Post on 31-Jul-2015
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Jackson Braga
Disponível para venda em: Bookess Editora:
http://www.bookess.com/read/17708-emilio-e-os-lumens-o-quinto-poder/
Livraria Cultura:http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?
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Blog do Livro:
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
JACKSON BRAGA
Emílio e os Lumens:
o Quinto Poder
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
Para Eliane, meu amor eterno.Para Letícia e Catarina, amadas filhas que inspiraram este sonho.Para Miguel Arcanjo, o mais novo tesouro de Deus em minha vida.
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Jackson Braga
Agradeço a Marcos Freitas, um mestre das letras, o primeiro com quem compartilhei as ideias da Acrópole e que me deu a honra da revisão deste livro e frutuosas contribuições.
A todos os lumens que ainda estão por aí a espera de alguém que lhes ajude a revelar sua aura de poder, o meu sincero agradecimento. O amor e a sabedoria estejam com vocês!
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
SumárioPrólogo, 09
Capítulo 1 – O encontro no Liceu, 13
Capítulo 2 – O Morro dos Mil Becos, 55
Capítulo 3 – O encontro na Ágora e as mensagens do Lógos, 66
Capítulo 4 – Luminous, a Cidade-escola, 92
Capítulo 5 – As Três Torres e os primeiros amigos, 115
Capítulo 6 – A aula inaugural na Casa do Saber, 127
Capítulo 7 – O atentado na escada das Gárgulas, 159
Capítulo 8 – A Área Subterrânea e a Câmara de Biblion, 168
Capítulo 9 – O ataque dos dragões no Lago de Narciso, 188
Capítulo 10 – O passeio na floresta e o monge solitário, 212
Capítulo 11 – Aulas de portas-passagens e a perseguição pelo mundo, 240
Capítulo 12 – O relato de habilidades e Rugby na Nova Zelândia, 276
Capítulo 13 – Morte e fuga no hospital da Cracóvia, 313
Capítulo 14 – O banho nas fontes e a pista da ilha perdida, 337
Capítulo 15 – As chaves prateadas e os traidores de Luminous, 356
Capítulo 16 – Retorno à Área Subterrânea e a religiosa visitandina, 397
Capítulo 17 – O encontro na Casa dos Alfaiates e a festa na caverna, 423
Capítulo 18 – O grupo de estudo e a preparação para o Torneio, 446
Capítulo 19 – O Torneio de Auraball, 469
Capítulo 20 – A pista de Ermenonville, 508
Capítulo 21 – O acampamento na floresta e a arte da guerra, 546
Capítulo 22 – O jogo da mandala e o dragão europeu, 576
Capítulo 23 – As aulas do Trivium, Quadrivium e o cuidador traidor, 616
Capítulo 24 – A Torre do Relógio e o Quinto Poder, 633
Capítulo 25 – O confronto na Torre do Relógio, 653
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Prólogo
EM 2 DE ABRIL DE 1762, em Paris, um jovem tipógrafo
chamado Rey atravessa os portões de ferro de um antigo orfanato
e dirige-se apressadamente às portas de entrada. Antes de tocá-las,
certifica-se em meio à escuridão se alguém o segue. Trêmulo,
assusta-se quando uma religiosa visitandina o acolhe.
– Não há ninguém aí. Tenha calma, sr. Rey!
– Desculpe, irmã. Receio que alguém tenha me seguido...
Você tem certeza que encontrou o primogênito dos irmãos?
– Sim, o sinal indicado pela mãe corresponde ao que eu
encontrei na mão direita da criança. E os quatro irmãos? Nada
devem saber?
– Não! Esse menino é apenas o portador da chave. Temos
que assegurar que ele e seus descendentes sejam preparados para
proteger a chave até a sua sétima geração, quando, então, o
guardião nascerá. Nós enviaremos ajuda para ele e os irmãos;
porém, esta é a última vez que a procuro.
– E os livros?
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
– Estão seguros. Nos próximos dias, dois novos livros serão
lançados. Com eles, inevitavelmente, a vontade de todos será
movida para o desejo de liberdade e de busca da sabedoria.
Finalmente, irmã, os sistemas de controle social vigentes entrarão
em colapso e virá uma nova ordem, um novo tempo, uma
sociedade do conhecimento; assim a chamam na Acrópole.
– E as cidades-escolas? Já sabem?
– Sim. Todas estão em festa... O primeiro livro já me foi
confiado. O segundo será publicado daqui a algumas semanas.
Eles nos permitirão propagar novas teorias sobre educação,
política e filosofia ainda não conhecidas que suscitarão grandes
homens e mulheres. Teremos uma mudança que surgirá no bojo da
revolução das máquinas criada pelos sophistas que estão na
Inglaterra.
– Pena que o pai das crianças não compreenda o que está
acontecendo...
– Nem mencione isso! Ele é incapaz de criá-los e não virá
buscá-los. Não espere! Os cinco irmãos serão adotados em breve.
Já providenciamos. Além disso, após a publicação dos dois livros,
a vida do pai deles correrá muitos riscos. Provavelmente, ele se
refugiará em Londres.
– Por Deus, o que pode justificar o abandono de cinco
filhos?
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Jackson Braga
– Talvez o fato de ter perdido a mãe ao nascer e o exílio do
pai da tão amada Genebra quando criança o tenham marcado com
tanta intensidade que sua alma jamais encontrará repouso neste
mundo... É o que sei.
– Mesmo assim, não entendo.
– A mente humana, irmã, é cheia de labirintos e ainda não
há livros na Acrópole que expliquem seu funcionamento. O fato é
que não podemos julgá-lo... A história o julgará. Apenas faça o
que tem que ser feito, irmã.
– Não se preocupe, sr. Rey. Será feito. No momento certo
entregarei a chave à criança. Mas como ela saberá a localização do
terceiro livro?
– Não saberá até a sétima geração. O livro libertará o
Quinto Poder. O pai dele acha que o terceiro livro foi queimado.
Mas não foi. Eu o entreguei ao filósofo-rei da Acrópole que o
escondeu. A tradição oral que acompanhará a chave do livro será
uma profecia, assim como sempre foram as grandes verdades.
– Quem a conhece?
– Poucos em nosso mundo. Alguns Mestres das Ordens da
Cidade-Escola de Luminous foram escolhidos para propagá-la nos
anos vindouros.
– O senhor a leu?
– Sim. E é vontade do filósofo-rei que você a conheça. O
oráculo diz: “O terceiro livro está no meio do mundo, escondido
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
onde o tempo é contado, lá onde se viu o grande rompimento entre
o Homem e a Natureza. Na descendência do pai dos povos antigos
está o nome e a missão dos teus antepassados. Aquele que guarda
a chave abrirá o livro e o quinto poder será libertado para unir
mais uma vez corpo, alma e espírito a fim de que o mundo seja
salvo”. Isso está escrito em grego antigo neste pergaminho que lhe
confio junto com a chave do terceiro livro.
Despediram-se. A visitandina, antes de fechar a porta,
lançou o último olhar sobre Rey caminhando em direção ao portão
sob a fina camada de névoa em que desapareceu. Sentiu que o véu
do tempo cairia sobre suas vidas silenciando os acontecimentos de
então até o dia em que alguém receberia a chave para abrir as
páginas de um livro que mudaria os rumos da humanidade.
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Capítulo 1O encontro no Liceu
NUMA TARDE DE INVERNO do mês de maio, no ano de
2012, Brasil, na Cidade Luz, Terra do Sol, um homem vestido à
francesa com elegante terno bege, um chapéu panamá, uma maleta
de couro ecológico e um guarda-chuva atravessa a rua em direção
ao Liceu, uma velha escola pública fundada, sob o domínio da
coroa portuguesa, em 1844 (a terceira daquele país). Ao subir as
escadarias, parou admirando com um discreto sorriso o lema da
escola escrito em latim: LUMEN AD VIAM.
Como se fosse esperado por todos, cumprimentou aqueles
que encontrou pelo caminho inclinando levemente a cabeça e
tocando sutilmente o chapéu. Sem demora, percorreu o corredor
direito e com precisão de tempo, ao toque do início da aula,
adentrou a sala 13 e foi direto à mesa do mestre, deitando sobre
ela seu guarda-chuva e sua maleta.
