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BIOGRAFIAS SOBRE FRANCISCO MUNIZ TAVARES (1793-1875) NO
DEBATE SOBRE O GÊNERO BIOGRÁFICO NA HISTORIOGRAFIA.1
Fred Cândido da Silva
Mestrando em História (UFPE)
fredcandidosilva@hotmail.com
Resumo.
Este artigo faz parte da problematização historiográfica sobre a biografia de Francisco
Muniz Tavares, que está sendo construída no mestrado em história da UFPE. Muniz
Tavares foi revolucionário no Pernambuco de 1817, parlamentar e intelectual no século
XIX brasileiro. No presente trabalho não buscamos apresentar uma parte dos
acontecimentos de sua vida, tampouco, como ele se relaciona aos eventos
contemporâneos, mas sim, como as biografias escritas sobre este indivíduo até então,
fazem parte de uma historiografia que não prezava pela problematização de suas ações.
Procuramos analisar as percepções de biografia presentes nos textos sobre este sujeito a
partir do conteúdo e da estrutura de apresentação e de organização, isto, à luz das
concepções historiográficas presentes nos momentos de suas publicações. Buscamos
apresentar também alguns apontamentos acerca das concepções de biografia dentro do
campo historiográfico hoje, dialogando principalmente com contribuições teórico-
metodológicas da Micro-história italiana, concepções que em muito impelem a escrita
de biografias tanto de sujeitos que ainda não lhe fora dedicada, quanto de indivíduos já
estudados pela história.
Palavras-chave: Francisco Muniz Tavares; Biografia; Historiografia.
Apresentação.
Francisco Muniz Tavares foi uma figura presente em alguns eventos que
marcaram modificações importantes para o Brasil no século XIX. Sua trajetória de vida
teve atenção de alguns historiadores, que acabaram tecendo notas sobre ela e
publicando-as em algumas obras de caráter biográfico.
Estes textos são matéria de análise neste artigo. Estão presentes nas obras Os
Mártires Pernambucanos vítimas da liberdade nas duas revoluções ensaiadas em 1710
e 1817 (1853), de Joaquim Dias Martins; Dicionário biográfico de pernambucanos
célebres (1882), de Francisco A. Pereira da Costa; Dicionário Bibliográfico Brasileiro
(1895), de Augusto V. A. S. Blake; Apontamentos Biográficos do Clero Pernambucano
1 Agradeço ao CNPq pelo auxílio financeiro fornecido para esta pesquisa.
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(1535-1935) (1994), de Fernando Pio; e Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
Pernambucano: breve história Ilustrada (2010), obra composta por vários autores.
Tentamos no escrito que segue abaixo analisar essas biografias inserindo-as nas
possíveis concepções historiográficas quando do período de sua publicação e produção.
Nesse intento, pensamos efetuar também uma análise acerca da relação entre o gênero
biográfico e o historiográfico, mormente para o caso francês, já que no século XIX e
boa parte do XX, a historiografia brasileira teve como referência teórico-metodológica
principal, a historiografia francesa.
Na última seção desse artigo, dedicamos a tentar demonstrar possíveis
contribuições teórico-metodológicas da Micro-história italiana para a construção de
textos biográficos.
1. O gênero biográfico no século XIX.
O gênero biográfico remonta à antiguidade. Desde sua origem, equilibrou-se em
um lugar entre a história e a literatura. Por vezes valorizado, por vezes relegado a
segundo plano. Nos seiscentos, o gênero biográfico ganha expressão mais próxima da
história, desvencilhando do misticismo e aproximando-se de uma descrição mais
realista. Como nos diz Sabina Loriga, uma das principais teóricas sobre biografias na
França da atualidade, (2011, p.17):
O termo ‘biografia’ só aparece ao longo do século XVII, para designar uma
obra verídica, fundada numa descrição realista, por oposição a outras formas
antigas de escritura de si que idealizavam o personagem e as circunstâncias
de sua vida (tais como o panegírico, o elogio, a oração fúnebre e a
hagiografia).
