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O conceito de enunciao em Benveniste e em Ducrot 1
Leci Borges BarbisanPontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - Brasil
Resumo
Analisa-se a noo de enunciao os trabalhos de mile Benveniste
e Oswald Ducrot e o modo como a construo desses conceitos conduz
focalizao de objetos de estudo distintos nas duas teorias.
Palavras-chave: Benveniste - Ducrot - enunciao
Abstract
In this work it is analyzed the notion of enunciation in mile Benveniste
and Oswald Ducrot works. Besides that, in this work it is analyzed the way that
the construction of these two concepts leads to focusing on two different objects
of study in these theories.
Key words: Benveniste - Ducrot - enunciation
Introduo
Quem se dispuser a fazer uma reviso dos estudos sobre a linguagem
verbal ao longo de sua histria certamente perceber com muita facilidade que a
preocupao dos estudiosos com a descrio e a compreenso do funcionamento
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dos elementos que pertencem ao cdigo da lngua sempre teve quase total prioridade
sobre os fenmenos que se produzem quando a lngua empregada para a
comunicao entre seres humanos. Relativamente pouco esforo tem sido feito no
sentido de se entender, por exemplo, as mltiplas modicaes que se introduzem
no sentido quando elementos do cdigo esto subordinados utilizao que os
sujeitos fazem da linguagem, o que, no entanto, no pode ser desconsiderado, visto
que trazem como conseqncia especicaes particulares ao geral do sistema.
Os aspectos lingsticos da enunciao, verdade, esto presentes j nas
gramticas gregas e latinas, na semitica de Peirce, na noo lingstica por vezes
ambgua de dixis e, mais recentemente, nos trabalhos de Jespersen, Jakobson, sem
esquecer todavia Bakhtin, Bally que em seus escritos se dedicaram especicamente
ao estudo da enunciao. Mas foi realmente mile Benveniste quem, com seus
principais textos reunidos nos dois volumes do Problmes de Linguistique Gnrale deu
o impulso necessrio para que se desenvolvessem na Lingstica outras reexes
igualmente notveis sobre o uso da linguagem verbal.
Tendo em vista a rea assim delineada, temos a inteno de reunir nestas
pginas alguns elementos que indicam que, levando em conta a preocupao
dominante na Lingstica com o cdigo da lngua e fundamentando-se em
conceitos estruturalistas semelhantes, dois modos distintos de entender a
enunciao surgiram na histria do estudo da linguagem, inicialmente a de mile
Benveniste e, mais recentemente, e ainda em pleno desenvolvimento, a de Oswald
Ducrot, ambos na Frana.
No se espere, porm, encontrar, nas pginas aqui apresentadas, um
trabalho original que traga alguma contribuio compreenso do funcionamento
da linguagem. Ao contrrio disso, o que vai ser dito no mais do que uma
leitura, apoiada em nomes consagrados, de alguns textos que nos parecem
elucidativos do conceito de enunciao nesses dois lingistas. O objetivo
o de trazer apenas algumas indicaes e talvez um possvel esclarecimento
sobre o tema, por meio da distino que, entre eles, se procura estabelecer.
Justica-se a aproximao e a distino entre as teorias criadas por mile
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Benveniste e Oswald Ducrot, quanto ao conceito de enunciao, pelo fato de
que ambos partem de conceitos saussurianos que, modicados, ampliados,
ressignicados, resultam na armao de abordagens distintas do o uso da
linguagem, focalizando, conseqentemente diferentes objetos de anlise, chegando
assim a conceituaes prprias da enunciao.
1 A proposta de Benveniste
sabido que Benveniste alicera sua teoria em conceitos estruturalistas.
Ducrot (1989a), no captulo VI, corrobora essa armao facilmente vericvel
em diferentes textos do Problemas de lingstica geral quando diz que Benveniste
aceita as exigncias metodolgicas de Saussure e descreve a lngua como o fundamento
das relaes intersubjetivas (p. 149). Retomando-se, do modo mais el possvel,
quatro textos de Benveniste, possvel encontrar tanto o ponto de partida de
sua proposta semntica, a lingstica saussuriana que tem na lngua seu objeto de
estudo, oposta fala, quanto seu ponto de chegada, sua concepo de enunciao,
que v a linguagem em uso associada lngua. Escolhemos como textos que podem
nos conduzir ao que nos propomos: Os nveis da anlise lingstica (1962), A forma e
o sentido na linguagem (1966), O aparelho formal da enunciao (1970) e Da subjetividade
na linguagem (1958).
