era a da diversidade e do debate de idéias [sic], com um amplo
leque de assuntos: resultados de pesquisa, resenhas, notícias de encontros
feministas, discussão de políticas públicas e condições de trabalho,
informações sobre saúde, sexualidade, cuidados com o corpo, além de
denúncias de violência e de discriminação contra a mulher negra. Dava-se
ainda destaque à vida das operárias e da periferia das grandes cidades, e à
produção cultural de escritoras e artistas de todo o país (ZIRBEL, 2007, p.
80).
O jornal, portanto, apresentava matérias assinadas individualmente por suas autoras, o
que significa que o editorial não assumia uma única posição sobre os assuntos tratados,
9 O Conselho Editorial era formado por Carmen Barroso, Carmen da Silva, Cristina Bruschini, Elizabeth Souza
Lobo, Eva AltermanBlay, Fúlvia Rosemberg, HeleiethSaffioti, Lélia Gonzales, Maria Carneira da Cunha, Maria
Moraes, Maria Malta Campos, Maria Rita Kehl, Maria Valéria Junho Pena, Marília de Andrade, Marisa Correa e
Ruth Cardoso.
8
propiciando uma construção caleidoscópica de opiniões, temas e abordagens, bem como de
mulheres.
A criação do jornal editado por mulheres acadêmicas e militantes reflete a demanda
por um meio de comunicação que abordasse o assunto “mulher” levando em conta como a
questão havia emergido no meio acadêmico, após a grande efervescência política causada
pelos movimentos de mulheres e feministas na década de 1970 – momento de maior
articulação política desde o golpe militar em 1964. De acordo com Maria Amélia de Almeida
Teles (2017), o jornal Mulherio “foi uma iniciativa extremamente oportuna, já que era a única
publicação nacional que podia responder algumas indagações sobre as atualidades do
feminismo na época”. Como ressalta Adélia Borges na primeira edição do jornal:
Falta justamente um veículo que se dedique de forma sistemática,
aprofundada e abrangente a todos os problemas que afetam a mulher
brasileira, e que, pela reunião periódica de informações obtidas de fontes
fidedignas, possa servir de orientação e manancial informativo para os que
focalizam tais assuntos nos meios de comunicação (Mulherio, São Paulo,
1981, n. 0, p. 1).
A idealização do jornal demonstrava a necessidade de sanar a deficiência dos meios de
comunicação da época ao tratar o assunto mulher e divulgar conteúdos como filmes, livros e
pesquisas sobre a mulher. Em todas as edições eram reservadas até duas páginas para dicas de
leituras trazendo livros como O Espelho de Vênus, do Grupo Ceres e Além dos fragmentos –
O feminismo e a construção do socialismo, de Hilary Wainwright, ambos comercializados
pela editora Brasiliense. Assim como as leituras, as indicações de filmes são acompanhadas
de uma breve resenha na seção sobre cinema. Essas características ressaltam o caráter
acadêmico do editorial e do público leitor.
Para Heloisa de Faria Cruz e Maria do Rosário da Cunha Peixoto (2007), do ponto de
vista da história social, a imprensa é como uma força social ativa, articulada como fonte e
objeto de estudo de lutas sociais. Dessa forma, denunciando a superficialidade do tratamento
das questões das mulheres pela mídia, que se limitavam ao espaço da cozinha e ao âmbito da
estética, e trazendo à luz da publicidade dos jornais impressos questões como a violência
doméstica, o aborto e o assédio, o Mulherio mostrava um esforço evidentemente político de
tornar públicas as agruras da vivência cotidiana das mulheres, consideradas assuntos pessoais
e domésticos que não deveriam ser discutidos abertamente. Portanto, neste sentido, escrever é
9
um ato político e o discurso é uma ação, pois além de denunciar as práticas de discriminação
expõe mecanismos simbólicos que fundam as desigualdades (SWAIN, 2007).
(Fonte: Mulherio, São Paulo, julho-agosto 1981, n. 2, capa.)
Sendo assim, o jornal evidenciava a assimetria nas relações de poder entre homens e
mulheres estabelecida na sociedade e assegurada até mesmo pela Lei, que “feita por eles,
consagra seus privilégios de detentores do poder; pelas malhas da justiça não passa um feto
abortado, mas passam os Doca Street, os Michel Frank, os grandes contraventores, os
estelionatários elegantes”, como critica Carmen da Silva, a quem muitas leitoras
“encomendam sermões” (Mulherio, São Paulo, 1981, n. 0, p. 4). A jornalista, colunista da
Revista Cláudia na época, escreve com o caráter de um agente social e se diz “o porta-voz de
quem não se atreve a falar”.
10
As mulheres, como sujeitos políticos, são essenciais para promover uma verdadeira
democracia, o que vincula sua luta àquela contra a ditadura e a repressão, pois “não é possível
falar em democracia para a sociedade como um todo quando não existe a democracia em casa,
onde se formam as personalidades” (Mulherio, São Paulo, 1981, n. 2, p. 7) 10. Exemplo disso
é que
A preocupação com a política e a saúde assumiu um papel importante no
movimento feminista hoje, talvez constituindo seu setor mais dinâmico,
especialmente nos países industrializados [...]. Usando dos recursos de
conhecimento que a pesquisa acadêmica permite e questionando
radicalmente a política do status quo, as mulheres estão criando na prática
uma nova forma de fazer política. Na discussão sobre controle da natalidade,
chegou-se rapidamente a um consenso que a luta da mulher é anti-
imperialista, anti-racista e anti-sociedade de classe (Mulherio, São Paulo,
1981, n. 3, p. 8).