No século XVIII, os biógrafos se voltaram para dois eixos de análise: para além
da vida dos santos – o que poderíamos chamar de resquício ainda existente das
hagiografias, – e dos reis, ganhou destaque a vida de artistas e outros indivíduos
(LORIGA, 2011, p. 19). Este momento marca a valorização do grande homem em
detrimento do herói, segundo François Dosse (2009, pp. 163-166). Podemos
exemplificar essas duas categorias da seguinte forma: A primeira é representada pelo
que Voltaire chamou de indivíduos que se sobressaíram no útil e no agradável,
3
destacando-se os homens de letras; a segunda, seria representada por aqueles que
tiveram êxito na esfera militar.
No início do século XIX, a figura do herói, ainda que presente nas biografias,
principalmente do historiador britânico Thomas Carlyle (1795-1881), dá lugar aos
personagens dos grandes homens. Isto se deve aos valores que se queriam transmitir,
pelo menos à sociedade francesa. Estes valores seguiam as influências da filosofia
iluminista, com tons humanitários, de moderação no desempenho das responsabilidades
e de criatividade no ofício, em detrimento de valores guerreiros, que entravam cada vez
mais em descrédito por uma sociedade que, segundo Dosse (2009, pp. 166-167), estava
cada vez mais desejosa de paz.
Segundo Loriga (2011, p. 20), “é durante o século XIX que a biografia se impõe
como ofício de pleno direito”. Contudo, é neste mesmo século que se inicia sua
relegação a um segundo plano, por parte dos historiadores, que durou até meados do
século XX. Segundo Dosse (2009, pp. 171-172):
[No século XIX] A biografia não passa de um parente pobre, de um gênero
menor, desdenhado e relegado a alguns polígrafos sem prestígio intelectual.
Vê-se isso desde o começo do século, antes mesmo da profissionalização do
ofício do historiador, que só ocorre de fato a partir dos anos 1880. O gênero
biográfico é repudiado pelos historiadores liberais e românticos já nos anos
da Restauração (1815-1830).
Talvez, a principal motivação deste repúdio, que Dosse aludi em seu texto, seja a
da tentativa de aplicação de um estatuto científico à história, revestido no argumento de
que ela tem a capacidade de reconstituir o acontecido, ou seja, que possui uma ligação
intrínseca com a verdade, enquanto que a biografia, não. A história, ao se tornar uma
disciplina, e consequentemente, monopolizada por acadêmicos, tornara-se uma ciência,
e necessitava de um método, não possuindo espaço para invenções, assim entendido por
vários historiadores o que os biógrafos faziam, inventavam.
No entanto, o gênero biográfico continuou sendo produzido ao longo do século
XIX. Teve papel importante na criação da ideia de nação, ajudou a consolidar símbolos,
assimilou-se à exaltação do nacionalismo, tudo isto, em meio à história que valorizava o
acontecimento (DEL PRIORE, 2009, p. 8). Nesta conjuntura de exaltação nacional e
construção de uma identidade patriótica, ao longo do século XIX, se produz em várias
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partes da Europa dicionários biográficos, contendo textos concisos acerca de
personalidades de cada país. Na França, o dicionário Biographie universelle ancienne et
moderne, em 1811, e o Nouvelle biographie générale: depuis les temps les plus reculés
jusqu'à nos jours... em 1852.2 No Reino Unido é publicado o Dictionary of National
Biography em 1855 e na Alemanha recém unificada, publica-se em 1875 o Allgemeine
Deutsche Biographie3 (LORIGA, 2011, p. 23).
