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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA
Comemoraccedilotildees e efemeacuterides ensaio episoacutedico sobre a
histoacuteria de dois paralelos
Rodrigo Bragio Bonaldo
Tese de doutorado
Porto Alegre Dezembro de 2014
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RODRIGO BRAGIO BONALDO
Comemoraccedilotildees e efemeacuterides ensaio episoacutedico sobre a
histoacuteria de dois paralelos
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Histoacuteria
Orientador Temiacutestocles Cezar
BANCA EXAMINADORA
Dr Francisco Murari Pires (USP)
Dr Felipe Charbel Teixeira (UFRJ)
Dr Fernando Nicolazzi (UFRGS)
Dr Benito Bisso Schmidt (UFRGS)
Orientador Dr Temiacutestocles Cezar (UFRGS)
PORTO ALEGRE
Dezembro 2014
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There is no great and no small
To the Soul that maketh all
And where it cometh all things are
And it cometh everywhere
I am the owner of the sphere
Of the seven stars and the solar year
Of Caesarrsquos hand and Platorsquos brain
Of Lord Christrsquos heart and
Shakespearersquos strain
RW Emerson History (Essays)
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Agradecimentos
Esta tese representa o fim de um longo percurso geograacutefico e intelectual que
iniciou na periferia de antigas preocupaccedilotildees e que parece encerrar-se no centro de
novos interesses Devo admitir que escrever algumas linhas de agradecimentos eacute
tarefa aacuterdua para quem apenas consegue pensar atraveacutes de diaacutelogos imaginaacuterios
extrapolados de sentenccedilas ditadas pelos mais diferentes interlocutores Contato ocular
ou soslaio tiacutemido de minha parte pouco importaraacute
Apoacutes doze anos de formaccedilatildeo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
gostaria de comeccedilar agradecendo agrave instituiccedilatildeo que sempre me acolheu personificada
em seus professores funcionaacuterios e alunos Agravequeles com quem pude conviver com
maior intensidade em geral ligados como eacute de se esperar ao Departamento de
Histoacuteria ficam meus agradecimentos especiais A Temiacutestocles Cezar pela orientaccedilatildeo
amizade confianccedila e respeito intelectual Aos colegas de linha de pesquisa Lucas La
Bella Costa Evandro Santos Renata Dal Sasso Eliete Tiburski Pedro Silveira e
Vitor Batalhone pela constante interlocuccedilatildeo e eventual empreacutestimo de livros e fontes
A Luciana Boeira por tudo isso somado ao companheirismo fraternal do outro lado
do Atlacircntico Ainda ao trio de amigos que desde a graduaccedilatildeo satildeo meu elo mais forte
com a dimensatildeo materialista do pensamento histoacuterico Nauber Gavski da Silva
Guinter Tlaija Leipnitz e Fernando Cauduro Pureza No miacutetico apartamento da Lopo
Gonccedilalves 498 habitado pela alma de Custoacutedio natildeo haacute como se esquecer dos anos de
convivecircncia e conversas com Gabriel Focking A Tiago Ribeiro e Caacutessia Silveira
pequenos grandes personagens de minha vida intelectual
Tambeacutem devo render meus cumprimentos agrave famiacutelia Bonaldo que sempre me
apoiou Edison e Marise Alexandre e Ana igualmente a Vera Braggio
Ao governo brasileiro por ndash atraveacutes da CAPES ndash possibilitar natildeo apenas o
financiamento dessa pesquisa mas igualmente a experiecircncia de estaacutegio doutoral na
Franccedila Na Franccedila a Franccedilois Hartog professor que me acolheu durante um ano na
Escola de Altos Estudos em Ciecircncias Sociais de Paris e que me incentivou a estudar
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as efemeacuterides Somado ao periacuteodo no exterior agrave co-orientaccedilatildeo e ao tempo na
Biblioteca Nacional francesa devo lembrar dos professores Benito Bisso Schmidt e
Fernando Nicolazzi participantes de minha banca de qualificaccedilatildeo durante a qual
realizaram criacuteticas cujo teor ndash mesmo que natildeo endereccedilado a isso ndash terminou por
modificar os rumos da pesquisa Agradeccedilo tambeacutem aos professores Francisco Murari
Pires e Felipe Charbel Teixeira membros da banca de doutorado e leitores criteriosos
de meu texto Embora natildeo tenha conseguido incorporar todas as suas contribuiccedilotildees
gostaria que soubessem que elas estaratildeo na pauta de minhas futuras reflexotildees
Por fim agradeccedilo a Bruna Vargas natildeo apenas pela correccedilatildeo de partes do
manuscrito mas pela paciecircncia mundana a minha eventual desatenccedilatildeo pelas questotildees
sublunares nos uacuteltimos dois anos Ainda devo algumas palavras a Michael
Uwemedimo pela ediccedilatildeo do resumo em liacutengua inglesa
Rodrigo Bonaldo
Florianoacutepolis Janeiro de 2015
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Resumo
ldquoComemorar efemeacuteridesrdquo natildeo eacute apenas uma expressatildeo legiacutetima utilizada para
fazer referecircncia agrave celebraccedilatildeo de uma festa nacional Desde o final do seacuteculo XIX ao
menos em liacutengua portuguesa os dois termos tecircm sido associados como sinocircnimos A
presente tese representa um esforccedilo em compreender o desenvolvimento de dois
conceitos ndash comemoraccedilotildees e efemeacuterides ndash na longa duraccedilatildeo Os encontros e desvios
entre as praacuteticas associadas a um e a outro seratildeo pontuados atraveacutes da seleccedilatildeo de
episoacutedios intelectuais seguidos pelo exame de debates que os tocavam na periferia de
suas articulaccedilotildees
Na primeira parte dedicada agraves comemoraccedilotildees montei uma revisatildeo desse bem
conhecido toacutepico de estudos endereccedilada a uma uacutenica hipoacutetese a saber o ldquoofiacuteciordquo
comemorativo pode ser entendido como uma forma de comunicaccedilatildeo e transmissatildeo
geracional de valores Inspirado pelas fontes argumento que os eventuais pontos de
encontro entre o par de objetos propostos nesta tese satildeo anaacutelogos agraves interrelaccedilotildees
entre a ldquoordem do tempordquo e a ldquoordem da naturezardquo entre o tempo dos homens e o
movimento das estrelas
Neste drama conceitual se pudermos assim chamaacute-lo fariacuteamos perceber como
a superaccedilatildeo dos antigos modelos cosmoloacutegicos natildeo se esquivou em guardar para
assumir termo caro a Pomian uma loacutegica cronosoacutefica Se eu for bem sucedido esse
argumento deveraacute se expressar na segunda parte As efemeacuterides como taacutebuas do
movimento dos corpos celestes vieram sofrer uma lenta transiccedilatildeo rumo ao registro
dos feitos humanos Bebendo em fontes antigas e nas praacuteticas de emulaccedilatildeo
personagens bem conhecidos da primeira modernidade associaram o termo primeiro
aos diaacuterios pessoais depois ao jornalismo e nos seacuteculos seguintes agrave histoacuteria literaacuteria
religiosa e poliacutetica Na Franccedila as eacutepheacutemeacuterides emergem da revoluccedilatildeo jaacute como um
subgecircnero historiograacutefico No Brasil da segunda metade do seacuteculo XIX listas de
efemeacuterides encontram lugar comum junto agraves comemoraccedilotildees dentro dos debates do
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IHGB Eacute no horizonte do projeto de naccedilatildeo que busco observar a uniatildeo dos paralelos
Esse horizonte ndash como um ponto de chegada ndash vai aparecer ao final de cada secccedilatildeo da
tese observado a partir da celebraccedilatildeo do quadricentenaacuterio da descoberta de Cabral
Palavras-Chave Comemoraccedilotildees Efemeacuterides Antigos e Modernos Histoacuteria da
Historiografia Projeto de Naccedilatildeo
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Abstract
ldquoComemorar efemeacuteridesrdquo is a Portuguese phrase that despite its academic
ring is often used in the mainstream press It translates roughly as the
commemoration of an auspicious occasionrsquo and is used in reference to the public
marking of nationally significant events
By the end of the nineteenth century the two terms of this phrase came to be
synonymous in Portuguese This thesis represents an effort to understand the
development of these two terms ndash efemeacuterides and comemoraccedilotildees ndash over the longue
dureacutee The long-term similarities in the practical and public uses of these terms are
explored by tracing their discursive deployments and examining the debates that
surrounded such public uses
The first section dedicated to commemorations frames the analysis of this
much discussed topic with the following hypothesis the act of commemoration is a
form of moral utterance between generations it is the rehearsal and transmission of
collective values
Drawing on historical sources I argue that the eventual points of contact
between these terms can be seen as analogs to the discursive exchange and conflict
between the classical and peripatetic notions of the ldquoorder of timerdquo and the ldquoorder of
naturerdquo
In this conceptual drama one sees how the sublation of old cosmological
perspectives nevertheless still contains what I shall call ndash following Pomian ndash a
chronosophy This analysis leads to the second part of the thesis Efemeacuterides
originally tables of the movements of the celestial bodies ndash also known as almanacs ndash
underwent a slow transition from the celestial to the earthly from the charting of the
stars to the recording of human deeds Drawing on classical texts well-informed
readers of early modernity would have associated those writings in the first instance
with diaries then with journalism and in the following centuries with political
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history Emerging from the French Revolution as a historiographical subgenre lists of
Efemeacuterides shared a common function with commemorations as nation-building
practices that described the horizon of a project to create national identity This
horizon as a meeting point of moral utterance and political project is explored at the
end of both sections of the thesis as it is observed in the quadricentenial celebration
of Cabralrsquos Discovery of Brazil It is at this horizon that the parallel developments of
comemoraccedilotildees and efemeacuterides promise to meet
Keywords Commemorations Ephemerides Ancients and Moderns History of
Historiography Nation-Building Process
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SUMAacuteRIO
Agradecimentos_____________________________________________________4
Resumo____________________________________________________________6
Abstract____________________________________________________________8
Introduccedilatildeo A naccedilatildeo e o cosmos_______________________________________12
Da festa da federaccedilatildeo agrave federaccedilatildeo da memoacuteria _____________________________23
Parte I Comemoraccedilotildees
1 Entre a memoacuteria e a moral as comemoraccedilotildees como reparaccedilatildeo identitaacuteria
11 A grande forccedila___________________________________________________ 29
12 Entre a memoacuteria coletiva e os costumes_______________________________ 35
13 Comemoraccedilatildeo como dever de esquecimento____________________________41
14 Era das comemoraccedilotildees 10__________________________________________45
15 Dos homens ceacutelebres aos grandes homens______________________________46
16 Oficiar a moral dos grandes homens da naccedilatildeo___________________________63
2 Celebrar os mortos e editar a naccedilatildeo Poliacuteticas de memoacuteria e esquecimento
21 O espelho perfeito de Bonifaacutecio a Bonifaacutecio___________________________72
22 A lembranccedila como ato moral________________________________________76
23 Catalisadores do discurso moralista___________________________________88
24 Da crise moral ao grande jubileu_____________________________________94
25 A naccedilatildeo editada ou o Livro do Centenaacuterio_____________________________102
26 Oradores historiadores e magistrados morais___________________________120
Almas em movimento Chamado geracional ao som das estrelas_______________131
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Parte II Efemeacuterides
3 Ordem da Natureza As efemeacuterides e os nuacutemeros da mudanccedila
31 Efemeacuterides antigas a ordem do tempo submissa________________________ 145
32 Primeiras experiecircncias cristatildes a ordem do tempo comemorada_____________156
33 A escolaacutestica e a via media_________________________________________161
34 Experiecircncias humanistas brechas na ordem natural______________________175
35 Conjunccedilotildees astrais e eventos sublunares_______________________________178
36 Le Roy e o Imperador uma (des)ordem da natureza____________________185
4 Ordem do Tempo O retorno das efemeacuterides agrave histoacuteria
41 Conhecer os ciclos preluacutedio de um eclipse da natureza _________________212
42 As Diatribes das Efemeacuterides________________________________________232
43 As efemeacuterides na escola de moral e de poliacutetica _________________________244
44 Uma moral e uma cosmologia ______________________________________251
Conclusatildeo Da perfeiccedilatildeo da alma e do progresso da naccedilatildeo________________266
Referecircncias bibliograacuteficas ____________________________________________284
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A naccedilatildeo e o cosmos
O universo requer a eternidade Os teoacutelogos
natildeo ignoram que se a atenccedilatildeo do Senhor se
desviasse um uacutenico segundo de minha matildeo
destra que escreve esta tornaria a cair no
nada () Por isso afirmam que a
conservaccedilatildeo deste mundo eacute uma perpeacutetua
criaccedilatildeo e que os verbos conservar e criar
tatildeo antagocircnicos aqui satildeo sinocircnimos no Ceacuteu
Borges Histoacuteria da Eternidade
O tempo ainda estaacute na base de nosso problema como um dia esteve para
Borges Ciacuteclico linear senoidal progressivo ou decadente natildeo se trataraacute no entanto
de classificaacute-lo entre essas categorias mas de entender a forma como expressotildees
contingentes de sua experiecircncia julgaram fazecirc-lo em um longo caminho que natildeo
deixa de seguir a proacutepria temporalidade Mesmo o par de objetos propostos por esta
tese jaacute levanta a poeira que se esconde debaixo das claacutessicas formidaacuteveis e influentes
teses de Mircea Eliade ou Karl Loumlwith As efemeacuterides por mais que antecipem a
expectativa do retorno de uma configuraccedilatildeo astral natildeo poderiam senatildeo no sonho dos
profetas anular a constante revoluccedilatildeo das estrelas intervalos naturais sob os quais
dias e anos como em uma linha reta inexoravelmente continuam a passar As
comemoraccedilotildees por mais que sejam anunciadas pelos signos do progresso projetam a
lembranccedila atraveacutes dos muacuteltiplos de 7 lidos no livro do Jubileus ndash ou dos ciclos
avultados pelo nuacutemero 5 em sua versatildeo poacutes-leviacutetica do centenaacuterio Pareceria muito
sedutor periodizar ndash como se pudeacutessemos lhes encontrar o ritmo ideal ndash a histoacuteria de
dois conceitos paralelos entre uma era ciacuteclica dos annos orbis pagatildeos e uma era
linear e irreversiacutevel apregoada com clareza desde ao menos a escolaacutestica e
chancelada pela filosofia da histoacuteria iluminista e pela historiografia do seacuteculo XIX
Esse trajeto diria Eliade seria o capiacutetulo de uma filosofia da histoacuteria1
O que proponho no entanto eacute bem mais modesto e de todo particular Se
Krzysztof Pomian jaacute assinalava o caminho Franccedilois Hartog retomando o problema
da Ordem a partir da histoacuteria da historiografia cunhou o termo que norteia minha
reflexatildeo temporalizaccedilatildeo do tempo Tanto as efemeacuterides ndash humanas ou celestes ndash
1 ELIADE Mircea O mito do eterno retorno Satildeo Paulo Mercuryo 1992 p 5
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quanto as comemoraccedilotildees ndash sagradas ou profanas ndash propotildee um tipo de cronologia ldquoA
esse primeiro e poderoso instrumento de temporalizaccedilatildeo do tempordquo escreveu Hartog
ldquosoma-se aquele que nomearei de domesticaccedilatildeo da simultaneidade do natildeo-
simultacircneordquo dentro do qual entre as muitas imagens que poderiacuteamos lhe associar
encontramos a necessidade de nos manter atentos agrave coexistecircncia da diversidade das
formas de configuraccedilatildeo temporais2 Que relaccedilatildeo efemeacuterides e comemoraccedilotildees na
marcha da longa duraccedilatildeo manteacutem com a ordem do tempo e aquilo que inspirado
pelas fontes chamarei de ordem da natureza De que maneira e sob qual contexto se
daacute no caso brasileiro o encontro semacircntico ndash pouco evidente em outras liacutenguas ndash
entre os dois conceitos que busco esclarecer
A celebraccedilatildeo do quadricentenaacuterio da naccedilatildeo brasileira a reafirmaccedilatildeo e
reificaccedilatildeo de uma identidade geral aqui faz as vezes natildeo de um estudo de caso ou de
um laboratoacuterio particular mas de um ponto de chegada Inicialmente imaginei esta
tese como um estudo do desenvolvimento das comemoraccedilotildees nacionais de 1900
talvez de 1908 e de 1922 ao lado daquela do ano 2000 Mais do que isso o objetivo
de meu projeto era dar conta do que imaginava ndash hoje acredito superestimando as
fontes ndash ser o gecircnero comemorativo por excelecircncia do tempo presente as narrativas
jornaliacutesticas da histoacuteria esses best-sellers contemporacircneos que me ocuparam por dois
anos durante o mestrado A experiecircncia de pesquisa na longa duraccedilatildeo outrossim me
fez logo tomar conhecimento da antiguidade da contingecircncia e da diversidade dos
topoi que poderiam ser lidos como comemorativos
O encontro mais iacutentimo que tive com o conceito de efemeacuteride em minha
experiecircncia de intercacircmbio doutoral na Franccedila terminou salvando-me de abraccedilar uma
tarefa inexequiacutevel Eacute por volta do ano do grande jubileu nacional quando os saacutebios
os publicistas e os oradores da naccedilatildeo sentem-se banhados pelas ondas comemorativas
do fin de siegravecle que debates realizados no ciacuterculo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico
Brasileiro comeccedilam a sinalizar o improvaacutevel choque dos paralelos Pouco depois os
conceitos tornariam-se algo como sinocircnimos imperfeitos e diversos oacutergatildeos oficiais ou
associaccedilotildees privadas poderiam enunciar a frase ldquocomemorar efemeacuteridesrdquo Essa uniatildeo
semacircntica parcial e original natildeo seria possiacutevel de todo modo sem o diaacutelogo e o
intercacircmbio de textos e ideias entre o Brasil e outras naccedilotildees entre as comemoraccedilotildees
2 HARTOG Franccedilois La temporalisation du temps une longue marche Texto apresentado em
conferecircncia ministrada por Franccedilois Hartog no dia 10 de outubro de 2011 como participaccedilatildeo no
Programa Caacutetedras IEATFUNDEP p 1
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revolucionaacuterias europeacuteias e americanas o centenaacuterio lusitano de Camotildees e os
modelos literaacuterios franceses lidos nas populares eacutepheacutemeacuterides Entretanto seria preciso
esperar ateacute o seacuteculo seguinte no arrebentar de outras ondas comemorativas para
observarmos jaacute tanto mareados a dicionarizaccedilatildeo dos dois termos finalmente como
sinocircnimos3
ldquoEntatildeo o seu trabalho pretende usar um meacutetodo comparativordquo perguntou-me
o entatildeo presidente da EHESS Apenas o fato de desfilar pelos corredores do oitavo
andar do novo preacutedio da instituiccedilatildeo perfilado por nomes para mim quase miacuteticos a
cada porta ndash nomes que eu conhecia e admirava desde a graduaccedilatildeo ndash jaacute era motivo
para certo nervosismo Mas ouvir o professor Hartog explicar meu proacuteprio trabalho
apoacutes uma breve exposiccedilatildeo feita em um confuso e balbuciante francecircs teve ares de
epifania Felizmente ele natildeo era o tipo de erudito que se deixava impressionar com a
ingenuidade e a ignoracircncia dos alunos mensagem que escutei em sua tiacutemida e sincera
risada ao me ouvir insinuar uma possiacutevel relaccedilatildeo entre o termo efemeacuteride e o filoacutesofo
Evecircmero Com um bom inventaacuterio de fontes e indicaccedilotildees bibliograacuteficas apoacutes
acompanhar ao longo do ano letivo de 2011-2012 um seminaacuterio intitulado
precisamente Temporalisation du Temps tentei dar conta de integraacute-los em uma
contribuiccedilatildeo original Descobri que minhas suspeitas natildeo eram de todo desbaratadas
e que a relaccedilatildeo entre o tempo coacutesmico das efemeacuterides e os ancestrais divinizados pela
memoacuteria das geraccedilotildees posteriores ndash se natildeo falha minha primitiva leitura de Evecircmero ndash
tornava-se clara (ainda que em meados da modernidade jaacute por distinccedilotildees
metafoacutericas) nos ofiacutecios comemorativos mesmo que eu tenha de bom grado
abandonado a busca de um elo semacircntico que nem o mais alucinado dos filoacutelogos
oitocentistas teria coragem de traccedilar
Escrever sobre comemoraccedilotildees nacionais natildeo deveria representar um grande
desafio A literatura a respeito como se deveria imaginar cresceu junto agraves vagas
celebrativas do final do seacuteculo XX Graccedilas a esses ciclos pude ter acesso a um grande
nuacutemero de trabalhos publicados na Franccedila e na Inglaterra nos Estados Unidos e no
Brasil Quem seguir o raciociacutenio de Pierre Nora referecircncia unacircnime no campo
tenderaacute a ver as comemoraccedilotildees articuladas em torno de duas palavras de ordem a
3 O primeiro dicionaacuterio a fazecirc-lo incluindo a passagem ldquo3 comemoraccedilatildeo de um fato importante de
uma data etcrdquo foi tardiamente HOUAISS Antocircnio VILLAR Mauro de Salles FRANCO Francisco
Manoel de Mello Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Riod e Janeiro Objetivo 2001 p 1102
entrada Efemeacuteride
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geraccedilatildeo e os centenaacuterios4 O desafio aqui seria o de pensar esses fenocircmenos na longa
duraccedilatildeo ou seja suas praacuteticas antes das grandes ondas do final do milecircnio ndash as
comemoraccedilotildees antes de Nora ndash deslocadas portanto daquilo que Hartog diagnosticou
como um presente presentista e agora reunidas ao lado do patrimocircnio e da memoacuteria
no refuacutegio comum da identidade5
Dividido em duas partes o estudo que apresento eacute ainda intercalado entre dois
outros textos No proacutelogo uma breve leitura da festa da federaccedilatildeo ndash feita sobre os
despojos da majestade de Michelet ndash tenta lanccedilar um luminar propedecircutico a respeito
natildeo das comemoraccedilotildees antes de Nora mas propriamente da memoacuteria coletiva antes
de Halbwachs Ao longo da primeira comemoraccedilatildeo moderna natildeo se trata de buscar
uma origem algo grandiosa do fenocircmeno jaacute descrito nos Quadros Sociais mas tatildeo
somente um iniacutecio possiacutevel lido pelo espiritualismo republicano francecircs atraveacutes de
estampas coloridas por expressotildees como ldquounanimidade dos espiacuteritosrdquo ou ldquosubstacircnciardquo
nacional expressotildees que apontam ndash em uma perspectiva quiccedilaacute ligada agrave ideia de
Benjamin Constant sobre a liberdade representativa dos modernos ndash ao paralelo com
o problema da alma entre os antigos
De Ciacutecero a Durkheim dele a seu seguidor Halbwachs e de laacute ateacute a polecircmica
com Marc Bloch inicio o primeiro capiacutetulo indicando os aspectos de uma religiatildeo
ciacutevica sob os quais se revestem os chamados ldquocultos positivosrdquo dentre os quais
Alexandre Herculano jaacute na Portugal do seacuteculo XIX parecia designar um papel
especial ao historiador Comeccedilo a falar igualmente dos centenaacuterios do fin de siegravecle
dando atenccedilatildeo especial ndash interessado no sacerdoacutecio moral ndash ao cerimonial de seus
supostos representantes os grandes homens Conceito que acompanho em Victor
4 NORA Pierre Lrsquoegravere de la commeacutemoraison In Les lieux de meacutemoire III Paris Gallimard 1984 v 3
p 982-983 5 ldquoAssim esse presente que reina aparentemente absoluto ldquodilatadordquo suficiente evidente mostra-se
inquieto Ele queria ser seu proacuteprio ponto de vista sobre si mesmo e descobre a impossibilidade de se
fiar nisso mesmo na transparecircncia das grandes plataformas de Beaubourg Ele se mostra incapaz de
preencher a lacuna no limite da ruptura que ele proacuteprio natildeo cessou de aprofundar entre o campo de
experiecircncia e o horizonte de expectativa Escondido na sua bolha o presente descobre que o solo
desmorona sob seus peacutes Reneacute Magritte poderia ter pintado isso Trecircs palavras chave resumiram e
fixaram esses deslizamentos de terreno memoacuteria mas trata-se na verdade de uma memoacuteria
voluntaacuteria provocada (a da histoacuteria oral) recontruiacuteda (da histoacuteria portanto para que se possa contra
sua histoacuteria) patrimocircnio ndash 1980 foi decretado o ano do Patrimocircnio ndash o sucesso da palavra e do tema (a
defesa a valorizaccedilatildeo a promoccedilatildeo do patrimocircnio) acompanha a crise da proacutepria noccedilatildeo de ldquopatrimocircnio
nacionalrdquo comemoraccedilatildeo de uma comemoraccedilatildeo agrave outra poderia ser o tiacutetulo de uma crocircnica dos uacuteltimos
vinte anos Esses trecircs termos apontam para um outro que eacute como seu lar a identidaderdquo HARTOG
Franccedilois Regimes de historicidade presentismo e experiecircncias do tempo Autecircntica Belo Horizonte p
156 e passim
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Cousin e Thomas Carlyle ainda em RW Emerson e Augusto Comte atento a
identificar seus leitores em Portugal e no Brasil
Eacute essa relaccedilatildeo do Brasil com outras naccedilotildees da geraccedilatildeo portuguesa de 1870
com a sua contraparte brasileira que marca o tom do segundo capiacutetulo Nele entro
mais propriamente no que chamarei de ldquoofiacutecios comemorativosrdquo retomados no
contexto dos diaacutelogos intelectuais que refaziam ao ritmo dos navios a vapor a
aventura de Cabral embora tambeacutem singrando o caribe rumo agrave Ameacuterica do Norte Se
no capiacutetulo anterior tento escrevinhar algumas linhas a respeito das comemoraccedilotildees
nacionais durante o Impeacuterio agora iremos nos aproximar dos ciclos dos centenaacuterios
O objetivo primordial eacute deixar que as ondas de memoacuteria nos carreguem ateacute as praias
do Rio de Janeiro do ano de 1900 Quanto mais o fizermos mais sentiremos a
necessidade de entendermos o sentido que as fontes naquele momento atribuiam agrave
ordem do tempo Falava-se muito em progresso eacute verdade e nisso o trabalho pioneiro
de Wanderley da Rocha em dissertaccedilatildeo defendida dois anos antes dos 500 de Cabral
torna-se uma referecircncia incontornaacutevel Mas falava-se em igual medida de decadecircncia
e o descompasso sentido entre desenvolvimento teacutecnico e a crise moral seraacute lido a
partir das referecircncias citadas pelos proacuteprios colaboradores do Livro do Centenaacuterio
Dentro desse contexto qual seria o valor atribuiacutedo agraves comemoraccedilotildees Eacute na dinacircmica
entre progresso e decadecircncia verdadeira agoniacutestica da memoacuteria coletiva subscrita nas
entrelinhas do ldquootimismordquo da imprensa e dos oradores oficiais que proponho
observarmos as propostas de reafirmaccedilatildeo e reificaccedilatildeo daquilo que seraacute chamado mais
tarde de identidade nacional
O intervalo que segue a primeira parte eacute destinado natildeo apenas ao sonho dos
leitores mas igualmente a defender a necessaacuteria tarefa de escutar mais do que de
evidenciar os nexos que ligavam no intervalo das vidas humanas o espaccedilo da
geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo ciacutevicas presentes ao menos desde as anacicloses da geraccedilatildeo de
Poliacutebio Recortei senatildeo uma uacutenica fonte parte final da Repuacuteblica de Ciacutecero essa
imitaccedilatildeo do trabalho homocircnimo do filoacutesofo da academia ateniense Com certa
liberdade que a distacircncia dos seacuteculos delega agrave imaginaccedilatildeo histoacuterica no melhor sentido
collingwoodiano planejo prestar tributo ao Sonho de Cipiatildeo lendo-o como um
chamado geracional Busco fazer ouvi-lo como um apelo em nome da virtude ciacutevica
o qual antecipava as expectativas dos optimus e campeotildees da coisa puacuteblica
modestamente mantendo-o em paralelo ao repertoacuterio das vozes puacuteblicas que jaacute se
fizeram ouvir no capiacutetulo anterior A relaccedilatildeo de alteridade forma fundamental de
17
comunicaccedilatildeo que ilumina pela diferenccedila os mais variados povos humanos quer no
espaccedilo quer no tempo deixa escapar ainda assim questotildees sobre a trajetoacuteria da alma
a transmissatildeo dos valores a memoacuteria e o esquecimento da posteridade temperadas
mais de milecircnio e meio mais tarde pelas metaacuteforas celestes na exaltaccedilatildeo moderna dos
grandes homens e da naccedilatildeo
Tal imagem dos paralelos aliaacutes expediente fundamental da historia magistra
inspirou por muito tempo os modernos leitores de Plutarco e de suas vidas
encontrando seu auge ndash tanto no sentido de zecircnite ndash com os Romanos e Franceses de
Mably ndash quanto na acepccedilatildeo dos iniacutecios da decadecircncia ndash dado jaacute o impasse registrado
por Hartog da Revoluccedilatildeo Antiga e Moderna de Chateaubriand6 O paralelo era entatildeo
um tipo especial de comparaccedilatildeo entre gregos e romanos nos tempos de Plutarco
entre antigos e modernos agrave eacutepoca das querelas7 Em meu trabalho a figura encontra
esse sentido embora muito menos enquanto um instrumento balizador de accedilotildees
devendo a uma ordem coacutesmica o princiacutepio da imutabilidade humana como algueacutem
poderia ler nos gregos nem tampouco eacute claro pela vocaccedilatildeo retoacuterica de modelos de
virtude como poderia-se fazer notar em Perrault Devo ao topos antigo senatildeo a
possibilidade do exerciacutecio de um ldquoolhar distanciadordquo Nesse vetor horizontal os
paralelos correriam distanciados pelos seacuteculos protegidos pela integridade de suas
contingecircncias8
Mas natildeo se trata de uma busca da origem dos conceitos nem dos arqueacutetipos de
suas praacuteticas A linha de Ariadne que se movimenta por vezes agrave busca de analogias
entre antigos e modernos eacute na verdade uma caccediladora de seus debates e para isso
segue o desenvolvimento das fontes Se escrever sobre comemoraccedilotildees eacute em grande
parte revisitar um fenocircmeno que ganha atenccedilatildeo crescente escrever sobre efemeacuterides
por sua vez demonstrou-se uma tarefa mais complexa Desconheccedilo trabalhos que
tenham se interessado em refazer mesmo ao sabor do esboccedilo episoacutedico e incompleto
6 Chauteaubriand imaginava-se como um nadador entre dois seacuteculos preso a tarefa siacutesifica de alcanccedilar
a outra margem do rio da histoacuteria incapacitado de fazecirc-lo como sentia-se pelo peso de suas
experiecircncias Ver a instigante anaacutelise de HARTOG Franccedilois Les Anciens les Modernes les Sauvages
ou le Temps des Sauvages In Chateaubriand le Tremblement du Temps Berchet Presses
Universitaires du Mirail Toulouse 1994 p 177-200 7 HARTOG Franccedilois Du parallegravele agrave la comparaison In Entretiens drsquoarcheacuteologie et drsquohistoire
Plutarque Grecs et Romans em questions 1998 pp 161-171 8 Estou longe portanto do paralelo como ldquoconcursordquo entre povos tal como descrito em uma leitura
retoacuterica ligada ao gecircnero demonstrativo por GICQUIAUD Greacutegory La balance de Clio reacuteflexions
sur la poeacutetique et la rheacutetorique du parallegravele In Marc Andreacute Bernier (org) Parallegravele des anciens et des
modernes Rheacutetorique histoire et estheacutetique au siegravecle des Lumiegraveres Presses Universitaires Laval
2007
18
que apresento o caminho de seu conceito Tampouco encontrei um estudo comparado
entre seus usos afinal natildeo seria um conceito deslocado das praacuteticas meramente uma
palavra Existem no entanto toda uma seacuterie de estudos que senatildeo as citam de
passagem resolveram dissertar sobre a especificidade de algumas de suas
manifestaccedilotildees As efemeacuterides ndash como veremos a partir do terceiro capiacutetulo ndash correm
tambeacutem paralelamente agraves comemoraccedilotildees Como dois conceitos de movimento
compartilham o ritmo da ordem do tempo ainda que as tarefas a eles associadas os
distanciem interditando-os de confundirem suas representaccedilotildees antes que as praacuteticas
natildeo o faccedilam Momentos de aproximaccedilatildeo no entanto nunca deixaram de ser comuns
embora suas circunstacircncias tenham oscilado no arranjo das imitaccedilotildees e na editoraccedilatildeo
criativa de modelos
Tomei conhecimento desde cedo das Efemeacuterides de Alexandre escritas
provavelmente pelo secretaacuterio do rei e futuro diaacutedoco do reino do Ponto Eumenes de
Caacuterdia mas perdidas para sempre envolta nos misteacuterios da morte do monarca ou
consumidas pelas chamas da biblioteca de Alexandria Ignorar o grego seria um
desafio ainda maior natildeo fosse eacute claro o cuidado da geraccedilatildeo de Poliacutebio em
transcerver-lhe em latim o significado dos modelos Aleacutem do precircambulo representado
por obras esquecidas essa eacute em todos os efeitos uma histoacuteria que comeccedila na Roma de
Cipiatildeo embora seus sonhos eacute claro possam nos transportar para a Atenas do seacuteculo
V ou um pouco aleacutem Das efemeacuterides histoacutericas narrativa dia-a-dia dos feitos dos
homens ndash em Isiodoro jaacute um subgecircnero de narratio rei gestae ndash fui obrigado a
aventurar-me no solo movediccedilo de praacuteticas que seriam desde os primoacuterdios do
iluminismo de Bayle o pinaacuteculo das supersticcedilotildees travestidas de arte
Natildeo julguei necessaacuterio como um dia o fez Thorndyke incluir uma nota de
rodapeacute desculpando-me frente ao leitor por colocar um saber maldito em seu
ldquoverdadeiro lugar na histoacuteria da ciecircnciardquo Apenas registro que estudar os saberes
celestes entre antigos e modernos faz-me sentir tatildeo astroacutelogo quanto meu irmatildeo
aracnoacutelogo desejaria se tornar um animal de oito patas Tampouco por outro lado
planejei travestir esta tese em alguma espeacutecie de oficializaccedilatildeo da memoacuteria disciplinar
das ciecircncias naturais Galileu encomendara horoacutescopos a seus filhos papas e reis
mantinham astroacutelogos em suas cortes e mesmo Newton nutria conhecido interesse
pela astrologia inferior Muitos antepassados da ciecircncia moderna foram bruxos
dotados de racionalidade defensores do texto e leitores do cosmos E para decodificaacute-
lo eles necessitavam do caacutelculo das efemeacuterides celestes
19
A ordem natural peripateacutetico-ptolomaica encontrou seus limites na medida em
que incetivava olhares aos ceacuteus fazendo que alguns entrevessem entre as rachaduras
constatadas pela autoacutepsia no edifiacutecio das autoridades a proximidade do fim dos
tempos O uso do princiacutepio da influecircncia celeste previa mas o diluacutevio e a
conflagraccedilatildeo natildeo vieram Olhando mais de perto com ajuda da arte telescoacutepica a lua
dos esboccedilos de Galileu parecia muito pouco com as esferas perfeitas dos autores
claacutessicos dotada de picos mares e imperfeiccedilotildees como se a esfera superior estivesse
tambeacutem sujeita agrave geraccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo Natildeo pretendo no entanto evocar a faacutecil
vitoacuteria de uma ldquorevoluccedilatildeo cientiacuteficardquo Lenta mudanccedila de praacutetica como veremos a
transiccedilatildeo do ouvido agrave visatildeo que fez os fenocircmenos celestes passarem de sinais
catastroacuteficos e morais a meros fatos naturais natildeo parece ter sido sempre linear e
progressiva Caso fosse possiacutevel deduzir certa ldquoaceleraccedilatildeo do tempordquo com o advento
da imprensa teremos que admitir tanto constrangidos que as fontes natildeo liam os
fenocircmenos registrados por elas sequer como tiacutemidos ldquoexcessos de informaccedilatildeordquo Os
limites da ordem natural do cosmos medieval esbarrariam em formas de representaccedilatildeo
que se apontavam para o futuro esse seria um porvir que insistiria em ser lido nos
textos autoritativos do Livro Sagrado envoltos em escatologia milenarismo ou ainda
expressos pelos signos do ldquogrande medordquo A evidecircncia de um ldquobeco sem saiacutedardquo para
usar expressatildeo cara a Pomian eacute o papel da pequena comparaccedilatildeo que ofereccedilo entre as
leituras de Louis Le Roy e Padre Antocircnio Vieira a respeito da correspondecircncia entre
os fenocircmenos celestes e o destino dos homens e dos Estados
A crise dos modelos alexandrinos foi cercada pelo desenvolvimento da oacutetica
da filologia e do descaso pelas supersticcedilotildees Mas se no seacuteculo XVII Spinoza jaacute
acreditava que o tempo biacuteblico havia chegado ao fim natildeo seria demais lembrar que
como fatalidade linear ele insistiu em retornar atraveacutes dos ciclos dos jubileus O
mesmo acontecera com a ordem da natureza natildeo mais propagada apenas por um
intransigente seacutequito de aristoteacutelicos nem menos ainda por grupos de astroacutelogos e
miacutesticos relegados ao uacuteltimo degrau da repuacuteblica das letras Palavras muito bem
vindas poderiam ser enunciadas a respeito do direito natural ateacute hoje debatido
embora deva advertir desde jaacute natildeo eacute esse o caminho ao qual as fontes me levaram Jaacute
no capiacutetulo quatro ao se aproximarem do seacuteculo das luzes as efemeacuterides reafirmam
seu sentido claacutessico de narrativa dia-a-dia aproximando-se natildeo da luz advinda das
esferas celestes mas daquela produzida pela reuniatildeo dos homens na esfera puacuteblica Eacute
no publicismo preacute-revolucionaacuterio que retomarei os debates encabeccedilados por nomes
20
bem conhecidos da histoacuteria da histoacuteria contra um inimigo comum os ldquofiloacutesofos
economistasrdquo esse seacutequito religioso que insistia em incluir a ordem natural na pauta
dos direitos inalienaacuteveis da propriedade privada e do livre comeacutercio Se a aceleraccedilatildeo
dos ciclos naturais sentida pelos renascentistas parecia apressar a histoacuteria a seu fim
biacuteblico os debates protagonizados nas efemeacuterides puacuteblicas poucos anos antes de
1789 foram um dos muitos agentes testemunhais do progresso revolucionaacuterio
Agrave eacutepoca da revoluccedilatildeo assistiremos a reemergecircncia das efemeacuterides histoacutericas
modelos que seratildeo glosados imitados e divulgados pelos quatro cantos do globo
Parte delas ainda parecia guardar entretanto algo dos sarrabais dos lunaacuterios dos
almanaques e das ephemeris dos seacuteculos anteriores Na Franccedila da restauraccedilatildeo uma
dessas fontes como veremos aparentava nutrir esperanccedilas no retorno da esfera
puacuteblica ao seu lugar natural Sua acircnsia em projetar o futuro como se apenas dessa
maneira pudessem completar o passado significando o presente manteacutem entre as
efemeacuterides como vou propor inspirado ainda em Pomian uma potencialidade
cronosoacutefica a qual escreve o porvir em linhas gerais a partir de um discurso de
verdade ldquomisto de profecias e periodizaccedilotildeesrdquo9 Trata-se de um tipo especial de
prognoacutestico pois sua fortaleza eacute construiacuteda como o resultado loacutegico de um sistema
baseado em um conjunto de fatos previamente ordenados no tempo com precisatildeo de
dias apresentando-os como a mateacuteria bruta da histoacuteria Populares no seacuteculo XIX as
eacutepheacutemeacuterides anunciavam natildeo mais a influecircncia das conjunccedilotildees e eclipses das esferas
celestes no mundo sublunar mas julgavam influenciar a esfera puacuteblica rumo agrave tarefa
de naturalizar a grandeza moral de certos personagens poliacuteticos atraveacutes de um
trabalho de memoacuteria
A proximidade do centenaacuterio da grande comemoraccedilatildeo ndash momento em que a
fala do orador faz os paralelos se tocarem ndash ocasionou no caso brasileiro uma seacuterie
de discussotildees no IHGB que terminaram por chancelar as efemeacuterides como um gecircnero
comemorativo ndash e frente ao julgamento da vontade poliacutetica dos pareceristas ora
aceitas pelo Instituto ora vistas como mais proacuteprias para as folhas diaacuterias
Relacionadas a datas natildeo escapariam a polecircmicas em especial durante um momento
em que a transiccedilatildeo para a repuacuteblica fazia o IHGB perder grande parte de seu prestiacutegio
anterior Tanto alheias ao Instituto vozes de uma autoproclamada ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo
com forte suporte publicista acreditariam anunciar o futuro da naccedilatildeo sob a imagem
9 HARTOG 2013 p 31
21
de uma velha ordem natural A investiccedilatildeo a respeito dos valores atribuiacutedos aos
conceitos de comemoraccedilatildeo e efemeacuteride encontraria agora um ponto de equiliacutebrio no
movimento de um tempo nacional como se seu projeto ndash o horizonte da naccedilatildeo ndash
fizesse igualmente as vezes de uma intersecccedilatildeo entre duas linhas paralelas
22
Proacutelogo
23
Da festa da federaccedilatildeo agrave federaccedilatildeo da memoacuteria
Comemorar a tomada da Bastilha festejar a revoluccedilatildeo ou projetar a naccedilatildeo Na
ordem das questotildees passado presente ou futuro Em julho de 1790 Paris com uma
Assembleia Nacional sua proacutepria federaccedilatildeo um prefeito seus comissaacuterios
municipais sua guarda nacional ainda assim estava atrasada estupefata agrave espera dos
ldquo26000 delegados vindos de todos os cantos da Franccedilardquo10
Frente agrave hesitaccedilatildeo e agrave calculada lentidatildeo das autoridades um perioacutedico local o
Chronique de Paris publica uma carta assinada pelo granadeiro Cartheri na qual o
simples ldquosoldado-cidadatildeordquo exortava seus compatriotas a auxiliarem nos preparativos
para a grande festa
Quereis caros compatriotas tornar completo vosso fermento
ciacutevico () Aquela que foi tatildeo bem sucedida aquela que nos
eacute hoje familiar a reuniatildeo de nossas vontades a vontade
nacional E qual eacute a circunstacircncia mais favoraacutevel a essa
empresa que aquela que se prepara para o 14 de julho11
A repercussatildeo dessa pequena carta publicada dia 5 sob a cartola das
ldquovariedadesrdquo teria sido acompanhada por uma intensa movimentaccedilatildeo popular a partir
do iniacutecio do mecircs milhares de parisienses de todos os gecircneros e classes atenderiam ao
chamado revolucionaacuterio como se representassem enfim a tal vontade nacional
Os aristocratas com a aboliccedilatildeo de seus privileacutegios datando de poucos dias eacute
claro tinham todos os motivos do mundo para se preocupar12 Em suas memoacuterias o
marquecircs de Ferriegraveres traria relatos do clima de hostilidade e sarcasmo que as
multidotildees do Champ-de-Mars armavam contra a jaacute antiga classe dominante Mesmo a
imprensa revolucionaacuteria com seus interesses em jogo tentava acalmar os acircnimos
10 BERNE Paul Souvenir du 14 Juillet 1880 Trois dates Fecircte nationale du 14 juillet 1880 Le 14
juillet 1789 Le 14 juillet 1790 Imp De Menaboeuf-Genin Lyon 1880 Monographie imprimeacutee p
26 11 Voulez-vous chers compatriotes rendre complet votre ferment civique () Celle qui nous a si bien
reacuteussi celle que nos est aujourdrsquohui familiegravere la reacuteunion geacuteneacuterale de nos volonteacutes la volonteacute nationale
Et quelrsquoe circonstance plus favorable agrave cette enterprise que celle qui se preacutepare pour le 14 julliet
Chronique de Paris T2 Paris monographie imprimeacutee 5 de Julho de 1790 p 742-743 12 Sobre a aboliccedilatildeo da nobreza em 19 de junho de 1790 e a reaccedilatildeo da aristocracia ver DOYLE W
Aristocracy and its Enimies in the Age of Revolution Oxford Oxford University Press 2009 p 239
24
Uma coisa uma soacute coisa pode infligir um observador
patriota nesses belos dias As paacutes de muitos cidadatildeos foram
decoradas com divisas ameaccediladoras contra os aristocratas
() O caraacuteter de um povo livre eacute subjugar o orgulho e
perdoar os vencidos Os aristocratas natildeo satildeo mais dignos de
sua ira13
Ferriegraveres chega a mencionar como o faria mais tarde Michelet que tanto os
aristocratas quanto os revolucionaacuterios suspeitavam de uma grande conspiraccedilatildeo A
nobreza temia um massacre jaacute no dia 14 enquanto que os revolucionaacuterios
suspeitavam de um plano para distrair os manifestantes e com a cidade entregue agraves
moscas saqueaacute-la queimaacute-la e assassinar seus habitantes14
Afinal ldquoconduzir essas massas indisciplinadas a Paris ao centro da agitaccedilatildeordquo
seria mesmo desejaacutevel Ainda teriacuteamos que esperar alguns anos como veremos mais
tarde nesta tese para a invenccedilatildeo do termo vandalisme (impossiacutevel pensaacute-lo sem a
ideia de patrimocircnio) mas outras palavras deviam fazer sua vez ldquoe o rei o que
aconteceraacute a elerdquo ldquoEis o que os realistas se diziam com terrorrdquo ldquoO reirdquo diriam os
jacobinos tambeacutem pela boca de Michelet ldquoo rei vai fazer a conquista de todo esse
povo creacutedulo que nos chegaraacute das proviacutencias Essa perigosa reuniatildeo vai amortecer o
espiacuterito puacuteblico () Ela vai monarquizar a Franccedilardquo15
Na Assembleia Nacional tanto aqueles que sentavam agrave esquerda do
presidente quanto os que se posicionavam a sua direita pareciam natildeo conseguir
compreender a dimensatildeo do fenocircmeno popular Natildeo sabiam o que ele era embora
soubessem que natildeo o queriam ali Seu temor natildeo era por conta dos delegados que jaacute
se instalavam no Hocirctel de Ville Seu temor era por conta dos milhares de cidadatildeos
que de todos os lados do paiacutes prometiam um conjunto de grandes peregrinaccedilotildees
rumo agrave capital era o temor de que muitos mais do que a ordem poderia admitir
fossem integrados pela naccedilatildeo no novo pacto federativo
Em 6 de julho de 1790 o Chronique de Paris escreve que a poliacutecia e os
funcionaacuterios puacuteblicos haviam rejeitado a proposta de apoio popular agraves obras da festa
13 ldquoUne chose une seule chose pouvoit affliger un observateur patriote dans ces beaux jours Les
pelles de beaucoup de citoyens eacutetoient orneacutees de devises menaccedilantes contre les aristocrates () le
caractegravere drsquoun peuple libre est de dompter les superbes et de pardonner aux vaincus Les aristocrates
ne sont plus dignes de votre courrouxrdquo Reacutevolutions de Paris 17900703 (T4N52)-17900710 p 755 14 FERRIEgraveRES Meacutemoires du Marquis de Ferriegraveres Paris Baudouin Fils 1822 pp 88-89 15 MICHELET Jules Histoacuteria da Revoluccedilatildeo Francesa da queda da Bastilha agrave Festa da Federaccedilatildeo
Trad Maria Luacutecia Machado Cia das Letras Satildeo Paulo 1989 p 413
25
ldquoEacute faacutecil de conceberrdquo dizia o perioacutedico ldquoqual desordem nascera do concurso de todos
que desejarem trabalhar no Campo de Marterdquo16 incluindo mulheres crianccedilas
monges prostitutas e becircbados17 Natildeo foi o bastante Na tarde seguinte alheias agraves
autoridades mais e mais pessoas natildeo parariam de chegar
Dia 11 Jean-Sylvain Bailly ndash o primeiro prefeito de Paris ndash vem a puacuteblico
agradecer o entusiasmo dos moradores da capital mas tambeacutem pedir que parem de se
dirigir ao Champ-de-Mars pois seu trabalho natildeo era de modo algum necessaacuterio18
Enquanto isso e ao menos desde o dia 7 comissaacuterios municipais espalhavam cartazes
solicitando aos cidadatildeos que natildeo ajudassem os trabalhadores19
A Assembleia tambeacutem fez o que pocircde para esvaziar o evento decidiu tudo
muito tarde pocircs as despesas de deslocamento a cargo dos poderes locais dificultando
as condiccedilotildees de translado dos moradores das regiotildees mais pobres do paiacutes
Mas boa parte deles jaacute estava a caminho
ldquoE ao atravessar em bandos as aldeias e as cidadesrdquo rumo ao grande burgo
ldquoeles cantavam com todas as forccedilas com uma alegria heroacuteica um canto que os
habitantes agraves suas portas repetiamrdquo20 Cantavam a mesma canccedilatildeo que os parisienses
no ritmo da enxada e da picareta entoavam ao remexer como camponeses a terra do
Campo da Federaccedilatildeo
Le peuple en ce jour sans cesse reacutepegravete
Ah Ccedila ira Ccedila ira Ccedila ira
Suivant les maximes de lrsquoEacutevangile
(Ah Ccedila ira Ccedila ira)
Du leacutegislateur tout srsquoaccomplira
Celui qui srsquoeacutelegraveve on lrsquoabaissera
Et qui srsquoabaisse on lrsquoeacutelegravevera
A gazeta literaacuteria Mercure de France comentou a popularidade desses cacircnticos
revolucionaacuterios dizendo que sua sonoridade ldquomisturava-se aos lugares comuns contra
os aristocratasrdquo 21 A Festa da Federaccedilatildeo afinal exigia um pacto federativo Uma
federaccedilatildeo poliacutetica uma nova ordem que integrasse todas as aldeias vilas e cidadelas
que vinham se armando desde o veratildeo passado um acordo que levaria de certa
16 ldquoil est facile de concevoir quel deacutesordre naicirctroit du concours de tous ceux qui deacutesiroient travailler au
Champ-de-Marsrdquo Chronique de Paris 6 Julliet 1790 743 17 Reacutevolutions de Paris 17900703 (T4N52)-17900710 p 753-5 18 Chronique de Paris 11 Julliet 1790 p 765 19 Reacutevolutions de Paris ibidem p 755 20 Ibidem p 414 21 Mercure de France 8 Julliet 1790 p 214-5
26
maneira ao famoso mote mais tarde publicado em todos os textos oficiais de uma
repuacuteblica ndash e de uma Franccedila ndash ldquouna e indivisiacutevelrdquo Como se aquela que era ldquoa ordem
mais profunda a unanimidade dos espiacuteritosrdquo ndash da qual nos fala Michelet a respeito do
dia da tomada da Bastilha ndash pudesse ser reeditada impressa e revivida na alma de
todos os cidadatildeos22
A ideia para uma celebraccedilatildeo desse tipo em uma provaacutevel expressatildeo de um
tempo cada vez mais ceacutelere apareceria poucos dias apoacutes a queda da fortaleza O
marquecircs de Villete em 18 de julho de 1789 jaacute falava em realizar uma festa por uma
revoluccedilatildeo que ldquonrsquoa point drsquoexemple dans lrsquoHistoirerdquo 23 Sua manifestaccedilatildeo natildeo foi eacute
claro uacutenica Segundo Simon Linguet o primeiro a sugerir a festa revolucionaacuteria fora
Caillegravere de lacuteEacutetang24 De todo modo propostas para o grande jubileu natildeo faltaram
embora certos monarquistas mais temerosos sugerissem datas diferentes Gois
professor de pintura e escultura na Academia Real chegou a indicar uma data em
julho argumentando que ateacute aquele mecircs a Assembleia Nacional jaacute teria terminado ldquole
grand oeuvre de la Constituitionrdquo25
Linguet por sua vez parecia mesmo preocupado em evitar uma festa que
desenvolvesse ldquoessa sensibilidade desastrosardquo que faz a plebe revender o patildeo que
ganha e se bater por uma nova caneca de vinho ldquocrsquoest la Discorde qui semble y
preacutefiler plutocirct que Bacchusrdquo Era preciso ao contraacuterio estimular a comodidade e a
seguranccedila puacuteblica26 E natildeo foi essa a opccedilatildeo escolhida pelos organizadores assinada
pelo prefeito e ordenada por um desfile Desfile durante o qual trotearam as
companhias de cavaleiros vendo marchar a seguir os granadeiros os eleitores da
cidade de Paris seus voluntaacuterios os representantes da comuna o Comitecirc Militar os
presidentes distritais os deputados para o Pacto Federativo os guarda-bandeiras ndash
saindo da rua Saint-Denis encontrando a Assembleia Nacional na praccedila Louis XV
22 MICHELET Jules op cit p 153 23 VILLETTE Charles Lettres choisies du marquis de Villete Paris 1792 apud TREacuteVIEN Claire Le
Monde agrave lrsquoenvers the carnivalesque in prints of the construction of the fecircte de la feacutedeacuteration of 1790
In French History Vol 26 No 1 2012 p 38 24 LINGUET Simon Adresse au peuple franccedilais concernant ce qursquoil faut faire amp ce qursquoi faut pas faire
pour fecircter la fecircte meacutemorable et nationale du 14 juillet 1790 Et sur-tout la neacuteceacutessiteacute de nrsquoy admettre
aucun cheval Paris 1790 p 4 25 Ele tambeacutem sugeria ldquoun Monument agrave Gloire du Roi et de la Nationrdquo no qual poder-se-ia ler a
inscriccedilatildeo ldquoLOUIS XVI PEgraveRE DES FRANCcedilOIS RESTAURATEUR DES LOIX ET DE LA
LIBERTEacuterdquo GOIS Projet de monumento et fecircte patriotique Paris 1790 p 3 26 ldquocette sensibiliteacute funeste () crsquoest la Discorde qui semble y preacutefiler plutocirct que Bacchusrdquo Idem
respectivamente pp 12 14 e 15
27
tomando o caminho do Champ-de-Mars para em frente agrave Escola Militar saudar o rei
e a rainha cantando o Te Deum27
A austeridade da procissatildeo de fato jaacute foi ressaltada por Mona Ozouf28 Seu
projeto e sua execuccedilatildeo marcados pelos temores bem expressos por Simon Linguet
poderiam ignorar ndash mas natildeo simplesmente excluir ndash a memoacuteria de todos aqueles que
responderam ao chamado patrioacutetico do pacto federativo mesmo que esse viesse a ser
por uma contradiccedilatildeo de origem realizado por uma vocaccedilatildeo unitaacuteria ldquoAs proacuteprias
Federaccedilotildeesrdquo como fez questatildeo de lembrar Michelet ldquocontaram a sua histoacuteriardquo Elas a
diziam da forma como podiam desde que muitos mal sabiam escrever e as
endereccedilavam ldquoagrave sua matildee a Assembleia Nacional fielmente ingenuamente em uma
forma com muita frequecircncia grosseira infantilrdquo Eacute claro que ldquonem sempre se
encontrava nos campos escriba haacutebil que fosse digno de consignar essas coisas na
memoacuteriardquo 29
Quatorze de Julho de 1789 foi o dia em que Paris tomou a Bastilha Quatorze
de julho de 1790 foi o dia em que a Franccedila tomou Paris Os federados atendendo ao
badalar dos sinos de um novo culto ciacutevico dirigiram-se agrave capital de certo carregando
o pouco que tinham suas experiecircncias seus ldquohomens memoacuteriardquo eles de matildeos dadas
agrave juventude esperanccedilosa do ccedila ira Com seus filhos casando-se no altar da paacutetria
teriacuteamos uma origem possiacutevel para a ldquosubstacircncia francesardquo em Michelet Ou caso
pensemos com Mona Ozouf um ritual de batismo ciacutevico coletivo de transferecircncia de
sacralidade no qual suacuteditos do rei satildeo convertidos em cidadatildeos De todos os usos e
interpretaccedilotildees que podemos alccedilar sobre o episoacutedio para noacutes a Festa da Federaccedilatildeo natildeo
eacute mais do que um iniacutecio ndash mesmo um dos muitos possiacuteveis ndash natildeo da harmonia mas do
conflito entre diferentes experiecircncias comemorativas as quais produzem e demandam
diferentes expectativas traduzidas em formas diversas de lembrar e de esquecer o
iniacutecio do encaixe de uma moldura nacional sobre um grande painel de lembranccedilas
coletivas retrato polissecircmico de um passado ainda assim como veremos sempre
conflituoso e ndash embora natildeo uno e indivisiacutevel ndash organizado dentro dos limites morais e
poliacuteticos de uma federaccedilatildeo da memoacuteria
27 BAILLY LA FAYETTE Ordre de marche pour la confeacutederation qui aura lieu le 14 juillet amp
dispositions dans le Champ-de-Mars Paris 1790 28 OZOUF Mona La fecircte reacutevolutionnaire 1789-1799 Paris Gallimard 1976 p 82 29 MICHELET op cit p 402
28
I
Comemoraccedilotildees
29
1
Entre a memoacuteria e a moral
As comemoraccedilotildees como reparaccedilatildeo identitaacuteria
11 A grande forccedila
A mais bela das cartas Ciacutecero parecia feliz com sua pequena mensagem de 55
ac hoje conhecida como Ad Familiares V 12 Endereccedilada a Lucceius amigo que
havia demonstrado interesse em escrever sobre seu consulado ela era na verdade um
pedido muito particular O patriacutecio solicitava ao historiador que suspendesse as leges
historiae rompendo com a cronologia analiacutestica pulando para o presente e como se
natildeo bastasse narrasse os tempos de sua magistratura em um estilo ornamentado Era
em outras palavras o requerimento de um elogio feito por algueacutem que alegava natildeo
receber o reconhecimento que merecia Em uma passagem dessa correspondecircncia
Ciacutecero afirmava que suas esperanccedilas de imortalidade natildeo eram depositadas
unicamente na commemoratio posteritatis (V121) na recordaccedilatildeo que o futuro lhe
renderaacute mas que esperava tambeacutem poder fruir da gloacuteria ainda em vida (ut vivi
perfruamur) Como se o salvador da repuacuteblica demandasse em poucas palavras ser
reconhecido como o paralelo vivo dos costumes ancestrais30
Mencionar remeter ou a accedilatildeo de lembrar A palavra latina commemoratio em
Ciacutecero e Quintiliano natildeo foge a um uso retoacuterico e utilitaacuterio como antiquitatis
exemplorum prolatio tratava-se de uma citaccedilatildeo ou seja o evocar de uma lembranccedila
antiga e um suporte em sua autoridade exemplar Utilitaacuterio sim em um sentido
30 Cicero em outro documento sugere que Atticus adquira uma coacutepia dessa carta para suas leituras
(Att 464) Nessa mesma passagem ele descreve sua Ad Familiares V 12 como ldquoValde Bellardquo A
carta aqui citada jaacute foi alvo de vaacuterias interpretaccedilotildees a mais corrente aponta para o egotismo o cinismo
e o oportunismo de Ciacutecero outra tenta justificar seu pedido de elogio a partir das regras do gecircnero
demonstrativo uma terceira e bem menos ortodoxa tenta identificar sinais de ironia no texto lendo-o
como uma brincadeira entre amigos Sobre a primeira e a terceira interpretaccedilotildees ver HALL John
Cicero to Lucceius (Fam512) In its Social Context Valde Bella In Classical Philology 93 1998