Os alunos entreolharam-se com risos e cochichos em razão
do traje incomum que usava. Não se intimidou; não disse uma só
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
palavra. Logo tirou o paletó, olhou-o à distância do braço, e
mergulhando na curiosidade dos estudantes, ensaiou um sorriso,
arremessando o casaco ao porta-chapéus no canto direito.
Ninguém se lembrava da existência daquele objeto antes de tê-lo
visto entrar.
O lançamento certeiro atraiu a atenção de todos. Lá atrás,
houve até quem comentasse: “Duvido que ele faça isso de novo!”.
Como se tivesse ouvido a provocação, tirou o chapéu, fez pontaria
e lançou-o com perfeição, arrancando aplausos e causando
verdadeira euforia. Parecia um bom truque de mágica. De braços
abertos, inclinou-se para a turma de adolescentes – agora uma
plateia sorridente – pronunciando em tom mediano: “Obrigado!
Obrigado! Obrigado!”. Em seguida, ele os saudou:
– Boa tarde, meninos e meninas! O amor e a sabedoria
estejam com vocês!
Eles acharam aquela saudação esquisita. Ninguém a
respondeu. Alguns riram baixinho perguntando se não estariam na
sala errada ou o que significaria o uso de palavras tão inabituais
para uma turma de adolescentes.
Ele, porém, abriu os braços, olhou para a calça e os sapatos
respingados de chuva e continuou:
– Que bela chuva para recepcionar o novo professor de
filosofia, hein?
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Jackson Braga
Antes que pudesse continuar, alguém bateu à porta. Era o
diretor do Liceu, Hugo Casto. Homem bem-humorado, tranquilo,
senil, mas robusto, encorpado, vestia-se à moda antiga e era
sempre cheio de histórias para contar. Entrou com seu sorriso
costumeiro saudando os alunos e conferindo as horas num antigo
relógio de bolso.
– Boa tarde, permita-me entrar, professor. O senhor é
realmente muito pontual. Perdoe-me por não tê-lo precedido em
sala. A propósito... – ressaltou inspecionando o traje do novo
professor – belo terno! Há anos não vejo nenhum professor vir
trabalhar de forma tão elegante.
Ele agradeceu inclinando a cabeça.
Voltando-se à turma, disse o diretor:
– Olá, meus caros alunos! Quero que conheçam o professor
Louis Wallace. Ele irá substituir temporariamente nosso
convalescente professor Baltasar. Recebi inúmeras recomendações
de sua pessoa e de seu trabalho. Não sei de onde vieram tantas
cartas. Até mesmo o Procurador Geral do Estado o recomenda.
Aliás, além de professor de filosofia, ele é excelente poliglota.
Inclusive, sabe grego e latim, e já viajou mais pelo mundo do que
vocês todos juntos possam viajar a vida inteira.
– Fala sério! – exclamou um aluno com um ar de deboche.
– Bem, está no currículo dele! Ah, isso me faz lembrar que
meu bisavô também estudou nesta escola e...
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
– Senta que lá vem história! – gritou um engraçadinho no
fundo da sala, antes que o diretor terminasse sua fala.
– Foi professor de latim, uma língua morta – concluiu.
– Uma língua viva de onde venho! – comentou o novo
professor.
– Sério? – admirou-se o diretor, torcendo o pescoço para
trás, disfarçando sua descrença.
– Hum... sim. Mas temos tradução simultânea. Facilita a
assimilação – explicou constrangido passando a mão no cabelo.
O diretor não se convenceu. Os alunos também não.
– Ah... saibam, crianças, que essa língua é porta para
aprender rapidamente outros idiomas como esses que vocês
estudam hoje: português, francês, italiano, espanhol... Por isso,
aproveitem a estada do nosso professor substituto e o
acompanhem na busca pela sabedoria. É só isso e... boa aula a
todos!
– Agradeço por vir me receber, senhor diretor. Sei que é um
homem muito ocupado.
– É uma honra, professor – respondeu ele com as mãos
postas nas abas do velho paletó.
Antes de se retirar, ele deu um passo para trás, arregalou os
olhos e cochichou no ouvido do novo professor:
– Não se impressione com eles. Esta turma é... especial!
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Jackson Braga
– Especial? Refere-se aos alunos do programa de
intercâmbio? – estranhou Wallace.
– Não exatamente. Eles são um tanto inquietos, se é que me
entende... – disse levantando as sobrancelhas com um ar descrente
e com o ombro encostado em Wallace.
– Ah, sim! Agora entendi! Agradeço o conselho.
O diretor encaminhou-se para a porta. Virou-se uma última
vez e perguntou:
– Desde quando aquele porta-chapéus está ali?
Os alunos abafaram o riso.
Após a saída do diretor, os estudantes começaram a fazer
barulho: abriam as mochilas, falavam alto, jogavam papel,
mexiam as carteiras e comentavam sobre o novo professor.
Irritado com a algazarra, ele franziu a testa e bradou
fortemente imobilizando a turma num invólucro de silêncio.
– Ei! Tenham calma! Vocês parecem soldados enfileirados
no momento em que o capitão autoriza “descansar” e, quando se
retira, tudo vira bagunça! – desabafou simulando gestos de um
soldadinho fazendo continência. – Parem! Agora, olhem comigo
para... – foi até a janela com o dedo elevado para o céu – o
Universo!
– É mais um maluco! – comentou ao acaso um aluno na
primeira fila.
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
– Sim, olhem para o Universo! – repetiu entusiasmado
enquanto a turma esticava o pescoço na esperança de se deparar
com alguma coisa extraordinária no janelão. – Olhem para o nosso
sistema solar, para a Lua, para as estações do ano... Percebam
como os antigos gregos, os primeiros filósofos, que há uma ordem
no mundo. Sim, eu repito: há uma ordem no mundo! E tudo ao
redor de vocês está em movimento e de forma cíclica, circular...
Entendem? Cíclica e circular...
O clima ficou esquisito. Ninguém se mexia. Ele continuou:
– Quero que imitem esse movimento do Universo. Mexam
as cadeiras! Façam um círculo! Vamos, façam! – repetiu com
autoridade, erguendo as mãos como um maestro diante da
orquestra.
Rapidamente, como por brincadeira, pareciam quebrar um
protocolo indesejado e formaram um círculo. Então, disse:
– Vocês não são mais um exército sob as ordens de um
general. Não. Esqueçam isso! Agora, vocês estão sentados e
organizados numa disposição celestial. Assumiram o mesmo
arranjo do Cosmos. Por isso, considerem-se cidadãos do Universo
dotados da capacidade de sentir, de pensar, de agir! Estão em
sintonia com tudo e todos. Compreendem isso?
– Sim! – gritaram unânimes.
Estavam encantados. Nunca imaginaram que um círculo
escolar tivesse tanto significado. Todavia, foi a segurança de suas
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Jackson Braga
palavras e a firmeza de seus gestos que os fizeram permanecer
calados.
Ele aproveitou a oportunidade e prosseguiu:
– Em minhas aulas, de hoje em diante, devem ficar
organizados assim! Deixem que a mesma força que perpassa todas
as coisas agora perpasse também a mente e o coração de vocês. E,
por favor, falem um de cada vez! Sintam e só depois falem!
– Professor, meu nome é Lavínia Gomez – disse,
levantando a mão, uma menina com deficiência visual na primeira
fila. – Sinto que o senhor é muito especial. O senhor vai nos falar
de Deus?
– É um prazer conhecê-la também, senhorita Lavínia
(sorriu). Você identificou a força que falei há pouco com a ideia
ou a pessoa de Deus – respondeu o professor com suavidade,
elevando o braço e cerrando o punho em direção a todos. –
Podemos, em minhas aulas, falar não de Deus propriamente, mas
da ideia que temos dele.
– Como assim?
– Os judeus, os mulçumanos, os cristãos e alguns filósofos
têm muito a nos dizer. Porém, noutro momento.
– Entendi, professor – respondeu Lavínia.