Vemos em Os nveis da anlise lingstica de Benveniste o que propomos
que se considere como um momento de uma caminhada que vai resultar em seu
conceito de enunciao. Nesse artigo, o autor parte da anlise da lngua como forma,
aludindo ao mtodo estruturalista de segmentao e substituio, que conduz s
relaes sintagmticas e paradigmticas entre os elementos do sistema, mtodo
adotado pela Lingstica de sua poca. Nesses procedimentos de anlise, a noo
de nvel torna-se essencial para a descrio da natureza articulada da linguagem,
e nessa noo que Benveniste vai fundamentar a distino que estabelece entre
forma e sentido, indo do nvel inferior, constitudo pelos elementos merismticos,
ao nvel superior, o da frase. Sob essa perspectiva, as entidades lingsticas
admitem dois tipos de relao: distribucionais, entre elementos de mesmo nvel
e integrantes entre elementos de nvel mais alto. Ficam assim estabelecidos dois
limites: o do nvel inferior, dos merismas, e o do nvel superior: o da frase. A frase
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se dene por seus constituintes e no pode integrar nenhuma unidade mais alta
e o merisma s se dene como integrante, no podendo ser segmentado em
constituintes. H um nvel intermedirio, o do signo, que pode conter constituintes
e funciona como integrante de um nvel mais alto. A distino entre constituinte e
integrante fundamental porque, a partir dela se compreende a relao entre forma
e sentido. A dissociao constitui a forma, a integrao cria unidades signicantes.
Ento, para Benveniste, a forma a capacidade que tem o sistema de se dissociar
em constituintes de nvel inferior; o sentido sua capacidade de integrar unidades
de nvel superior.
A frase se apresenta como um domnio novo; pode ser segmentada, mas
no pode integrar outro nvel. No uma classe de unidades distintivas. Sua
propriedade fundamental a de predicar, pois no h frase fora da predicao;
a linguagem em uso. Do ponto de vista semntico, os signos da lngua tm uma
signicao no sistema, enquanto a frase tem sentido e informada de signicao.
Entende-se, levando-se em conta a prpria terminologia adotada, que o valor
semntico do signo, denido pela lngua, no o mesmo que o da frase, construdo
pelo uso da linguagem.
Retomando-se a proposta resumida anteriormente, com vistas a
justicar o tema escolhido para estas linhas, Benveniste, nesse momento de suas
reexes sobre a linguagem, parte do estudo da lngua tal como era visto em
sua poca, sem rejeitar a importncia que a lngua tem para a compreenso do
uso da linguagem. Por outro lado, reelabora esse estudo, introduzindo em sua
abordagem o sentido, muitas vezes posto de lado nos estudos lingsticos sobre
a forma. Infere-se assim que forma e sentido no se excluem, embora sejam duas
lingsticas distintas, em que uma se ocupa dos signos formais, estudados por meio
de uma metodologia rigorosa, e a outra se interessa pela utilizao da lngua em
seu uso. Entretanto, seu objeto de estudo o discurso, a manifestao da lngua no
uso da linguagem. Com a frase, deixa-se o domnio da lngua como sistema e entra-se no
universo da lngua como instrumento de comunicao, cuja expresso o discurso (1966: 130).
Em outra publicao, de 1966b, sobre a forma e o sentido na linguagem,
Benveniste volta ao tema, avanando em suas reexes, mas sem alterar
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a importncia que concede lngua, aos elementos lingsticos que constituem
o sistema. Desta vez, menos preocupado em mostrar o papel j demonstrado
que a lngua desempenha no uso da linguagem, o lingista desenvolve de modo
mais aprofundado o aspecto semntico de sua teoria. Para tanto, parte da idia
de que a oposio forma/sentido coloca o lingista no mago da linguagem que
o problema da signicao. Antes de mais nada, arma ele, a linguagem signica (p.