308 nota 1 Sobre a segunda interpretaccedilatildeo ver CHIAPPETTA Angeacutelica Natildeo Diferem o Historiador e
o Poeta O Texto Histoacuterico como Instrumento e Objeto de Trabalho Liacutengua e Literatura 2 1996
Departamentos de Letras USP p 15-34 e tambeacutem PAVES Leonardo Acquaviva Historia Magistra
Vitae Histoacuteria e Oratoacuteria em Ciacutecero Satildeo Paulo USP 2011 Dissertaccedilatildeo de Mestrado Principalmente
pp 55-58
30
poliacutetico e moral O exemplo a recordaccedilatildeo de um feito verdadeiro ou dado como tal
de toda maneira tinha como missatildeo ser ldquouacutetil para persuadirrdquo precisamente o que se
queria entatildeo comemorar31
Como o episoacutedio da Ad Familiares faz supor commemoratio era anaacuteloga
ainda a monumentum a qual expressa uma das tarefas do espiacuterito (mens) a memoacuteria
ldquoCom a antiguidade Romanardquo escreve Fernando Catroga monumentum ldquotinha dois
significados denotava uma obra comemorativa de arquitetura e de escultura () e
aplicava-se a edificaccedilotildees funeraacuterias destinadas a perpetuar a lembranccedila de algueacutemrdquo 32
Gloacuteria em vida gloacuteria em morte
Eacute verdade que com o cristianismo anuncia-se o tempo da espera mas da
mesma maneira celebra-se a lembranccedila do exemplo salvador O culto da Eucaristia
centra a esperanccedila do religare no milagre da recordaccedilatildeo ao comer o corpo e beber o
sangue do Salvador ldquoFazei isto em memoacuteria de mimrdquo (et gratias agens fregit et dixit
hoc est corpus meum pro vobis hoc facite in meam commemorationem 1 Coriacutentios
XI24 e 25 similiter et calicem postquam cenavit dicens hic calix novum testamentum
est in meo sanguine hoc facite quotienscumque bibetis in meam commemorationem
tambeacutem em Lucas XXII19) Se Santo Agostinho ainda utilizava a palavra
commemoratio em um sentido muito parecido com o dos claacutessicos latinos ndash fazendo
diga-se logo remissotildees agrave necessidade dos fieacuteis comemorarem certas festas sagradas ndash
ao longo da Idade Meacutedia a comemoraccedilatildeo torna-se ldquoum ato religioso atraveacutes do qual
pedimos aos vivos que se lembrem ou seja de agir em oraccedilatildeo pelos mortosrdquo 33 Na
vulgata talvez a fonte mais importante o termo aparece mais uma vez em uma das
cartas da tradiccedilatildeo paulina dessa vez indicando a obrigaccedilatildeo de comemorar todos os
anos os pecados ao lado do sacrifiacutecio do messias (Hebraeos X3)
Em portuguecircs o termo comemorazones ainda no plural surge por volta do
seacuteculo XIII provavelmente acompanhando a popularizaccedilatildeo dos sermotildees em liacutengua
vulgar Nos dois seacuteculos seguintes a expressatildeo evolui para cotildememoraccedilotilde e
31 ldquo() quod proprie vocamus Exemplum id est rei gestae aut ut gestae utilis ad persuadendum id
quod intenderis commemoratiordquo QUINTILIANO Inst Oratoire LIV V 11 6 Na traduccedilatildeo francesa
de Ouizille ldquo() celle que jrsquoappelle proprement lrsquoexemple crsquoest-agrave-dire la citation drsquoun fait vrai ou
censeacute tel ameneacutee dans le dessein de persuader ce qursquoon a en vuerdquo Paris CLF Panckoucke 1829-
1840 V 3 p 7 32 CATROGA Fernando O culto dos mortos como uma poeacutetica da ausecircncia In ArtCultura
Uberlacircndia v 12 n 20 jan-jul 2010 p 170 33 ldquo() un acte religieux par lequel on demande aux vivants de se souvenir crsquoest-agrave-dire drsquoagir par la
priegravere pour les mortsrdquo Namer Geacuterard La commeacutemoraton en France de 1945 agrave nos jours Logiques
Sociales lrsquoHarmattan Paris 1987 pp 143-144
31
finalmente conmemoraccedilon34 Sua relaccedilatildeo estreita com os ritos catoacutelicos eacute evidente ao
menos ateacute a primeira metade do seacuteculo XIX35 Alexandre Herculano em suas Lendas
e Narrativas ironiza a palavra no hilariante Alhos e Bugalhos no qual conta a
histoacuteria de Satildeo Pantaleatildeo Bispo de Nicomeacutedia Convertido por Hermolau o santo
passa a praticar curas ldquomais baratas e mais rapidas ao mesmo tempo que as offertas
dos doentes escaceavam nos templos pagatildeosrdquo Atraiu a fuacuteria do imperador
Maximiano o qual decidiu lanccedilaacute-lo agraves feras que por milagre resolveram tatildeo somente
limpar-lhe os peacutes Ceacutesar coleacuterico pediu sua cabeccedila e ldquoo sancto segundo parece
estava jaacute saciado de prodigios ao golpe do algoz a cabeccedila voou-lhe dos hombrosrdquo
Neste dia natildeo somente Satildeo Panteleatildeo entrou no rol dos maacutertires sagrados como
tambeacutem ganhou a gloacuteria da lembranccedila ldquoMas ndash acudiratildeo os leitores ndash que nos importa
a noacutes que essa commemoraccedilatildeo seja a vinte-sete ou a vinte-oito seja em julho ou em
dezembro Vamos a festa e deixemo-nos de historiasrdquo escreveu Herculano36
O cristianismo como uma religiatildeo em si comemorativa acentua o fenocircmeno
ao frisar o sacrifiacutecio do messias agrave eucaristia segue-se a anamnese processo que
permite no coraccedilatildeo do fiel reviver a memoacuteria do Cristo Com a emergecircncia do
Estado Naccedilatildeo e a desestruturaccedilatildeo da cristandade ocidental catoacutelica (dita universal) as
comemoraccedilotildees se particularizam e passam a ser dotadas de sentidos seculares
associados pouco a pouco ao que chamamos hoje de identidade nacional Sob o elo
providencial que unia o universal e o particular os seacuteculos XVIII e XIX assistem agrave
emergecircncia vitoriosa ndash na esteira do que seraacute chamado ldquociecircncia positivardquo ndash de uma
categoria geral Em suma se segundo Paul Ricoeur recordar eacute em si mesmo um ato
de alteridade a comemoraccedilatildeo moderna como sentenciou Bernard Cottret eacute fruto de
uma relativa fragmentaccedilatildeo37
34 Aqui sigo CUNHA Antocircnio Geraldo da Dicionaacuterio etimoloacutegico Nova Fronteira da Liacutengua
Portuguesa Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 Trabalho que deve muitos de seus verbetes ao
claacutessico MACHADO Joseacute Pedro Dicionaacuterio etimoloacutegico da liacutengua portuguesa com a mais antiga
documentaccedilatildeo escrita e conhecida de muitos dos vocaacutebulos estudados 2 ed Lisboa Confluecircncia
1967 3 v 35 Ao comentar as poliacuteticas comemorativas do regime liberal portuguecircs dos anos 20 do seacuteculo XIX
Maria Isabel Joatildeo afirma que ldquoApesar das caracteriacutesticas laicas de que se procuraram revestir as festas
liberais a tradiccedilatildeo religiosa manteve-se presente nestas comemoraccedilotildees que comeccedilavam com
frequecircncia pela celebraccedilatildeo de missa solene e Te Deum Laudamusrdquo JOAtildeO Maria Isabel Percursos da
memoacuteria centenaacuterios portugueses no seacuteculo XIX In Revista de Letras e Culturas Lusoacutefonas Camotildees
Nuacutemero 8 Janeiro-Marccedilo de 2000 p 2 36 HERCULANO Alexandre Lendas e Narrativas II 1851 cap 4 p 177 37 Respectivamente RICOEUR Paul Entre meacutemoire et histoire In Projet no 248 1996-1997 e
COTTRET Bernard HENNETON Lauric Du bon usade des commeacutemorations Histoire meacutemoire et
identiteacute XVIe-XXIe siegravecle Rennes Presses Universitaires 2010 p 9 O termo francecircs commeacutemoratio
32
Embora fragmentadas as comemoraccedilotildees como noacutes as conhecemos hoje
guardam algo de religioso ndash fato demonstrado pelo proacuteprio vocabulaacuterio presente na
documentaccedilatildeo que nos restou das festas revolucionaacuterias francesas ldquoReligio a
lsquoescrupulosa atenccedilatildeorsquo no exerciacutecio de um rito no qual ligamos a origem agrave
introspecccedilatildeo de uma lsquore-leiturarsquo (relegere) ou mais provavelmente agrave renovaccedilatildeo de
um viacutenculo (religare)rdquo 38 Por sinal os fenocircmenos comemorativos seculares
dificilmente escapam a uma funccedilatildeo lituacutergica Eles organizam independente das cores
de suas hostes um rito de comunhatildeo com o abstrato seja ele uma deidade seja ele
uma naccedilatildeo divinizada imagens construiacutedas tendo como modelo ou referecircncia uma
essecircncia ancestral ou originaacuteria
Eacute a moldura de uma religiatildeo civil ndash cuja Franccedila oferece uma forma exemplar ndash
que permite a comparaccedilatildeo e o artifiacutecio de analogias entre os fenocircmenos
comemorativos ocidentais contemporacircneos e outros ritos representativos antigos
modernos e mesmo selvagens Eacute nesse sentido que a anaacutelise e o vocabulaacuterio de Eacutemile
Durkheim continuam populares entre os estudiosos das comemoraccedilotildees No capiacutetulo
IV das formas elementares da vida religiosa o socioacutelogo definiu a forma e a funccedilatildeo
do que chamou de Culto Positivo Realizou na verdade um estudo sobre a
representaccedilatildeo totecircmica entre duas tribos aboriacutegenes australianas os Warramunga e os
Arunta Entre esses grupos o rito consistia em relembrar o passado tornando-o
presente por meio de uma representaccedilatildeo dramaacutetica da mitologia do clatilde Mitologia que
natildeo eacute mais do que o conjunto de crenccedilas comuns ao grupo uma maneira de manter a
lembranccedila de suas tradiccedilotildees viva a partir do estabelecimento de uma relaccedilatildeo
dramatuacutergica entre o ancestral comum e um totem
() o celebrante neste caso natildeo eacute de forma alguma
considerado como encarnaccedilatildeo do ancestral que
representa este eacute um ator interpretando um papel () o
caraacuteter dessas cerimocircnias eacute dramaacutetico contracenado por
uma espeacutecie muito especial de bobos eles agem ou pelo
menos acredita-se que eles agem sobre o curso da
natureza 39
aparece tambeacutem no seacuteculo XIII ao passo que o verbo commeacutemorer do qual deriva o substantivo
commeacutemoraison surge no seacuteculo seguinte 38 ldquoReligio cette lsquoattention scrupuleusersquo agrave lrsquoexercice drsquoun rite qursquoon rattache lrsquoorigine au recueillement
drsquoune lsquore-lecturersquo (relegere) ou plus vraisemblablement au renouvellement drsquoum lien (religare)rdquo
ORY Pascal Une Nation pour meacutemoire 1889 1939 1989 Trois jubileacutes reacutevolutionnaires Presses de
la Fondation Nationale des Sciences Politiques Paris 1992 p 17 39 ldquoLe mot est drsquoautant plus de circonstance que lrsquoofficiant en ce cas nrsquoest aucunement consideacutereacute
comme une incarnation de lrsquoancecirctre qursquoil repreacutesente crsquoest un acteur qui joue un rocircle () Les exemples
33
O celebrante (lrsquoofficiant) encena o ancestral em uma representaccedilatildeo cerimonial
pontuada pelo curso da natureza Trata-se em linguagem moderna de um evento
marcado no calendaacuterio e assim conforme veremos anaacutelogo a um ponto de encontro
entre a ordem do tempo e a ordem da natureza Cada um desses clatildes alega descender
de um uacutenico ancestral comum correspondente a um soacute totem ao redor do qual a
histoacuteria lendaacuteria a identidade e o proacuteprio nome do grupo encontram seu eixo
fundamental ldquoPoderiacuteamos mesmo nos perguntar se esses chefes miacuteticos espeacutecie de
semideuses satildeo submetidos agrave reencarnaccedilatildeordquo chega a questionar Durkheim40 Com
seus liacutederes reencarnados ou natildeo (nessa forma elementar que seria crenccedila paralela agrave
metempsicose dos antigos) o objetivo de todos os ritos positivos para o socioacutelogo
francecircs eacute bastante claro eles servem agrave reparaccedilatildeo moral dos indiviacuteduos e dos grupos
Do ponto de vista dos celebrantes ligar o passado do ancestral agrave identidade do
presente eacute o mesmo afinal de contas que unir o indiviacuteduo agrave coletividade41
Como os alimentos para nossa vida fiacutesica ndash diria Durkheim em mais uma de
suas ceacutelebres metaacuteforas naturalistas ndash os ritos representativos satildeo necessaacuterios para o
ldquobom funcionamento de nossa vida moralrdquo 42 E eles se expressam de uma forma
simples atraveacutes de um aspecto exterior bastante familiar agraves sociedades seculares o da
recreaccedilatildeo Durkheim parece mesmo insinuar que todas as festas que todo o aparato
de entretenimento possuem em si uma origem religiosa embora ressalte que os ritos
representativos (ou o culto positivo) e as recreaccedilotildees coletivas natildeo formem
necessariamente o mesmo fenocircmeno Em uma passagem que natildeo seria nada estranha
ao supracitado Simon Linguet Durkheim alega que a recreaccedilatildeo laica faz o rito passar
do comemorativo ao ldquocorrobbori vulgaire simples regozijo puacuteblico que natildeo tem mais
nada de religioso e ao qual todo mundo pode participar indistintamenterdquo43 Ou seja
sem um officiant ndash sem uma direccedilatildeo que aponte ao passado do ancestral ndash o rito deixa
de produzir identidade e alteridade de reparar moralmente um grupo a partir da
qui preacutecegravedent suffisent agrave montrer quel est le caractegravere de ces ceacutereacutemonies ce sont des drames niais drsquoun
genre tout particulier ils agissent ou du moins on croit qursquoils agissent sur le cours de la naturerdquo
DURKHEIM Eacutemile Les formes eacuteleacutementaires de la vie religieuse Le systegraveme toteacutemique en Australie
Paris Les Presses universitaires de France 1968 (1921) cinquiegraveme eacutedition 647 pages Collection
Bibliothegraveque de philosophie contemporaine p 355 Grifos meus 40 ldquoOn peut mecircme se demander si ces chefs mythiques sorte de demi-dieux sont soumis agrave la
reacuteincarnationrdquo Idem p 357 41 Idem respectivamente p 353 361 42 ldquobon functionnement de notre vie moralerdquo Idem p 364 43 ldquocorrobbori vulgaire simple reacutejouissance publique qui nrsquoa plus rien de religieux et agrave laquelle tout le
monde peut indiffeacuteremment prendre partrdquo Ibidem 363
34
segregaccedilatildeo e da agregaccedilatildeo Estariacuteamos agora em um ponto no qual ldquotodos participam
porque sua proacutepria ideia contempla todas as pessoasrdquo44 Seria esse um dos motivos
pelos quais uma Ordonnace du comiteacute de police de lrsquoHotel-de-ville ainda em janeiro
de 1790 proibiu o uso de maacutescaras e fantasias45
Celebraccedilatildeo fuacutetil carnavalesca ou anocircmala essa palavra persiste a relaccedilatildeo
entre comemoraccedilatildeo e entretenimento eacute documentada por qualquer dicionaacuterio Passar
de um a outro da comemoraccedilatildeo identitaacuteria ao jubilo popular eacute um processo
recorrente ldquoVamos aacute festa e deixemo-nos de historiasrdquo dizia Herculano46 A funccedilatildeo
do celebrante (officiant) que para os aboriacutegenes era a de admitir a solidariedade entre
o homem e o animal para a reproduccedilatildeo da espeacutecie totecircmica continuaria sendo a de
organizar os diferentes grupos pela orientaccedilatildeo do passado comum de representar a
continuidade a partir de uma origem miacutetica em uma festa presente com data marcada
Natildeo deixemos as histoacuterias pois neste valle de lagrymas elas satildeo ao mesmo tempo
uma moral e uma cosmologia47 Para os nativos da Austraacutelia tratava-se de um
movimento no qual o homem imita o animal no qual ele se identifica Essa ldquogrande
forccedila moralrdquo capaz de produzir a coesatildeo por um sistema prescritivo e reproduzir com
ela a proacutepria sociedade eacute para Durkheim a proacutepria ldquoforccedila coletivardquo 48 Em um culto
ciacutevico recheado por vezes pelas accedilotildees de reenactement os homens imitam ndash diriam
os celebrantes ndash outros ldquograndes homensrdquo Essa forccedila coletiva de objetivo moral
poderia ser relacionada jaacute em termos contemporacircneos ao que chamamos de memoacuteria
coletiva
44 ldquo() everyone participates because its very idea embraces all peoplerdquo BAKHTIN M Rabelais and
His World Bloomington 1984 p 5 45 ldquoFauxrdquo MARAT LrsquoAmi du peuple ou le Publiciste parisien jornal politique er impartial 70 3 Fev
1790 8 apud TREacuteVIEN op cit p 36 Treacutevien estuda a Festa da Federaccedilatildeo como um ritual
carnavalesco Para uma abordagem mais ampla que vecirc toda a Revoluccedilatildeo Francesa como um grande
carnaval conferir JOHNSON J H Versailles mette les Halles masks carnival and the French
Revolution In Representations 73 2001 46 Ao qual ele completa Devagar devagar Eacute justamente porque isto eacute uma historia grave sisuda
erudita que eu natildeo me havia de metter abrutadamente na narraccedilatildeo sem deixar averiguada esmiuccedilada e
fixada a data precisa e irrecusavel do meu recontamento Sabem o que eacute uma data Uma data eacute depois
de uma questatildeo de orthographia do talho e feitura de uma judia a que os nossos velhos chamavam
uma aljuba e depois de um phalansterio a que os dictos velhos chamariam uma sandice a cousa mais
importante que conheccedilo neste valle de lagrymasrdquo HERCULANO op cit Idem 47 ldquo() crsquoest une morale et une cosmologie em mecircme temps qursquoune histoirerdquo DURKHEIM op cit p
357 Sobre o ldquovalle de lagrymasrdquo ver a uacuteltima expressatildeo na nota imediatamente supracitada 48 Idem p 368
35
12 Entre a memoacuteria coletiva e os costumes
Em 1925 Maurice Halbwachs ex-aluno de Henri Bergson publicou seus
Cadres Sociaux de la Meacutemoire A premissa baacutesica desse estudo jaacute demonstrando o
quatildeo proacuteximo o autor havia se tornado de Eacutemile Durkheim alegava ser dentro da
sociedade que ldquoo homem adquire suas lembranccedilas as lembra e como dizemos as
reconhece e as localizardquo 49 Eacute nesse sentido argumenta Halbwachs que existe uma
ldquomemoacuteria coletivardquo e em sua base grupos que a organizam transmitem e tornam
possiacuteveis as suas lembranccedilas Mais interessado na bios do que na histoacuteria ndash na
experiecircncia vivida em detrimento da experiecircncia passada ndash os Quadros Sociais
receberiam criacuteticas ainda em 1925 vindas de um colega da universidade de
Estrasburgo Marc Bloch
O ponto principal das observaccedilotildees de Bloch centrava-se no problema da
transmissatildeo da memoacuteria coletiva O fundador dos Annales lamentava o fato de
Halbwachs ter abordado senatildeo de forma muito geneacuterica o problema da tradiccedilatildeo e dos
costumes centrais em especial quando do estudo das formas de reproduccedilatildeo e
reorientaccedilatildeo dos valores presentes nas sociedades preacute-modernas europeias ldquoComo o
indiviacuteduordquo indagava Bloch ldquoconserva e encontra suas lembranccedilasrdquo ldquoComo a
sociedade conserva e encontra as suasrdquo tal era o tom de suas cobranccedilas50
Tome-se por exemplo a sociedade religiosa cristatilde a
penitecircncia do fiel se alimenta tanto dos ritos
constantemente renovados quanto de memoacuterias
particularmente daquelas que falam da vida do Salvador
mas a maioria dos ritos seratildeo apenas formas vazias
caso eles natildeo comemorem ou natildeo simbolizem o
percurso de Deus ou paralelamente o de seus santos O
tesouro histoacuterico ou lendaacuterio do cristianismo se
transmite de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo sobretudo por
intermeacutedio dos ritos 51
49 ldquo() cest dans la socieacuteteacute que normalement lhomme acquiert ses souvenirs quil se les rappelle et
comme on dit quil les reconnaicirct et les localiserdquo HALBWACHS Maurice Les cadres sociaux de la
meacutemoire Paris Feacutelix Alcan 1925 Collection Les Travaux de lrsquoAnneacutee sociologique p 7 ldquordquo 50 BLOCH Marc Meacutemoire Collective Tradition et Coutume In Revue de synthegravese historique T40
N14 Paris 1925 (12) p 78 51 ldquoPrenons par example la socieacuteteacute religieuse chreacutetienne la pieacuteteacute du fidegravele se nourrit agrave la fois de rites
sans cesse renouveleacutes et de souvenirs particuliegraverement de ceux qui portent sur la vie du Sauveur mais
la plupart des rites ne seraient que des formes vides srsquoils ne commeacutemoraient ou ne symbolisaient la
carriegravere du Dieu ou accessoirement celle de ses saints et par ailleurs le treacutesor historique ou leacutegendaire
du christianisme se transmet de geacuteneacuteration en geacuteneacuteration surtout par lrsquointermeacutediaire des ritesrdquo Idem p
76 Grifos meus
36
O autor de Os Reis Taumaturgos ndash livro publicado aliaacutes um ano antes ndash
conhecia melhor do que ningueacutem o papel dos ritos na transmissatildeo das memoacuterias
cristatildes se eles natildeo comemorarem o Cristo natildeo relembrarem seu exemplo seja dos
evangelhos seja da via-cruacutecis sua funcionalidade reprodutora ndash e mais ainda
ressignificadora ndash estaria ameaccedilada Tanto a memoacuteria individual quanto a memoacuteria
coletiva natildeo pareciam para Marc Bloch conservar o passado como insinuava a sua
leitura dos Quadros Natildeo ldquoela se encontra e se reconstroacutei sem cessar sempre falando
do presente Toda memoacuteria eacuterdquo afinal ldquoum esforccedilo52rdquo Halbwachs pelo contraacuterio
havia afirmado quando de sua distinccedilatildeo entre rito e crenccedila que embora os primeiros
pudessem ser do ponto de vista formal ldquoos elementos mais estaacuteveis da religiatildeordquo com
os anos foram deslocados de seus significados originais53 Estaria o socioacutelogo
desconsiderando a dimensatildeo criativa de seus quadros sociais em favor de uma visatildeo
por demais secular das representaccedilotildees coletivas contemporacircneas
Sem duacutevida que hoje em dia e desde muito tempo o fiel
israelita que come o cordeiro pascal natildeo pensa celebrar
as memoacuterias dos ancestrais que escaparam do Faraoacute que
o catoacutelico tatildeo pouco familiarizado com os misteacuterios de
sua religiatildeo ao ver o padre levantar a hoacutestia natildeo reflete
sobre a palavra do Evangelho ldquoEste eacute meu corpo tomai
e comei () este eacute meu sanguerdquo Essa eacute
incontestavelmente a interpretaccedilatildeo presente e hoje
tradicional desses ritos Mas ela se confunde de fato
com seu significado primordial54
Para Bloch eacute claro essas consideraccedilotildees natildeo invalidavam a ldquohipoacutetese diretivardquo
que Halbwachs havia proposto aos historiadores Tratava-se apenas de reorientar a
problemaacutetica a partir do ponto de vista da erudiccedilatildeo histoacuterica de cobrar que a
sociologia estude tambeacutem as incoerecircncias ou mesmo os ldquoerros da memoacuteria coletivardquo
52 Idem p 77 53 ldquoLe rite est peut-ecirctre leacuteleacutement le plus stable de la religion puisquil se ramegravene agrave des opeacuterations
mateacuterielles constamment reproduites et dont les rituels et les corps de precirctres assurent luniformiteacute
dans le temps et dans lespace A lorigine les rites reacutepondirent sans doute au besoin de commeacutemorer
un souvenir religieux par exemple chez les Juifs la fecircte pascale et chez les chreacutetiens la communion
rdquo HALBWACHS 1925 p 180 54 ldquoEst-ce bien vrai Nul doute que de nos jours et depuis longtemps lrsquoIsraeacutelite pieux qui mange
lrsquoagneau pascal ne pense ceacuteleacutebrer le souvenir des ancecirctres qui fuirent devant Pharaon ou que le
catholique tant soit peu instruit des mystegraveres de sa religion en voyant le precirctre eacutelever lrsquohostile ne
songe agrave la parole eacutevangeacutelique lsquoPrenez ceci est mon corps ceci est mon sangrsquo Telle est
inconstablement lrsquointerpretation preacutesente et aujourdrsquohui traditionelle de ces rites mais se condond-
elle en effet avec leur signification premiegravererdquo BLOCH 1925 p 80
37
55 Acaso as fontes natildeo mostravam ao medievalista que na Europa ocidental ldquodurante
muitos seacuteculos a vida juriacutedica natildeo encontrou outra acolhida senatildeo nas fundaccedilotildees dos
costumesrdquo56 E que se essas sociedades ldquosonharam viver de sua memoacuteriardquo essa
memoacuteria agrave revelia de todo esforccedilo natildeo era mais do que um ldquoespelho infielrdquo virado
para o presente57
A resposta de Halbwachs foi tanto sutil quanto sectaacuteria Em sua mais famosa
obra poacutestuma ele fez questatildeo de distinguir a histoacuteria da memoacuteria ldquoA histoacuteria pode se
representar como a memoacuteria universal do gecircnero humanordquo escreveu ldquomas tal coisa
natildeo existerdquo A verdadeira musa da histoacuteria para o socioacutelogo natildeo era Clio mas outra
filha de Mnemosine Poliacutemnia em referecircncia a sua multiplicidade narrativa ldquoNatildeo
existe memoacuteria universalrdquo completa Halbwachs ldquotoda memoacuteria coletiva tem por
suporte um grupo limitado no tempo e no espaccedilordquo 58 A histoacuteria por sua vez aparece
como um quadro de mudanccedilas incessantes com o olhar do historiador no todo
observando de regiatildeo em regiatildeo todas as reaccedilotildees que se produzem e interagem
dentro do corpo social Os historiadores ldquocompreendem que () eacute preciso que se
desenvolva uma seacuterie de transformaccedilotildees no qual a histoacuteria se apresenta como a soma
(no sentido do caacutelculo integral) ou o resultado finalrdquo 59 Trata-se de uma visatildeo
exterior aos grupos ldquoA memoacuteria coletivardquo pelo contraacuterio ldquoeacute o grupo visto de
dentrordquo em uma curta duraccedilatildeo em um espaccedilo natildeo muito maior do que o de uma vida
humana em geral transcorrido em um percurso carente de grandes modificaccedilotildees Ela
apresenta aos grupos uma visatildeo de si mesmos que vai se alterar ao longo do tempo
mas ainda assim de uma forma que os quadros se reconheccedilam nas suas ldquoimagens
sucessivasrdquo 60
55 ldquoM Halbwachs nrsquoeacutetudiera-t-il pas un jour les erreurs de la meacutemoire collective rdquo Ibidem p 80 56 BLOCH 1925 p 81 57 ldquoEssenciallement traditionnalistes les socieacuteteacutes du moyen acircge ont fait le recircve de vivre de leur
meacutemoire mais cette meacutemoire nrsquoa eacuteteacute des eacutegards qursquoun miroir infideacutelerdquo BLOCH 1925 p 81 58ldquoCertes la muse et lhistoire est Polymnie Lhistoire peut se repreacutesenter comme la meacutemoire
universelle du genre humain Mais il ny a pas de meacutemoire universelle Toute meacutemoire collective a
pour support un groupe limiteacute dans lespace et dans le tempsrdquo HALBWACHS Maurice La Memoacuteire
Collective 1950 p 57 Ateacute onde pude conferir Halbwachs natildeo cita nominalmente as consideraccedilotildees de
Marc Bloch 59ldquo() ceux qui eacutecrivent lhistoire et qui remarquent surtout les changements les diffeacuterennotces
comprennent que pour passer de lun agrave lautre il faut quil se deacuteveloppe une seacuterie de transforma-tions
dont lhistoire naperccediloit que la somme (au sens du calcul inteacutegral) ou le reacutesultat final Tel est le point
de vue de lhistoire parce quelle examine les groupes du dehors et quelle embrasse une dureacutee assez
longuerdquo HALBWACHS 1950 p 59 60 ldquoLa meacutemoire collective au contraire cest le groupe vu du dedans et pendant une peacuteriode qui ne
deacutepasse pas la dureacutee moyenne de la vie humaine qui lui est le plus souvent bien infeacuterieure Elle
38
Em ldquoum quadro de si mesmordquo o grupo visto de dentro esse espelho antes
imperfeito para Bloch torna-se bastante fiel em Halbwachs Mesmo alheio aos
protestos da erudiccedilatildeo o raciociacutenio intuitivo encontra em seu diaacutelogo com Marc
Bloch um dos contornos arquetiacutepicos que vatildeo marcar os estudos culturais do poacutes-
guerra o problema da identidade ldquoO grupo no momento em que vislumbra seu
passado sente-se o mesmo e toma consciecircncia de sua identidade atraveacutes do tempordquo 61
Perguntar-se se essa natildeo seria uma ldquofalsa consciecircnciardquo natildeo parece uma questatildeo
relevante para Halbwachs como percebemos em sua obra poacutestuma ele nunca se
mostrou interessado em ouvir os apelos de seu colega em relaccedilatildeo aos ldquoerros da
memoacuteria coletivardquo Afinal sendo um quadro sempre o mesmo as mudanccedilas tecircm de
ser apenas aparentes ldquoas transformaccedilotildees ou seja os fatos que satildeo produzidos dentro
do grupo se resolvem eles mesmo em similitudesrdquo 62 O passado da memoacuteria coletiva
definitivamente natildeo eacute um paiacutes estrangeiro
A diferenccedila fundamental nas posiccedilotildees de Maurice Halbwachs para aquelas que
vatildeo pulular na segunda metade do seacuteculo XX portanto natildeo era exatamente marcada
pela ausecircncia de centralidade da questatildeo identitaacuteria Geacuterard Namer em 1994
prefaciando a reeditaccedilatildeo dos Quadros Sociais da Memoacuteria para a Albin Michel jaacute
comentava a relaccedilatildeo entre a postura antinazista de Halbwachs com seus insigths sobre
memoacuteria e identidade espeacutecie de remeacutedio contra a propaganda antisionista (que
maltratava o passado do povo judeu ao mesmo tempo justificando a eliminaccedilatildeo de
seu futuro) o investimento na experiecircncia sensiacutevel tornou-se ndash para um quadro cuja
tradiccedilatildeo ditava ser ldquoo povo da memoacuteriardquo ndash um dos caminhos para garantir seu
presente63 A diferenccedila fundamental entre a postura de Halbwachs para digamos a de
Michel Pollack eacute que ndash embora o socioacutelogo membro do Instituto de Histoacuteria do
preacutesente au groupe un tableau de lui-mecircme qui sans doute se deacuteroule dans le temps puisquil sagit de
son passeacute mais de telle maniegravere quil se reconnaisse toujours dans ces images successivesrdquo Idem p 60 61 Idem p 59 62ldquoPuisque le groupe est toujours le mecircme il faut bien que les changements soient apparents les
changements cest-agrave-dire les eacuteveacutenements qui se sont produits dans le groupe se reacutesolvent eux-mecircmes
en similitudes puisquils semblent avoir pour rocircle de deacutevelopper sous divers aspects un contenu
identique cest-agrave-dire les divers traits fondamentaux du groupe lui-mecircmerdquo HALBWACHS 1950 p
60 63 ldquoLembrem-se [Zakhor] dos dias do passado considerem as geraccedilotildees haacute muito passadas Perguntem
aos seus pais e estes lhes contaratildeo aos seus liacutederes e eles lhes explicaratildeordquo (Deuteronocircmio 327)
NAMER Geacuterard Postface In HALBWACHS Maurice Les Cadres sociaux de la meacutemoire 1994
Para uma perspectiva que trabalha o holocausto como plano de trabalho pedagoacutegico para a memoacuteria
ver TORNER Carles Shoah une pedagogie de la meacutemoire Les Eacuteditions de lrsquoAtelier Paris 2001
Principalmente cap 2
39
Tempo Presente parta de premissas em nada estranhas agraves da Memoacuteria Coletiva ndash os
resultados de seus estudos apontam para os esquecimentos e conflitos memoriais
Sim ldquoa memoacuteria colabora para o sentimento de continuidade e de coerecircncia de
uma pessoa ou de um grupo em sua reconstruccedilatildeo de sirdquo 64 Mas seu resultado dentro
do corpo social natildeo tende necessariamente para a harmonia A memoacuteria natildeo eacute um
objeto esculpido passivamente pelo esquecimento como uma rocha erodida pela brisa
e pelas aacuteguas marinhas Sua forma eacute resultado de debates tensotildees e batalhas nessa
imagem endossada por Beatriz Sarlo de um ldquopassado sempre conflituosordquo 65 A
superaccedilatildeo do funcionalismo ou ao menos de sua crenccedila na tendecircncia agrave
harmonizaccedilatildeo foi bem explicitada por Pollak ldquonatildeo se trata mais de lidar com os fatos
sociais como coisasrdquo escreveu o socioacutelogo ldquomas de analisar como os fatos sociais se
tornam coisas como e por quem eles satildeo solidificados e dotados de duraccedilatildeo e
estabilidaderdquo 66
Hoje mais do que nunca tornou-se uma espeacutecie de consenso afirmar que
relembrar o passado eacute elemento crucial para qualquer senso de identidade Maurice
Halbwachs no entanto interessado no caraacuteter muacuteltiplo das memoacuterias coletivas jaacute
havia se apercebido que modos diferentes de lembranccedilas criavam uma tendecircncia agrave
fragmentaccedilatildeo das identidades Para ele a multiplicidade dos grupos era tambeacutem uma
multiplicidade de duraccedilotildees coletivas67 Esse insight saudado por Seixas como uma
intuiccedilatildeo halbwachiana sobre o problema da diversidade tatildeo caro em nosso mundo
contemporacircneo permite-nos pensar o conjunto de memoacuterias coletivas como uma
federaccedilatildeo de grupos especiacuteficos que produzem (ou demandam a produccedilatildeo de) seus
passados68 Grupos que por vezes em episoacutedios de secessatildeo podem entrar em
conflito e protagonizar ldquoverdadeiras batalhasrdquo de memoacuteria como nos ensinou
Michael Pollak
Mas de que maneira Halbwachs perceberia essas batalhas Se natildeo vejamos A
memoacuteria coletiva no singular encamparia todo o espaccedilo de experiecircncias de uma
64 POLLAK Michael Memoacuteria e identidade social In Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro vol 5 n
10 1992 p 5 65 SARLO Beatriz Tempo passado cultura da memoacuteria e guinada subjetiva Satildeo Paulo Companhia
das Letras Belo Horizonte UFMG 2007 p 9 66 POLLAK Michael Memoacuteria esquecimento silecircncio In Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro vol 2
n 3 1989 p 2 67 Ver HALBWACHS 1950 p 78 68 Nas palavras da autora ldquoEssa fragmentaccedilatildeo essa verdadeira lsquotendecircncia federativa da memoacuteriarsquo
delineia justamente um dos fenocircmenos maiores de nossa atualidade base de formaccedilatildeo das
subjetividades muacuteltiplas e diferenciadasrdquo SEIXAS Jacy Alves de Halbwachs e a memoacuteria-
reconstruccedilatildeo do passado In Histoacuteria Satildeo Paulo 20 2001 p 107
40
geraccedilatildeo Se os grupos sociais satildeo diversos e com eles os meios de lembrar
precisamos responder francamente pela negativa Por isso desde muito cedo o
socioacutelogo percebeu a instrumentalidade de se utilizar o conceito no plural
reconhecendo a multiplicidade dos quadros sociais da memoacuteria Sendo assim
qualquer processo identitaacuterio individual passaria por pelo menos um punhado de
grupos famiacutelia ambiente educacional trabalho religiatildeo etc determinando uma
dezena de olhares ndash ou ldquopontos de vistardquo ndash sobre a memoacuteria coletiva Seu resultado
natural deveria ser (caso acessemos a mesma premissa que Durkheim utilizou para a
divisatildeo social do trabalho) a produccedilatildeo da solidariedade social No entanto um
conflito entre por exemplo trabalho e religiatildeo levaria sob a loacutegica funcionalista natildeo
apenas a um entrecruzamento de pontos de vista mas a um sentimento de perda de
identidade esfacelamento de valores ciacutevicos religiosos morais causas enfim
relacionadas por Eacutemile Durkheim a certos episoacutedios de suiciacutedio69 Trata-se de um
ponto realmente natildeo explorado por Maurice Halbwachs Como jaacute havia apontado
Marc Bloch havia pouco espaccedilo para recriaccedilatildeo ressignificaccedilatildeo ndash e diriacuteamos noacutes
para conflitos ndash dentro dos Quadros Sociais da Memoacuteria Pela loacutegica funcionalista
batalhas de memoacuteria natildeo eram mais do que sintomas de uma patologia social trataacutevel
como explicou Durkheim em A Divisatildeo do Trabalho Social atraveacutes de
regulamentaccedilotildees morais e juriacutedicas sobre o trabalho70
Regrar o mundo do trabalho pela lei e pela moral encontraria uma soluccedilatildeo
moderna e corporativa derivada ndash ou reinventada ndash na longa duraccedilatildeo do problema dos
costumes base do rito positivo do reencontro da coletividade no ancestral divinizado
pela performance do officiant cujo princiacutepio e fim era a reparaccedilatildeo moral da
sociedade Se o exemplum romano aparecia por vezes como um meio de transmissatildeo
dos costumes dos ancestrais (mos maiorum) ndash reparados pelo bom uso dos paralelos
instrumentalizados pelo ergon do orador ndash poderiacuteamos entender as comemoraccedilotildees
modernas como formas de comunicaccedilatildeo geracional da memoacuteria coletiva Mais do que
simples transmissatildeo como indicava Marc Bloch em que medida a comemoraccedilatildeo
69 Mais especificamente ao tipo de ldquosuicide anomiquerdquo Ver DURKHEIM Eacutemile Le suicide Paris
Presses Universitaires de France 2007 p 288 70 ldquoUne reacuteglementation morale ou juridique exprime donc essentiellement des besoins sociaux que la
socieacuteteacute seule peut connaicirctre elle repose sur un eacutetat dopinion et toute opinion est chose collective
produit dune eacutelaboration collective Pour que lanomie prenne fin il faut donc quil existe ou quil se
forme un groupe ougrave se puisse constituer le systegraveme de regravegles qui fait actuellement deacutefautrdquo
DURKHEIM Eacutemile De la division du travail social Livre I Paris Les Presses universitaires de
France 1967 (1893) p 18
41
insinua a reproduccedilatildeo a subversatildeo ou o consentimento dos valores identitaacuterios
estabelecidos Como elas ajudaram ou ajudam a nos pensar como naccedilatildeo
13 Comemoraccedilatildeo como dever de esquecimento
Nem religiatildeo nem raccedila sequer a liacutengua menos ainda a geografia O que
definiria a naccedilatildeo ndash ou diriacuteamos noacutes a identidade nacional ndash era para Ernest Renan
algo de uma ordem muito mais sublime O autor da famosa conferecircncia de 11 de
marccedilo de 1882 entusiasta da filologia admitiria que a liacutengua sim convida agrave uniatildeo
Mas existe algo bem mais forte do que ela trata-se da vontade71 Ora a raccedila ndash
qualquer coisa que se faz e se desfaz ndash natildeo parecia possuir aplicaccedilatildeo poliacutetica A
geografia por sua vez forneceria tatildeo somente um substrato apresentando um campo
de luta e de trabalho As religiotildees mesmo elas natildeo se mostravam mais de impossiacutevel
convivecircncia dentro de uma mesma unidade poliacutetica Para Renan herdeiro intelectual
de Jules Michelet a naccedilatildeo era uma alma72 Como alma funda-se em um princiacutepio
espiritual Princiacutepio dividido entre passado e presente em duas partes ldquouma eacute a
posse comum de um rico legado de lembranccedilas a outra uma concessatildeo atual o
desejo de viver em conjunto a vontade de continuar a fazer valer a heranccedila que
recebemos indivisiacutevelrdquo 73 Indivisiacutevel eacute claro caso o horizonte ainda seja observado
pelas lentes da experiecircncia ldquoO culto dos ancestraisrdquo declara sem tardar ldquoeacute dentre
todos o mais legiacutetimordquo 74 Convocado o ldquoplebiscito de todos os diasrdquo ainda histoacuteria e
cosmologia uniam-se para que ldquouma grande agregaccedilatildeo de homens espiacuteritos sadios e
coraccedilotildees caacutelidos criassem uma consciecircncia moral que chamamos de naccedilatildeordquo 75
Moral do latim mores plural de mos de onde os antigos romanos derivavam
sua mos maiorum significa em sentido estrito algo ldquorelativo aos costumesrdquo Ora
mesmo a ideia de ldquonaccedilatildeo-contratordquo por mais propositalmente contraposta que
estivesse ao chamado historicismo romacircntico alematildeo ndash com sua insistecircncia na heranccedila
71ldquoIl y a dans lrsquohomme quelque chose de supeacuterieur agrave la langue crsquoest la volonteacuterdquo RENAN Ernest
Qursquoest-ce qursquoune nation Confeacuterence fait en Sorbonne le 11 mars 1882 Calman Leacutevy 1882 pp 7 72O jovem Renan escreveu a Michelet ldquo() personne nrsquooccupe dans ma penseacutee autant de place que
vous personne ne me repreacutesente drsquoune maniegravere plus intime les reacuteflexions qui forment ma nourriture
habituellerdquo RENAN Ernest Carta a Jules Michelet(Paris 12 de Junho de 1848) In Correspondance
1846-1871 Paris 1926 Calmann-Leacutevy Eacutediteurs 3 p 8 73 RENAN Idem p 9 74 RENAN Idem Ibidem 75 ldquoUne grande agreacutegation drsquohommes saine drsquoesprit et chaude de coeur creacutee une conscience morale
qui srsquoappelle une nation RENAN Idem p 10 Grifos meus
42
da raccedila no territoacuterio e na liacutengua ndash natildeo parecia conseguir fugir do problema dos
costumes Ou devemos ignorar que mesmo Renan insinuava uma espeacutecie de religiatildeo
ciacutevica com base no culto dos ancestrais Insistir na questatildeo dos costumes para definir
as caracteriacutesticas comuns de um povo natildeo era em nada eacute claro incomum ainda no
seacuteculo XIX Alexis de Tocqueville em suas reflexotildees sobre a Ameacuterica e os Estados
Unidos jaacute se perguntava ldquoo que satildeo todos esses haacutebitos essas opiniotildees esses usos
essas crenccedilas senatildeo aquilo que eu chamei de costumesrdquo Comparando o
desenvolvimento do leste e do oeste sua conclusatildeo natildeo era menos moralista ldquosatildeo
particularmente os costumes portanto que fazem os americanos dos Estados Unidos
() capazes de suportar o impeacuterio da democraciardquo O uso de criteacuterios morais para a
definiccedilatildeo das caracteriacutesticas de um povo tambeacutem era promissor como criacutetica aos
determinismos naturais e geograacuteficos Como o faria mais tarde e a seu modo Renan
Tocqueville lamentava que na Europa ldquoexageramos a influecircncia que exerce a posiccedilatildeo
geograacutefica do paiacutes sobre a duraccedilatildeo das instituiccedilotildees democraacuteticas Atribuiacutemos muita
importacircncia agraves leis muito pouca aos costumesrdquo76
Mas o moderno impeacuterio dos costumes enquanto consciecircncia moral natildeo
dependeria tatildeo somente da lembranccedila Seu criteacuterio natildeo era tatildeo soacutelido como foi para
os antigos com uma moral superior divinizada nos exemplos de virtude natildeo o
caminho moderno era cada vez menos fabuloso e por isso mesmo mais vago ao
menos no que diz respeito aos criteacuterios de unidade nacional ldquoO progresso dos estudos
histoacutericosrdquo escreveu Renan ldquoeacute com frequecircncia um perigo para a nacionalidaderdquo As
investigaccedilotildees historiograacuteficas narravam descreviam lembravam a todo instante os
pormenores ndash sem raridade violentos e imorais ndash da formaccedilatildeo poliacutetica de todas as
naccedilotildees Por isso a consciecircncia moral de que nos falava Renan envolvia algo mais do
que a commemoratio dos ancestrais ldquoa essecircncia de uma naccedilatildeordquo escreveu ldquoeacute que
todos os indiviacuteduos tenham muitas coisas em comum e tambeacutem que todos tenham
esquecido de certas coisasrdquo77 Afinal bem esquecer algumas coisas ou ldquomesmo o erro
histoacuterico eacute um fator essencial na criaccedilatildeo de uma naccedilatildeordquo Assim podemos entender
76 ldquoQursquoest-ce que toutes ces habitudes ces opinions ces usages ces croyances sinon ce que jrsquoappeleacute
des moeurs () Ce sont donc particuliegraverement les moeurs qui rendent les Ameacutericains des Eacutetats-Unis
seuls entre tous les Ameacutericains capables de supporter lrsquoempire de la deacutemocratie () Ainsi lrsquoon
exagegravere en Europe lrsquoinfluence qursquoexerce la position geacuteographique du pays sur la dureacutee des instituitions
deacutemocratiques On attribue trop drsquoimportance aux lois trop peu aux moeursrdquo TOCQUEVILLE Alexis
de De la deacutemocratie en Ameacuterique I (deuxiegraveme partie) Les classiques des sciences sociales version
numeacuterique par Jean-Marie Tremblay pp 132-133 77 ldquoOr lrsquoessence drsquoune nation est que tous les individus aient beaucoup de choses en commun et aussi
que tous aient oublieacute bien de chosesrdquo RENAN Idem p 4
43
essa ceacutelebre frase em Renan aquilo que chamamos de identidade nacional pertence agrave
ordem da memoacuteria sujeita ao esquecimento ndash ou mesmo a adulteraccedilatildeo ndash de acordo
com os princiacutepios morais de sua vontade poliacutetica Em outras palavras a consciecircncia
moral advoga quando necessaacuterio por um dever de esquecimento
A proacutepria noccedilatildeo contemporacircnea de ldquoidentidaderdquo de uso recorrente desde o
mundo do poacutes-guerra jaacute foi questionada em seus usos e abusos78 Para Richard
Handler o conceito refere-se a trecircs aspectos da experiecircncia humana primeiro aos
indiviacuteduos tambeacutem aos grupos ou coletividades imaginadas de modo individualizado
e por fim ao relacionamento entre os dois ou seja agraves maneiras pelas quais as
pessoas satildeo imaginadas a assimilar elementos identitaacuterios coletivos em suas
identidades pessoais (de onde podemos deduzir a identidade nacional) Cada cultura
no entanto tende a lidar com esses problemas a seu proacuteprio modo Handler
antropoacutelogo ligado agrave Universidade da Virgiacutenia cita o exemplo do povo Hopi que
diferentemente dos ocidentais ldquonatildeo imaginam pensamentos presos no espaccedilo interior
de seus cracircniosrdquo Ao contraacuterio esses nativos do sudoeste dos Estados Unidos
consideram que os ldquopensamentos humanos agem rotineiramente como uma forccedila no
mundo exteriorrdquo Se um Hopi prestar atenccedilatildeo a uma queda d`aacutegua um arbusto ou um
milharal ele vai naturalmente supor que seu pensamento ndash ou ele mesmo ndash navega
dentro desses espaccedilos de seus olhos agrave agravegua de sua mente ao peacute de milho Definir o
ser pelo fluxo de consciecircncia significa em outras palavras que em certas culturas a
individualidade natildeo eacute definida em termos de barreiras fiacutesicas ou corporais79 Em outro
exemplo Handler chega a mencionar os balineses descritos por Geertz para quem os
detalhes idiossincraacuteticos de uma biografia ao menos na acepccedilatildeo ocidental natildeo seriam
compreensiacuteveis Afinal dentre eles natildeo existe a ideia de um sentido essencial
contiacutenuo do nascimento agrave morte para a personalidade de um indiviacuteduo
Mesmo a Europa do iniacutecio do seacuteculo XIX como vimos era estranha ao
conceito de identidade presente nos estudos sociais poacutes-halbwachianos Handler
propotildee demonstrar isso atraveacutes da obra de Jane Austen todos os seis romances da
autora comeccedilam por uma narraccedilatildeo extensa das conexotildees familiares dos personagens
78 Aqui sigo HANDLER Richard Is ldquoIdentityrdquo a Useful Cross-Cultural Concept In GILLIS John
R (org) Commemorations the politics os national identity Princeton University Press New Jersey
1994 79 ldquo() unlike Westerners who imagined their thoughts to be enclosed in an inner space contained
within their skulls the Hopi (southwestern United States) consider that human thought acts routinely as
a force in the outer world ()ldquoA Hopi would naturally suppose that his thought (or he himself) trafficts
with the () corn plant () that he is thinking aboutrdquo Idem p 31
44
de onde deriva a seguir a relaccedilatildeo entre senhores e servos Na ausecircncia do conceito de
identidade as caracteriacutesticas morais dos personagens seus trejeitos e idiossincrasias
eram definidas a partir do relacionamento com outros seres humanos80 Em
Tocqueville no que diz respeito agrave constituiccedilatildeo ldquoidentitaacuteriardquo do povo norte-americano
observamos uma certa dualidade ndash senatildeo mesmo um diaacutelogo ou uma contradiccedilatildeo ndash
entre os costumes (mœurs) historicamente construiacutedos e a imagem do ldquocoraccedilatildeo
humanordquo (cœur humain) de caraacuteter aparentemente universal e natural81
Natildeo eacute a toa que em Ernest Renan a naccedilatildeo era ainda um projeto Criado por
uma consciecircncia moral pelo anseio de viver junto o futuro era exposto por uma
vontade poliacutetica alicerccedilada no ideal do progresso e defendido pelas armas da retoacuterica
deliberativa em um plebiscito-de-todos-os-dias Hoje os conceitos de identidade ndash e
por extensatildeo de identidade nacional ndash teriam se tornado evidecircncias Ainda uma vez
a ordem do tempo parecia sentenciar sua justiccedila Clara e distinta a identidade
nacional por vezes parece o resultado de um equiliacutebrio entre a memoacuteria coletiva tal
como descrita por Maurice Halbwachs e a amneacutesia coletiva de que nos falou
Benedict Anderson82 De todo modo temos um resultado que foi tambeacutem uma
invenccedilatildeo a passagem entre simples costumes em comum a uma nacionalidade
compartilhada exigiu o reagrupamento de toda uma sorte de experiecircncias tarefa que
soacute se tornou possiacutevel atraveacutes de um investimento do Estado e de grupos da sociedade
civil organizada em politicas puacuteblicas de memoacuteria e de esquecimento Pois se uma
naccedilatildeo ndash mais do que um territoacuterio uma liacutengua uma religiatildeo um regime ndash ldquoeacute uma
memoacuteriardquo como afirmou Pascal Ory deveriacuteamos acrescentar que ela tambeacutem parece
ser um conjunto de diversos esquecimentos83
80 HANDLER op cit p 35-36 81 Cito duas passagens ldquo() tous les proceacutedeacutes qui se deacutecouvrent tous les besoins qui viennent agrave naicirctre
tous les deacutesirs qui demandent agrave se satisfaire sont des progregraves vers le nivellement universel Le goucirct du
luxe lamour de la guerre lempire de la mode les passions les plus superficielles du cœur humain
comme les plus profondes semblent travailler de concert agrave appauvrir les riches et agrave enrichir les
pauvres TOCQUEVILLE op cit Introduction E a seguir ldquoIl y a en effet une passion macircle et leacutegitime
pour leacutegaliteacute qui excite les hommes agrave vouloir ecirctre tous forts et estimeacutes Cette passion tend agrave eacutelever les
petits au rang des grands mais il se rencontre aussi dans le cœur humain un goucirct deacutepraveacute pour leacutegaliteacute
qui porte les faibles agrave vouloir attirer les forts agrave leur niveau et qui reacuteduit les hommes agrave preacutefeacuterer leacutegaliteacute
dans la servitude agrave lineacutegaliteacute dans la liberteacuterdquo Idem p 49 Grifos meus 82 ANDERSON Benedict Imagined Communities Reflections on the Origin and Spread of
Nationalism ver Ed New York Verso 1991 Principalmente capiacutetulo 11 83 ORY Pascal 1992 p 8 ldquo() il apparaicirct clairement que plus encore qursquoun territoire une langue une
religion ou un reacutegime une nation crsquoest une meacutemoirerdquo
45
14 Era das comemoraccedilotildees 10
No final do seacuteculo XIX a onda dos centenaacuterios banhou praias dos dois lados
do Atlacircntico Na Ameacuterica do Norte em 1876 comemorou-se a declaraccedilatildeo da
independecircncia Na Franccedila em 1889 foi a vez do centenaacuterio da revoluccedilatildeo francesa
Seguiram-se os festejos do descobrimento da Ameacuterica em 1892 e depois as do
proacuteprio seacuteculo jaacute no ano de 1900 Essa onda na verdade ganhou aspecto de um
verdadeiro tsunami nem a longiacutenqua Austraacutelia sequer um paiacutes independente deixou
de comemorar em 1888 o aniversaacuterio de sua colonizaccedilatildeo
Em Portugal ainda em 1880 assistimos agrave celebraccedilatildeo promovida por uma
comissatildeo de imprensa do tricentenaacuterio de Camotildees Naquele ano Teoacutefilo Braga
incitava o clamor popular nas paacuteginas do Commercio de Portugal enquanto que
Luciano Cordeiro atraveacutes da Sociedade de Geografia de Lisboa planejava os
festejos84 Tendo em matildeos o Catheacutecisme positiviste ndash que seria traduzido para o
portuguecircs por Miguel Lemos um pouco mais tarde em 1888 ndash os intelectuais
lusitanos entendiam que atualizar a densidade mneumocircnica definindo explicitamente
o que se deve lembrar e implicitamente o que se deve esquecer era afinar o espiacuterito
nacional com o ldquoprogresso da humanidaderdquo 85 Sua via era didaacutetica e jaacute tinha sido
expressa pelo mestre ldquomoralizer la puissance mateacuterielle agrave laquelle le monde reacuteel est
neacutecessairement soumisrdquo86 Com a doutrina em seus braccedilos os mais notoacuterios
disciacutepulos de Augusto Comte conspiravam para ldquoatravessar a histoacuteria e imprimir com
convicccedilatildeo o tiacutetulo de Grande na fronte dos que fizeram por merececirc-lordquo87
Como officiant do culto positivo o intelectual por meio da imprensa ou de
comissotildees extraordinaacuterias encarnaria os ancestrais da naccedilatildeo evocaria seus siacutembolos
seus valores morais definindo a identidade e apresentando-a agraves novas geraccedilotildees a
partir do caraacuteter dos grandes homens da histoacuteria nacional Afinal ldquoSempre que uma
forccedila extranha e desconhecida agitar e suspender a nacionalidade Portuguezardquo
84 Conferir JOAtildeO Maria Isabel op cit p 3 85 Sobre o progresso relacionado agraves comemoraccedilotildees ver O Positivismo Revista de Philosophia II vol
Porto Livraria Universal 1880 p 517 apud JOAtildeO op cit p 11 86 ldquo() moralizer la puissance mateacuterielle agrave laquelle le monde reacuteel est neacutecessairement soumisrdquo COMTE
Auguste Sommaire exposition de la religion universelle en treize entreacutetiens sistemaacutetiques entre une
Femme et um Precirctre de lrsquohumaniteacute Paris Place de lacuteEstrape 1891 (ediccedilatildeo original de 1845) p 21
Cartilha baacutesica da religiatildeo da humanidade esse texto define datas comemorativas e as associa aos
grandes homens da histoacuteria Eacute apresentado na forma de um diaacutelogo entre um padre e uma mulher os
dois ldquopoderes moderadoresrdquo da sociedade 87 LAFFITTE Pierre Les grands types drsquohumaniteacute Appreacuteciation systeacutematique des principaux agents
de lrsquoeacutevolution humaine Paris E Leroux 1875 p 70
46
escreveu Joaquim Nabuco sobre Camotildees ldquoa attraccedilatildeo viraacute do teo genio satellite que se
desprendeo della e que resplandece como a lua no firmamento da terra para agitar e
revolver os oceanosrdquo88
15 Dos homens ceacutelebres aos grandes homens
Em novembro de 1783 com o fim da Guerra de Independecircncia o general
Washington escreve seu farewell to the Nation Sem aceitar soldo algum durante os
oito anos de serviccedilos ao exeacutercito tendo gasto sua proacutepria fortuna no esforccedilo
revolucionaacuterio o comandante continental entrega o posto ao primeiro sinal de paz No
ano anterior ele jaacute havia ldquocom uma mistura de grande surpresa e assombrordquo lido
recusado e prometido repreender com severidade qualquer insinuaccedilatildeo a respeito de
sua permanecircncia no poder Sim haviam aqueles que dentre as fileiras do proacuteprio
exeacutercito sonhavam em vecirc-lo rei89
Mas a imagem do bom homem aposentado senhor de Mont-Vernon a lavrar
os campos e escrever cartas agrave sombra de sua figueira natildeo apenas afastaria da
hagiografia civil georgiana qualquer cor tiracircnica como tambeacutem tornaria Washington
ndash pai fundador da naccedilatildeo ndash exemplo de democracia Ou acaso antes de se tornar o
primeiro presidente ele jaacute natildeo havia sido eleito o primeiro Cincinnatus do novo
mundo90 Mesmo agrave revelia sem sequer ter estado em nenhuma reuniatildeo antes disso
ele foi feito presidente da reacutecem instituiacuteda Ordem de Cincinnatus Logo dentro da
cosmologia republicana e atraveacutes de uma verdadeira tradiccedilatildeo biograacutefica ele deveria
88 NABUCO Joaquim Camotildees Discurso pronunciado aacute 10 de junho de 1880 Rio de Janeiro G
Leuzinger amp Filhos 1880 p 29 89 ldquo() acredito que podemos logo dizer que existem fortes argumentos para admitirmos o tiacutetulo de rei
()rdquo GUIZOT Vie de Washington Correspondence et eacutecrits de Washington pub Drsquoapregraves lrsquoeacutedition
ameacutericaine et preacuteceacutedeacutes drsquoune introduction Paris Charles Gosselin 1870 p179 A correspondecircncia
entre George Washington e o Col Nichola na qual o coronel propotildee o reinado ao general foi
publicada jaacute por John Marshal em sua obra escrita entre 1804 e 1807 Ela eacute referecircncia unacircnime em toda
a hagiografia civil georgiana Ver MARSHALL John Vie de George Washington geacuteneacuteral en chef des
armeacutees ameacutericaines durant la guerre de lrsquoindependance et preacutesident des Eacutetats-Unis drsquoAmeacuterique
Paris Dentu 1807 Vol 5 p 8 SAWYER Joseph Dillaway George Washington 1732-1799 Bi-
centennial ed Boston Thomas W Best 1927 v 2 p 86-87 WILSON Woodrow George Washington
fondateur des Eacutetats-Unis Paris Payot 1927 (1893) 90 ldquoPor testemunhar respeito agrave memoacuteria desse ceacutelebre romano querdquo escreveu seu primeiro bioacutegrafo
ldquoretirando-se do comando de seus exeacutercitos entregou-se aos trabalhos da agriculturardquo a nata do
oficialato revolucionaacuterio ndash sob a lideranccedila do general Knox ndash fundou a Sociedade de Cincinnatus
MARSHALL John op cit p 13-14 Sobre Cincinnatus a fonte claacutessica eacute LIVIUS Titus Histoire
romaine de Tite Live Paris Panckoucke 1830-1833 Ver principalmente Vol I I30 e Vol II III20-29
47
se tornar aos olhos de muitos a personificaccedilatildeo do sistema poliacutetico norte-americano91
O culto dos founding fathers eacute particularmente importante na histoacuteria das
comemoraccedilotildees norte-americanas George Washington como escreveu Lyn Spillman
foi ldquoconsistentemente reverenciado como heroacutei nacional desde a deacutecada de 1780rdquo
ldquoRetratos celebraccedilatildeo de aniversaacuterios capelas reliacutequias livros artigosrdquo eram tatildeo
comuns que como dizia-se agrave eacutepoca o primeiro presidente americano ldquonatildeo era um
homem mas um Deusrdquo92
E o que fazer com um Deus senatildeo reservar-lhe espaccedilo de adoraccedilatildeo em solo
sagrado Natildeo deveria ser necessaacuterio insistir nos laccedilos entre os pais fundadores e a
Franccedila ldquoPergunte ao habitante de qualquer naccedilatildeo em qual paiacutes da terra ele gostaria de
viverrdquo refletiu Thomas Jefferson e ele responderaacute certamente em sua proacutepria ndash mas
ldquoqual seria a sua secunda opccedilatildeo A Franccedilardquo93 Em 2 de Abril de 1791 na sequecircncia
da morte do Conde de Mirabeau a Assembleia Nacional Constituinte decretou que a
Igreja de Sainte Geneviegraveve patrono de Paris fosse convertida em um Panteatildeo de
divindades civis Os primeiros corpos a chegar foram de santos seculares como
Voltaire e Rousseau cujos restos mortais cruzaram o poacutertico sob o qual hoje se pode
ler a inscriccedilatildeo ldquoaos grandes homens o reconhecimento da paacutetriardquo 94
ldquoChamo de grandes homensrdquo escreveu Voltaire em carta a Thieacuteriot ldquotodos
aqueles que se destacaram no uacutetil e no agradaacutevelrdquo 95 Na Franccedila ainda em 1758 a