– Agora, peço a você e aos demais que sintam a afirmação
que vou escrever nessa ferramenta medieval que os professores
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
adoram – disse apontando para o quadro-negro. – Sintam esta
frase: “Conhece-te a ti mesmo!”.
Os alunos, com exceção de Lavínia que a repetia baixinho,
fitaram os olhos no quadro-negro como se olhassem para o
espelho do próprio universo interior.
– Não quero que apenas leiam ou raciocinem sobre essa
frase de mais de 2.500 anos. Conhece-te a ti mesmo! – afirmou
com intensidade. – Quero que a sintam! Conhece-te a ti mesmo! –
repetiu, mas desta vez com brandura. – Deixem-na pulsar dentro
de vocês! Conhece-te a ti mesmo! – frisou novamente em tom
baixo. – Façam exatamente o que fez Sócrates, o grande filósofo
da Grécia Antiga, ao lê-la no portal do Templo de Delfos.
Houve um silêncio...
– Saibam, meus queridos iniciantes, que vocês não são
“alunos” – escreveu no quadro. – Do latim alumnus ou “criança de
peito, lactente, discípulo”. Não! Bobagem! – riscou o quadro. –
Como filósofo, afirmo que não os vejo assim tão indefesos para
serem nutridos intelectualmente por seus professores. É um nome
inadequado à grandeza, ao brilho interior de vocês!
– É verdade, professor! – interrompeu Lavínia levantando a
mão. – A maioria não acredita que tenhamos algo a oferecer,
prefere encher nossa cabeça com fórmulas...
– Posso assegurar que Sócrates nunca usou um machado
para abrir a cabeça de ninguém! Numa situação como essa, ele
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Jackson Braga
diria que o conhecimento já está dentro de vocês. Por isso,
comparou a missão do filósofo ou do professor à de uma parteira...
Como a parteira ajuda a mulher a dar à luz uma criança, assim,
compete ao professor ajudá-los a dar à luz o conhecimento, e não
enfiá-lo goela abaixo!
– Isso! – gritou uma garota próxima à porta de entrada.
– Fica quieta, Bianca! – exigiu sua amiga, batendo
levemente a mão na cadeira.
– Gosto de pensar que vocês são... – continuou o professor
– pontinhos de luz no mundo. Têm brilho próprio.
Eles sorriram.
– De onde venho, vocês são chamados de lumens, pois
iluminam o mundo. Posso dizer que minha missão aqui não é
transmitir verdades. Quero apenas que cada um conheça a si
próprio, conheça o mundo natural que existe antes de nós, o
cultural criado por nós e decida que tipo de sociedade quer
construir. Entendem?
Eles nem responderam.
– Dependendo da decisão que tomem... – insistiu – estarão
criando novas forças e mobilizando as que já existem! Elas se
unirão a vocês ou os combaterão, de forma que não há como
ninguém ficar indiferente nessa construção monumental que
levará toda a nossa vida, toda a nossa história e envolverá tudo e
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
todos, desde nossos pensamentos e sentimentos até nossas ações.
Mudar o mundo! Ouviram bem?
– Sim! – gritaram alguns admirados.
– Falando assim, professor, até parece que a filosofia é a
coisa mais importante da nossa vida – interferiu um aluno do
fundo da sala.
– Na verdade, não! Você, seja lá quem for, tem razão. Peço
apenas que considerem a filosofia como mais uma escada para
lhes ajudar a enxergar melhor e mais longe. Como diria Bernardo,
mestre inesquecível da famosa escola de Chartres da minha amada
França, no século XII: “Somos anões que subiram nos ombros de
gigantes. Desse modo, vemos mais e mais longe do que eles, não
porque a nossa vista seja mais aguçada ou a nossa estatura maior,
mas porque eles nos erguem no ar e nos elevam com toda a sua
altura gigantesca” – escreveu no quadro tão rapidamente que o giz
parecia estar se movendo sozinho. – As ideias desses gigantes, os
filósofos, estão vivas e iluminam nossa visão ainda hoje.
Acreditem! A verdade é que somos privilegiados, meus caros
pensadores do novo milênio. Somos privilegiados! Por fim,
saibam que a experiência em busca da sabedoria nos conduzirá,
em primeiro lugar, a perguntas como: “Quem somos? De onde
viemos? Para onde vamos?”. E cada um levará para casa a tarefa
de respondê-las... – encerrou seu discurso elevando os braços
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Jackson Braga
acompanhados pelos olhos arregalados dos seus novos
admiradores.
Nesse momento, muitos abriram a boca num ar de
descontentamento, como se aquela tarefa fosse realmente para ser
respondida em casa. Ele então corrigiu:
– Claro que me refiro à tarefa de respondê-las durante a
vida! E quando encontrarem alguma resposta, não se esqueçam de
me enviarem. Eu também ainda estou à procura.
Mais uma vez, uma atmosfera de silêncio tomou conta da
sala. Dentro de cada um deles, no entanto, reinava o caos; um
turbilhão de ideias, de insegurança, de medo, de sonhos... muitas
perguntas fervilhando ininterruptamente, pois nunca suas mentes
tinham sido encurraladas no quarto escuro da busca pela sabedoria
e do conhecimento de si. Nunca alguém tinha mostrado o valor de
suas vidas de forma tão simples e em poucas palavras. Nunca
tinham percebido com tanta clareza que suas escolhas e ações de
hoje teriam tanta repercussão no amanhã, não somente de suas
vidas, mas na de outras pessoas e do próprio mundo que os
cercava...
Se a maioria, ensimesmada, contemplava no velho quadro-
negro aquela frase perturbadora, um aluno, atônito, com as mãos
geladas e com o coração trepidando, tocava repetidas vezes, com a
lapiseira, a perna do vizinho... Sinalizava que aquela era
justamente a frase que ele lera alguns dias atrás na biblioteca e que
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
não lhe saía da cabeça, embora tentasse esquecê-la. E o mais
incrível: ele havia acabado de escrevê-la aleatoriamente no
caderno, antes do professor Louis Wallace mencioná-la. Algo
estava errado. Mas seu amigo não conseguia compreender as caras
e bocas que fazia. Maior foi seu assombro, quando o professor
recomendou para casa a leitura do Mito da Caverna, no Livro VII
da “República”, de Platão, ressaltando que talvez fosse uma das
mais poderosas metáforas imaginadas pela filosofia. Tal livro
encontrava-se em suas mãos. Tamanho foi o susto que o deixou
cair. Trêmulo, esforçou-se para apanhá-lo, derrubando as coisas de
sua carteira, distraindo a todos.
O professor aproximou-se e perguntou-lhe:
– Qual o seu nome, rapaz? – indagou ao agachar-se para
apanhar o livro.
– Emílio, senhor. Emílio D’Ara.
– Vejo que alguém aqui está bem adiantado no 8º Nível,
digo, 8ª ano – sinalizou à turma com o livro à mão. – É, meu caro,
muitas vezes parece que não escolhemos o livro, é o livro que nos
escolhe! Porém, o mais importante é que saiba que para ser feliz é
preciso resistir bravamente ao que querem fazer de você. Porque
você, e somente você pode empunhar a pena que vai escrever o
livro de sua vida, do mesmo modo que Platão escreveu o dele.
Compreende isso?
– Pena, professor? – perguntou um aluno confuso.
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Jackson Braga
– Pena, caneta... dá no mesmo! – disse alguém.
– Voltando à pergunta: compreendeu o que eu disse, garoto?
– A-acho que sim, senhor! – balbuciou apreensivo.
– Muito bem, Emílio. E isso vale para vocês também!
O professor Wallace deu seguimento a sua aula, mas aquela
frase marcara profundamente a alma de Emílio, um adolescente
que estava despertando para a filosofia. O fato de vê-la escrita no
quadro não podia ser obra do acaso, pois há uma semana aquela
ordem que Sócrates tomou para si como missão de vida não lhe
saía da cabeça; intrigara-o verdadeiramente. E o que pensar do
livro de Platão em suas mãos? Coincidência? Algo realmente
inusitado estava acontecendo...