No Brasil, na segunda metade do século XIX, também há a publicação de alguns
dicionários biográficos por historiadores, como o Dicionário Bibliográfico Brasileiro
(1895), de Augusto V. A. S. Blake. Especificamente em Pernambuco, há a publicação
do Dicionário biográfico de pernambucanos célebres (1882), de Francisco A. Pereira
da Costa e Os Mártires Pernambucanos vítimas da liberdade nas duas revoluções
ensaiadas em 1710 e 1817 (1853), de Joaquim Dias Martins. Este último, ainda que não
possua em seu título o termo dicionário, não foge desta categoria, pois é estruturado
como esse tipo de publicação. Todos possuem um texto biográfico sobre Francisco
Muniz Tavares, são para eles que nos voltamos a partir de agora.
2. A historiografia da trajetória de vida de Francisco Muniz Tavares.
Na obra Os Mártires Pernambucanos vítimas da liberdade nas duas revoluções
ensaiadas em 1710 e 1817, publicada primeiramente em 1853, o padre Joaquim Dias
Martins traz pequenos textos, com informações objetivas acerca da vida de personagens
que participaram da Revolução Pernambucana de 1817 e da Revolta dos Mascates de
1710-1711. Todo o livro possui uma estrutura de dicionário, com uma lista organizada
por sobrenomes.
Nas três páginas dedicadas a Muniz Tavares, além de trazer informações sobre a
carreira do mesmo, ele apresenta uma pequena citação retirada de um periódico
chamado de “Gazeta pernambucana”, na qual chama Muniz Tavares de “campeão da
2 Estes dicionários podem ser consultados por meio do portal Galica, da Biblioteca Nacional da França,
disponíveis em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k51674f.image.f2, para o Biographie universelle... e
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k62923032, para o Nouvelle biographie générale... Acessados em
01/08/2018. 3 O Dictionary of National Biography pode ser consultado por meio do website
http://www.oxforddnb.com/browse. Já o Allgemeine Deutsche Biographie pode ser acessado por meio do
https://www.deutsche-biographie.de/. Acessados em 01/08/2018.
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liberdade” e “pai da pátria” (MARTINS, 1853, pp. 577-579). Não podemos referenciar
este periódico, pois a obra de Dias Martins não possui referências. Todo o texto de
Martins trata de heroicizar Francisco Muniz Tavares em suas ações ao longo de sua
carreira até aquele momento.
O livro não problematiza as ações e possíveis ideias dos indivíduos. Com o
eclesiástico Muniz Tavares não é diferente. A bem da verdade, todo o texto sobre ele
trata tão somente de heroicizá-lo, mas não na vertente biográfica que apresentamos
acima acerca do herói, mas, na vertente do grande homem. Muniz Tavares se destaca na
obra de Dias Martins pela sua intelectualidade e não pelos feitos militares. O contrário
não poderia ser, já que fora um eclesiástico e tivera participação o mais próxima de
militar, na Revolução Pernambucana de 1817, que durou 74 dias. Nesta, foi “[...]
acusado de ir aos clubes; de antes tratar da revolução; de aliciar gente; de acudir armado
aos rebeldes. Ser capitão de Guerrilhas; de ser influído; de ser declamador” (DHBN4,
vol. 106, 1954, p. 143).
Talvez, o texto biográfico sobre Francisco Muniz Tavares mais completo, pelo
menos é o maior, produzido pela historiografia, seja o publicado em 1882, no
Dicionário biográfico de pernambucanos célebres, de autoria de Francisco A. Pereira
da Costa. Podemos dizer que nesta obra, há uma evolução em relação aos Mártires
Pernambucanos..., pois, apresenta uma gama maior de informações, abordando desde
sua infância até sua morte. Poder-se-ia argumentar que apresenta esta gama maior de
informações por ter sido publicada após a morte de Muniz Tavares (1875), no entanto,
como se verá adiante, alguns textos publicados mais de um século após sua morte não
possuem tantas informações, por exemplo, os Apontamentos Biográficos do Clero
Pernambucano de Fernando Pio. Nas 19 páginas que Pereira da Costa dedica a Muniz
Tavares, ele não faz somente o estabelecimento de datas, mas, também enfatiza algumas
relações de Francisco Muniz Tavares com os eventos dos quais participou.