academia jaacute tinha mesmo decidido trocar o curso de eloquecircncia pelo curso de elogio
dos homens ceacutelebres da naccedilatildeo fato que segundo Jean-Claude Bonnet lavrou ldquoa ata
de nascimento oficial do culto dos grandes homensrdquo 96 Pouco mais tarde Marat
anotaria em diaacuterio um esboccedilo de sua proacutepria tipologia entre os ilustres registrou os
papeacuteis do filoacutesofo do legislador do orador do guerreiro do negociante e do
91 Sobre Washington natildeo ter participado das reuniotildees da sociedade antes de sua nomeaccedilatildeo para presidi-
la ver FREEMAN Douglas Southall George Washington a Biography Volume Five Victory with
the help of France New York Charles Scribnerrsquos Sons 1952 p 453 92 SPILLMAN Lyn Nation and commemoration Creating national identities in the United States and
Australia Cambridge University Press New York 1997 p 23 93 ldquoAsk the travelled inhabitant of any nation in what country on earth would you rather livemdash
Certainly in my own where all my friends my relations and the earliest and sweetest affections and
recollections of my life Which would be your second choice Francerdquo JEFFERSON Thomas The
Writings of Thomas Jefferson 1892 ed Paul L Ford vol 1 p 149 94 Sobre o Pantheacuteon ver OZOUF Mona Le Pantheacuteon lrsquoEacutecole Normale des morts In Nora Pierre
Lieux de meacutemoire Vol 1 La Reacutepublique Paris Gallimard 1984 pp 139-166 E tambeacutem BONNET
Jean-Claude Naissance du Pantheacuteon Paris Fayar 1998 95 ldquoJrsquoappelle grands hommesrdquo resumiraacute Voltaire ldquotous ceux qui ont excelleacute dans lrsquoutile ou dans
lrsquoagreableacuterdquo VOLTAIRE Lettre agrave Thieacuteriot Juillet 1735 apud HARTOG Franccedilois Anciens modernes
sauvages Paris Galaade Eacuteditions 2005 p 158 96 BONNET op cit p 10
48
magistrado97 Mas esse culto natildeo foi revelado dos ceacuteus Ele eacute terreno secular e sua
genealogia poderia ser traccedilada pelo menos ateacute os primeiros seacuteculos de nossa era
atraveacutes da obra de Plutarco mesmo que a ldquonaturezardquo dos homens comemorados tenha
se modificado substancialmente desde entatildeo
Plutarco escrevera vidas Seu projeto de biografias paralelas um romano na
sequecircncia de um grego ao lado de suas Obras Morais compunha um corpus uacutenico na
antiguidade98 Natildeo as Vidas plutarquianas natildeo eram exatamente histoacuteria mas uma
espeacutecie de filosofia moral aplicada ldquoporque a narraccedilatildeo dos fatos aticcedila no espectador a
vontade de agirrdquo Elas funcionavam como uma pintura ou talvez uma escultura de
todo modo compondo ldquoo retrato de uma almardquo 99 Retrato que deveria ser fiel
captando a condiccedilatildeo humana atraveacutes de seu sempre peculiar conjunto de elementos
nobres e imperfeitos lembrando com Platatildeo que ldquoas grandes naturezas satildeo capazes
de grandes viacutecios e de grandes virtudesrdquo
Nem toda palavra presente nas Vidas era no entanto traccedilada pela natureza
humana A Fortuna o imponderaacutevel divinizado mostrava-se uma protagonista
inevitaacutevel necessaacuteria e ativa Como bem resumiu Franccedilois Hartog as biografias
plutarquianas se interessam muito particularmente ldquopelas estrateacutegias face agrave Fortunardquo
afinal ldquoquem se opotildee a ela quem a acompanha e quem por ela eacute abandonadordquo 100 A
beleza moral acaba se tornando o resultado indireto da vontade dos homens ilustres
satildeo as suas respostas face ao imponderaacutevel que determinam o tipo de caraacuteter que vai
imortalizaacute-los Seguindo esse raciociacutenio ainda estamos no terreno da moral mas
tambeacutem no do poliacutetico ndash com seu habitual cadinho de anedotas conselhos frases de
efeito as Vidas Paralelas tornam-se um tipo particular de dieta uma espeacutecie de
coleccedilatildeo de exemplos que a seu tempo ajudaram a formular uma memoacuteria comum
grego-romana Uma memoacuteria e uma moral Mesmo que sua atenccedilatildeo agrave bios faccedila da
tarefa de classificar Plutarco como historiador uma empresa tanto difiacutecil em nada
impediu Adriana Zangara de ver no bioacutegrafo do mundo antigo a expressatildeo maacutexima da
historia magistra vitae Atrair a atenccedilatildeo dos leitores por meio da emoccedilatildeo causada
pelas imagens exemplos e paralelos dos e entre os nomes ilustres do passado realizar
97 Citado por OZOUF Mona 1984 pp 149-166 98 Sobre Plutarco tomo por guia HARTOG 2005 principalmente pp 127-160 99 Respectivamente ldquola narration des faits (historia tou ergou) entraicircne chez le spectateur la volonteacute
drsquoagirrdquo PEacuteRICLES 1224 A seguir ldquoEacutecrire une vie crsquoest faire ldquole portrait drsquoune acircmerdquo CATAtildeO o
Jovem 24 1 apud HARTOG 2005 p 133 Ver notas 15 e 17 pp 301 100 HARTOG 2005 p 137
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o julgamento impliacutecito de seus viacutecios e de suas virtudes e erigir um edifiacutecio moral
comum a gregos e romanos ndash natildeo era esse o seu trabalho101
O objetivo das Vidas natildeo era tatildeo somente falar do passado mas aconselhar
fazer refletir sobre os costumes e corrigi-los quando necessaacuterio Ao lado das Obras
Morais do mesmo autor as biografias plutarquianas foram especialmente valorizadas
no final da Idade Meacutedia Plutarco era lembrado como o preceptor de Trajano
conquistador da Daacutecia e seus escritos formularam a base de um sem nuacutemero de
cartilhas pedagoacutegicas conhecidas hoje como espelhos dos priacutencipes Ainda no seacuteculo
XIII o monge bizantino Maxime Planude jaacute tinha transcrito glosado e divulgado a
obra de Plutarco102 Sua redescoberta no ocidente deu-se durante o pontificado de
Avignon quando em 1373 Simone Atumano realizou a primeira traduccedilatildeo latina do
tratado Do controle da coacutelera texto que vinte anos depois seria reescrito em um latim
mais pomposo por Coluccio Salutati Para Erasmo ldquose Soacutecrates trouxe a filosofia do
ceacuteu para a terra Plutarco eacute aquele que a introduziu no coraccedilatildeo das casas ateacute o quarto
de dormirrdquo103 Afinal essas cartilhas morais ndash como escreveu Jacques Amyot em sua
traduccedilatildeo das Obras dedicada a Charles IX ndash ldquotendem a conduzir ao mesmo fim que os
livros dos santosrdquo Uma leitura cristatilde de Plutarco natildeo era apenas improvaacutevel mas
loacutegica haacute muito que a vida dos homens canonizados tornou-se exemplo ndash segui-los
era o caminho da virtude104
Talvez o melhor caso dos usos de Plutarco durante a primeira modernidade
venha da obra de Michel de Montaigne Nascido em uma rica famiacutelia de comerciantes
de Bordeaux ele seria educado e alfabetizado segundo os preceitos humanistas caros
agraves elites renascentistas europeias Seu pai Pierre Eyquem fez questatildeo que aprendesse
o latim como primeira liacutengua ldquoquanto a mimrdquo escreveu Montaigne em um de seus
Ensaios ldquoeu tinha seis anos antes de compreender o francecircs mais que o perigordin ou
o aacuterabe e sem meacutetodo sem livro sem gramaacutetica ou preceito sem chicote e sem
laacutegrimas tinha aprendido o latimrdquo 105 A educaccedilatildeo claacutessica rendeu-lhe natildeo apenas um
101 ZANGARA Adriana Voir lrsquohistoire Theacuteories anciennes du reacutecit historique Paris EHESS 2007 p
13 102 HARTOG 2005 p 146 103 Idem p 147 104 Hartog percebe uma leitura cristatilde de Plutarco em Racine lida a partir das anotaccedilotildees escritas agraves
margens de seu exemplar das Vidas ldquoas notas mais precisas vem propor uma leitura-traduccedilatildeo cristatilde de
uma frase ou uma expressatildeo eacute assim que tuchecirc (Fortuna) daimocircn (democircnio) ou pronoia
(clarividecircncia) podem em todo caso serem glosados em ldquoProvidecircnciardquo HARTOG 2005 p 156 105 MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Cap XXV Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas p 125 Pinguin
Books Satildeo Paulo 2010
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profundo apreccedilo pelos antigos como tambeacutem a vocaccedilatildeo aos estudos humanistas
Parafraseando e respondendo agrave famosa imagem de Beacuternard de Chartres ndash ldquosomos
como anotildees apoiados nos ombros de gigantesrdquo ndash Montaigne diria que ldquoeacute preciso ter
costados bem firmes para decidir andar ombro a ombro com essas pessoasrdquo 106 E que
largas costas natildeo foram cultivadas desde a infacircncia a suportar a carga do latim
Especialmente dado agrave leitura dos moralistas romanos chegou a admitir que natildeo havia
travado relaccedilotildees ldquocom nenhum outro livro soacutelido a natildeo ser Plutarco e Secircneca em que
me abasteccedilo como as Danaidesrdquo107 Seus ensaios aliaacutes formariam um corpus
ldquoconstruiacutedo com os despojosrdquo desses dois autores108
Entre Secircneca e Plutarco entretanto o mais estimado era com certeza o uacuteltimo
o ldquonosso Plutarcordquo como ele com frequecircncia o chama era o seu homem Para
Montaigne ldquoPlutarco eacute um filoacutesofo que nos ensina a virtuderdquo109 ldquoDe todos os autores
que conheccedilordquo o autor das Vidas seria ldquoaquele que melhor misturou a arte e a
natureza o julgamento e a erudiccedilatildeordquo Esse ldquotatildeo perfeito juiz das accedilotildees humanasrdquo110 E
como julgar os feitos dos homens senatildeo conhecendo suas histoacuterias e frequentando
por meio delas as ldquograndes almas dos melhores seacuteculosrdquo111 Mas a riqueza do
trabalho de Plutarco era vista pelo autor dos Ensaios natildeo tanto como conclusatildeo
poreacutem mais como ferramenta ndash uacutetil e agradaacutevel ndash que nos convida a continuar seu
trabalho de embelezamento moral do mundo ldquoHaacute em Plutarcordquo escreveu Montaigne
ldquomuitos discursos extensos digniacutessimos de serem conhecidosrdquo poreacutem existem
tambeacutem ldquomil outros que ele simplesmente aflorou sinaliza soacute com o dedo por onde
106 MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Cap XXV Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas p 86 lsquoNous sommes
comme de nains jucheacutes sur des eacutepaules de geacuteantrsquo eacute expressatildeo atribuiacuteda a Bernard de Chartres poreacutem
fixada por Jean de Salisbury em seu Le Metalogicon preacutesentation et traduction par Franccedilois Lejeune
Laval Presses de lrsquouniversiteacute de Laval Paris 2009 (1159) (III 4) No original ldquoDicebat Bernardus
Carnotensis nos esse quasi nanos gigantium humeris insidentes ut possimus plura eis et remotiora
videre non utique proprii visus acumine aut eminentia corporis sed quia in altum subvenimur et
extollimur magnitudine giganteardquo Na traduccedilatildeo francesa de Dumez Herveacute ldquo Bernard de Chartres disait
que nous sommes comme des nains jucheacutes sur les eacutepaules de geacuteants de sorte que nous pouvons voir
plus de choses qursquoeux et des choses plus eacuteloigneacutees qursquoils ne le pouvaient non pas que nous jouissions
drsquoune acuiteacute particuliegravere ou par notre propre taille mais parce que nous sommes porteacutes vers le haut et
exhausseacutes par leur taille gigantesque ldquo HERVEacute Dumez Sur les eacutepaules des geacuteants Quasi nanos
gigantium humeris insidentes) Le Libellio dAegis volume 5 2009 ndeg 2 eacuteteacute pp 1-3 Diversos
autores da primeira modernidade a utilizaram glosaram imitaram e parafrasearam Sobre essa questatildeo
ver tambeacutem CIBOIS Philippe laquo Sur les eacutepaules des geacuteants raquo La question du latin 25 novembre 2012
Disponiacutevel em httpenseignement-latinhypothesesorg6359 acesso em 18102013 107 Idem Ibidem 108 MONTAIGNE Os Ensaios Livro II Cap XXXII Defesa de Secircneca e Plutarco p 284 109 MONTAIGNE op cit p 280 110 Respectivamente MONTAIGNE op cit Livro III Sobre os coxos pp 467 e Livro II Sobre a
embriaguez pp 223 111 MONTAIGNE op cit Livro I Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas p 100
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iremos se isso nos agrada e por vezes se contenta em dar apenas um toque no ponto
mais vivo de um assuntordquo Diante da breviedade marca do estilo plutarquiano
ldquoprecisamos arrancaacute-los dali e pocirc-los na vitrinerdquo112
Tomar para si uma menccedilatildeo casual uma passagem que sentiu tatildeo somente um
leve toque da autoridade do artista e colocaacute-la em evidecircncia ndash aqui temos um
procedimento caro agrave constituiccedilatildeo das memoacuterias exemplares Um exemplo como
interpretou Jean Starobinski eacute a ldquofigura que colocado agrave parte (ex-emplum) mas
chamando agrave imitaccedilatildeo e agrave generalizaccedilatildeo pode confortar o indiviacuteduo dentro de sua
singularidade virtuosardquo Mais do que isso ele torna-se um instrumento criador de
identidades ldquofazendo esforccedilo para manter em estado de semelhanccedila face agravequeles que
fizeram os milagres da constacircnciardquo conclui Starobinski ldquoele se exerceraacute e se tornaraacute
identico a si mesmordquo 113
Figura que obteacutem sucesso em unir passado e futuro a escolha de um exemplo
a ser conjurado eacute tarefa medida e levada a cabo eacute claro pelos interesses dos dias de
hoje como escreveu Louis Marin a arte do historiador agrave la Plutarco consistiria em
saber ldquodeslocar o epidiacutectico dentro do narrativordquo ndash ou trazer o uacutetil ao presente no
sentido da retoacuterica demonstrativa114 Encontrar elementos proveitosos no passado era
a tarefa primordial da erudiccedilatildeo Seu corolaacuterio era o estabelecimento de paralelos natildeo
mais entre gregos e romanos mas entre antigos e modernos
A praacutetica de erigir paralelos entre vidas ilustres comeccedilaraacute entretanto a ser
questionada ao menos na Europa apoacutes 1680 Os reis absolutos os mais dignos
candidatos a terem suas vidas cantadas e comparadas natildeo poderiam por sua proacutepria
natureza possuir exemplos Louis XIV para Charles Perrault transformou-se dentre
todos os reis sejam os de hoje sejam os do passado no ldquomais perfeito modelordquo115 A
impossibilidade de paralelismos exemplares foi acompanhada pela elevaccedilatildeo de uma
nova categoria a qual viria a substituir em certos contextos os homens ilustres ou
mesmo os heroacuteis ldquoO grande homemrdquo ou o homem que encarna o espiacuterito de seu
tempo natildeo precisaria mais sair nem de Plutarco nem da antiguidade sequer do
passado recente ele pode ser um contemporacircneo
Categoria poliacutetica voltada para o presente os grandes homens ainda insistiam
outrossim em marchar no ritmo da moral Gabriel Bonnot abade de Mably fez
112 Idem p 101 113 STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982 p 29 114 MARIN Louis Le Portrait du Roi Paris Minuit 1981 p 46-51 apud HARTOG 2005 p 152 115 PERRAULT Charles Le Siegravecle de Louis le Grand 1687 apud HARTOG 2005 p 156
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questatildeo de ressaltar em seus ensinamentos ao priacutencipe de Parma que a histoacuteria ainda
deveria ldquoser uma escola de moral e de poliacuteticardquo 116 Mably em outra ocasiatildeo jaacute nos
falou muito de Plutarco ldquomodelo perfeito quando a questatildeo eacute escrever a vida de um
homem ilustrerdquo 117 Ele continuava sendo o nosso homem mesmo que o uacutetil e o
agradaacutevel do topos antigo junto a seus exemplos estivessem desestabilizados por
uma nova relaccedilatildeo com o tempo que reconhecia a aceleraccedilatildeo e valorizava o presente
em nome de projetos de futuro A forccedila moral das biografias plutarquianas como
criteacuterio da perfectibilidade mantinha-se viva no coraccedilatildeo das casas e no quarto de
dormir
Tatildeo tarde quanto em 1847 Joatildeo Manuel Pereira da Silva rendia suas
referecircncias a Plutarco Sua sequecircncia de biografias de brasileiros ilustres teve como
tiacutetulo original justamente O Plutarco brazileiro A criacutetica literaacuteria nacional natildeo
tardou por defender seu projeto por mais que tenha sido considerado por muitos
deveras ambicioso ldquoos costumes os fatos histoacutericos a cronologia as ideacuteias morais e
filosoacuteficas da eacutepoca a influecircncia dos homens ceacutelebres tudo isso Plutarco estudou
sobre ()rdquo118 Na Franccedila de Volney e Acher dentre muitos outros interessados na
educaccedilatildeo infantil ndash nessa dimensatildeo privada da utilidade dos exemplos ndash natildeo
cansavam de reafirmar o programa da histoacuteria mestra da vida mesmo que no caso do
autor das Liccedilotildees de histoacuteria ela pudesse ser desvirtuada a partir do mal uso dos
paralelos Afinal a imitaccedilatildeo quando baseada em comparaccedilotildees viciosas teria tornado
possiacutevel o terror Retirar a moral da histoacuteria ainda estava para muitos fora de
cogitaccedilatildeo119
Entre os dias 5 e 22 de maio de 1840 Thomas Carlyle historiador escocecircs
realiza meia duacutezia de conferecircncias dedicadas uma a uma agraves seis categorias de
grandes homens que ele havia classificado o heroacutei como divindade como profeta
como poeta como sacerdote como homem de letras e ao final como rei ou
revolucionaacuterio120 Sua visatildeo sobre o heroacutei (sinocircnimo para ele de Great Men) estava
116 MABLY Gabriel Bonnot de De l`eacutetude de l`histoire Paris Fayard 1988 pp 12-13 117 ldquoJe vous parlerai plus affirmativement de Plutarque qui est un modegravele parfait quand ilnest que
question que deacutecrire la vie dun homme illustrerdquo MABLY Gabriel Bonnot Abbeacute de De la maniegravere de
eacutecrire l`histoire Alexandre Jombert Jeune Paris 1786 p 14 118 Gazeta Oficial do Brasil 1811847 Citada por Pereira da Silva Ver ENDERS Armelle ldquoO
Plutarco Brasileirordquo A Produccedilatildeo dos Vultos Nacionais no Segundo Reinado In Estudos Histoacutericos
2000 25 p 46 nota 8 p 60 119 VOLNEY CF Leccedilons d`histoire Gaulmier Paris Garnier 1980 p 71-115 apud HARTOG 2005
p 163 120 CARLYLE Thomas On Heroes Hero-Worship and the Heroic in History Reprint of the Sterling
Edition Echo Library 2007
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intrinsicamente relacionada agrave histoacuteria ou melhor dizendo agrave ldquoHistoacuteria Universalrdquo a
histoacuteria ldquodo que o homem alcanccedilou neste mundordquo que eacute no fundo ldquoa Histoacuteria do
Grande Homem que aqui trabalhourdquo Sem o grande homem pois natildeo temos histoacuteria
universal ndash sem seus pensamentos seus sentimentos natildeo haveriam feitos ou eventos a
serem lembrados121
Dentre todos os seis tipos de grandes homens descritos e comentados por
Carlyle o uacuteltimo deles o heroacutei como rei tem sua importacircncia ressaltada Ele eacute o
ldquocomandante entre os homensrdquo e por isso pode ser reconhecido como ldquoo mais
importante dos grandes homensrdquo Categoria final de heroacutei o liacuteder eacute ldquopraticamente o
sumaacuterio de todas as vaacuterias figuras do heroiacutesmordquo122 Ele eacute poeta sacaredote homem de
letras e possui em si algo de divino Polecircmico em seu tempo O historiador
certamente sabia disso pois ldquocoisas muito lamentaacuteveis escritas cerca de cem anos
atraacutes ou mais sobre o lsquoDireito divino dos Reisrsquo adornam hoje sem leitores as
bibliotecas puacuteblicas deste paiacutesrdquo Natildeo era aliaacutes a esse tipo de argumento que Carlyle
se referia Pois escolher um homem descanccedilar um pedaccedilo redondo de metal em sua
cabeccedila chamaacute-lo de rei ndash nada disso vai conjurar a virtude divina Sua postura apesar
de religiosa era tanto mais secular ldquoExiste um Deus neste mundo e o consentimento
divino () olha por toda regra e obediecircncia dos atos morais do homemrdquo ldquoNatildeo existe
ato mais moral entre os homensrdquo ndash conclui Carlyle ecoando o De Officis de Ciacutecero ndash
ldquodo que a regra e a obediecircnciardquo Dessa maneira o ldquoverdadeiro rei como guia do
praacutetico sempre guarda algo de Pontiacutefice de guia espiritual do qual se levanta toda
praacuteticardquo 123 Enquanto os heroacuteis miacuteticos e os antigos profetas eram registros de uma
121 Respectivamente ldquoFor as I take it Universal History the history of what man has accomplished in
this world is at bottom the History of the Great Men who have worked hererdquo E a seguir ldquoThe
thoughts they had were the parents of the actions they didrdquo CARLYLE Thomas op cit Lecture I The
Hero as Divinity Odin Paganism Scandinavian Mythology 122 ldquoThe Commander over Men he to whose will our wills are to be subordinated and loyally
surrender themselves and find their welfare in doing so may be reckoned the most important of Great
Men He is practically the summary for us of all the various figures of Heroism Priest Teacherrdquo
Idem Lecture VI The Hero As King Cromwell Napoleon Modern Revolutionism 123 Respectivamente ldquoMuch sorry stuff written some hundred years ago or more about the Divine
right of Kings moulders unread now in the Public Libraries of this countryrdquo () ldquoTo assert that in
whatever man you chose to lay hold of (by this or the other plan of clutching at him) and claps a round
piece of metal on the head of and called Kingmdashthere straightway came to reside a divine virtue so
that he became a kind of god and a Divinity inspired him with faculty and right to rule over you to all
lengths thismdashwhat can we do with this but leave it to rot silently in the Public Librariesrdquo () ldquoThere
is a God in this world and a Gods-sanction or else the violation of such does look out from all ruling
and obedience from all moral acts of men There is no act more moral between men than that of rule
and obediencerdquo () ldquoThe true King as guide of the practical has ever something of the Pontiff in
himmdashguide of the spiritual from which all practice has its rise This too is a true saying That the
King is head of the ChurchmdashBut we will leave the Polemic stuff of a dead century to lie quiet on its
bookshelvesrdquo Idem Lecture VI The Hero As King Cromwell Napoleon Modern Revolutionism
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era longiacutencua o grande homem de Carlyle saudado pelo canto dos poetas e homens
de letras guiava seus comandados em direccedilatildeo ao futuro Ponta-de-lanccedila da aceleraccedilatildeo
do tempo essa expressatildeo jaacute tinha encontrado alguns anos antes eacute verdade debate
diverso do outro lado do Canal
Em 1828 a imagem dos grandes homens tomava forma na segunda liccedilatildeo do
curso de histoacuteria da filosofia ministrado por Victor Cousin Inspirado pelo idealismo
hegeliano Cousin acreditava que a condiccedilatildeo histoacuterica de um povo repousava na
siacutentese de todos os elementos que compotildee sua ldquovida interiorrdquo ldquoem sua liacutengua em sua
religiatildeo em seus costumes (moeurs) em suas artes em suas leis em sua filosofiardquo124
Essa siacutentese era tambeacutem uma representaccedilatildeo de si mesma a ldquoideiardquo diria Cousin
manifesta a existecircncia histoacuterica de um povo Assim como carrega as marcas da
ldquounidade do espiacuteritordquo sua expressatildeo material individualiza-se em um personagem
especiacutefico O grande homem de Cousin natildeo existe sem uma dupla condiccedilatildeo ser
perpassado pelo ldquoespiacuterito geral de seu povordquo e ao mesmo tempo expressar esse
espiacuterito de uma forma profundamente individual Hegel jaacute havia ensinado que a
relaccedilatildeo entre o geral e o particular ndash entre o desenvolvimento da ideia e a accedilatildeo
individual ndash seria moderada pela ldquoastuacutecia da razatildeordquo125 O grande homem entra em
cena acreditando ser o autor e o ator de si mesmo mas como espeacutecie de encarnaccedilatildeo
da ideia ele natildeo eacute mais do que a manifestaccedilatildeo de uma determinada etapa de
desenvolvimento do espiacuterito
Fazem a histoacuteria por certo mas a vontade dos grandes homens natildeo pode na
leitura de Cousin ser fixada como uacutenica dimensatildeo da agecircncia Ora ldquoo grande
homemrdquo lido no Cours ldquonatildeo eacute uma criatura arbitraacuteria que poderia ser ou natildeo ser eacute o
representante mais ou menos realizado que todo grande povo suscitardquo Nessa leitura
oitocentista natildeo satildeo mais as consequecircncias morais das estrateacutegias maquinadas diante
do imponderaacutevel que determinam portanto o caraacuteter do personagem ilustre Eacute a
unidade da diversidade do espiacuterito (a siacutentese de uma ldquovida interiorrdquo) que manifesta e
determina o desenvolvimento de um povo entendido como uma ideia a qual o grande
homem representa A beleza moral eacute claro continua presente embora natildeo deva
obediecircncia ao Deus cristatildeo mas agrave razatildeo divinizada Presos ainda ao mundo sublunar
124 ldquo() un peuple n`est un veacuteritable peuple qursquoagrave la condition d`exprimer une ideacutee qui passant dans
tous les eacuteleacutements dont se compose la vie inteacuterieure de ce peuple dans sa langue dans sa religion dans
ses moeurs dans ses arts dans ses lois dans sa philosophie lui donne une physionomie particuliegravererdquo
COUSIN Victor Introduction a lrsquohistoire de la philosophie Paris Imp Pillet Fils Aineacute Librarie
Acadeacutemique 1872 p 202 125 HEGEL GWF Leccedilons sur la philosophie de lrsquohistoire Traduccedilatildeo francesa Paris Vrin 1963 p 37
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dos costumes ao ldquosentimento da necessidaderdquo ndash a consciecircncia de que o universo eacute um
sistema racional ldquoou seja a evidecircncia de sua missatildeordquo ndash escapa aos grandes homens
Eles parecem compreendecirc-lo senatildeo confusamente como se fizessem a histoacuteria
soubessem disso mas no fundo fossem peccedilas articuladas em um grande tabuleiro
pelos artifiacutecios da razatildeo126 Satildeo bobos como seriam para Durkheim aqueles que
julgassem encarnaacute-los em um rito positivo
Ainda assim esses personagens formavam como o fariam mais tarde para
Carlyle todo o conjunto de experiecircncias que temos a relatar ldquodai-me a seacuterie dos
grandes homens todos os grandes homens conhecidos e eu vos farei a histoacuteria do
gecircnero humanordquo 127 Hegel em 1806 refletiu sobre sua visatildeo de Napoleatildeo em uma
Iena ocupada ldquoeu vi o Imperador ndash essa alma do mundo ndash sair da cidade () Eacute
efetivamente uma sensaccedilatildeo maravilhosa ver tal indiviacuteduo que concentrado em um
ponto sob a cela do cavalo estende-se sobre o mundo e o dominardquo 128 Pouco importa
se ele o sabe pois no instante em que passava pelos olhos de Hegel o grande homem
era imagem do Absoluto
Para aleacutem da grandiloquecircncia do vocabulaacuterio hegeliano compartilhado pelo
ecletismo de Cousin a contribuiccedilatildeo do Cours para o debate sobre os grandes homens
eacute clara Ela marca uma ruptura uma passagem entre o topos antigo plutarquiano para
a dimensatildeo formadora da liberdade dos modernos a representaccedilatildeo O grande homem
natildeo eacute nada sem o seu povo natildeo pode ser nada sem representar sua liacutengua seus
costumes sua religiatildeo suas leis As marcas de identidade entre as massas descritas
por Cousin e os liacutederes que as representam poderiam ainda inspirar a imitaccedilatildeo de um
Julien Sorel Mas as experiecircncias comemorativas apontam para especificidades bem
mais conflituosas na formulaccedilatildeo de um panteatildeo nacional Os grandes homens quiccedilaacute
nas entrelinhas como figuras puacuteblicas do plebiscito-de-todos-os-dias contam votos
diferentes em cada parcela da populaccedilatildeo Desse ponto de vista desprovido da filosofia
da histoacuteria os grandes homens tornariam-se os deputados da federaccedilatildeo da memoacuteria
representantes plurais ancestrais ou natildeo de respectivos quadros sociais De exemplos
virtusos do passado a homens puacuteblicos do presente sua tarefa comemorativa
126 ldquoIl faut que le sentiment de la neacutecessiteacute c`est-agrave-dire l`eacutevidence de leur mission les frappe ils
semble comprendre confuseacutement sans cela ils agiraient comme de simples individus et qu`ils
n`auraient pas toute la puissance qui leur est neacutecessairerdquo COUSIN op cit p 209 127 ldquoDonnez-moi la seacuterie des grands hommes tous les grands hommes connus et je vous ferai l`histoire
du genre humainrdquo Idem p 207 128 GWFHegel Correspondance Paris Gallimard 1990 ti p 113-115 apud HARTOG 2005 p
165 Grifos meus
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continuaria sendo a correccedilatildeo dos valores e a afirmaccedilatildeo da identidade mesmo que ndash
unindo passado presente e futuro ndash o faccedilam mediados pelo discurso do progresso da
civilizaccedilatildeo ou em uma expressatildeo por um projeto nacional
Antes de poderem legislar a memoacuteria de quaisquer grupos reivindicar seu
passado e servir de manancial identitaacuterio os grandes homens precisariam ser eleitos
No seacuteculo XIX o processo de canonizaccedilatildeo ciacutevica tem como etapa fundamental o
julgamento histoacuterico realizado pelo sacerdote secular De inegaacutevel sabor plutarquiano
as biografias no Brasil do IHGB possuiacuteam a funccedilatildeo do ldquoguia praacuteticordquo (natildeo muito
longe do sentido atribuiacutedo a eles por Carlyle) de servir como exemplo de
comportamento e estiacutemulo agrave emulaccedilatildeo129 Mas o seu reconhecimento estava longe de
ser uma imposiccedilatildeo do saber erudito ou da interpolaccedilatildeo puacuteblica do homem de letras
essas natildeo eram mais do que instacircncias cujas deliberaccedilotildees seriam comumente medidas
entre um determinado uso do passado e uma soluccedilatildeo de compromisso para com os
demais mecanismos poliacutetico-morais de enquadramento da memoacuteria Aniversaacuterios
centenaacuterios demais datas redondas a naturalizaccedilatildeo do calendaacuterio a partir do tempo
das efemeacuterides jaacute carrega em si o caraacuteter seletivo e a inevitabilidade do esquecimento
Em 4 de julho de 1889 os cem anos da morte de Claacuteudio Manuel da Costa ndash
jurista poeta e inconfidente ndash foram comemorados pelo Instituto Histoacuterico e
Geograacutefico Brasileiro Natildeo seria faacutecil integrar tal personagem dentro do panteatildeo de
papel nacional mas a reorientaccedilatildeo da revolta como precursora da liberdade nacional
fez por retiraacute-lo do acircmbito excusivamente republicano e entregaacute-lo agrave famiacutelia imperial
ldquoPara tantordquo escreveu Enders referindo-se ao discurso do historiador Joaquim
Norberto de Sousa Silva ldquoa alocuccedilatildeo que pronuncia na cerimocircnia transforma o
suiciacutedio de Claacutedio Manuel da Costa num ato poliacutetico na melhor tradiccedilatildeo romanardquo
Como maacutertir nacional o lugar de Claacuteudio Manuel da Costa no passado da naccedilatildeo ldquonatildeo
lhe rouba ningueacutem natildeo lhe pode ser disputado entre a cronologia dos fatos A
posteridade eacute a justiccedila da histoacuteria que julga em uacuteltima instacircncia e essa o sagra como o
129 Essa tese jaacute foi defendida por GUIMARAtildeES Manoel Luiz Salgado A disputa pelo passado na
cultura histoacuterica oitocentista no Brasil In CARVALHO Joseacute Murilo (Org) Naccedilatildeo e cidadania no
Impeacuterio novos horizontes Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo brasileira 2007 p 109 Maria da Gloacuteria de
Oliveira ndash em tese de doutorado dedicada precisamente ao problema biograacutefico na historiografia do
Brasil oitocentista ndash chega a afirmar que ldquo() em meio agraves vicissitudes da atmosfera poliacutetica brasileira
no uacuteltimo dececircnio dos oitocentos os pressupostos da historia magistra vitae continuavam vaacutelidos e
convenientesrdquo OLIVEIRA Maria da Gloacuteria de Escrever vidas narrar a histoacuteria a biografia como
problema historiograacutefico no Brasil oitocentista FGV Editora Rio de Janeiro 2011 p 60
57
nosso protomaacutertirrdquo130
A crise do Impeacuterio encontrou um ponto criacutetico na onda dos centenaacuterios Como
se sabe 1889 marca os cem anos da tomada da Bastilha Sob a eacutegide da vitoacuteria
decisiva de 1877 seguida dois anos depois pela queda dos uacuteltimos bastiotildees
conservadores ndash no senado e no Eliseu ndash os republicanos viram-se livres para
organizar o centenaacuterio da revoluccedilatildeo O regime de Sadi Carnot eleito em 1887 era
entretanto ainda muito jovem fraacutegil isolado e cercado por monarquias no concerto
das naccedilotildees europeias No cenaacuterio nacional teria que lidar tanto com escacircndalos de
corrupccedilatildeo quanto com a ameaccedila boulangista ndash o ldquogeneral revancherdquo promoveria uma
espetacular ascensatildeo atraindo votos de parcela consideraacutevel do eleitorado
republicano ao mesmo tempo em que conspirava em segredo com os monarquistas A
revoluccedilatildeo natildeo era ldquoum blocordquo senatildeo aos olhos daqueles que se consideravam seus
herdeiros legiacutetimos reverberando identidade a partir dela131 Comemoraacute-la era um
assunto sensiacutevel e transformaacute-la em consenso um mero projeto Projeto que
comeccedilaria ndash com a aposta no simbolismo do retorno da representaccedilatildeo nacional a Paris
ndash jaacute nos primeiros meses apoacutes a conquista do poder Agrave oficializaccedilatildeo da Marseillaise e
do 14 de julho segue-se a reabertura do Panteatildeo para a inumaccedilatildeo solene de Victor
Hugo eventos que ocorrem respectivamente entre o iniacutecio de 1879 maio de 1880 e
1o de junho de 1885132 A esquerda em 1889 ansiosa por sediar uma grande festa de
afirmaccedilatildeo nacional em torno de iacutecones republicanos era no entanto ldquouma esquerda
moderada engajada sobretudo em um processo de moderaccedilatildeo por razotildees
independentes das circunstacircncias comemorativasrdquo Pierre Tirard ndash nomeado primeiro
ministro pela segunda vez em fevereiro de 1889 ndash prometeu ao suceder Floquet uma
poliacutetica comemorativa ldquosaacutebia tolerante e liberalrdquo 133 Isso natildeo significou tatildeo somente
continuar pautando a efemeacuteride pelos mesmos criteacuterios despolizatiados que marcaram
a Exposicatildeo Universal mas quando do encontro inevitaacutevel com assuntos sensiacuteveis agrave
memoacuteria da naccedilatildeo tocaacute-los de forma prudente e quase defensiva
130 ENDERS Armelle op cit p 50 O discurso de Joaquim Norberto de Sousa Silva se encontra na
RIHGB T 53 1890 21 131 A imagem da revoluccedilatildeo como ldquoum blocordquo eacute invocada com frequecircncia na histoacuteria dos usos poliacuteticos
do passado francecircs George Clemenceau primeiro ministro durante a Grande Guerra era
particularmente adepto da expressatildeo Segundo Jean-Marie Mayeur no entanto seu uso remonta a 29
de janeiro de 1891 quando no contexto das agitaccedilotildees da IIIa Repuacuteblica os republicanos promovem
intenso debate em torno de uma peccedila de teatro intitulada Thermidor de Victorien Sardou a qual
consideraram ofensiva agrave memoacuteria nacional Ver MAYEUR Jean-Marie ldquoLa Reacutevolution Franccedilaise est
un blocrdquo Commentaire 45 primavera de 1989 pp 145-152 132 Ver ORY Pascal 1992 p 30 133 Idem p 35
58
O grande homem do centenaacuterio celebrado em 1889 precisaria ser uma figura
enquanto ainda natildeo consensual ao menos pouco polecircmica Em 4 de dezembro de
1886 o governo francecircs institui uma comissatildeo encarregada de reunir e divulgar
documentos ineacuteditos relativos agrave revoluccedilatildeo Dentre as duas primeiras ediccedilotildees
realizadas pelo oacutergatildeo encontram-se as cartas trocadas entre Lazare Carnot e Danton
Em 26 de janeiro de 1887 Charles-Louis Chassin homem de letras e fervoroso
republicano declara frente agrave comissatildeo histoacuterica da cidade de Paris
ldquoO Centenaacuterio nacional de 1789 natildeo seraacute celebrado com
uma convicccedilatildeo saacutebia e natildeo serviraacute agrave educaccedilatildeo ciacutevica e
patrioacutetica das novas geraccedilotildees se ele natildeo for precedido
por uma vasta enquete provando atraveacutes dos fatos
coletados pelo meacutetodo positivo a legitimidade das
reivindicaccedilotildees de nossos paisrdquo134
Instruir a comemoraccedilatildeo como forma de transmissatildeo de valores entre geraccedilotildees
como viria a sugerir algumas deacutecadas mais tarde Marc Bloch Uma comissatildeo
mesmo atraveacutes de um meacutetodo positivo a julgar o passado em ldquouacuteltima instacircnciardquo
como disse do outro lado do Atlacircntico um Sousa Silva De todo modo cientista ou
juiacuteza a corte acadecircmica republicana teria de contar os votos de um juacuteri popular e
sensiacutevel a ele escolher uma figura como Danton para ldquovedeterdquo do centenaacuterio Menos
de um ano depois os frutos da comissatildeo jaacute estavam maduros o monumento a Danton
foi decidido por deliberaccedilatildeo em novembro de 1887 A inauguraccedilatildeo no entanto sofreu
com atrasos e natildeo foi realizada antes de 14 de julho de 1891 ndash embora o projeto de
Auguste Paris jaacute tivesse sido escolhido haacute quase dois anos em maio de 1889 O
problema natildeo parece ter sido a oposiccedilatildeo monarquista mas seu exato oposto alas
radicais republicanas insatisfeitas vilipendiaram a obra como um ldquocontra-
monumento agrave revoluccedilatildeo francesardquo135
A imagem de Danton um repuacuteblicano anticlerical natildeo conduz o terror agraves
sombras do esquecimento Ela o esculpe em sua estaacutetua cujo pedestal faz menccedilatildeo ao
martiacuterio de 1793 Essa soluccedilatildeo conciliatoacuteria amortece o impacto ofensivo de 1789
retira a revoluccedilatildeo das matildeos dos radicais e ndash ao menos acreditavam os moderados ndash a
134 ldquoLe Centenaire national de 1789 ne sera ceacuteleacutebreacute avec une conviction raisonneacutee et ne servira agrave
lrsquoeacuteducation civique et patriotique des geacuteneacuterations nouvelles que srsquoil est preacuteceacutedeacute drsquoune vaste enquecircte
prouvant par les faits recueillis selon la meacutethode positive la leacutegitimiteacute des revendications de nos
pegraveresrdquo CHASSIN Charles-Louis Les eacutelections et les cahiers de Paris Preacuteface tome I p XIX 135 Bulletin municipal officiel 16 juillet 1891 Ver tambeacutem ORY op cit p 99
59
entrega agraves matildeos da naccedilatildeo Talvez natildeo fosse esse um antigo sonho republicano
endossado pela historiografia positiva ndash de Alphonse Aulard ou Gabriel Bonnot ndash
comemorar ldquoo uacutenico homem de Estado que o ocidente deve honrar depois de
Fredericordquo136 Natildeo se tratava afinal de uma manobra da extrema esquerda ou da
necessidade de demolir a monarquia ldquoA revoluccedilatildeo estaacute condenadardquo disse Ernest
Renan em fevereiro de 1889 ldquose depois de cem anos ela estiver ainda por
recomeccedilarrdquo137 Como resultado a personagem de Danton imaginaria um officiant eacute
eleita por conquistar ldquoo maior nuacutemerordquo de coraccedilotildees e mentes138
Enquanto isso de volta ao outro lado do Atlacircntico a jovem repuacuteblica
brasileira ensaiava suas primeiras poliacuteticas comemorativas Seus modelos eacute claro
viriam da Franccedila e de Portugal e sua inspiraccedilatildeo no catecismo positivista ia bem aleacutem
do lema na bandeira nacional talhado entre as estrelas que representam os Estados da
federaccedilatildeo139 Em 14 de janeiro de 1890 um decreto leva a reforma do espaccedilo ao
tempo (DEC 155-B1890 ndash DECRETO DO EXECUTIVO ndash 14011890) O novo
calendaacuterio ciacutevico do regime deveria lembrar fatos relacionados agrave fraternidade
universal mas principalmente outros tantos associados agrave solidariedade nacional Era
a vez da repuacuteblica ldquocomemoraccedilatildeo dos precursores da independecircncia reunidos em
136 ldquoLe grand Danton le seul homme drsquoEacutetat dont lrsquoOccident doive srsquohonorer depuis Freacutedeacutericrdquo COMTE
Auguste Systegraveme de politique positive ou traiteacute de sociologie instituant la reacuteligion de lrsquohumaniteacute
Tome 3 Contenant la Dynamique Sociale ou le traiteacute geacuteneacuteral du progregraves humain Paris 1853 p 596 137 ldquoLa Reacutevolution est condamneacutee srsquoil est prouveacute qursquoau bout de cent ans elle en est encore agrave
recommencer ()rdquo RENAN Ernest Reacuteponse au discours de reacuteception de Jules Claretie Discours
prononceacute dans la seacuteance publique le jeudi 21 feacutevrier 1889 Paris Palais de lrsquoinstitut p 6 138 ldquo() dans lrsquoembellie le personnage rallie le plus grand nombrerdquo ORY Pascal op cit p 157 As
tentativas de canonizaccedilatildeo ciacutevica eacute claro natildeo terminaram em Danton A ala mais a esquerda da
comemoraccedilatildeo segundo Pascal Ory entende usar a excepcionalidade da efemeacuteride para ldquoir mais longe
na reabilitaccedilatildeo histoacutericardquo No aniversaacuterio da aboliccedilatildeo dos privileacutegios em 4 de agosto de 1889 quatro
heroacuteis republicanos satildeo elevados ao estatuto de grandes homens ldquotrecircs siacutembolos patrioacuteticos
encarregados de demonstrar a identificaccedilatildeo entre a Naccedilatildeo e a Repuacuteblica (Lazare Carnot Marceau La
Tour drsquoAuverne) e um siacutembolo democraacutetico o deputado Alphonse Baudin morto nas barricadas em 2
de dezembro de 1851 em defesa da representaccedilatildeo nacional face ao ldquocesarismordquo ORY op cit p 127
Alguns anos antes Miguel Lemos e Teixeira Mendes tinham sido expulsos da Politeacutecnica ndash ao que
parece o Baratildeo do Rio Branco natildeo estava feliz com a atuaccedilatildeo publicista dos dois alunos de Benjamin
Constant Lemos vai para Paris e mesmo que natildeo tenha conseguido completar os estudos dada a
falecircncia da famiacutelia acaba ingressando nos ciacuterculos sociais primeiro de Littreacute depois de Laffitte
sempre com um olhar atento agrave poliacutetica de Gambetta Em 1880 ele eacute sagrado sacerdote da humanidade
e pouco depois retorna agrave corte Entre 1884 e 1885 o Centro Positivista da Corte organiza eventos em
homenagem agrave Danton eventos que culminam no centenaacuterio da queda da Bastilha Ver ALONSO
Acircngela Ideacuteias em movimento a geraccedilatildeo 1870 na crise do Brasil Impeacuterio Satildeo Paulo Paz e Terra
2002 p 294 139 No contexto dos eventos patrocinados pelo Centro Positivista da Corte escreve Angela Alonso ldquoa
progressiva atribuiccedilatildeo de legitimidade a uma via revolucionaacuteria chegaria ao aacutepice no centenaacuterio da
Tomada da Bastilha em 14 de Julho de 1889 com eventos apoteoacuteticos na Corte em Satildeo Paulo e n Rio
Grande do Sulrdquo ldquoA evoluccedilatildeo poliacutetica chegou ao seu termo revolucionaacuteriordquo Gazeta de Notiacutecias
12111889 ALONSO op cit p 318-319
60
Tiradentesrdquo em 21 de abril 7 de setembro como dia da independecircncia 15 de
novembro como ldquocomemoraccedilatildeo da paacutetria brasileirardquo satildeo alguns exemplos140
O novo calendaacuterio como toda poliacutetica comemorativa precisava se apresentar
com algum grau de legitimidade e para isso demonstrar sensibilidade com as
memoacuterias enquadradas141 Mas nem todos os expoentes do novo regime estavam
satisfeitos ldquoE para os que quiserem ver na independecircncia alcanccedilada em 1822 a
palavra suprema dos nossos anseios ndash disse ningueacutem menos do que o presidente em
mensagem ao Congresso Constituinte ndash apontaremos o 7 de abril de 1831 em que
banimos o nosso primeiro Imperadorrdquo142 Ora a palavra suprema dos anseios do
marechal Deodoro natildeo se encontrava naquele longiacutencuo 7 de setembro mas
comeccedilava a ser pronunciada apenas um ano antes no 15 de novembro data em que
ldquoiniciamos a demoliccedilatildeo de trecircs seacuteculosrdquo143
A reorganizaccedilatildeo do calendaacuterio em torno dos valores e das expectativas do
novo regime poliacutetico exigiu a intervenccedilatildeo de grandes homens que associados a esta
ou agravequela data conferem a elas um sentido edificante na medida em que marcam a
ruptura entre o tempo antigo e o tempo novo144 Tiradentes em seu 21 de abril seria
transformado pela iconografia republicana em uma espeacutecie de Cristo secular e seu
martiacuterio saudado como um sacrifiacutecio no altar da paacutetria145 Mas o tiacutetulo de patriarca da
independecircncia continuaria sob o vulto de Joseacute Bonifaacutecio146 Membro da Academia de
Ciecircncias de Lisboa criacutetico da escravidatildeo poreacutem leal a D Pedro I e preceptor de seu
herdeiro Andrada e Silva era o candidato ideal para angariar o maior nuacutemero de votos
dentre os mais diversos grupos e quadros sociais da memoacuteria147 Mais tarde os
140 Ver OLIVEIRA Luacutecia Lippi As festas que a Repuacuteblica manda guardar Estudos Histoacutericos 2
1989 pp 172-189 141 Ainda em 1889 Siacutelvio Romero tomou as vestes de oficiante e organizou uma comissatildeo para
organizar festejos em homenagem a Tiradentes Ver ALONSO op cit 291 142 apud NETO Edgar Leite Ferreira O improviso da civilizaccedilatildeo a Naccedilatildeo Republicana e a construccedilatildeo
da ordem social no final do seacuteculo XIX Niteroacutei UFF 1989 (diss mestrado ndash mimeo) p A1 143 Discurso de Deodoro da Fonseca em ocasiatildeo do primeiro aniversaacuterio da declaraccedilatildeo da repuacuteblica 15
de novembro de 1890 apud NETO op cit p 40 Citado tambeacutem por SIQUEIRA Carla A Imprensa
comemora a Repuacuteblica memoacuterias em luta no 15 de novembro de 1890 Estudos Histoacutericos Rio de
Janeiro vol 7 n 14 1994 p 161-181 A autora ressalta o investimento republicano no 15 de
Novembro lembrando as batalhas de memoacuteria na imprensa oitocentista 144 Sobre a divisatildeo entre tempo antigo e tempo novo como elemento fundamental das aspiraccedilotildees
republicanas ndash e no caso francecircs revolucionaacuterias ndash ver BACZKO Bronislaw 1984 Le calendrier
reacutepublicain In NORA Pierre (org) Les lieux de meacutemoire Paris Gallimard passim 145 Importante notar que o Centro Positivista da Corte jaacute comemorava a Inconfidecircncia Mineira como
ldquofesta ciacutevicardquo a partir de 1881 ALONSO op cit 292 146 Ver MOTTA Marly Silva da A naccedilatildeo faz cem anos o centenaacuterio da independecircncia e a questatildeo
nacional no iniacutecio dos anos 20 Rio de Janeiro CPDOCFGV 1992 p 16 147 A elevaccedilatildeo de Joseacute Bonifaacutecio a grande homem da naccedilatildeo jaacute estava sendo preparada desde antes do
iniacutecio do II Reinado Um elogio histoacuterico eacute proferido na Academia Imperial de Medicina ainda no ano
61
monarquistas liberais da geraccedilatildeo de 1870 iriam fazer todo o possiacutevel para representar
certa continuidade entre suas criacuteticas morais agrave escravidatildeo ndash esse cancro mortal que
ameaccedilava os fundamentos da naccedilatildeo ndash e a campanha abolicionista do fim do seacuteculo
Natildeo seria exagero dizer que dentro do contexto comemorativo brasileiro Joseacute
Bonifaacutecio valeria um Danton148
Ainda na Ameacuterica poreacutem um pouco mais ao norte e cerca de um seacuteculo antes
um panfleto escrito sob o pseudocircnimo de ldquoCassiusrdquo causa polecircmica na nova
repuacuteblica A data assinada marca 10 de outubro de 1783 Aedanus Burke ndash o autor
ele mesmo um ex-combatente revolucionaacuterio mais tarde congressista pela Carolina
do Sul ndash demonstra revolta contra a receacutem criada Sociedade dos Cincinnati ldquoCassiusrdquo
fazia referecircncia a um dos assassinos de Juacutelio Ceacutesar Ao lado de Junius Brutus era
considerado um homem ilustre nos EUA dos anos 1700 por ter tentado evitar a queda
da repuacuteblica cometendo o tiraniciacutedio Burke acreditava que a Sociedade era ldquona
verdade e vai acabar sendo um pariato hereditaacuterio uma nobreza para seus membros
e sua prole masculinardquo149 Seu argumento era claro Essa Ordem como chamavam
alguns violava os artigos da confederaccedilatildeo assim como todos os valores pelos quais a
de sua morte em 1838 e publicado na revista do IHGB alguns anos mais tarde SILVA MAIA Emiacutelio
Joaquim Elogio histoacuterico do conselheiro Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva Revista do IHGB VIII
1846 pp 116-40 Uma estaacutetua em bronze encomendada ao escultor Louis Rochet tem seu siacutetio no
Largo de Satildeo Francisco inaugurado em 1872 em uma cerimocircnia que contou com a presenccedila da famiacutelia
real membros da alta aristocracia e com discurso do orador do IHGB Joaquim Manuel de Macedo
Alguns anos depois em 1877 com o aceite por parte do Instituto do Elogio histoacuterico a Joseacute Bonifaacutecio
escrito por Latino Coelho Bonifaacutecio eacute saudado como ldquo() ministro ilustrado e previdente conselheiro
leal e esforccedilado lidador na grandiosa empreza da emancipacatildeo nacional se como alguns pensam natildeo
foi o pensamento foi o braccedilo que guiou destro o movimento reaccionario coroado do mais feliz
sucesso Seu nome sua gloria a justa celebridade de seus feitos constituem um patrimonio de
inestimavel valor para a naccedilatildeo que o preza e honrardquo Parecer sobre o Elogio Histoacuterico de Joseacute
Bonifaacutecio de Latino Coelho por Olegaacuterio Herculano de Aquino e Castro e Joseacute Tito Nabuco de
Arauacutejo Revista do IHGB t40 v2 1877 p 519 Sobre o gecircnero dos elogios histoacutericos ver
OLIVEIRA Maria da Gloacuteria Brasileiros ilustres no tribunal da posteridade biografia memoacuteria e
experiecircncia da histoacuteria no Brasil oitocentista Varia Histoacuteria Belo Horizonte vol 26 no 43 p283-
298 janjun 2010 Eacute claro que nem todos concordavam em alccedilar Bonifaacutecio ao meacuterito de patriarca da
independecircncia Escrevendo ao tesoureiro e organizador de facto da Sociedade Comemorativa da
Independecircncia do Impeacuterio o historiador Alexandre de Mello Moraes um criacutetico da monarquia alega
que a estaacutetua de Andrada e Silva um falso patriota devia ser ldquocontemplada com indiferenccedilardquo Ver
Correspondecircncia de Alexandre Joseacute de Mello Moraes para Ameacuterico Rodrigues Gamboa 23 de outubro
de 1872 In MELLO MORAES Alexandre Joseacute de A independecircncia e o Impeacuterio do Brazil ou a
Independecircncia comprada por dous milhotildees de libras esterlinas Rio de Janeiro Typ Do Globo 1877
pp 352-354 apud KRAAY Hendrik Alferes Gamboa e a Sociedade Comemorativa da Independecircncia
do Impeacuterio 1869-1889 Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo v 31 n 61 2011 p 20 148 Como escreveu Armelle Enders ldquoNa histoacuteria incerta do panteatildeo brasileiro Joseacute Bonifaacutecio de
Andrada e Silva (1763-1838) eacute um dos raros personagens cuja estaacutetua manteve desde 1822 a solidez e
a constacircncia do bronzerdquo ENDERS Armelle Os Vultos da Naccedilatildeo faacutebrica de heroacuteis e formaccedilatildeo de
brasileiros Rio de Janeiro FGV Editora 2014 p 72 149 ldquoIt is in reality and it will turn out to be a hereditary peeragerdquo BURKE Aedanus Considerations
on the Society or Order of Cincinnati proving that it creates a Race of Hereditary Patricians or
Nobility Philadelphia Robert Bell 1793
62
revoluccedilatildeo lutou e a medida que suas ideias forem se corrompendo vai
inexoravelmente conspirar contra suas conquistas ldquoTocai o trompete em Zionrdquo150
ldquoComo a uacutenica organizaccedilatildeo social aleacutem do congressordquo analisou Harry M
Ward ldquoa Sociedade dos Cincinnati serviu ateacute certo ponto como instrumento de lobby
dos veteranos pressionando o congresso para abrir terras no oeste recompensar os
militares garantir pensatildeo aos veteranos e corrigir seus pagamentosrdquo 151 Em apenas
um ano 13 sociedades foram estabelecidas com um quadro social de 2150 dos 5500
oficiaacuteis que poderiam ser eleitos e contando com 23 dos 65 signataacuterios da
Constituiccedilatildeo152 Os seus fundadores no entanto natildeo poderiam prever a intensa
oposiccedilatildeo que sofreriam John Quincy Adams em 1787 maldizeu a sociedade
alegando que a instituiccedilatildeo tornar-se-ia fatal para a constituiccedilatildeo Diversos
representantes regionais passaram resoluccedilotildees condenando os Cincinnati contando
mesmo com o apoio de alguns heroacuteis da independecircncia Quando o panfleto de Burke
chegou agraves matildeos de Benjamin Flanklin ele encorajou a sua traduccedilatildeo para o francecircs
realizada pelo conde de Mirabeau153
George Washington que havia aceito o cargo de presidente da Ordem escreve
ao colega Thomas Jefferson que o aconselha a manter os rumos da associaccedilatildeo
afastados da poliacutetica O general resolve tambeacutem propor o fim do princiacutepio da
hereditariedade o que embora votado em instacircncia nacional natildeo eacute aceito por todas as
unidades regionais da Ordem Com muitos de seus membros se dirigindo ao oeste ndash
ao lado de uma nova oposiccedilatildeo inspirada pela revoluccedilatildeo francesa ndash por volta de 1800
a sociedade estava esvaziada154 O trabalho de transformar um personagem em
ldquoheroacuteirdquo ndash em um ldquomorto divinizadordquo como jaacute expressava Stephan Czarnowski ndash
150 ldquoblow ye the trumpet in zionrdquo Idem 151 ldquoAs the only national oranization other than Congress the Society of the Cincinnati served to some
extent as a veteranrsquos lobby pressing Congres to open lands in the west for military bounties to grant
pensions for all Revolutionary War veterans and to compensate veterans for the difference in price
between what they sold their pay ()rdquo WARD Harry M The War for Independence and the
Transformation of American Society UCL Press London 1999 p 233 152 Idem Ibidem 153 MIRABEAU Consideacuterations sur lrsquoOrdre de Cincinnatus ou Imitation drsquoun pamphlet Anglo-
Ameacutericain J Johnson Londres 1784 Sobre o entusiasmo de Benjamin Franklin contra os Cincinnati
ver OLSTER Lester C Benjamin Franklins Vision of American Community A Study in Rhetorical
Iconology (Studies in RhetoricCommunication) University of South Caroline 2004 p 128 No dia 13
de Julho de 1784 Franklin escreveu em seu jornal ldquoMirabeau and Champfort came and read their
translation of (American) Mr Burkersquos pamphlet against the Cincinnati which they had much enlarged
intending it as covered satire against noblesse in generalrdquo Idem p 129 154 WARD op cit p 234
63
estava longe de seguir uma jornada linear155 Entre o esquecimento do episoacutedio e sua
pontual lembranccedila ele demonstra que mesmo um Deus mesmo um grande homem
estaria sujeito a enroscar-se no tortuoso emaranhado dos usos do passado Ele eacute como
o proacuteprio passado uma figura sempre conflituosa
16 Oficiar a moral dos grandes homens da naccedilatildeo
As topografias do passado com seus picos de densidade memorial suas
planiacutecies esquecidas seus cruzamentos de interesses mesmo que comumente
naturalizadas natildeo escondem o traccedilo humano de seus contornos graacuteficos156 Os
grandes homens natildeo escalavam as montanhas da lembranccedila de matildeos nuas belos como
os deuses a subir ao Olimpo extasiados pelo transe comemorativo incutido pelo
endosso em massa de uma consciecircncia moral Eles eram eleitos preparados e
elevados por um quadro social ao cargo de representante identitaacuterio do grupo em um
duplo esforccedilo memorial e social As poliacuteticas comemorativas satildeo casos emblemaacuteticos
desse trabalho de enquadramento da memoacuteria incentivadas por associaccedilotildees civis
comissotildees estatais e divulgadas pela imprensa a organizaccedilatildeo de seus eventos
demonstra tambeacutem a disputa pelo cargo de celebrante aquele que ministra a
celebraccedilatildeo ordena e oficializa o passado a ser comemorado Comemoraccedilatildeo que
assim entendida torna-se na feliz expressatildeo cunhada por Geacuterard Namer uma
vontade poliacutetica da memoacuteria157 Vontade cuja pretensatildeo eacute ser ldquogeralrdquo esse tipo de uso
do passado enfrenta a oposiccedilatildeo de vontades particulares em episoacutedios que tecircm sido
descritos pela literatura especializada enquanto ldquobatalhas de memoacuteriardquo158 Se a
comemoraccedilatildeo eacute ndash como insinuava Marc Bloch em seu diaacutelogo com Maurice 155 CZARNOWSKI Stefan Le culte des heroacutes et ses conditions sociales Saint Patrick heacuteros national
de lrsquoIrlande Paris Alcan 1919 Apud ENDERS Armelle Os Vultos da Naccedilatildeo faacutebrica de heroacuteis e
formaccedilatildeo de brasileiros Rio de Janeiro FGV Editora 2014 p 15 156 A analogia topograacutefica eacute de responsabilidade de ZERUBAVEL Eviatar Time Maps Collective
Memory and the Social Shape of the Past The University of Chicago Press 2003 ChicagoLondres
prinicpalmente p 25-34 157 ldquoHalbwachs ne parle pas de la commeacutemoration et de la propagande politique la commeacutemoration est
une volonteacute politique de la meacutemoire et ce nrsquoeacutetait pas la faccedilon dont Halbwachs posait le problegraveme ()
La commeacutemoration que nous eacutetudions ici pose donc un problegraveme nouveau qui est celui des rapports de
la politique et de la meacutemoire agrave cocircteacute de la meacutemoire sociale subie presque inconscientement par les
hommes sous la forme de tradition il y a donc une mise en place de meacutemoire collective une volonteacute de
faire se souvenir il y a aussi un deacutesir diffus conscient ou non de se souvenir que nous eacutetudions ici Au
service de cette volonteacute politique de meacutemoire la commeacutemoration joue aussi un peu le rocircle de meacutediardquo
NAMER Geacuterard op cit p 5-6 158 POLLACK 1989 p 5 ldquomneumonic battlesrdquo eacute a expressatildeo usada por ZERUBAVEL Eviatar
Social Mindscapes An Invitation to Cognitive Sociology Cambridge Mass Harvard University Press
1997 pp 97-99
64
Halbwachs ndash uma forma de comunicaccedilatildeo entre geraccedilotildees o officiant tenta contracenar
nos episoacutedios que discutiremos logo a seguir algo como o papel de guardiatildeo da
memoacuteria nacional
Celebraccedilotildees ciacutevicas tornaram-se tradicionais jaacute durante o Segundo Impeacuterio
Algueacutem eacute claro tinha que as oficiar e no periacuteodo a tarefa da seleccedilatildeo de datas
