Post on 21-Nov-2018
BIOGRAFIA
DE
ALCINO PALMEIRA DA SILVA
Autor
Fernando salgado
UMA PESSOA QUE É MEU AMIGO
Valores que sempre defendemos é algo de que gostamos e costumamos elogiar,
defender os valores da vida é mais difícil pois não temos o dom de adivinhar e o que ela
nos pode proporcionar. Estarmos atentos aos diversos sinais que nos vão sendo dados é
importante e se possível tentarmos ir decifrando esses sinais de maneira a que não
sejamos apanhados desprevenidos, mas muitas das vezes acontece aquilo que não
estávamos à espera.
Tudo aquilo que foi dito atrás serve como introdução a algo que aconteceu a uma
pessoa que é meu amigo e pela qual tenho uma grande admiração e estima, no entanto
debate-se nesta altura com uma doença bastante grave. Normalmente vimos a terreiro
expressar as nossas mágoas quando as pessoas já não se encontram no nosso convívio,
mas felizmente não é este o caso pois ele ainda se encontra “vivo e bem vivo” e espero
que durante muitos e longos anos.
Se existe algo que não te possa ensinar é a lutar pois durante a tua vida foste
sempre um lutador de primeira, quer na tua vida privada, quer no desporto que
praticaste e onde ascendeste ao topo nacional. Agora tens outro desafio pela frente que
é tentares viver com aquilo que ninguém quer a “doença”, infelizmente não nos
pergunta se a queremos, mas tu, que sempre lutaste até à exaustão, por determinados
objetivos não podes esmorecer, nem sequer pensares que vais ser vencido sem luta.
Enquanto houver algo em que possamos acreditar e ter esperança vamos em busca
do impossível, “mas desistir jamais”.
Fernando Salgado
PREFÁCIO
Meu bom e querido amigo “Cino”, alcunha pela qual eras conhecido quando
eramos crianças. Em tempos lançaste-me um desafio, para que fizesse a tua biografia,
não sendo escritor, nem nada que se pareça com quem domina tal arte de bem escrever,
aceitei a tua provocação e digo-te senti um imenso orgulho pelo repto que me lançaste.
Não foi fácil descrever tudo aquilo que me transmitiste e muito menos o de ter
encarnado o teu papel na escrita. Escrever no eu, foi algo que nunca me tinha ocorrido e
jamais me teria passado pela cabeça, mas espero que tenha interpretado bem o papel que
me incumbiste. Normalmente diz-se que a pessoa que vai interpretar o papel de outrem,
só consegue convencer o público se conseguir fazer passar a mensagem que o autor
quer, que é através da personagem criada, e tenha transmitido tudo aquilo que ele julgou
ser transcendente.
Espero não ter defraudado o teu entusiasmo e o teu ego, mas para mim foi uma
honra ter feito e criado a tua biografia e desde já os meus sinceros agradecimentos por
teres confiado em mim.
Acredito estar contigo daqui a alguns anos a reler tudo aquilo que aqui foi dito e
escrito e ao mesmo tempo possamos acrescentar outras coisas que entretanto se foram
passando.
O meu bem-haja amigo e sinceras felicidades.
Com 20 anos de idade
1
Biografia
Olhar simples, corpo franzino, metro e quarto de gente, filho de gente simples e
humilde, dez anos de idade era esta a fisionomia de um menino que passados alguns
anos viria a ser um dos desportistas amadores mais notáveis deste País, na área do boxe,
de seu nome ALCINO PALMEIRA DA SILVA.
Nasci na cidade do Porto, a 15/05/1952 na freguesia do Bonfim, filho de pessoas
humildes e trabalhadoras, não posso negar as minhas origens e a partir da altura em que
as minhas memórias remontam, não posso deixar de ter uma palavra de carinho para um
casal que fez o favor de me acolher no seu lar a partir dos meus 3 anos e aqui mais uma
vez se demonstra o espirito de solidariedade que nessa época era visível, pois esse casal
tinha 5 filhos e não se coibiu de me acolher em sua casa, assumindo mais essa
responsabilidade. Um casal que infelizmente já não se encontra no nosso meio, mas que
não posso deixar passar em claro este meu reconhecimento. Ao Sr. Artur Barbosa e sua
esposa Isilda, a quem carinhosamente chamava de mãenhia (o meu eterno bem-haja).
Entretanto, a idade vai avançando e começo a frequentar a escola primária que existia
no bairro da polícia, na travessa do Bonfim e na qual fiz o ensino primário até à
4ºclasse.