Ao término da aula, antes que Emílio pudesse aproximar-se
do intrépido professor, ele lhe escapou sumindo rapidamente entre
os alunos.
– Irado! Esse professor vai fazer história no Liceu! –
exclamou William Thompson, amigo inseparável de Emílio. –
Você viu o que ele fez com o chapéu?
– Vi o que ele fez com a minha cabeça! – murmurou para si
mesmo enquanto guardava apressadamente seu material escolar. –
A gente se fala mais tarde, Will! Preciso esclarecer umas coisas
com o sr. Wallace.
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
Somente no corredor conseguiu alcançar o professor que
caminhava a passos largos.
– Professor! Professor! – gritou entre a multidão de alunos.
– Preciso lhe fazer umas perguntas!
– Oh, muito bem, meu caro! O verdadeiro filósofo sempre
traz consigo boas perguntas e muitos “porquês”. Creio que sua
capacidade de espantar-se com o mundo não esteja adormecida
como a da maioria. Mas o que deseja?
– Enquanto falava, o senhor disse exatamente uma frase que
eu estava pensando, ou melhor, que eu havia acabado de escrever.
– Refere-se àquela frase escrita lá na entrada da biblioteca,
o lema socrático?
– Sim, senhor!
– Só coincidência, não?
– Mas e o livro do tal Mito da Caverna? Eu estava com ele
debaixo do caderno. Como o senhor sabia? Foi direto à minha
carteira.
– Talvez apenas tenha sido guiado pelo Bem, Emílio. Por
um Bem Maior que talvez desconheça.
– Como assim, o Bem? Existe um Bem Maior?
– Trata-se da força de que lhe falei em sala – disse
colocando a mão no ombro de Emílio. – Ela está presente em
todas as coisas. Pessoalmente, eu a chamo de Lógos. E garanto
que ela orientará você. É para isso que estou aqui.
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Jackson Braga
– Mas como o Bem ou essa força, Lógos, pode orientar uma
pessoa, professor?
– Nós seremos interrompidos agora, Emílio. É necessário.
Mas não se preocupe. Voltaremos a conversar no momento
oportuno.
Mal fechara a boca, o diretor apareceu de súbito e tocou as
costas de Wallace. Emílio ficou espantado, deu um passo para trás
sem saber o que pensar. Novamente, fora surpreendido por algo
aparentemente sem explicação. O professor de filosofia sabia
exatamente o que iria acontecer.
– Prof. Louis Wallace! Queria mesmo falar com o senhor!
– Diretor Hugo Casto! – exclamou virando-se calmamente,
alargando seu sorriso acolhedor.
– Oh, vejo que conheceu Emílio! É um aluno brilhante. Ele
gosta muito de filosofia, esportes, adora livros, sonha em conhecer
o mundo e aprender outros idiomas. Na verdade... é igualzinho ao
que está escrito em seu currículo, professor! E vive reivindicando
novos livros para a biblioteca, o que já estamos providenciando –
comentou o diretor olhando para Emílio. – Mas está no intervalo.
Permita que o professor descanse um pouco, Emílio. Vamos à
minha sala, professor. Temos que acertar os detalhes de sua
permanência aqui.
– Permanência? – indagou.
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
– Quero tê-lo aqui por muito tempo... Que o professor
Baltasar não me escute!
Wallace sinalizou com as sobrancelhas, fazendo uma
expressão de quem é obrigado a retirar-se, e seguiu o comando da
mão do diretor que estava em seu ombro. Teve apenas tempo de
virar-se mais adiante e gritar:
– Vá à biblioteca ao final da aula! Lá você encontrará
respostas!
Emílio ficou inerte e engasgado com tanta coisa que tinha
para perguntar, contemplando passivamente sua única fonte de
esclarecimento desaparecer no meio do alunato.
Ficou intrigado mais ainda com as palavras do diretor ao
perceber sua semelhança com o professor: gostar de filosofia,
amar os livros, falar outros idiomas, conhecer o mundo... A
observação do diretor só aumentou sua confusão.
Enquanto pensava, Will lhe tocou as costas, assustando-o.
– E aí? Conseguiu falar com o professor Wallace?
– Consegui, sim. Mas não adiantou de nada.
– Por quê?
– O senhor Hugo apareceu e não tivemos tempo para
conversar.
– Que pena...
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Jackson Braga
– Will, já teve a sensação de que o seu mundo não é apenas
o que você vê? Que há algo mais e que os limites podem ser
quebrados?
– Nossa! Que definição estranha! Uma aula de filosofia e
você já surtou! Mas a resposta sincera é sim. Algumas vezes. Por
acaso, isso vem acompanhado de uma sensação de que seu mundo
está para mudar radicalmente? – interpelou Will.
– É exatamente isso!
– Então... espere, cara! Deixe que as coisas aconteçam.
Sabe, assim, naturalmente.
– Naturalmente?
– É. Eu ainda estou aprendendo a dar conselhos como a
minha mãe. Ela foi uma boa guia de alunos... Algo que não sei
ainda. Mas acho que é só ter paciência. Esperar!
– Will, você fala como se já tivesse passado por essa
situação!
– Digamos... talvez. Mas não com a mesma intensidade.
Tudo o que achava estranho aprendi com meus pais. Eles sim, são
estranhos! Não pelo fato do meu pai ser africano, ou da minha
mãe ser neozelandesa, ou porque eu nasci no Brasil. Se você
pudesse entender...
– Estranhos? Como assim? Entender o quê?
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
Antes que Will pudesse contar, soou a sirene. Ambos
seguiram sem dizer nada pelo longo corredor que dava acesso às
salas de aula.
Emílio gostava de se definir como um adolescente comum.
Mas não era. Tinha 13 anos, acabara de largar a infância sofrida,
marcada pela pobreza e por trabalhos que às vezes ocupavam o
tempo da escola e do lazer e, mais ainda, pela ausência de uma
família. Diferente de todo garoto, esperava um dia apaixonar-se e
queria mudar o mundo. Dizia que a biblioteca era sua segunda
casa e a escola, a alegria de sua vida. Amava-a não pela “tortura”
diária do amontoado de conteúdos transmitidos nas aulas que era
obrigado a assistir sentado, inerte e passivamente. Mas sim pelas
amizades construídas nos curtos intervalos de cada dia, fosse
durante os desafios de atividades escolares realizadas em grupo ou
nos encontros na casa dos amigos. Amava-a, também, pela história
de vida e exemplo de alguns mestres que tanto admirava. Viver e
aprender com os outros eram os verbos mais conjugados por
Emílio. Morou em diversos lugares. Dizia-se cidadão do mundo
desde os 10 anos de idade, quando aprendeu o significado da
palavra cosmopolita numa aula de geografia.
Quanto à sua fisionomia, brincavam seus amigos: “Você é
filho do Velho Mundo ou do Novo Mundo?”. Ou então: “Tenho
certeza que seu pai ou sua mãe vieram de fora e você foi
31
Jackson Braga
despejado aqui para morar com os índios”. Isso porque a mãe
adotiva de Emílio era uma índia de idade avançada e ele tinha pele
branca, cabelos negros e lisos, nariz fino... Incomum nas cidades
quentes da região onde morava. Will costumava dizer: “Pelo
menos, amigão, seus olhos e seus cabelos combinam com a nossa
pele pintada pelo Sol”. Os olhos negros de Emílio eram espelhos
que irradiavam alegria e sinceridade, expressão viva da sua busca
pela verdade. Os amigos costumavam comentar que ele sabia
quando as pessoas estavam mentindo; logo fechava seu sorriso. O
segredo de sua estatura e corpo bem definidos devia-se aos
primeiros anos de vida nas florestas longe das cidades, à
alimentação indígena e, lamentavelmente, aos trabalhos duros que
se submetia às escondidas de sua mãe adotiva para ganhar algum
dinheiro, como o de entregador de jornais. Entretanto, o que
gostava mesmo era de testar sua força e suas habilidades
praticando todo tipo de esporte que tinha na escola. Não sabia
explicar, mas se sobressaia em todos eles; contudo, foi o futebol
da rua, a “pelada”, que o tornou ágil e conhecido pela destreza de
seus dribles e saltos.
