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Inhumas, ano 4, n. 16, jul. 2016
ISSN 2316-8102
CAROLEE SCHNEEMANN: EM QUE SE
TRANSFORMOU A PINTURA?
Maura Reilly
Carolee Schneemann em Nova York em frente a sua obra Sir Henry Francis Taylor, 1961.
Fotografia de Michael Glass. Cortesia de Carolee Schneemann
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Eu sou uma pintora, serei sempre uma pintora e morrerei uma
pintora. Tudo o que tenho desenvolvido tem a ver com a
ampliação dos princípios visuais para além da tela.
Carolee Schneemann, 19931
A pintura de Carolee Schneemann de fins dos anos de 1950 e início dos
60 é um lado expressivo de sua obra bastante ignorado até o momento.
Eclipsada por seus trabalhos de grande repercussão na performance e no
cinema, essa área da criação artística tem sido muitas vezes relegada à margem,
considerada imatura, embora fundamental para a compreensão da totalidade da
prática diversificada de Schneemann. Em que Se Transformou a Pintura?2
acompanha as obras de Schneemann desde 1957 até o presente, destacando a
transformação que ocorre em suas pinturas tradicionais sobre tela de linhagem
expressionista abstrata, passando por construções pictóricas e esculturas
cinéticas, assim como por performances solo ou em grupo, instalação e filmes. A
trajetória histórica através da obra de Schneemann busca examinar como suas
explorações através de outros meios de expressão derivam da “ampliação dos
princípios visuais para além da tela”, e procura apreciar suas pinturas e
desenhos como importantes corolários do teatro cinético, das performances
do Judson Dance Theatre e dos filmes que ela simultaneamente produzia. Sua
intenção é a de repensar Schneemann como uma pintora que nunca deixou de
conceituar toda sua obra como sempre relacionada ao gesto pictórico, em que
abre “a moldura” e concebe o próprio corpo como um material tátil. Suas obras
mais importantes, apreciadas por muitos e mal compreendidas por alguns,
podem ser então revistas como “telas explodidas”3, denominação da própria
Schneemann, ou como pinturas performáticas, fílmicas e cinéticas – sempre
envolvendo preocupações pictóricas da pintura como mecanismo básico e
1 Schneemann conforme citada em Imaging Her Erotics: Carolee Schneemann (1993; VHS, 5 minutos), uma colaboração de vídeo entre Maria Beatty e a artista. 2 Nota do Tradutor: Em que Se Transformou a Pintura? [Painting, What It Became] foi uma minirretrospectiva de Carolee Schneemann, com curadoria de Maura Reilly, que aconteceu entre os dias 21 de fevereiro e 28 de março de 2010 na P.P.O.W. Gallery em Nova York. 3 Carolee Schneemann, More Than Meat Joy: Performance Works and Selected Writings. Documentext, 1997, p. 167.
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campo unificador.
O treinamento formal de Schneemann como artista tem início com a
pintura de paisagem e horas intermináveis desenhando retratos de seres vivos,
como fica evidente em três obras sobre tela desse período – Personae: JT and 3
Kitch’s (1957), Three Figures After Pontormo (1957) e Summer I (Honey Suckle)
(1959) – que revelam suas típicas pinceladas e composições. Tais obras do final
dos anos 50, pré-Nova York, também refletem um amor pela tatilidade da tinta,
sua materialidade, sua qualidade de objeto – um conceito importante que
ajudará Schneemann a transportar o gesto ainda mais para fora da tela.
Carolee Schneemann, Personae: JT and 3 Kitch’s, 1957. Óleo sobre tela, 81.3 x 127 cm.
Cortesia de Carolee Schneemann
Schneemann se mudou para Nova York em 1961, após terminar seu curso
de pintura na Universidade de Illinois. Quase imediatamente, passou a situar-se
diretamente dentro daquilo que nos anos 60 era chamado de “vanguarda
experimental”, lugar também ocupado por Robert Rauschenberg, Claes
Oldenburg, Allan Kaprow, Jim Dine e outros artistas expressionistas abstratos da
segunda geração. Na verdade, como eles, Schneemann estava interessada em
explorar as novas opções estéticas tornadas disponíveis na esteira da Action
Painting. Como poderia a fratura espacial de Pollock e De Kooning ser expandida
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para além da tela no espaço e no tempo? As obras intermidiáticas de
Schneemann desde fins dos anos 50 até os anos 70 demonstram sua constante
investigação acerca dessa questão.