4 Ministério da Educação e Cultura. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional (DHBN), Coleção de
documentos referentes à Revolução Pernambucana de 1817. Consultado por meio da Hemeroteca da
Biblioteca Nacional, disponível em: http://bndigital.bn.br/acervo-digital/documentos-historicos/094536.
Acessado em 27/07/2018.
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Pereira da Costa efetua algumas problematizações. A que ocupa a maior parte do
texto versa sobre a conjuntura política pernambucana em torno do sete de setembro de
1822. O historiador faz menção às independências dos Estados Unidos e da América
hispânica. Insere a Revolução Pernambucana de 1817 nessa conjuntura. Chega a fazer
uma análise acerca dos conflitos envolvendo a figura de Luiz do Rego Barreto, até então
governador da província, e parte da população pernambucana em 1821, segundo Pereira
da Costa, conflitos acentuados por conta das atitudes repressivas do governador ao
movimento da Serra do Rodeador, em Bonito-PE (COSTA, 1982, pp. 335-340).
Demonstrando seu trabalho de historiador, Pereira da Costa fala algumas vezes
de suas fontes. Cita a obra de Martins que falamos acima. Na análise sobre a Revolução
de 1817, utiliza como uma de suas referências a obra de Muniz Tavares sobre o
movimento5 (COSTA, 1982, pp. 336-337). Jornais também aparecem no fragmento
biográfico sobre o Muniz Tavares, principalmente quando trata de enaltecê-lo.
Mas, é importante dizer que ainda que possua essas problematizações, bem
concisas por sinal, o texto de Pereira da Costa não se diferencia tanto do de Martins. A
estrutura é a mesma, e a função também, heroicizar o biografado, como no trecho em
que diz“[...] os heróis de 1817 tiveram a sua apoteose em 1822” (COSTA, 1982, p.
337). Muniz Tavares, como participante direto do lado dos revolucionários, seria um
desses heróis, que tivera papel importante na formação da pátria. Um símbolo da
construção nacional.
Muitas dessas informações apresentadas por Pereira da Costa podemos encontrar
em outro livro. Sob o título de Dicionário Bibliográfico Brasileiro, Augusto V. A. S.
Blake traz em seu texto, publicado em 1895, diversas informações biográficas de vários
personagens na história do Brasil até aquele período. Mais que isso, traz uma lista de
títulos bibliográficos de autoria desses biografados, lista que em nenhum trabalho
precedente esteve presente na historiografia brasileira.
5 Nos referimos aqui a obra História da Revolução de Pernambuco em 1817, publicada pela primeira vez
em 1840. É considerada a primeira história sobre a Revolução Pernambucana de 1817, referência básica
para quem quer estudar o movimento. A edição mais completa e recente foi publicada em 2017, pela
Companhia Editora de Pernambuco (CEPE), já em sua quinta edição.
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Blake efetua mais apontamentos em relação à carreira de Muniz Tavares do que
um enaltecimento de suas ações. De fato, o texto não trata de heroicizar o biografado.
Todavia, é importante ter em mente que ao colocar um pequeno texto biográfico sobre
Muniz Tavares, Blake já está valorando-o socialmente. Inserindo-o na categoria de
intelectuais da sociedade brasileira do XIX, que produziram conhecimento interveniente
nessa mesma sociedade.
Blake também trata de efetuar dois esclarecimentos cronológicos acerca da vida
de Muniz Tavares, em relação às datas de seu nascimento e sua morte. Quanto à
primeira, Blake afirma que Muniz Tavares “[...] nasceu a 16 de fevereiro de 1793 [...] e
não a 27, como alguns pensam, sendo este, porém, o dia em que foi batizado” (BLAKE,
1895, p. 59). Não é possível distinguirmos a quem Blake se refere.