memoraacuteveis e organizaccedilatildeo de seus respectivos festejos foi levada a cabo por
associaccedilotildees civis e divulgada na imprensa Entre 1841 e 1889 pelo menos 887
sociedades ndash grande parte dedicadas agrave beneficiecircncia e agrave ajuda muacutetua ndash foram criadas
no Rio de Janeiro com a tarefa de auxiliar na vida ldquomaterial e moral de artesatildeos
operaacuterios ex-escravos industriais comerciantes engenheiros advogados e meacutedicos
entre outros setoresrdquo Desde pelo menos a deacutecada de 50 do seacuteculo XIX dezenas
desses grupos alguns muito efecircmeros outros nem tanto tinham como objetivo
comemorar o 7 de Setembro159
Em 1869 aparece a Sociedade Comemorativa da Independecircncia do Impeacuterio
cujos soacutecios elegeram presidente Francisco Joaquim Betencourt arquiteto ligado ao
Liceu de Artes e Ofiacutecios do Rio de Janeiro A eminecircncia parda da associaccedilatildeo era no
entanto um reles alferes reformado Eleito tesoureiro Ameacuterico Rodrigues Gamboa
destacou-se como organizador dos eventos comemorativos160 Sua tarefa natildeo seria
beneficiente mas igualmente moral e edutiva como aplaudiu o Diaacuterio de Notiacutecias os
festejos ciacutevicos ldquoacostuma-os futuros cidadatildeos agrave sociedade torna-os mais aptos para
a vida social e arregimentados como estatildeo grava-lhes a noccedilatildeo de que em todos os
acontecimentos em todos os atos da vida mister se faz a ordemrdquo161
O primeiro lugar escolhido pela Sociedade para festejar a autonomia nacional
foi a Praccedila da Constituiccedilatildeo que desde 1862 abrigava a estaacutetua equestre de D Pedro I 159 ldquovida material e moral de artesatildeos ()rdquo eacute citaccedilatildeo presente na primeira paacutegina do artigo PEREIRA
DE JESUS Ronaldo Cultura Associativa no seacuteculo XIX atualizaccedilatildeo do repertoacuterio criacutetico dos
registros de sociedades na cidade do Rio de Janeiro (1841-1889) In Anais do XXVII Simpoacutesio
Nacional de Histoacuteria Conhecimento histoacuterico e diaacutelogo social Natal RN 22 a 26 de Julho de 2013 O
autor apurou que ndash entre 1841 e 1889 ndash 46 sociedades comemorativas dentre as quais nos sobraram 10
estatutos foram criadas no Rio de Janeiro Destacam-se a Associaccedilatildeo Nacional Vinte e Quatro de
Setembro (1861-1865) a Sociedade Gloacuteria do Lavradio (1862-1881) a Sociedade Ipiranga (1862) a
Sociedade Patrioacutetica Brado do Ipiranga (1865) a Sociedade Primeiro de Dezembro (1862) a
Sociedade Sete de Setembro (1868) a Sociedade Vinte e Oito de Setembro (1880) e a Sociedade
Comemorativa da Independecircncia do Impeacuterio (1872-1881) Angela Alonso destaca o papel poliacutetico
desse surto associativo ldquodesde a deacutecada [de 1870] ateacute a queda do regime emergiram muacuteltiplas
manifestaccedilotildees puacuteblicas de protesto exacerbando a demanda liberal por reformas associaccedilotildees de
proprietaacuterios manifestaccedilotildees populares associaccedilotildees abolicionistas militares republicanas literaacuterias e
outras congecircneres O movimento intelectual foi uma dimensatildeo desta mobilizaccedilatildeo coletivardquo ALONSO
2002 p 98 160 Sobre a Sociedade Comemorativa do Impeacuterio ver KRAAY 2011 texto que tomo como guia 161 Diaacuterio de Notiacutecias 10 de julho de 1888 Apud KRAAY op cit p 29
65
um siacutembolo possiacutevel da Independecircncia e emblema maacuteximo da monarquia162 Liberais
exaltados como Teoacutefilo Otoni chegaram a apelidar a estaacutetua de ldquomentira de bronzerdquo
inaugurando uma frase que viraria palavra de ordem dos republicanos163 Certamente
preferiam ver Tiradentes ndash e natildeo o descendente direto de seus assassinos ndash elevado a
grande homem da naccedilatildeo164 Esse clima de hostilidade entre republicanos e
monarquistas era publicado diariamente na imprensa do periacuteodo de modo que os
relatos sobre as comemoraccedilotildees imperiais variam de veiacuteculo a veiacuteculo de um sempre
simpaacutetico Jornal do Commercio ao sarcasmo e agrave hostilidade de Mephistopheles e da
Revoluccedilatildeo Desde a inauguraccedilatildeo da estaacutetua ateacute os eventos anuais promovidos pela
Comemorativa no entanto centenas de almas uniam-se na praccedila a cantar o Te Deum
os organizadores nisso sem grande sucesso tentavam afastar os democircnios
republicanos que jaacute um ano depois em 1871 tornariam puacuteblicas as primeiras
denuacutencias contra supostos financiamentos governamentais agrave Sociedade165
ldquoA Sociedade Comemorativa era no maacuteximordquo escreveu Hendrik Kraay
ldquouma associaccedilatildeo do que pode ser considerada a classe meacutedia baixardquo Sabe-se que
Gamboa seu real organizador natildeo era exatamente uma figura destacada da sociedade
162 Tanto a estaacutetua de D Pedro I quanto o monumento a Joseacute Bonifaacutecio foram encomendados ao
escultor Louis Rochet Isso aconteceu natildeo apenas pelo artista francecircs ser o autor da estaacutetua equestre de
Carlos Magno localizada em frente a Notre Dame de Paris mas pelas impossibilidades tecnoloacutegicas de
se realizar trabalhos sofisticados em bronze no Brasil da eacutepoca Para Paulo Knauss ldquoEnquanto o
imperador foi representado a cavalo trazendo a Constituiccedilatildeo para simbolizar a afirmaccedilatildeo do Estado
nacional Joseacute Bonifaacutecio foi representado como intelectual cercado de alegoria das virtudes claacutessicas
simbolizando a razatildeo de Estado As duas imagens se completavam e a promoccedilatildeo da primeira imagem
se estendida assim pela segunda imagem constituindo um circuito narrativo que unia duas praccedilas
importantes na vida urbana constituindo um texto urbanordquo Ver KNAUSS Paulo A festa da imagem
a afirmaccedilatildeo da escultura puacuteblica no Brasil do seacuteculo XIX 19amp20 Rio de Janeiro v V n 4 outdez
2010 Disponiacutevel em lthttpwwwdezenovevintenetobraspknausshtmgt Ver tambeacutem RIBEIRO
Maria Eurydice de Barros Memoacuteria em bronze ndash estaacutetua equestre de D Pedro I In KNAUSS Paulo
(Coord) Cidade vaidosa imagens urbanas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Sette Letras 1999 E
ainda SANTOS Gisele Cunha dos amp MONTEIRO Fernanda Fonseca ldquoCelebrando a fundaccedilatildeo do
Brasil a inauguraccedilatildeo da Estaacutetua Equestre de D Pedro Irdquo Revista Eletrocircnica de Histoacuteria do Brasil Juiz
de Fora UFJF v 4 nordm 1 Juiz de Fora UFJF janjun 2000 163 Ver CARVALHO Joseacute Murilo de A formaccedilatildeo das almas o imaginaacuterio da Repuacuteblica no Brasil Satildeo
Paulo Companhia das Letras 1993 p 60 E tambeacutem FERREIRA 1989 p 91 164 Segundo Joseacute Murilo de Carvalho os republicanos chegaram mesmo a preparar um poema
impresso em forma de panfleto a ser distribuiacutedo no dia da inauguraccedilatildeo da estaacutetua ldquoNos dias de
cobardia festeja-se a tirania Fazem-se estaacutetuas aos reis Hoje o Brasil se ajoelha E se ajoelha
contrito Ante a massa de granito do primeiro Imperadorrdquo () ldquoFoi ele o maacutertir primeiro Que pela
paacutetria morreu Do sangue de Tiradentes Brotou-nos a salvaccedilatildeordquo As coacutepias do poema seriam
apreendidas pela poliacutecia CARVALHO 1993 p 61 165 Ver KRAAY op cit p Diario de Noticias 5 de set 1872 Jornal do Commercio 6 set 1873
FERREIRA DA ROSA Francisco Memorial de [sic] Rio de Janeiro personagens ndash fatos ndash narrativa
de acontecimentos ndash vida e progresso da cidade em meio seacuteculo (1878-1928) Arquivo do Distrito
Federal v2 p 88 (1951) FERREIRA DA ROSA Francisco Chronica antiga In Prosa sadia
(pequeno extrato de uma antiga coleccedilatildeo de escritos) 9 v Rio de Janeiro Graacutefica sauer 1936-1946
v6 p 24-25 ldquo7 de Setembrordquo O Mequetrefe set 1892 ldquoSC da Independecircncia do Impeacuteriordquo Jornal da
Tarde 9 set 1871 ldquoMemorandum 7 de setembrordquo Corsario 3 set 1882
66
fluminense e que o Baratildeo de Lorena soacutecio mais proeminente talvez apenas ldquojulgasse
uacutetil participar de uma sociedade que festejava agrave sua portardquo 166 Preconceito contra um
certo ldquomonarquismo popularrdquo influenciando ou natildeo Gamboa e outros trecircs direitores
tiveram foram cassados em 1876 A nova diretoria sob Isidro Borges Monteiro chefe
da poliacutecia da Corte na deacutecada de 50 tratou de organizar uma comemoraccedilatildeo nos
mesmos moldes das anteriores Para sua frustraccedilatildeo todos os esforccedilos da nova direccedilatildeo
natildeo parecem ter feito justiccedila ao carisma do velho alferes A Revista Illustrada sempre
irocircnica escreveu que naquele ano foi de suas camas que a ldquobrava genterdquo ouviu os
ldquoestourados do Morro de Santo Antocircniordquo167 No ano seguinte a Comemorativa
naufragou e Gamboa sempre entusiasta fundou a Sociedade Independecircncia
organizando eventos no largo de Satildeo Francisco desta vez ao redor do monumento a
Joseacute Bonifaacutecio
O Jornal do Commercio em geral simpaacutetico agraves comemoraccedilotildees do Impeacuterio fez
elogios agrave nova associaccedilatildeo escrevendo que a velha Comemorativa ldquonatildeo tem vivido
senatildeo girandolando e erguendo coretosrdquo168 A referecircncia criacutetica agrave arquitetura efecircmera
comemorativa eacute recorrente na imprensa do periacuteodo considerada de gosto duvidoso
por jornalistas e leitores A Gazeta de Notiacutecias chegou a escrever ndash diante da cena
ldquocada vez mais grotescardquo na qual veteranos da Guerra do Paraguai guardavam coretos
sob a proteccedilatildeo de canhotildees de papel ndash que os fortes e as peccedilas de artilharia estariam a
sitiar a estaacutetua equestre169 Algo como pressionar D Pedro ainda mais uma vez para
que declare o ldquoFicordquo Ironias republicanas agrave parte os perioacutedicos satildeo unacircnimes em
descrever ilustrar e narrar a intensa movimentaccedilatildeo do ldquopovordquo diante das bandas de
muacutesica fogos e discursos nem que estivessem laacute como o fizera um jovem Luiz
Edmundo tatildeo somente para ldquogozar as luminaacuteriasrdquo instaladas pelos celebrantes170
Em 1886 com a morte do alferes Gamboa um grupo ligado ao governo
assume o controle das comemoraccedilotildees promovendo um programa muito parecido com
o dos anos anteriores No entanto o perfil social dos participantes parece ter mudado
166 KRAAY op cit respectivamente p 20 e p 19 167 Revista Illustrada 8 set 1877 Apud KRAAY op cit 21 168 Jornal do Commercio 17 set 1876 169 Segundo um recorte da eacutepoca acerca da imprensa oitocentista brasileira ldquoa Gazeta de Notiacutecias
fundada pelo dr Ferreira de Araujo [em 1875] que ainda a dirige hoje e outros inaugurou no Brasil o
jornal barato popular livre de compromisos partidaacuterios ou similhantes e tambeacutem o jornal facil de
fazer sem systema na distribuiccedilatildeo das mateacuterias aacute portuguezardquo Ver MATTOS Joseacute Verissimo de A
Instrucccedilatildeo e a Imprensa In ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO
DO BRASIL Livro do Centenaacuterio (1500-1900) Imprensa Nacional Rio de Janeiro 1900 Vol 1 170 EDMUNDO Luiz De um livro de memoacuterias 5v Rio de Janeiro sn 1958 v1 p 66 Apud
KRAAY op cit p 25
67
ldquoo tradicional anjinho vestido de verde e amarelordquo disse o Diaacuterio de Notiacutecias em
1887 ldquocedeu o passo aos elegantes representantes do grand-monde fluminenserdquo171
Com uma nova lideranccedila que incluia senadores ex-ministros e outras celebridades
carimbadas ano-a-ano no Almanaque Laemmert a Comemorativa sob a aprovaccedilatildeo da
imprensa investiu no caraacuteter pedagoacutegico do 7 de Setembro expresso no ldquodesejo das
classes dirigentes de promoverem os meios de despertar no povo o sentimento da
nacionalidade e de em seus coraccedilotildees fazer revigorar ndash se natildeo nascer ndash o amor agrave
paacutetriardquo172 Menos festa e mais histoacuterias invertendo a loacutegica de Herculano numa clara
tentativa de traduzir em rito positivo aquilo que muitos consideravam um mero
corrobbori vulgar ou espeacutecie de carnaval fora de eacutepoca
Nas comemoraccedilotildees imperiais tardias esse ldquoamor agrave paacutetriardquo seria expresso jaacute
por uma ldquomistura de heroacuteis republicanos e tradicionais figuras monarquistasrdquo 173 Em
1887 alguns coleacutegios particulares do Rio de Janeiro diante da arquitetada hesitaccedilatildeo
das escolas municipais fizeram seus alunos realizarem procissotildees ciacutevicas jaacute sob as
hostes de Tiradentes e Joseacute Bonifaacutecio No ano seguinte a Cacircmara Municipal natildeo
vetou participaccedilotildees e grande nuacutemero de escolas puacuteblicas uniram-se ao desfile Em
1889 no entanto foi proclamada a Repuacuteblica e com ela assistimos ao fim das
sociedades comemorativas da independecircncia do Impeacuterio A partir de agora o iacutedolo
das origens iria marchar sobre outra data o 15 de novembro oficiado ao som dos
tambores do Exeacutercito Nacional
Um par de anos apoacutes a proclamaccedilatildeo e a Repuacuteblica encontra seu primeiro
centenaacuterio o martiacuterio ciacutevico de Tiradentes contava aniversaacuterio Novamente a Praccedila
da Constituiccedilatildeo esse inegaacutevel lugar de memoacuteria do Brasil oitocentista ganhou
feiccedilotildees de campo de batalha Seu nome ainda em 1890 seria trocado para Praccedila
Tiradentes Mas setores republicanos ndash em especial o clube cuja alcunha comemorava
o heroacutei inconfidente ndash acreditavam que era o momento de fazer as reivindicaccedilotildees de
sua memoacuteria avanccedilar ainda mais174 Em 1893 militantes do Clube Tiradentes tentam
171 ldquoNotas do diardquo Diaacuterio de Noticias 6 set 1887 Apud KRAAY op cit p 28 O Diaacuterio de Noticias
fundado em 1885 era um ldquoum importante veiacuteculo abolicionistardquo dirigido por Ruy Barbosa Para um
recorte da eacutepoca a cerca da imprensa oitocentista brasileira Ver MATTOS Joseacute Verissimo de op cit 172 ldquoChronica da semanardquo Gazeta de Notiacutecias 9 set 1888 173 KRAAY op cit 29 Trata-se de um momento no qual a pedagogia moral dos grandes homens
comeccedila a encontrar seus limites frente ao tropismo nacional Armelle Enders defende a tese de que no
Brasil do segundo reinado ldquoa eacutetica monaacuterquica e tradicional ainda eacute mais forte que a nova pedagogia
dos grandes homensrdquo Ver ENDERS 2000 p 56 174 Os republicanos tambeacutem se organizavam na trilha dos surtos associativos do Segundo Impeacuterio
Segundo Armelle Enders ldquoem fins da deacutecada de 1860 a facccedilatildeo liberal que desejava reformas radicais
particularmente no que dizia respeito agrave autonomia das proviacutencias veio engrossar a corrente republicana
68
encobrir com tapumes a estaacutetua equestre ndash a ldquomentira de bronzerdquo ndash para as
comemoraccedilotildees do 21 de Abril A manifestaccedilatildeo chegou a contar com o apoio do
prefeito Barata Ribeiro que pouco depois recuou Frente agraves numerosas criacuteticas
recebidas chega a declarar que ldquoum povo sem tradiccedilatildeo eacute um povo sem histoacuteria e
portanto sem valor moralrdquo 175 Mesmo os republicanos tendiam a entender que os
heroacuteis nacionais deveriam promover algum compromisso buscar o consenso evitar
causar aquilo que pouco mais tarde seria chamado do outro lado do Atlacircntico de
anomia social E que personagem qual heroacutei republicano seria mais adequado para
adequar-se ao tropismo nacional Para Joseacute Murilo de Caravalho
Na figura de Tiradentes todos podiam identificar-se ele
operava a unidade miacutestica dos cidadatildeos o sentimento de
participaccedilatildeo de uniatildeo em torno de um ideal fosse ele a
liberdade a independecircncia ou a repuacuteblica Era o totem
ciacutevico Natildeo antagonizava ningueacutem natildeo dividia as
pessoas em classes sociais natildeo dividia o paiacutes natildeo
separava o presente do passado nem do futuro176
Antes de chegar a esse ponto em sua hagiografia ciacutevica ndash para que seu mito
possuiacutesse a liberdade ainda que tardia de adentrar todos os lares da naccedilatildeo ndash ele
deveria sofrer com a concorrecircncia de outros candidatos a representante de uma
federaccedilatildeo da memoacuteria No norte Frei Caneta ao sul os heroacuteis da Farroupilha
Nenhum deles no entanto seria agraciado com investimentos simboacutelicos
comparaacuteveis ao do heroacutei inconfidente jaacute exercidos desde o iniacutecio do Segundo
Impeacuterio O futuro liacuteder do Partido Republicano do Rio dedicou ndash ainda em 1866
quando presidente da proviacutencia das Minas Gerais ndash um monumento em gloacuteria a
Tiradentes A primeira celebraccedilatildeo do 21 de Abril data de 1881 mesmo ano em que
outro monumento eacute proposto no Rio Grande do Sul177 Mas a benccedilatildeo da
panteonizaccedilatildeo ciacutevica de Tiradentes foi obra da fortuna Em 1873 Joaquim Norberto
de Souza e Silva publica sua Histoacuteria da Conjuraccedilatildeo Mineira Treze anos antes ele
havia obtido acesso agrave ldquopreciosiacutessima coleccedilatildeo de documentos originais das duas
que se organizou como partido em 1870 dando origem em meio a certa desordem a todo tipo de
clubesrdquo ENDERS 2014 p 225 175 ldquoO prefeito do Distrito Federal Barata Ribeiro poacutes um ponto final na discussatildeo argumentando em
favor da manutenccedilatildeo do Imperador que lsquoum povo sem tradiccedilatildeo eacute um povo sem histoacuteria e portanto
sem valor moralrsquo DPedro I ficou onde estava mas obrigado a dividir o espaccedilo com seu rival na praccedila
que recebeu o nome de Tiradentesrdquo NETO Edgard Leite Ferreira op cit p 91 176 CARVALHO 1993 p 68 Grifos meus 177 Idem p 57
69
devassas que se procederam nas capitais das capitanias de Minas Gerais e Rio de
Janeirordquo 178 Souza e Silva considerava Tiradentes uma figura menor no cenaacuterio da
conjuraccedilatildeo Simpaacutetico agrave monarquia e ligado ao IHGB acreditava que seu trabalho
deveria arrefecer os acircnimos em torno do martiacuterio lembrando inclusive a
recomendaccedilatildeo do Imperador ao Instituto ldquoEacute de mister que natildeo soacute reunais os trabalhos
das geraccedilotildees passadas () como tambeacutem () torneis aquela a que pertenccedilo digna dos
foros da posteridaderdquo179
Ao utilizar como fontes natildeo somente as devassas mas tambeacutem um conjunto
de Memoacuterias anocircnimas contendo o depoimento de Raimundo de Penaforte confessor
dos inconfidentes o historiador enfatizou a mudanccedila de conduta de Tiradentes
Viacutetima de muitas privaccedilotildees sucessivos interrogatoacuterios recluso e com poucas palavras
carinhosas a ouvir aleacutem daquelas que saiam dos laacutebios de frades franciscanos
Tiradentes teria sido domado Beijou as matildeos e os peacutes de seu carrasco e andava para a
morte com um crucifixo entre os punhos grilhados a enunciar monoacutelogos de
inspiraccedilatildeo cristatilde 180 Tais evidecircncias foram divulgadas pelo soacutecio honoraacuterio do IHGB
como uma contribuiccedilatildeo agrave defesa da memoacuteria geracional dos Braganccedila ldquoFui por muito
tempo entusiasta do Tiradentesrdquo escreveu ldquoagrave medida poreacutem que me instruiacutea na
histoacuteria da malograda conjuraccedilatildeordquo encontrou um homem que ldquoem 21 de abril de
1792 jaacute natildeo era o mesmo ardente apoacutestolo da emancipaccedilatildeo poliacutetica () Prenderam
um patriota executaram um fadrerdquo 181
178 SOUSA E SILVA Joaquim Norberto de Discurso ao Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro 23
de Novembro de 1860 In Histoacuteria da Conjuraccedilatildeo Mineira Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional Domiacutenio
publico Original de 1873 179 Idem Ibidem A referecircncia original eacute IHGB Discurso do Imperador D Pedro II In Revista do
IHGB Rio de Janeiro 12 552 1849 180 ldquoLadeado dos oficiais de justiccedila entrou na cadeia o algoz negro Era o famoso Capitania tatildeo
ceacutelebre pelos seus crimes Vinha vestir-lhe a alva e atar-lhe o baraccedilo ao colo Pedindo-lhe de costume o
perdatildeo da morte pois que a justiccedila e natildeo a sua vontade lhe moviam os braccedilos desceu o Tiradentes de
seu pedestal de gloacuteria para humilhar-se de mais e lhe dizer ldquoOh meu amigo deixe-me beijar-lhe as
matildeos e os peacutesrdquo O que fez com grande admiraccedilatildeo do proacuteprio algoz Ao despir-se para vestir a alva
tirou tambeacutem a camisa e ungiu seus laacutebios com estas belas palavras ldquoO meu Redentor morreu por mim
tambeacutem assimrdquo SOUZA E SILVA op cit p 140 ldquoOs soliloacutequios que fazia com o crucifixo mdash quando
estas palavras se acham agrave paacuteg 414 da minha obra entre aspas e aiacute se lecirc a nota 2ordf na qual digo
pertencerem estas expressotildees a Frei Raimundo de Penaforte que assim as escreveu nos Uacuteltimos
momentos dos inconfidentes de 1789rdquo SOUZA E SILVA Joaquim Norberto de O Tiradentes perante
os historiadores oculares de seu tempo Resposta a um injusto reparo dos criacuteticos da Histoacuteria da
Conjuraccedilatildeo Mineira Memoacuteria lida na sessatildeo de 9 de dezembro de 1881 pelo soacutecio honoraacuterio Joaquim
Norberto de Sousa Silva 2ordm vice-presidente In SOUZA E SILVA op cit p 147 181 ldquoFui por muito tempo entusiasta do Tiradentes Os maacutertires atraem as simpatias como os algozes se
tornam dignos das maldiccedilotildees populares Agrave medida poreacutem que me instruiacutea na histoacuteria da malograda
conjuraccedilatildeo senti modificar-se e arrefecer-se o meu entusiasmo e achei-me ante o homem que em 21
de abril de 1792 jaacute natildeo era o mesmo ardente apoacutestolo da emancipaccedilatildeo poliacutetica Os anos que passou na
masmorra segregado do mundo mdash o coloacutequio com os frades franciscanos que lhe transmudaram as
70
Os republicanos de iniacutecio protestaram Mas se o objetivo da Histoacuteria da
Conjuraccedilatildeo Mineira era desmontar o mito de Tiradentes ndash apresentando-o como um
fraco pouco convicto da causa que o levou agrave morte preservando de modo indireto a
imagem da famiacutelia real ndash seu resultado seria o contraacuterio Tiradentes se fortaleceu Sua
imagem sacra favorecida pela ausecircncia de qualquer iconografia original veio unir-se
a um processo jaacute em andamento Ainda em 1866 Castro Alves escrevia o ldquodrama
histoacuterico brazileirordquo Gonzaga ou a Revoluccedilatildeo de Minas encenado em Satildeo Paulo
Salvador e Rio de Janeiro Como o tiacutetulo indica a peccedila centra-se no heroiacutesmo de
Gonzaga saudado como ldquomaior que Napoleatildeordquo Mas ela termina com um poema que
canta ldquoei-lo o gigante da praccedila o Christo da multidatildeo Ersquo Tiradentes quem passardquo
182 A seguir em 1882 aparece o panfleto mineiro nomeado ldquoAgrave forca o Cristo da
multidatildeordquo que chega a atribuir ao maacutertir republicano ldquomaior fortaleza moral do que a
de Cristordquo 183 Na ausecircncia de imagens os artistas da repuacuteblica trataram de pintar com
realismo o sacrifiacutecio ciacutevico de Tiradentes elevando-o por fim ao estatuto de grande
homem da histoacuteria nacional Verdadeiro representante da federaccedilatildeo da memoacuteria
brasileira ndash talvez ao gosto de Victor Cousin ndash ele seria aos poucos saudado como
ldquonossordquo ateacute mesmo por monarquistas como o Visconde de Taunay184
Enquanto o culto de Tiradentes era exportado de seu lugar original trabalhado
e oficiado como pertencente a ldquotodos noacutesrdquo a memoacuteria de Joseacute Bonifaacutecio seguia a
mesma direccedilatildeo embora trilhando o caminho inverso O velho conselheiro jaacute vinha
sendo reabilitado nos ciacuterculos monarquistas pelo menos desde o ano de sua morte em
1838 quando foi velado por Emiacutelio Joaquim da Souza Maia como uma ldquovictima da
intrigardquo 185 Comparado a Aristiacutedes e Seneca ele teria caiacutedo em desgraccedila seguindo as
ideacuteias mdash os conselhos que lhe deram os seus juiacutezes com fementidas promessas mdash tudo isso
transformou o conjurado em um homem eivado de misticismo Prenderam um patriota executaram um
fraderdquo SOUZA E SILVA Joaquim Norberto de O Tiradentes perante os historiadores oculares de
seu tempo op cit p 146 182 CASTRO ALVES Gonzaga ou a revoluccedilatildeo de minas Drama histoacuterico brazileiro Rio de Janeiro
Livraria Coutinho 1975 p 89 Os versos ldquoMaior que Napoleatildeo Uma voz sombria murmura Brazil
Maria E Gonzaga Oh Maldiccedilatildeordquo encontram-se na paacutegina seguinte 183 CARVALHO 1993 p 64 184 ldquoEscrevendo apoacutes a proclamaccedilatildeo o visconde de Taunay reclamava contra o monopoacutelio que os
republicanos especialmente os jacobinos queriam manter sobre a memoacuteria do heroacutei Ao libertar o paiacutes
o Impeacuterio alegava realizou o sonho de Tiradentes Por essa razatildeo ldquotambeacutem ele nos pertencerdquo
CARVALHO 1993 p 71 O O texto de Taunay eacute citado igualmente por Luacutecia Lippi Oliveira para
quem ldquoTaunay coloca Tiradentes no panteatildeo dos monarquistasrdquo Ver OLIVEIRA Luacutecia Lippi 1989 p
12 Referecircncia original Visconde de Taunay ldquoO Tiradentes e noacutes monarquistasrdquo Em Impeacuterio e
Repuacuteblica pp 5-15 185 ldquo() este homem que merecia as homenagens dos compatriotas e estima do seu priacutencipe ia em
pouco tempo ser victima da intrigardquo SILVA MAIA Revista do IHGB VIII 1846 p 136
71
palavras de Ciacutecero por ter prestado serviccedilos a seu paiacutes186 Da miseacuteria do exiacutelio a
memoacuteria de Bonifaacutecio elevaria sua personagem agrave dignidade do grande homem
modelo para a accedilatildeo e exemplo a ser imitado187 Cinco anos apoacutes a edificaccedilatildeo de seu
monumento no Largo Satildeo Francisco o IHGB voltava a comemorar Andrada e Silva
desta vez jaacute como ldquolidador na grandiosa empreza da emancipaccedilatildeo nacionalrdquo Era
ainda o ldquoministro ilustrado e previdente conselheiro leal e esforccediladordquo segundo os
mestres do Instituto cuja ldquogloacuteria a justa celebridade de seus feitos constituem um
patrimocircnio de inestimaacutevel valor para a naccedilatildeo que o preza e honrardquo 188
ldquoNatildeo haacute um ressurgimento dos grandes homens como patrimocircniordquo
perguntaria Franccedilois Hartog referindo-se aos dias atuais Ora no IHGB do seacuteculo
XIX Bonifaacutecio jaacute o era preceptor dos monarcas o velho conselheiro seria saudado
pela transcendecircncia geracional dos valores morais que representava189 ldquoPatrimocircnio
memoacuteria comemoraccedilatildeo os trecircs termos natildeo se intimidam a alternarrdquo Mas para que
possuam um foco de organizaccedilatildeo precisam fazer referecircncia a um quarto a
identidade190 Identidade que em 1900 isolada entre circuitos aristocraacuteticos natildeo seria
capaz de oficiar o grande homem frente aos quadros sociais jaacute organizados em torno
do tropismo nacional Para isso era preciso ir ao puacuteblico
186 ldquoMuita razatildeo pois tinha Cicero quando dizia ndash misero interdum civis optime de republica meritos
(desgraccedilados aquelles cidadatildeos que tiverem feito mais serviccedilos ao seu paiz)rdquo Eacute sem surpresa que
Silva Maia traduz republica por ldquoseu paizrdquo SILVA MAIA op cit p 136 187 ldquoA sabedoria a humanidade a fidelidade a justiccedila a modestia a resignaccedilatildeo em fim quasi todas as
virtudes fizeram de sua existecircncia uma pratica constante de acccedilotildees nobres e sublimes e do dia de sua
morte como diz eloquentemente Bossuet fallando de um grande homem o melhor o mais glorioso e o
mais feliz de sua vida Aqui tendes pois illustre auditoacuterio um modelo para grandes acccedilotildees aqui vos
offereccedilo este bello exemplo dimitaccedilatildeo elle merece certamente ser seguido tanto pelo que tem de bom
como porque o individuo que o apresenta respirou no berccedilo o mesmo ar que respiramosrdquo SILVA
MAIA op cit p 139 188 Parecer sobre o Elogio Histoacuterico de Joseacute Bonifaacutecio de Latino Coelho por Olegaacuterio Herculano de
Aquino e Castro e Joseacute Tito Nabuco de Arauacutejo Revista do IHGB t40 v2 1877 p 519 189 ldquoE voacutes Augusto Monarcha que honraes com vossa imperial presenccedila esta illustre sociedade voacutes
que fostes por vosso augusto pai confiado ao grande homem de quem lamentamos a perda quando a
idade aumentar os vosso jaacute felizes conhecimentos tereis um prazer bem vivo em vos lembrardes que
foi Joseacute Bonifacio quem primeiro dirigeu vossos nascentes passos quem delineou vossos estudos e
quem traccedilou a linha de vossa importante instrucccedilatildeo que promettem fazer-vos um dia um dos maiores
principes do vosso seculo entatildeo o mundo mostraraacute com assombro aacute mais remota posteridade o grande
Imperador do Brasil e diraacute - eis o pupillo de Joseacute Bonifacio de Andrada e Silvardquo SILVA MAIA op
cit p 139-140 190 ldquoNy agrave-t-il enfin une reviviscence des grands hommes comme patrimoine () Patrimoine meacutemoire
commeacutemoraison les trois termes nont cesseacute de tournoyer ils font systegraveme et renvoient vers un
quatriegraveme qui en figure comme le foyer organisateur identiteacuterdquo HARTOG 2005 p 187
72
2
Celebrar os mortos e editar a naccedilatildeo
Poliacuteticas de memoacuteria e esquecimento
21 O espelho perfeito de Bonifaacutecio a Bonifaacutecio
Satildeo Paulo 8 de dezembro de 1886 Reunidos no teatro Satildeo Joseacute o senador
Dantas apresenta o orador Ruy Barbosa em uma cerimocircnia ciacutevica que prestava
homenagem a certo Andrada e Silva Seu objetivo Prestar tributo ao ldquoGrande Mortordquo
comprometendo-se ndash diriam eles ldquotacitamenterdquo ndash com o lema da reforma servil
ldquoprimeiro a aboliccedilatildeo nada sem a aboliccedilatildeo tudo pela aboliccedilatildeordquo191 Morto haacute quase
meio seacuteculo o Patriarca de fato havia condenado a escravidatildeo em seu famoso
discurso agrave Assembleia Constituinte Dissolveu-se a Assembleia em 12 de novembro
de 1823 e condenou-se Bonifaacutecio relegando-o ao exiacutelio e descartando seu projeto de
lei emancipatoacuteria192 Mas natildeo era essa histoacuteria senatildeo indiretamente que se queria
comemorar naquela noite Era a histoacuteria de outro Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva
neto materno do Patriarca morto em 26 de outubro daquele ano Ano em que
protagonizou discussotildees acaloradas no senado do Impeacuterio contra Ribeiro da Luz em
nome da bandeira abolicionista Duas imagens sucessivas como no espelho
supostamente fiel de Halbwachs no qual um grupo se reconhece e faz reconhecer-se
Natildeo existia apenas um Bonifaacutecio e como toda vida o proacuteprio neto era
possuidor de um sem nuacutemero de perfis Detalhe que natildeo passava despercebido pela
191 ldquoFoi para este fim que a cidade de Satildeo Paulo alevantou-se em noite de 8 de Dezembro de 1886 e foi
ao theatro Satildeo Joseacute sancionar com a sua adesatildeo o preito que se tributava ao ldquoGrande Mortordquo ndash
subscrevendo tacitamente o lemma do eminente e ilustrado brasileiro o conselheiro Ruy Barbosa
orador oficial de tatildeo patrioacutetica solenidade ldquoPrimeiro a aboliccedilatildeo nada sem aboliccedilatildeo tudo pela
aboliccedilatildeordquo Sessatildeo ciacutevica em homenagem ao senador Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva Realisada em
noite de 8 de Dezembro de 1886 no Theatro S Joseacute Satildeo Paulo Publicaccedilatildeo em favor da libertaccedilatildeo dos
captivos Typographia King 1887 192 Os argumentos do velho Bonifaacutecio partiam de princiacutepios morais e cristatildeo e encontravam verbo nos
corolaacuterios do direito natural ldquoHa de espantarrdquo escreveu ldquoque hum trafico tatildeo contra aacutes Leis da moral
humana e aacutes santas maximas do Evangelho e ateacute contra as leis de huma satildea poliacutetica dure ha tantos
seculos entre os homens que se dizem civilizados e christatildeosrdquo ANDRADA E SILVA Joseacute Bonifaacutecio
de Representaccedilatildeo aacute Assemblea Geral Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil sobre a
Escravatura Paris Firmin Didot 1825 p 20 Seu projeto de lei previa o fim da escravidatildeo no Impeacuterio
do Brasil em apenas 4 ou 5 anos
73
sinceridade intelectual de Souza Dantas ldquoOs oradores que tiverem de mostrar-vos em
todas as faces o quadro da vida e do gecircniordquo disse o homem puacuteblico ldquoestudaratildeo nelle
o prosador o poeta o polemista o jornalista o orador o jurisconsulto o professor e
vos diratildeo a que alturas elle subiu em todas essas revelaccedilotildees muacuteltiplas de sua vasta e
esplendida intelligecircnciardquo 193 Ora selecionemos pois o Grande Morto a ser
comemorado naquela noite de 1886 era neto mas tambeacutem avocirc embora muito mais
senador do que conselheiro muito menos pedagogo dos monarcas do que exemplo
moral de toda a naccedilatildeo Afinal dentre esse inuacutemero quadro de atividades e virtudes
ciacutevicas solicitou o senador Dantas aos seus leitores
Deixae pois que de toda a vida do pranteado cidadatildeo eu
destaque antes voacutes em breve mas raacutepido relevo apenas
a ultima phase de sua carreira aquella em que a morte
de suacutebito o colheo como nrsquouma apoteose quando no
pleno apogecirco da gloria e do talento elle voltara-se todo aacute
maior das causas aacute que seu espiacuterito dedicou-se aquella
que seu coraccedilatildeo mais profundamente amou a liberdade
dos escravos194
Retirar detalhes da biografia de um homem ilustre investir na lembranccedila de
certo feitos e seguindo uma loacutegica jaacute centenaacuteria ldquoarrancaacute-los dali e pocirc-los na vitrinerdquo
195 O procedimento que investe na densidade memorial de tal ou qual episoacutedio
precisa ndash pela boa feacute da ciecircncia e pela sensibilidade agraves identidades contituidas ndash
argumentar com as evidecircncias lembradas por outras vontades poliacuteticas e a partir dali
minimizaacute-las senatildeo conduzindo-as ao esquecimento Sim ldquoJoseacute Bonifaacutecio foi
monarchistardquo admite Barbosa em seu discurso embora natildeo soubesse ldquodizer se ateacute os
seus uacuteltimos dias continuou a encarar o throno como em 1861 quando via nas
proviacutencias do Impeacuterio uma famiacutelia de lsquoirmatildes igualmente desveleadas em amor
estremecido aacute monarchiarsquordquo196 Mais do que lembraacute-lo como parceiro dos imperadores
cabe dizer que ldquoelle natildeo alimentava prevenccedilotildees fundamentaes contra a republicardquo197
Agora em finais do seacuteculo XIX ldquotodas as proviacutencias tecircm trazido a esta memoria sua
oblaccedilatildeo e todas a consagram a Joseacute Bonifaacutecio o abolicionistardquo 198 Barbosa ndash
193 Idem p 9 194 Idem ibidem Grifos meus 195 MONTAIGNE op cit Livro I Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas p 101 196 BARBOSA Ruy Sessatildeo ciacutevica em homenagem ao senador Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva
1886 p 26 Citando BONIFAacuteCIO Joseacute Discurso de 28 de junho de 1861 197 BARBOSA Ruy 1887 p 27 198 BARBOSA Ruy 1887 p 67
74
oficiante ou ldquoorador oficial de tatildeo patrioacutetica solemnidaderdquo ndash natildeo mediu esforccedilos
retoacutericos para associar o grande homem a certo projeto liberal ldquosem avenccedilas com o
captiveirordquo 199 Ou natildeo era a aboliccedilatildeo nas palavras do uacuteltimo Bonifaacutecio a ldquomelhor de
todas as causasrdquo 200 Nisso ldquoa naccedilatildeo toda o applauderdquo ndash ou pelo menos assim
aclamava o orador oficial em nome da naccedilatildeo Pois agravequeles que celebravam Andrada e
Silva por outros motivos sobrava-lhes a provocaccedilatildeo dizendo que ldquomorresse elle trez
anos antes e toda a sua existecircncia anterior natildeo se compararia com alguns momentos
da phase que a cerrourdquo 201 Ruy Barbosa queria assim neste distinto malabarismo
memorial conduzido por um claro uso poliacutetico do passado chegar agrave conclusatildeo de que
ldquose o partido liberal () refusa a missatildeo de partido abolicionista natildeo pode reclamar a
heranccedila de Joseacute Bonifaacuteciordquo 202 E de nada vale murmurar nas sombras do
esquecimento que Andrada e Silva ldquopouco fezrdquo como se o caraacuteter dos grandes
homens fosse quantificaacutevel
ldquoA medida do valor dos homens () natildeo eacute arithmetica
senatildeo moral estaacute na personalidade a qual se aprecia
menos pelas acccedilotildees do que pela influencia () Essa
forccedila irradiadora para que natildeo haacute dynamometro
possiacutevel que poacutede mais do que as obras a eloquecircncia a
majestade e o gecircnio eacute o caraacuteter isso a que algueacutem
chamou de a vontade do homem purordquo 203 199 BARBOSA Ruy 1887 p 61 200 BONIFAacuteCIO Joseacute Sessatildeo de 4 de setembro de 1885 Anaes do Senado 1886 vol IV p 179
APUD BARBOSA 1887 p 61 Ver tambeacutem FARIA Julio Cezar de Joseacute Bonifaacutecio o moccedilo
Companhia editora nacional Satildeo Paulo 1944 p 338 201 BARBOSA Ruy 1887 p 61 202 BARBOSA Ruy 1887 p 62 203 BARBOSA Ruy 1887 p 70 A leitura de Ruy Barbosa sobre o problema dos grandes homens natildeo
parece sair de Cousin senatildeo talvez apenas indiretamente de Carlyle atraveacutes da obra do ensaiacutesta
americano RW Emerson Muito popular no final do seacuteculo XIX Emerson chegou a realizar uma
releitura das tipologias do Grande Homem de Carlyle sob o tiacutetulo de Representative men No texto
citado por Barbosa ldquoA vontade dos puros emana deles para os outros entes como a agua deriva de um
vaso para outro inferior O caraacuteter eacute a ordem moral entrevista atraveacutes de uma natureza individualrdquo
EMERSON Waldo Ralph Character In Essays Second Series The Complete WorksVol III
Boston and New York Houghton Mifflin and Company 1904 p 95 No original ldquoThe will of the pure
runs down from them into other natures as water runs down from a higher into a lower vessel This
natural force is no more to be withstood than any other natural force We can drive a stone upward for
a moment into the air but it is yet true that all stones will forever fall and whatever instances can be
quoted of unpunished theft or of a lie which somebody credited justice must prevail and it is the
privilege of truth to make itself believed Character is this moral order seen through the medium of an
individual naturerdquo O transcendentalismo de Emerson adepto de uma loacutegica neo-platonica (the tought
is always prior to the fact) inspirada pela crenccedila na metempsicose (the transmigration of souls is no
fable) fazia-o sustentar a existecircncia de uma ldquomente comum a todos os homens individualmenterdquo (there
is one mind common to all individual men) de modo que ldquose toda histoacuteria estaacute em um soacute homem ela
pode ser explicada pela experiecircncia individualrdquo (if the whole of history is in one man it is all to be
explained from individual experience) Em seu ensaio sobre a Histoacuteria (1841) Emerson propotildee uma
praacutetica de leitura que permita ao indiviacuteduo a possibilidade de ldquoviver toda a histoacuteria em sua proacutepria
75
O trabalho de enquadramento de uma bios feito por uma vontade poliacutetica da
memoacuteria ndash ou seja uma comemoraccedilatildeo ndash precisaria estar atenta agraves prerrogativas da
consciecircncia moral agora traduzidas pela imagem ldquopurardquo diriacuteamos noacutes editada de
um grande homem da histoacuteria nacional Em Emerson ndash o ldquoalgueacutemrdquo a quem se refere
Barbosa na passagem supracitada ndash o caraacuteter do great men manifesta-se como
sineacutedoque da consciecircncia social204 Sua existecircncia individual no entanto uacutenica
continua representativa como fora para Cousin ldquoprimeiro de coisas depois de ideiasrdquo
205 A forccedila do seu caraacuteter puro o qual habita uma ldquoesfera superior do pensamentordquo
introduz com ele ldquoverdades morais na mente geralrdquo 206 ldquoNossa religiatildeo eacute o amor e o
pessoa () ele deve transferir seu ponto de vista daquele que a histoacuteria eacute comumente lida de Roma a
Atenas e Londres ateacute ele mesmo sem negar sua convicccedilatildeo de que ele eacute o tribunal e se a Inglaterra ou o
Egito tiver algo a dizer ele analisaraacute o casordquo (he sould see that he can live all history in his own person
() he must transfer the point of view from which history is commonly read from Rome and Athens
and London to himself and not deny his conviction that he is the court and if England or Egypt have
any thing to say to him he will try the caserdquo Emerson que se dizia naturalista pensava que o
conhecimento do passado ou a possibilidade de revivecirc-lo aproximava-nos da natureza humana
Buscava natildeo a ldquotiraniardquo dos fatos (facts tyrannize over them and make the men of routine the men of
sense) mas a ldquorazatildeo necessaacuteriardquo (necessary reason) de cada evento qual poderia desvelar a identidade
da histoacuteria ldquoseu pensamento vive ao longo de toda linha de templos esfinges e catacumbas passa
satisfeito por todos eles para viver de novo na mente ou no agorardquo (his thought lives along the whole
line of temples and sphinxes and catacombs passes through them all with satisfaction and they live
again to the mind or are now) A natureza do pensamento humano vive no fluxo de consciecircncia que
paira sobre um tempo coacutesmico O estudioso da histoacuteria nessa loacutegica vasculha o passado ateacute encontrar
a si mesmo ldquonossa admiraccedilatildeo do antigo natildeo eacute a admiraccedilatildeo do velho mas do naturalrdquo () pois
ldquoquando um pensamento de Platatildeo torna-se meu pensamento ndash quando uma verdade que acendeu a
alma de Piacutendaro inflama a minha nada haacute mais Quando eu sinto que noacutes dois nos conhecemos em
uma percepccedilatildeo () por que devo medir graus de latitude por que devo eu contar anos egiacutepciosrdquo (Our
admiration of the antique is not admiration of the old but of the natural () when a thought of Plato
becomes a thought to me ndash when a truth that fired the soul of Pindar fires mine time is no more When
i feel that we two meet in a perception () why sould I measure degrees of latitude why should I count
Egyptian yeras) Esse encontro do homem universal (universal men) com a natureza universal
(universal nature) eacute promovido por uma leitura absolutamente sinedoacutequica entre a experiecircncia
individual e o singular coletivo ldquoem outras palavras natildeo existe propriamente histoacuteria apenas
biografiardquo (on other words there is no properly History only biography) EMERSON Ralph Waldo
History In The Complete Works Vol II Essays First SeriesBoston and New York Houghton
Mifflin and Company 1904 pp 4-41 Sua visatildeo dos grande homens eacute tambeacutem naturalmente pautada
pelo individualismo metodoloacutegico como a passagem citada por Barbosa evidencia eles satildeo a
expressatildeo individual de uma razatildeo necessaacuteria ndash a ordem moral 204 ldquo() men of character are the conscience of the society to which they belongrdquo EMERSON
Character 1904 p 96 Na nota 2 dessa mesma paacutegina o editor incluiu ldquoIn the lecture on Politics as
first delivered these sentences occur Character is the true theocracy It will one day suffice for the
government of the world 205 ldquoMen are also representative first of things and secondly of ideasrdquo EMERSON Waldo Ralph
The Complete Works Uses of Great Men In Representative men Vol IV Boston and New York
Houghton Mifflin and Company 1904 p 8 206 ldquoI count him a great man who inhabits a higher sphere of thoughtrdquo Idem p 6 ldquoHow to illustrate the
distinctive benefit of ideas the service rendered by those who introduce moral truths into the general
mindrdquo Idem p 21
76
apreccedilo desses patronosrdquo 207 Com o seu culto a grande forccedila sobre a qual repousa o
projeto comemorativo pocircde traduzir-se atraveacutes do intento de ldquoarrancar o Brasil da
lethargia moral em que tem vivido () e lhe fazer compreehender que deve e haacute de
restituir aacute humanidade essa grande parte de seu ser a qual tem sido arredada a
comunhatildeo dos homens pelas algemas da escravidatildeordquo 208 Nesse gesto simboacutelico que
devolve a humanidade aos cativos ndash mesmo que teoricamente avesso ao holismo
funcionalista um gesto quase durkhemiano de reparaccedilatildeo moral ndash encontramos como
corolaacuterio certa desumanizaccedilatildeo panteonizadora ndash e possivelmente algo mais Ou
oficiando a memoacuteria de Joseacute Bonifaacutecio o neto em uma seacuterie de discursos que natildeo
fazem sequer referecircncia a sua mocidade natildeo estariam os ldquonovos liberaisrdquo
enquadrando de uma soacute vez tambeacutem a mateacuteria memorial de seu avocirc materno
Inegaacutevel diaacutelogo para dizer o miacutenimo entre experiecircncias geracionais Mas
conversar com os mortos eacute sempre uma tarefa para cegos no qual o passado ndash sem
uma existecircncia visiacutevel para aleacutem do ruiacutedo de uma memoacuteria inexoravelmente sujeita
aos trabalhos do presente ndash eacute aberto a usos e abusos A commemoratio barbosiana natildeo
apenas editou uma vida recortando seus uacuteltimos atos supendendo-os da ordem do
tempo copiando e colando-os jaacute no proacutelogo de sua existecircncia Seu epitaacutefio natildeo
satisfeito com a simples adesatildeo agrave causa foi bem aleacutem relacionando o grande homem
agrave imagem do ldquoradicalismo abolicionistardquo e aquinhoando um procedimento caro as
mais antigas autarquias orientais representou a mais perfeita continuidade ndash de
Bonifaacutecio a Bonifaacutecio ndash da memoacuteria coletiva de um quadro identitaacuterio e
abolicionista209
22 A lembranccedila como ato moral
Barbosa referia-se aos uacuteltimos anos do Impeacuterio era posterior ao bem sucedido
gabinete do Baratildeo de Rio Branco (1871-1875) deacutecada de interrompidos avanccedilos
207 ldquoOur religion is the love and cherishing of these patrons The gods of fable are the shining moments
of great menrdquo Uses of Great Men p 4 208 BARBOSA Climaco Ao Puacuteblico Sessatildeo ciacutevica em homenagem ao senador Joseacute Bonifaacutecio de
Andrada e Silva p 4 Grifos meus 209 BARBOSA Ruy op cit ldquoTransubstanciado por esse contacto com a realidade eterna o coraccedilatildeo de
Joseacute Bonifacio eacute hoje o coraccedilatildeo impessoal da patria e o sentimento que propulsa o musculo titanico eacute
o radicalismo abolicionistardquo p 60-61 Para Angela Alonso os ldquoNovos Liberais () ressaltaram uma
continuidade abolicionista na histoacuteria brasileira Apresentaram-se como herdeiros da melhor cepa
liberal do Impeacuterio a geraccedilatildeo de Bonifaacutecio idealizadora da Independecircncia e da monarquia
constitucional com trabalho livre bem como de todos os reformadores do Segundo Reinado mesmo os
conservadores como Euseacutebio Paranaacute e Rio Brancordquo op cit p 293
77
liberais e obstaacuteculos impostos agrave causa abolicionista210 Derrotado nas eleiccedilotildees de
1886 frustrado e excluiacutedo dos ciacuterclos de poder ele perguntava-se se ldquohaacute ahi na
chronica deste paiz ephemeacuterides de immoralidade comparaacuteveis aacutes destes dois
annosrdquo211 A escravidatildeo esse crime do direito ciacutevil contra o direito natural jaacute era ao
menos desde o velho Bonifaacutecio catalisadora de um discurso moralista ndash mas a
aboliccedilatildeo natildeo marcou o fim do topos Quanto mais se aproximavam da virada do
seacuteculo os anos mais evidenciavam atraveacutes de parte da intelectualidade e da imprensa
certa leitura moral das crises que assolariam a jovem repuacuteblica Marcas da geraccedilatildeo de
1870 Daqueles ldquotristiacutessimos temposrdquo de ldquoum mundo que se acabardquo e no qual se
pode escutar o ldquoranger das peccedilas de um edifiacutecio que se esboroardquo 212 Eacute possiacutevel que
sim muito embora a tendecircncia a assinalar esse tipo de diagnoacutestico natildeo lhe seja eacute
claro uacutenica
Em 1843 o perioacutedico O Panorama ou Jornal Literaacuterio e Instructivo da
Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uacuteteis publica pela primeira vez o
romance histoacuterico O Bobo Preocupado nitidamente com o problema da identidade
nacional seu autor Alexandre Herculano elenca o reinado de Dona Urraca I (1078-
1126) como periacutedo originaacuterio da nacionalidade portuguesa O cenaacuterio eacute o castelo de
Guimaratildees no Condado Portucalense e o enredo termina por versar em torno de D
Bibas o Bobo que caiacutera em desgraccedila com a morte de seu querido protetor D
Henrique Testemunha das intrigas palacianas ora espiando por debaixo dos panos de
mesa jurava vinganccedila tornando-se espeacutecie de eminecircncia parda de uma histoacuteria
secreta
Degradaccedilatildeo moral Era esse o sentimento de Herculano em relaccedilatildeo a um dos
mais ldquodesastrosos periacuteodos de desordens de rebeliotildees e de guerras civisrdquo signos do
reinado de D Urruca Resistir era inuacutetil dizia o autor pois qualquer accedilatildeo contraacuteria
aos desmandos da monarquia tomava finalidades ldquoindividuais desconexas e por isso
sem resultados definitivos efeito natural de instituiccedilotildees puacuteblicas viciosas e
210 Ver ALONSO 2002 A autora defende que Rio Branco teria retirado certas pautas da matildeo dos
liberais e republicanos (como por exemplo a reforma do ensino) ao passo que jaacute em 1878 o gabinete
do Visconde de Sinimbu natildeo fazia mais do que ecoar o poder moderador 211 BARBOSA Ruy op cit p 50 212 Tristiacutessimos tempos sr Conselheiro () Vim buscar inspiraccedilotildees agrave Europa Levo-as mas quatildeo
diversas do que eu sonhava Este eacute um mundo que se acaba () Sente-se o ranger das peccedilas de um
edifiacutecio que se esboroa Carta de Tavares Bastos agrave Nabuco de Araujo 1867 Apud ALONSO Acircngela
2002 Citado nas paacuteginas 52 e 96
78
incompletasrdquo 213 Para o escritor lusitano isso acontecia porque
A ideacuteia de naccedilatildeo e de paacutetria natildeo existia para os homens
drsquoentatildeo do mesmo modo que existe para noacutes O amor
cioso da proacutepria autonomia que deriva de uma
concepccedilatildeo forte clara consciente do ente coletivo era
apenas se era um sentimento frouxo e confuso para os
homens dos seacuteculos XI e XII Nem nas crocircnicas nem
nas lendas nem nos diplomas se encontra um vocaacutebulo
que represente o espanhol o indiviacuteduo da raccedila godo-
romana distinto do sarraceno ou mouro () O que falta
eacute a designaccedilatildeo simples precisa do suacutebdito da coroa de
Oviedo Leatildeo e Castela E por que falta Eacute porque em
rigor a entidade faltava socialmente214
Em um periacuteodo em que a identidade natildeo era uma evidecircncia a compatibilidade
coletiva era afirmada ndash mesmo na ausecircncia de uma designaccedilatildeo para portugueses e
espanhoacuteis ndash ainda assim pela via da alteridade Entre cristatildeos e muccedilulmanos a
afinidade grifada pela feacute ldquoaparecia clara e distintardquo Em outras palavras enquanto a
identidade nacional natildeo se fazia (no vocabulaacuterio cartesiano uma evidecircncia) ldquocada
catedral cada paroacutequia cada mosteiro cada simples asceteacuterio era um anel da cadeia
moral que ligava o todo na falta de um forte nexo poliacuteticordquo215 Mas esse tipo de elo
identitaacuterio natildeo era suficiente para deter a crise cuja imagem manifesta atraveacutes de
costumeira pintura moral ganhou sentido histoacuterico pelo paralelo traccedilado por
Herculano entre a archeacute e o telos da lusitanidade ldquoPobres fracos humilhadosrdquo o
presente dos portugueses ndash como o foi a sua origem ndash era experienciado pelo topos da
decadecircncia moral Na leitura do autor de O Bobo o horizonte soacute ganhava em
expectativa quando iluminado pela lembranccedila de uma aurora gloriosa
() depois de tatildeo formosos dias de poderio e de renome
que nos resta senatildeo o passado Laacute temos os tesouros dos
nossos afetos e contentamentos Sejam as memoacuterias da 213 HERCULANO Alexandre O bobo Satildeo Paulo Saraiva 1959 Documento digitalizado por Antonio
de Padua Danesi Disponiacutevel em httpwwwdominiopublicogovbr Acesso em 14 de Dezembro de
2013 p 2 214 Idem Ibidem 215 Idem Ibidem ldquoHavia-a mas debaixo de outro aspecto em relaccedilatildeo ao grecircmio religioso Essa sim
que aparece clara e distinta A sociedade criada era uma e preenchia ateacute certo ponto o incompleto da
sociedade temporal Quando cumpria aplicar uma designaccedilatildeo que representasse o habitante da parte da
Peniacutensula livre do jugo do Islam soacute uma havia christianus O epiacuteteto que indicava a crenccedila
representava a nacionalidade E assim cada catedral cada paroacutequia cada mosteiro cada simples
asceteacuterio era um anel da cadeia moral que ligava o todo na falta de um forte nexo poliacuteticordquo Grifos
meus
79
paacutetria que tivemos o anjo de Deus que nos revoque agrave
energia social e aos santos afetos da nacionalidade Que
todos aqueles a quem o engenho e o estudo habitam para
os graves e profundos trabalhos da histoacuteria se dediquem
a ela No meio de uma naccedilatildeo decadente mas rica de
tradiccedilotildees o mister de recordar o passado eacute uma espeacutecie
de magistratura moral eacute uma espeacutecie de sacerdoacutecio
Exercitem-se o que podem e sabem porque natildeo o fazer
eacute um crime 216
Essa tarefa ciacutevica alcanccedilaria feiccedilotildees complementares a um rito positivo quer
seja de um exerciacutecio de reparaccedilatildeo moral Para Herculano celebrar os tesouros do
passado portuguecircs eacute mais do que um compromisso dos eruditos uma espeacutecie de
dever do historiador o qual recusando-se a julgar (positivamente) o passado colonial
seria ele mesmo condenado como criminoso Ora os tempos grandiosos do impeacuterio
ultramarino eram a uacutenica dimensatildeo em que a histoacuteria paacutetria aparentava aos olhos de
muitos intelectuais de sua eacutepoca marchar no ritmo das naccedilotildees mais civilizadas217
Essa leitura da experiecircncia peninsular do tempo ndash seu passado seu presente seu
futuro ndash natildeo foi em nada uacutenica a Alexandre Herculano embora as particularidades de
cada autor envolvido em sua reflexatildeo evidenciassem ainda diferentes formas de se
relacionar com os dias que jaacute se foram Almeida Garrett acostumado a viajar de
livros em matildeos no deleite do quarto toma enfim o caminho da estrada ndash e nele
testemunha a experiecircncia decadentista Sua obra Viagens na Minha Terra eacute o ldquosentir
da criserdquo embora tambeacutem seja um manifesto pelo caraacuteter do povo portuguecircs
entendido por meio de seus elementos constituidores imaginados a partir da ldquoterra da
tradiccedilatildeo dos costumes e do proacuteprio passadordquo 218
Algumas deacutecadas mais tarde os beletristas de 1870 natildeo seriam tiacutemidos em
transformar as impressotildees da geraccedilatildeo anterior em armas de embate puacuteblico Antero de
Quental esboccedilou em uma das famosas Conferecircncias do Casino 27 de maio de 1871
uma visatildeo que em algum sentido tornou-se arquetiacutepica da ldquodecadecircncia como uma
216 Idem Ibidem Grifos meus 217 ldquoAgrave medida que o seacuteculo XIX se desenrola comeccedila a desenhar-se com nitidez o progressivo
distanciamento do nosso paiacutes face agraves naccedilotildees que lentamente se industrializam e se desenvolvem e que
concomitantemente vatildeo produzir uma natildeo menos prodigiosa revoluccedilatildeo cultural de que nos chegaratildeo
ecos Satildeo pois a conscientizaccedilatildeo destes factos e a assunccedilatildeo da nossa pequenez e impossibilidade
fiacutesica para a realizaccedilatildeo de tatildeo difiacutecil desiderato que levaratildeo toda uma geraccedilatildeo a preocupar-se
denodadamente com as razotildees da decadecircncia nacional () RODRIGUES Vitor Luis Gaspar A
decadecircncia da monarquia constitucional portuguesa factores de afirmaccedilatildeo do ideaacuterio republicano
Ponta Delgada Universidade dos Accedilores 1986 p 83 218 RODRIGUES op cit p 84
80
espeacutecie de estigma indeleacutevel e recorrente de nosso destino peninsularrdquo 219 Sua palavra
aparece como um apelo agrave ldquocomunhatildeo moralrdquo diante de um amplo quadro de
dissoluccedilatildeo dos costumes220 As causas Accedilatildeo funesta do cristianismo
contrarreformado associado ao tribunal da inquisiccedilatildeo agrave ordem jesuiacutetica e agrave poliacutetica
do antigo regime que levaram os paiacuteses ibeacutericos agrave ldquomorte moralrdquo 221 Sua soluccedilatildeo
notemos natildeo era menos polecircmica ldquoEacute necessaacuterio um esforccedilo virilrdquo escreveu Antero
de ldquoquebrar resolutamente com o passadordquo O respeito agrave ldquomemoacuteria dos nossos avoacutesrdquo
sua rememoraccedilatildeo piedosa deveria ser mantida poreacutem ao custo de jamais os
imitarmos O passado observado atraveacutes da dinacircmica entre decadecircncia e progresso
natildeo era mais lido atraveacutez de imagens que certo vez nas paacuteginas de Plutarco foram
ldquovirtudes em accedilatildeordquo222 Era tambeacutem um espaccedilo traacutegico de viacutecios corrupccedilatildeo e mazelas
Essa desvalorizaccedilatildeo do caraacuteter moralmente utilitaacuterio do passado cuja recusa a
imitatio pode ser entendida tambeacutem como um triunfo na crenccedila na dinacircmica do
progresso difere do modelo de Alexandre Herculano muito embora seu socialismo agrave
la Prudhomme tambeacutem natildeo fizesse quoacuterum entre grande parte dos republicanos de
seu paiacutes223 Mesmo assim ldquomarca uma eacutepoca em Portugalrdquo Foi a primeira vez que
como disse um contemporacircneo ldquoem Portugal entra o espiacuterito moderno e a primeira
vez que aqui se expotildee () que o Catolicismo foi uma das causas () da decadecircncia de
Portugal e de Espanhardquo224
Inexistente no latim claacutessico o termo decadentia (de-cadere) aparece durante
219 LOURENCcedilO Eduardo Revisitaccedilatildeo da mitologia anteriana Prefaacutecio agraves Causas da decadecircncia dos