As construções pictóricas de Schneemann – como as esculturas a partir
do lixo de Richard Stankiewicz, as “misturas” de Rauschenberg, os relevos em
papelão amassado e pintado de Oldenburg ou as compactadas
autoassemblages de John Chamberlain – selecionam juntas materiais não
artísticos da vida, aqueles que possuem referências biográficas e que, em sua
crueza, trazem à mente a aparência e o espírito da análise espacial na pintura.
Quarry Transposed (1960), Sir Henry Francis Taylor (1961), Fur Wheel (1962) e
Notes to Lou Andreas Salome (1965) são grandes construções pictóricas que
exemplificam seu interesse na montagem e no distanciamento da tela plana.
Em cada uma, a tinta se torna um dos muitos materiais da natureza que podem
ser aplicados ou cortados em superfícies, junto com fotografias, madeira, tecido,
fita cassete, vidro, celofane, roupas de baixo e assim por diante. Cada um
demonstra o constante desejo da artista em fazer a pintura abrir caminho
através da tela, para fora do quadro e para dentro do espaço do espectador,
enquanto, ao mesmo tempo, estrutura o “real” com a composição visual do olho
do pintor. Fur Wheel acrescenta o movimento como elemento compositivo do
trabalho da artista, sinalizando a entrada de Schneemann na escultura cinética
e incorporando a duração em sua obra.
Em 1962, Schneemann inicia uma ampla construção pictórica cinética
chamada Four Fur Cutting Boards criada a partir de quatro painéis pintados
entrelaçados, com vidro quebrado, espelhos, fotografias, luzes coloridas,
guarda-chuvas móveis, uma calota, tecido e partes motorizadas. É um ambiente
imponente, pintado em movimentos gestuais intensamente coloridos. Um ano
depois, essa construção se torna um componente material integral de Eye Body:
36 Transformative Actions [Corpo Olho: Trinta e Seis Ações Transformadoras)],
uma das obras mais famosas de Schneemann, que misturava pintura,
performance e fotografia. Em cada uma das “ações para a câmera”, a artista
combina seu corpo nu pintado – que atua como “material” plástico e tátil
adicional – com a construção pictórica. Essa é a primeira vez que Schneemann
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incorpora seu corpo físico na forma de sua obra, permeando a fronteira entre o
criador da imagem e a própria imagem, vendo e sendo visto, olho e corpo – daí o
título “Corpo Olho”, sugerindo, como Rebecca Schneider bem escreve, uma
“visão incorporada”, um “olho corporal” –, olhos dotados de visão – os olhos da
artista –, não apenas naquele que vê, mas no corpo daquilo que é visto4. O
posicionamento de Schneemann dentro de sua própria obra como um agente
observador ativo e sua insistência em enfatizar o corpo como um material tátil
contribuíram bastante para o desenvolvimento de suas ideias sobre o teatro
cinético.
Como membro fundadora do Judson Dance Theater junto com Yvonne
Rainer, Steve Paxton, Elaine Summers, entre outros, o principal interesse de
Schneemann era na cinestesia ou sensações corporais – daí seu termo escolhido
“teatro cinético” para descrever suas primeiras produções de performance
envolvendo múltiplos participantes. Em sua primeira peça teatral cinética de
1962, Glass Environment For Sound And Motion, Schneemann imaginou o palco
como “uma colagem ampliada”, repleta de vidros grandes, quebrados e
refratados, e os artistas do grupo “como um tipo de paleta física”5, claramente
demonstrando uma circulação de ideias entre a concatenação de elementos em
sua produção de estúdio de Four Fur Cutting Boards e o tratamento material do
corpo em Eye Body. Em cada uma de suas numerosas obras produzidas ao longo
dos anos 60 no Living Theater ou no Judson Dance Theater, a artista conceitua
suas obras “como uma pintora que efetivamente amplia sua tela”6. Como
explica em uma entrevista de 1983, suas obras teatrais “levavam Pollock, o
gesto e a ação para dentro do espaço”7.
Meat Joy [Prazer da Carne] (1964) é a performance teatral cinética mais
famosa de Schneemann. Acompanhada de uma colagem de trilha sonora
formada pelo barulho das ruas de Paris e alegres canções pop, oito homens e
mulheres seminus (incluindo ela mesma) rolam sobre pilhas de papéis, 4 Rebecca Schneider, The Explic it Body In Performance. Routledge, 1997, p. 35. 5 More Than Meat Joy, p. 21 e 32. 6 More Than Meat Joy, p. 32. 7 Schneemann conforme citada em Carey Lovelace, “Schneemann: Inside Out”, Artcom, n. 19, 1983, p. 16.