Quanto à data de morte de Muniz Tavares, Blake afirma que fora no ano de 1875
(BLAKE, 1895, p. 497). Esta afirmação é importante, pois se tem reproduzido um erro
com relação a esta data. Talvez, este erro tenha tido seu início no texto de Pereira da
Costa, que consta o ano de 1876 (COSTA, 1982, p. 350).6 Neste mesmo texto, Pereira
da Costa, além de reproduzir esta informação incorreta, faz uma confusão com as datas,
ao afirmar que Muniz Tavares morrera com oitenta e um anos (COSTA, 1982, p. 351).
Se isto fosse verídico, para ter morrido em 1876 com oitenta e um anos, o monsenhor
teria de ter nascido no ano de 1795. E, se considerarmos a morte de Muniz Tavares em
1875, como afirma o seu inventário post mortem7, ele já estava com 82 anos de idade, já
que seu nascimento foi no mês de fevereiro, e sua morte em outubro, e não com oitenta
e um anos, como afirma Pereira da Costa. Em suma, Francisco Muniz Tavares nasceu
em 1793, aos 16 de fevereiro. E morreu em 1875, com oitenta e dois anos, como afirma
seu inventário.
Feito esse esclarecimento, um tanto positivista de nossa parte, ao nos atermos
com afinco às datas, passemos aos outros textos biográficos sobre Francisco Muniz
6 Para exemplificarmos, é possível ver esse erro nos fragmentos biográficos presentes nos websites do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e no da Câmara dos Deputados Federais,
respectivamente: https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/FMTavares.html; http://www2.camara.leg.br/a-
camara/conheca/historia/presidentes/francisco_tavares.html. Acessados em 03/08/2018. 7 O inventário de Francisco Muniz Tavares se encontra no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
Pernambucano-IAHGP. CIT – Coleção de Inventários e Testamentos, caixas 236, 237 e 244.VRS2, 1875-
1876.
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Tavares. Em 1994, o escritor e historiador Fernando Pio publicou os Apontamentos
Biográficos do Clero pernambucano, estruturado aos moldes das obras de Dias Martins,
de Pereira da Costa e de Blake. Trata-se de um resumo de informações sobre vários
componentes do Clero. Em relação a Francisco Muniz Tavares, as informações não
diferem muito de outras obras, na verdade, muitas são repetidas. Ao fim de sua
explanação sobre o monsenhor, Fernando Pio crava que “há vasta bibliografia sobre a
vida deste sacerdote” (PIO, 1994, p. 838). Consideramos que não existe uma vasta
bibliografia sobre Francisco Muniz Tavares. Pelo contrário, são poucos os textos que
falam de sua trajetória de vida.
É importante notar, como você caro leitor já deve ter notado, que demos um
grande salto temporal. Entre a publicação de Blake e a de Pio tinha se passado quase um
século. No entanto, a apresentação do texto de Pio seguiu a mesma estrutura. Na
próxima seção se verá que o momento dessa publicação não condiz com as tendências
historiográficas sobre a constituição de biografias. Desse modo, é difícil encontrar
motivações que expliquem os porquês da publicação de Pio possuir a mesma estrutura
de outras, publicadas quase um século antes.
A bem da verdade, ao olhar o texto de Pio, vemos que se trata de uma cópia de
partes dos textos que antecederam-no, pelo menos o que se refere a Francisco Muniz
Tavares. Vale ressaltar que a publicação dos Apontamentos Biográficos... foi após a
morte de seu autor, acontecida esta em 1987, quando Pio estava com oitenta e um anos
de idade. É possível que o autor não tenha percebido a retomada do gênero biográfico
pelos historiadores na Europa, que segundo Del Priore (2009, p. 9), se iniciou na década
de 1970, e se consolidou na de 1980.