povos peninsulares nos uacuteltimos trecircs seacuteculos In QUENTAL Antero Lisboa Tinta-da-china 2008 p
11-12 220 QUENTAL Antero Causas da decadecircncia dos povos peninsulares nos uacuteltimos trecircs seacuteculos
Prefaacutecio de Eduardo Lourenccedilo Lisboa Tinta-da-china 2008 p 25-26 221 Nas palavras do autor ldquoO espiacuterito sombrio e depravado da sociedade reflectiu-o a Arte com uma
fidelidade desesperadora que seraacute sempre perante a histoacuteria uma incorruptiacutevel testemunha de acusaccedilatildeo
contra aquela eacutepoca de verdadeira morte moral Essa morte moral natildeo invadira soacute o sentimento a
imaginaccedilatildeo o gosto invadira tambeacutem invadira sobretudo a inteligecircnciardquo op cit pp 30-31 222 Sobre a relaccedilatildeo necessaacuteria entre as imagens como ldquovirtudes em accedilatildeordquo e o estiacutemulo agrave imitatio ver
HARTOG Franccedilois Plutarque entre les anciens et les modernes In PLUTARQUE Vies Parallegraveles
Paris Gallimard 2001 p 14 223 ldquoOponhamos ao catolicismo natildeo a indiferenccedila ou uma fria negaccedilatildeo mas a ardente afirmaccedilatildeo da
alma nova a consciecircncia livre () a filosofia a ciecircncia e a crenccedila no progresso na renovaccedilatildeo
incessante da Humanidade pelos recursos inesgotaacuteveis do seu pensamento () Oponhamos agrave
monarquia centralizada uniforme e impotente a federaccedilatildeo republicana de todos os grupos
autonoacutemicos de todas as vontades soberanas () oponhamos a iniciativa do trabalho livre a induacutestria
do povo pelo povo e para o povo natildeo dirigida e protegida pelo Estado mas espontacircnea natildeo entregue
agrave anarquia cega da concorrecircncia mas organizada duma maneira solidaacuteria e equitativa operando assim
gradualmente a transiccedilatildeo para o novo mundo industrial do socialismo a quem pertence o futurordquo
Idem 224 REIS Jaime Batalha Correspondecircncia Apud BERRINI Beatriz Brasil e Portugal A Geraccedilatildeo de
70 Campo das Letras Porto 2003 p 25
81
a Idade Meacutedia para designar a deteriorizaccedilatildeo a ruiacutena ou o colapso Na modernidade
decadecircncia opotildee-se a progresso e natildeo seraacute ldquode resto por acaso que a decadecircncia
como categoria de anaacutelise histoacuterica se aviva no seacuteculo XIX quando a ideia e a crenccedila
no progresso se desenvolvem fortementerdquo225 Joel Serratildeo em verbete do seu
Dicionaacuterio de Histoacuteria de Portugal segue um rumo parecido ao afirmar que ldquosem a
ideia de progresso a ideia de decadecircncia ldquonatildeo alcanccedila sentido algum () soacute se torna
legiacutetimordquo afinal de contas ldquodizer que algo decai apoacutes se ter postulado previamente
em que consiste subirrdquo226
Apenas nove anos separam a conferecircncia de Quental das comemoraccedilotildees do
tricentenaacuterio da morte de Camotildees Aqueles que sentiam a crise reconheciam tambeacutem
certa necessidade em retornar ao passado como se nele protegida pela passagem dos
anos repousasse certa essecircncia virtuosa e esquecida A municcedilatildeo vinha do norte
carregada nas folhas da Fraserrsquos Magazine em palavras anotadas anos antes pelo
proacuteprio Thomas Carlyle
Carlyle resenha o romance histoacuterico de Guilherme Centazzi saudado
justamente por se afastar dos modelos peninsulares que lhe eram contemporacircneos O
Estudante de Coimbra contava a histoacuteria do jovem que saiacutedo da universidade se via
na frente de batalha das guerras liberais Era para o criacutetico escocecircs um livro raro
entre os romances lusitanos ldquofundado sobre fatos natildeo faacutebulas em eventos histoacutericos
e costumes nacionais ao inveacutes de absurdos leviatatildes e geografias impossiacuteveisrdquo227 Se o
retrato do presente havia salvo o romance portuguecircs do atraso das mirabilia ainda
vivas no antigo regime ele natildeo tinha ainda assim contribuiacutedo para frear a decadecircncia
de Portugal Guerra permanente nunca andou de lado com o progresso das belas
letras mas revoluccedilotildees e guerras civis exatamente o tipo de conflito no qual os
lusitanos viam-se de imediato envolvidos lhes seriam fatais
Alguns argumentos que mais tarde estaratildeo presente na conferecircncia de Quental
jaacute se faziam ouvir nessas palavras de Carlyle As causas primaacuterias do decliacutenio ldquode
uma naccedilatildeo que outrora foi vanguarda empreendedora das descobertasrdquo foram por um
lado a ldquoafluecircncia do ouro vindo dos paiacuteses receacutem descobertos a opressatildeo do jugo
225 PIRES Antoacutenio Machado A Ideia de Decadecircncia na Geraccedilatildeo de 70 2 ed Lisboa Vega 1992 p
18 226 SERRAtildeO Joel Dicionaacuterio de Histoacuteria de Portugal Vol 1 V decadecircncia 227 ldquo() a book founded on facts and not on fables on historical events and national customs instead
of absurd leviathans and impossible geographyrdquo CARLYLE Thomas Romance of Portuguese
Revolution March 1848 In Frasersrsquos Magazine for Town And Country January to June 1848
London John W Parker West Strand Vol XXXVII p 274
82
espanholrdquo e por outro ldquoos grilhotildees impostos ao progresso pelos jesuiacutetas e pela
Inquisiccedilatildeordquo embora ldquoa continuidade de seu estado de degradaccedilatildeo pelo menos em
dias recentes ldquodeva ser buscada em sua proacutepria incansaacutevel turbulecircncia e em suas
querelas internasrdquo228 Primeiro romance moderno de Portugal Eacute bem possiacutevel que
Carlyle concordasse Mas isso natildeo significa em nada que fosse uma obra prima se
em Lisboa ele poderia ser considerado um livro de primeiro escalatildeo em Londres
estaria mais proacuteximo do terceiro229 As guerras liberais haviam valorizado a
pertinecircncia dos temas presentes e com eles o romance moderno mas o paralelo de
seus frutos artiacutesticos com o grande vulto da lusitanidade era ainda visto como
profundamente desigual ldquoQuatildeo incomensuraacutevel eacute o intervalo entre o melhor dos
escritoresrdquo ndash exalta o professor escocecircs ao denegrir os beletristas portugueses de seu
tempo ndash e o ldquoinspirado e patrioacutetico autor drsquoOs Lusiacuteadasrdquo230 Passados quase
quatrocentos anos Portugal era ainda nada mais do que ldquoa terra nativa de Camotildeesrdquo231
Nessa terra de Camotildees Almeia Garret natildeo demoraria para flertar com uma
leitura ldquonacionalistardquo drsquoOs Lusiacuteadas escrevinhando o eacutepico no grande-homem-poeta
do ensaiacutesta escocecircs ou aquele que canta a naccedilatildeo ldquoNatildeo admirardquo escreveu Oliveira
Martins ldquoque desde entatildeo Camotildees ficasse na alma popular como siacutembolo da naccedilatildeo e
Os Lusiacuteadas como sua biacutebliardquo Deveriacuteamos nos surpreender caso o poeta zarolho
animasse tambeacutem os espiacuteritos dos filhos do Brasil Pai da liacutengua ldquoassim dotado com
todos os caracteres do povo que representavardquo poderia tambeacutem de alguma maneira
representar a Ameacuterica Portuguesa232 No ambiente intelectual e poliacutetico varrido pelas
ondas comemorativas de finais do seacuteculo dezenove a geraccedilatildeo brasileira de 1870
228 If the primary causes of decline in a nation which once led the van of natical enterprise and
discovery were the great influx of gold from new-found countries the oppressive Spanish yoke and
the fetters imposed on progress by Jesuits and the Inquisition the continuance of its degraded state at
least in recent days must be sought in its own restless turbulence and internal quarrels Idem p 272 229 () it is refreshing to turn to a book which if in England it would be esteemed of third-rate merit
may certainly claim in Portugal a place in the very first rank () Idem p 274 230 Idem p 273 231 ldquo() the native land of Camoens ()rdquo Idem p 272 232 ldquoNatildeo admira pois que desde entatildeo Camotildees ficasse na alma popular como siacutembolo da naccedilatildeo e Os
Lusiacuteadas como a sua biacuteblia Natildeo admira que tivesse passado agrave condiccedilatildeo de epoacutenimo desta pequena
paacutetria tatildeo semelhante a Atenas e mais ainda a Esparta na agitaccedilatildeo da sua vida poliacutetica na grandeza da
sua missatildeo colonial e tambeacutem na miseacuteria fuacutenebre da sua decomposiccedilatildeo Natildeo admira que desde o
seacuteculo XVII por toda a parte onde surgisse de entre as ruiacutenas do edifiacutecio nacional algum fuste de
coluna ainda de peacute ou algum friso inteiro onde se visse correr agitada a trageacutedia de outras eras por
toda a parte onde se erguesse do matagal de urzes e cardos da histoacuteria a haste florida de uma accedilucena
de saudade ou de esperanccedila a corola dessa flor ou a forma dessa evocaccedilatildeo tivesse o perfume e a cor
dos Lusiacuteadas e se considerasse uma revelaccedilatildeo de Camotildees () E quis a sorte que um poeta assim
dotado com todos os caracteres do povo que representava aparecesse no momento proacuteprio da completa
definiccedilatildeo do seu pensamentordquo MARTINS Oliveira Camotildees Os Lusiacuteadas e a Renascenccedila em
Portugal 4ordf ed Lisboa Guimaratildees Ed 1986 (2ordf ed1891)
83
acessaria o mesmo personagem numa tentativa jaacute assinalada pela criacutetica de edificar
um contrapeso ibeacuterico ao indianismo saquerema233 Logo o centenaacuterio de Camotildees
seria comemorado no Brasil ao lado de uma efemeacuteride nacional imaginando um
personagem particular dentro do quadro geral do desenvolvimento da nacionalidade
transeuropeacuteia Castro Alves234
Contavam apenas dez anos da morte do autor de Navio Negreiro Para alguns
jaacute era hora de lembraacute-lo urgecircncia que se confundia na inspiraccedilatildeo do poeta ldquoaquele
que como o pai da trageacutedia grega possa dedicar suas obras lsquoao Temporsquo ()rdquo e nele
ldquoencarnou artisticamente nos seus cantos o grande pensamento da sua eacutepocardquo235
Comemorar um defundo que mal terminou por ser velado pode parecer tanto comum
no mundo contemporacircneo mas para os finais do seacuteculo XIX o gancho jornaliacutestico
em especial um tatildeo imediato natildeo era ainda uma evidecircncia arbitrariamente edificada
sob os escombros dos excessos de informaccedilatildeo O paralelo precisava prestar contas ao
leitor ldquoA justificaccedilatildeo do decenaacuteriordquo explicava Ruy Barbosa ldquoeacute que Castro Alves
escreveu o poema da nossa grande questatildeo social e da profunda aspiraccedilatildeo nacional
que tem a resolverrdquo236 Em outras palavras o passado recente era acessado pelas
demandas de um tempo presente em franca aceleraccedilatildeo Suas palavras de ordem a
memoacuteria do morto sua comemoraccedilatildeo e a elevaccedilatildeo dele ao estatuto de patrimocircnio
nacional
Barbosa inicia o elogio comentando sua escolha como oficiante Ele natildeo eacute
poeta ndash natildeo habita os ldquocimos mais proacuteximos do astrordquo ndash escolha que demonstra
entatildeo um ldquonovo tributo ao nome que comemoraisrdquo237 Novo tributo que natildeo pretendia
233 Para Angela Alonso ldquoa recuperaccedilatildeo de Camotildees passou pelo filtro da geraccedilatildeo 1870 portuguesa No
auge do romantismo luso Almeida Garret se encarregara de prover uma leitura nacionalista de Os
Lusiacuteadas e de elevar Camotildees agrave situaccedilatildeo de mito Essa versatildeo se cristalizara na tradiccedilatildeo poliacutetico-
intelectual saquarema Por isso as geraccedilotildees 1870 a portuguesa e a brasileira retornaram a Camotildees
como estrateacutegia revisionista da proacutepria ideia de naccedilatildeordquo ALONSO op cit p 287 Ver tambeacutem
LOURENCcedilO E Mitologia da Saudade Cia das Letras Satildeo Paulo 1999 234 Transeuroeacuteia pois como escreveu Anne-Marie Thiesse ldquonada eacute mais internacional do que a
formaccedilatildeo das identidades nacionaisrdquo THIESSE Anne-Marie La creacuteation des identiteacutes nationales
Europe XVIII-XIX siegravecles Paris Seuil 1999 Citado tambeacutem por ENDERS 2014 p 14 235 Pensando nos versos de Castro Alves Rui Barbosa lembra do ldquoglorioso arauto de Agamemnon
imortalizado por Homero Taltiacutebios lsquosemelhante aos deuses pela vozrsquo () o poeta aquele que como o
pai da trageacutedia grega possa dedicar as suas obras ldquoao Tempordquo sentiu a natureza teve a inspiraccedilatildeo
universal e humana encarnou artisticamente nos seus cantos o grande pensamento da sua eacutepocardquo
BARBOSA Rui Elogio ao Poeta (1881) In Trabalhos diversos Rio de Janeiro Ministeacuterio da
Educaccedilatildeo e Cultura 1957 (Obras Completas de Rui Barbosa v 8 1881 t 1) p II-III 236 Idem XXIII-XXIV 237 Minhas senhoras meus senhores ndash Obedeccedilo ainda assustado e confundido agrave honra da eleiccedilatildeo que
me eleva ateacute aqui Incapaz de ambicionaacute-la nem sonhaacute-la achei-me todavia desarmado para lhe
resistir Cativo agrave espontaneidade dela natildeo menos cativo me senti agrave origem deste mandato agrave bela
geraccedilatildeo nova de minha terra aos moccedilos agravequeles que em todo paiacutes suscetiacutevel de ressurreiccedilatildeo ou de
84
escalar o Olimpo sem duacutevida Era patente que Rui Barbosa escrevendo ao Diaacuterio da
Bahia em 1881 referia-se com tais palavras ao problema da escravidatildeo A atualidade
que o falecimento de Castro Alvez ganha atraveacutes da pauta abolicionista demonstra o
caraacuteter poliacutetico dessas efemeacuterides ldquoculturaisrdquo ldquoOrardquo continua Barbosa ldquoo elemento
servil eacute o cunho negro de toda a nossa histoacuteria e a extinccedilatildeo do elemento servil seraacute a
fimbria luminosa de todo o nosso futurordquo238 A geraccedilatildeo de 1870 foi pioneira em um
novo tipo de jornalismo de opiniatildeo ndash ou na linguagem da eacutepoca publicismo ndash o qual
natildeo desconhecia a teacutecnica da efemeacuteride Nas paacuteginas dessa imprensa em ascensatildeo
catalizavam-se discursos poliacutetico-morais nos quais a escravidatildeo era vista como a ldquoa
ignomiacutenia que barbariza e desumana o escravo conspurca a famiacutelia livre () perverte
irreparavelmente a educaccedilatildeo de nossos filhos () explica todos os defeitos do caraacuteter
nacional toda a indolecircncia do nosso progressordquo O orador natildeo lanccedilava palavras ao
vento proselitismo sem alvo mas marcava-o com tons pedagoacutegicos claros Seu
diaacutelogo era para com a ldquobela geraccedilatildeo novardquo os moccedilos suscetiacuteveis de ldquoressurreiccedilatildeo ou
de progressordquo Para eles Barbosa ensinava que se ldquotodas as sombras do nosso
horizonterdquo podem ser explicadas pela escravidatildeo o abolicionismo jaacute havia se tornado
a ldquoexpressatildeo da mais inflexiacutevel das necessidades sociaisrdquo239
Concentrar os esforccedilos intelectuais no trabalho da memoacuteria abolicionista na
luta contra esse peso do passado teve como efeito colateral ndash de um ponto de vista
atento agraves foacutermulas de identificaccedilatildeo nacional ndash a relativizaccedilatildeo do indianismo das
geraccedilotildees anteriores A leitura moral que encabeccedila a lista de preocupaccedilotildes dos
oficiantes quando em vez eacute uma forma de associar o Brasil a sua heranccedila lusitana
deixando por ora suspensos certos aspectos americanos de nossa formaccedilatildeo ldquoNoacutes
somos brasileiros natildeo somos guaranisrdquo escreveu Joaquim Nabuco ldquoa liacutengua que
falamos ainda eacute portuguesardquo Em sua polecircmica com Joseacute de Alencar o abolicionista
reconhecia com certo desdeacutem que estudar os ldquodialetos selvagens a religiatildeo grosseira
os mitos confusos os costumes rudesrdquo dos iacutendios brasileiros era prestar um serviccedilo agraves
progresso representam a alianccedila da generosidade com a forccedila o grande desinteresse e as grandes
aspiraccedilotildees Mas designando para esta homenagem ao poeta o uacuteltimo dentre voacutes arriscastes-vos a uma
temeridade que me deixou perplexo enquanto natildeo sondei intimamente o vosso desiacutegnio Agora sim
que o percebo Natildeo foi um excesso de inexperiente confianccedila foi pelo contraacuterio uma deliberaccedilatildeo
maduramente refletida para demonstrar a profundeza da influecircncia da obra desse extraordinaacuterio
representante da nossa poesia a voz que a houvesse de atestar devia partir natildeo dos cimos mais
proacuteximos do astro deslumbrados pelo seu esplendor escaldados pela sua irradiaccedilatildeo mas caacute da
humildade do vale que de tatildeo longe o contempla Neste sentido a infimidade da escolha foi um novo
tributo ao nome que comemorais e a este tiacutetulo a vossa designaccedilatildeo acertou Idem I 238 Idem p XXIV 239 Idem p XXIV
85
artes e agrave ciecircncia Mas o que lhe parecia impossiacutevel era ldquoquerer fazer dos selvagens a
raccedila de cuja civilizaccedilatildeo nossa literatura deve ser o monumentordquo240
E que monumentos sobrariam senatildeo aqueles que comeccedilam por enaltecer a
liacutengua portuguesa e com ela o poeta renascentista Em Camotildees e os Lusiacuteadas texto
de 1872 Nabuco jaacute oferecia sua resposta escolhendo o poema eacutepico lusitano para
objeto de seus estudos acreditava ter tomado ldquoum assumpto nacionalrdquo Os versos
camonianos ldquosatildeo a obra prima da literatura portugueza que eacute a nossardquo Bem diferente
era aquela ldquolitteratura inspirada pela vida errante das tribus primitivasrdquo a qual natildeo
teria direito a se chamar nacional ldquoA poesia poacutede idealisar o caracter o coraccedilatildeo as
guerras a civilizaccedilatildeo ateacute drsquoesses ferozes habitantes de nossos sertotildees mas a poesia
que se impuzer essa aliaacutes bella missatildeo seraacute uma poesia phantasticardquo concluiu241
Em Portugal Teoacutefilo Braga cofundador da revista O Positivismo e bem ao
contraacuterio de Nabuco republicano convicto torna-se a figura maacutexima na organizaccedilatildeo
do tricentenaacuterio Seus trecircs artigos intitulados precisamente O Centenaacuterio de Camotildees
em 1880 apresentavam a ambiccedilatildeo de aproveitar a crise das instituiccedilotildees monaacuterquicas
como mote para uma verdadeira ldquorevivescecircncia nacionalrdquo Seu ldquoComitecirc de Salvaccedilatildeo
Puacuteblicardquo com o auxiacutelio de Ramalho Ortigatildeo foi a vanguarda das comemoraccedilotildees
camonianas atraindo em pouco tempo a atenccedilatildeo das mais prestigiadas instituiccedilotildees
de ensino do paiacutes e finalmente do proacuteprio governo242 Seu objetivo era
destacadamente moral e poliacutetico em Os centenaacuterios como synthese affectiva nas
sociedades modernas texto de 1884 Braga oferecia um balanccedilo e um prognoacutestico a
respeito do fenocircmeno comemorativo Por meio da relaccedilatildeo entre os grandes homens e
suas paacutetrias os centenaacuterios eram vistos fundamentalmente como mateacuteria difusora da
nacionalidade243 Exaltar os ldquovultos histoacutericosrdquo da paacutetria lusitana natildeo era mateacuteria
desconhecida do notoacuterio erudito Em 1881 com a colaboraccedilatildeo de diversos autores
entre eles Oliveira Martins Braga havia jaacute lanccedilado o seu Plutarcho Portuguez244
240 COUTINHO Afracircnio (Org) A polecircmica Alencar-Nabuco Rio de Janeiro Tempo Brasileiro
1978 p 190 241 NABUCO Joaquim Camotildees e os Lusiacuteadas Rio de Janeiro Tipographia Imperial do Instituto
Artiacutestico 1872 p 10-12 242 Aqui trabalho a partir de CABRAL Alexandre Luiacutes de Camotildees Poeta do Povo e da Paacutetria Notas
oitocentistas ndash I Lisboa Horizonte 1980 243 BRAGA Teoacutefilo Os Centenaacuterios como synthese affectiva nas sociedades modernas Porto
Typographia de AJ da Silva Teixeira 1884 Para quem ldquoO Centenaacuterio de Camotildees neste momento
histoacuterico e nesta crise dos espiacuteritos teve a significaccedilatildeo de uma revivescecircncia nacionalrdquo p 10 244 BRAGA Teoacutefilo Plutarco Portuguez collecccedilatildeo de retratos e biographias dos principaes vultos
histoacutericos da civilizaccedilatildeo portugueza Desenhos de Julio Costa e phototypias Emilio Biel amp Cia
86
Nessa obra os grandes homens uniam-se agrave paacutetria cuja siacutentese feliz era a proacutepria
histoacuteria Histoacuteria costurada natildeo pelas estrateacutegias dos biografados face agrave fortuna mas
atraveacutes dos serviccedilos ndash morais e poliacuteticos ndash que renderam sentido civilizatoacuterio agrave paacutetria
paacutetria sentida na leitura da bios de seus arquitetos como uma comunidade afetiva
instituiccedilatildeo e entidade quase sagrada amada e respeitada por seus cidadatildeo e protegida
no coraccedilatildeo de todos os verdadeiros republicanos245
A atenccedilatildeo agrave efemeacuteride a data redonda parecia sistematizar as estrateacutegias
literaacuterias e poliacutetico-morais do autor Um ano antes do aniversaacuterio de Camotildees Braga jaacute
preparava o terreno para seu proselitismo republicano em um periacuteodo que se estende
de 1879 a 1891 lanccedila as Soluccedilotildees Positivas da Repuacuteblica Portugueza seguidas do
Programma do Partido Republicano Portuguez Nesses textos procurava destituir
todo conteuacutedo socialista (ao estilo da juventude de Antero de Quental) do projeto
republicano ldquoadaptando-o dessa forma agrave realidade social portuguesa afim derdquo nas
palavras de um comentador ldquocaptar as simpatias de uma pequena e meacutedia burguesiardquo
246 Novamente o officiant ndash nas provaacuteveis vestes do magistrado de Herculano ndash busca
uma soluccedilatildeo de compromisso como mecanismo moral frente agraves amplas audiecircncias
No presente caso a vontade poliacutetica da memoacuteria intentava cada vez mais unir o topos
da decadecircncia agrave proacutepria imagem da monarquia247
Foi nesse contexto ndash agravado pelo Ultimatum britacircnico de 1890 ndash que
Oliveira Martins em artigo publicado no Jornal do Commercio datado de 1894
transportou a discussatildeo para o outro lado do Atlacircntico248 Na peccedila o puacuteblico carioca
pocircde confrotar-se com o questionamento de inegaacutevel sabor decadentista sobre se
havia ou natildeo recursos ldquointelectuais morais sobretudo econocircmicosrdquo para que os
portugueses sobrevivessem como povo autocircnomo em suas fronteiras nacionais Com
as potecircncias europeias arquitetando a partilha do impeacuterio lusitano Martins
perguntava-se ainda se ldquosalvar-nos-aacute no Seacuteculo XIX Angola como nos salvou o
collaboradores drsquoeste volume Theophilo Braga Oliveira Martins Joaquim Vasconcellos Julio de
Mattos e Paiva e Pona Pocircrto J Costa E Biel amp Cia 1881 245 CATROGA Fernando Paacutetria naccedilatildeo e nacionalismo In SOBRAL Joseacute Manoel VALA Jorge
(Org) Identidades nacionais inclusatildeo e exclusatildeo Lisboa ICS 2010 246 RODRIGUES op cit p 97 247 ldquoEssa identificaccedilatildeo entre monarquia e decadecircncia conduziria por outro lado e de forma inevitaacutevel
a uma outra noccedilatildeo que apresentava a Repuacuteblica como a nova foacutermula de salvaccedilatildeo nacional ()rdquo
RODRIGUES op cit p 94-95 248 Em 11 de janeiro de 1890 o governo inglecircs demanda a retirada das tropas portuguesas estacionadas
no territoacuterio do atual Zimbaacutebue Lisboa acata as ordens O sonho lusitano de unir suas duas uacuteltimas
grande colocircnias ndash Moccedilambique e Angola ndash termina e para muitos natildeo o que culpar senatildeo o
entreguismo dos monarquistas O episoacutedio leva agrave queda do governo nomeaccedilatildeo de um novo ministeacuterio
e oferece municcedilatildeo agrave causa republicana
87
Brasil no seacuteculo XVIIIrdquo249
A decadecircncia era um topos poliacutetico-moral entre beletristas eruditos e filoacutesofos
da segunda metade do seacuteculo XIX Sua temaacutetica chegava ao Brasil no ritmo dos
vapores europeus pelos ensaios da Fraserrsquos da Quaterly ou da Westminster ainda
atraveacutes das paacuteginas da Revue des Deux Mondes Disponiacutevel na corte em Satildeo Paulo e
na Bahia o quinzenal francecircs natildeo era apenas muito lido no Impeacuterio do Brasil
mantendo-se igualmente como uma referecircncia constante em artigos de jornais e
discursos puacuteblicos Certa vez o conselheiro Saraiva admitiu que natildeo lia outra coisa
atitude que lhe rendeu gracejos no que foi defendido pelo proacuteprio imperador ldquoeacute
quanto bastardquo bradou D Pedro II250 Mas natildeo bastava O topos da decadecircncia
adentrava o repertoacuterio poliacutetico-moral dos homens de letras brasileiros jaacute contavam
algumas deacutecadas igualmente por meio do filtro da geraccedilatildeo portuguesa de 1870 Com
o centenaacuterio de Camotildees ele soacute ganhou mais forccedila Em Teoacutefilo Braga temos o modelo
republicano da leitura drsquoOs Lusiacuteadas de volta agrave origem ndash natildeo mais vista na Idade
Meacutedia como em Herculano mas no renascimento e na expansatildeo ultramarina ndash
declamar os versos eacutepicos de Camotildees era como reacender as chamas da gloacuteria em um
tempo de escuridatildeo251
No Brasil tanto republicanos quanto monarquistas foram bastante ativos na
comemoraccedilatildeo do centenaacuterio camoniano Entre eles surgiram diversos Camotildees todos
de alguma forma prontos para o combate Afonso Celso Jr e Miguel Lemos vieram
somar facetas ao grande-homem-poeta enquanto Belivaacutequoa e Martins Jr prestavam-
lhe em conferecircncias e poemas todo o tipo de homenagens Em junho de 1880 a
revista Brasileira dedicou-lhe um nuacutemero e mais tarde em 1885 a Igreja Positivista
ergueria um busto do poeta252 Se em Portugal as comemoraccedilotildees em torno do autor de
Os Lusiacuteadas ganhavam feiccedilotildees republicanas de ofensa agrave monarquia no Brasil elas
apareciam como um ataque ndash republicano ou natildeo ndash agrave velha leitura indianista de uso
conservador e afastando-se dela reafirmava a heranccedila lusitana Por outro lado
249 MARTINS Oliveira Portugal Contemporacircneo 3ordf Ediccedilatildeo Lisboa Antocircnio Maria Pereira 1895 pp
XII-XIV 250 SODREacute Werneck Histoacuteria da Imprensa no Brasil Rio de Janeiro 1966 Civilizaccedilatildeo Brasileira
Apud ALONSO op cit p 53 251 Nas palavras de Eduardo Lourenccedilo Braga promovia uma ldquoutilizaccedilatildeo partidaacuteria da sua gloacuteria posta
ao serviccedilo dos primeiros alvores republicanosrdquo Ver LOURENCcedilO 1999 p 60 252 ALONSO op cit p 288-289 Para a autora ldquoEssas efemeacuterides culturais tinham clara conotaccedilatildeo
poliacutetica As figuras selecionadas compunham uma visatildeo da tradiccedilatildeo nacional que se afastava do cacircnon
indianista da elite imperial e representavam uma ruptura em relaccedilatildeo aos esquemas de legitimaccedilatildeo que
os saquaremas tinham construiacutedo para a sociedade estamental e para o sistema poliacutetico restritivordquo p
290
88
celebrar Camotildees Bonifaacutecio o velho e ateacute certo ponto Tiradentes era expediente que
encontrava na tradiccedilatildeo nacional jaacute acostumada a esses vultos certa legitimidade
moral para campanhas que possuiacuteam ndash como no caso da escravidatildeo ndash claros limites
legais A vontade poliacutetica da memoacuteria aparecia mais uma vez indissociaacutevel de seus
instrumentos morais de enquadramento
23 Catalisadores do discurso moralista
ldquoUma dramaacutetica duacutevida sobre o futuro do paiacutes e uma lei de alternacircncia de
grandezadecadecircncia como motor da histoacuteria nacionalrdquo253 Assim Antoacutenio Machado
Pires resume seu estudo sobre a Ideacuteia de Decadecircncia na Geraccedilatildeo de 70 em Portugal
As relaccedilotildees da geraccedilatildeo de Eccedila de Queiroz Oliveira Martins Teoacutefilo Braga e Antero
de Quental com o Brasil eram relativamente estreitas254 Seus diaacutelogos atravessavam
o oceano em obras publicadas atraveacutes de mateacuterias de jornal assinadas drsquoaleacutem mar e
natildeo esqueccedilamos uma intensa correspondecircncia Diversas pautas cairiam bem ao topos
decadentista se em Portugal ele jaacute havia aparecido tendo como causa o catolicismo
contrareformado e a longevidade do absolutismo no Brasil os liberais republicanos
poderiam reeditar-lhe os argumentos Algo como a superaccedilatildeo de uma sociedade e de
uma organizaccedilatildeo poliacutetica que jaacute natildeo andam mais em harmonia ambas condenadas agrave
ldquocorrupccedilatildeordquo ora entendida como resultado da ldquoprostraccedilatildeo moral a que nos arrastou o
absolutismo praacutetico sob as vestes do liberalismo aparenterdquo255
Para os monarquistas liberais mais iacutentimos dos ciacuterculos de poder o topos da
decadecircncia ndash inseparaacutevel de certo juiacutezo teleoloacutegico ndash era estimulado natildeo por uma
criacutetica ao sistema poliacutetico mas pela condenaccedilatildeo moral da escravidatildeo Em uma
campanha que beirava os limites da legalidade o discurso moralista suas atribuiccedilotildees
de certo e errado viacutecios e virtudes ndash por vezes evocados a partir dos costumes cristatildeos
ndash preparava um terreno comum de inteligibilidade e legitimidade para com a tradiccedilatildeo
imperial Natildeo tinha sido o bastante para o velho Bonifaacutecio e seu ldquocancro mortalrdquo eacute
verdade mas a proacutepria valorizaccedilatildeo de seu vulto jaacute abria um novo precedente
memorial
A escravidatildeo essa ldquoverdadeira mancha de Caim que o Brasil traz na fronterdquo
253 PIRES 1992 p 26 254 Sobre essa questatildeo ver BERRINI 2003 255 Manifesto Republicano 1870 In PESSOA R C A ideia republicana no Brasil atraveacutes de
documentos Satildeo Paulo Alfa-Ocircmega 1973 p 70
89
era tambeacutem indubitaacutevel catalizadora do discurso moral256 No Brasil de meados do
seacuteculo XIX a moral aquilo que eacute relativo aos costumes era um terreno dominado
ora pela referecircncia aos ancestrais ora pelos ensinamentos do cristianismo Ou
Bonifaacutecio o velho natildeo foi exilado logo apoacutes insultar as elites escravocratas
declarando com todas as palavras que seus membros natildeo eram verdadeiros cristatildeos
ldquoHa de espantarrdquo ousou dizer agrave Assembleia Constituinte ldquoque hum trafico tatildeo contra
aacutes Leis da moral humana e aacutes santas maximas do Evangelho e ateacute contra as leis de
huma satildea poliacutetica dure ha tantos seculos entre os homens que se dizem civilizados e
christatildeosrdquo Ao que ele intreacutepido completaria ldquomentem nunca o focircramrdquo257
Mesmo argumentos nitidamente econocircmicos natildeo se esqueciam de acessar
dentro de um amplo repertoacuterio disponiacutevel de conceitos e ideias a ordem da moral
Quintino Bocaiuacuteva liberal republicano comentando a crise do campo natildeo deixou de
fazer o julgamento de um paiacutes escravocrata ldquomoral e economicamente gangrenado por
essa instituiccedilatildeo fatalrdquo258 Natildeo era apenas uma palavra arbitraacuteria ou estiliacutesticamente
inclusa em um rol de consideraccedilotildees negativas a respeito das poliacuteticas monaacuterquicas
Em outra ocasiatildeo ao debater poliacuteticas de imigraccedilatildeo capazes de trazer braccedilos livres ao
paiacutes Bocaiuacuteva admitiu que ldquocada vez que mais estudo e aprecio as coisas da nossa
decadecircncia moral e dessa lacircnguida frouxidatildeo que enerva as almas () de nossa
populaccedilatildeordquo seus olhos encontravam ldquoa escravidatildeo como origem como a sede como
o foco maldito donde se exala esse miasmo atrofiadorrdquo259 O mundo mudava os
poderes tradicionais esboroavam-se e no espaccedilo de uma vida natildeo ldquoexiste ainda
organizado nenhum poder moralrdquo260 Conceito que garantia pontes de inteligibilidade
entre conservadores liberais e republicanos a moral carregava mais do que isso
trazia tambeacutem uma chave explicativa para a compreensatildeo da dinacircmica entre
decadecircncia e progresso Como resumiu Nabuco a escravidatildeo deve encontrar seu
teacutermino porque ldquoassim como arruiacutena economicamente o paiacutesrdquo ldquocorrompe-lhe o
caraacuteter desmoraliza-lhe os elementos constitutivosrdquo acostuma-nos ao servilismo nos
faz desprezar o trabalho manual retardando a imigraccedilatildeo e ldquoa apariccedilatildeo das induacutestriasrdquo
Ela encobre ldquoos abismos da anarquia moral de miseacuteria e destituicatildeo que do Norte ao
256 NABUCO Joaquim O Abolicionismo Ediccedilotildees do Senado Federal Vol 7 Brasiacutelia 2003 p 23 257 ANDRADA E SILVA 1825 p 20 258 BOCAIUacuteVA Quintino A crise da lavoura In SILVA E (org) Ideacuteias poliacuteticas de Quintino
Bocaiuacuteva BrasiacuteliaRio de Janeiro Senado FederalCasa Rui Barbosa 1986 p 184 259 BOCAIUacuteVA 3081870 Colonizaccedilatildeo Asiaacutetica Cartas a Nicolau Moreira In SILVA E (org)
1986 260 BOCAIUacuteVA Quintino A questatildeo social In SILVA 1986 p 478
90
Sul margeiam nosso futurordquo Em Nabuco o argumento moral reorientava-se com
desenvoltura do passado para o futuro esse ldquopeso enorme que atrasa o Brasilrdquo eacute o
mesmo fardo que impedia nosso progresso261
Os argumentos de Bonifaacutecio e Nabuco poderiam ser inscritos como devedores
de uma tradiccedilatildeo moralista e providencial de criacutetica agrave escravidatildeo Em 1863 Goldwin
Smith jornalista e historiador britacircnico radicado nos Estados Unidos ministra uma
conferecircncia depois publicada em panfleto intitulada Does the Bible Sanction
American Slavery Smith partia do ponto de vista confessional de que a ldquoBiacuteblia tem
muita relaccedilatildeo com a poliacutetica e a ciecircncia () e com tudo o que adentra a vida moral do
homemrdquo262 O amor de Deus acreditava move todos os tipos de trabalhos que nos
levam a ldquodescoberta de verdades cientiacuteficas e filosoacuteficasrdquo ldquoAssimrdquo continua ldquoem
seu movimento avante o progresso da natureza humana tem como condiccedilatildeo
transformar-se em semelhanccedila a seu Criadorrdquo Em suma ldquoa Biacuteblia reconhece o
progressordquo263 Fomos feitos agrave imagem e semalhanccedila do demiurgo e continuamos a ser
feitos assim Mas o Livro tambeacutem observa no Velho Testamento o trabalho
compulsivo como instituiccedilatildeo tradicional do Povo Escolhido tambeacutem faz menccedilatildeo ao
captivos no Novo Testamento sem incutir-lhe algum juiacutezo edificante Entretanto
mesmo que o coacutedigo de leis daquelas ldquorudes instituiccedilotildees de uma naccedilatildeo primitiva
incluindo a escravidatildeordquo natildeo tenham se modificado por um uacutenico milagre eles o
foram pela accedilatildeo paulatina dos propoacutesitos divinos264 A providecircncia como no catoacutelico
Bossuet ordenava o mundo atraveacutes de seus desiacutegnios Goldwin em uma intervenccedilatildeo
moral na poliacutetica interna de uma Ameacuterica fraturada em duas propotildee demonstrar seu
argumento anti-esclavagista a partir do recurso a exemplos retirados da histoacuteria sacra
e secular chegando a utilizar um procedimento comum em seu tempo recorre agrave crise
do escravismo romano lido a partir do diagnoacutestico de uma crise moral ora citando
261 NABUCO O Abolicionismo op cit p 110 262 ldquoThe Bible has much to do with politics and science and with everything that enters as all parts of
our social and intellectual state do enter into the moral life of manrdquo SMITH Goldwin Does the Biblie
Sanction American Slavery Oxford amp London John Henry and James Parker 1863 p 3 263 The love of God and Man () moves the high and self-devoted labours which have led to the
discovery of scientific and philosophic truth And thus in its onward progress human nature is by the
very condition of that progress changed Into the likeness of its Maker ()The Bible recognises
Progress Idem p 3-4 Grifos meus 264 ldquoThis code of laws takes the rude institutions of a primitive nation including Slavery as they stand
not changing society by miracle which as has been said before seems to have been no part of the
purposes of God ()while it takes these institutions as they stand it does not perpetuate them but
reforms them mitigates them and lays on them restrictions tending to their gradual abolitionrdquo Idem
Ibidem
91
Gibbon ora citando Mommsen265
A perfectibilidade pressupotildee o movimento constante da alma Ela eacute anaacuteloga ao
progresso que ndash ldquoreconhecido pela Biacutebliardquo ndashtransformava a natureza humana em algo
cada vez mais perfeito com Deus Uma busca inquieta que garantia a simetria entre
ordem do tempo e ordem da natureza pelo trabalho da matildeo invisiacutevel da providecircncia
divina sobre os povos escolhidos A criacutetica moral agrave escravidatildeo encontra nas palavras
de Godwin Smith um inusitado aliado no providencialismo protestante
A tese de Goldwin Smith natildeo era na verdade em nada original mas
acompanhava um movimento cultural em liacutengua anglo-saxatilde que tinha como um de
seus corolaacuterios a criaccedilatildeo de interdiccedilotildees morais ao trabalho escravo266 Unclersquos Tom
Cabine o romance sentimental sobre o escravo que no leito de morte perdoa os
capatazes que o torturaram talvez tenha sido o maior best seller do seacuteculo XIX
Famosa tambeacutem no Brasil a obra de Harriet Stowe foi aqui encenada diversas vezes
no final do seacuteculo XIX267 Tatildeo cedo quanto em 1793 Noah Webster perguntava-se
referindo agrave escravidatildeo se ldquouma grande revoluccedilatildeo nos governos do velho mundo natildeo eacute
um evento desejaacutevelrdquo268 Seu texto de pouco mais de 50 paacuteginas trazia um painel da
degradaccedilatildeo moral das populaccedilotildees cativas em Connecticut apresentando a escravidatildeo
como ato ldquobarbaro e perversordquo clara ldquoviolaccedilatildeo das leis da natureza e da
sociedaderdquo269 Mais tarde com a Guerra de Secessatildeo o fluxo de panfletos livros e
artigos abolicionistas provenientes dos Estados do norte encontra terreno fertil no
clima abolicionista de parte das elites ilustradas brasileiras
No Abolicionista de Joaquim Nabuco novamente seraacute Theodor Mommsen
quem aparece dando as cartas Eacute na Histoacuteria Romana que o liberal brasileiro vai
buscar o paralelo que faltava ao seu diagnoacutetico de crise moral Nada muito diferente
do expediente de Goldwin que igualmente e em plena segunda metade do seacuteculo
XIX foi buscar na crise do escravismo romano ndash lido atraveacutes do mesmo historiador
alematildeo ndash sua comparaccedilatildeo para com o caso americano ldquoOnde quer que se a estuderdquo
265 ldquoBut the Roman world was doomed and it was doomed partly because the character of the upper
classes had been deeply and incurably corrupted by the possession of a multitude of slavesrdquo Idem p
124Mommsen eacute citado na paacutegina 63 jaacute Gibbon aparece um pouco depois na paacutegina 90 266 Para uma perspectiva mais abrangente ver DRESCHER Seymour Capitalism and Antislavery
British Mobilization in Comparative Perspective New York amp Oxford Oxford University Press 1987 267 Ver ALONSO op cit p 190 268 ldquoAnd let humanity and benevolence decide whether liberty or slavery is the most eligible and
whether a general revolution in the governments of the old world is not a desirable eventrdquo WEBSTER
Noah Effects of slavery on morals and industry Cornell University Library 1793 p 56 269 ldquothat the practice of enslaving their brethren of the human race is barborous and wicked and that it
is a violation of the laws of nature and societyrdquo Idem p 7
92
seja na Roma antiga na Ameacuterica do Norte ou no Brasil ldquoa escravidatildeo passou sobre o
territoacuterio dos povos que a acolheram como um sopro de destruiccedilatildeordquo270 Entre a Roma
de Mommsen e o Brasil e as Colocircnias de Oliveira Martins Nabuco constroacutei um
argumento que dispotildee toda a naccedilatildeo brasileira como viacutetima da escravidatildeo ldquoesse preccedilo
quem o pagou e estaacute pagando natildeo foi Portugal fomos noacutesrdquo271
Deixe-mos as histoacuterias natildeo paguemos o preccedilo do perdatildeo esqueccedilamos tudo
queimemos os registros em uma anistia irrestrita que promova a ldquoreconciliaccedilatildeo de
todas as classesrdquo Se o povo brasileiro necessitava de um ldquooutro ambienterdquo no qual
poderia ldquodesenvolver-se e crescer em meio inteiramente diversordquo em nome da ordem
e da ldquomoralizaccedilatildeo de todos os interessesrdquo o caminho a ser percorrido para Nabuco
era natildeo apenas o do ldquoesquecimento da escravidatildeordquo mas o de uma trilha que apagasse
ldquoateacute mesmo a recordaccedilatildeo da luta em que estamos empenhadosrdquo272 Sem as histoacuterias
como ficariam nossa moral e nossa cosmologia Libertar os captivos deslembrar seus
seacuteculos de trabalhos forccedilados entregaacute-los nuacutes de passado e de pertences ao seio da
paacutetria sem origem e de duvidoso destino natildeo seria o mesmo que olvidaacute-los como
cidadatildeos
Anos depois jaacute na repuacuteblica Rui Barbosa completaria os planos de Nabuco
ateando fogo aos registros do cativeiro A integraccedilatildeo da heranccedila afro-brasileira ndash de
seu passado e de seus costumes ndash dentro da federaccedilatildeo da memoacuteria nacional parecia de
fato fora de cogitaccedilatildeo Era preciso libertar para melhor assimilar Nisso a posiccedilatildeo do
grupo de Miguel Lemos era tanto emblemaacutetica Os positivistas tambeacutem natildeo se
furtavam em condenar a escravidatildeo em tons morais O trabalho compulsoacuterio
derrubava as distinccedilotildees entre o produtor e o produto do trabalho reificando o
primeiro agrave imagem do segundo e degradando por fim o proacuteprio senhor Alheios ao
direito exilados da cidadania a raccedila amante natildeo era parte legiacutetima da sociedade ciacutevil
embora ainda assim ela natildeo cessasse de angariar o usofruto de seu trabalho por meio
da instituiccedilatildeo criminosa da escravidatildeo
Esse era um argumento que mesmo em Franccedila poderia ser recuado a
Condorcet ldquode duas uma ndash ou natildeo haacute moral ou eacute preciso acceitar como um principio
que o crime seraacute sempre um crime muito embora a opiniatildeo o natildeo estigmatise e a lei
270 NABUCO O Abolicionista op cit p 139 271 Idem p 120 272 Idem p 206
93
do paiz o tolererdquo273 Traduzido em 1881 por Aaratildeo Reis engenheiro pela Politeacutecnica e
simpatizante dos positivistas a Escravidatildeo dos Negros de Condorcet veio unir-se ao
repertoacuterio do combate abolicionista como em Ciacutecero ainda mais uma vez poderiacutea-se
dizer que ldquonem tudo que eacute permitido eacute honesto nem tudo que eacute legal eacute moralrdquo (De
Officis 325667) Agora o raciociacutenio colocava em oposiccedilatildeo na praacutetica pelo menos
duas leituras morais legitimatoacuterias distintas a abolicionista secular e a escravista
catoacutelica ndash e nisso era ainda mais agressivo do que os argumentos providencialistas da
tradiccedilatildeo moralista anglo-saxatilde que via ordens de reparaccedilatildeo divina na marcha agrave
perfectibilidade
Se a escravidatildeo era um crime ldquodegradanterdquo o abolicionismo soacute poderia
encontrar o rumo da criacutetica das instituiccedilotildees que lhe davam suporte como na tradiccedilatildeo
liberal o Estado e a Igreja foram seus alvos preferenciais Os poderes seculares e
espirituais seriam senatildeo responsaacuteveis ao menos cuacutemplices da ldquomonstruosidade
social originada da infame opressatildeo que a raccedila inteligente exerceu sobre a raccedila
amanterdquo274 Embora legal o trabalho compulsoacuterio era certamente ilegiacutetimo pois
imoral
A moral em jogo no entanto natildeo era a dos negros A luta dava-se entre duas
leituras ocidentais contrastantes dispostas em conflito ainda talvez para usar o
vocabulaacuterio de Chateaubriand a evidecircncia tardia do choque entre dois ldquosistemasrdquo As
memoacuterias em cena aquelas que possuiacuteam meios de assumir uma franca disputa
poliacutetica tambeacutem natildeo tinham origem na Aacutefrica sequer na senzala O projeto
positivista de naccedilatildeo natildeo planejava tampouco incluir espaccedilos de revindicaccedilatildeo
identitaacuteria afro-brasileira Seus costumes natildeo seriam bem vindos Tatildeo logo os
captivos fossem libertos os sacerdotes da humanidade assumiriam a tarefa de
arrebanhaacute-los em nome da razatildeo e da eugenia da raccedila A ciecircncia positiva fazia
acreditar que a miscigenaccedilatildeo entre negros iacutendios e europeus ndash entre a ldquoraccedila
inteligenterdquo a ldquoraccedila amanterdquo e a ldquoraccedila nativardquo ndash permitiria a sobrevivecircncia dos
caracteres mais evoluiacutedos de cada etnia ao mesmo tempo em que eliminaria seus
aspectos nocivos275
Parte do repertoacuterio poliacutetico disponiacutevel aos publicistas da geraccedilatildeo de 1870
273 CONDORCET A escravidatildeo dos negros (reflexotildees) Traduccedilatildeo do engenheiro civil Aaratildeo Reis Rio
de Janeiro Typ De Serafim Joseacute Alves 1881 p 23 274 LEMOS Miguel (Org) O positivismo e a escravidatildeo moderna Rio de Janeiro Igreja Positivista do
Brasil 1884 p 21 275 Idem p 38
94
deste ou do outro lado do Atlacircntico os argumentos morais quando apropriados por
uma vontade poliacutetica natildeo se furtavam em orientaacute-la Desde os antigos ndash como um dos
princiacutepios fundamentais daquilo que os modernos chamariam de memoacuteria ndash a moral
subscrita nos costumes ancestrais entraria em franca contradiccedilatildeo caso o oportunismo
do orador transformasse-a em instrumento passivo A sua proacutepria evocaccedilatildeo jaacute suscita
no coraccedilatildeo das audiecircncias a imagem da beleza moral o viacutecio e a virtude o bom e o
mau o exemplo a imitar ou combater A mudanccedila de regime poliacutetico tampouco a
aboliccedilatildeo abalaram o topos da decadecircncia nem menos ainda a argumentaccedilatildeo moral
Esses continuariam a ser acessados e apropriados o tanto quanto permanecerem
oportunos
24 Da crise moral ao grande jubileu
Na Ameacuterica portuguesa desde a proclamaccedilatildeo de 1889 ateacute ao menos 1898 jaacute
no governo Campos Sales o novo regime republicano enfrentava sucessivos
transtornos Poliacutetica financeira malagrada Encilhamento revoltas messiacircnicas
confrontos entre militares e civis esse clima de instabilidade poliacutetica natildeo deixou de
ser interpretado atraveacutes de matizes morais dentre as quais se fez sentir os efeitos do
topos da decadecircncia Em 1900 a Revista do Instituto Histoacuterico e Geograacutephico de Satildeo
Paulo publica ndash como vatildeo fazer diversas instacircncias afiliadas ao IHGB ndash um nuacutemero
dedicado agrave comemoraccedilatildeo do quadricentenaacuterio da descoberta de Cabral Joatildeo Vampreacute
folclorista filoacutelogo e criacutetico literaacuterio sergipano escreve sobre as Festas Tradicionais
brasileiras Por tradiccedilatildeo ele entendia todo um conjunto de ldquoelementos da morfologia
universal das literaturasrdquo produto resultante do sincretismo da ldquoemotividade
sensorialrdquo que ldquonos conduz agraves relaccedilotildees entre a natureza coacutesmica e a moralrdquo 276 O
objetivo das tradiccedilotildees ensinava Vampreacute seria ldquoo bello o idealrdquo tomado ainda a
partir da definiccedilatildeo tomista ldquoresplendecircncia formae super partes materiae
proportionatas vel super diversas vires vel actionesrdquo 277 Objetivo que no caso
brasileiro estaria longe de ser alcanccedilado em nosso paiacutes ldquoo desprezo pelo passadordquo
demonstraria uma ldquodegradaccedilatildeo intelectual denota no individuo e no povo um estado
de selvaacutetica rudezardquo Seu diagnoacutestico apontava que
276 VAMPREacute Joatildeo Festas Tradicionais Revista do Instituto Histoacuterico e Geograacutephico de Satildeo Paulo
Tomo VI 1900-1901 p 87-88 277 Na traduccedilatildeo do autor ldquoO Bello eacute o esplendor comunicado pela forma aacutes diversas partes da mateacuteria
ou a vaacuterios princiacutepios a varias acccedilotildees harmonicamente unidas em um mesmo todordquo Idem p 86
95
Tudo quanto na nossa terra tornava a existencia heroica
e bella tudo quanto a envolvia em um nimbo de doce e
meiga poesia tudo quanto na vida punha uma nota
alacre de vibrante emoccedilatildeo ou de cariciosa e amoravel
meiguice tudo isto desappareceu para dar logar aacute peor
das situaccedilotildees moraes - a de uma patria abatida
desvirilisada soacute porque impertinentemente se querem
apagadas a luz redemptora das tradicccedilotildees as nossas
lendas mais santas278
Nas lareiras da naccedilatildeo natildeo ardiam mais sob os cuidados de seus respectivos
nuacutecleos familiares o fogo das tradiccedilotildees A frustraccedilatildeo das expectativas para com a
repuacuteblica tatildeo sublinada pela historiografia somava-se a uma leitura conservadora que
via a necessidade de se valorizar as experiecircncias nacionais ndash sob a eacutegide do passado
da memoacuteria da tradiccedilatildeo ndash como forma de reparaccedilatildeo moral Evidecircncias desse
discurso Vampreacute toma as palavras de Herculano veste a toga ciacutevica e reafirma
convicto que ldquoo mister de recordar o passado () eacute uma espeacutecie de magistratura
moral eacute um sacerdoacuteciordquo279 Sem a rememoraccedilatildeo de nossas heranccedilas as ldquolembranccedilas
mais queridas da famiacutelia desapparecemrdquo fadadas a um esquecimento que ndash segundo
Vampreacute em sua expliacutecita filiaccedilatildeo a Spencer ndash jaacute estava no entanto sociologicamente
determinado280
Herbert Spencer foi o porta-voz por excelecircncia do clima otimista que dos anos
de 1850 a 1880 justificava em seu paiacutes a crenccedila no progresso ndash mas ia aleacutem Seu
projeto intelectual ambicionava reabilitar uma filosofia da histoacuteria reunindo
prerrogativas do espiacuterito e da natureza em um quadro nomoloacutegico uacutenico Sua lei
ldquoToda forccedila ativa produz mais do que uma mudanccedila ndash toda causa produz mais do que
um efeitordquo281 Seu corolaacuterio ldquoUniversalmente o efeito eacute mais complexo do que a
causardquo282 Spencer intuiu seu statement of the law a partir das observaccedilotildees de
naturalistas que desde solo Alematildeo estudavam as seacuteries de mudanccedilas ocorridas entre
a germinaccedilatildeo de uma semente em uma aacutervore ou dos um oacutevulos em animais Suas
pesquisas demonstrariam algo que o filoacutesofo transformou em expressatildeo loacutegica geral 278 Idem p 89 Grifos meus O autor acrescenta que ldquo() neste particular estou com Spencer quando
diz que ideacuteias e sentimentos se devem acommodar ao estado socialrdquo 279 Idem p 90 280 Idem p 92 281 ldquoEvery active force produces more than one cause ndash every cause produces more than one effectrdquo
SPENCER Herbert Progess Its Law and Causes In The Westminster Review Vol 67 (April 1857)
p 466 282 Idem Ibidem ldquoUniversaly the effect is more complex than the causerdquo
96
o desenvolvimento constitui-se em um ldquoavanccedilo da homogeneidade de estrutura para a
heterogeneidade de estruturardquo283 O progresso assim entendido natildeo estaria reduzido a
niveis moleculares mas presente na cosmologia na geologia conduzindo os rumos
da histoacuteria natural guiando a marcha das civilizaccedilotildees e refletindo-se na manifestaccedilatildeo
de seus espiacuteritos ndash sua arte seus costumes sua religiatildeo e poliacutetica nada escapava ao
prodigioso esquema spenceriano ldquoo progresso natildeo eacute um acidenterdquo fez questatildeo de
ressaltar ldquomas uma necessidade beneficienterdquo284 Do simples ao deveras complexo os
modos de mudanccedila pareciam ainda mais ceacuteleres entre as ldquodivisotildees civilizadasrdquo da
espeacutecie humana dentre as quais se destacavam os povos europeus285
Em Spencer a aceleraccedilatildeo dos modos de mudanccedila sociais ou histoacutericos ndash em
uma palavra o progresso ndash estava naturalizada a partir de sua lei bio-cosmoloacutegica
geral E eles iam cada vez mais raacutepido como se seguissem o curso de um caminho de
ferro286 Isso natildeo significa no entanto que a ordem da natureza natildeo pudesse passar
por percalccedilos que conduzam indiviacuteduos ou espeacutecies inteiras na direccedilatildeo oposta do
desenvolvimento heterogecircneo Mudanccedilas agudas nas condiccedilotildees fiacutesicas no ambiente e
na nutriccedilatildeo associadas a variaccedilotildees intensas nos costumes das populaccedilotildees afetadas
poderiam direcionaacute-las a modos de vida mais simples287 Natildeo se tratava entretanto de
todo uma anomalia ldquoo processo envolve natildeo simplesmente a tendecircncia agrave
diferenciaccedilatildeo de cada raccedila de organismos em diversas raccedilasrdquo explicava Spencer
ldquomas envolve uma tendecircncia agrave produccedilatildeo ocasional de um organismo de certa forma
superiorrdquo 288 O progresso resulta entatildeo no desenvolvimento de raccedilas superiores
derivadas da conquista de melhores condiccedilotildees de vida e do desenvolvimento de
costumes mais complexos ou heterogecircneos cujo caso exemplar eacute dado pelas
283 ldquoThe investigations of Wolf Goethe and Von Baer have established the truth that the series of
changes gone through during the development of a seed into a tree or an ovum into an animal
constitute an advance from homogeneity of structure to heterogeneity of structurerdquo Idem p 446 284 ldquoProgress is not an accident not a thing within human control but a beneficient necessityrdquo Idem p
484 285 ldquoIt is alike true that during the period in which the Earth has been peopled the human organism has
become more heterogeneous among the civilized divisions of the speciesrdquo () This characteristioc
which is more marked in Man than in any other creature is more marked in the European than in the
savagerdquo Idem p 451 286ldquoThe change from the homogeneous to the heterogeneous is displayed equally in the evolution of
civilization as a whole and in the progress of every tribe or nation and is still going on with increasing
rapidityrdquo Idem 458 287 ldquoNot only would there be thus caused certain modifications consequent on change of physical
conditions and kind of nutriment but also in some cases other modifications consequent upon change
of habitsrdquo Idem p 477 288 ldquoThe process involves not simply a tendency Towards the differentiation of each race of organisms
into several races but it involves a tendency to the occasional production of a somewhat higher
organismrdquo Idem Ibidem
97
condiccedilotildees morais europeacuteias O resultado oposto eacute a ldquoretrogradaccedilatildeordquo conceito
inspirado no movimento aparente reverso de um planeta em relaccedilatildeo ao ponto de
observaccedilatildeo terrestre289
Noccedilatildeo ainda marginal no artigo fundador de 1857 a retrogradaccedilatildeo ganha
corpo na filosofia do uacuteltimo Spencer A partir de 1875 o otimismo vitoriano comeccedila
a ser sistematicamente questionado e as ideias spencerianas sobre a inevitabilidade
do progresso entram em cheque Suas reflexotildees acerca do papel moral necessaacuterio e
benemeacuterito do progresso datildeo lugar a textos que diagnosticam a intervenccedilatildeo poliacutetica
ou estatal na economia e na vida civil como antinatural e originadora da decadecircncia
Jaacute nos Principios de Sociologia (1876-1896) Spencer continua a desenvolver sua
teoria geral da evoluccedilatildeo aplicada agraves sociedades humanas embora sublinhando
igualmente a possibilidade da decadecircncia290 Nem o maior apoacutestolo do progresso
resistiu ao pessimismo do uacuteltimo quartel do seacuteculo XIX Como diversas obras e cartas
escritas na uacuteltima fase de sua vida testemunham o filoacutesofo passou a acreditar que
viviacuteamos em um periacuteodo de barbarizaccedilatildeo seja pela intervenccedilatildeo militar inglesa
malograda no estrangeiro ndash seja por meio da tirania sindical ndash a dinacircmica entre
progresso e decadecircncia fazia a uacuteltima ritmar sobre os avanccedilos da raccedila291 A premissa
de que ldquouma constituiccedilatildeo moral melhor adaptada deve necessariamente aparecer
assim que as circunstancias modificam-serdquo continuaria vaacutelida embora seu resultado
fosse uma composiccedilatildeo moral menos heterogecircnea ndash no jargatildeo spenceriano menos
evoluiacuteda ou civilizada292
Mas voltemos ao Brasil de finais do XIX Escrevendo para o Instituto
Histoacuterico e Geograacutefico de Satildeo Paulo Vampreacute dizia que ldquoa fragmentaccedilatildeo dessa
memoacuteria familiar e individualrdquo era apresentada ldquocomo o signo de uma corrosatildeo mais
289 ldquoIn some cases the habits of life adopted beign simpler than before a less heterogeneous structure
will result there will be a retrogradationrdquo Idem Ibidem 290 Satildeo textos dessa fase SPENCER Herbert Principles of Sociology Williams and Norgate London
1877 SPENCER Herbert The Man Versus the State Caxton Printers Idaho 1960 [1884] Sobre a
dinacircmica entre progresso e decadecircncia no pensamentro de Herbert Spencer sigo BECQUEMONT
Daniel Herbert Spencer progregraves et deacutecadence In Mil neuf cent No 14 1996 pp 69-88 Ver tambeacutem
HARTOG Franccedilois Croire en lacuteHistoire Flammarion Paris 2013 Progregraves et Reacutevolution p 231 291 BECQUEMONT op cit p 83-85 292 Para o primeiro Spencer ldquoUne constitution morale mieux adapteacutee devait neacutecessairement apparaicirctre
lorsque les circonstances changeaient Certes tous les individus ne seraient pas capables dacqueacuterir ces
qualiteacutes morales et certains disparaicirctraient dans la quecircte de la perfection mais les faculteacutes humaines
seraient neacuteanmoins faccedilonneacutees jusquagrave ladaptation complegravete agrave leacutetat social et le mal et limmoraliteacute
appeleacutes agrave disparaicirctre la perfection de lhumaniteacute neacutetait quune question de tempsrdquo BECQUEMONT
op cit p 70
98
ampla aquela que atingia a sociedade brasileira na sua totalidaderdquo 293 A crise poliacutetica
era lida pelo autor como um problema mesmo para a moral domeacutestica como se ndash
reeditando Balzac em terras tropicais ndash ao expulsar a famiacutelia imperial a repuacuteblica