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abraçam-se, criam esculturas vivas, juntam-se, separam-se, pintam os corpos
um do outro, e no final são inundados de frangos, peixe e linguiça crus. Como
em uma performance solo posterior, Body Collage (1967), na qual Schneemann
pinta seu corpo nu com melado e cola e depois rola no papel para produzir uma
colagem corporal literal, os corpos dos “participantes” de Meat Joy funcionam
tanto como telas quanto como pincéis, realizando uma pintura abstrata e
expressionista quando se movimentam ativamente pela arena da tela criando o
terreno sobre o qual cor, forma e textura se acumulam. Schneemann equipara
Meat Joy à pintura performática, descrevendo-a como “uma visão erótica que
superou uma série de ideais viscerais da expansão da energia física – para além
da tela, para além da moldura”8. De fato, o trabalho intitulado Meat Joy Collage,
1998-99, três colagens pintadas sobre linho, celebra, décadas depois, a
performance Meat Joy, incorporando as fotografias originais de 1964 com
gestuais agressivamente em sua execução, devolvendo, à sua analogia visual, a
explosiva energia incorporada da performance “real”.
Quando Schneemann realiza Meat Joy em Paris, ela percebe que sua
documentação é uma parte crítica do evento. Tanto o filme quanto a fotografia
foram utilizados para comunicar a qualidade expressionista da obra e revelar sua
estrutura narrativa. Em seguida, Schneemann começa a enxergar o filme como
uma forma de mídia misturada em si mesma, e, por vezes, dentro do contexto
da performance. Fuses [Pavios] (1964-66), um filme mudo com sequências
coladas de sexo entre Schneemann e seu então parceiro, o compositor James
Tenney, observados por um gato, é considerada por muitos como uma de suas
obras-primas. Os artifícios formais de Fuses – principalmente a manipulação do
material de celuloide para subverter a narrativa e a subjetividade – colocam
Schneemann na vanguarda da investigação cinematográfica experimental sobre
a materialidade e a abstração. Ao mesmo tempo, seu conteúdo feminista e seu
tratamento pictórico expressionista e fluido do meio a distinguem dos outros
cineastas experimentais de tendências puramente formalistas de meados dos
anos 60. Para Schneemann, o filme era uma extensão natural da tela – Fuses é
8 A partir de uma entrevista inédita com Danielle Knafo.
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uma pintura fílmica. Schneemann literalmente pintou à mão, entalhou, tingiu,
selou, raspou, cozeu e colou a superfície do filme, produzindo um objeto
cinematográfico fisicamente denso e texturizado semelhante às superfícies das
construções pictóricas que ela realizava simultaneamente. A própria artista
explica: “Como pintora... Eu queria que os corpos se tornassem centelhas de
sensações táteis”9. Para o espectador, os corpos nus se movem para dentro e
para fora do quadro, dissolvendo-se opticamente diante de nossos olhos, não
como uma tradução literal, mas “editados como uma música de planos”10.
A performance solo de Schneemann, Up To And Including Her Limits [Até
e inclusive os Limites Dela] (1973-77), na medida em que é um comentário direto
sobre a hipermasculinidade da Action Painting e a natureza sexualizada da
“gota ejaculatória” de Pollock em particular, também representa um dos
melhores exemplos daquilo que a pintura se tornou quando se moveu através do
seu corpo: uma total integração entre ação e objeto. Nua e suspensa acima da
tela, Schneemann descia e subia, tocando no chão e nas paredes ao seu redor
com lápis de cera, acumulando uma rede de marcas coloridas, vestígios da
energia do corpo em movimento. Como Schneemann explica em 1977, Up To And
Including Her Limits é o resultado direto da pintura fisicalizada de Pollock.