Assim como essa publicação de Fernando Pio, as posteriores a ela seguiram a
mesma lógica, uma cópia de informações presentes em biografias anteriores. É o caso
da Breve História Ilustrada do IAHGP, publicada no ano de 2010, antecipando às
comemorações do sesquicentenário desta instituição, que viera acontecer em 2012. O
texto comemorativo sobre Muniz Tavares destacou vários pontos da vida dele e
enalteceu suas ações quando presidente daquela instituição. Trouxe também, a
transcrição de uma parte de seu discurso de posse, tomada em 21 de setembro de 1862
9
(GALVÃO et al., 2010, pp. 37-39). Também é o caso do texto biográfico mais recente,
presente na Apresentação da quinta edição da História da Revolução de Pernambuco
em 1817, publicada em meio às comemorações do bicentenário dessa revolução. As
páginas destinadas às informações biográficas sobre Muniz Tavares são poucas, e como
em textos anteriores, concisas (SOUZA, 2017 pp. 18-21).8
Muitas informações parecem mesmo derivar dos primeiros textos, aqueles de
Dias Martins e de Pereira da Costa. Isto pode ser um indicativo do quanto esses
primeiros textos influenciaram as publicações posteriores, que possuem a mesma
estrutura de apresentação, ainda que, com algumas variações, como é o caso do escrito
mais recente.
Em geral, são estruturadas em apresentação de datas e eventos, não abrangem as
relações do monsenhor com os outros indivíduos e não ampliam o foco de abordagem
para as ideias circulantes no período, não possuem uma análise profunda em relação à
trajetória de vida dele. Talvez isto se deva por estarem presentes em trabalhos mais
amplos, como dicionários ou história de algumas instituições. Por ter outro foco, é
compreensível que o espaço destinado a falar sobre Francisco Muniz Tavares nessas
obras, tenha sido pequeno.
Deixamos um vazio neste texto ao dar um salto de um século entre as biografias
de Blake e de Pio. Não efetuamos uma abordagem das compreensões acerca do gênero
biográfico ao longo do século XX. É isso que começamos na seção seguinte, tentando
também demonstrar alguns delineamentos das possíveis compreensões hoje.
3. O gênero biográfico do século XX aos dias atuais (diálogo de biografia e
Micro-história).
Falamos na primeira parte desse artigo que uma das principais motivações de
repúdio ao gênero biográfico pelos historiadores, ainda no século XIX, fora causado por
conta da história ter-se tornado uma disciplina e monopólio acadêmico. Mas o golpe
mais forte ao gênero biográfico, pelos historiadores, agora considerados profissionais,
viria no século XX, com a ascensão dos Annales. A primeira geração, destaque para a
8 A apresentação desta edição foi escrita pelo historiador George Félix Cabral de Souza, por isso a
referência a ele e não a Francisco Muniz Tavares, que é o autor da História da Revolução...
10
figura de Lucien Fébvre, ainda que não tenha rejeitado como um todo o gênero
biográfico – tanto é que este historiador escrevera dois textos de cunho biográfico9 –, já
dava sinais de uma valorização aos estudos que privilegiavam tempos longos e
estruturas sociais mais amplas. Isto, na medida em que se tentava rejeitar a utilização da
narrativa e o acontecimento na historiografia.
No entanto, foi a segunda geração dos Annales, encabeçada por Fernand Braudel
e Ernest Labrousse, que aplicou uma maior rejeição ao gênero biográfico na
historiografia francesa. Ao valorizar a história serial e quantitativa, trouxe à história as
massas, porém, tendeu a retirar-lhe as faces humanas, segundo Hebe Castro (1997, p.
50). As abordagens que prezavam pela análise estruturalista tornou a história um campo
avesso ao individual.
A partir das décadas de 1970 e 1980 o paradigma dos Annales opera várias
mudanças. A terceira geração, a partir da organização de Jacques Le Goff e Georges
Duby, se mostra mais aberta a outras possibilidades historiográficas. Estes, chegaram
até a publicar alguns textos biográficos10, demonstrando deixar de lado as análises
estruturais e de longa duração em prol de um estudo em menor escala de tempo e de
espaço.