217), e insiste dizendo que a signicao o prprio ser da linguagem, no algo
que lhe seja acrescentado. Com isso, ele quer ultrapassar a doutrina saussuriana de
signo, constitudo de signicante (forma) e signicado (visto como a aceitabilidade.do
signo na comunidade de fala). Assim, signicar ter sentido construdo por uma
rede de relaes com outros signos que o denem no sistema. o domnio do
semitico, do sistema lingstico. Logo, e isso armado com muita clareza, no h
relao lngua/mundo, o signo tem valor genrico, as oposies so de tipo binrio.
Os signos esto sempre em relaes paradigmticas.
Para Benveniste, signo e frase so distintos e exigem descries distintas.
Diferentemente de lngua e fala de Saussure, ele v na lngua, forma e sentido.
A forma a lngua como semitica, com funo de signicar, a frase, como
semntica, com funo de comunicar pela linguagem em ao, na mediao
entre homem e homem e homem e mundo, em seu papel de transmissora de
informao, de comunicadora de experincia, organizando a vida dos homens.
o empreendido (intent, p. 225) pelo locutor, a expresso de seu pensamento.
No so desprezadas, no uso da linguagem, as noes do semitico, mas essas
noes so outras, porque adquirem relaes novas. Assim, enquanto o
semitico uma propriedade da lngua, o semntico o sentido construdo pelo
locutor que emprega a lngua, a idia que ele expressa servindo-se de palavras
integrantes de sintagmas particulares, em suas relaes sintagmticas. Ento, o
valor semntico resulta da articulao entre relaes paradigmticas e sintagmticas.
Mais uma vez, embora forma e sentido constituam duas lingsticas
distintas, o semntico, o uso da lngua, no prescinde do semitico, da forma. Ambos
se articulam e convergem para a construo do sentido no uso da linguagem.
Semitica e semntica tm mtodos distintos de anlise, mas no se opem, ao
contrrio se complementam. Assim, Benveniste parte de conceitos saussurianos:
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signo, relaes paradigmticas e sintagmticas, mas os ultrapassa, focalizando o aspecto
semntico da linguagem, redenindo lngua e fala e articulando-as.
Em 1970, em seu conhecido texto O aparelho formal da enunciao, retomando
de certo modo noes como forma e sentido, mas avanando em suas reexes,
Benveniste trata do emprego das formas e do emprego da lngua. V no emprego das formas
uma parte necessria de toda descrio lingstica que, metodologicamente deu
lugar a muitos modelos. O emprego da lngua entendido como um mecanismo total
e constante que, de um modo ou de outro, afeta toda a lngua (p. 80). Relacionada com
o emprego da lngua est a denio de enunciao como sendo a necessidade de
referir pelo discurso, o que leva a que se veja a referncia como parte constitutiva
da enunciao. A enunciao vista como um processo, um ato pelo qual o locutor
mobiliza a lngua por sua prpria conta. o ato de apropriao da lngua que
introduz aquele que fala na sua fala. O produto desse ato o enunciado, cujas
caractersticas lingsticas so determinadas pelas relaes que se estabelecem
entre o locutor e a lngua. Assim, a enunciao o fato do locutor, que se apropria
da lngua, e das caractersticas lingsticas dessa relao. A enunciao converte a
lngua em discurso pelo emprego que o locutor faz dela. Desse modo, a lngua se
semantiza.
Ao se apropriar individualmente do aparelho formal da lngua, o locutor
enuncia sua posio com marcas lingsticas especcas. Como tal, ele implanta o
outro, o alocutrio, diante de si. Cada produo de discurso constitui um centro de
referncia interna. Nele emergem marcas de pessoa (relao eu-tu), de ostenso, de
espao e de tempo, em que eu o centro da enunciao. somente pela enunciao
que certos signos passam a existir. tambm pelo fato de que o locutor ou enunciador,
ao se enunciar, inuencia o comportamento do alocutrio que tomam sentido
as funes sintticas: a assero, a interrogao, a intimao e ainda algumas
modalidades formais (modos verbais, desejo, etc.). No enunciado surge tambm
o ele, a no-pessoa, o qualquer um ou qualquer coisa de que se fala no discurso.