Com isso a politização do corpo e do privado ganha espaço, tendo em vista que, como
escreve Marilena Chauí “em torno da política do corpo”, ele se constitui como “um dos
objetos privilegiados para o exercício da dominação” (Mulherio, São Paulo, 1982, n. 6, p. 8),
pois o corpo não é “apenas um texto da cultura, como também um lugar prático e direto de
exercer várias formas de controle social” (JOFFILY, 2010, p. 225).
A preocupação do jornal com a participação política das mulheres é evidente em cada
número, no entanto, em seu terceiro número, o jornal se dedicou especialmente a este assunto,
definindo-o como o tema do caderno da edição. Estampada na capa, a indagação: política é
assunto de mulher?
O Mulherio entrevista diversas mulheres para responder à questão: catadora de lixo,
donas-de-casa, operária, estudante e deputada. Cada uma a seu modo, pensando motivos
porque as mulheres podem e mesmo devem falar sobre política. A opinião de Irma Passoni,
deputada entrevistada, sintetiza a ponto de vista de algumas dessas mulheres sobre sua
necessidade de estar por dentro da política, no que diz respeito à política presente no âmbito
doméstico:
Na minha opinião, não se deveria fazer esta pergunta, que já pressupõe uma
certa inferioridade da mulher. Isso nós já superamos desde 1940 e poucos,
10 Entrevistada pelo Mulherio, a advogada Silvia Pimentel falava sobre seu projeto para a modificação ou mesmo
eliminação de alguns artigos do Código Civil, um dos mais discriminatórios em relação a mulher, colocando-a
em posição subalterna ao definir que o marido é “o chefe da sociedade conjugal”
11
quando adquirimos o direito ao voto, o direito de interferir na política, a
responsabilidade de fazer política. A mulher, quando cuida da casa, lida com
o bem público e sofre a política (Mulherio, 1981, n. 3, p. 16).
Diva Mota, assim como a deputada acredita que “Nós podemos falar sobre isso, sim.
Temos o dever de trabalhar para ajudar em casa, cuidamos dos filhos, por que não podemos
falar sobre política?”.
(Fonte: Mulherio, São Paulo, setembro-outubro, 1981, n. 3, capa)
Apesar de uma maior abertura política havia ainda uma grande luta pela democracia –
o que não foi ignorado pelo Mulherio. O jornal em si representa uma ação de enfrentamento à
ditadura para ampliar a democracia e, para tanto, o discurso se constitui em prática social. Por
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isso, tomamos a escrita como prática social, e o jornal já não é apenas um veículo de
informação e comunicação, mas uma potência de mobilização.
Militância, academia e jornalismo formavam uma grande rede informal de circulação
de ideias e mobilização social durante a década de 1980. Sendo assim, é importante tomar as
pesquisadoras e jornalistas também como militantes, ou seja, considerá-las agentes sociais. De
acordo com Albertina Costa,
Não houve uma oposição radical por parte do movimento à academia, na
medida em que aí predominavam modos de pensar caros à esquerda; o
prestigio do marxismo, embora não inconteste, ainda era enorme. Atuando
dentro de um mesmo campo intelectual, estabelecia-se tacitamente uma
aliança tática, universidade e movimento de mulheres eram bastiões na luta
contra o autoritarismo (COSTA, 1988, p. 68).
As mulheres participantes do movimento de mulheres tiveram contato com feministas
intelectuais, e passaram a se sensibilizar por suas questões específicas como aborto,
sexualidade e lesbianismo.
De acordo com Teles, os dirigentes políticos e religiosos “cercavam as feministas para
impedi-las de falar sobre sexualidade, violência sexual e doméstica, aborto e, enfim, tudo o
que envolve mais de perto a condição feminina” (2017, p. 87), alegando que essas questões
dividiam o movimento operário, enfraquecendo a luta de classes.
O jornal procurou falar sobre as questões dos rumos do movimento feminista,
buscando apresentar uma grande diversidade de opiniões e vertentes do movimento. Os
movimentos operários e de esquerda no geral são sempre lembrados devido a questões como a
autonomia do movimento feminista. Tendo em vista que muitas feministas que integraram o
movimento feminista e/ou de mulheres participavam de grupos de esquerda e militavam
juntamente a partidos de esquerdas durante todo o período de resistência à ditadura.
As feministas idealizadoras do Mulherio demonstram grande preocupação em
estabelecer, no periódico, um espaço seguro e democrático, voltado para as mulheres,
preocupando-se com a disponibilização de informações acerca da vivência e das questões
específicas das diversas mulheres brasileiras, livre de qualquer preconceito relacionado ao
gênero, raça ou classe social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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O jornal Mulherio é uma fonte pertinente para o estudo do movimento feminista dos
anos 80, pois sua leitura permite uma visão panorâmica do movimento em suas discussões e
reivindicações, visto que o jornal aborda opiniões divergentes dentro do próprio feminismo já
que é composto por diversas mulheres.
Além disso, é possível pensar também na grande produção de materiais sobre a
situação da mulher, principalmente brasileira, mas não só. O jornal traz à tona a participação
das mulheres na política, que durante muito tempo foi ocultada pela história. Recuperar essa
memória, que durante muito tempo foi negada, é imprescindível.
A leitura do jornal permite o reconhecimento de assuntos e temas que ainda hoje são
caros ao movimento e muito contribuem para a discussão feminista da atualidade, seja sobre a
política, a autonomia do movimento, a relação com outros movimentos sociais, as diferentes
formas de pensar os feminismos e a situação das mulheres brasileiras.
Lido como objeto, gerador de mobilização, que constrói um discurso, revela
possibilidades ainda maiores de se pensar e analisar o Mulherio, assim como o movimento
feminista, do qual não é somente um porta-voz, mas também um agente que se constitui em
uma prática de militância racionalmente dirigida por sua equipe editorial.
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