Não falar dos meus pais é algo impensável e quero homenageá-los pelos
sacrifícios que fizeram, para que eu e os meus 5 irmãos e irmãs, fossemos pessoas bem-
criadas, honestas e com alguns princípios e pelas quais nos fosse possível viver sem
termos de atropelar alguém com o fim de atingirmos determinados objetivos. Como não
tive possibilidades de continuar a estudar, voltei-me para o mercado de trabalho com o
fim de ajudar os meus pais monetariamente na luta pela nossa sobrevivência. As
traquinices próprias das crianças nessa idade também fazem parte das minhas
recordações, onde só era permitido brincar depois do trabalho ter terminado e aí sim
jogar ao peão, saltar à corda e às escondidas era aquilo que nos era permitido fazer, pois
nessa altura brinquedos eram algo que não se podia pensar.
O respeito e as boas maneiras, era uma vertente que nos era incutida pelos nossos
pais e da qual eles não queriam que nós fugíssemos. Nos meses de maio era engraçado
ver as crianças irem às novenas, pois os primeiros que chegassem à porta da igreja iam
2
No início da minha carreira no pugilismo
Num treino de judo nos pára-quedistas
3
ajudar o padre na novena, o que para nós era uma coisa especial. Nos meses de verão
quando a fruta começava a aparecer, era uma festa, pois com os meus amigos íamos aos
pomares existentes na zona e nessas alturas tirávamos a barriga de miséria em relação à
fruta, mas muitas das vezes tínhamos que fugir, pois os donos desses pomares vinham
atrás de nós. Ir à praia era quase irreal pois os meus pais não tinham disponibilidade
financeira para custear essa ida e a maneira mais fácil de muitas das vezes ir até alguma
coisa parecida com a praia, era descer a pé até à margem do rio Douro e na zona de
Valbom existia um caneiro e aí brincava com os meus amigos e foi nessa zona que
aprendi a dar as minhas primeiras braçadas.
O tempo vai passando e vou-me apercebendo que tenho algum jeito para a prática
do desporto e decido ir treinar futebol nos juvenis do Salgueiros, nessa altura o meu
primeiro treinador foi uma lenda do futebol português chamava-se Barrigana e tinha
sido guarda-redes no F.C. Porto. Entretanto, como tinha facilidade em dominar a bola,
decidem pôr-me a jogar no eixo da defesa, posição na qual e durante vários anos joguei,
quer no clube atrás descrito como noutros subsequentes e durante várias épocas.
Com a minha entrada no futebol, descobri as minhas aptidões para o desporto em
si. Começo a descobrir as minhas competências para o boxe através de umas
brincadeiras que o Pinto Lopes fazia connosco no bairro da polícia, ele treinava boxe no
F.C. Porto e tentava incutir-nos nas nossas mentes o gosto pelo boxe, indo a casa buscar
toalhas de rosto e embrulhava-as nas nossas mãos para fazerem de luvas e punha-nos a
combater uns contra os outros e nessas brincadeiras descobre que tenho jeito para o
boxe e leva-me a um treino. Claro que a partir dessa altura a minha vida sofre uma
alteração enorme, pois comecei a dedicar-me ao boxe com todas as minhas faculdades e
energias, estávamos no ano de 1967. A minha dedicação ao boxe é indescritível e
treinos era aquilo que nunca perdia, assimilando com bastante facilidade tudo aquilo
que me era transmitido e isso veio a dar-me alguma notoriedade, pois passados alguns
meses, já estava envolvido nos primeiros combates e daí a alcançar o meu primeiro
título nacional “pluma” foi um ápice.
Ser jovem nessa altura, como em qualquer outra, é sempre um bocado difícil, pois
é a altura em que começamos a descobrir as nossas valências e o sentido de
responsabilidade que nos é transmitido quer no trabalho, quer no desporto, dá-nos uma
motivação extra. Na minha juventude também tinha os meus devaneios e uma das
4
No serviço militar obrigatório “pára-quedistas”
5
coisas que gostava, era o de dançar, aos domingos juntávamo-nos na zona aonde eu
vivia e lá íamos nós dar um pé de dança e era engraçado de ver e ouvir ao meus amigos
dizerem uns para os outros que se fossem comigo não havia problemas, pois eles
confiavam nas minhas faculdades de pugilista, mas felizmente nunca tive que usar esses
meus atributos, razão pela qual consegui ganhar o respeito de todas as pessoas que fui
conhecendo e contactando ao longo dos tempos.