tivesse expurgado a autoridade de todos os pais de famiacutelia da naccedilatildeo
Oscilando entre a crenccedila no progresso e os sintomas da decadecircncia uma auto-
proclamada ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo fundaria um ano antes do grande jubileu nacional a
Associaccedilatildeo do Quarto Centenaacuterio do Descobrimento do Brasil Seu manifesto seu
objetivo seu (como diriam no discurso de inauguraccedilatildeo do monumento aos
descobridores) ldquoprotestordquo era ao mesmo tempo uma afirmaccedilatildeo do presente uma
honraria ao passado e um projeto de futuro encaminhado pela ldquopujanccedila da geraccedilatildeo de
1900rdquo ndash testemunha ldquoeloquente do progresso da Arte neste famoso torratildeo americano
() oferenda immorredoura que os bons Brasileiros dedicam aacute Patriardquo 294
Ramiz Galvatildeo diretor da Biblioteca Nacional era o nome puacuteblico da
Associaccedilatildeo Entre colaboradores eventuais organizadores publicistas e escritores
reuniu em torno da causa comemorativa nomes como Capistrano de Abreu Olavo
Bilac mesmo Machado de Assis e Joseacute do Patrociacutenio chegando com sua lideranccedila a
arrefecer a influecircncia de liberais histoacutericos como Ruy Barbosa295 Diante da
diversidade de abordagens possiacuteveis Galvatildeo pretendia conduzir as comemoraccedilotildees no
sentido de promover trabalhos que no mesmo espiacuterito daqueles desenvolvidos
durante sua administraccedilatildeo da Biblioteca Nacional (1870-1882) celebrassem
ldquocondignamente a origem e o desenvolvimento da Nacionalidade Brasileirardquo 296
Mapeamento de fontes conservaccedilatildeo de cultura material organizaccedilatildeo de acervos
documentais realizaccedilatildeo de exposiccedilotildees e cerimocircnias ciacutevicas o drama comemorativo
em um setting montado por instrumentos nada estranhos agrave ciecircncia positiva visava
293 Ver WANDERLEY Marcelo da Rocha Jubileu Nacional A comemoraccedilatildeo do Quadricentenaacuterio
do Descobrimento do Brasil e a Refundaccedilatildeo da Identidade Nacional (1900) UFRJ 1998 dissertaccedilatildeo
que tomo por guia 294 GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz O Livro do Centenaacuterio 1500-1900 Imprensa Nacional Rio
de Janeiro 1900-1904 Vol IV p 174 295 WANDERLEY 1998 p 62 A partir de 1890 e de forma marcante apoacutes a conturbada presidecircncia de
Deodoro os governantes da repuacuteblica comeccedilam a advogar por poliacuteticas mais conciliatoacuterias para com a
heranccedila lusitana e imperial brasileira A posiccedilatildeo de Ramiz Galvatildeo era a esse respeito mais adequada
do que a de diversos republicanos histoacutericos Em 7 de setemebro de 1890 O Paiz ndash jornal simpaacutetico agrave
repuacuteblica ndash publica que Quaisquer que sejam as criacuteticas histoacutericas do feito do Ipiranga a Naccedilatildeo
brasileira natildeo esqueceraacute nunca que ( ) o Princiacutepe ( ) esqueceu os sentimentos de subordinaccedilatildeo e de
dever ao seu pai e ao seu Rei para proclamar a Independecircncia poliacutetica do povo cujos destinos dirigia
A Revoluccedilatildeo de 7 de setembro formou assim uma nova nacionalidade americanardquo apud NETO 1989 p
74 296 Estatutos In O Livro do Centenaacuterio op cit p 47 Citado tambeacutem por WANDERLEY 1998 p 65
99
conduzir o cidadatildeo rumo agrave auto-identificaccedilatildeo para com um personagem abstrato
definido narrativamente como brasileiro
Patrono da cadeira nove da Academia Brasileira de Letras preceptor ateacute
1889 do priacutencipe e baratildeo de Ramiz o tambeacutem professor do Coleacutegio D Pedro II
conquistou amplo tracircnsito no universo letrado carioca da virada do seacuteculo Atento ao
surto dos centenaacuterios Ramiz Galvatildeo vinha ao menos desde a exposiccedilatildeo camoniana de
1880 credenciando sua autoridade de oficiante reafirmada logo no ano seguinte com
o sucesso da Exposiccedilatildeo de Histoacuteria do Brasil297 De certa maneira ele reeditava o
projeto do IHGB em seu ofiacutecio de ldquocoligir e organizar os elementos para os estudos
histoacutericos e geograacuteficos nacionais que se encontravam dispersos nas proviacutenciasrdquo 298
Mas ele tambeacutem o atualizava frente agrave urgecircncia comemorativa agrave proximidade da data
redonda como um apelo moral e pedagoacutegico agraves futuras geraccedilotildees
[A Associaccedilatildeo do Quarto Centenaacuterio teve] o intuito de
assentar um marco imorredouro na estrada de nossa
existecircncia nacional marco que assinale o esforccedilo
heroacuteico do passado e ao mesmo tempo sirva de estimulo
agraves geraccedilotildees futuras que tecircm de receber o legado quatro
vezes secular engrandececirc-lo e elevaacute-lo ao fastiacutegio da
prosperidade299
E como fazecirc-lo O registro mais perene dos trabalhos da Associaccedilatildeo agrave sombra
do bronze de seus monumentos comemorativos satildeo memoacuterias de papel O Livro do
Centenaacuterio (1500-1900) monumental obra coletiva que reunia nomes como
Capistrano de Abreu e Siacutelvio Romero tinha como objetivo confesso dizer ldquoao mundo
inteirordquo que a heranccedila europeacuteia ndash essa ldquoprogidiosa semente plantada pelos
Portuguezes ao fechar-se do seculo XVrdquo ndash havia finalmente germinado300 ldquoDe uma
raccedila inferior e engolfada na barbaria fez-se um povo que cresceu abriu os olhos aacute luz
297 Quando assume seus encargos frente agrave Associaccedilatildeo do Quarto Centenaacuterio derivada de uma
ldquoComissatildeo Centralrdquo comemorativa fundada em 1898 Ramiz Galvatildeo jaacute havia publicado os Anais da
Biblioteca Nacional (1876) realizado a supracitada exposiccedilatildeo Camoniana e tambeacutem a grande
Exposiccedilatildeo de Histoacuteria do Brasil (1881) cuja publicaccedilatildeo do Cataacutelogo foi saudada por Joseacute Honoacuterio
Rodriguecircs como ldquode extraordinaacuteria importacircncia na historiografia brasileira natildeo somente por ser a
uacutenica em sua eacutepoca em termos universais como porque nada melhor se construiu no Brasil ()rdquo
formando uma ldquoressurreiccedilatildeo do passado e uma previsatildeo de futurordquo ver RODRIGUES Joseacute Honoacuterio
ldquoIntroduccedilatildeordquo In Cataacutelogo da Exposiccedilatildeo de Histoacuteria do Brasil Brasiacutelia Editora da Universidade de
Brasiacutelia 1981 v1 pVII e X 298 BARBOSA Januaacuterio da Cunha ldquoDiscurso do Primeiro Secretaacuterio Perpeacutetuo do Institutordquo Revista
do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro IHGB 1839 t1 p 9 299 ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL Livro do
Centenaacuterio (1500-1900) Rio de Janeiro Imprensa Oficial 1900 vol I p VII 300 Livro do Centenaacuterio vol 1 op cit p VII
100
da civilizaccedilatildeordquo sem o qual jamais esquecera liccedilotildees recebidas dos ldquomestres e da
experiecircnciardquo O Brasil havia trilhado o caminho do progresso e da liberdade
organizando-se como naccedilatildeo autocircnoma O grande jubileu era a forma de apresentaacute-lo
ao concerto das naccedilotildees ldquoEacute preciso demonstrar com factos que a Republica dos
Estados Unidos do Brasil natildeo eacute um mythordquo escreveu Coelho Neto301
O quarto volume do Livro do Centenaacuterio publicado mais tarde em 1910
reuniu um conjunto de artigos e estatutos referentes agrave proacutepria Associaccedilatildeo Sua
Memoacuteria Histoacuterica como foi chamada eacute uma fonte imprescindiacutevel para o estudo do
jubileu nacional e mais especificamente das poliacuteticas de memoacuteria do grupo Gecircnero
de certo duplamente comemorativo ou natildeo comemora ele a proacutepria comemoraccedilatildeo
Sua visatildeo do passado fazia-se clara jaacute na introduccedilatildeo
ldquoPrestar culto aos grandes homens que honraram a
nossa raccedila eacute certamente um dever ciacutevico de que se natildeo
exquecem os povos civilizados mas fazer a apotheose
da Patria festejando com esplendor a data mais solenne
de sua existencia equivale a uma synthese de
commemoraccedilotildees centenarias porque o seu unico nome
enfeixa todas as nossas glorias e alegriasrdquo 302
Seguir o exemplo ndash modelo para imitaccedilatildeo e autoridade ndash dos povos
civilizados Como se passou vinte anos antes em terras portuguesas com o centenaacuterio
de Camotildees as comemoraccedilotildees de 1900 seriam capitaneadas em paacuteginas de jornal
ldquoDas columnas editoriaes drsquoO Paiz partiu effectivamente o primeiro gritordquo lanccedilando
a ideia de emular no Rio de Janeiro uma das grandes ldquofeiras do progressordquo ndash essas
Exposiccedilotildees Universais Internacionais tatildeo ceacutelebres em propagandear os avanccedilos
materiais teacutecnicos comerciais e industriais de todas as naccedilotildees da terra A proposta
sabe-se natildeo vingou seja pelos percalccedilos da nascente repuacuteblica seja pelo ldquovecircso
funesto da procrastinaccedilatildeordquo que em finais do seacuteculo XIX ldquotanto retarda os nossos
passos no caminho do progressordquo 303
Projetos para o jubileu natildeo faltaram mas a ldquopoliacutetica absorvia ainda a atenccedilatildeo
geralrdquo dadas as ldquoferidas abertas no corpo da Naccedilatildeo por um periacuteodo de luctas
301 NETTO Coelho Gazeta de Notiacutecias 3 de Junho de 1898 302 Livro do Centenaacuterio vol 4 op cit Introducccedilatildeo 303 ldquoAmolentados pelo ardor dos tropicos costumamos deixar para a ultima hora aquillo que
apparelhado com tempo vagar e estudo meditado poderia ser feito com mais brilho e perfeiccedilatildeordquo Livro
do Centenaacuterio vol 4 op cit p 6-7
101
sangrentas e de desvarios lamentaacuteveisrdquo 304 A partir de 1898 no entanto a Gazeta de
Noticias adere agrave causa comemorativa publicando primeiro um poema dedicado a
Cabral depois um curioso artigo de Coelho Neto propondo que ldquofaccedilamos alguma
cousa para que natildeo se diga que somos indifferentesrdquo 305 Por traacutes desse apoio da
imprensa estava o nome de Ramiz Galvatildeo que em 27 de maio daquele ano publica
seu proacuteprio artigo na Gazeta O texto mostrava-se atento aos centenaacuterios europeus
evocava-lhes a autoridade mantinha-a como exemplo e solicitava a disposiccedilatildeo geral
de todos os ldquoBrasileiros patriotas para esta commemoraccedilatildeo histoacutericardquo 306
A estrateacutegia publicista do ex-diretor da Biblioteca Nacional farto de contatos
entre os homens das letras mostrava-se vitoriosa ldquoA briosa imprensa fluminense
assim como boa parte da imprensa dos Estadosrdquo escreveu Galvatildeo na memoacuteria
histoacuterica ldquoacceitou com calor o pensamento da commemoraccedilatildeordquo 307 Mais do que
isso parece ter arregimentado diversas vozes que dia-a-dia traziam em seus
editoriais palavras de apoio agrave organizaccedilatildeo das celebraccedilotildees paacutetrias Aquele coro no
centro do jornal toda manhatilde repetindo algo como ldquolembrai-vos do quarto centenaacuterio
do descobrimento do Brasil Ersquo necessario que faccedilamos alguma cousardquo 308 Repetir
redizer e reforccedilar de novo como se a pedagogia ciacutevica fosse espeacutecie de dever ldquoa
imprensa e as vaacuterias associaccedilotildees brasileiras devem dar o exemplo tractando de
espalhar a ideacutea pelos Estadosrdquo 309 A Memoacuteria Histoacuterica ainda compila os endossos
editoriais de diversos veiacuteculos da eacutepoca A Lavoura e A Cidade de Barbacena O
Estado de Satildeo Paulo o Jornal da Bahia a Gazeta de Petroacutepolis entre outros foram
tiacutetulos que participaram ativamente da campanha comemorativa310
E alguma coisa comeccedilou a ser feita No dia 4 de agosto de 1898 eacute fundada por
iniciativa de oficiais da Marinha do Brasil a primeira Comissatildeo Central do
Centenaacuterio Ramiz Galvatildeo e Manuel Pederneiras representantes da Gazeta e do
Jornal do Commercio satildeo chamados agrave reuniatildeo presidida pelo contra-almirante
304 IdemIbidem 305 ldquoNatildeo digo que festejemos o quarto anniversario do descobrimento do Brasil com uma Semana
Sancta () Eacute necessaacuterio fazermos alguma cousa () Essas festas preparam o espiacuterito do povo e vatildeo
constituindo a tradiccedilatildeo () Enfim seja como focircr o necessaacuterio eacute que faccedilamos alguma cousa para que
natildeo se diga que somos indifferentesrdquo NETTO Coelho Fagulhas Gazeta de Notiacutecias 25 de maio de
1898 306 GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz O Centenaacuterio do Brasil Gazeta de Notiacutecias 27 de Maio de
1898 307 Livro do Centenaacuterio vol 4 op cit p 11 308 NETTO Coelho Gazeta de Notiacutecias 6 de Junho de 1898 309 NETTO Coelho Gazeta de Notiacutecias 3 de Junho de 1898 310 Livro do Centenaacuterio vol 4 op cit pp 10-17
102
Guillobel Demonstraccedilotildees religiosas festejos navais e militares uma exposiccedilatildeo
retrospectiva brasileira terminando em 15 de Novembro de 1900 e uma exposiccedilatildeo
nacional projetada para apresentar ao mundo os progressos da naccedilatildeo ndash esse era o
plano inicial das comemoraccedilotildees acompanhado pela edificaccedilatildeo de duas estaacutetuas de
Pedro Alvares Cabral uma em Porto Seguro outro no Rio de Janeiro e de verbas
para a construccedilatildeo de um Asilo de Invaacutelidos da Marinha (que levaria o nome do
descobridor) Sem esquecer eacute claro de festejos populares e da tradicional queima de
fogos
Sob a presidecircncia do contra-almirante Joseacute Candido Guillobel Ramiz Galvatildeo
e Paulo de Frontin vice-presidentes a Comissatildeo dava os primeiros passos rumo a uma
proposta de financiamento A ideia era a manutenccedilatildeo ao longo do ano de 1899 de
uma ldquotaxa commemorativardquo de quatro por cento sobre a parte dos direitos de
importaccedilatildeo Dessa vez no entanto as vozes puacuteblicas natildeo seriam unacircnimes No dia 16
de agosto a folha vespertina A Notiacutecia chama a taxa de ldquoOnus dispensavelrdquo Essa
criacutetica adiantou a decisatildeo da Cacircmara que de fato ignorou a mateacuteria durante a leitura
do projeto de orccedilamento da receita Assustados os diretores da Comissatildeo ldquoapenas
tiveram tempo para correr aacute Camara e conseguiram de alguns amigos intervenccedilatildeo
immediata para que nem tudo se perdesserdquo Mas nem a amizade de Nilo Peccedilanha seria
suficiente a primeira emenda do requerimento relativa agrave taxa comemorativa foi
recusada em nome do interesse dos consumidores que vivendo em um paiacutes que
importava boa parte de suas manufaturas pagariam a conta311
25 A naccedilatildeo editada ou o Livro do Centenaacuterio
Logo no iniacutecio de 1899 natildeo restou alternativa aos membros da Comissatildeo Sem
financiamento estatal a proposta de transformaacute-la em Associaccedilatildeo distribuir tiacutetulos de
soacutecios benemeacuteritos contribuintes foi aceita com entusiasmo Ramiz Galvatildeo e Paulo
Frontin a sua frente a primeira diretoria teve ainda um oficial do baixo escalatildeo do
exeacutercito e nenhum membro da marinha Pouco menos de um mecircs mais tarde em 8 de
fevereiro assumiu como presidente o almirante Balthazar da Silveira ex-governador
do Rio de Janeiro sob a presidecircncia de Floriano Peixoto
311 Livro do Centenaacuterio vol 4 op cit p 41-42
103
O novo plano comemorativo entretanto jaacute havia sido aprovado e nele
percebemos a retirada das demandas da Marinha do Brasil nada de verbas para asilos
de Invaacutelidos nem estaacutetuas de Pedro Alvares O foco agora havia mudado
radicalmente Do bronze ao papel o grande monumento comemorativo tornou-se o
Livro do Centenaacuterio ainda que em suas paacuteginas o descobridor continuasse a adornar
o centenaacuterio como seu grande homem312 O navegador ndash orientado pelo tempo escrito
nas estrelas o ano da efemeacuteride ndash era conjurado de volta agrave vida e quiccedila mareado suas
gestas agrave deriva nas ondas comemorativas encontrava ainda haacutebeis timoneiros nas
figuras de Galvatildeo e Frontin ldquoPanteotildees diversosrdquo dos ldquojazigos monumentaisrdquo esses
construiacutedos natildeo de ldquopedra e calrdquo ou ldquomaacutermore e bronzerdquo mas da ldquopalavra solene da
histoacuteriardquo Ainda assim um guia para o ldquoespiacuterito da mocidaderdquo cadinho de virtudes
como exemplo agraves novas geraccedilotildees ora elevado a ldquoum culto especial para os mortosrdquo
Foacutermula que natildeo era estranha agrave historiografia nacional do seacuteculo XIX313
O Livro do Centenaacuterio (1500-1900) foi originalmente dividido em 16
memoacuterias confiadas a ldquodistinctos especialistasrdquo muito embora ao final mais de 23
autores tenham colaborado com a monumental obra coletiva A memoacuteria que
inaugura o livro foi redigida por Capistrano de Abreu Eacute em ldquoo Descobrimento do
Brasilrdquo que encontramos sua famosa tese a respeito do ldquodescobrimento socioloacutegicordquo
portuguecircs produto final da discussatildeo oitocentista em torno dos possiacuteveis preceptores
de Cabral em terras de Vera Cruz Pouco mais tarde essa tese vai dialogar
diretamente com o parecer da Comissatildeo de Histoacuteria a respeito dos estudos de Joseacute
Feliciano de Oliveira Em O Descobrimento do Brasil esboccedilo de uma apreciaccedilatildeo
histoacuterica vemos a persistecircncia das velhas discussotildees sobre a premeditaccedilatildeo ou a
casualidade do feito de Cabral De acordo com o bispo Correa Nery a descoberta
poderia ser vista como fruto da forte feacute de Portugal314
Muito mais edificante era a memoacuteria que se seguia escrita pelo Padre Julio
Maria ndash sobre ldquoa religiatildeo ordens religiosas instituiccedilotildees pias e beneficientes do
Brasilrdquo Padre Maria dividia a histoacuteria do catolicismo brasileiro em trecircs quadros de
ferro associados cada um a certo estado do espiacuterito moral Sua ordem Agrave colocircnia o
esplendor ao Impeacuterio a decadecircncia agrave Repuacuteblica o combate315 Combate que teria
312 Idem pp 51-55 313 PORTO ALEGRE Manuel de Arauacutejo Iconografia Brasileira RIHGB t 19 p 349-350 1856 314 RIHGB 1905 p 265-66 315 ldquoO periacuteodo da Republica natildeo poacutede ser ainda para a religiatildeo como foi o colonial o esplendor Natildeo eacute
tambeacutem como foi o do impeacuterio a decadecircncia Ersquo natildeo poacutede deixar de ser ndash o periodo do combaterdquo
104
iniciado contra o regalismo a submissatildeo que disfarccedilada de uniatildeo catoacutelica entre
Estado e Igreja soacute fazia desmerecer a uacuteltima atraveacutes da tirania secularizadora da
coroa ilustrada316 Grande adversaacuterio do positivismo contra quem abriu ldquocombate de
morterdquo Padre Maria julgava que o impeacuterio ldquopelo enfraquecimento das ordens
religiosas pelo desprestiacutegio do clero pela rapidez da reacccedilatildeo catholica na questatildeo
religiosa () pelo racionalismo e o scepticismo das classes dirigentes ()rdquo foi a
ldquodecadecircncia da religiatildeordquo 317 Nesse exame moral as expectativas cristatildes para com a
repuacuteblica haviam se alargado imaginando que a ldquoeducaccedilatildeo leiga [a] secularizaccedilatildeo
da eschola [entre] outros manjares da cozinha positivista por muito provados jaacute natildeo
regalam o paladar de nossa eacutepocardquo 318
Em uma leitura que creditava reunir Cesar Cantugrave Hippolyte Taine e Jacques-
Beacutenigne Bossuet o autor da segunda memoacuteria definia a histoacuteria como a ldquosciencia que
ligando o presente ao passado como o effeito aacute causa e os meios ao fim transporta
para a ordem eterna do universo as leis que regem o mundo moralrdquo 319 A histoacuteria
universal como um ldquolongo encadeamento de causas particularesrdquo dependeria em
uma matriz celestial e logo necessaacuteria das ldquoordens secretas da Providecircncia
divinardquo320 Padre Maria natildeo se acanhava em considerar o proacuteprio ldquodescobrimento da
Ameacuterica um facto providencial de induacutestria preparado por Deus para compensaccedilatildeo e
MARIA Padre Julio A religiatildeo ordens religiosas instituiccedilotildees pias e beneficientes do Brasil Livro do
Centenaacuterio (1500-1900) op cit vol 1 p 123 Notar que a numeraccedilatildeo do Livro do Centenaacuterio reinicia sua
contagem em cada memoacuteria 316 Neste ponto ao comentar a questatildeo religiosa Padre Maria parece voltar-se contra a ala
ultramontana que defendia a religiatildeo de Estado e reafirmava a base catoacutelica do regime imperial A
disputa com a maccedilonaria levou o gabinete Rio Branco ndash ele mesmo gratildeo-mestre de duas lojas ndash a
processar os bispos por desobediecircncia civil os quais seriam anistiados pouco mais tarde por Sinimbu
Diversas leituras morais da crise pulularam neste cenaacuterio Para Mendes de Almeida a laicizaccedilatildeo do
Estado enfraquece ldquoo espiacuterito () arrasta-o a maior corrupccedilatildeo e deperecimento moral () Esta
civilizaccedilatildeo tem dado exclusiva atenccedilatildeo agraves ciecircncias fiacutesicas e agraves invenccedilotildees industriais () desprezando a
verdade religiosardquo ALMEIDA Mendes de Anais do Senado do Impeacuterio 3061873 Para Candido
Mendes a separaccedilatildeo entre Igreja e Estado era uma excentricidade revolucionaacuteria francesa sendo
necessaacuterio manter a ldquosupremacia da lei moral sobre a poliacutetica ou a civilrdquo MENDES Cacircndido Anais do
Senado do Impeacuterio 1031872 Ver ALONSO op cit p 89 317 MARIA Padre Julio op cit p 107 A frase ldquoabri combate de morte contra o Positivismordquo ndash
referindo-se as suas publicaccedilotildees jornaliacutesticas aparece mais a seguir na paacutegina 122 318 Idem 104 Grifos originais 319 ldquoErsquo certo que a histoacuteria natildeo eacute a chronica nem a gazeta eacute a harmonia do verdadeiro do bello e do
bomrdquo Idem 5 E continua citando CANTUgrave Cesar Histoire universelle Lacombe Paris 1883 ldquoDahi eacute
que decorre a necessidade de se exigir da histoacuteria a foacutermula de seus phenomenos e tambem a
necessidade de combinar-se o seu elemento livre accidental humano com o seu elemento essencial
immutavel divinordquo 320 ldquoMais souvenez-vous monseigneur que ce long enchaicircnement des causes particuliegraveres qui font et
deacutefont les empires deacutepend des ordres secrets de la divine Providence () Dieu excerce par ce moyen
ses redoutables jugements selon les regravegles de as justice toujours infaillible () Ne parlons plus de
hasard ni de fortune ou parlons-en seulement comme dacuteun nom dont couvrons notre ignorancerdquo
BOSSUET Discours sur lrsquoHistoire Universelle Garnier Fregraveres Paris p 421-422
105
equiliacutebrio das perdas que na Europa o protestantismo acarretou aacute Egrejardquo Se para noacutes
os grandes homens o satildeo pelo trabalho de enquadramento dos mecanismos morais e
poliacuteticos da memoacuteria para o historiador do catolicismo brasileiro eles nasciam do
recebimento de uma ldquomissatildeo divinardquo Ou Pedro Alvares grande homem natildeo o foi jaacute
por ter recebido o santo encargo ldquofazendo enfim do Brasil um novo scenario dado
ao christianismordquo 321
ldquoQuadro fiel da marcha do gecircnero humano atraveacutes dos seacuteculosrdquo a histoacuteria eacute
compreendida como um ldquomovimento geralrdquo cujo sentido eacute encadeado do Alfa
atraveacutes de suas causas particulares (do ldquopoliacutetico juriacutedico scientifico litterario
industrial artiacutestico das naccedilotildeesrdquo etc) rumo ao Omega ldquoo fim () destino da
humanidaderdquo ndash seu inevitaacutevel reencontro com Deus lido a partir de Deschamps
(Oeuvres Tomo II parte 2)322 Do ponto de vista da ordem terrena daquilo que eacute do
homem a nacionalidade poderia ser definida ainda a partir de nossos aspectos
morais ldquoNatildeo compreendordquo disse o autor ldquoque se possa escrever uma memoacuteria
histoacuterica () onde o inicio e o desenvolvimento de nossa nacionalidade () os usos e
os costumes ndash [natildeo estejam] identificado[s] com as crenccedilas religiosas de nossos
antepassadosrdquo A identidade entre dois personagens abstratos ndash o Brasil e o brasileiro
ndash soacute poderia ser entendida atraveacutes do catolicismo ndash ldquocatholicismordquo que emprestando
suas caracteriacutesticas ldquoformou nossa nacionalidaderdquo 323
Com seus sacerdotes desacreditados ndash pontes de ligaccedilatildeo com o mundo
superior interditadas ndash os rumos da proacutepria histoacuteria brasileira eram desorientados pelo
quadro de dissoluccedilatildeo dos costumes Nesse periacuteodo ingloacuterio marcado pelo ceticismo e
pelo ateiacutesmo cientificista natildeo haacute ldquoum soacute que tenha nas matildeos a bandeira das ideacuteas
grandes das grandes verdades moraes que nas eacutepochas de decadecircncia retemperam os
povos e salvam as naccedilotildeesrdquo 324 Mas a situaccedilatildeo natildeo mudaria magicamente com o fim
do Impeacuterio A crise brasileira natildeo dependia afinal de contas das formas de
321 ldquoConsiderando neste trabalho o descobrimento da America um facto providencial de industria
preparado por Deus para compensaccedilatildeo e equilibrio das perdas que na Europa o protestantismo
acarretou aacute Egreja dando a Pedro Alvares Cabral uma missatildeo divina fazendo enfim do Brasil um
novo scenario dado ao christianismo diratildeo talvez que eu faccedilo do Discurso sobre a Histoacuteria
Universal essa obra prima de Bossuet o modelo a regra o limite dos quadros e narraccedilotildees da
Histoacuteriardquo MARIA Padre Julio op cit p 6 322 Idem p 7 Grifos originais 323 Idem p 7 324 Idem p 105
106
governo325 Ela eacute uma ldquocrise moral resultante da profunda decadencia religiosa desde
o antigo regimen das classes dirigentes da naccedilatildeo e que soacute poacutede ser resolvida por uma
reacccedilatildeo catholicardquo 326 Mais do que um convite a refletir a comemoraccedilatildeo do
quadricentenaacuterio convocava o ldquoespiacuterito pensadorrdquo ndash nesse ponto do tempo em que os
paralelos se encontram ndash a reviver e se deixar convencer pela autoridade moral dos
exemplos fundadores ldquonunca maior missatildeo se deparou agrave egreja em nosso paizrdquo 327
Missatildeo divina esse convite de Deus agrave ldquoreconstrucccedilatildeo moral da sociedaderdquo 328
O que deveriacuteamos entatildeo reconstruir ou reparar moralmente Com padre
Maria a comemoraccedilatildeo como em sua forma elementar religiosa (re-ligare) fazia
cantar e escutar o Te Deum em toda ocasiatildeo festiva ao menos ateacute suas histoacuterias
unirem-se em um singular coletivo capaz de distinguir e clarificar ndash por vezes em uma
uacutenica e longa dissertaccedilatildeo ndash os designiacuteos da identidade nacional ouvida agora desde as
margens tranquilas de um ceacutelebre riacho Em sua expressatildeo mais sincera fundamental
e edificante a comemoraccedilatildeo proposta por Padre Maria enquadrava a memoacuteria
brasileira a partir do catolicismo ao mesmo tempo em que exortava um retorno agrave
confessatildeo ancestral
A proacutepria ldquocrise moralrdquo contra a qual Padre Maria cerrava os punhos tornava
evidente o brasileiro jaacute era lembrado como algo mais do que simplesmente catoacutelico
Siacutelvio Romero escrevendo outra memoacuteria retoma alguns aspectos de sua Histoacuteria da
Litteratura Brasileira Realizou na verdade uma leitura filiada a Spencer ndash em seu
apego agrave dinacircmica entre progresso e decadecircncia ndash do desenvolvimento das belas letras
em nosso paiacutes329 Outrora modelo no iniacutecio do seacuteculo XIX Portugal jaacute natildeo o era mais
como explicava Romero ldquoSob a influecircncia da navegaccedilatildeo directa a vaporrdquo a Franccedila
325 Ersquo aacute religiatildeo natildeo a esta ou aacutequella forma de governo que a Providecircncia Divina mostra na sucessatildeo
dos factos e na corrente dos acontecimentos o desiacutegnio misericordioso de fazer reviver na terra do
Cruzeiro retemperada e triunphante a feacute que animou os nossos descobridores Idem p 130 326 Idem p 130 327 Idem p 124 328 Ersquo ao catholicismo natildeo a um partido poliacutetico que manifestadamente na hora presente Deus
convida aacute reconstrucccedilatildeo moral da sociedade Idem p 130 329 O autor chega a inclui a si mesmo ndash ao lado de Clovis Bevilaqua ndash como um expoente da ldquocorrente
spencerianardquo da criacutetica nacional ROMERO Sylvio Litteratura In Livro do Centenaacuterio (1500-1900)
vol 1 op cit p 124 Para Angela Alonso esse tipo de filiaccedilatildeo intelectual autoproclamada deveria ser
entendida como um elemento constituidor da identidade de um grupo que acessando um repertoacuterio
teoacuterico internacional ndash seja via Revue des Deux Mondes seja via Quaterley Review ndash fazia um
determinado uso poliacutetico de suas ferramentas conceituais Nas palavras da socioacuteloga ldquoCategorias como
lsquodarwinismorsquo lsquopositivismorsquo lsquoliberalismorsquo sofreram apropriaccedilotildees redefiniccedilotildees usos poliacuteticos Isso eacute
evidente nas polecircmicas entre facccedilotildees termos como lsquopositivistas laffitistasrsquo e lsquolittreiacutestasrsquo [Miguel
Lemos] lsquodarwinistasrsquo e lsquospencerianosrdquo () foram criados nas controveacutersias As categorias satildeo
constrativas exprimem relaccedilotildees entre grupos a proacutepria nomeaccedilatildeo eacute uma arma em meio a conflitos de
definiccedilatildeo de identidades ALONSO 2002 p 32 Grifos Meus
107
havia assumido tal posiccedilatildeo ldquoO brasileiro supposto egual ao europecirco julga[va]-se o
primeiro povo drsquoAmericardquo Ora jaacute com a guerra do Paraguay ldquoproblemas politicos e
sociaes varios novos ideaes philosophicos abre-se um periodo de reacccedilatildeo
pessimisticardquo marcado pela preponderacircncia germacircnica jaacute no contexto da grande
vitoacuteria de 1871 Ao sabor dos tempos emprestaacutevamos conceitos ideias aqui noccedilotildees
acolaacute Embora ainda fosse cedo para falar em antropofagia cultural ndash o vocabulaacuterio
era certamente outro ndash na sua ldquoespeacutecie de balanccedilo ethnographicordquo o criacutetico literaacuterio
havia chegado agrave conclusatildeo de que o ldquoser genuiacuteno brasileirordquo era ldquopura e simplesmente
o mesticcedilo physico ou moralrdquo 330
O problema da raccedila jaacute fazia parte do repertoacuterio do IHGB pelo menos desde a
famosa dissertaccedilatildeo de Karl Von Martius escrita em 1843 mas publicada na revista do
instituto em 1865 Como se deve escrever a histoacuteria do Brasil apresentava a
necessidade de se pensar na tarefa de narrar o passado do paiacutes ldquoos elementos que ahi
concorreratildeo para o desenvolvimento do homemrdquo331 Com a autoridade de um
naturalista que entre 1817 e 1820 tinha desbravado as selvas amazocircnicas a mando do
rei da Bavaria Martius havia chegado agrave conclusatildeo de que as peculiaridades das
populaccedilotildees brasileiras eram fruto da fusatildeo de trecircs raccedilas ldquoa de cocircr cobre ou americana
a branca ou caucasiana e enfim a negra e ethiopicardquo Ao lado das costumeiras
atribuiccedilotildees morais relacionadas agrave ldquopequena paacutetriardquo ndash aos normandos e saxotildees de
Walter Scott ou aos Gauleses e Francos de um Montesquieu ndash as raccedilas de Martius
agora possuiam cor Cores e costumes que carregavam tambeacutem a chave do
entendimento dos destinos do desenvolvimento nacional ldquocada uma das
particularidade physicas e moraes que distinguem as diversas raccedilas offerece a este
respeito um motor especialrdquo332
O vocabulaacuterio de Martius seguia de perto os estudos de anatomia comparada
realizados anos antes na Alemanha por Johan Friedrich Blumenbach Embora o autor
dos Elementos de Fisiologia fosse um defensor da monogenia cristatilde e das teorias de
degeneraccedilatildeo ele natildeo via as raccedilas negras e americanas como definidamente inferiores
mesmo que seus comentaacuterios a esse respeito tenham sido pouco impactantes Pelo
contraacuterio sua obra parece mesmo ter contribuiacutedo para o desenvolvimento do
330 Idem p 7 Grifos originais 331 MARTIUS Karl Friederich Phillipe von Como se deve escrever a histoacuteria do Brasil RIHGB Rio
de Janeiro 1865 t6 2 Ed pp 389-411 In GUIMARAtildeES Manuel Luiz Salgado Livro de Fontes de
Historiografia Brasileira Rio de Janeiro Eduerj 2010 p 63 332 Idem p 64
108
cientificismo racioloacutegico do seacuteculo XIX333 Nela estavam presentes as descriccedilotildees
fisioloacutegicas de cinco raccedilas humanas das quais trecircs seratildeo identificadas no Brasil de
Martius334
Eacute sem surpresa portanto que Martius fala em ldquoraccedilas inferioresrdquo ao mesmo
tempo em que encontra espaccedilo para saudar a miscigenaccedilatildeo dos elementos negros
iacutendios e brancos Mais do que isso a fusatildeo eacutetnica eacute percebida como uma verdadeira
obra da Providecircncia que reuniu no Novo Mundo ldquouma ao lado da outra de uma
maneira desconhecida na histoacuteria antigardquo trecircs raccedilas humanas junto agraves ldquocondiccedilotildees para
o [seu] aperfeiccediloamentordquo335 Essa era a ldquoactividade historicardquo cujo Impeacuterio de Brasil ndash
a quem o historiador ldquocomo autor Monarchico-Constitucionalrdquo deve servir ndash era
chamado a realizar a perfectibilidade fiacutesica e moral natural e humana das
populaccedilotildees brasileiras336 Para Martius o Brasil das trecircs raccedilas era um grande
experimento divino que chamava as atenccedilotildees racionais da filosofia natural e da
filosofia moral reunificadas sob a eacutegide do vocabulaacuterio e dos instrumentos
taxonocircmicos das novas ciecircncias
Na Europa do iniacutecio do seacuteculo XIX enquanto Karl Von Martius preparava-se
para passar algumas temporadas no Brasil geoacutelogos naturalistas e filoacutelogos eram
chamados a oferecer modelos explicativos aos saacutebios obcecados pela busca das
origens Uma das heranccedilas da revoluccedilatildeo ndash da abertura de um tempo novo que por sua
proacutepria definiccedilatildeo natildeo poderia buscar raiacutezes em nenhum passado muito longiacutenquo ndash
333 Sobre essa questatildeo ver FREDRICKSON George M Racism A Short History Princeton University
Press 2002 principalmente pp 56-58 ldquoWhatever their intentions Linnaeus Blumenbach and other
eighteenth-century ethnologists opened the way to a secular or scientific racismrdquo p 57 334 ldquoThus among the five varieties into which I would divide the human race in the first which may be
termed Caucasian and embraces Europeans (except the Laplanders and the rest of the Finnish race)
the western Asiatics and the northern Africans it is more or less white In the second or Mongolian
including the rest of the Asiatcs (except the Malays of the peninsula beyond the Ganges) the Finnish
races of the north of Europe as the Laplanders ampc and the tribes of Esquimaux widely diffused over
the most northern parts of America it is yellow or resembling box-wood In the third or Ethiopian to
which the remainder of the Africans belong it is of a tawny or jet black In the fourt or American
comprehending all the Americans excepting the Esquimaux it is almost copper coloured and in some
of a cinnamon and as it were ferruginous hue In the fifth or Malaic in which I include the
inhabitants of all teh islands in the Pacif Ocean and of the Philippine and Sunda and those of the
peninsula of Malaya it is more or less brown ndash between the hue of fresh mahogany and that of cloves
or chesnutsrdquo BLUMENBACH Friedrich Johan The Elements of Physiology Elliotson John (trans) 4
ed London Longman Rees Orme Brown and Green Paternoster-Row 1828 pp 174-175 335 Idem 66 336 ldquoEm a classe baixa tem lugar esta mescla e como das inferiores e por meio drsquoellas se vivificam e
fortalecem assim se prepara actualmente na ultima classe da populaccedilatildeo brasileira essa mescla de raccedilas
que drsquoahi a seculos influira poderosamente sobre as classes elevadas e lhes communicaraacute aquella
actividade historica para a qual o Imperio do Brasil eacute chamadordquo Idem p 86 () ldquoNunca esqueccedila pois
o historiador do Brazil que para prestar um verdadeiro serviccedilo aacute sua paacutetria deveraacute escrever como autor
Monarchico-Constitucional como unitaacuterio no mais puro sentido da palavrardquo Idem p 86
109
foi ser responsaacutevel por uma intensa mobilizaccedilatildeo pelo reconhecimento de algum
ldquomotorrdquo (como diria Martius) da histoacuteria nacional Sylvain Venayre escrevendo a
respeito do caso francecircs afirma que alguns historiadores ldquosobretudo falavam de
naccedilatildeordquo e essa ldquosimples palavra parecia os autorizar a procurar na histoacuteria as
qualidades lsquonativasrsquo da Franccedilardquo337 Guizot Thierry Michelet Quinet e mais tarde
Fustel de Coulanges Taine e Vidal de la Blache todos pareciam a sua maneira
interessados nessa discussatildeo Discussatildeo que nos conta um pouco da histoacuteria daquilo
que mais tarde jaacute no seacuteculo XX atenderaacute pelo nome de ldquoidentidade nacionalrdquo
Da teoria das ldquoduas naccedilotildeesrdquo francesas ndash essa cisatildeo ancestral de supostas
repercussotildees classistas ndash passamos a medida em que nos afastamentos do periacuteodo
revolucionaacuterio ao evocar incessante das imagens de unidade338 Apoacutes 1871 os
estudos racioloacutegicos vinculados agraves ciecircncias naturais comeccedilam a sofrer oposiccedilatildeo
ldquoCiecircncia alematilderdquo agora contraposta agraves ldquoconcepccedilotildees francesasrdquo como mostrou
Venayre eacute uma elaboraccedilatildeo que aparece com a perda da Alsaacutecia-Mosela e ela tambeacutem
eacute concomitante com o prestiacutegio do novo impeacuterio alematildeo No Brasil Siacutelvio Romero
vem falar dos ldquonovos ideaes philosophicosrdquo ideias vindas da Alemanha que
exatamente nesse momento abrem um ldquoperiodo de reacccedilatildeo pessimisticardquo O
repertoacuterio da decadecircncia e a criacutetica da ldquodissoluccedilatildeo dos costumesrdquo encontra focirclego
renovado ao apropriar-se do prestiacutegio das novas taxonomias raciais
Mesmo que Ernest Renan como vimos tenha em sua conferecircncia de 1882
desacreditado a instrumentalidade poliacutetica da categoria de raccedila diversos de seus
contemporacircneos mesmo na Franccedila natildeo haviam abandonado esse vocabulaacuterio339
Muitos deles eram constantemente lembrados entre os ldquodistinctos especialistasrdquo
chamados a escrever as tais memoacuterias centenaacuterias Hyppolyte Taine era um deles
Com Taine temos a ceacutelebre foacutermula da Raccedila do meio e do momento Ou como ele
337 VENAYRE Sylvain Les Origines de la France quand les historiens racontaient la nation
LrsquoUnivers historique Paris Seuil 2013 p 14 338 A Franccedila de Michelet ndash que por vezes com ela conversava em meios aos seus textos usando o
familiar ndash era uma assimiladora de espiacuteritos uma conversora de paixotildees Ao contraacuterio da Alemanha
que nunca possuiu e da Itaacutelia que haacute muito deixou de ter a Franccedila sim ldquotem um centrordquo Ela era
ldquouacutenica e identica depois de vaacuterios seacuteculosrdquo e merecia ser considerada como ldquouma pessoa que vive e
morrerdquo A Franccedila atraiu absorveu e identificou franceses na Inglaterra na Alemanha mesmo na
Espanha neutralizando ldquoum pelo outro e convertido todos a sua substacircnciardquo MICHELET Jules
Introduction a lrsquoHistoire Universelle Suivi du discours drsquoouverture 3a ed Paris L Hachette 1843 p
5 339 VENAYRE 2013 chama a atenccedilatildeo para o caraacuteter oportunista da oposiccedilatildeo de Renan ndash entendida
como uma oposiccedilatildeo ao germanismo ndash ao conceito de raccedila
110
mesmo explicou ldquoa mola interior a pressatildeo de fora e a impulsatildeo jaacute adquiridardquo340 O
autor das Origens da Franccedila Contemporacircnea era um tanto desconfiado da erudiccedilatildeo a
histoacuteria para ele natildeo deveria ser escrita a partir dos fenocircmenos superficiais que
emergem na leitura das fontes Pelo contraacuterio era preciso entender as suas causas
mais profundas ldquoQue os fatos sejam fiacutesicos ou morais natildeo importa eles tecircm sempre
causas () o viacutecio e a virtude satildeo produtos como o sulfato e o accediluacutecarrdquo disse em uma
de suas mais citadas frases341
A naturalizaccedilatildeo da moral natildeo era no entanto direta e absoluta Para continuar
usando o vocabulaacuterio do autor a proacutepria passagem de uma ldquoreligiatildeo disciplinarrdquo para
uma ldquoreligiatildeo moralrdquo demandou a criaccedilatildeo e ediccedilatildeo de doutrinas ritos e mesmo de
uma arquitetura sacra 342 Os trecircs conceitos fundamentais ndash a ordem das causas ndash natildeo
cessavam de se entrecruzar formando um ldquosistema de sentimentos e ideias humanasrdquo
sistema que tinha como motor alguns traccedilos gerais ldquocertos caracteres de espiacuteritordquo
comuns aos ldquohomens de uma raccedila de um seacuteculo ou de um paiacutesrdquo 343 Mesmo a raccedila
causa ldquouniversal e permanente presente a cada momento e a cada casordquo demonstraria
variaccedilotildees ao longo do tempo e do espaccedilo pela accedilatildeo do meio e do momento344 Nesse
sistema de sentimentos poderiacuteamos definir o caraacuteter de um povo ldquocomo o resumo de
todas as suas accedilotildees e de todas suas sensaccedilotildees precedentes ou seja como uma
quantidade e como um peso natildeo infinitordquo 345
Ainda que estivessemos em um clima intelectual alimentado constantemente
de analogias comparaccedilotildees ou importaccedilotildees diretas de conceitos desenvolvidos sob a
oacuterbita cientiacutefica do evolucionismo bioloacutegico a raccedila enquanto elemento mais
340 TAINE H Histoire de la litteacuterature anglaise T 1 Paris Librarie de L Hachette 1866
Introduction p XXXIV O conceito de raccedila em Taine parece natildeo ter uma filiaccedilatildeo eminentemente
bioloacutegica lido talvez como paralelo ao conceito de Volk em Herder 341 ldquoQue les faits soient physiques ou moraux il nacuteimporte ils ont toujours des causes il y en a pour
lacuteambition pour le courage pour la veacuteraciteacute comme pour la digestion poacuteur le mouvement musculaire
pour la chaleur animale Le vice et la vertu sont des produits comme le vitriol et le sucre et toute
donneacutee complexe naicirct par la rencontre dacuteautres donneacutes plus simples dont elle deacutependrdquo Idem p XV
Grifos meus 342 Idem XVI 343 ldquoIl y a donc un systegraveme dans les sentiments et dans les ideacutees humaines et ce systegraveme a pour moteur
premier certains traits geacuteneacuteraux certains caractegraveres dacuteesprit et de coeur communs aux hommes dacuteune
race dacuteun siegravecle ou dacuteun paysrdquo Idem p XVIII 344 ldquoCe sont lagrave les grandes causes car ce sont les causes universelles et permanentes preacutesentes agrave
chaque moment et en chaque cas ()rdquo Idem p XVII Taine explica que as diferenccedilas fundamentais
entre povos germacircnicos e latinos ndash ambos de suposta origem ariana ndash seriam derivadas do clima
mediterracircnico e noacuterdico instacircncias determinadoras de seus ldquocaracteres de espiacuterito suas formas mais
gerais de pensar e de sentirrdquo Idem p XVI-XVII 345 ldquoEn sorte quacuteagrave chaque moment on peut considegraverer le caractegravere dacuteun peuple comme le reacutesumeacute de
toutes ses actions et de toutes ses sensations preacuteceacutedentes cacuteest-agrave-dire comme une quantiteacute et comme un
poids non pas infinirdquo Idem XXV
111
invariaacutevel das foacutermulas sociais natildeo definiria mecanicamente uma nacionalidade Ou
acaso ela natildeo poderia ser moldada pelo efeito de outras causas fundamentais O meio
(natural poliacutetico e social) composto por essas ldquoforccedilas exterioresrdquo encontraria nos
discursos poliacutetico e morais dos oficiantes da velha repuacuteblica os instrumentos
necessaacuterios para que moldasse a ldquomateacuteria humanardquo346 O momento eacute verdade natildeo
poderia parecer mais propiacutecio a Grande Data o jubileu nacional instante em que os
reloacutegios da naccedilatildeo ecoavam os sinos comemorativos dobrados por um punhado de
intelectuais e publicistas da naccedilatildeo ldquoQuando o caraacuteter nacional e as circunstacircncias do
ambiente operamrdquo escreveu Taine ldquoelas natildeo operam em uma taacutebula rasardquo Trata-se
de uma lousa na qual as impressotildees jaacute estatildeo marcadas347 Marcada por uma missatildeo
divina ou um dever ciacutevico encarrilhar a locomotiva nacional nos trilhos de ferro do
progresso era tarefa que partindo de caminhos a lembrar e atalhos a esquecer
alcanccedilava enfim ao tocar o problema da raccedila os contornos bem definidos de uma
poliacutetica de atropelamento eacutetnico
O Brasil natildeo eacute o iacutendio este onde a civilizaccedilatildeo ainda natildeo
se extendeu perdura com os seus costumes primitivos
sem adeantamento nem progresso Descoberto em 1500
pela frota portugueza ao mando de Pedro Alvares
Cabral o Brasil eacute a resultante directa da civilizaccedilatildeo
occidental trazida pela immigraccedilatildeo que lenta mas
continuamente foi povoando o soacutelo A religiatildeo a mais
poderosa focircrccedila civilizadora da epocha internou-se pelos
longincuos e invios sertotildees brasileiros e sob o influxo de
Nobrega e Anchieta conseguiu assimilar nuacutemero
consideraacutevel de aborigenes que assim se incorporaram aacute
Naccedilatildeo Brasileira Os silviacutecolas esparsos ainda
abundam nas nossas magestosas florestas e em nada
differem dos seus ascendentes de 400 annos atraacutes natildeo
satildeo nem podem ser considerados parte integrante da
nossa nacionalidade a esta cabe assimila-los e natildeo o
conseguindo elimina-los348
346 O meio eacute definido por Taine como ldquoles puissances exteacuterieures qui faccedilonnent la matiegravere humaine et
par lesquelles le dehors agit sur le dadansrdquo Idem p XXIX 347 ldquoQuand le caractegravere national et les circonstances environnantes opegraverent ils nacuteopegraverent point sur une
table rase mais une table ougrave des empreintes sont deacutejagrave marquegravees Selon quacuteon prend la table agrave un
moment ou agrave un autre lacuteemoreinte est diffeacuterente et cela suffit pour que lacuteeffet total soit diffeacuterentrdquo p
XXIX-XXX 348 FRONTIN Paulo de Sessatildeo Magna do Centenaacuterio no dia 4 de Maio de 1900 Livro do Centenaacuterio
1500-1900 Vol 4 Memoacuteria Histoacuterica p 187 Grifos Meus
112
Temos o direito de nos sentir chocados com essa passagem mas para analisaacute-
la creio ser necessaacuterio comeccedilar afirmando que as referecircncias aos padres Manuel da
Noacutebrega e Antocircnio Vieira natildeo satildeo em nada aleatoacuterias Em um texto publicano nos
anos 90 do seacuteculo XX Eduardo Viveiro de Castro preocupou-se em entender aquilo
que os antropoacutelogos costumam chamar de ldquovisatildeo do iacutendio sobre a tribordquo Ao seguir a
leitura de Clifford James Castro observa a percepccedilatildeo de si dos povos nativos do
Brasil menos como ldquouma fronteira a ser defendidardquo e mais enquanto ldquoum nexo de
relaccedilotildees e transaccedilotildees no qual o sujeito estaacute ativamente comprometidordquo Para essa
leitura falar em ldquoidentidaderdquo talvez fosse tanto abusivo pois para os nativos era ldquoa
troca natildeo a identidade o valor fundamental a ser afirmadordquo fenocircmeno proacuteximo da
ldquoouverture agrave lrsquoautrerdquo de que fala Levi-Strauss 349 Esse elemento de alteridade
presente no perspectivismo ameriacutendio permite ao pesquisador compreender as
enigmaacuteticas afirmaccedilotildees dos Tupinambaacute registradas por Noacutebrega que alegavam
querer ser ldquochristianos como nosotrosrdquo Como mostra Castro querer ser cristatildeo era
no fundo querer ser iacutendio encontrar no outro parte de si e mesmo sua proacutepria
memoacuteria Os povos do litoral brasileiro entregavam-se aos catequistas tomavam
comunhatildeo aprendiam a rezar mas para o espanto dos missionaacuterios regressavam
com imensa facilidade aos ldquomaus costumesrdquo de seus ancestrais Logo no iniacutecio do
ensaio Castro cita uma longa passagem do Sermatildeo do Espiacuterito Santo de autoria do
Padre Vieira que aqui reproduzo em parte
Os que andastes pelo mundo e entrastes em casas de
prazer de priacutencipes veriacuteeis naqueles quadros e naquelas
ruas dos jardins dois gecircneros de estaacutetuas muito
diferentes umas de maacutermore outras de murta A estaacutetua
de maacutermore custa muito a fazer pela dureza e
resistecircncia da mateacuteria mas depois de feita uma vez natildeo
eacute necessaacuterio que lhe ponham mais matildeo sempre
conserva e sustenta a mesma figura a estaacutetua de murta eacute
mais faacutecil de formar pela facilidade com que se dobram 349 Na passagem citada pelo autor ldquoAs narrativas de contato e mudanccedila cultural tecircm sido estruturadas
por uma dicotomia onipresente absorccedilatildeo pelo outro ou resistecircncia ao outro [] Mas e se a identidade
for concebida natildeo como uma fronteira a ser defendida e sim como um nexo de relaccedilotildees e transaccedilotildees
no qual o sujeito estaacute ativamente comprometido A narrativa ou narrativas de interaccedilatildeo devem nesse
caso tornar-se mais complexas menos lineares e teoloacutegicas O que muda quando o sujeito da lsquohistoacuteriarsquo
natildeo eacute mais ocidental Como se apresentam as narrativas de contato resistecircncia ou assimilaccedilatildeo do
ponto de vista de grupos para os quais eacute a troca natildeo a identidade o valor fundamental a ser afimadordquo
CLIFFORD James 1988 The predicament of culture twentieth century ethnography literature
andart Cambridge Mass Harvard Univ Press p 344 apud CASTRO Eduardo Viveiros de O
maacutermore e a murta In A Inconstacircncia da Alma Selvagem Cosacnaify Satildeo Paulo 2005 pp 195-196 e
206
113
os ramos mas eacute necessaacuterio andar sempre reformando e
trabalhando nela para que se conserve Se deixa o
jardineiro de assistir em quatro dias sai um ramo que
lhe atravessa os olhos sai outro que lhe descompotildee as
orelhas saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete e
o que pouco antes era homem jaacute eacute uma confusatildeo verde
de murtas350
Nesse excerto o jesuiacuteta faz menccedilatildeo agraves dificuldades encontradas pelos
missionaacuterios em dobrar as almas do gentio brasileiro Pontuava a ldquodiferenccedila que haacute
entre umas naccedilotildees e outras na doutrina da feacuterdquo sendo algumas ldquonaturalmente duras
tenazes e constantesrdquo resistindo com armas duacutevidas e desentendimentos aos
misteacuterios revelados e outras que como as do Brasil ldquoreteacutem tudo o que lhes ensinam
com grande docilidade e facilidaderdquo As uacuteltimas no entanto satildeo um pouco como
estaacutetuas de murta e natildeo de maacutermore perdendo ldquoa nova figurardquo ao simples
ambandono das matildeos do jardineiro ldquoEacute necessaacuterio que [se] assista sempre a estas
estaacutetuasrdquo dizia Vieira ldquotrabalhando () contra a natureza do tronco e o humor das
raiacutezesrdquo 351
O tema da ldquoinconstacircncia da almardquo selvagem como mostrou Castro eacute
recorrente em toda a histoacuteria do Brasil fazendo-se notar em sua proacutepria histoacuteria da
histoacuteria Para Varnhagen que de certo nunca viu os iacutendios com muita simpatia eles
eram ldquofalsos e infieacuteisrdquo igualmente ldquoinconstantes e ingratosrdquo Na obra de Serafim
Leite historiador da ordem jesuiacutetica no Brasil careciam de vontade e expressavam
sentimentos superficiais Ainda Seacutergio Buarque de Holanda retomaria a questatildeo
descrevendo-os como ldquoinacessiacuteveisrdquo a ldquocertas noccedilotildees de ordem constacircncia e
exatidatildeordquo 352
Em sua base o problema das trecircs raccedilas talvez seja anaacutelogo ao tema aristoteacutelico
das trecircs potecircncias da alma Muito caro aos jesuiacutetas e aos peripateacuteticos da Coimbra
seiscentista a doutrina tendia a atribuir a cada uma das raccedilas uma faculdade ldquoaos
iacutendios a percepcatildeo aos africanos o sentimento aos europeus a razatildeordquo 353 Ou ainda a
raccedila inteligente a raccedila amante e a raccedila selvagem Jaacute nos Dialogo sobre a conversatildeo
350 VIEIRA Antonio Sermao do Espfrito Santo in Sermoes Sao Paulo Editora das Americas vol 5
1957 [1657] p 216 Apud CASTRO 2005 183-184 351 Idem Ibidem 352 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Histoacuteria geral do Brasil antes de sua separaccedilatildeo e
independecircncia de Portugal Satildeo Paulo Melhoramentos Tomo I 1959 [1854] p 51 BUARQUE DE
HOLANDA Seacutergio Raiacutezes do Brasil Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1956 [1936] Ver CASTRO
2005 p 186 nota 5 para uma bibliografia completa 353 CASTRO 2005 187
114
do Gentio vemos na fala do interlocutor Nugueira a descriccedilatildeo do problema ldquoisso
estaacute claro pois a alma tem trecircs potentias entendimento memoria vontade que todos
tecircmrdquo354 Essa eacute uma toacutepica que segue ateacute o seacuteculo XX de Gilberto Freyre355 Se os
iacutendios entendiam bem diziam os pregadores a memoacuteria e a vontade lhes eram fracas
retornando sem grande resistecircncia aos ldquocostumes inveteradosrdquo como beber de seus
vinhos ter muitas esposas fazer a guerra e praticar a antropofagia356 Por vezes
incapazes de reconhecer uma religiosidade entre os povos primitivos da Ameacuterica por
outras intolerantes a suas praacuteticas os padres traduziam uma questatildeo tanto epistecircmica
quanto poliacutetica como se o problema fosse o fato de que ldquoos selvagens natildeo crecircem em
nada porque natildeo adoram nada E natildeo adoram nada no fim das contas porque
obedecem a ningueacutemrdquo 357
Os costumes do gentio eram o inimigo principal dos pregadores jesuiacutetas do
seacuteculo XVI Entre os tupinambaacutes a praacutetica de ensopar a carne dos guerreiros
capturados e oferece-las em grandes banquetes fazia parte do ciclo de contagem do
tempo Para eles na leitura de Castro ldquoo outro natildeo era um espelho mas um destinordquo
358 O guerreiro que hoje come a carne do vencido amanhatilde seraacute devorado e ao fazecirc-
lo alcanccedilara a honra Honra que se assentava na capacidade de engendrar a vinganccedila
a qual se tornava por sua vez ldquoa instituiccedilatildeo que produzia a memoacuteriardquo 359 Teriacuteamos
entre os selvagens do seacuteculo XVI uma ordem do tempo baseada natildeo na justiccedila mas
na vinganccedila ao longo da qual o homem sacrificado recebia a gloacuteria de em seu
momento final ocupar um papel anaacutelogo ao do Deus agostiniano (conditor et
administratorhellip ordo temporum)360 O ritual de canibalismo era antecedido por um
diaacutelogo Na leitura de Castro nesses debates
Os exemplos natildeo trazem nenhuma evocaccedilatildeo religiosa
nenhuma menccedilatildeo a divindades ou ao destino poacutestumo
da alma da viacutetima Em troca todos eles falam de algo
354 NOacuteBREGA Padre Manuel da Dialogo sobre a conversatildeo do Gentio MetaLibri Satildeo Paulo 2006
[1556-1557] p 9 355 FREYRE Gilberto Casa-grande e senzala (formaccedilatildeo da famiacutelia brasileiro sob o regime de
economia patriarcal) Rio de Janeiro Joseacute Olympo 1954 [1933] pp 316-318 356 CASTRO 2005 190-192 357 CASTRO 2005 216 358 CASTRO 2005 211 359 CASTRO 2005 234 360 ldquo() in ordine temporum habenda sunt quorum est conditor et administrator Deusrdquo
AUGUSTINI S Aureii De Doctrina Christiana Libri Quatuor et Enchiridion ad Laurentium Editio
Stereotypa Lipsiae Sumtibus et typis caroli tauchnitii 1838 pp Livro II Cap XXVIII [2844] pp 64-
65 Trabalharei o tempo em Santo Agostinho no capiacutetulo 3
115
que passou despercebido aos comentadores Eles falam
do tempo () O combate verbal dizia o ciclo temporal
da vinganccedila o passado da viacutetima foi o de um matador o
futuro do matador seraacute o de uma viacutetima a execuccedilatildeo iria
soldar as mortes passadas agraves mortes futuras dando
sentido ao tempo () O dueto e o duelo entre cativo e
matador associando indissociavelmente as duas fases do
guerreiro que se respondem e se escutam ndash as perguntas
e as respostas satildeo permutaacuteveis ndash eacute aquilo que torna
possiacutevel uma relaccedilatildeo entre passado e futuro Soacute quem
estaacute para matar e quem estaacute para morrer eacute que estaacute
efetivamente presente isto eacute vivo O diaacutelogo cerimonial
era siacutentese transcendental do tempo na sociedade
tupinambaacute361
Diferente de uma instituiccedilatildeo ocidental de reperaccedilatildeo moral e identitaacuteria a
agoniacutestica dos diaacutelogos que antecediam o sacrifiacutecio antropofaacutegico tinha como
resultado ldquoproduzir o tempordquo Para Castro que se afasta tanto da leitura cavalheiresca
de Montaigne quanto do materialismo de Florestan Fernandes ldquoo rito era o grande
Presenterdquo 362 O sacrificado era o refundador da ordem do tempo Mas a sua
administraccedilatildeo para seguir Agostinho residia natildeo na recuperaccedilatildeo da memoacuteria dos
mortos mas na manutenccedilatildeo da agoniacutestica com os inimigos ldquoestes eramrdquo escreveu o
antropoacutelogo brasileiro ldquoos guardiatildees da memoacuteria coletiva pois a memoacuteria do grupo ndash
nomes tatuagens discursos cantos ndash era a memoacuteria dos inimigosrdquo 363
Se a vinganccedila ldquonatildeo era um retorno mas um impulso adianterdquo se com isso ela
produzia o futuro o horizonte desse porvir natildeo poderia como ciclo afastar-se do
espaccedilo de experiecircncia ancestral dos tupinambaacutes Se esse ordenamento do tempo era
baseado na vinganccedila o tempo da vinganccedila seria o grande presente Os povos
indiacutegenas jaacute na percepccedilatildeo de Paulo Frontin natildeo poderiam crer na naccedilatildeo O
ldquoproblegraveme de lrsquoincroyance au seiziegraveme siegraveclerdquo evocado em Lucien Fegravebvre por
Viveiros de Castro poderia ser revisto nas entrelinhas do ciclo dos centenaacuterios Se
crer eacute obedecer ndash ao entregar-se por completo agrave palavra alheia ndash os iacutendios do Brasil