É importante ressaltar que esta abertura dos Annales às novas possibilidades não
se deu sem as pressões de críticas recebidas. Não é nosso objetivo aqui demonstrá-las,
mas, é importante ter em mente que as críticas tecidas pelo movimento do Linguistic
Turn, dentre outras, foram preponderantes. É de se notar que essas produções dos
Annales não mais tratam de heroicizar o biografado. Tampouco tratam de tentar
fornecer um exemplo a ser seguido. As biografias passam a ser utilizadas para se fazer
inteligível um período e/ou um espaço social. O indivíduo passa a ser analisado não em
contraposição à sociedade, mas, inserido nela.
Nessa retomada do gênero biográfico pelos historiadores, o papel da Micro-
história italiana foi fundamental. Ao centrar suas análises nas individualidades, nas
9 Nos referimos aqui às obras: Un destin, Martin Luther. Paris, PUF, 1928, reedição 1988. E Le problème
de l’incroyance au XVIIe siècle. La religion de Rabelais. Paris, Albin Michel, 1942. 10 Nos referimos aqui às obras: DUBY, Georges. Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo.
Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988. LE GOFF, Jacques. São Luis: biografia. Rio de Janeiro: Ed. Record.
2010. Idem. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Ed. Record. 2010.
11
vivências dos sujeitos em relação à sociedade e trazendo para a historiografia a vida de
indivíduos de classes populares, a Micro-história demonstra o que talvez seja o
principal aspecto das biografias históricas hoje, o de não mitificar as ações dos
indivíduos, mas sim, problematizá-las, ao mesmo tempo em que tenta demonstrar as
inúmeras significações que elas possuem.
*****
Na relação entre indivíduo e sociedade, entendida esta última também por
sistema normativo, a abordagem micro-histórica objetiva definir as liberdades dos
indivíduos pelas brechas e contradições de um sistema normativo, segundo Giovanni
Levi (1992, p. 135), um dos fundadores da Micro-história:
Seu trabalho [dos micro-historiadores] tem sempre se centralizado na busca
de uma descrição mais realista do comportamento humano, empregando um
modelo de ação e conflito do comportamento do homem no mundo que
reconhece sua - relativa - liberdade além, mas não fora, das limitações dos
sistemas normativos prescritivos e opressivos.
Para o mesmo historiador, a biografia seria “[...] o campo ideal para verificar o
caráter intersticial – e todavia importante – da liberdade de que dispõem os agentes e
para observar como funcionam concretamente os sistemas normativos, que jamais estão
isentos de contradições” (LEVI, 2006, p. 180). Para conseguir definir a liberdade dos
agentes frente ao sistema normativo, é necessário ter em mente as redefinições operadas
pela Micro-história de dois conceitos.
A primeira seria a de estratégia social. Segundo o historiador Jacques Revel,
como as fontes apresentam por si mesmas alternativas e incertezas com que os atores
sociais se defrontam, o historiador utiliza mais comumente duas concepções de
estratégia social: a que qualifica, de forma prosaica, os comportamentos dos sujeitos
individuais ou coletivos que foram bem sucedidos, e a que pressupõe uma hipótese
funcionalista, espécie de utilização dos meios pelo ator social para se sobressair em
meio a outros sujeitos. Pondo em destaque uma riqueza de significações nas ações dos
indivíduos, a Micro-história propõe uma postura antifuncionalista, e mais que isso, ao
demonstrar uma pluralidade de destinos particulares, busca formular inúmeras
possibilidades, de acordo com os meios que cada sujeito possui (REVEL, 1996, p. 26).
12
A segunda redefinição operada pela Micro-história na relação indivíduo e
sistema normativo seria a de contexto. Nas ciências sociais, mormente na história, esta
noção foi objeto de três utilizações segundo Revel (1996, p. 27): uso retórico, no qual o
contexto produz uma realidade; uso argumentativo, neste caso, o contexto produz um
condicionamento social; uso interpretativo, nessa utilização, a compreensão é de que o
contexto produz razões que permitem explicar situações particulares envolvendo os
sujeitos históricos. Em suma, estas utilizações partem da compreensão da existência de
um contexto unificado e homogêneo, o qual determinava as escolhas dos atores sociais.