Entretanto, vivíamos num regime que não nos dava muitas hipóteses de pensar em
grande. Nessa altura travávamos uma guerra em África, na defesa daquilo que eles
diziam ser as nossas “províncias ultramarinas “,não tendo condições para dizer que não,
lá tínhamos que encarnar o papel de combatente e ir defender, aquilo que os nossos
governantes diziam ser nosso e por lá andávamos durante 3 anos. Num “meeting” de
boxe realizado no pavilhão das Antas entre o F. C. Porto-Pára-quedistas, em conversa
com o Sr. David Ferreira que era o treinador de boxe dos Pára-quedistas, propôs-me ir
fazer um teste à referida equipa. Alertado para tudo que se estava a passar em relação à
guerra colonial, decidi ir fazer os testes, fiquei aprovado e entro para cumprir o meu
dever cívico em Janeiro de 1973.
Ia começar uma nova etapa na minha vida e tentar descobrir o que me era
proposto, numa unidade de elite das forças armadas. Disciplina, rigor e valentia era o
que pediam e que fosse um soldado exemplar numa tropa de elite, dentro dos possíveis
e do tolerável procurei sempre dar o meu melhor em tudo aquilo que me era proposto.
Começar algo de novo é sempre difícil, pois temos que nos adaptar às pessoas que
connosco vão trabalhar e conviver no dia-a-dia, começamos a ter novos métodos e
vamos ganhando novos hábitos e amigos e aquilo parecia ser difícil, aos poucos vai
sendo ultrapassado.
Durante o tempo da recruta foi bastante penoso, porque tínhamos aplicação
militar, ordem unida, saltos e ginástica no entanto, havia exercícios em que estava à
vontade pois atendendo ao meu percurso como atleta já os tinha executado e os que
eram novidade procurava entende-los de maneira a poder “desenrascar-me”. Para mim
quase tudo era novidade e como tal não posso deixar de realçar os primeiros saltos da
torre. Era essencial não nos sentirmos atemorizados, mas as primeiras vezes custaram-
me um bocado, mas nada que não fosse superado por um friozinho no fundo da barriga.
6
Com a minha futura esposa e a minha filha
7
As várias fases do processo de integração nesta unidade de elite vão sendo ultrapassadas
e eis que chega a altura de dar o meu primeiro salto com para quedas do avião, dizer
alguma coisa sobre o que nos vem à cabeça antes de saltarmos é um misto de sensações
extraordinárias e só quem passa por esse sentimento é que as consegue descrever. Chega
o momento do tão almejado primeiro salto e eis que começamos a sentir um misto de
medo, novidade, liberdade e curiosidade, pois também era a minha primeira vez que
entrava num avião, todas estas sensações eram inenarráveis. O “Nord Atlas” foi o avião
que nos transportou e conforme íamos entrando, era-nos dada a indicação para ocupar o
nosso lugar e ao mesmo tempo informações sobre o que se deveria ter em conta para
que o salto que ia executar fosse um sucesso. Quando chega a hora de saltar, chego à
porta do avião e olho para baixo, fiquei atemorizado, ao ver que tinha que saltar para
aquele vazio imenso, não pensei muito, esperei que dessem a ordem e não me fiz
rogado, a sensação que senti foi impressionante mas por ser o meu primeiro salto, a
única preocupação que tinha era o de sentir terra firme debaixo dos meus pés. Depois e
como era norma realizei mais de 30 saltos e em cada um desses saltos que efectuei, as
sensações eram diferentes e havia sempre algo de novo que ia descobrindo.
Entretanto, acabo a recruta e o curso de pára-quedista e fico na mesma unidade,
como monitor e responsável pela secção de boxe, onde me mantive até ao fim do meu
tempo de tropa. No entanto não posso esquecer um dos dias que marcou a minha vida e
de milhões de portugueses, foi o 25 de Abril de 1974. Porque estava na tropa e senti
entrar uma lufada de ar fresco neste país que muitos queriam que fosse cinzento. A
sensação de liberdade que nos era dada, pudermos dizer ou fazer aquilo que nos ia na
alma sem termos de olhar para o lado e ver se nos estavam a escutar é algo que não
posso esquecer.
Eis que acabo o serviço militar em Maio de 1975 e como qualquer jovem, começo
a pensar no que fazer a partir de agora à minha vida, já namorava há algum tempo com
uma moça, de seu nome Fátima, com quem mais tarde iria juntar a minha escova dos
dentes. Mas surge um imprevisto e a minha namorada fica grávida, não sendo pessoa
para fugir às responsabilidades, pensar na maneira de resolver este problema foi a minha
prioridade, e que a bebé que estava para nascer fosse acolhida da melhor forma possível.
No dia 02/12/1975, nasce a minha filha Paula e foi maravilhoso sentir-me na pele de
pai, pois é um sentimento que não é possível de descrever, é uma sensação única e só
8
Com a faixa de campeão distrital de amadores da associação do Porto, pelo F C.C. do Porto
9
quem já passou por esta situação é que a pode ajuizar, a partir dessa altura essa menina
começou a ser o sol que me aquecia e a luz que me iluminava.