Adorava usar roupas que não o colocassem em evidência,
sobretudo jeans preto. Sempre andava com uma mochila.
Costumava dizer que nela continha tudo o que precisava para dar a
volta ao mundo. Nunca lhe faltavam livros; defendia-se do mundo
cercando-se deles. Acreditava que, ao recorrer aos livros, poderia
32
Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
compensar, pela leitura, a experiência que não tinha. E, se algo o
inquietava, mesmo que não os procurasse, de alguma forma, os
livros vinham a ele. Emílio achava-se muito independente, porque
Ara, sua mãe adotiva, preparara-o desde cedo para cuidar de si
mesmo caso ela lhe viesse a faltar. Ela o criou, parte da infância,
como um “menino da natureza” e lhe ensinou os segredos das
águas, das plantas, dos animais e de sua rica culinária milenar. Na
cidade, morava num casebre de alguns metros quadrados e
aprendeu a valorizar o pouco que tinha: a escola, algumas roupas,
brinquedos de madeira e cipó feitos por Ara, além de pouca
comida e muitos livros. Muitos livros velhos que eram doados aos
alunos de escolas públicas durante as feiras de literatura e
ciências. Sua dor maior, porém, era a família que não conheceu...
Will, o “irmão torto” de Emílio, dizia que ele era um
adolescente não tão estudioso quanto curioso e entusiasmado no
que se propunha a fazer. Tinha uma facilidade incrível de
relacionar-se com as pessoas e com os livros. Mas nem por isso se
mostrava falante ou sabichão. Não era daqueles que procuravam
estar em evidência, mas quando insistiam que respondesse algo,
arrastava olhares mesmo dos mais incrédulos. Contudo, sua
humildade impedia-o de envaidecer-se.
Na escola, alunos de grupos rivais caçoavam dele afirmando
que não foram poucas as vezes que o viram beijar livros ou
33
Jackson Braga
choramingar pelos cantos. Até armaram algumas ciladas na saída
da escola.
Os mais próximos diziam que seus olhos negros
comunicavam sinceridade e otimismo; bastava abraçar uma causa.
Às vezes, no entanto, era comum encontrá-los perdidos no
horizonte dos desejos, ou por sua capacidade de “espantar-se” com
as coisas mais simples, como afirmara Louis Wallace, ou porque
mergulhava sem medo em seus sonhos mais profundos: mudar o
mundo, alterar o curso da história, quebrar barreiras, lutar pela
justiça, promover o bem comum, encontrar um amor eterno...
Essas pérolas da alma eram verdadeiros tesouros herdados de
admiráveis mestres de sua escola, dos muitos livros de aventura
que leu e dos mitos e lendas indígenas que sua mãe adotiva
contava sobre os valentes guerreiros de sua tribo. Não é à toa que
muitos colegas da turma o apelidaram de “Dom Quixote”. Emílio
fazia pouco caso. No fundo, tinha certeza que eram mesmo esses
sonhos do início da adolescência a fonte de inspiração e superação
que lhe servia de energia, corria fluentemente em suas veias,
desintoxicando-o da rotina.
No silêncio, a natureza, a sabedoria de sua mãe adotiva, os
livros e os professores forjavam na alma do menino um homem de
valores, como se, por providência, uma força estranha o guiasse. E
apenas os mais próximos – como William Thompson e sua mãe
Ara – sabiam que esses sonhos vinham principalmente dos livros,
34
Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
porque eles sempre o cercavam. Só as lembranças do passado
causavam-lhe palidez no olhar e o mergulhavam na escuridão...
Quando entrou em sala, Emílio sentou-se desligado das
coisas ao redor e não conseguiu acalmar a mente, só pensava em ir
à biblioteca, em acelerar o tempo. O que o aguardaria? Porventura,
o Prof. Wallace estaria lá? Finalmente, poderia esclarecer as
peripécias em que sua alma estava imersa?
Enquanto seus pensamentos vagavam impulsionados por
sua ansiedade à procura de respostas, assustou-se com o forte
barulho da mão do professor de física no birô da sala de aula
exigindo atenção. A batida ensurdecedora estilhaçou sua cortina
de isolamento e o arrastou para a dura realidade da sala de aula.
Ao observar as conversas paralelas, deu-se conta de que a
turma estava muito insatisfeita. Havia certa animosidade que
impedia a esmagadora rotina copia-escuta-escreve-aprende de
continuar.
Surpreendentemente, todos os alunos queixavam-se do
formato mecânico das aulas. Daqueles do programa de
intercâmbio, duas garotas à sua frente, a italiana de belos cabelos
pretos, Bianca Bravo – conhecida por ser impulsiva e arrogante –
e sua melhor amiga, a britânica de cabelos e olhos castanhos
claros, Margareth Green – delicada e inteligente –, perguntavam-
se por que deveriam ficar sempre em filas, pois mal podiam ver os
35
Jackson Braga
próprios pés. À sua direita, três garotos, o português Pedro
Coimbra, o espanhol Juan González e o norte-americano Martin
Mills, amigos da equipe de futebol da escola, reclamavam do
excesso de conteúdos e de sua falta de utilidade no cotidiano.
Outros, ainda, questionavam a passividade de alunos e pais, e sua
ausência nos momentos de planejar e decidir os rumos da escola.
Falavam com liberdade e consciência como se fosse hábito tratar
desses assuntos no velho Liceu; como se tivessem maturidade;
como se liberdade de expressão e diálogo fossem sementes
cultivadas naquele manicômio escolar. Até no fundo da sala,
mesmo os alunos conhecidos como baderneiros, discutiam o modo
como os professores ensinavam e propunham mudanças.
O professor de ciências não sabia explicar como se
desencadearam aquelas discussões. Sentado, de pernas cruzadas e
com a mão no queixo, questionava-se que verbo saíra de sua boca,
qual palavra escrevera no quadro-negro ou que ato de loucura
praticara em sala que se tornara o estopim daquele devaneio
juvenil. Estava assustado com o poder das ideias que
compartilhavam e, principalmente, com a harmonia com que
conduziam suas reivindicações. Percebendo que perdera o controle
e as queixas se multiplicavam para outras disciplinas, ele se
levantou, ergueu a mão e evocou sua autoridade magisterial ao
pronunciar, em latim, a célebre frase dos antigos manuais do
Liceu, conhecida por todos os alunos: Ego maxima auctoritate in
36
Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
cathedra. De acordo com a tradição, depois de invocada, nenhum
aluno poderia falar sem permissão do professor, sob a pena de ser
excluído de sala.
Fez-se silêncio.
Ele se sentou lentamente com os olhos fixos na turma,
assombrado pelas exigências que faziam, como se a turma de
especiais não fosse capaz. Nunca os vira assim.
Emílio não achou exagero relacionar aquela manifestação
de descontentamento com a chegada do Prof. Louis Wallace. O
que mais o impressionou, contudo, fora o elevado grau de
consciência crítica que derrubou a muralha do mundinho
individualista da turma, integrando-a num sonho latente e insólito:
mudar a rotina da escola.
Havia nos colegas de classe uma vontade comum guiada
pelo sincero desejo de praticar o bem. Nem por um instante
considerou aquilo natural. Recordou que o Prof. Wallace dissera
que estava ali guiado pelo bem e que a mesma força que o
trouxera à escola também o guiaria. Imaginou que essa força
desconhecida fosse a razão do estranho comportamento. Mesmo
assim, não estava satisfeito. “Tantos questionamentos... Eles
nunca agiram assim”, pensou. Mas como relacionar este novo fato
ao professor de filosofia? Como explicar que eles, os mais
indisciplinados da escola, mostravam-se tão unidos e conscientes?
Emílio começou a acreditar que não podia ser obra do acaso e,
37
Jackson Braga
num instante, repassou em sua mente as palavras e as ações de
Wallace. Talvez tivesse deixado escapar um importante detalhe ou
esquecido algo que arrancaria o véu do mistério que o cercava.
De repente, deu-se conta de que o porta-chapéus não estava
mais no canto direito. Soltou um leve sorriso.