oitocentista continuariam inconstantes Sem aceitar as prerrogativas europeias de
futuro nem a obediecircncia agrave moral dita civilizada eles tornavam sua superaccedilatildeo aos
olhos do oficiante da naccedilatildeo um requisito sine qua non tanto do progresso quanto da
ordem O discurso de Frontin ao expulsar o iacutendio do templo da naccedilatildeo pratica o
361 CASTRO 2005 235-238 362 CASTRO 2005 238 363 CASTRO 2005 240-241
116
sacrifiacutecio metoniacutemico de sua alma de sua moral de seus costumes num movimento
que se imagina indispensaacutevel ao progresso da naccedilatildeo A alma ameriacutendia flanando
selvagem e alimentando ciclos de vinganccedila eacute vituperada em nome de uma alma que
ascende linear e irreversivelmente em direccedilatildeo agrave perfectibilidade junto ao altar da
paacutetria
O Brasil natildeo era o iacutendio Os costumes dos povos autoacutectones natildeo poderiam
fazer parte da memoacuteria federada Simples de traccedilos culturais homogecircneos trocircpegos e
inconstantes frente ao ritmo do progresso spenceriano seus haacutebitos selvagens
formavam algo como a imagem desagradaacutevel de um passado ainda presente Presente
e incapaz de reconhecer-se na federaccedilatildeo o ldquoperspectivismo ameriacutendiordquo ndash anaacutelogo
sem duacutevida as constituiccedilotildees identitaacuterias do povo Hopi estudado por Richard Handler
ndash natildeo pensava como deveria preso aos seus cracircnios364 E nisso atacar os povos
autoacutectones ndash recorrendo quando necessaacuterio ao repertoacuterio racioloacutegico em voga ndash
poderia tambeacutem ser entendido como uma forma de marcar posiccedilatildeo afirmar uma
identidade republicana europeacuteia e progressista afastando-se do indianismo que
pintara com cores romacircnticas certos elementos da tradiccedilatildeo imperial365
Paulo Frontin foi o homem que ao lado de Ramiz Galvatildeo recebeu a gloacuteria de
celebrar a naccedilatildeo Junto ao diretor da Biblioteca Nacional seu semblante ficou
guardado sob a proteccedilatildeo de duas folhas de papel vegetal nas paacuteginas iniciais do IV
volume do Livro do Centenaacuterio Os magistrados morais embora alternassem
momentos de maior ou menor efusividade reverberavam em uacutenissono sua relaccedilatildeo
com o passado ldquoChamou-se Brasil esta maravilhosa terrardquo disse Ramiz Galvatildeo
pouco apoacutes o discurso do colega Frontin ldquopovoada entatildeo de rudes criaturas humanas
que mal conheciam a pedra polidardquo Como apoacutestolos da evanescecircncia do mal
(Spencer) da benevolecircncia necessaacuteria do progresso ldquoos processos colonizadores da
metroacutepole incutiram-lhe a pouco e pouco os beneficios do govecircrno e da disciplina
socialrdquo 366
Logo protegidos pela fortaleza erudita de suas ediccedilotildees comemorativas os dois
magistrados de 1900 demonstravam desde a Sessatildeo Magna do Centenaacuterio que a
364 Sobre o ldquoperspectivismo ameriacutendiordquo inspiro-me tambeacutem em CASTRO Eduardo Viveiros de Os
pronomes cosmoloacutegicos e o perspectivismo ameriacutendio In Mana 2(2)115-144 1996 365 Ver ALONSO op cit p 162 ldquoa dominaccedilatildeo saquarema na poliacutetica tinha sua contraparte numa
tradiccedilatildeo intelectual composta do catolicismo hieraacuterquico o indianismo romacircntico e o liberalismo
poliacuteticordquo 366 GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz Sessatildeo Magna do Centenaacuterio no dia 4 de Maio de 1900
Livro do Centenaacuterio 1500-1900 Vol 4 p 194
117
histoacuteria a ser oficiada jaacute estava escrita em tintas lusitanas Sua versatildeo era proacute-
europeacuteia desprovida do sentimentalismo indianista caro a outras geraccedilotildees orgulhosa
da heranccedila catoacutelica ndash a supracitada ldquomais poderosa focircrccedila civilizadora da epochardquo O
Livro do Centenaacuterio registro de um gecircnero comemorativo didaticamente orientado
unia ainda mais uma vez o uacutetil e o agradaacutevel o moral e o poliacutetico em um grande
manual que tratava o passado como patrimocircnio de uma civilizaccedilatildeo europeacuteia
ultramarina Seu recorte a ordem das questotildees nele proposta natildeo foi apenas resultado
editorial de um livro Nele editou-se uma versatildeo da naccedilatildeo Uma ediccedilatildeo realizada
dentro de uma moldura moral que valorizava as virtudes lusitanas e catoacutelicas
pressuposto do ordenamento de seu tempo Ou a leitura de suas memoacuterias natildeo instrui
nossa relaccedilatildeo com o passado O que elas fazem lembrar O Descobrimento de certo
pelo menos mais de uma vez367 Do catolicismo das belas letras da arte da ciecircncia e
da imprensa mesmo que as uacuteltimas como reconhecem agravequeles que foram atarefados
com a redaccedilatildeo dos respectivos artigos estivessem mais ligadas ao futuro do que
mesmo ao presente da naccedilatildeo368
A eacutegide do pensamento da ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo ficou conhecida como ufanismo
cujo paradigma parece ter sido Porque me ufano de meu paiacutes livro escrito por
Affonso Celso tambeacutem no contexto do jubileu nacional Celso ocupava a cadeira de
nuacutemero 36 da Academia Brasileira de Letras criada por membros da geraccedilatildeo de
1870 instituiccedilatildeo tanto saudosa em seus aspectos formais eacute verdade das tradiccedilotildees e
pompas imperiais Dedicado a seus filhos Porque me ufano tinha como objetivo
garantir que a nova ldquogeraccedilatildeo exceda a minha e as precedentes senatildeo em semelhante
amor [pelas coisas paacutetrias] ao menos nas ocasiotildees de o comprovarrdquo Era preciso
acreditava afastar nosso sentimento de inferioridade e munido dos argumentos
expostos no livro reverberar ldquosomos brasileirosrdquo e a seguir levantar a ldquocabeccedila
367 Afinal ldquoSepultar no exquecimento e no silencio esta data celebre seria exquecer tambem a vida
intellectual e moral da naccedilatildeordquo como escreveu AZEVEDO Moreira de O Descobrimento do Brasil
Intuitos da Viagem de Pedro Alvares Cabral In Livro do Centenaacuterio op cit Vol I p III Memoacuteria que
repete o tema inaugural de Capistrano de Abreu em um estilo mais popular 368 Joseacute Verissimo de Mattos em sua memoria sobre A Instrucccedilatildeo e a Imprensa reconhece que os
perioacutedicos brasileiros em nuacutemero e qualidade ainda estavam em sua infacircncia MATTOS op cit
Coelho Netto chamado a escrever sobre as Bellas Artes diz que ldquoAo Brasileiro natildeo faltam
intelligencia e gosto e com pequeno esforccedilo e perseveranccedila dentro em pouco podemos ver nivelado
com o progresso material da Patria o progresso artistico que seraacute o attestado da sua vitalidade
espiritual A Arte eacute a summa da civilizaccedilatildeo de um povo - urge natildeo exquece-la para que natildeo percamos
o passado e possamos ser dignos do futurordquo NETTO Coelho Bellas Artes in Livro do Centenaacuterio
Vol II p 77
118
transbordantes de nobre ufaniardquo 369 Seu argumento sobre a ldquosuperioridade brasileirardquo
era dividido em onze partes da grandeza territorial agraves riquezas nacionais da ausecircncia
de desastres naturais ao elogio das trecircs raccedilas do nobre mesticcedilo aos grandes homens
da histoacuteria
Grandes homens Sim uma sucessatildeo de nomes seguidos de breves adjetivos
ou curtas descriccedilotildees de caraacuteter (Cap XXXVII) Breves ao menos ateacute aportarem no
seacuteculo XIX tempo de independecircncia era do Impeacuterio Affonso Celso natildeo eacute tiacutemido em
explicitar suas simpatias pela antiga famiacutelia imperial Filho do visconde de Ouro
Preto conde pela Santa Seacute ele jaacute havia publicado vasta obra dentro da qual
destacavam-se elogios aos monarcas Vultos e Fatos (1892) e o Imperador no Exiacutelio
(1893) adiantam a sua maneira a obra de 1900 Obra que presta suas honras a D
Pedro I fundador de ldquoum esperanccediloso impeacuteriordquo libertador de ldquoum antigo reinordquo
homem que havia ldquorenunciado duas coroas servido duas Paacutetrias deixando fama
imortal na Europa e na Ameacutericardquo370 Obra que enfim encontra em D Pedro II ldquoo
grande vulto da histoacuteria brasileirardquo ndash vulto que impera absoluto no capiacutetulo XXXVIII
ldquoEacutepoca viraacute natildeo mui remotardquo profetizava Affonso Celso ldquoem que unanimemente se
lhe reconheceraacute a benemerecircncia proclamando-o a naccedilatildeo inteira o mais eminente dos
brasileiros o mais nobre dos americanos (sem excetuar Washington e Boliacutevar) uma
das figuras mais simpaacuteticas e venerandas da histoacuteria universalrdquo371
Mesmo que agrave margem da grande obra comemorativa ainda que excluiacuteda das
paacuteginas do Livro do Centenaacuterio a memoacuteria monarquista tratava de contar seus votos
no plebiscito-de-todos-os-dias Ou para ele fazia campanha investindo em
ldquoimortalizar a memoacuteriardquo do Imperador Braganccedila que ldquoapeado do trono banido da
Paacutetria ningueacutem acusou natildeo lavrou um protesto natildeo formulou uma queixa no meio
de tamanhas ingratidotildees e iniquidadesrdquo372 Foi-se o tempo no entanto desse
ldquofuncionaacuterio perfeitordquo373 Sem dar nomes aos regimes poliacuteticos sem falar em
monarquia ou repuacuteblica o ufanista por mais positivo que fosse em relaccedilatildeo ao futuro
do Brasil apontava-lhe dois perigos continuar a ter maus governos e continuar a
somar instituiccedilotildees incompatiacuteveis com sua iacutendole Celso jaacute tinha alguns capiacutetulos
atraacutes reeditado antigo argumento ao dizer que ldquorepetirei com Robert Southey que soacute
369 CELSO Affonso Porque me ufano de meu paiacutes 11a ed Rio de Janeiro Briguet amp Cia 1937 p 5 370 Idem p 167 371 Idem p 168 372 Idem p 176 373 Idem p 175
119
a mais extrema e obstinada prevaricaccedilatildeo da parte do governo ou a mais cega e
culpaacutevel impaciecircncia do povo poderatildeo subverter a influecircncia e a prosperidade do
Brasilrdquo374
ldquoO Brasil eacute perfeitamente homogecircneo material e moralmente pelo lado social
e pelo lado etnico pois nele se cruzam e se fundam todas as raccedilasrdquo375 Raccedilas que
excetuando-se a europeacuteia pareciam ter vindo a terra unicamente para completar a
missatildeo heroacuteica da formaccedilatildeo do mesticcedilo Os iacutendios eram apresentados como bons
selvagens acessiacuteveis em geral agrave catequese dos missionaacuterios Foram todos relegados
a um capiacutetulo sobre as ldquocuriosidadesrdquo de seus costumes (XVII) Aos negros o Brasil
deveria ldquoimensa gratidatildeordquo Gratidatildeo por seus serviccedilos prestados agrave paacutetria tatildeo valorosos
e reconhecidos que os filhos da Aacutefrica teriam contribuiacutedo para que ldquono Brasil jamais
houvesse preconceito de corrdquo376
A seleccedilatildeo obliteradora da memoacuteria a respeito dos indiacutegenas ao lado do deliacuterio
para com a condiccedilatildeo social dos afro-brasileiros eram experiecircncia intelectuais
compartilhadas entre diversos membros monarquistas ou republicanos da geraccedilatildeo de
1900 Geraccedilatildeo que se apropriava por um lado do repertoacuterio progressista spenceriano
da lei comteana dos trecircs estaacutegios das teorias racioloacutegicas de Taine e por outro havia
assistido agrave manifestaccedilatildeo do ldquodesejo mais ardenterdquo dos liberais abolicionistas o de que
ldquonatildeo fique sinal de tudo isso e que a anistia do passado elimine ateacute mesmo a
recordaccedilatildeo da luta em que estamos empenhadosrdquo377 Organizar e selecionar separar e
descartar Se a memoacuteria coletiva eacute a forma que um grupo social encontra para ordenar
suas lembranccedilas o resultado loacutegico de sua administraccedilatildeo torna-se expresso no
esquecimento Esquecimento que nas matildeos de uma vontade poliacutetica da memoacuteria eacute
orientado diante dos valores morais de um grupo Grupo que tinha como porta-voz
um personagem ora eleito como lugar-tenente dos grandes homens aclamado
celebrante ou orador oficial Em 1900 um officiant que se julgava apresentado em
toga magistral a toda naccedilatildeo
374 Idem p 48 375 Idem pp 194-195 376 Idem p 74 377 NABUCO O Abolicionista op cit p 206
120
26 Oradores historiadores e magistrados morais
Associaccedilotildees dedicadas agrave comemoraccedilatildeo do descobrimento do Brasil tivemos
vaacuterias378 Uma como vimos seraacute lembrada como a mestra e organizadora dos
eventos Sob a direccedilatildeo de Ramiz Galvatildeo ndash ex-diretor da Biblioteca Nacional baratildeo
por concessatildeo papal professor do Pedro II ndash a Associaccedilatildeo conquistou a cobertura
diaacuteria da imprensa Tendo os periacuteodicos a seu lado os magistrados morais da naccedilatildeo
alcanccedilavam uma projeccedilatildeo impensaacutevel aos oradores claacutessicos adentrar com suas
palavras transcritas em paacuteginas de jornal o proacuteprio lar dos espectadores Diversos de
seus tiacutetulos e peccedilas veiculadas nos perioacutedicos da eacutepoca mais tarde seriam
reproduzidos no uacuteltimo volume do Livro do Centenaacuterio com o claro intuito de
edificar uma memoacuteria da comemoraccedilatildeo De fato lembramos a grande obra coletiva
como a maior contribuiccedilatildeo historiograacutefica do ano de 1900 a qual dentre a escolha de
seus colaboradores parecia aliar-se a nomes ligados a posiccedilotildees chave do saber no
Brasil Eacute esse uacuteltimo tomo do Livro comemorando a comemoraccedilatildeo que vai inventar
definir e divulgar a ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo
Afonso Celso Ramiz Galvatildeo Padre Julio Maria Um elemento unia esses trecircs
personagens de 1900 suas estreitas relaccedilotildees com a Igreja Catoacutelica Os dois primeiros
natildeo eram apenas devotos mas nobres por concessatildeo papal o uacuteltimo em sua memoacuteria
encomendada para o Livro do Centenaacuterio refletia certo clima presente nas polecircmicas
internas do IHGB quais ele proacuteprio foi pivocirc jaacute durante sua admissatildeo como soacutecio da
casa O velho instituto tatildeo desprestigiado durante os turbulentos anos dos marechais
associado de modo inevitaacutevel a uma famiacutelia imperial exilada e a um projeto
centralista de naccedilatildeo assistiu entre 1889 e 1912 a nada menos que 23 sacerdotes
adentrarem seus quadros379 Eram tempos difiacuteceis tambeacutem para a feacute catoacutelica ainda
titubeando entre as consideraccedilotildees do Conciacutelio Vaticano I ndash ldquocontra a moral
lsquocientiacuteficarsquo laica a moral cristatilderdquo ldquocontra a razatildeo a feacuterdquo ndash e as tentativas de
378 ldquoSatildeo exemplo a lsquoSociedade Commemoradora do Quarto Centenariordquo em Satildeo Vicente no Litoral
Paulista a lsquoAssociaccedilatildeo do Centenario do Brasil ndash em honra a Pedro Alavares Cabralrsquo ou o lsquoCentro
beneficiente 4o Centenario da Descoberta do Brasilrdquo Ver WANDERLEY op cit p 61 379 O levantamento foi realizado por HRUBY Hugo O templo das sagradas escrituras o Instituto
Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro e a escrita da histoacuteria do Brasil (1889-1912) In histoacuteria da
historiografia nuacutemero 02 marccedilo 2009 pp 50-66 (o nuacutemero de 23 sacerdotes aparece na paacutegina 52)
121
ldquoreconciliaccedilatildeo com o mundo modernordquo propostas jaacute nos anos finais do seacuteculo XIX
pelo papa Leatildeo XIII380
Tensotildees entre republicanos e monarquistas atingiam a Igreja antigo baluarte
legitimador do poder e da tradiccedilatildeo imperial O teacutermino do regalismo imposto pela
uniatildeo entre Estado e Igreja prevista na constituiccedilatildeo anterior fora no entanto ndash como jaacute
indicava a leitura da memoacuteria escrita por Padre Maria ndash recebido com bons olhos por
boa parte do clero nacional A nova ordem limitava a accedilatildeo dos sacerdotes catoacutelicos na
sociedade brasileira enquanto que por outro lado permitia-lhe maior autonomia uma
relaccedilatildeo menos mediada para com o papado e o coleacutegio dos cardeais O ano de Jubileu
como indicava o colaborar do centenaacuterio era igualmente tempo de luta
Luta que se dava tambeacutem no seio do IHGB opondo soacutecios simpaacuteticos agraves
teorias e filosofias da histoacuteria evolucionistas e secularizadoras de matriz iluminista e
os apoacutestolos de um providencialismo tardio os quais lanccedilavam a histoacuteria em debates
sobre feacute e razatildeo matildeo de Deus e natureza humana glosando o acaso a fortuna e o
contingente sob o invoacutelucro universal e necessaacuterio da Providecircncia381
No IHGB Padre Maria encontrou-se nessa frente de batalha Jaacute durante a
leitura de seu parecer de admissatildeo o relator Baratildeo de Alencar lanccedilou diversos
impropeacuterios agrave ordem republicana a Igreja deveria ser tatildeo importante quanto o Estado
e ganhava todo direito de reclamar quando se sentisse por ele desprestigiada
ldquoTemeraacuteria responsabilidaderdquo essa agora tomada em matildeos pelo governo lanccedilando a
paacutetria aos braccedilos de um patriotismo ateu o qual desconhecia senatildeo ignorava com
propoacutesitos a ldquofaculdade matildee que guia providencialmente o homem em todos os
misteres da vidardquo382 De palavras fortes uma coacutepia do discurso do Baratildeo de Alencar
vazou para a imprensa resultando em sua exoneraccedilatildeo das Comissotildees de Admissatildeo383
380 Respectivamente BARROS R S M de A ilustraccedilatildeo brasileira e a ideacuteia de Universidade Satildeo
Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1986 pp 51-52 e OLIVEIRA L L Terra de Santa Cruz
In A questatildeo nacional na Primeira Repuacuteblica Satildeo Paulo Brasiliense 1990 p 161 381Momigliano jaacute comentara o crescimento do providencialismo entre os historiadores europeus do
iniacutecio do seacuteculo XX MOMIGLIANO Arnaldo As raiacutezes claacutessicas da historiografia moderna Bauru
EDUSC 2004 pp 211-217 Ao estudar o IHGB Hugo Hruby percepeu que ldquoa Histoacuteria ao final do
seacuteculo XIX e limiar do XX encontrava-se em meio aos debates entrea feacute e a razatildeo buscando se
legitimar atraveacutes das leis da Natureza dos homens ou de Deusrdquo HRUBY op cit 59 382 RIHGB Rio de Janeiro Imprensa Nacional t 62 parte 2 1900 p 334-335 383 ldquoA Igreja eacute uma instituiccedilatildeo tatildeo necessaacuteria como o Estado Tem portando o direito de reclamar
quando se vecirc desconhecida por elle Nas Conferecircncias da Assumpcatildeo () parece que o objectivo
principal () eacute o restabelecimento no Brazil das relaccedilotildees do Estado com a Igrejardquo () ldquoFoi sem duacutevida
uma temeraria responsabilidade a que assumiu o Estado no Brazil ndash paiz catholico ndash com a innovaccedilatildeo
do desconhecimento da religiatildeo tradicional do povo brazileirordquo Idem p 335
122
Tudo se passa como se fosse um elogio barafundo Era primeiro de setembro
de 1899 ano anterior ao jubileu nacional Padre Maria futuro colaborador do Livro
do Centenaacuterio membro do seleto grupo do Baratildeo de Ramiz pede passagem ao
IHGB no que eacute recebido por um caloroso discurso em defesa da Igreja e do
providencialismo Mas Julio Maria na condiccedilatildeo de magistrado moral aprendera a
apostar em argumentos conciliatoacuterios como explicaria tambeacutem em sua memoacuteria ele
natildeo se opunha agrave Repuacuteblica via com severas restriccedilotildees o regalismo do Impeacuterio e
acreditava que sua luta se daria na instruccedilatildeo da ldquomocidaderdquo ndash das novas geraccedilotildees ndash
sempre otimista em sua crenccedila na compatibilidade cientiacutefica entre feacute e razatildeo384
A reconciliaccedilatildeo da Igreja com o mundo moderno diretriz leonista aparecia
como caminho para o arrefecimento da crise moral e da dissoluccedilatildeo dos costumes ldquoOs
costumes as tradiccedilotildees o sentimento nacional as famiacutelias () tudo diz tudo exclama
tudo brada o Brasil pertence a Jesus Cristordquo ldquoGlorificar a Paacutetria revelando a sua
histoacuteriardquo ldquointuito supremordquo do IHGB grifado assim no original marcava tambeacutem o
elo providencialista entre uma revelaccedilatildeo sagrada e outra profana385 Mas nem todos
concordavam com a missatildeo divina de elevar o cristianismo ao grau de mais evidente
fato histoacuterico da naccedilatildeo386
Os ldquopositivistasrdquo inimigos mortais do Padre Maria eram para alguns
membros do IHGB o nemesis entrincheirado dentro dos muros do instituto Na
verdade o que Padre Maria e alguns outros soacutecios como Maximiano Marques
Carvalho entendiam por ldquopositivistasrdquo era uma qualquer sorte de posturas que
substituiacuteam a Providecircncia por outras palavras de ordem retiradas do repertoacuterio
intelectual da ciecircncia oitocentista progresso evoluccedilatildeo estaacutegios de desenvolvimento
etc Natildeo parecia ser um ataque endereccedilado unicamente ao apostolado de Miguel
Lemos
Ainda em 1884 Marques Carvalho denunciava essa ldquonova escolardquo que ldquose
levantou na Franccedila propondo-se fazer resuscitar as ideacuteas de democrito e Epicuro
entre os antigos e de Bento Espinosa e de Augusto Comte entre os modernosrdquo Escola
que ldquotomou o nome de positivista sendo na realidade panteiacutestardquo natildeo encontrou eco
em lugar algum mas arregimentou ldquoalguns homens de talento em Portugal que
384 Idem p 375-81 385 Idem p 372-3 386 Padre Julio Maria jaacute afirmava que ldquoO catholicismo que natildeo eacute senatildeo o christianismo integral natildeo eacute
soacute a religiatildeo histoacuterica do povo brazileiro eacute o facto historico por excellencia na histoacuteria da nossa
paacutetriardquo Idem p 371
123
levantaacuteratildeo um facho de revoluccedilatildeo idealista e enviaacuteratildeo suas centelhas ao Brazilrdquo
Homens de talento em Portugal Carvalho refere-se precisamente a ldquoTheophilo
Bragardquo cuja ldquosociologia ou philosophia transcedental () escripta com muito talento
e publicada em Portugal vem chegar ao Brasilrdquo Estudos que continham ldquoideacuteas
esparsas de um monstruoso materialismordquo que natildeo possui outro intuito senatildeo
ldquodestruir as crenccedilas e demonstraccedilotildees da Providencia divinardquo abalando as ldquoideacuteas
fundamentaes das sociedades familiar e nacionalrdquo387
ldquoOs Centenaacuterios disse o muito erudito Theophilo Braga satildeo a coordenaccedilatildeo de
sentimentos existentes que estavam isolados na consciencia de cada individuo ao
primeiro impulso expandem-se em unanimidade e daqui vem a sua gradezardquo388 As
ofensas a Braga autor das siacutenteses afetivas texto tatildeo oportunamente lembrado por
Ramiz Galvatildeo em seus discursos compunham somente uma dimensatildeo das criacuteticas
que seratildeo estampadas nas paacuteginas da Revista do IHGB
Durante a sessatildeo solene do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro o
conselheiro Aquino e Castro fez seus reparos aos organizadores do jubileu nacional
O discurso fora transcrito parcialmente por Max Fleiuss pouco mais tarde publicado
pela revista no momento em que ldquodeliberaram os poderes publicos e associaccedilotildees
particulares commemorarrdquo No entanto escreveu Fleiuss ldquoa data soffreu uma
alteraccedilatildeo que a verdade historica repelerdquo389 O problema todo girava em torno da
escolha do dia 3 de maio ndash em detrimento do 22 de abril ndash pela Associaccedilatildeo do Quarto
Centenaacuterio do Descobrimento do Brasil Os organizadores mantinham uma data que
supostamente corroborava a reforma do calendaacuterio gregoriano e que vinha sendo
celebrada desde a lei de 9 de setembro de 1826390
Aquino e Castro apoacutes reafirmar a tese do 22 de abril baseando-se na ldquoprova
mais convincenterdquo ndash a Carta de Pero Vaz aceita por Ferdinand Denis Varnhagen e
Beaurepaire ndash chama a atenccedilatildeo para a Provisatildeo do rei de Portugal Felippe II datada
de setembro de 1582 O documento mandava cumprimir o Calendaacuterio Gregoriano
nos termos em que seguiria ao dia 4 de outubro daquele ano ldquonatildeo o dia 5 mas o dia
15 sendo o immediato 16rdquo ateacute completar os 31 dias mantendo-se os meses 387 RIHGB Rio de Janeiro Imprensa Nacional T 47 parte 2 p 593 388 GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz Sessatildeo Magna do Centenaacuterio no dia 4 de Maio de 1900
Livro do Centenaacuterio 1500-1900 Vol 4 p 194 389 FLEIUSS Max Centenaacuterios do Brazil In RIHGB Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1901 t 64
p 91 390 Lei de 9 de Setembro de 1826 ndash Marca os dias de festividade nacional em todo o ImperioIn
Colleccedilatildeo das Leis do Impeacuterio do Brasil Parte Primeira Rio de Janeiro Typographia Nacional 1880
p 7
124
anteriores com o nuacutemero original de jornadas A perda dos dias explicava ainda o
documento teria ldquosomente lugar no dito mez de outubro deste anno de 1582rdquo
reduzidos a 21 luas391 Aquino e Castro concluiacutea que ldquonatildeo se pretendeu dar efeito
retroactivo aacute nova disposiccedilatildeo contrariando o passado completa inversatildeo na ordem
das datasrdquo Inversatildeo que abalaria natildeo somente os tempos que jaacute se foram mas
tambeacutem as demandas comemorativas do presente alterando-se com eles igualmente
ldquoantigos factos histoacutericos ateacute hoje e por noacutes mesmos commemoradosrdquo como o
descobrimento da Ameacuterica (12 de outubro de 1492) ou a inauguraccedilatildeo do caminho
mariacutetimo das Iacutendias (20 de maio de 1498)392
Era o problema mero preciosismo antiquaacuterio Para Aquino e Castro tratava-se
de algo como um dever cumprido pelo historiador Para Max Fleiuss essa era a
reparaccedilatildeo da verdade histoacuterica Mas estaria esse regime de verdade excluiacutedo da
reparaccedilatildeo moral sob a forma do julgamento da posteridade Fleiuss propotildee a seguir
um histoacuterico em ldquosummarios traccedilosrdquo do Brasil nos centenaacuterios de 1600 1700 e 1800
cada uma das datas recheadas de histoacuterias da histoacuteria ora sorvidas das fontes ora
atualizadas pelo historiador por fim endereccediladas ao deleite do leitor sem que antes
elencasse uma moral e um sentido
Em seu 1600 lido a partir da leitura de Fernatildeo Cardim e do Tratado
descriptivo de Gabriel Soares de Souza ldquoa prosperidade do Brazil natildeo era simples
fantasiardquo ainda que o conceito laacute natildeo existisse Os francezes jaacute haviam sido em duas
ocasiotildees expulsos da baia do Rio de Janeiro e as capitanias ao longo de nosso
primeiro seacuteculo soacute natildeo produziram mais accedilucar pelo caraacuteter inicialmente titubeante
de seus poderes fragmentados ldquoJaacute nessa longiacutencua eacutera a centralizaccedilatildeo administrativa
se impunha como medida imprescindiacutevel aacute marcha regular dos negoacutecios puacuteblicosrdquo
disse Fleiuss ao que completaria seu paralelo de modo nada sutil ldquooxalaacute que em
tempos muito mais modernos esse exemplo natildeo tivesse sido desprezadordquo393
No centenaacuterio seguinte em 1700 o Brasil estava ldquonovamente dividido em
dois governos e como da primeira vez reunido pouco depois em um soacuterdquo num tempo
em que o paiacutes travou ldquolutas formidaacuteveis tendo que combater os francezesrdquo e
holandeses Natildeo faltaram certos elogios a Mauriacuteciu de Nassau sendo ldquojusto consignar
que natildeo foram infrutiacuteferos os vinte e quatro annos de dominaccedilatildeo hollandezardquo
391 FLEIUSS op cit pp 92-93 392 Idem p 93 393 Idem pp 97-98
125
atribuiacutedos em seus sucessos ao ldquoespiacuterito administrativordquo do governador batavo Mais
edificantes no entanto seriam as consideraccedilotildees a respeito do Quilombo dos
Palmares ldquoa nosso ver a primeira guerra civil de nossa paacutetriardquo e embriatildeo que ldquonatildeo se
exterminou jamaisrdquo ora resultado das ldquopraticas humanasrdquo ldquoora explodindo quando a
tibieza dava a isso ensejo elle viveu sempre a vida horrivel dos parasitas mausrdquo A
escravidatildeo encontrava ainda mais um paralelo com os negros tomando ldquoda natureza o
que ella espalha com profusatildeo pela flora e pela fauna selvagemrdquo a crescer e se
emaranhar no quilombo ldquocomo as arvores das selvasrdquo A raccedila amante parte africana
da naccedilatildeo tem seu desenvolvimento acompanhado da tensatildeo de uma incipiente guerra
civil Isso natildeo impediu Fleiuss ndash como certa vez natildeo impediu Taacutecito de fazer o
mesmo com os baacuterbaros ndash de admirar sua capacidade de obedecer ldquodisposiccedilotildees
verdadeiramente extraordinaacuterias quanto ao ponto dos deveres civicos naquella
eacutepocardquo sob a lideranccedila do Zumbi394
ldquoEntra o seacuteculo XIXrdquo ndash continua Pleiuss em sua jornada pelos centenaacuterios do
Brasil ndash ldquoe desde logo surge a figura de Bonaparte apoacutes o 18 de Brumario como um
ente predestinado a reunir em si os destinos do mundordquo Sua fortuita e inesperada
demonstraccedilatildeo de bonapartismo natildeo vem de uma maacute leitura de Stendhal mas pelo
contraacuterio carrega uma criacutetica imbuiacuteda em outro claro paralelismo poliacutetico com o
presente da repuacuteblica Ora
ldquoextincta a Revoluccedilatildeo que conturbava os povos da
Europa celebrisando lugubremente certos heroacutees dessa
tragedia horriacutevel heroacutees que infelizmente cem annos
depois em outra regiatildeo da terra tiveram imitadores
enthusiastas a Franccedila ia encontrar no Primeiro Consul o
Maicirctre que lhe havia de elevar o nome sob multiplos
prestigios crando a epopeacuteia militar da edade
contemporaneardquo395
Aleacutem do exemplo da Revoluccedilatildeo Francesa aqueles vindos da Ameacuterica do
Norte ndash sob a figura de ldquoJorge Washington modelo impereciacutevel de patriotismo e
abnegaccedilatildeordquo ndash natildeo inspirariam a imitaccedilatildeo dos habitantes do Brasil Fleiuss reconhece
as guerras de emboabas mascates e com certa rapidez que natildeo permite evocar-lhe o
nome de nenhum grande homem a ldquorevoluccedilatildeo em Minas que tatildeo mal interpretada
394 Idem pp 101-102 395 Idem p 106 Grifos meus
126
tem sido exaltando-se o merito diminuido de uns com manifesto prejuizo dos que
verdadeiramente se empenharam nessa tentativa de separaccedilatildeordquo396
Para encerrar o ldquoterceiro seacuteculo de existenciardquo Fleiuss compra outra polecircmica
dessa vez com o autor de o Brasil e as Colocircnias Para Oliveira Martins como se sabe
Portugal teria estabelecido boa parte de seu impeacuterio colonial jaacute sob o signo da
decadecircncia ao que ele acrescentava apresentar o Brasil jaacute em finais do seacuteculo XVIII
ldquoos elementos constitucionae de uma naccedilatildeordquo precipitados dizia pelos desmandos e
corrupccedilotildees da corte de D Joatildeo VI logo aportada no Rio de Janeiro Essa eacute uma
opiniatildeo que Fleiuss natildeo pode achar razoaacutevel lanccedilando-o em uma longa digressatildeo
sobre os feitos econocircmicos de Pombal e as qualidades administrativas do monarca
portuguecircs A nacionalidade afinal tinha data marcada para surgir ldquoO terceiro
centenaacuterio do Brazil terminavardquo retrucou o Fleiuss ldquoem condiccedilotildees que annunciavam
para futuro natildeo remoto a instituicatildeo de uma nova nacionalidade a que o espiacuterito
liberal de muitos brazileiros prestava concurso soberanordquo397
Suas desavenccedilas com Oliveira Martins pareciam no entanto pontuais e em
nome da imparcialidade natildeo se apresentavam sob quaisquer espectros poliacuteticos ldquoA
historia sendo essencialmente uma grande paacutetria de moralrdquo declara Fleiuss ldquonatildeo
deve ficar prejudicada por espirito de seita ou de partidarismordquo ao que completa ser
ldquoseu principal objetivo a analyse serena imparcial e severa dos homens e das
cousasrdquo398 Paacutetria de moral Essa posiccedilatildeo teoacuterica ecoava o proacuteprio Martins a seguir
citado apenas como ldquonotaacutevel publicista contemporacircneordquo chamado a palavra a partir
da introduccedilatildeo de sua Histoacuteria de Portugal
ldquoo desenvolvimento do criteacuterio racional e o predomiacutenio
crescente dos processos proacuteprios das sciencias baniram
os modelos antigos e fizeram da historia um gecircnero
novo Nem os discursos Moraes sobre historia aacute
maneira do XVII seacuteculo nem o doutrinarismo secco do
XVIII que sobre factos e instituiccedilotildees mal conhecidos
construiacutea systemas geraes chimericos nem a opiniatildeo
muito seguida em nossos dias de considerar a historia
unicamente nos seus phenocircmenos exteriores
396 Idem p 106-107 397 Idem p 110 398 Idem p 111 Mais tarde o autor cita Ruy Barbosa dizendo que ldquoo homem () cujo horizonte mental
se confunde com o horizonte visual dos partidos nunca sera capaz das virtudes que assignalam os
grandes regedores de povos menos digno ainda seraacute o homem que se propuzer a tratar de factos
historicos submettendo-os aacute influencia nefasta de suas predilecccedilotildees Idem p 112
127
averiguando eruditamente as eacutepocas e as condiccedilotildees dos
sucessos merecem a nosso ver imitaccedilatildeordquo399
A nova histoacuteria de Oliveira Martins tendo banido primeiro os discursos da
histoacuteria dos costumes depois aqueles que edificavam ldquosistemas gerais quimeacutericosrdquo ndash
sem esquecer de tomar distacircncia do diletantismo antiquaacuterio ndash natildeo parece na verdade
ter mantido um pouco de cada um dos mundos O regime de historicidade moderno
de seu tipo ideal de sabor weberiano ao avatar empiacuterico que a histoacuteria da histoacuteria nos
proporciona ainda operaria dentro de uma circunscriccedilatildeo moral ndash mesmo que
argumentemos que ele natildeo assuma tons moralistas Ou natildeo era ldquoa historia sobretudo
uma liccedilatildeo moralrdquo Eis a conclusatildeo que no entender de Martins ldquosaacutee de todos os
eminentes progressos ultimamente realisados no focircro das sciencias sociaesrdquo400
Apoacutes as breves poreacutem recorrentes desavenccedilas com Oliveira Martins ndash sempre
no que diz respeito ao julgamento moral do caraacuteter dos aristocratas lusitanos ndash Max
Fleiuss volta-se contra seus reais inimigos Eacute o caso agora de enfrentar as posiccedilotildees
republicanas expressas ldquoem um livro de histoacuteria poliacuteticardquo pelo natildeo diretamente
nomeado Felisbello Firmo de Oliveira Freire No capiacutetulo sobre o Departamento de
Instrucccedilatildeo de sua Histoacuteria Constitucional da Republica dos Estados Unidos do
Brasil Freire havia chamado D Joatildeo VI de ldquobraganccedilatildeo imbecil e cynicordquo ao que
completou dizendo que ele ldquonatildeo tinha a perdicularidade decorativa do estylete tinha
bochechas pernas inchadas e como sua esposa Carlota natildeo se lavava nunca
crescendo como os mineraes pela juxtaposiccedilatildeo do ciscordquo401 Trata-se como vemos
da memoacuteria republicana sobre o D Joatildeo VI grotesco e pitoresco ora comendo
coxinhas de galinha retirada dos bolsos ora temendo raios memoacuteria que seraacute pouco
399 Idem Ibidem 400 Ao que ele completa ldquoA realidade eacute a melhor mestra dos costumes a critica a melhor bussola da
intelligencia por isso a historia exige sobretudo observaccedilatildeo directa das fontes primordiaes pintura
verdadeira dos sentimentos descripccedilatildeo fiel dos acontecimentos e ao lado disto a frieza impassivel do
critico para coordenar comparar de um modo impessoal ou objectivo o systema dos sentimentos
geradores e dos actos positivos () Todos estes systemas poreacutem ensaios successivos para determinar
o genero de um modo definitivo teem um lado de verdade aproveitavel Os modelos classicos fizeram
sentir o caracter moral da historia os modelos abstractos a necessidade de comprehender os
phenomenos num systema de leis geraes os modelos eruditos finalmente a condiccedilatildeo imprescriptivel
de um conhecimento real e positivo da chronologia e dos elementos que compotildeem o meio externo ou
phisico das sociedades O intimo e o essencial consiste no systema das instituiccedilotildees e no systema das
ideacuteas collectivas que satildeo para a sociedade como os orgams e os sentimentos satildeo para o indiviacuteduo
consistindo por outro lado no desenho real dos costumes e dos caracteres na pintura animada dos
logares e acessoacuterios que foram o scenario do theatro histoacutericordquo MARTINS Oliveira Histoacuteria de
Portugal 7 ed T 1 Antonio Maria Pereira Lisboa 1908 pp VIII-IX 401 FREIRE Felisbello Firmo de Oliveira Histoacuteria constitucional da Republica dos Estados Unidos do
Brasil Rio de Janeiro Typographia Moreira Maximino amp C 1894-1895 3 Vol
128
mais tarde retrabalhada em um contexto mais calmo pelo claacutessico de Oliveira
Lima402 Fleiuss critica o mau gosto de Freire ndash qual ldquoestampa nitidamente o criterio
dum escriptorrdquo ndash e a seguir tece novos e longos elogios ao Priacutencipe Regente ldquoA
figura portanto grotesca com que alguns escriptores apresentam D Joatildeo VIrdquo
continua Fleiuss ldquodesapparece ante a evidecircncia dos factos Natildeo podia ser mediocre
um homem que tantas provas deu de alto senso administrativo ()rdquo403 Se satildeo os
ldquomotivos moraesrdquo ndash completa reverberando novamente Oliveira Martins ndash que
dominam a histoacuteria a ldquoobra de D Joatildeo VI representa de facto o primeiro capiacutetulo de
formaccedilatildeo social de nossa paacutetriardquo404
Se Fleiuss a seguir reconhece que o governo de D Pedro I foi ldquosem duacutevida
cheio de difficuldades e natildeo raro de vacillaccedilotildees e errosrdquo natildeo deixa de advogar em
nome de sua memoacuteria E natildeo lhe basta listar dentre os feitos do primeiro Imperador
seus ldquoserviccedilos prestados aacute Patriardquo questionaacuteveis do ponto de vista republicano Sua
estrateacutegia eacute associaacute-lo a um personagem que jaacute contava muitos votos no plebiscito-de-
todos-os-dias chamando-o de volta ao palanque Braganccedila Fleiuss faz questatildeo de
transcrever o decreto de nomeaccedilatildeo de Joseacute Bonifaacutecio como tutor dos filhos e irmatildes de
D Pedro I seguido da carta do Imperador ao conselheiro seu ldquoamigo constanterdquo405
ldquoAinda eacute cedordquo declara Fleiuss ldquopara enunciar opiniatildeo minuciosa sobre o
governo de D Pedro IIrdquo No entanto ldquomuitos a sentem mas receiam expendel-ardquo
Diante da carga das investidas republicanas tecer elogios ao ldquocaracter de nossos
patriciosrdquo tornava-se moralmente ilegiacutetimo ldquoha como que um terror de tratar com
respeito e estima os homens do antigo regimenrdquo Eacute com essa consideraccedilatildeo que o
historiador do IHGB declara sem meias palavras que ldquoterminou hontem o cyclo que
por cincoenta annos assegurou ao nosso povo e aacute nossa terra um regimen em que a lei
o progresso e a honra natildeo eram simples ficccedilotildees em que na pessoa do soberano se
402 LIMA Oliveira D Joatildeo VI no Brasil 403 FLEIUSS RIHGB op cit p 118 404 Idem p 119 Essa tese vai ser melhor desenvolvida por Oliveira Lima em 1908 no livro supracitado
Sobre o contexto da citaccedilatildeo original de Martins ldquoO que domina sobretudo a histoacuteria satildeo os motivos
morais e esses motivos parecem verdadeiros ou falsos conforme as eacutepocas e os lugares Assim a
histoacuteria haacute de ser objetiva sob pena de as obras do artista natildeo passarem de criaccedilotildees fantaacutesticas do seu
espiacuterito E haacute de por outro lado assentar sobre a base de um saber solidamente minucioso de um
conhecimento exato e erudito dos fatos e condiccedilotildees reais sob pena de em vez de se escrever histoacuteria
inventarem-se romances Arena ampliacutessima onde o artista e o erudito o pensador e o criacutetico se
encontram e se confundem o jurista para indagar com escruacutepulos o psicoacutelogo para avaliar sua sutileza
a histoacuteria se natildeo eacute a forma culminante das manifestaccedilotildees intelectuais do homem eacute sem duacutevida a mais
complexa e a mais compreensivardquo MARTINS Oliveira Histoacuteria da civilizaccedilatildeo ibeacuterica Lisboa
Guimaratildees amp Cordf Editores 1973 [1879] pp 8-9 405 FLEIUSS RIHGB op cit 122-123
129
concentravam todas as virtudes humanasrdquo406 Era mesmo cedo para emitir opiniotildees
Fleiuss declara sua admiraccedilatildeo pelo monarca mas de resto deixa o elogio a Affonso
Celso transcrevendo-lhe todo o capiacutetulo XXXVIII do Porque me ufano407
Atento agrave ldquoverdade dos factosrdquo e de olhos fixos na ldquojusticcedila histoacutericardquo Max
Fleiuss termina sua contribuiccedilatildeo agrave polecircmica das dataccedilotildees lamentando a incapacidade
de julgar o presente ldquoa calma factor essencial dos estudos histoacutericos natildeo permite a
analyse dos ultimos successosrdquo408 Pode natildeo ter julgado como gostaria mas permetiu-
se trazer um grande nuacutemero de paralelos essa forma especial de comparaccedilatildeo ainda
mais uma vez com claros propoacutesitos morais e poliacuteticos Eacute de fato a coleccedilatildeo de saberes
eruditos sobre os costumes dos povos que tornaratildeo possiacutevel o ldquojulgamento da
posteridaderdquo retomando o instrumento dos antigos retores agora buscando a verdade
natildeo como advogados da mos maiorum divinizada dos ancestrais mas enquanto juiacutezes
que apoiados na subsunccedilatildeo da moral superior de um tempo em progresso
A querela das dataccedilotildees envolvia muito mais do que o preciosismo diletante
dos eruditos Do 3 de maio ao 22 de abril nesse vale de laacutegrimas dos usos do passado
a histoacuteria da naccedilatildeo seria por algum tempo oficiada entre dois trabalhos de memoacuteria
Centenaacuterios do Brasil texto considerado promissor pelos avaliadores do instituto foi
a dissertaccedilatildeo apresentada por Afonso Celso como prova literaacuteria agrave indicaccedilatildeo do jovem
Fleiuss para soacutecio efetivo do IHGB em 25 de maio de 1900 Ela inaugura uma
carreira de raacutepida ascensatildeo nos quadros do instituto trajetoacuteria que o levaria ao cargo
de Secretaacuterio Perpeacutetuo preito que soacute havia sido dado ao cocircnego Januaacuterio da Cunha
Barbosa e a Manuel Ferreira Lagos409 Mais tarde Fleiuss formaria junto a Afonso
Celso e ao baratildeo de Ramiz a ldquotrindade do silogeurdquo de que nos falou Luacutecia Paschoal
Guimaratildees410 Em 1900 no entanto Max Fleiuss via Ramiz Galvatildeo em outra
trincheira A desavenccedila entre a publicaccedilatildeo na revista do IHGB e a data escolhida para
a celebraccedilatildeo do centenaacuterio pela Associaccedilatildeo revelava uma desordem no tempo em sua
expressatildeo talvez em igual medida mais precisa e mais primitiva e cuja resoluccedilatildeo
moral passaraacute como pretendo sublinhar pela comunhatildeo de uma cosmologia
406 Idem p 124 407 Idem pp 124-132 408 ldquoDos tempos actuaes natildeo tratamos a calma fator essencial dos estudos histoacutericos natildeo permite
ainda analyse dos uacuteltimos sucessos que se para uns soacute oferecem aspectos lisonjeiros para outros
representam exatamente o contrario e nos repugna a analyse de factos impossiacuteveis de serem tratados
sem o perigo da acirrada polemicardquo Idem p 132 409 Aqui sigo GUIMARAtildeES Luacutecia Maria Paschoal Da Escola Palatina ao Silogeu Instituto
Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (1889-1938) Rio de Janeiro Ed Museu da Repuacuteblica 2006 p 48 410 GUIMARAtildeES Luacutecia 2006 59
130
Intervalo
Study problems not periods
Lord Acton
131
Almas em movimento
Chamado geracional ao som das estrelas
ldquoO anciatildeo-rei natildeo falava de outra coisa a natildeo ser do Africano quando
recordou as suas gestas e ateacute suas palavrasrdquo Puacuteblio Corneacutelio Cipiatildeo Emiliano
Africano (185-129 ac) refere-se pelas letras de Ciacutecero ao Africano Maior seu avocirc
por lei heroacutei romano das Guerras Puacutenicas na Hispacircnia e ancestral que conhecia tatildeo
somente atraveacutes das maacutescaras de cera que adornavam o aacutetrio de sua casa familiar
Naquela noite recebido com banquetes e pompas reais e apoacutes ouvir os elogios do
monarca Massinissa endereccedilados ao seu avocirc o jovem Cipiatildeo seria acometido por um
ldquosono mais pesado do que o de costumerdquo Estamos no inverno de 150-151 antes de
nossa era e o enviado romano buscava apoio na Aacutefrica do poderoso estado da
Numiacutedia411
Matildeos leves pelo cansaccedilo da viagem olhos pesados ouvidos atentos agraves
palavras do velho rei ele adormece ldquoNatildeo temas Cipiatildeo e entregue minhas palavras agrave
vossa memoacuteriardquo Ao ouvir essa voz o jovem se vecirc transportado a um ponto indefinido
do Cosmos entendido em uma percepccedilatildeo natildeo precisamente euclidiana ldquocheio de
estrelas e totalmente iluminado e sonorordquo412 Esferas giram rapidamente em
movimentos perfeitos tatildeo perfeitos que pareciam animados por uma inteligecircncia
divina Estrelas de natureza e magnitude diversa pulsavam em todas as direccedilotildees Dos
inuacutemeros misteacuterios que o cercavam aquele que lhe dirigia a palavra pareceu-o tatildeo
logo se aproximou de suacutebito familiar seu rosto mais do que humano era uma efiacutegie
numinosa que se revelava igual aos bustos patriarcais que conhecia desde o lar (ea
forma quae mihi ex imagine eius quam ex ipso erat notior I 2) Era ele Cipiatildeo o
411 Apresento agora uma leitura do Sonho de Cipiatildeo capiacutetulo final (VI) da Repuacuteblica de Marco Tuacutelio
Ciacutecero feito agrave luz da traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Nougueacute e Ricardo da Costa e do confronto com a
versatildeo franco-latina de NISARD M (dir) Traiteacute de la Reacutepublique Livre Sixiegraveme In Ouvres
complegravetes de Ciceacuteron Paris JJ Dubochet 1841 Tome IV pp 342-348 Para a traduccedilatildeo portuguesa
NOUGUEacute Carlos COSTA Ricardo da O Sonho de Cipiatildeo de Marco Tuacutelio Ciacutecero Notandum Jan-
abr 2010 IJI-Universidade do Porto pp 37-50 412 Incorporo igualmente as notas didaacuteticas de VILLALBA I VARNEDA Pere Nota introductograveria
In MARC TULLI CICEROacute Lrsquoart de governar [DE RE PVBLICA] Barcelona Prohom Edicions
2006 incluiacutedas na supracitada ediccedilatildeo de liacutengua portuguesa do Sonho de Cipiatildeo assim como as notas
organizadas por M Nisard na ediccedilatildeo franco-latina de 1841
132
Africano Maior ancestral ndash ser divinizado por comportamento ciacutevico ndash que lhe faria
diversas revelaccedilotildees desde aquele ldquolugar excelsordquo (X10)413
Primeiro o jovem destruiraacute Cartago celebraraacute triunfos receberaacute o tiacutetulo de
censor e depois por duas vezes o de consul Seraacute enviado como legado ao Egito agrave
Siacuteria agrave Aacutesia e agrave Greacutecia Chamado de volta agraves armas derrotaraacute os celtiacuteberos da
Hispacircnia e conquistaraacute a poderosa Numacircncia ldquoAgora depois que tiverdes sido
conduzido ateacute o Capitoacutelio com carro triunfal encontraraacutes uma Repuacuteblica perturbada
pelas maquinaccedilotildees de meu netordquo (X211) Ao invocar uma metaacutefora que anuncia a
imagem do Sol regente do universo o Africano Maior realiza entatildeo o seu chamado
ldquofaltaraacute oferecer agrave paacutetria o lume de vossa menterdquo Ao 56 anos de idade ndash precisamente
quando o astro rei completar oito vezes sete translaccedilotildees e seus retornos ndash o jovem vai
ser ldquoo uacutenico no qual repousaraacute a salvaccedilatildeordquo Para isso teraacute que ldquocolocar a Repuacuteblica
em ordem com os poderes de ditadorrdquo (XII12)
Gloacuteria efecircmera adulaccedilotildees da plebe ainda os meros prazeres da carne tais
eram algumas das futilidades que deveriam ser postas de lado em nome da harmonia
natural entre o corpo e a alma No Somnium os valores ciacutevicos natildeo cansam de se opor
agraves indulgecircncias corporais Mas existia uma recompensa para uma vida de privaccedilotildees
dedicadas aos deveres para com a Repuacuteblica ldquoTenha sempre em menterdquo explicou o
Africano Maior ldquoque todos aqueles que conservam ajudam e engrandecem a paacutetria
tecircm um lugar determinado no ceacuteu onde fruem felizes uma vida sempiternardquo Os
abenccediloados aqueles que optaram pela alternativa loacutegica da virtude e da retidatildeo
poderiam desfrutar da verdadeira existecircncia libertos do caacutercere de seus corpos e
livres para seguir em um movimento eterno a via da Orbe Laacutectea (XIV14)
O exemplo dos antepassados como meacutedium iacutentimo da mos maiorum
mantinha ligaccedilatildeo com os homens por uma cadeia de virtudes ciacutevicas A famiacutelia era
assim composta por pais carnais e pais espirituais os quais se justificavam para
Ciacutecero natildeo tanto pelos laccedilos consanguiacuteneos mas principalmente pelos valores que
cultivaram em vida Quem aparece ao jovem como evidecircncia disso eacute seu pai
bioloacutegico Aemilius Paulus apresentando-se tambeacutem como exemplo de dignidade 413 Segundo Leonard Koff o guia do jovem Cipiatildeo aparece como um ldquoobjeto esculturado ao louvor
romanordquo Cipiatildeo o Velho eacute o ldquocidadatildeo romano enquanto dever encarnado presenccedila numinosardquo
privilegiado com o direito de aparecer a seu neto adotivo ldquoem um sonho a respeito do futuro porque
em consequecircncia de seu comportamento ciacutevico ele (o Velho) eacute digno de falar sobre issordquo Ao jovem
por sua vez eacute concedido sonhar como se as imagens oniacutericas formassem um ldquoveiacuteculo transcendente
para a transferecircncia do dever ciacutevicordquo KOFF Leonard Michael Dreaming the Dream of Scipio In
DEUSEN Nancy van (org) Cicero refused to die Ciceronian influence through the centuries Brill
Leiden 2013 p 68
133
Emocionado com a visatildeo do ldquopai santiacutessimo e melhor de todosrdquo o jovem pergunta
entre laacutegrimas e demonstraccedilotildees de afeto porque natildeo poderia esquecer a existecircncia
terrena e unir-se logo ao patriarca no templo celestial Como se reprovasse quaisquer
impulsos que abreviassem o destino Paulus explica que ldquonatildeo somente voacutes Puacuteblio
mas tambeacutem todos os homens piedosos devem reter a alma dentro da custoacutedia do
corpordquo e sem a permissatildeo e a recompensa do demiurgo ldquonatildeo podem migrar da vida
humana e se esquivarem da tarefa proacutepria dos humanosrdquo Humanos que virtuosos
teriam uma missatildeo natural a cumprir
Paulo se despede tatildeo raacutepido quanto chegou exortando o filho a manter o
caminho da boa conduta A seguir o Africano Maior toma o jovem pela matildeo e
aponta com a outra para cada uma das nove esferas ldquoa primeira das quais eacute celestial
externa e abraccedila todas as demaisrdquo Sob os cursos fixados a partir dela ndash imagem
dinacircmica do proacuteprio demiurgo platocircnico ndash ldquohaacute outras sete que giram mais lentamente
com um movimento contraacuterio ao da celestialrdquo (XVII417) Satildeo as estrelas errantes ou
os planetas ndash Saturno Juacutepiter Marte Sol Vecircnus Mercuacuterio e Lua ndash apresentados em
sua ordem Caldeacuteia Ordem que natildeo edificava um sentido visiacutevel (relacionado agrave
evidentia) senatildeo um senso expresso por relaccedilotildees numeroloacutegicas analogias agraves
divindades e associaccedilotildees com os humores projetados na Terra esfera cuja posiccedilatildeo era
central mas cujas caracteriacutesticas imoacuteveis cultivavam a morte e a imperfeiccedilatildeo
As tentaccedilotildees eacute claro eram difiacuteceis de serem evitadas em nome de um
propoacutesito ciacutevico Para isso era preciso fechar os olhos ao mundo e paciente escutar
os ditos harmoniosos da alma Mas ldquoque som eacute esserdquo pergunta-se o jovem ldquotatildeo
potente e ao mesmo tempo tatildeo doce que preenche meu ouvidordquo ldquoEste somrdquo
responde-lhe o Africano Maior ldquoeacute aquele que composto por intervalos separados e
diferenciados conforme uma proporccedilatildeo determinada por uma razatildeo nasce de um
impulso e do movimento das proacuteprias esferasrdquo Impulso que ldquoequilibrando
sobriamente agudos com graves produz um concerto harmocircnicordquo 414 As distacircncias
racionais e dessemelhantes entre as oito esferas moacuteveis (com a Terra estaacutetica ao
centro) ldquoproduzem sete tons por seus intervalos desiguais nuacutemero que eacute o laccedilo do
universordquo (XVIII518) Laccedilo do universo Chave de quase tudo (qui numerus rerum
414 ldquoComo Ciacutecero mostra ndash comentou Leonard Koff ndash a muacutesica das esferas a qual cada alma escuta e eacute
capaz de lsquomover-se em sua direccedilatildeorsquo eacute para ele o alinhamento que faz do universo uma uacutenica
comunidade ciacutevicardquo Se aceitarmos essa leitura Ciacutecero teria acreditado em uma ldquoharmonia de
domiacutenios uma harmonia que tem uma dimensatildeo paralela na alma e no corpordquo Tal seria uma ldquoreligiatildeo
ciacutevicardquo a qual corresponde uma ordem ciacutevica que reflete por sua vez uma ordem cosmoloacutegica KOFF
op cit 71
134
omnium fere nodus est) Algo que a dispotildee a amarra e pelo ouvido confere sentido
ordenando a natureza a muacutesica arranjada mais tarde pela tradiccedilatildeo pitagoacuterica ao lado
das matemaacuteticas da geometria e da fiacutesica no quatrivium educativo
Apoacutes uma digressatildeo sobre a pequeneza da Terra e a imensidatildeo do cosmos
(XIX620 e XX21) o jovem eacute chamado a compreender tambeacutem a grandiosidade do
tempo ldquoOs homens calculam corretamente a duraccedilatildeo do ano somente por uma volta
do Sol isto eacute de um soacute planeta mas na realidaderdquo explica o Africano Maior
ldquodeveriam denominar um anordquo apenas ldquoquando todos os planetas tivessem retornado
ao mesmo ponto de onde uma vez saiacuteram e tivessem feito retornar a configuraccedilatildeo
primeira do universordquo A esse magnus annus Ciacutecero atribuiacute 12954 anos de modo
que o Africano Maior acredita que ldquoseratildeo necessaacuterias a contagem de muitiacutessimas
geraccedilotildees humanasrdquo e que ldquodeste ano astronocircmico ainda natildeo transcorreu a vigeacutesima
parterdquo (XXII24)
ldquoCheio de tempo e de espaccedilordquo como certa vez disse Mandelstam sobre
Ulisses o jovem aprendia assim desde aquele templo celestial a natildeo cultuar a gloacuteria
em sua efecircmera e imperfeita existecircncia terrena ldquoPortanto se desejais dirigir vosso
olhar para cima e contemplar este lugar de permanecircncia eternardquo diz-lhe em novo
chamado o Africano Maior ldquodesdenha o que diz o povo (neque te sermonibus vulgi
dedideris) e natildeo coloque a esperanccedila de vossas accedilotildees nas recompensas humanas o
que importa eacute que soacute a virtude por seus proacuteprios atrativos vos conduza agrave verdadeira
honrardquo Ao final as virtudes deveratildeo ser lembradas e seu oposto ldquotoda aquela
tagarelicerdquo natildeo seraacute ldquoperenizada por mais ningueacutemrdquo e se ldquoextinguiraacute no
esquecimento da posteridaderdquo (oblivione posteritatis exstinguitur) (XXIII25)
Aos benemeacuteritos da repuacuteblica estavam abertos os caminhos que conduziriam
agraves portas celestes Cipiatildeo o Africano Maior insistia que ldquoo que eacute mortal natildeo sois voacutes
mas vosso corpo e certamente voacutes natildeo sois aquele que essa atual aparecircncia
manifesta mas a alma de cada um eacute aquele cada um natildeo essa figura que se pode
mostrar com o dedordquo E essa ldquoalma sempiterna move um corpo efecircmerordquo
(XXIV826) ldquoEacute evidenterdquo ensina o velho heroacutei a seu neto ldquoque o que se move eacute por
si eternordquo E quem natildeo poderia entatildeo ldquoassegurar que esta faculdade natildeo tenha sido
atribuiacuteda agraves almasrdquo ldquoAssimrdquo continuou seu diaacutelogo e seu chamado ldquoexercita esta
alma nas atividades elevadas As melhores satildeo os trabalhos para a sauacutede da paacutetria a
alma estimulada e exercitada por eles mais rapidamente alccedilaraacute voo a esta casardquo
Mesmo materialmente aprisionada ela pode se ldquoprojetar na luz puacuteblicardquo e assumindo
135
uma postura contemplativa ao mundo exterior ldquose desembaraccedilar o maacuteximo possiacutevel
do corpordquo Almas viciosas entregues agraves voluacutepias do corpo e da mente assim violando
as ldquoleis divinas e humanasrdquo devem vagar sem rumo ao redor da Terra e ldquouma vez
saiacutedas dos corposrdquo natildeo retornaratildeo ao templo celestial
No sonho refutar a virtude eacute um procedimento iloacutegico e nefasto atitude que
renegaria a proacutepria natureza essa eterna causa de ordem conduzindo o homem agraves
sombras do esquecimento O viacutecio encarceraria a alma na esfera inferior impedindo-a
de se movimentar em harmonia com o cosmos e nesse balanccedilo projetar-se como
exemplo transmissor de seu legado agrave memoacuteria das novas geraccedilotildees O veto agrave
transmigraccedilatildeo das almas eacute em outras palavras uma imagem de morte Apenas
aqueles que forem conhecidos e lembrados pelos seus serviccedilos ao Estado poderiam
ldquoretornar como mentores ciacutevicosrdquo informando os homens das ldquorecompensas do dever
no ceacuteurdquo em consequecircncia da ldquodireccedilatildeo santificada da proacutepria vidardquo 415 Cipiatildeo o velho
faz um chamado traz um alerta mas tambeacutem tece uma ameaccedila e logo apoacutes proferir
palavras que soavam nesse contexto platocircnico tanto amedrontadoras o Africano
Maior parte o jovem Cipiatildeo acorda e Ciacutecero encerra abruptamente a sua Repuacuteblica
O Sonho do Cipiatildeo era conhecido dos medievais e dos modernos apenas
atraveacutes do comentaacuterio de Ambroacutesio Teodoacutesio Macroacutebio filoacutesofo que viveu entre os
seacuteculos IV e V Macroacutebio que por muito tempo chegaria a disputar a paternidade do
Somnium transformou o excerto ciceroniano no texto autoritativo e confirmatoacuterio de
ldquoum neoplatonismo que natildeo possuiacutea fins poliacuteticosrdquo Em sua leitura as recompensas