Um Portugal novo se abria aos portugueses, no entanto, as dificuldades que dai
vão surgir é algo que não estávamos preparados e começam a surgir as contrariedades e
no plano profissional começam a surgir os primeiros obstáculos, a profissão que exercia
na altura era a de tipógrafo-impressor e começava-se a viver a época das novas
tecnologias e eis que chegam as primeiras máquinas de fotocópias e com isso diminui a
procura de serviços relativo à minha área profissional e sem querer estava numa
situação de desemprego. Os problemas surgem e temos que ter capacidade para os
solucionar, a minha prioridade era a minha filha e não podia abdicar de lhe dar o meu
amor e tudo aquilo que para ela fosse necessário.
Mesmo com todas as contrariedades que iam surgindo, nunca deixei a vertente
desportiva de lado e ia conciliando tudo de maneira a estar sempre na minha melhor
forma, nunca faltando aos treinos e ia fazendo aquilo que tanto gostava. No boxe ia
mantendo a minha superioridade, quer a nível regional, quer a nível nacional e sem
menosprezo por ninguém, lá ia conquistando os títulos em disputa, nas diversas
categorias em que passei e foram “Pluma”, “ligeiro”, “meio médio ligeiro” e “meio
médio” foram vários anos em representação do F. C. Porto e Ramaldense e neste último
estive uma época, onde também fui campeão distrital e nacional. Tive vários treinadores
e seria indigno não os referir, pois foram pessoas que me marcaram, por aquilo que me
ensinaram e ao mesmo tempo ajudaram a vincar a minha personalidade como pugilista.
Ao Sr.º. Miguel Ferreira, Luís Saavedra e ao meu irmão Luís Palmeira, que sendo mais
novo e tendo também praticado este nobre desporto, foi também durante alguns anos
campeão distrital e nacional, mas que por motivos de saúde teve de abandonar a prática
do boxe, passando depois a treinar o boxe do F.C. Porto, (a todos os meus sinceros
agradecimentos por me terem ensinado tão belo desporto).
O futebol era outra das minhas paixões, pois tendo jogado em vários clubes e
sendo finalista do campeonato de amadores no Porto em alguns, tive a sorte e o
privilégio de ter sido campeão pelo F. C. Cerco do Porto.
Seja qual for o desporto que pratiquemos, ele é uma fábrica de virtudes, de
ensinamentos e conhecimentos. Numa fase da minha vida em que estava sem trabalho,
10
No dia do meu casamento com a minha filha a ser a menina das alianças
11
um amigo que conhecia a minha situação veio-me propor se queria jogar futebol de
salão pela empresa onde ele trabalhava e que poderia ser uma hipótese de conseguir lá
ser admitido, visto que os donos da empresa gostavam muito deste desporto e sendo um
veículo de publicidade para a empresa, não me fiz rogado e no fim do primeiro treino e
eles sabendo a situação em que eu estava fizeram-me um convite para ir trabalhar com
eles na qual agradeci e aceitei. Como a minha situação financeira tinha melhorado,
decido casar-me pois era algo que já estava no meu pensamento. Só esperava pela altura
certa e no ano de 1979 dá-se o tão ansiado enlace com a mãe da minha filha e o amor da
minha vida Fátima Aurélio.
Representar o nosso país seja na modalidade que for é o ponto mais alto para
qualquer atleta, felizmente tive esse privilégio e na qual fi-lo com grande honra, fui
várias vezes internacional, mas a primeira vez é aquilo que nunca mais se esquece, foi
no Brasil, no estado do Rio de Janeiro, no pavilhão do Maracanã. Com a lotação
esgotada é impressionante e ouvires gritar pelo teu nome é indescritível, parecia que
estava a viver um sonho e em que tinha a vontade de nunca mais acordar. Como em
tudo na vida tem o seu fim, aos 36 anos de idade decido parar, depois de ter sido
campeão nacional por 14 vezes em diversas categorias, campeão regional por outras
tantas vezes e várias vezes internacional, chega a altura de dizer adeus, muitas das vezes
não estamos preparados para o passo que vamos dar e descrever essa altura é a parte
mais difícil, a sensação que sentes por deixares aquilo que durante tantos anos fizeste
com amor e dedicação, é um vazio enorme que fica e que nunca mais sai de dentro de
nós.