O professor, atento, percebeu o sorriso de Emílio; tomou o
gesto como uma afronta pessoal e logo estourou:
– Emílio, por que ri? Por acaso, está me desafiando? Saiba
que não é à toa que meu nome é Walter. Sou eu quem está no
comando!
– Não, senhor!
– Como ousa dizer que não sou eu quem está no comando?
– Quero dizer que acredito que o senhor esteja interpretando
mal – justificou.
– Acha que estou maluco? Eu avisei, rapazinho! Vamos!
Levante-se! Excludere! Expulsione! – sentenciou em latim a saída
de Emílio.
– Mas professor... – retrucou boquiaberto.
– Nem mais uma palavra, seu fedelho! Ordenei a sua
exclusão desta classe! Fora da minha sala! Agora!
Transtornado, Emílio pegou sua mochila e saiu sob os
olhares de protesto da turma que não acreditava no que estava
acontecendo. Ele sentiu o medo da autoridade do Prof. Walter
espalhar-se como uma onda invisível e se apoderar da vontade
38
Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
comum que pulsava no coração dos seus amigos, reduzindo-os ao
silêncio e apagando a chama do sincero desejo de mudança das
velhas coisas que eram inculcados de fazer.
No percurso do longo corredor, refletia como o mundo
desabara em sua cabeça numa única tarde. Queria de qualquer
forma compreender a reviravolta que se insurgia em sua vida. Só
tinha uma certeza: os inexplicáveis acontecimentos que
testemunhara estavam impreterivelmente relacionados à chegada
do novo professor. Não havia outra explicação. Entretanto,
perguntava-se por que o mundo conspirava contra ele. E sempre
que procurava respostas era interrompido ou desviado de seu
propósito.
Na sala da direção, foram longas horas de espera,
explicações, broncas e comunicados de advertência para casa. O
próprio diretor precisou ir até a sala para acalmar a turma.
Finalmente, ao toque da sirene, recebeu permissão para sair.
Já era quase noite. Lembrou-se da recomendação de Wallace,
correu no contrafluxo dos alunos, entrou no pavilhão de acesso ao
subsolo e desceu as escadarias até chegar à biblioteca, quase sem
fôlego. Por sorte, ainda encontrou Dora, uma bibliotecária que o
conhecia muito bem e sabia de sua paixão pelos livros. Ela o
iniciara na arte de encontrar bons deles pelos sebos da cidade.
– Nem pense em pegar livros numa hora dessas, Emílio.
Você é o rato de biblioteca mais conhecido desta escola. Já
39
Jackson Braga
encerramos. Agora, só amanhã! – explicou Dora fechando seu
livro de anotações e abrindo a portinhola do velho balcão.
– Pelo amor de Deus, Dora! Só preciso ver uma coisa! Serei
breve! Eu prometo! – exclamou ofegante.
Dora pensou, moveu a mão ao queixo e fechou um olho,
num gesto de brincadeira, como se não fosse ceder à insistência de
Emílio.
– Tem sorte, rapazinho, que eu esteja de bom humor hoje.
Vou à diretoria e volto logo. Você tem alguns minutos. O sensor
de segurança está ligado. Não passe com livros, não saia sem mim
e não deixe ninguém entrar. Ouviu bem?
– Ouço e obedeço! – respondeu encenando uma postura de
soldadinho sob o indicador de Dora em seu nariz.
Enquanto esperava, colocou-se diante da grande comenda
prateada na ala esquerda próxima ao balcão. Fitou seu olhar no
famoso lema socrático que o atormentara ao longo da semana
mencionada por seu professor de filosofia: “Conhece-te a ti
mesmo”. Sua imagem refletia na comenda. Sentia seu coração
pulsar apreensivo à procura de respostas. Virou-se e contemplou
os livros enfileirados em enormes estantes de madeira
envelhecida. “O que fazer? Aguardar? O que devo procurar? Onde
estão as respostas?”, perguntou a si mesmo.
Deu alguns passos e aproximou-se das prateleiras e mesas
de leitura. Sem que pudesse esperar, sentiu chegar uma ventania
40
Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
que envergou as dobradiças das portas de entrada da biblioteca
abrindo e fechando-as. Emílio, assustado, contemplou aquela força
revestida de vento percorrer os corredores e tomar conta do local.
Por onde passava alguns papéis caíam; estantes inteiras se
mexiam; dezenas de livros se repaginavam sequenciais e repetidas
vezes. Somente Emílio, imóvel, ora abria a boca e arregalava os
olhos admirando aquele espetáculo, ora engolia em seco o próprio
medo extasiado, sem acreditar no que estava acontecendo. A voz
trancafiada na garganta nem ousava emitir som. Não conseguia
pensar em nada de concreto, apenas acompanhava, estupefato,
aquela força fantasmagórica presente na ventania; embora,
inutilmente, sua lógica tentasse acalmá-lo repetindo seguidas
vezes: “É uma alucinação, seu tolo!”.
Com muito esforço, conseguiu dar alguns tímidos passos.
Imediatamente, a força misteriosa o cercou com diversos livros
deslocados das estantes, dos balcões e de algumas mesas.
Percebeu que todos eram livros de antigos filósofos. Eles
revezavam-se à altura de seus olhos, de alto a baixo, trocando de
lugar e revirando as páginas numa harmonia impressionante, até
que um deles destacou-se e caiu a seus pés.
Emílio olhou-o com irresistível desejo de apanhá-lo. A
vontade não era sua. Parecia que algo orientava sua vontade e sua
mente para aquela ação. Lembrou-se das palavras do professor:
“Muitas vezes parece que não escolhemos o livro; é o livro que
41
Jackson Braga
nos escolhe!”. Era como se o próprio livro o convidasse a tocá-lo.
Intitulava-se “Metafísica”, de Aristóteles. Agachou-se e estendeu
o braço. Um friozinho na barriga impelia-o a desistir; reteve a
mão. No entanto, a curiosidade e seu deslumbramento diante do
mistério transformaram-se em coragem e, por impulso, agarrou-o.
Ao tocar levemente na capa, todos os outros livros que o
circundavam imediatamente caíram no chão, a força cessou e o
silêncio tomou conta do lugar.
Enquanto tentava acalmar-se no meio da bagunça e
encontrar explicações para o ocorrido, seus pensamentos
misturavam-se à alegria do extraordinário e ao sentimento de que
o Prof. Wallace sabia que a força que tanto comentou em sala:
“Movia o Universo; ordenava todas as coisas; manifestava-se de
forma cíclica...” estava ali. Ameaçou sorrir, porém a mais
impertinente das perguntas começou-lhe a martelar o juízo: “Por
que eu?”. Um sentimento de não merecimento invadiu-lhe a alma.
Somente o abandonou quando evocou para si os conselhos do
Prof. Wallace afirmando que ele era, assim como Platão, o único
que tinha nas mãos a pena que escrevia a sua própria história.
“Talvez a resposta esteja neste livro!”, disse em voz alta.
Nem tinha ideia, contudo, do que se tratava. O título já o intrigara:
METAFÍSICA. “Deve ser algo de outro mundo, coisa de religião
ou de física quântica...”, pensou. O desejo de abri-lo era contido
somente pelo receio de que algo fugisse novamente ao controle.
42
Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
Por um momento, achou que Dora, a bibliotecária, ou mesmo
professores, quem sabe até o diretor Hugo fossem as pessoas mais
indicadas para abri-lo e transmitir-lhe o significado das palavras,
pois era só um adolescente inculto... Um garoto no lugar e na hora
errada testemunhando o extraordinário que jamais poderia ser
compreendido por outra pessoa, por mais que explicasse a
experiência ali manifesta.
Num segundo, descartou prontamente a ideia. Certamente,
iria parar em um hospício. Só a hipótese de o terem por louco o
fizera desistir.
Quando achava que as coisas tinham acabado, foi
surpreendido pelo pressentimento de que alguém estava vindo...
Levantou-se, olhou as alas e o corredor de entrada, mas não viu
ninguém.