A Micro-história rejeita essas formas de uso por entender que o contexto é criado a
partir da multiplicidade de experiências e representações sociais dos sujeitos, desse
modo, pretende constituir inúmeros contextos, e não um unificado.
A nosso ver, na escrita biográfica, as noções de estratégia social e contexto são
noções próximas, se relacionam, pois, compreendemos que os indivíduos escolhem as
estratégias sociais levando em consideração os contextos. Partimos da ideia de que, se
os indivíduos constroem os contextos, estes, também exercem pressões nas escolhas
deles. A Micro-história expõe esta ideia ao dizer que, “[...] toda ação social é vista
como o resultado de uma constante negociação, manipulação, escolhas e decisões do
indivíduo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa, não obstante oferece
muitas possibilidades de interpretações e liberdades pessoais” (LEVI, 1992, p. 135).
Ainda segundo Levi (2006, p. 180), “há uma relação permanente e recíproca
entre biografia e contexto [...]”. Ao que parece, isso advém do aceitamento de que, para
tecer a história de uma trajetória de vida é necessário também analisar o entorno do
biografado, a conjuntura e a estrutura, tendo em vista o contexto não como
condicionante das escolhas, mas como espaço de possibilidades ao indivíduo.
Para a análise daquilo que está em volta do sujeito, a Micro-história fornece uma
ferramenta teórico-metodológica bastante útil, a variação da escala de observação. Esta
permite ao historiador investigar tanto a esfera micro quanto a esfera macro-histórica.
Antes de antagônicas, estas duas esferas se aproximam, podem ser complementares.
Desse modo, o que a Micro-história opera ao modificar a escala de observação é uma
outra redefinição, a da hierarquia de níveis de vivência dos indivíduos.
13
Se a história serial e quantitativa francesa contrapunha a história nacional à
local, na Micro-história não há esta contraposição. Isto porque há a compreensão de que
os atores sociais participam, próximos ou distantes, de diversos níveis de vivência, seja
ele local, nacional ou global (REVEL, 1996, pp. 27-28).
Em suma, compreendendo que as esferas micro e macro-históricas podem ser
complementares, já que os agentes sociais participam de diferentes níveis
simultaneamente, a modificação da escala de observação é uma contribuição teórico-
metodológica importante na confecção de textos biográficos. Por meio dessa
modificação, poderemos talvez perceber como as ações e ideias do biografado podem
ser representativas de possíveis modelos/regularidades e também visualizar a
complexidade que há na relação do sujeito com a sociedade e eventos ao seu redor.
Considerações finais.
As biografias históricas não intentam mais somente contar a vida de alguém. O
foco passou a ser outro. O de analisar a relação do indivíduo com a sociedade em que
ele se insere, com os eventos contemporâneos a ele e com os grupos sociais os quais fez
parte. O objetivo das biografias se um dia foi o da construção de símbolos para a
construção nacional, hoje, ele não pode girar em torno da mitificação e do
engrandecimento das ações dos sujeitos.
Consideramos que o principal ponto de discussão na construção biográfica hoje,
deva ser o da análise do indivíduo dentro das limitações impostas pela malha social.
Ainda que o sujeito possua determinado grau de liberdade dentro dessa malha, suas
escolhas passam pela consideração das limitações que ela impõe. Tentar perceber o
entrecruzamento entre essa liberdade e essas limitações dentro da documentação
histórica, parece ser a tarefa mais complexa no fazer de biografias históricas.
Não custa lembrar que a biografia ainda pode ser considerada como um gênero
literário, ficcional, mas, se se pretende a construção de uma biografia histórica, sua
ligação com a verossimilhança é indispensável. E esta ligação se faz presente no trato
documental pelo historiador que se envereda em analisar uma trajetória de vida. Antes
de se tentar aplicar inúmeros conceitos às ações e ideias do biografado, é necessária
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primordialmente, a pesquisa empírica. Dessa forma, a biografia a ser construída estará
mais próxima do intento historiográfico, o estabelecimento da verossimilhança.
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