Com esse texto, pensa-se ter apresentado uma rpida reviso dos aspectos
que caracterizam o conceito de enunciao, fundamental na proposta terica
de mile Benveniste. Para deni-lo, conceitos saussurianos so retomados,
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mas modicados e ultrapassados. Como para o mestre de Genebra, tambm
para Benveniste continuam a existir dois nveis na linguagem, mas entendidos
de modos diferentes e no mais dissociados, a noo de relao entre elementos
se mantm, constituindo paradigmas e sintagmas, o signo repensado, o sentido
passa a ocupar o lugar principal e o sujeito, excludo da proposta saussuriana,
torna-se o centro de referncia para a construo do sentido no discurso. Com
essas modicaes, a lingstica da fala que, no Curso de Lingstica geral ocupa o
segundo plano e no considerado objeto de estudo para o lingista, passa a ser,
a partir da reformulao dos prprios conceitos de Saussure, a Lingstica.
Outras teorias, entretanto, tambm se ocuparam do uso da linguagem e
deniram enunciao. propsito deste texto trazer apenas uma: a de Oswald
Ducrot, criador da Teoria da Argumentao na Lngua. Justica-se a escolha por se
tratar de uma teoria que, como a de Benveniste, parte de conceitos estruturalistas
saussurianos, tambm os modica, amplia, ultrapassa, mas o faz de outro modo.
2 A proposta de Ducrot
A Teoria da Argumentao na Lngua uma teoria estruturalista em que
as noes de signo, de relao e de lngua e fala tm papel relevante. O signo, na
concepo saussuriana, elemento da lngua e s se dene pela sua relao com
outros signos. Na teoria de Ducrot, o signo a frase, isto , estrutura abstrata,
criada pelo lingista, e seu signicado constitudo pelas possibilidades de relao
semntica que ela apresenta com outras frases. A relao entre frases se produz
no enunciado, entendido como um segmento de discurso. Enunciado e discurso tm,
pois, um lugar e uma data, um produtor e um ou vrios ouvintes. fato emprico,
observvel e no se repete. Como se pode perceber, as noes de signo, relao,
lngua e frase encontram-se subjacentes a esses conceitos, mas modicados. Do
ponto de vista semntico, a signicao o valor semntico da frase e sentido, o
do enunciado. A signicao da frase de natureza diferente do sentido do enunciado.
A signicao no preexiste ao uso, ao contrrio, aberta: contm instrues que
indicam que tipos de indcios preciso procurar no contexto lingstico para
se chegar ao sentido do enunciado. Atribui-se a cada frase de uma lngua uma
signicao, ou seja, uma instruo que explica o sentido de seus enunciados no discurso.
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Ducrot (1980) denomina enunciao o acontecimento, o fato que constitui
o aparecimento de um enunciado em determinado momento do tempo e do espao.
um conceito que tem funo puramente semntica, sem nenhuma implicao
siolgica ou psicolgica. O sentido do enunciado , para mim, uma descrio, uma
representao que ele traz de sua enunciao, uma imagem do acontecimento histrico constitudo
pelo aparecimento do enunciado (1980: 34). Dizer que um enunciado descreve sua
enunciao dizer que ele se apresenta como produzido por um locutor, designado
por diferentes marcas de primeira pessoa, para um alocutrio, designado pela
segunda pessoa. A enunciao se caracteriza como tendo certos poderes. isso
que leva a ver uma aluso enunciao em enunciados imperativos, interrogativos,
assertivos, etc., que induzem o alocutrio a certas obrigaes, e que tm origem no
aparecimento do enunciado.