Profissionalmente a minha vida foi melhorando e fui tendo vários empregos desde
porteiro em alguns pubs, segurança, empregado de mesa, barman e responsável de sala
nalgumas discotecas, foram experiências todas elas enriquecedoras e que me deram uma
forma diferente de estar e ver a vida. Trabalhar de noite tem sempre o seu risco pois
podemos encontrar pessoas de vários temperamentos e feitios e onde tinha de ter um
sentido muito apurado para no mínimo não me ver metidos em sarilhos, pois mesmo
sem querer às vezes as coisas aconteciam e aí tentava usar a minha perspicácia e
subtileza para resolver as coisas da melhor maneira possível e felizmente fui-me saindo
mais ou menos bem, tentando fazer de cada cliente um amigo e que sentissem respeito
por aquilo que eu fazia.
12
Num dos meus muitos combates de boxe
13
Entretanto, sinto um vazio dentro de mim e sinto necessidade de ir viver a adrenalina do
boxe fora do ringue e, em conversa com o meu irmão Luís, convidou-me a ir treinar as
camadas mais jovens do F.C. Porto. Como era um projecto que se estava a iniciar e era
ambicioso, decido aceitar em boa hora, pois inspirar jovens nesta modalidade foi sempre
o que desejei, mas nem sempre quem foi bom atleta seja na modalidade que for é um
bom treinador ou bom condutor de jovens, esse era o meu dilema, mas felizmente não
foi isso que sucedeu e a partir do primeiro treino senti que tinha capacidades para isso.
Trabalhar com jovens tem sempre o seu quê de gratificante e como tinha vivido parte da
minha vida no bairro do Cerco do Porto, decido falar com a direção do grupo desportivo
do mesmo bairro, em lançarmos a modalidade no clube e ao mesmo tempo dar aos
jovens alguma coisa em que eles estivessem entretidos e assim os pudéssemos desviar
de outros vícios, muito comuns neste tipo de idade. Não será fácil fazer o balanço desta
nossa iniciativa, procuramos dar a esses jovens uma vida com melhor qualidade, virada
para o desporto e para as coisas boas que daí pudessem advir. Claro que em qualquer
iniciativa que se tenha existe sempre um risco e os responsáveis pelo grupo desportivo
decidiram em boa hora correr esse risco e durante uns tempos era bom ver alguns jovens
a praticar este nobre desporto.
Como nessa altura o boxe estava em alta, recebo um convite da Ass. Boxe do
Porto para ser o seu director técnico regional. Foi uma forma de reconhecerem tudo
aquilo que tinha feito em prol desta modalidade e passar os meus conhecimentos a
outras pessoas que quisessem ser futuros treinadores, além disso fazia parte da minha
missão tentar aliciar novos clubes para que se iniciassem nesta atividade, nem sempre
consegui, mas fico satisfeito por durante alguns anos tentar dar um impulso grande a
esta tão nobre arte. Se houve algo que me deixou muito enternecido foi o convite que
recebi da F.P. de Boxe para o cargo de seleccionador nacional, como em tudo na vida
existem coisas que nos honram muito e este convite não podia recusar. Foram
momentos inesquecíveis que passei durante 4/5 anos à frente da selecção, não posso
esquecer a grande camaradagem que existia tanto a nível de seleccionados, treinadores e
dos seus directores. Estive num campeonato do mundo que se realizou na R.D.
Alemanha e ver tudo aquilo que se estava a passar à minha volta é impossível de ser
esquecer, pois tudo estava a ser previsto até ao mínimo pormenor, sendo eu um
apreciador do rigor e da competência senti-me cativado pela maneira como tinha sido
realizado este campeonato. Não posso deixar de descrever um combate que se realizou
14
Equipa de boxe do F.C. do Porto com o treinador Luís Saavedra, onde estou eu e o meu irmão Luís Palmeira
15
neste campeonato, os intervenientes eram o Jorge Jeremias e um americano, não me
lembro do nome desse atleta, mas da maneira como eles se bateram e aplicaram em
cima do ringue foi tal, que conseguiram que as pessoas que assistiam a este combate se
empolgassem de tal maneira que no fim do referido combate aplaudiram
entusiasticamente de pé os dois intervenientes, o Jorge tinha perdido e não passou à
outra fase, mas o americano que tinha vencido também não participou em mais
nenhuma eliminatória, por não ter recuperado desse combate. Qualquer pessoa
responsável se sente entusiasmado pela conduta e entrega dos seus atletas e eu não
poderia deixar de referir este ato, que muito me prestigiou e honrou. Os resultados não
foram aqueles que gostaríamos que tivessem sido, mas conseguimos ver como se tratava
o boxe noutros países.