Na parte superior da centenária biblioteca, ao lado da
escadaria serpentiforme, havia um cômodo onde eram colocados
os livros antigos para restauração. Sobre as guarnições da velha
porta de altura desmedida e de cor escura formou-se, aos poucos,
um feixe de luz. A porta simplesmente se abriu e um personagem
bizarro saiu. Emílio ficou espantado. Era um homem de aspecto
robusto, omoplatas dilatadas, alto, olhos azuis e com uma
cabeleira loira até os ombros. Trajava uma indumentária preta
esquisita: botas de couro, látego, cano longo e bico fino; suas
calças de veludo eram coladas ao corpo; sua camisa de mangas
43
Jackson Braga
longas mais parecia uma armadura de couro e confundia-se com a
capa que descia até os pés. Estava de luvas e trazia nas mãos um
cajado de luxo. Na ponta, uma cabeça de lobo com uma pedra de
cristal entre os dentes.
O inesperado visitante olhou com desprezo para Emílio. A
soberba em seus olhos e a imponência dos seus movimentos
revelava que sabia exatamente o que fazia ali.
– Ora, ora, ora. Você deve ser... Emílio. Finalmente, eu o
encontrei! Pensei que fosse mais forte e mais velho e que algo o
diferenciaria dos outros membros de sua família. Mas é só um
garoto de jeans com um livro idiota nas mãos. Sabia que nós o
procuramos há 250 anos?
– Quê?! – espantou-se Emílio.
– Vejo que você não sabe de nada ainda. Isso é desleal. Que
prazer pode existir em derrotar um pirralho que nem sabe por que
vai morrer? Não podia ser mais cômico! No entanto, devo admitir,
eles o esconderam muito bem! Não costumo subestimar meus
inimigos. Afinal, “é nos fracos e ignorantes que se esconde a
verdadeira sabedoria!”. Não é assim que está escrito no livro que
deu origem aos demais?
– Não sei do que está falando, senhor... – respondeu
hesitante.
44
Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
– É um perfeito idiota! Comovente! – aplaudiu
ironicamente com o cajado debaixo do braço. Emílio ficou
espantado quando o cajado diminuiu de tamanho.
– Mas quem... quem é o senhor? Co-como chegou aqui? E
sabe meu nome?
– Como eu disse, você desconhece as razões por que terá de
me enfrentar. Não agora. O fato de estarmos aqui também foi
intencional, não foi? – indagou olhando para Emílio e para os
livros – Porque se bem me lembro das velhas regras da Acrópole,
aqui você está protegido. Não posso atacá-lo, os livros não
deixariam...
Emílio respirou fundo.
– Sou da família dos Wandharens. Meu nome é Wolfgang
Septimus. Guarde este nome, rapaz. Ele o atormentará nas noites
sombrias como um lobo uivando na madrugada.
Emílio olhou para o livro de Aristóteles em sua mão,
apertou-o junto à cintura. Observou tudo ao seu redor e, com
medo, traçou uma rota de fuga... Nunca sua agilidade seria tão útil
como naquele momento.
– Não se preocupe. Este não será seu último dia. Ainda verá
o Sol acropoliano. Não precisa fugir como seus antepassados. Só
vim confirmar uma coisa. Para tanto, permita-me descer... – disse
caminhando lentamente para a escadaria. – Nossa estirpe não
precisa das escadas construídas pelos filhos das nações. Nós
45
Jackson Braga
sempre fizemos nosso próprio caminho! Ou você nunca ouviu a
máxima: “Saber é poder”?
O desconhecido apontou seu cajado para uma estante e a
pedra de cristal se transformou numa esfera negra movendo uma
pilha de livros pesados que começaram a levitar, deslocando-se
para a escadaria. Formaram, então, degraus sobrepondo-se aos
velhos batentes de madeira. O estranho visitante colocou seu
cajado debaixo do braço e pôs-se a descer uma escada de livros
que levitavam. Se as coisas pareciam ilusão, agora beiravam o
absurdo.
Emílio sentiu sua vida ameaçada e sob o controle de um
desconhecido. Perguntava-se como poderiam procurá-lo há 250
anos se era apenas um adolescente de 13. Se sabiam seu nome e
conheciam sua escola, deviam também conhecer onde morava, sua
rotina e as pessoas que amava. Podiam machucar Ara, Will ou
Dora. Mil coisas se passaram em sua cabeça: de onde vinha o
poder que testemunhava? Qual a sua origem? E o livro em suas
mãos? Sabedoria? Magia? O poder que se manifestou sob a força
do vento seria o mesmo que fez os livros servirem de escada para
aquele desconhecido descer e atormentá-lo? O bem e o mal teriam
a mesma força?
“Não pode ser a mesma força que há pouco moveu os
livros! Eu não sinto isso!”, concluiu. Uma angústia o afligia
impedindo-o de acreditar na igualdade de poder entre o bem e o
46
Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
mal. Apesar do medo, nunca experimentara com tanta clareza a
distinção da força que promove o bem daquela que pratica o mal.
Não sabia, no entanto, explicar a origem da clareza de sua
consciência. Sentia, apenas, de alguma forma, que estava cercado
pela força do bem, rodeado pelos livros. A certeza provinha de sua
alta sensibilidade em sentir o ambiente; uma habilidade preciosa
que sua mãe ensinara na infância, quando ainda vivia nas florestas.
Subitamente, o medo que lhe invadia a alma convertia-se
em coragem, em vontade de reagir, mas não sabia como. Apenas
gritava dentro de si por socorro e rezava para que Dora chegasse
ali e o salvasse.
– Vejamos se realmente é poderoso como diziam na cidade-
escola. Ouvi tanto falar de sua família e de você que sinto nojo do
seu nome! – exclamou o estranho aproximando-se de Emílio. –
Qual a sua aura de poder, garoto? Vamos! Revele-a!
– Aura? O senhor deve estar enganado, eu nunca comprei
nada isso.
– Inocente patético! – replicou apontando seu cajado para
uma pilha de livros que se lançaram sobre Emílio.
Ele abaixou-se, protegendo a cabeça, agarrado ao livro de
metafísica. Os outros livros pararam no exato momento de atingi-
lo.
47
Jackson Braga
No mesmo instante, resplandeceu sobre seu corpo uma
finíssima camada de luz dourada. Os livros, mais uma vez, caíram
no chão.
Ainda agachado, Emílio pôs-se a olhar suas mãos, sua
roupa, seus pés encobertos por aquela luz... Uma alegria jorrava de
seu coração: “Não fui atingido! Mas como? Incrível!”,
comemorou baixinho. Levantou-se enfurecido e encarou
Wolfgang.
– Garoto... você devia me agradecer! Eu lhe ajudei a
descobrir sua aura. Ela é dourada. Raríssima. A última dessas que
se teve notícia foi na Idade Média. Um tal de Pedro Abelardo,
professor de Lógica. Um religioso tolo e romântico. É. E ele foi...
Foi castrado!
– Hã? – assustou-se Emílio com a boca escancarada
perdendo, aos poucos, o brilho dourado de sua aura.
O olhar fulminante de Wolf o consumia e o medo o
aterrorizava.
– Preocupe-se, rapaz! Eu vou fazer pior – afirmou,
rangendo os dentes.
Quando se preparava para levantar seu cajado, a pedra de
cristal enegreceu novamente, mas antes que usasse seu poder, uma
voz forte veio do fundo do corredor e o impediu:
– Ameaçando um adolescente em área proibida? Esqueceu
as regras, Wolf? Você não é bem-vindo a este templo!
48
Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
Emílio reconheceu a voz e, com um sorriso, virou-se
rapidamente, sem conseguir pronunciar uma palavra.
– Louis Wallace! O guerreiro glorioso da Acrópole... –
disse batendo palmas ironicamente. – Não poderiam ter enviado
melhor guardião. Como vão suas aulas de filosofia? Empolgantes?
– perguntou Wolfgang com um ar debochado.
– Melhor a cada dia! Quer saber por que, Wolf? Porque os
professores das Cinco Ordens têm coragem de preparar pessoas
livres, pessoas que pensam, pessoas que amam. E elas não temem
você! Estão prontas para derrotar seus seguidores! – respondeu
aproximando-se de Emílio.