A concepo enunciativa tem papel importante na anlise do discurso. A
idia fundamental a de que sempre que se fala se fala de sua fala, ou seja o dito denuncia
o dizer (1980: 40). Num momento em que Ducrot ainda partia da pragmtica para
construir sua teoria (o que foi abandonado), era colocada na enunciao a idia de que
preciso distinguir o autor das palavras, o locutor, e os agentes dos atos ilocutrios, os
enunciadores. Menciona-se esse fato aqui para que seja observado como sua leitura da
pragmtica j estava sendo conduzida na direo de outra proposta. Se exprimir-se
ser responsvel por um ato de fala, explica ele, (1980: 44), ento, ao interpretar-se
um enunciado, ouve-se uma pluralidade de vozes, outras que no a do locutor. Encontra-
se a o princpio que desenvolvido, sem a pragmtica, o conceito de polifonia.
A criao da Teoria Polifnica da Enunciao, no mbito da Teoria da
Argumentao na Lngua, vincula-se a dois fatos. Um a crtica que Ducrot faz
concepo lingstica da unicidade do sujeito falante, segundo a qual haveria
apenas um falante no enunciado. O outro baseia-se na armao de que o sentido
de um enunciado a descrio de sua enunciao e nessa descrio est inscrita a
pluralidade de vozes que o locutor apresenta. Encontram-se no enunciado vrias
funes diferentes: a do sujeito emprico, a do locutor e a do enunciador. O sujeito
emprico o autor efetivo do que produzido. Essa funo no interessa ao
lingista que estuda o sentido, cando o sujeito emprico afeto aos sociolingistas ou
aos psicolingistas. O locutor o responsvel pelo enunciado, no qual ele se marca
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com a primeira pessoa. O enunciador a origem dos pontos de vista que o locutor
apresenta. Em seu livro publicado em Cali (Colmbia) em 1988, Ducrot lembra
que os enunciadores no so pessoas, mas pontos de perspectiva abstratos. O primeiro
elemento do sentido , assim, a apresentao dos pontos de vista dos enunciadores. O
segundo a indicao da posio que o locutor assume em sua relao com eles.
Trs atitudes so mencionadas em 1988: 66: o locutor ou se identica com um dos
enunciadores e arma esse ponto de vista, ou d sua aprovao a outro, sem contudo
admitir seu ponto de vista, ou se ope a outro. A noo de polifonia visa a substituir
a semntica horizontal (em que s o resultado da combinao de elementos pode
ser assumido) por uma semntica vertical (em que o sentido a superposio de
diferentes vozes que se confrontam). Assim, sob a frase mais elementar pode haver uma
espcie de dilogo imaginrio (Ducrot, 1997: 18).
Ducrot arma que os enunciadores so argumentadores. Mas o que
signica ento argumentar e por que a expresso argumentao na lngua? Para se
compreender o que argumentar na Teoria da Argumentao na Lngua, preciso
que se diga que ela se ope s concepes tradicionais de sentido, como a de
Karl Bhler, que entende que no enunciado h trs tipos de indicaes: as
objetivas, que representam a realidade, as subjetivas, que mostram a atitude do
locutor frente realidade e as intersubjetivas, que se referem s relaes entre o
locutor e aquele a quem ele se dirige. Para Ducrot, no h uma parte objetiva no
sentido da linguagem, porque ela no descreve diretamente a realidade. Segundo
ele, se a descreve, o faz por meio de seus aspectos subjetivos e intersubjetivos. O
modo como a realidade descrita consiste em fazer dela o tema de debate entre
indivduos. Resumindo essa idia direi que para mim a descrio (ou seja, o aspecto objetivo) se
faz atravs da expresso de uma atitude e atravs tambm de um chamado que o locutor faz ao
interlocutor (1988: 51). Assim, pela relao entre locutor e interlocutor se produzem
argumentaes, ou seja, o locutor interage com seu interlocutor apresentando a
este sua posio em relao quilo de que fala. Os aspectos subjetivo (a posio
do locutor) e intersubjetivo (a relao locutor/interlocutor) so unicados e
reduzidos ao valor argumentativo dos enunciados. Assim, falar construir e tratar
de impor aos outros uma espcie de apreenso argumentativa da realidade (1988: 14). O
valor argumentativo de uma palavra a orientao que essa palavra d ao discurso.