As novas metodologias que eram aplicadas nos treinos, a maneira como o boxe
era acarinhado em alguns países e onde os próprios organizadores deste campeonato do
mundo, não se coibiram em nos manterem informados sobre tudo que se realizasse, quer
em termos de colóquios e apresentações. Como foi o meu primeiro e único campeonato
do mundo de boxe em que estive presente como seleccionador, fiquei muito
sensibilizado e ao mesmo tempo agradecido por esta experiência única. Sempre que me
desloquei como seleccionador ao estrangeiro, procurei sempre dignificar e honrar o
nosso país da melhor maneira e aos atletas que comigo se deslocassem exigia-lhes
também a mesma atitude e isso foi uma das razões para me sentir realizado e respeitado
por onde passei. Estive presente nos mais diversos “meetings” de boxe que se
realizaram na Europa e aquilo que mais nos vai enobrecer são as vitórias que vamos
conseguindo, no entanto, dizia aos meus atletas que a vitória era importante, mas que
nunca deveríamos de menosprezar o valor dos nossos adversários. Para além de
desportistas eu procurava que os meus atletas fossem pessoas de boa índole e que nunca
sentissem vergonha de terem sido treinados por mim, pois tudo o que lhes ensinei foi
sempre para bem deles e ao mesmo tempo prepara-los para a vida futura.
A vida nem sempre me proporcionou só coisas boas e quando menos se espera
temos aquilo a que chamamos de inesperado. Só que a maior parte das vezes não
estamos preparados e quando alguma coisa fora do normal nos acontece, verificamos
que devíamos ter dado mais atenção às coisas que no nosso dia-a-dia executamos, “ mas
há sempre um mas” e só nos apercebemos quando as coisas acontecem. No ano de
16
Da parte de fora do ringue a orientar um combate de boxe
17
2005, começo a sentir umas fortes dores nas costas e como isso nunca me tinha
acontecido, decido fazer uma consulta com o meu médico e perante aquilo que eu lhe
transmiti mandou-me fazer uma ressonância magnética e onde me foi diagnosticada
uma hérnia discal na coluna cervical entre os elos 6 e 7 e o médico que me assistia
aconselhou-me a ser operado. Ponderei todos os inconvenientes que pudessem advir
dessa operação com os meus familiares mais próximos e decidi avançar para a dita
cirurgia. Como o meu histórico clinico não comportava assuntos com muita gravidade,
resolvo então fazer a operação. Preparei-me mentalmente para aquilo que iria fazer, pois
fazer uma operação à coluna é sempre algo de arriscado, mas com a graça de Deus iria
correr bem e segundo o médico a cirurgia tinha sido um êxito, agora era necessário fazer
a respectiva recuperação e depois podia voltar a fazer a minha vida normalmente como
veio a acontecer.
Vou continuando a fazer a minha vida normalmente, agora com algumas
restrições. Mas sem nada que o fizesse prever começo a sentir problemas na coxa, pois
os sintomas que sentia davam-me a impressão de que estava a perder massa muscular.
Fui outra vez ao meu médico, ele mandou-me fazer analises e exame clínicos, e como
me queixava também da massa muscular, encaminhou-me para uma clinica para fazer
uma electromiografia. Só quem passa por estas situações é que sabe e sente a ansiedade
que dai advém e enquanto não sabemos o resultado da respectiva análise vamos
pensando sempre no pior que nos pode vir a acontecer. Como previa a análise deu
positiva à massa muscular. E agora como encarar este problema? E de que maneira o
iria transmitir aos meus familiares mais próximos? Senti-me perdido e sem soluções, e
se calhar fiz aquilo que ninguém deve fazer. A ideia que eu julguei ser a mais adequada
foi não lhes ter comunicado na altura que soube o resultado e hoje sinto-me bastante
arrependido, porque pensava que com alguns tratamentos voltasse tudo ao normal e
assim evitava que elas sofressem, pois eu próprio ainda não tinha conhecimento certo
do que se tratava. Mas sinto que estou a perder aptidões e ao mesmo tempo vou
sentindo cada vez mais os músculos a atrofiarem-se, mas nada que pudesse levantar
suspeitas à minha mulher.
Como diz o provérbio “a mentira tem perna curta”, um belo dia estava a tentar
desfazer a barba e sem nada que o fizesse prever a minha esposa entra na casa de banho
e vê-me a escanhoar a barba com as duas mãos, estranhou aquilo que se estava a passar
18
Nesta altura ainda de boa saúde
19
e perguntou-me o que era aquilo que estava a fazer, pois normalmente utilizava uma
mão ao desfazer a barba. Fui apanhado como se costuma dizer “com as calças na mão”
e tive que contar a verdade, o que para mim foi um alívio poder contar-lhe aquilo que se
estava a passar comigo. Os momentos que se seguiram são algo que eu não gostaria de
contar, mas o certo é que tanto a minha esposa como a minha filha estavam cheias de
razão por tudo o que me diziam e de lhes ter ocultado o que se estava a passar comigo,
nada que eu não me tenha arrependido e serviu-me de lição.