– Essa é uma questão antiga, acropoliano. Não esqueça que
somos em maior número, estamos em toda parte, temos mais
escolas, manipulamos os Três Poderes. Dominamos o Quarto
Poder e controlamos a vontade comum dos filhos das nações. E
quem controla a vontade deles... controla o mundo! E não haverá
um Quinto Poder!
– Por que veio, então, Wolf? Não é só um adolescente? Por
acaso, sente-se ameaçado? – inquiriu Wallace com uma expressão
também irônica.
– Prof. Wallace... – O sorriso sarcástico quase fez Emílio
vomitar. – Meus olhos estão dentro da Acrópole. Ando nos
corredores da cidade-escola noite e dia. Contudo, surpreende-me o
fato de você acreditar que esse menino pode mudar os sistemas de
49
Jackson Braga
controle e os poderes estabelecidos ao longo de quase três séculos!
O sistema de Tékhne já colonizou o mundo das nações. Tékhne é a
Força! Tékhne é a Razão, é o Instrumento que controla este
mundo e em breve controlará o seu!
– Não, se depender de mim.
– Não se iluda, Wallace. A força do bem não é uma Razão
Universal. Não há Verdade Absoluta debaixo dos céus! Provamos
que o Lógos é apenas uma força dispersa no Universo!
– Não provou nada, Wolf! Sinto ódio, mas também medo
correndo em suas veias, porque você sabe que a mudança começa
aqui! Ela está bem diante de seus olhos! – disse colocando as
mãos sobre os ombros de Emílio, que levantou a vista temeroso.
Wolf olhou furioso para Emílio.
– Tem sorte de estarmos neste lugar, guardião! Muita sorte
mesmo! Do contrário, eu apagaria sua luz e a desse pirralho! Mas
oportunidade não me faltará. A propósito, dê minhas
recomendações ao diretor Abner Stanislaw. Diga-lhe que acho
pretensão demais a construção de escolas acropolianas aqui. Não
será necessário porque, em breve, estaremos colonizando também
sua cidade-escola – afirmou Wolfgang apontando sua pedra negra
para Emílio.
Wolfgang colocou seu cajado debaixo do braço.
Simultaneamente, os livros se organizaram para lhe servir de
escada até a porta do andar superior que se iluminou e abriu
50
Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
novamente. Antes de entrar, porém, fixou seu olhar em Emílio e
disse:
– Só por curiosidade, Emílio. Nunca sentiu a escuridão
consumir todo o seu passado? Não lhe faltam lembranças?
Após sua entrada, a porta fechou-se sozinha fazendo grande
barulho; os livros, ao mesmo tempo, despencaram no chão.
Emílio mergulhou no silêncio, fitando seus olhos negros em
seu passado obscuro...
A mão amiga do professor forasteiro tocou-lhe o ombro
trazendo-o de volta da escuridão interior.
– O que está acontecendo, sr. Wallace? Coisas estranhas
ocorreram na minha sala de aula hoje. Vi livros voarem. Meu
corpo irradiou uma luz dourada e eu senti como se os livros
quisessem falar comigo.
– Eu sei, Emílio. E não é de hoje que os livros tentam falar
com você. É uma longa história e será uma longa jornada... Há
muito que aprender em pouco tempo!
– Por que só agora? Por que o senhor não me procurou
antes, professor?
– Infelizmente, não foi possível vir ao seu encontro quando
ainda era uma criancinha. Nessa fase, temos mais sucesso na
preparação dos guardiões da Acrópole. Mas quero que saiba que
sua mãe lhe ajudou a desenvolver bem suas duas asas. Elas estão
prontas.
51
Jackson Braga
– Minhas asas? Prontas? Como assim?
– A primeira asa de uma criança é a vida na natureza e a
segunda é a sua imaginação. Soube que, graças à sua mãe adotiva,
Ara, seus primeiros anos foram de plena harmonia com a natureza.
Quanto à sua imaginação... Bom, os livros cuidaram de você. Por
isso, se saiu tão bem hoje. Prometo que amanhã vamos conversar
sobre sua preparação...
– Por que não agora?
– A srta. Dora já está a caminho. Ela é uma dádiva, um
presente em sua vida.
– Um presente?
– Não se lembra? Foi ela quem o fez se apaixonar pela
leitura logo que chegou ao Liceu.
– Ah, verdade! Pensando assim, ela é mesmo um presente!
– Os livros a protegem também. Agora, convém arrumar
tudo antes que ela chegue. Se não vai ter muito que explicar.
– Nem me fale!
– Amanhã, algumas coisas serão esclarecidas. Hoje, mais
nada vai lhe acontecer. Fique tranquilo e vá para casa.
– Não sei se vou conseguir dormir... – disse ao acaso, dando
um suspiro de desabafo.
Por impulso, Emílio pôs-se a juntar os livros do chão com
muita pressa. Wallace interrompeu:
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
– Não, Emílio! Não é necessário. Você agora é um dos
nossos. Já deve saber que os livros são nossos melhores amigos.
O professor de filosofia deu alguns passos para trás
ensaiando um sorriso, abriu os braços suavemente, como se fosse
um maestro pronto para iniciar a sinfonia e, para deslumbre de
Emílio, uma aura prateada irradiou de seu corpo. Apontou para os
livros como se pedisse para que retornassem a seus lugares. E foi
o que aconteceu. Exceto com o livro de Metafísica, que continuou
no chão, desde o momento em que Emílio tentou proteger-se.
– Como fez isso? É magia?
– Magia? Não, meu caro aprendiz. Apenas somos um!
– Nós e os livros, professor?
– Nós, os livros e o Universo!
– Ah, entendo! – exclamou Emílio descrente.
– Sei que não entendeu nada. Acho que minha próxima aula
será sobre o holandês Baruch de Spinoza e você compreenderá
como fiz isso.
– Baruch de quê? – franziu a testa. – Outro filósofo,
imagino.
– E um dos bons! Aliás, ele ganhava a vida polindo lentes
para lunetas. É um pouco do nosso trabalho. Queremos que as
pessoas enxerguem melhor o mundo à sua volta. Tenha certeza de
que amanhã você enxergará diferente o mundo! – disse o professor
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Jackson Braga
de filosofia com seu sorriso costumeiro, enquanto subia as
escadarias.
Na entrada da biblioteca, Dora, chateada, empurrou as
portas, gritando aos quatro cantos do mundo: “Que diretor
ignorante! Quem ele pensa que é? Quanto mais eu fujo de
trabalho, mais trabalho eu levo para casa! Ele está pensando o
quê? Que eu sou professora? Deus me livre de um karma como
esse! Eu não levo trabalho para casa!”.
Emílio ficou apreensivo, pois temia que Dora visse a saída
de Wallace. No entanto, quando olhou para trás, viu apenas a porta
da sala do andar superior encostar e apagarem-se os raios de luz
que a circundavam.
– Oh, esqueci! Perdoe-me. Você ainda está aqui –
desculpou-se Dora admirando-se da organização do lugar. – Tem
alguém aí com você?
– Não. Só os livros. – respondeu apanhando o livro de
Aristóteles. – Posso levá-lo?
Ela sorriu sem graça.
– Você já levou um de Platão. Não venha com desculpas,
engraçadinho. Conhece as regras. Não pode acumular livros!
– Sabe o que é, Dora? Uma coisa liga à outra... e Aristóteles
foi alguma coisa de Platão e... – disse balançando os indicadores e
olhando de um lado para o outro.
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Emílio e os Lumens: o Quinto Poder
– Sei! Sei! Tudo bem, sr. Emílio. Tudo bem. Mas só desta
vez! Você já tem mais livros do que pode ler!
– Valeu, Dora! – exclamou – Ah, mais uma coisa. Por
acaso, você tem fácil aqui um tal... Baruch de Espinhosa?
– Emílio! BOA NOITE! – despediu-se Dora acenando com
um sorriso jocoso para obrigar a saída do rapaz mais assíduo da
biblioteca.
Emílio sorriu, apanhou sua mochila e saiu correndo para
buscar sua bicicleta.
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