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Resta explicar por que a teoria arma que a argumentao est na lngua.
preciso, para essa explicao, que se lembre que, em sua concepo de argumentao,
Ducrot ope-se concepo tradicional que aceita nessa rea. Segundo essa
concepo, conforme o artigo escrito em 1987, publicado no Brasil em 1989,
um sujeito falante produz um enunciado A, que indica um fato F, que pode ser
verdadeiro ou falso, como argumento para justicar um enunciado C, verdadeiro
ou falso dependendo, do fato F, resultando em enunciados do tipo: A logo C,
ou C j que A. Nesse modo de entender a argumentao, a lngua no tem papel
essencial, mas o movimento argumentativo independe da lngua, embora esta
fornea os conectivos que marcam a relao entre A e C. Ducrot recusa esse
esquema porque h frases que indicam o mesmo fato, no entanto conduzem a
concluses contrrias. Constatou, ento, em suas anlises que a argumentao no
est nos fatos, mas no prprio semantismo das palavras da lngua. Essa a primeira
forma que assumiu a Teoria da Argumentao na Lngua que postula que a fora
argumentativa de um enunciado deve ser denida como o conjunto de enunciados
que podem ser encadeados a ele em um discurso com o conector portanto.
Mas essa forma inicial encontrou problemas e foi substituda pela
segunda, que arma que as possibilidades de argumentao no dependem
somente dos enunciados que servem como argumento e concluso, mas dependem
tambm dos princpios dos quais se serve para coloc-los em relao Esses
princpios foram designados com o nome de topoi. A argumentao continua
sendo o conjunto de concluses possveis, mas o princpio argumentativo garante
a passagem do argumento para a concluso. Percebe-se, ento, que a preocupao
de Ducrot volta-se agora para a explicao de como se produz a argumentao
no enunciado. Mantm-se, porm, a concepo de enunciado como produto
das relaes de subjetividade do locutor que, ao interagir com seu interlocutor,
pela intersubjetividade inerente linguagem, coloca sua posio sobre a
realidade que toma como tema de sua enunciao, produzindo argumentao.
No terceiro momento da teoria, que continua se desenvolvendo em busca
principalmente de uma metodologia adequada, o conceito de argumentao revisto.
Trata-se agora da Teoria dos Blocos Semnticos segundo a qual a argumentao no
se alicera na passagem do argumento, que funcionava como justicativa para
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a concluso, mas em representaes unitrias entre um e outro que so o prprio
contedo dos encadeamentos argumentativos. O argumento inuencia o sentido da
concluso ou o contrrio, constituindo uma unidade de sentido. o que Carel
(1997) denomina bloco semntico. Argumentar passa a ser, desse modo, convocar
blocos lexicais por meio de encadeamentos que exprimem uma qualidade, positiva ou
negativa que, junto com o bloco, compem uma regra. Esses encadeamentos, vistos
nesse momento da teoria como blocos semnticos, apresentam-se sob dois aspectos:
um normativo em portanto e outro transgressivo em no entanto. Esses dois aspectos
pertencem ao mesmo bloco, logo ambos so primitivos, um no deriva do outro;
no encadeamento transgressivo, o locutor concede ao aspecto normativo do bloco, mas
depois abandona esse movimento argumentativo e arma uma concluso negativa.
Tornando-se uma semntica lexical, a Teoria dos Blocos Semnticos formula conceitos
que do conta no s das argumentaes interna e externa das entidades lexicais em
anlise como tambm de suas relaes sintagmticas e paradigmticas, da predicao do
enunciado, etc.