“Todo o meu corpo se torna um agente de traços visuais, vestígios da energia do
corpo em movimento”11. Alguns anos depois, em 1983, a artista produz uma
escultura cinética denominada War Mop, que igualmente dá continuidade à sua
investigação sobre a definição daquilo que é a pintura da pós-Action Painting e
questiona o significado de seu gesto. Isso também demonstra como a pintura
persiste como tema, mesmo quando o corpo literal ou “real” de Schneemann
deixa de funcionar como sujeito, agente ou “material”. Como seu filme
anterior Viet Flakes, de 1967, inspirado no Vietnã, War Mop é uma obra de
protesto, nesse caso, contra as atrocidades em Beirute. Em um monitor de
vídeo, a montagem que Schneemann realiza de cenas de notícias da guerra,
Souvenir Of Lebanon (1983), atua constantemente. A cada oito segundos, um 9 A partir de uma entrevista com Kate Haug em: Carolee Schneemann, Imaging Her Erotics: Essays, Interviews, Projetcs . MIT Press, 2003, p. 43. 10 Ibidem. 11 Imaging Her Erotics, op. cit., p. 165.
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esfregão motorizado sobe e depois se lança sobre o monitor como uma arma ou
rifle, enquanto violentas imagens de aldeias destruídas varrem a tela. O hostil e
banal movimento do esfregão para cima e para baixo reproduz metaforicamente
as agressivas pinceladas dos expressionistas abstratos, transformando o
esfregão em um enorme pincel.
Carolee Schneemann, Meat Joy [Prazer da Carne], Novembro de 1964. Performance, Judson
Dance Theater, Judson Memorial Church, Nova York, Estados Unidos. A partir da esquerda: Stanley Gochenouer, Dorothea Rockburne, James Tenney (mãos), Carolee
Schneemann. Fotografia de Al Giese. Cortesia de Carolee Schneemann
É inegável que Schneemann concebe seu esfregão motorizado como um
pincel. Em 1990-91, ela produz uma importante obra chamada Scroll Painting
With Exploded TV, na qual uma série de pinturas é criada por esfregões
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motorizados mergulhados em tinta. Na instalação, os monitores de vídeo
mostram a tinta caindo sobre a tela. Se a abstração gestual era inicialmente
uma discussão sobre o retorno da subjetividade na América pós Segunda Guerra,
como a declaração de Pollock “Eu sou a natureza” parece sugerir, então a total
eliminação que Schneemann realiza do sujeito da criação da “abstração gestual”
é sua refutação.
Carolee Schneemann, War Mop, 1983. Instalação com esfregão, acrílico, motor, monitor de
vídeo (colorido, som) em loop. Cortesia de Carolee Schneemann
Apesar de suas inúmeras explorações intermidiáticas através do teatro
cinético, da performance, do cinema, do vídeo e da instalação, e de décadas de
produção artística na qual o meio físico da tinta é escasso, Schneemann insiste
em seu status como pintora. Em uma entrevista de 1980, de modo eloquente ela
afirma: “Eu sou uma pintora que trabalha com o próprio corpo e modos de
pensar o movimento e o ambiente que surgem da minha rígida disciplina de
pintar de seis a oito horas por dia durante anos. Esta é a raiz da minha
linguagem em qualquer meio. Eu não sou uma cineasta nem tampouco uma
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fotógrafa. Eu sou uma pintora”12.
Em Que Se Transformou A Pintura? espera solucionar esta aparente
contradição ao apoiar uma redefinição do pintor, não como aquele que pinta,
mas como aquele que trabalha as questões e os problemas da pintura. Essa
mudança permite uma avaliação mais profunda do poder das estruturas visuais
e preocupações formais ao longo da carreira de Schneemann. Ela também coloca
sua obra no centro dos importantes debates filosóficos levantados pela arte
contemporânea, questionando a monotonia da pintura, ideias sobre as
particularidades do meio, e expandindo o campo da arte visual para incluir o
sujeito incorporado.
Obrigada a Carolee Schneemann por sua generosidade com seu tempo e
ideias: a Wendy Olsoff, Penny Pikington e aos funcionários da P.P.O.W. Gallery
pela oportunidade e todo seu bom ânimo; a Jennifer Selos por sua contínua
assistência com Carolee, a Saisha Grayson, pela grande atenção dada à edição
do meu trabalho; e, claro, a Tracey, como sempre, por seu inabalável apoio.
PARA CITAR ESTE TEXTO
REILLY, Maura. “Carolee Schneemann: ‘Em que Se Transformou a
Pintura?’”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 16, jul. 2016. ISSN:
2316-8102.
Tradução do inglês para o português de Leonardo Soares
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2016 eRevista Performatus e a autora
12 Schneemann conforme citada em Scott Macdonald, “Film and Performance: An Interview with Carolee Schneemann”, Mil lenium Film Journal, números 7/8/9, Outono/Inverno de 1980-1981, p. 105.