O principal objectivo a partir dessa altura era tentar descobrir que género de
doença era, tentar obter toda a informação sobre possíveis tratamentos e ao mesmo
tempo saber qual a posologia mais adequada para que fosse possível atenuar os efeitos
nefastos da doença. Os sintomas que ia tendo transmitia-os aos médicos que me
assistiam e eles iam-me mandando fazer os exames que achavam convenientes de modo
a irmos eliminando as hipóteses. Fiz todos os exames possíveis e imaginários para
detetar a doença, até à altura em que vou a uma consulta e pelo comportamento do
médico pressenti que não era boa a notícia que tinha para me dar. Com a perspicácia
própria de um clínico e sabendo que vai dar uma má notícia, manda-me sentar e se estou
bem, pois a notícia que tem para me transmitir não era boa e é quando ele me participa
que a doença que tenho é Esclerose Lateral Amiotrófica (E.L.A.).
Como era uma doença da qual não tinha ouvido falar, pedi-lhe para que me
elucidasse sobre o comportamento dessa doença e se havia hipóteses de cura. Perante as
perguntas que lhe fiz, ele responde-me quais são os sintomas desta doença, os seus
efeitos malévolos e as hipóteses de cura serem quase nulas, também disse que enquanto
há vida há esperança e com os avanços que a medicina vai tendo há sempre uma nesga
de confiança. Esta doença degenerativa debilita toda a estrutura muscular e óssea, com o
passar do tempo.
Se existe alguma coisa para a qual não estamos preparados é o de alguém dizer
que não vamos durar muito tempo, não sei o que senti naquela altura, o sentimento de
impotência foi tal, quase me senti banido da sociedade. Perante tal desígnio que Deus
me destinou, nem tudo tem sido mau nesta fase da minha vida e o nascimento do meu
neto Miguel foi a coisa mais bonita que me pôde ter acontecido, pois tem sido para mim
o analgésico que eu necessitava para me ajudar a superar todas estas vicissitudes da
vida. Os netos normalmente ajudam-nos a rever muitas coisas, algo que não tivemos
20
Com a minha mulher, filha e sobrinha na inauguração de uma discoteca
21
hipóteses de dar aos nossos filhos, pelas circunstâncias mais variadas e neste caso
funcionam como uma forma simbólica de compensarmos os filhos.
Começo a aperceber-me que vou perdendo algumas capacidades e cada vez fico
mais revoltado comigo mesmo, por ainda não estar convencido por tudo isto que me
está a acontecer e por psicologicamente não estar preparado para aceitar este drama que
instalou na minha vida. O apoio da minha mulher, da minha filha e de algumas pessoas
que considero minhas amigas tem sido extraordinário, mas enquanto me puder deslocar
sem depender seja de quem for, vou tentar não me subordinar. Vou alcançando a minha
auto-suficiência com alguma dificuldade, pois começo a sentir alguns impedimentos em
determinadas coisas que vou fazendo como por exemplo, andar e ligar a chave de
ignição do carro, mas ainda não se torna muito preocupante para mim e como ainda me
sinto uma pessoa normal, vou tentar aguentar o mais possível esta situação, para não
começar a depender das outras pessoas.
Das coisas que me tem custado muito e tem sido o meu maior problema é o de
não ter encarado esta doença da melhor maneira, e da forma que entrou na minha vida e
por muito que as pessoas tentem dizer ou encontrar palavras para que eu me vá
mentalizando é lisonjeiro, pois sei que só me resta ter de coabitar com a doença e dentro
de tudo o que pudermos chamar de racional, vou tentar encarar a doença de maneira a
que as pessoas que me são queridas, não se sintam defraudadas por todo o carinho e
amor que me têm transmitido.
O estar ciente de tudo o que se passa à minha volta e as minhas capacidades
mentais estarem normais, faz-me ficar muitas vezes mais zangado comigo mesmo e há
horas, em que por motivos de estar só ou não querer ninguém ao pé de mim, sinto
nostalgia e nesses momentos sinto-me uma pessoa revoltada e triste e que sem querer
penso naquilo que não devia.
O tempo vai passando e começam a surgir novos problemas e novas
dependências, o atrofiamento muscular cada vez é mais intenso, o ter autonomia para ir
à casa de banho, tomar banho e fazer o meu asseio diário, já não é nenhum e começo a
depender da minha mulher.