A rpida meno aqui feita s diferentes etapas pelas quais passou at
o momento atual a Teoria da Argumentao na Lngua parece mostrar que se est
diante de reexes que mantm a hiptese que a criou: a de que a argumentao
est na lngua, no nos fatos e, como tal, explica a argumentao a partir da relao
entre locutor e interlocutor, por meio da qual o locutor age de certo modo verbalmente
sobre seu interlocutor, apresentando um ponto de vista argumentativo sobre um
aspecto da realidade, que se torna tema de seu discurso, e ao qual, com base
em sua argumentao, atribui um sentido argumentativo. O foco de anlise da
teoria de Ducrot , pois, a argumentao, ou seja, as marcas que o locutor, produtor
do enunciado, coloca em seu discurso. Essas marcas se apresentam tanto
explicitamente, do ponto de vista da relao entre locutor e interlocutor, portanto,
tanto entre sujeitos da enunciao quanto entre o locutor e outros sujeitos, os
enunciadores, que, em diferentes nveis de implicitao dialogam com o locutor,
postulando a no unicidade de sujeitos do enunciado. Ento, as relaes no
discurso, como prope essa teoria, se estabelecem no apenas entre palavras ou
frases, mas igualmente entre discursos. A enunciao denida por Ducrot como
o surgimento do enunciado, tornando-se este o objeto de suas anlises, sem
contudo se desvincular, em nenhum momento de sua perspectiva enunciativa.
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Para nalizar
preciso que se reita sobre a teoria engendrada por Ferdinand de
Saussure que, colocando, no incio do sculo XX, os fundamentos da cincia
da Lingstica, o fez de modo to inesperadamente fecundo que ainda hoje no
cessou de gerar propostas tericas to diversas relativas Lingstica da Fala, por
ele excluda do objeto de estudo da Lingstica. E mais ainda, que o sujeito, o
outro excludo, tenha paradoxalmente assumido a importncia fundamental que
hoje tem nessas teorias. Foi aqui apresentado um dos conceitos bsicos de apenas
duas dessas teorias. Embora no seja necessrio muito esforo para se perceber
que elas so distintas, no se pode negar que elas tm algo em comum.
A Teoria Enunciativa de mile Benveniste, partindo de conceitos
saussurianos, no rejeita a distino entre lngua e discurso, ao contrrio, as
associa, pois, ao situar o sujeito como centro de referncia, busca explicar
como o aparelho formal da enunciao marca a subjetividade na estrutura
da lngua. A noo de enunciao , para Benveniste, centrada no sujeito,
que, ao se apropriar do aparelho formal da lngua, enuncia sua posio de
sujeito, marcando-se como eu, instaurando o tu e o ele em seu discurso.
A Teoria de Benveniste focaliza, pois, o sujeito, suas marcas no discurso.
J a Teoria da Argumentao na Lngua prope no um sujeito da linguagem,
mas um eu locutor produtor de discurso para um tu interlocutor. Nessa relao, o
locutor marca sua posio, em seu discurso, argumentando em relao ao que est
sendo dito. Da construo da argumentao participam no s os elementos verbais
explcitos dirigidos ao interlocutor, mas igualmente outros discursos apresentados
implicitamente em relao aos quais o locutor toma diferentes atitudes. Essa teoria
focaliza, ento, a construo da argumentao como modo de enunciao do locutor.
Esse modo de enunciao est presente j no sistema da lngua, o que se mostra no
lxico, nos performativos, na delocutividade. A argumentao transforma as coisas
em justicativas de nossas necessidades, desejos ou intenes. Falar, diz Ducrot,
tratar de impor aos outros uma espcie de apreenso argumentativa da realidade (1988, p. 14).
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So, ento, teorias distintas, mas que se assemelham sob alguns aspectos.
So propostas que tm cada uma a sua especicidade, mas que se inscrevem no
contexto maior do uso da linguagem, contemplando os sujeitos e as relaes que
entre eles se estabelece. Entretanto, no h dvida de que ambas tm em comum o
fato de que partem de conceitos saussurianos, conservando-os parcialmente, mas
redenindo-os, modicando-os. Em decorrncia, ou na origem mesma dessas
conceituaes, encontram-se facilmente duas abordagens diferentes de linguagem,
que podem ser denidas, e que se tornariam tema de futuros trabalhos.
Notas
1 Este estudo se inscreve no mbito do projeto O enunciado no texto, desenvolvido
no PPGLetras da PUCRS, de 2003 a 2005, apoiado pelo CNPq com bolsa de
Produtividade em Pesquisa.
Referncias Bibliogrcas
BENVENISTE, mile. Problmes de linguistique gnrale. Paris: Gallimard, 1966, v. 1.
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