22
Com uma das muitas faixas de campeão nacional
23
Nunca fui pessoa com grandes vícios e se existem coisas que não prescindo é o de
tomar um café após o almoço e a seguir ao jantar. Como tenho dificuldade em deslocar-
me, é amparado na minha mulher na maior parte das vezes que vou até ao café. Das
coisas que gostava de fazer era andar a pé e sozinho, procurando manter-me activo, mas
infelizmente tive que abandonar esse projecto pois tive várias quedas e algumas com
gravidade e a partir dessa altura comecei a sair acompanhado.
Existem coisas que nos marcam para toda a vida e a onda de solidariedade que se
desenvolveu em prol da minha pessoa, é algo que enquanto viver não vou esquecer e
não posso omitir o que diversas pessoas amigas me tentaram proporcionar, o
compromisso e devoção que eles puseram na feitura desta festa de homenagem. Isto só
foi possível graças ao empenho de pessoas que me merecem muita estima e
consideração. Aquilo que só quem tem muita perseverança e não desistem ao primeiro
obstáculo, é indiscritível, pois numa altura em que o nosso país vive uma situação de
desemprego e de restrições macroeconómicas muito sérias, seria impensável ver um
pavilhão com centenas de pessoas a tentarem dizer-me para não desistir de mim e
darem-me alento para que enquanto for possível eu não desista de tudo aquilo amo. Esta
festa foi no pavilhão Luso-Venezolano em Nogueira da Regedoura-Feira e só foi
possível graças à generosidade de amigos que ficarão para sempre no meu coração e que
não posso deixar de cita-los, ao José Pinto Lopes, Cipriano Costa, Dr. António de
Oliveira antigo jogador do F.C. Porto, ao jornalista da SIC António Reis, ao sargento-
mor Manuel Gonçalves dos pára-quedistas, às empresas que patrocinaram este evento e
a todos os que colaboraram e que não os enumero as minhas desculpas, os meus
sinceros agradecimentos e o meu bem-haja por tudo o que fizeram e que esta festa sem
eles não teria sido possível.
A gratidão e respeito que todos os presentes me quiseram tributar, jamais poderei
esquecer e vem enaltecer uma velha “máxima” na qual impus no meu relacionamento
com os outros, o do respeito e a verdade por tudo aquilo que fizéssemos ou
praticássemos, quer com os adversários, amigos ou familiares. Foi gratificante ver
pessoas que conviveram comigo em criança, na escola primária, no trabalho, camaradas
da arma de pára-quedistas, antigos colegas que comigo praticaram o boxe e o futebol,
dirigentes do boxe e de alguns clubes que não quiseram deixar de estar presentes, além
de algumas pessoas que comigo disputaram títulos nacionais e regionais, dos meus
24
Ainda com um pouco de saúde
25
familiares e amigos. Se pudesse descrever tudo aquilo que senti ou vivi nesse dia, não
tinha palavras nem adjectivos que conseguissem demonstrar toda a minha gratidão.
Ver imortalizados os meus feitos num lugar público como é o “Museu do F.C.
Porto” é honroso e dignificante, por tudo aquilo que ao longo da minha carreira
consegui como boxer nos diversos escalões. Sentir que tudo aquilo que fiz em prol do
desporto que adorei, e o de deixar algo que possa ser visto pelas gerações vindouras e ao
mesmo tempo lhes possa servir de exemplo para a prática de tão nobre arte desportiva.
Ao escrever esta minha biografia, procurei ser o mais realista possível e ao mesmo
tempo enquadra-la dentro do espaço de tempo que julguei ser a mais adequada e tudo o
que está enumerado não é ficção. Como calculam foi muito difícil relatar todos estes
acontecimentos, pois estou numa situação que, reconheço, não é a mais aconselhável.
No entanto, tenho que confirmar a satisfação que me deu falar sobre tudo aquilo de que
me fui lembrando. Recordar o meu tempo de meninice foi das coisas mais lindas que
escrevi e puder lembrar aqueles tempos em que a pureza da inocência era assombrosa.
Todas as épocas que foram decorrendo daí em diante não deixam de ser importantes
para mim e que com a graça de Deus foram ultrapassadas. É impressionante ao fazer-se
uma retrospectiva de tudo aquilo pela qual passei e o sentimento de saudade que dela
nos advém é melancólica e enternecedora.
Compreendo que ao lerem esta minha biografia, se interroguem sobre se não
existiriam outras coisas que merecessem mais ênfase ou realce, tentei dar relevo a tudo
aquilo que julguei ser o mais importante.
A todos o meu muito obrigado por terem tido a paciência de ler a minha biografia.
Alcino Palmeira
26
Na minha festa de homenagem com alguns amigos em Nogueira da Regedoura