celestes satildeo destinadas agravequeles que forem ldquometafisicamente saacutebiosrdquo 416 Se em Ciacutecero
o mundo sublunar por vezes natildeo reconhecia as virtudes da alma em Macroacutebio essa
ldquorecusa do mundordquo parece associada ao ldquodesprezo pelo mundordquo topos neoplatocircnico
que cairia bem aos olhos da moral cristatilde417
Com o decliacutenio da vida puacuteblica claacutessica o orador natildeo teria mais accedilotildees (erga) a
realizar e seu logos sua fala em pouco reconheceria a funccedilatildeo original da ldquoconduccedilatildeo
415 KOFF op cit 69 416 KOFF op cit 66 417 KOFF op cit 72
136
da poliacuteticardquo418 Taacutecito jaacute se perguntava sobre a perda de prestiacutegio da eloquecircncia ldquoPara
que serve acumular discursosrdquo refletiu o autor dos Anais ldquovisto que natildeo incumbe aos
incompetentes nem agrave multidatildeo tomar deliberaccedilotildees mas ao mais saacutebio dos homens
sozinhordquo 419 Na eacutepoca de Santo Agostinho o nome de Ciacutecero tornou-se sinocircnimo de
ldquobufatildeo profissionalrdquo ndash algueacutem que ainda deleitava mas que jaacute era inuacutetil um scurra
um cocircmico um bobo ou um palhaccedilo ndash para na alta idade meacutedia beirar o
esquecimento como mostra Michael Herren os autores do periacuteodo nada conheciam a
respeito da vida do arpiniata420 Ciacutecero eacute resgatado ao longo do renascimento do
seacuteculo XII e valorizado como mestre da retoacuterica pelos leitores da Institutio oratoria
de Quintiliano que nessa obra chegou a citaacute-lo 689 vezes421 Tambeacutem era lido em sua
juvenilia atraveacutes do De Inventione e da Rhetorica ad Herennium422 No ano em que
Marciacutelio Ficino nasceu 1433 a maior parte dos trabalhos de Ciacutecero jaacute havia sido
compilada A geraccedilatildeo do autor da Theologia platonica mostrar-se-ia aacutevida leitora das
Epistolae ad familiares cartas que encontraram uma primeira versatildeo impressa em
1467423 No renascimento dos seacuteculos posteriores a imagem do autor como figura
ciacutevica eacute reabilitada A publicaccedilatildeo dos tratados de maturidade elevaria seu status em
meio aos eruditos humanistas ldquoreforccedilando sua reputaccedilatildeo para a eloquecircncia contra
rivais emergentesrdquo fossem Hermogenes e Quintiliano fossem homens do presente
como Guarido de Verona e George de Trebizonda424
Eacute no ldquolongo seacuteculo XVrdquo periacuteodo que se estenderia da maturidade de Petrarca
(1304-1374) agrave deacutecada de 20 do seacuteculo XVI que emerge o problema da ldquoliacutengua latina
e sua utilidade como instrumento de culturardquo 425 Foi por essa eacutepoca que os
humanistas recolhendo evidecircncias em fontes como Aulo Geacutelio Varro e o Brutus de
Ciacutecero comeccedilaram a perceber que o latim romano um dia fora uma liacutengua natural
aprendida e expressada em diferentes graus de refinamento de estilo e de erudiccedilatildeo
418 HARTOG Franccedilois Evidecircncia da Histoacuteria o que os historiadores veem Belo Horizonte
Autecircntica 2011 p 41 419 TAacuteCITO Dialogue des orateurs (Dialogus Oratoribus) Texto estabelecido por Henri Goelzer e
traduzido por Henri Bornecque Paris Les Belles Lettres 1936 p 41 apud HARTOG 2011 p 44 420 HERREN Michael W Cicero redivivus apud scurras some early medieval treatments of the great
orator In DEUSEN Nancy van (org) Cicero refused to die 213 op cit p 39 421 ldquoA mainstream of what the Latin Middle Ages knew of Cicero ndash quite a lot as it turns out ndash was
intermediated through Quintilianrdquo DEUSEN Nancy van Cicero through quintilian eyes in the middle
ages In DEUSEN (org) Cicero refused to die op cit 2013 p 48 422 WARD John O Ciceronian Rhetoric and Oratory from St Augustine to Guarido da Verona In
DEUSEN (org) 2013 p 164 423 REES Valery Ciceronian Echoes in Marcilio Ficino In DEUSEN (org) 2013 p 141-142 424 WARD op cit 164 425 CELENZA Christopher S Coluccio Salutatirsquos View of the History of the Latin Language In
DEUSEN op cit p 5-6
137
ldquoSe olharmos essa questatildeo de outra maneirardquo como sugeriu Christopher Celenza
ldquopodemos dizer que os humanistas assim descobriram que o latim era uma liacutengua
morta estudada em seu tempo apenas por meio de uma educaccedilatildeo formalrdquo 426 Para
acessar esse lugar que em Petrarca (autor no qual jaacute poderiacuteamos ver o iniacutecio das
periodizaccedilotildees modernas) jaacute era claramente um passado o estudante do quattrocento
em geral optaria por dois meacutetodos aprender e escrever o latim em estilo ecleacutetico
nutrindo-se do modelo de diversos autores como o fariam Lorenzo Valla e Angelo
Poliziano ou imitar a prosa ciceroniana427 A autoridade do arpiniata alcanccedilava seu
auge e a todo tempo fazia lembrar o Ciacutecero orador o Ciacutecero das Ad Familiares o
homem puacuteblico e o tratadista embora o Ciacutecero do Somnium estivesse ainda preso a
Macroacutebio Nos seacuteculos seguinte envolto na discussatildeo que transcenderia a mos
gallicus e a mos italicus em nome de um direito natural o De Officis seria lido e
usado a partir de agendas poliacuteticas das mais diversas e contraditoacuterias Mably o teria
em alta conta antes da revoluccedilatildeo e jaacute depois Edmund Burke natildeo guardaria receios
em reeditar-lhe certos argumentos428
Quatro anos apoacutes a Santa Alianccedila Angelo Mai ao deambular pela Biblioteca
Vaticana encontrou um manuscrito contendo comentaacuterios aos Salmos de Santo
Agostinho documento copiado por volta do seacuteculo VIII Naquele dia de 1819 o
estudioso jesuiacuteta percebeu de certo com alguma surpresa que restos de letras e
palavras que natildeo pertenciam nem aos comentaacuterios nem aos Salmos ainda podiam ser
lidas Resolveu raspar o pergaminho e nesse palimpsesto encontrou uma coacutepia da
Repuacuteblica de Ciacutecero Coacutepia incompleta pelo estado de conservaccedilatildeo da fonte mesmo
assim ajudou a formar o corpus documental ciceroniano e atribuir-lhe definitivamente
a autoria do Sonho de Cipiatildeo429
Ciacutecero escreveu sua Republica apoacutes passar o ano de 58 AC exilado na Greacutecia
De volta a Roma continuava longe dos ciacuterculos de poder afastado do Senado e da
vida puacuteblica Ao transcrever discursos e redigir seu tratado sobre o governo o orador
parecia segundo Timothy Shonk responder a duas questotildees como permanecer
influente no Estado romano e como se certificar de que suas palavras e sua reputaccedilatildeo 426 CELEZAN op cit p 6 427 KOFF op cit 66 e tambeacutem TUNBERG Terence Colloquia Familiaria na aspecto of
Ciceronianism reconsidered In DEUSEN (org) op cit 124 428 Sobre os diversos ndash e contraditoacuterios ndash usos de Ciacutecero ao longo do periacuteodo preacute e poacutes-revoluconaacuterio
ver ATKINS Jed W A revoluctionary doctrine Cicerorsquos natural right teaching in Mably and Burke
Classical Receptions Journal 2014 6 (2) pp 177-197 429 COSTA Ricardo da Apresentaccedilatildeo In NOUGUEacute Carlos COSTA Ricardo da O Sonho de Cipiatildeo
de Marco Tuacutelio Ciacutecero op cit p 38-39
138
sobreviveriam ao tempo Segundo essa leitura foi refletindo sobre o primeiro
problema que Ciacutecero elaborou uma conversaccedilatildeo imaginaacuteria um diaacutelogo de sabor
platocircnico modelado na Republica do filoacutesofo grego no qual apartavam personagens
tanto conhecidos do passado romano Manius Manillus Publius Rutilus Rufus e
Quintus Mucius Scaevola O principal interlocutor no entanto era Cipiatildeo o jovem430
Apoacutes discutir o fenocircmeno da apariccedilatildeo de dois soacuteis em um uacutenico dia o conquistador
de Cartago introduz o tema maacuteximo da obra sublinhar o meacuterito de cada um dos
sistemas de governo ndash a democracia popular a repuacuteblica aristocraacutetica e a ditadura ndash
argumentando por fim que Roma conseguia a faccedilanha de unir o melhor dos trecircs
mundos431 Responder a segunda questatildeo no entanto exigia da parte de Ciacutecero uma
reflexatildeo sobre seu futuro e seu nome ldquoVerdaderdquo comentou Shonk ldquosuas
performances puacuteblicas tinham sido memoraacuteveis mas a vibraccedilatildeo do som no ar eacute tatildeo
efecircmera quanto o momento que as conduzrdquo como o eram a memoacuteria daqueles que
escutavam seus discursos Assim ele se dispotildee a reescrevecirc-los e indo aleacutem resolveu
entregar-se a uma obra que fizesse de sua contribuiccedilatildeo poliacutetica algo como uma
aquisiccedilatildeo para sempre432
Algueacutem poderia argumentar que o capiacutetulo final da Republica une
metaforicamente os dois intentos Mas tal apelo agrave commemoratio posteritatis caso
possamos observaacute-lo nas entrelinhas do Sonho de Cipiatildeo natildeo seria de todo obra da
vaidade O pensamento de Ciacutecero de qualquer maneira logo viria insinuar o
contraacuterio No seu mais bem acabado tratado de retoacuterica o De Oratore Ciacutecero fizera a
defesa da arte da persuasatildeo como forma de incitar uma vida puacuteblica moralmente bela
e harmoniosa No De Partitionbus Oratoriae sua obra didaacutetica ele pensaria com
Aristoacuteteles ao dividir a retoacuterica entre os gecircneros judiciaacuterio voltado ao julgamento dos
feitos passados o deliberativo incitado a persuadir a assembleia a tomar decisotildees
relativas ao futuro da urbs e o demonstrativo utilizado para deleitar e instruir as
audiecircncias 433 O uacuteltimo dos gecircneros citados tambeacutem conhecido como epidiacutedico
voltado para o presente poderia igualmente produzir a presenccedila do passado Assim
elaboravam-se ldquoliccedilotildees uacuteteis e honestas onde atraveacutes do encocircmio ou vitupeacuterio de
430 Aqui sigo SHONK Timothy A ldquoFor I Hadde Red of Affrycan Byfornrdquo Cicerorsquos Somnium
Scipionis and Chaucerrsquos Early Dream Visions In DEUSEN (org) op cit pp 85-122 431 Eacute possiacutevel que Ciacutecero tenha retirado essa reflexatildeo de Poliacutebio saudado como teoacuterico da Constituiccedilatildeo
Mista ateacute os dias de Montesquieu Cf HARTOG 2011 p 99 432 Idem p 86 433 Ver CICERO Marcus Tullius A Dialogue Concerning Oratorical Partitions In The Orations of
Marcus Tullius Cicero Volume IV London Bell amp Sons 1921 p 489
139
homens e cidades ficassem claros o caminho da virtude e os perigos do viacuteciordquo
englobando uma lista de gecircneros auxiliares ldquoo panegiacuterico a laudatio funebris a
biografia exemplar a crocircnica a histoacuteriardquo434 O Sonho de Cipiatildeo caso pudermos vecirc-lo
como aqui proponho enquanto um chamado geracional certamente compartilharia de
espaccedilo sob a ampla sombra epidiacutedica relacionando-se com a historia sem
embaralhar-se todavia com ela ao evocar o passado no presente e a seguir
apresentando-o atraveacutes de um estilo ornado Desde aquele ldquolugar excelsordquo Ciacutecero fez
escutar de Cipiatildeo a Cipiatildeo o som da natureza a partir de um ponto de contemplaccedilatildeo
do espaccedilo e do tempo em sua imensidatildeo material e dimensatildeo plural O movimento da
alma faz lembrar os ancestrais desvela o porvir e chama agrave accedilatildeo poliacutetica lembrando e
se apropriando de uma cosmologia de inegaacutevel sabor platocircnico (Timeu 39-40 Fedro
245e-246a Feacutedon 81c) mas que natildeo deixa de ter a muacutesica ldquolaccedilo do universordquo como
chave de harmonia Apostava na faacutebula e sublinhava-se a audiccedilatildeo meacutetodo que ao
menos para um grego acostumado a autoridade de Heraacuteclito era ldquomais agradaacutevel
poreacutem menos vaacutelidordquo435 Diferentemente da histoacuteria a relaccedilatildeo entre fatos e palavras
se daria mais pela fabulaccedilatildeo poeacutetica do que pela autoridade do particular conjurando
uma epifania ciacutevica capaz de transmitir os valores e exemplos de uma era dourada o
periacuteodo imeditamente anterior agraves guerras puacutenicas
O detalhe que traz a descriccedilatildeo dos dias vindouros aparecerem antes do
chamado ciacutevico acredito pode ser significativo A partir dele o Africano Maior vecirc
ldquoum duplo caminho marcado pelos fatosrdquo (XII12) A escolha eacute como uma opccedilatildeo
entre abraccedilar ou afugentar um destino que estaacute a priori escrito nas estrelas
reverberado e enlaccedilado pelo nodus da muacutesica celestial O movimento da alma que a
escolha da virtude proporciona persegue de toda maneira uma trajetoacuteria ciacuteclica e
teleoloacutegica determinado pela ordem da natureza ele alcanccedila os ceacuteus e de laacute retorna
de geraccedilotildees em geraccedilotildees mesmo por meio de sonhos luacutecidos para oficiar a mos
maiorum aos jovens campeotildees da repuacuteblica E os ancestrais conhecidos apenas
atraveacutes de maacutescaras de cera natildeo seriam vistos mas escutados nas estrelas
No capiacutetulo final da Repuacuteblica o movimento circular das almas eacute igualmente
conservador uma vez que sua eloquecircncia instrui uma nova geraccedilatildeo a agir frente agrave
corrupccedilatildeo dos valores ancestrais no intento de restaurar uma ordem moral que deve
434 TEIXEIRA Felipe Charbel Uma Construccedilatildeo de fatos e palavras Ciacutecero e a concepccedilatildeo retoacuterica da
histoacuteria In Varia Historia Belo Horizonte vol 24 n 40 juldez 2008 p 562 435 POLIBIO Histoacuterias XII 27 p 521 apud TEIXEIRA op cit p 555 Sobre as criacuteticas de Poliacutebio a
Timeu de Taormina e a evocaccedilatildeo da autoridade de Heraacuteclito ver igualmente HARTOG 2011 p 102
140
seguir tambeacutem uma ordem coacutesmica natural divina e imutaacutevel ldquoO que eacute passado de
geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo como afirmou Koff a respeito do Somnium eacute tatildeo somente a
expectativa ndash empiricamente previsiacutevel e por isso imitaacutevel ndash da ldquonobreza ciacutevicardquo 436
Entre os modernos se a metempsicose ou a reencarnaccedilatildeo cristatilde nunca seratildeo
consensualmente metaacuteforas seria possiacutevel que se passasse a oficiar a saga das almas
como um movimento progressivo que elas avanccedilassem de esfera em esfera rumo agrave
perfectibilidade natildeo pelo contato com o mundo das ideias mas pelo encontro e
alianccedila com o Deus uacutenico Como veremos desde cedo esta discussatildeo ndash cuja questatildeo
acima oferece senatildeo um tipo ideal ndash fora apenas mais um dos muitos pontos de
choque entre os dois lados do Reno
Jaacute na primeira modernidade os olhos seratildeo abertos a filologia dos textos
autoritativos unida agraves observaccedilotildees dos ciclos naturais proporcionando a cada nome
ou feito comemorado uma data precisa Eacute aiacute que o desenvolvimento das
comemoraccedilotildees reencontra ao longo da modernidade a elaboraccedilatildeo de outro conceito
conceito paralelo que no Brasil de finais do seacuteculo XIX deixa ele mesmo de resistir
agraves tentaccedilotildees euclidianas e termina por tocar os contornos semacircnticos dos jubileus
nacionais E esse conceito devemos dizer comeccedila a ser lido muitos seacuteculos antes
depois apropriado aos antigos pelos modernos e evidenciado pela observaccedilatildeo natildeo do
mundo sublunar ou das gestas dos homens mas do movimento dos ceacuteus e do retorno
das estrelas
436 KOFF op cit 69
141
II
Efemeacuterides
142
3
Ordem da Natureza
As efemeacuterides e os nuacutemeros da mudanccedila
Em uma dissertaccedilatildeo que nos chega apresentada no volume dezoito de seus
Nouveaux Meacutelanges Voltaire assumia o pseudocircnimo de Soranus meacutedico de Trajano
Sua intenccedilatildeo Debater o problema da metempsicose tema que a sua maneira usaraacute
para discutir um outro nuacutemero de toacutepicos criticar o providencialismo de certos
interlocutores como Malebranche ou ainda perguntar se a alma de todo modo
poderia ser considerada uma faculdade Caso aceitemos seguindo o autor em seu
calculado vocabulaacuterio platocircnico que nosso corpo eacute o ldquoenvelope da almardquo como os
animais fazem seus membros obedecerem as suas vontades Como as ideias das
coisas formam-se neles atraveacutes dos sentidos E logo depois perguntaria Voltaire
realizando o vocirco que embora natildeo tenhamos asas para seguir poderiacuteamos ao menos
tentar acompanhar em seu pouso ldquoem que consiste a memoacuteriardquo 437
Para discutir essas questotildees o filoacutesofo busca a origem do conceito de alma
ldquoSe alguma naccedilatildeo antigardquo escreveu o autor dos Meacutelanges ldquopode reivindicar a honra
de ter inventado aquilo que chamamos de alma eacute provaacutevel que esta foi a casta dos
bracircmanesrdquo Vida doce agraves margens do Ganges frutos a colher por toda parte os
bracircmanes eram dados desde muito cedo na histoacuteria aos estudos e agrave meditaccedilatildeo Eles
chegaram mesmo a ldquoimaginar a metempsicoserdquo que natildeo poderia ser executada senatildeo
por ldquouma alma que muda de corpordquo ldquoA proacutepria palavra metempsicoserdquo explicava
Voltaire ldquoque eacute grega e que pode ter sido a traduccedilatildeo de uma liacutengua oriental significa
expressamente a migraccedilatildeo da almardquo Ora isso indicava que os bracircmanes ldquoacreditavam
na existecircncia de almas de tempos imemoriaisrdquo 438
437 VOLTAIRE De lrsquoAme par Soranus In Ouvres Complegravetes Philosophie Tome I Paris Antoine-
Augustin Renouard 1819 ldquo() qui passa por ecirctre lrsquoenveloppe de cette acircmerdquo p 205 ldquoII Lrsquoacircme est-elle
une faculteacute Comment tout animal fait-il obeacuteir ses membres agrave ses volonteacutes Commente les ideacutees des
choses se forment-elles dans lrsquoanimal par le moyen de ses sens En quoi consiste la meacutemoirerdquo p 207 438Ibid p 209 ldquoSi quelque nation antique put preacutetendre agrave lhonneur davoir inventeacute ce que nous
appelons chez nous une acircme il est agrave croire que ce fut la caste des brachmanes sur les bords du Gange
car elle imagina la meacutetempsycose et cette meacutetempsycose ne peut sexeacutecuter que par une acircme qui
143
Tempos imemoriais Se a sucessatildeo de geraccedilotildees natildeo conseguia guardar a
lembranccedila das eras antigas na leitura de Voltaire as almas fariam vezes de uma
unidade de sentido capaz de transcender toda limitaccedilatildeo da memoacuteria Eacute assim que o
filoacutesofo explicava em seu tempo a perenidade dos costumes e tradiccedilotildees ancestrais
indianas Foi graccedilas agrave crenccedila na migraccedilatildeo das almas afirmou o iluminista ldquoque os
descendentes dos brachmanesrdquo resistiram agrave currupccedilatildeo de seus costumes (mœurs)
arquitetada pelos ldquosalteadores europeus que a avareza transportou ao Gangesrdquo 439
Voltaire lembra a seguir as viagens que muitos filoacutesofos antigos
empreenderam agrave Iacutendia e chega a arriscar a conclusatildeo de que ldquotoda a antiga teologia
diferentemente dissimulada na Aacutesia e na Europa nos chega incontestavelmente dos
bracircmanesrdquo 440 O notaacutevel exagero parece ter como intenccedilatildeo polemizar com
Malebranche esse ldquonovo filoacutesofordquo que ousava acreditar na alma como uma
substacircncia doada pela providecircncia aos homens Natildeo para Voltaire ndash falando pela
boca de Soranus ndash a alma natildeo era uma substacircncia Ela era tatildeo somente uma faculdade
de nosso corpo propriedade capaz de animaacute-lo atraveacutes desse lado intangiacutevel da
existecircncia Deificar a alma assim como um dia divinizou-se a memoacuteria insinuaria
Voltaire era coisa da ldquometafiacutesica do populacho () essa supersticcedilatildeo ridicula e
vergonhosa vinda evidentemente daquele que imaginou no homem uma pequena
substacircncia divinardquo 441 Ainda assim
ldquoOs homens supuseram uma alma pelo mesmo erro que
os fez supor entre noacutes um ser chamado Memoacuteria que a
seguir foi divinizado Eles fizeram dessa Memoacuteria a matildee
das Musas Eles ergueram os diversos talentos da
natureza humana como deusas meninas da Memoacuteriardquo442
change de corps Le mot mecircme de meacutetempsycose qui est grec et qui ne peut ecirctre quune traduction
dapregraves une langue orientale signifie expresseacutement la migration de lacircme Les brachmanes croyaient
donc lexistence des acircmes de temps immeacutemorialrdquo Grifos meus 439Ibid p 209 ldquoIl en est encore ainsi chez tous les brames descendans des anciens brachmanes qui
nont point corrompu leurs mœurs par la freacutequentation des brigands dEurope que lavarice a
transplanteacutes vers le Gangerdquo 440Ibid p 205 ldquoAinsi nous voyons que toute lrsquoancienne theacuteologie diffeacuteremment deacuteguiseacutee en Asie et en
Europe nous vient incontestablement des brachmanesrdquo 441ibid p 214 ldquoCeacutetait la meacutetaphysique de la populace Cette superstition ridicule et honteuse venait
eacutevidemment de celle qui avait imagineacute dans lhomme une petite substance divine autre que lhomme
mecircmerdquo 442 ibid Les hommes nrsquoont supposeacute une acircme que par la mecircme erreur qui leur fit supposer dans nous un
ecirctre nommeacute Meacutemoire lequel ecirctre ils divinisegraverent ensuite Ils firent de cette Meacutemoire la megravere des
Muses Ils eacuterigegraverent les talents divers de la nature humaine en autant de deacuteesses filles de Meacutemoire pp
219-220
144
Alma e memoacuteria se quisermos seguir esse raciociacutenio tornar-se-iam parte de
uma mesma faculdade ordenadora da mente humana A crenccedila na transmigraccedilatildeo
agora serviria como transmissora dos costumes (mœurs) garantindo a comunicaccedilatildeo
geracional e posando de fiadora de uma identidade coletiva ainda que dada por
atribuiccedilotildees morais Tudo se passa como se pudessemos conquistar a imortalidade
pelas letras de uma faacutebula Atraveacutes de um pseudocircnimo que comemora Soranus a
ironia de Voltaire faz a alma dos antigos ler e responder jaacute com um espiacuterito moderno
a Malebranche e ao providencialismo O paralelismo entre alma e memoacuteria enquanto
crenccedilas compartilhadas talvez nos ajudem a traduzir toda uma seacuterie de expressotildees tatildeo
caras ateacute os seacuteculos XVIII e XIX que hoje no entanto podem soar como jargotildees
vazios ao historiador a ldquomeacutemoire eternellerdquo essa ldquomemoacuteria imorredoura dos povosrdquo
ou qualquer outro tipo de variaccedilatildeo inspiradas nos modelos antigos Seriam expressotildees
que tentavam a partir de suas experiecircncias historicamente contingentes dar conta da
ldquomemoacuteria coletivardquo antes que Maurice Halbwachs e as ondas testemunhais do poacutes-
guerra pudessem se fazer ouvir e impor suas autoridades443
Essa faculdade humana entendida pela ldquometafiacutesica do populachordquo por vezes
como alma por outras como memoacuteria ao fim natildeo deixaria de ser lida nas estrelas O
repouso a meditaccedilatildeo em suma toda uma vida voltada a contemplar o cosmos ndash
experiecircncias comuns na visatildeo de Voltaire aos antigos bracircmanes ndash os levaram a
reconhecer tambeacutem certa ordem na natureza Olhos atentos aos ceacuteus ldquoeles satildeo os
primeiros que calcularam para a posteridade a posiccedilatildeo dos planetas visiacuteveisrdquo Aos
bracircmanes ldquodevemos as primeiras efemeacuterides e eles ainda as compotildee com uma aacutegil
facilidade que surpreende ateacute hoje nossos matemaacuteticosrdquo444
A referecircncia agraves efemeacuterides na fala de Soranus ndash fala cujo fio condutor eacute o
debate sobre a metempsicose ndash natildeo parece fortuita Ela acena ao cosmos agrave ordem da
443 Essa questatildeo foi proposta por RUSSEL Nicolas Collective Memory before and after Halbwachs
In The French Review Vol 79 No 4 March 2006 Para o problema ao longo da primeira
modernidade e da renascenccedila ver RUSSEL Nicolas Construction et repreacutesentation de la meacutemoire
collective dans les entreacutees triomphales au XVIe siegravecle In Renaissance et Reacuteforme 322 Printemps
2009 Nos dois textos o autor defende que a definiccedilatildeo de memoacuteria coletiva tal como encampada na
segunda metade do seacuteculo XX pelos estudos sociais possui uma relaccedilatildeo iacutentima com a identidade de
grupos a partir da experiecircncia direta ou das lembranccedilas do vivido No seacuteculo XVI como explica em
Construccedilatildeo Representaccedilatildeo (2009) ldquoo conteuacutedo da memoacuteria coletiva natildeo eacute apresentado como o espelho
da identidade singular de um grupo mas sobretudo como uma coleccedilatildeo de exemplos e de textos que
perduram graccedilas a seu valor eacutetico ou esteacuteticordquo (54-55) 444 VOLTAIRE Idebm Ibidem ldquoCe repos et cette meacuteditation qui furent toujours le partage des
brachmanes leur fit dabord connaicirctre lastronomie Ils sont les premiers qui calculegraverent pour la
posteacuteriteacute les positions des planegravetes visibles On leur doit les premiegraveres eacutepheacutemeacuterides et ils les
composent encore aujourdhui avec une faciliteacute prompte qui eacutetonne nos matheacutematiciensrdquo Grifos meus
145
natureza ao tempo do calendaacuterio e com a ideia de movimento recorrente das esferas
agrave transmigraccedilatildeo das almas Reconhecimento moderno de uma concepccedilatildeo antiga em
alguma medida lida na danccedila dos orbes celestes para o que chamariacuteamos hoje de
memoacuteria e de identidade de um povo A relaccedilatildeo entre a metempsicose e a
transmissatildeo (ou transmigraccedilatildeo) do conhecimento e da virtude jaacute foi reconhecida em
diversos autores gregos ligados agrave astronomia em especial nos astrocircnomos da escola
de Miletos445 Natildeo eacute esse difiacutecil caminho no entanto que vamos tomar Por ora basta
apontar e reconhecer em alguns capiacutetulos da histoacuteria do conceito de efemeacuteride sua
associaccedilatildeo a diversas praacuteticas e dentre elas certa simpatia recorrente pelo topos da
influecircncia celeste Entre antigos e modernos vamos agora comeccedilar a acompanhar a
histoacuteria do conceito e de seus usos Conceito pensado como forma de descrever
gestas ora dos homens ora dos astros as praacuteticas que se associaram a ele natildeo
deixaram de fazecirc-lo transitar da natureza ao tempo da filosofia natural agrave luz puacuteblica
da poliacutetica aos debates histoacutericos O trajeto deve nos levar ao Brasil de finais do
seacuteculo XIX quando jaacute como um subgecircnero historiograacutefico as efemeacuterides
encontraratildeo lugar ao lado das grandes comemoraccedilotildees nacionais
31 Efemeacuterides antigas a ordem do tempo submissa
ldquoMuitas vezes ele gostava de sair agrave caccedila de raposas ou de aves como
podemos ver nas Efemeacuteridesrdquo 446 Plutarco referia-se agraves Efemeacuterides de Alexandre um
jornal de fatos da vida do rei obra redigida por Eumenes de Caacuterdia e que chega ateacute
noacutes senatildeo pelas referecircncias que a ela fez o bioacutegrafo grego ao lado de outros poucos
comentadores447 Semprocircnio Aseacutelio historiador latino da geraccedilatildeo de Poliacutebio chegou
a refletir sobre o gecircnero448 Tribuno militar do jovem Cipiatildeo acompanhou-o durante o
445 Sobre a metempsicose pitagoacuterica como ldquoconstante movimento da alma que eacute o princiacutepio da vida e
do movimento instrumento para a transmissatildeo e transmigraccedilatildeo do conhecimento e da virtuderdquo ligados
a concepccedilatildeo de que o movimento da alma (psyche) define a ordenaccedilatildeo do cosmos ver PEREIRA
Angelo Balbino Soares A Teoria da Metempsicose Pitagoacuterica Dissertaccedilatildeo de mestrado UNB 2010
Sobre Tales e Anaximandro de Mileto (ldquoprofessores de Pitaacutegorasrdquo segundo a tradiccedilatildeo biograacutefica
antiga) principalmente pp 23-24 51-52 70 446 Na traduccedilatildeo francesa de Alexis Pierron ldquoSouvent il srsquoamusait agrave chasser au renard ou aux oiseaux
comme on peut le voir dans les Eacutepheacutemeacuterides (ἐφημερίδων)rdquo PLUTARQUE Les vies des hommes
illustres Tome Troisiegraveme vie drsquoAlexandre Traduc par Alexis Pierron (Bilingue) Paris Charpentier
Libraire-Eacutediteur 1853 [23468] 447 In Plut Vit Alex p 98 Sympos L t op T II p 623 Athen L I p 434 Aelian Var Hist L III
C XXIII 448 Esse eacute tambeacutem o momento no qual aparecem as primeiras manifestaccedilotildees da palavra histoacuteria usada
como sinocircnimo de ldquoacontecimentordquo Segundo Christian Meier ldquoiotopia assumiu o significado de
146
cerco da Numacircncia tendo escrito uma histoacuteria dos Gracos e das Guerras Puacutenicas que
se perdeu Apesar disso conhecemos algumas de suas palavras atraveacutes de escritos
posteriores No capiacutetulo XVIII do quinto livro das Noites Aacuteticas Aulo Geacutelio (circa
125-180 AD) transcreveu uma passagem das histoacuterias de Asellio Antes fez sobre ela
um breve comentaacuterio interessado como estava em compreender e distinguir os
diferentes gecircneros existentes para se registrar os feitos dos homens (res gestas) Em
Roma a tradiccedilatildeo dos Annales era bem conhecida mas ldquoquando () os eventos satildeo
gravados natildeo ano a ano mas dia a dia essa histoacuteria eacute chamada em grego efemeacuteride
(ἐφημερίς) ou um diaacuteriordquo 449 Inspirado em Poliacutebio Asellio natildeo pretendia tatildeo
somente propor anais nem menos ainda confortar-se com diaacuterios Natildeo estava
satisfeito em apenas ldquofazer saber o que aconteceurdquo mas tambeacutem em demonstrar o
propoacutesito (consilio) e a razatildeo (ratione) de um feito (gesta) 450 Operaccedilatildeo que quase
mil anos mais tarde seria saudada em Poliacutebio por Herder ndash interlocutor criacutetico de
Voltaire ndash como um princiacutepio de histoacuteria enquanto ldquodoutrina estruturalrdquo ou uma
ldquofilosofia cheia de exemplosrdquo 451
ldquoHistoacuteriardquo (no sentido de acontecimento) Eacute em Poliacutebio que encontramos pela primeira vez a palavra
utilizada dessa formardquo MEIER Christian Antiguidade In KOSELLECK Reinhart (org) O Conceito
de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 46 Poderia-se supor portanto que dentre os
historiadores da geraccedilatildeo de Poliacutebio jaacute existia o repertoacuterio necessaacuterio para o reconhecimento de pelo
menos um dos sentidos fundamentais associados ao termo efemeacuteride o das efemeacuterides histoacutericas que
registram os acontecimentos em sua unicidade dispostos em meio a um calendaacuterio de dias recorrentes 449GELLIUS Aulus The Attic Nights John Carew Rolfe (ed) Cambridge London Harvard
University Press 2002 [5187] ldquoCum vero non per annos sed per dies singulos res gestae scribuntur
ea historia Graeco vocabulo ἐφημερὶς dicitur cuius Latinum interpretamentum scriptum est in libro
Semproni Asellionis primo ex quo libro plura verba ascripsimus ut simul ibidem quid ipse inter res
gestas et annales esse dixerit ostenderemusrdquo Na traduccedilatildeo inglesa de Rolfe ldquoWhen however events
are recorded not year by year but day by day such a history is called in Greek ἐφημερίς or a diary a
term of which the Latin interpretation is found in the first book of Sempronius Asellio I have quoted a
passage of some length from that book in order at the same time to show what his opinion is of the
difference between history [res gestas] and chronicle [annales]rdquo Encontrei ainda um comentaacuterio em
francecircs laquo Eacutecrire lrsquohistoire non par anneacutees mais par jour crsquoest ce que les Grecs appellent une
Eacutepheacutemeacuteride mot dont nous trouvons la traduction latine dans le premier livre de Sempronius Asellio
lorsqursquoil eacutetabli ainsi la diffeacuterence entre des annales et une histoire laquo Les annales indiquaient
seulement dit-il le fait et lrsquoanneacutee du fait comme ceux qui eacutecrivaient un journal (diarum) que les
Grecs nomment lsquoEacutepheacutemeacuteridesrsquo raquo DUBIEF Eugeacutene Le Journalisme Bibliothegraveque des Merveilles
Librairie Hachette Paris 1892 p 5 450 GELLIUS 5188 ldquoNobis non modo satis esse video quod factum esset id pronuntiare sed etiam
quo consilio quaque ratione gesta essent demonstrarerdquo Na traduccedilatildeo inglesa de Rolfe ldquoI realize that it
is not enough to make known what has been done but that one should also show with what purpose
and for what reason things were donerdquo 451 ldquoIsso eacute verdade sobre Poliacutebio cuja histoacuteria jaacute foi chamada por outros de uma filosofia cheia de
exemplos E para ser claro isto eacute uma doutrina estruturalrdquo Na traduccedilatildeo inglesa de Michael Forster
ldquoThat is indeed true of Polybius whose history has already been called by others a philosophy full of
examples And to be sure that is a doctrinal structurerdquo HERDER Johann Gottfried Von Older
Critical Forestlet In Philosophical Writings Edited by Michael N Forster Cambridge University
Press Cambridge 2002 p 265
147
Eacute o mesmo sentido de diaacuterio que encontramos como referecircncia em Pro
Quinctio ldquoQuinctius ao sairrdquo escreveu Ciacutecero ldquocomeccedilou a lembrar em que dia ele
deixou Roma em direccedilatildeo agrave Gaacuteliardquo Para isso ldquoele vai ateacute o seu jornal (ad
ephemeridem reuertitur) e encontra o dia de sua saiacuteda 31 de Janeirordquo 452 Cadernos e
registros diaacuterios de financcedilas tambeacutem podiam na Roma republicana ser chamados de
efemeacuterides como vemos em um dos fragmentos da vida de Atticus e em uma das
infames elegias de Oviacutedio453
Durante o principado entretanto as fontes comeccedilam a atribuir outra acepccedilatildeo
mesmo que anaacuteloga agravequele presente nos registros anteriores Na eacutepoca de Nero como
registrou Pliacutenio a medicina de Crinas de Massilia tornou-se popular ldquoCrinas ndash
escreveu o autor da Histoacuteria Natural ndash para parecer precavido e mais religioso juntou
duas artes ele administrava alimentos de acordo com o movimento dos astros
gravados nas efemeacuterides matemaacuteticas observando as horasrdquo 454 Ainda um jornal
diaacuterio natildeo unicamente pessoal e particular mas agora organizado por um nexo
natural455 No ocidente as efemeacuterides comeccedilam a marcar o tempo da natureza e com
os olhos nas estrelas especular sua influecircncia no mundo sublunar unindo por um
punhado de nuacutemeros a razatildeo a um propoacutesito universal456
452 CICERO Pro Quinctio oratio XVIII In NISARD (dir) Ouvres Complegravetes de Ciceacuteron Tome II
Imprimeurs de lrsquoinstitut de France Paris 1869 ldquoDiscedens in memoriam redit Quinctius quo die Roma
in Galliam profectus sit ad ephemeridem reuertitur inuenitur dies profectionis pridie kaL Febr- Nonis
Febrrdquo 453 () non amplius quam terna milia peraeque in singulos menses ex ephemeride eum expensum
sumptui ferre solitum ROLFE John C (Org) CORNELII NEPOTIS Vitae The Lives of Cornelius
Nepos With Notes Exercices and Vocabulary Boston Allyn and bacon 1894 [Att 136] p 129 Em
Oviacutedio XII25 ldquoInter ephemeridas melius tabulasque iacerent in quibus absumptas fleret avarus opesrdquo
Na traduccedilatildeo de Nisard ldquo() elle eacutetait bien plus propre agrave servir drsquoeacutepheacutemeacuterides agrave lrsquoavare qui nrsquoy aurait
qursquoen pleurant noteacute la bregraveche faite agrave son treacutesorrdquo NISARD (dir) Ovide Ouvres complegravetes J-J
Dubochet Eacutediteurs Paris 1838 454 PLINE lrsquoAncien Histoire Naturalle Tome Second Livre XXX Eacutemile Littre (traduction) Paris JJ
Dubochet Eacuteditors 1850 Plin HN 293 Na traduccedilatildeo de Littre ldquoCrinas pour paraicirctre plus preacutecautionneacute
et plus religieux joignait deux arts il donnait les aliments drsquoapregraves le mouvement des astres consigneacute
sur des eacutepheacutemeacuterides matheacutematiques et observait les heuresrdquo No latim ldquocum crinas massiliensis arte
geminata ut cautior religiosiorque ad siderum motus ex ephemeride mathematica cibos dando
horasque observando auctoritate eum praecessitrdquo Grifos meus 455 Caso natildeo unissem o natural (universal) ao particular as efemeacuterides ndash marcando eventos que
ocorrem nos mesmos meses ou dias poreacutem em anos diversos ndash natildeo poderiam ser capazes de distinguir
um ano de outro e consequentemente os fatos em si a soluccedilatildeo romana (no gecircnero das crocircnicas
analiacutesticas) foi no sentido de ritmar o tempo pela alternacircncia dos cocircnsules Ver POMIAN Krzystof
Lrsquoordre du temps Paris Gallimard 1984 p II 456 Sentido paralelo ndash composto pela uniatildeo entre duas artes ndash nutre-se do primeiro (que remete ao dia a
dia humano) e natildeo o anula como percebemos na leitura de certos contemporacircneos de Crinas ldquoYou are
sober when you make your daily appearence in public ()rdquo ldquosic cenas tamquam ephemeridem patri
adprobaturus ()rdquo SENECA Ad Lucilium Epistulae Morales E Capps (org) The Loeb Classical
Library Richard M Gummere (transl) Vol III London William Heinemann 1925 pp 430-431 [Sen
Ep 123-10]
148
A popularidade do topos da influecircncia celeste eacute atestada pela literatura latina
dos primeiros seacuteculos de nossa era Ou em sua mais extensa e famosa saacutetira Juvenal
natildeo fizera pilheacuteria das crenccedilas astroloacutegicas O poeta comeccedila com uma paroacutedia de
Hesiacuteodo e Oviacutedio ilustrando as Idades do Homem a luz da degradaccedilatildeo moral do
tempo dos ceacutesares Na Idade de Ouro natildeo havia necessidade para se temer os ladrotildees
Na Idade de Prata os primeiros adulteacuterios satildeo registrados Na Idade de Ferro todo o
tipo de crime eacute generalizado Sua sexta saacutetira dedicada agraves mulheres eacute na verdade um
esboccedilo misoacutegino e sarcaacutetisco que aponta agrave corrupccedilatildeo dos valores femininos saudando
Corneacutelia Africana filha de Cipiatildeo o jovem como exemplo das virtudes perdidas457
Por sua natureza afetada as mulheres de Juvenal eram propensas a todo o tipo
de ignoracircncia e supersticcedilatildeo Deixavam-se facilmente levar pelos desiacutegnios dos
sacerdotes eunucos de Bellona deusa da guerra ou de Cybele matildee dos deuses
Abriam de grado agraves portas de casa a divindades estrangeiras aos cultistas de Isis aos
sacerdotes judaicos ou armecircnios ainda encontrando tempo para escutar conselhos de
astroacutelogos caldeus Quando dotadas de alguma inteligecircncia tornavam-se ainda mais
perigosas Algumas delas versadas nessas artes orientais chegavam a conquistar um
puacuteblico proacuteprio Ora vestidas agrave moda grega serelepes e libidinosas manuseavam
tabeacutelas de efemeacuterides como quem esfregava pedaccedilos de ambar no proacuteprio corpo
proferindo auguacuterios de aroma perfumado458
Mais tarde jaacute no baixo impeacuterio Ammianus Marcellinus descreveu os
costumes da aristocracia romana do final do seacuteculo IV ldquoAlguns delesrdquo disse o autor
da Rerum Gestarum ldquonatildeo aparecem em puacuteblico nem se banham ou comem sem antes
fazer um exame criacutetico das efemeacuterides e aprender aonde por exemplo o planeta
Mercuacuterio estaacute ou qual grau da constelaccedilatildeo de Cacircncer a lua ocupa em seu curso pelos
ceacuteusrdquo 459 A relaccedilatildeo das elites romanas para com as teorias da influecircncia celeste
457 ldquoSim eu prefiro a ti matildee Corneacuteliardquo ldquoMalo Venusinani quam te Cornelia materrdquo Na traduccedilatildeo de
Jules Lacroix ldquoOui je preacutefegravere agrave toi sublime CorneacutelieUne Veacutenusienne en sa rusticiteacute LACROIX
Jules (trad) Satires de Juveacutenal et Perse Paris Firmin Didot 1846 (JuvenalSat26) 458 ldquoIn cuius manibus ceu pinguia sucina tritas cernis ephemeridasrdquo na leitura de Watson ldquothe woman
carries her almanac tablets around with her thumbing them much as women rubbed lumps of amber
(sucina) which they bore on their person to produce a fragrant scentrdquo WATSON Lindsay (org)
Juvenal Satire VI Cambridge Greek and Latin Classics Cambridge University Press 2014 p 254 459 Rerum Gestarum 28424 ldquoMulti apud eos negantes esse superas potestates in caelo nec in
publicum prodeunt nec prandent nec lavari arbitrantur se cautius posse antequam ephemeride
scrupulose sciscitata didicerint ubi sit verbi gratia signum Mercurii vel quotam Cancri sideris partem
polum discurrens obtineat lunardquo Na traduccedilatildeo inglesa de Rolfe ldquoMany of them who deny that there are
higher powers in heaven neither appear in public nor eat a meal nor think they can with due caution
take a bath until they have critically examined the calendar and learned where for example the planet
Mercury is or what degree of the constellation of the Crab the moon occupies in its course through the
149
parece ter sido utilitaacuteria senatildeo mesmo instrumental passando de bonae artes quando
mantidas na seguranccedila do palaacutecio ou domus patriarcal a externae supertitiones ao
serem professadas em ambientes externos ou rivais de algum ciacuterculo de poder Dion
Caacutessio mais de uma centena de anos antes de Marcellinus jaacute havia mesmo reportado
a apropriaccedilatildeo que os imperadores fizeram dos saberes celestes Na Histoacuteria Romana
Seacuteptimo Severo realiza julgamentos em uma sala cujos limites superiores eram
adornados pelas imagens dos astros sob os quais havia nascido com a notaacutevel
exceccedilatildeo devemos lembrar da ldquoporccedilatildeo do ceacuteu no qual como expressavam os
astroacutelogos lsquoobservava a horarsquo em que ele viu a luz pela primeira vezrdquo 460 A
informaccedilatildeo a respeito de sua efemeacuteride primordial era mantida como segredo de
Estado uma vez que seu potencial ndash diriacuteamos noacutes cronosoacutefico ndash autorizava as
externas supertitiones a realizar prognoacutesticos a respeito da longevidade de sua vida e
de seu principado461 ldquoApenas os astrocircnomos e os astroacutelogosrdquo escreveria Krzystof
Pomian ldquotinham necessidade de uma grande precisatildeo e apenas eles utilizavam
instrumentos que lhes permitiam medir mesmo horas e minutosrdquo 462
heavensrdquo In ROLFE John c Ammianus Marcellinus With An English Translation Cambridge
Cambridge Mass Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1935-1940 460 Dion Caacutessio Histoacuteria Romana LXVII 111 Na traduccedilatildeo inglesa de Cary ldquoHe knew this chiefly
from the stars under which he had been born for he had caused them to be painted on the ceilings of
the rooms in the palace where he was wont to hold court so that they were visible to all with the
exception of that portion of the sky which as astrologers express it lsquoobserved the hourrsquo when he first
saw the light for this portion he had not depicted in the same way in both roomsrdquo HENDERSON
Jeffrey (Ed) Dio Cassius Roman History Volume IX Books 71- LCL119 With an english
translation by Earnet Cary on the basis of the version of Herbert Baldwin Foster Harvard University
Press Cambridge Massachusetts London England 2001 [1927] p 263 Na traduccedilatildeo francesa de Gros
(que curiosamente marca o livro LXVI como referecircncia) ldquoIl le savait surtout dapregraves la connaissance
des astres sous lesquels il eacutetait neacute (il les avait fait peindre sur les plafonds des salles de son palais ougrave il
rendait la justice en sorte quexcepteacute le moment preacutecis qui se rapportait agrave lheure ougrave il eacutetait venu au
jour agrave son horoscope comme on dit tout le monde pouvait les voir car ce moment neacutetait pas figureacute de
mecircme de chaque cocircteacute)rdquo GROS E (dir) Histoire Romaine de Dion Cassius Tome Neuviegraveme Paris
Virmin Didot 1867 461 Sobre as estrateacutegias de consolidaccedilatildeo da dinastia severa ver GONCcedilALVES Ana Teresa Marques
Propaganda no Periacuteodo Severiano A Construccedilatildeo da Imagem Imperial Tese de Doutorado
Universidade de Satildeo Paulo 2002 Sobre o papel das previsotildees astroloacutegico-matemaacuteticas na legitimaccedilatildeo
imperial severiana ver ZERUTUZA Hugo Andreacutes BOTALLA Horacio Centros e Maacutergenes
Simboacutelicos del Imperio Romano Buenos Aires UBA 1998 pp 199-201 e tambeacutem o artigo que
demonstra as caracteriacutesticas estoicas do poema de Manilio GONCcedilALVES Ana Teresa Marques
Astrologia e poder o caso de Marcus Manilius XXIV Simpoacutesio Nacional de Histoacuteria 2007 Textos
que tomo por guia 462 ldquo() seuls les astronomes et les astrologues avaient besoin d`une grande exactitude et seuls ils
utilisaient donc les instruments qui leur permettaient de mesurer les heures et les minutesldquo POMIAN
1984 p IV Logo a seguir Pomian apresenta uma primeira definiccedilatildeo de seu conceito de cronosofia ldquoAgrave
un tel questionnement de l`avenir qui preacutetend aboutir agrave des reacuteponses permettant de s`en repreacutesenter de
faccedilon veacuteridique sinon les menues particulariteacutes du moins les grandes lignes je donnerai le nom de
chronosophierdquo idem p V-VI No capiacutetulo XIV do primeiro livro da Repuacuteblica Ciacutecero descreve um
mecanismo em bronze capaz de simular o movimento das esferas celestes e prever eclipses com
precisatildeo ldquoAssim que Gallus colocou a esfera em movimentordquo relatou Ciacutecero ldquovimos a lua suceder ao
150
As referecircncias zodiacais entre os altos ciacuterculos de poder da repuacuteblica romana
poderiam ser recuadas de fato ao primeiro principado Marcus Manilius dedicou a
Otaacutevio um longo poema didaacutetico-astroloacutegico dotado de um claro vocabulaacuterio estoico
ldquoEu cantareirdquo declamou o poeta ao ldquomonarca silencioso da natureza () pois um
uacutenico sopro (spiritus) reside em todas as suas partes () mestre controlador de tudo
() dirige os seres da Terra pelo curso das estrelasrdquo 463 Leis secretas conhecimentos
divinos sobre os astros simpatia das esferas e da Terra definindo as vicissitudes
humanas por meio de uma uacutenica e fatal vontade Otaacutevio encarnando o genius
ordenador chegaria a assumir a imagem do carneiro estampaacute-la em suas moedas
fazendo alusatildeo ao signo da casa de Capricoacuternio464 A astrologia de Maniacutelio assim
apropriada foi em essecircncia zodiacal tendo por base referecircncias mitoloacutegicas por
exerciacutecio a magia e como ponte de ligaccedilatildeo com o divino (religio) certo
conhecimento revelado465
sol no horizonte terrestre como ela o sucede todos os dias no ceu vimos consequentemente o sol
desparecer no ceu e pouco agrave pouco a lua mergulhou na sombra da terra no momento mesmo em que o
sol no canto opostordquo ldquoHanc sphaeram Gallus quum moveret fiebat ut soli luna todidem
conversionibus in aeumlre illo quot diebus in ipso caelo succederet ex quo et in [caelo] sphaera solis fieret
eadem illa defectio et incideret luna tum in eam metam quae esset umbra terrae quum sol e
regionerdquo Na traduccedilatildeo de Nisard ldquoLorsque Gallus mettait la sphegravere en mouvement on voyait agrave
chaque tour la lune succeacuteder au soleil dans lrsquohorizon terrestre comme elle lui succegravede tous les jours
dans le ciel on voyait par conseacutequent le soleil disparaicirctre comme dans le ciel et peu agrave peu la lune
venir se plonger dans lrsquoombre de la terre au moment mecircme ougrave le soleil du cocircteacute opposeacuterdquo CICEacuteRON
Ouvres Complegravetes Nisard (trad) Tome Quatriegraveme Paris JJ Dubochet 1841 p 286-287 Esse
invento segundo Ciacutecero teria sido trazido a Roma por Marcus Claudius Marcellus conquistador de
Siracusa e sua autoria atribuiacuteda a Arquimedes partindo dos trabalhos de Tales de Miletos e Eudoxe de
Cnide (disciacutepulo de Platatildeo) A descriccedilatildeo do mecanismo guarda semelhanccedilas com os fragmentos da
maacutequina em bronze encontrada na ilha de Anticiacutetera em 1901 e exposta no Museu Nacional de
Arqueologia de Atenas 463 Livro II vers 60-73 ldquonamque canam tacita naturae mente potentem () cum spiritus unus per
cunctas habitet partes atque irriget orbem () tota magistro ac tantum mundi () erraretque vagus
mundus standove rigeret nec sua dispositos servarent sidera cursus noxque alterna diem fugeret
rursumque fugaret ()rdquo MANILIUS Astronomica GOOLD (ed) Cambridge Harvard University
Press 1977 464 Vide Portrait of Octavian Capricorn kerykeion shield dolphin trident altar and the hand holding
a shipboard decoration Sardonyx Twenties of the 1st century BC 25 times 24 cm Inv No Ж 263
Saint-Petersburg The State Hermitage Museum Para uma discussatildeo mais extensa ndash incluindo uma
revisatildeo bibliograacutefica ndash sobre os usos da imagem de Capricoacuternio no contexto da guerra civil romana ver
BARTON Tamsyn S Power and Knowledge Astrology Physiognomics and Medicine under the
Roman Empire Ann Arbor The University of Michigan Press 1994 [2002] Em especial a parte
Astrology Divination and the Fall of the Republic Cap 1 Star Wars in the Greco-Roman World
Principalmente pp 40-42 Cf GOUREVITCH D Tamsyn S BARTON Power and Knowledge In
Lantiquiteacute classique Tome 73 2004 pp 480-481 465 Cicero em seu tratado sobre De divinatione explica as caracteriacutesticas das crenccedilas e prognoacutesticos
(Prognostica) estoicos ldquode iniacutecio [de acordo com a doutrina dos estoicos] o universo foi criado de tal
forma que certos resultados seriam precedidos por alguns sinais que satildeo dados por vezes pelas
entranhas e por paacutessaros algumas vezes por relacircmpagos por portentos e por estrelas algumas vezes
por sonhos () (I III 118) ldquoQuando antes do nascer do Sol a Lua foi eclipsada no signo de Leatildeo isso
151
Seriam os saberes ocultos e as praacuteticas maacutegicas o uacutenico caminho para se
desenvolver uma teoria da influecircncia celeste No seacuteculo II um estudioso da biblioteca
de Alexandria vai propor outra abordagem Claacuteudio Ptolomeu (circa 100-178 AD)
conhecido entre noacutes como astrocircnomo antigo e um dos pais da cartografia propocircs uma
sistematizaccedilatildeo do modelo geocecircntrico na sua obra Almagesto Tambeacutem uma Syntaxis
mathematica o texto oferecia a descriccedilatildeo numeacuterica do movimento das esferas tendo
a Terra eacute claro como centro do universo Tratava-se de uma compilaccedilatildeo bastante
precisa da observaccedilatildeo milenar caldeia egiacutepcia e grega do movimento estelar Em
outro trabalho ndash o chamado ldquoLivro Quadruplordquo ndash Ptolomeu expunha os princiacutepios
daquilo que acreditava ser a aplicaccedilatildeo desse conhecimento ldquoDos meacutetodos de
previsatildeo astronocircmicardquo escreveu Ptolomeu logo no iniacutecio do seu Tetrabiblos ldquodois
satildeo mais importantes e vaacutelidosrdquo O primeiro e segundo o proacuteprio autor mais seguro
eacute aquele pelo qual ldquoapreendemos os aspectos dos movimentos do Sol da Lua e das
estrelas em relaccedilatildeo uns aos outros e a Terra do modo em que eles ocorrem de tempo
em tempordquo O segundo seria o modo que opera ldquoa partir do caraacuteter natural desses
aspectosrdquo investigando ldquoas mudanccedilas que elas trazem naquilo que os cercamrdquo 466
De linguagem seca e desprovida de muitos dos floreios da retoacuterica claacutessica o
primeiro livro do Tetrabiblos disponibilizava a seus leitores uma condensada
reformulaccedilatildeo de conceitos basais a respeito das estrelas errantes e fixas dos signos e
suas relaccedilotildees com os planetas O segundo livro tratava da astrologia geograacutefica da
metereologia e de eventos gerais No terceiro temos uma apreciaccedilatildeo dos horoscopos
individuais para jaacute no quarto lermos uma anaacutelise mais detelhada de suas
especificaccedilotildees Como comentou Ornella Faracovi ldquoo tratado era composto de uma
revisatildeo da tradiccedilatildeo astroloacutegica consolidando seus fundamentos geomeacutetricos e
astronocircmicosrdquo ainda pouco evidentes em escritores populares como Manilius A
autora natildeo deixou de ressaltar que no Livro Quadruplo Ptolomeu conectava-se a
temas da filosofia natural peripateacutetica fechando agraves portas da razatildeo agraves accedilotildees
demoniacuteacas ou supernaturais ldquoOs planetas eram tomados como entidades fiacutesicasrdquo
indicou que Daacuterio e os persas seriam vencidos na batalha pelos macedocircnios dirigidos por Alexandre (I
IV 120-1) NISARD op cit Tome IV pp 184-186 466 ldquoOf the means of prediction through astronomy O Syrus two are the most important and valid
One which is first both in order and in effectiveness is that whereby we apprehend the aspects of the
movement of sun moon and stars in relation to each other and to earth as they occur from time to
time the second is that in which by means of natural character of these aspects themselves we
investigate the changes which they bring about in that which they surroundrdquo Sendo o original em grego
alexandrino utilizei a traduccedilatildeo inglesa de ROBBINS FE Ptolomy Tetrabiblos Loeb Classical
Library No 435 1940 p 3
152
completou Faracovi ldquocujos movimentos e relaccedilotildees de reciprocidade eram dispostos
como efeitos naturais nas mateacuterias do mundo sublunarrdquo Egiacutepcio e alexandrino
Ptolomeu estava familizariado com o corpus hermeacutetico embora soacute lhe rendesse
tributos quando via neles atribuiccedilotildees medicinais em partes bastante especiacuteficas da
obra Quanto ao tema estoico a respeito da infalibilidade das previsotildees tatildeo criticado
por Ciacutecero e Sexto Empiacuterico era posto completamente de lado em nome da
dificuldade imposta pelas causas acidentais467
Em uma eacutepoca na qual astrologia e astronomia eram termos intercambiaacuteveis
Claudio Ptolomeu parecia igualmente expor uma primeira distinccedilatildeo entre aquilo que
em um regime de verdade posterior marcaraacute os limites de duas praacuteticas
essencialmente diversas Antes uma descriccedilatildeo matemaacutetica dos movimentos celestes
com o Almagesto Depois no Tetrabiblos chegamos ao tratado que examina o tipo de
influecircncia entendida sempre por meios fiacutesicos que o deslocamento das esferas vai
exercer no mundo sublunar ldquoEacute muito evidenterdquo declarou o saacutebio de Alexandria ldquoque
a maioria dos fatos de natureza geral retiram suas causas dos ceacuteusrdquo 468 Como na fiacutesica
de Aristoacuteteles filoacutesofo citado logo no prefaacutecio do Almagesto Ptolomeu natildeo aceitaria
causas remotas realizadas a distacircncia e sem contato efetivo Um quinto elemento
contrastando com os quatro usuais ndash terra aacutegua ar e fogo ndash se fazia assim necessaacuterio
ldquoum certo poder emanando da eterna e eteacuteria substacircnciardquo estava disperso da Terra aos
ceacuteus formando o elo fiacutesico capaz de transformar a influecircncia celeste em uma
evidecircncia registravel por exemplos naturais469
Como haacute seacuteculos faziam os egiacutepcios ndash unindo a medicina com as previsotildees
astroloacutegicas ndash Ptolomeu procurava sistematizar um meacutetodo prognoacutestico que reunisse
condiccedilotildees universais a casos particulares em virtude de um ambiente determinado
pela ordem da natureza470 Tanto a abordagem quanto o vocabulaacuterio ptolomaico ao
467 FARACOVI Ornella The Return to Ptolomy In DOOLEY Brandan (org) A companion to
astrology in the Renaissance Introduction Brill 2014 p 90 468 () it is so evident that most events of a general nature draw their causes from the enveloping
heavensrdquo (Tetrabiblos 11) Robbins 1940 p 6 469 Tetrabiblos 12 Robbins 1940 p 7 470 Tetrabiblos 13 Robbins 1940 p 33 Saber cronosoacutefico os prognoacutesticos estritamente astronocircmicos
a respeito do movimento das estrelas (nas taacutebuas de efemeacuterides do Almagesto) jaacute buscavam
transcendendo o presente em direccedilatildeo ao futuro apreender toda uma trajetoacuteria ldquode lrsquohistoire du devenir
ou du tempsrdquo projeto coerentemente concluiacutedo pela substituiccedilatildeo (atraveacutes do meacutetodo do Tetrabiblos) de
um conhecimento ldquoneacutecessairement incomplegravete par un savoir acheveacute suscetible de metre en eacutevidence la
signification ultime de tout ce qui aura eacuteteacute advenurdquo ldquoTelles sont la voyancerdquo explica Pomian
ldquocapaciteacute de voir avec les yeaux de l`acircme les choses cacheacuteesrdquo ldquola divination savoir permettant une
lecture des eacuteveacutenements futurs agrave partir des signesrdquo e finalmente ldquol`interpreacutetation des conjonctions
astrales afin d`eacutetablir les prognostications et les horoscopesrdquo POMIAN 1984 p V-VI Grifos meus
153
passo em que buscam claramente afastar-se do fatalismo estoico que ignorava as
qualidades acidentais aproximam-no do repertoacuterio peripateacutetico471 ldquoEacute verdade que o
movimento dos corpos celestesrdquo anotou ldquoeacute eternamente realizado em acordo com o
divino e imutaacutevel destinordquo ldquoenquanto que as coisas terrenasrdquo por outro lado seriam
ldquosujeitas ao destino natural e mutaacutevel e tomando suas causas primeiras do
firmamento satildeo assim governadas pelo acaso e pela sequecircncia naturalrdquo 472
ldquoA natureza eacute sempre uma causa de ordemrdquo 473 O argumento desenvolvido
pela fiacutesica de Aristoacuteteles foi certamente original contrastando na tradiccedilatildeo claacutessica
com seu predecessor direto Platatildeo que separava a forma do devir imaginava a
mateacuteria como accedilatildeo de um agente extriacutenseco alma ou demiurgo474 Para o filoacutesofo de
Estagira pelo contraacuterio a ordem da natureza possui uma loacutegica imanente sendo
indissociaacutevel de uma teleologia da natureza475 Na Metafiacutesica IX ele jaacute comentava
que a relaccedilatildeo entre potecircncia e ato eacute constituidora do ser e do vir a ser No De Caelo
cada elemento aparece tendo como caracteriacutestica uma potecircncia e na ausecircncia de
qualquer obstaacuteculo nada poderia impedir que ela se realizasse em ato Ato que na
definiccedilatildeo mesma de natureza eacute ligado intimamente ao movimento movimento que se
daacute entre uma potecircncia e a ocupaccedilatildeo do espaccedilo relativo ao ato ou seja tendo como
orientaccedilatildeo seu lugar natural476
Devo fazer notar que em A Ordem do Tempo Pomian natildeo refer-se ao trabalho de Ptolomeu mas
apresenta um argumento geral em relaccedilatildeo agrave divinaccedilatildeo (astroloacutegica ou aruacutespica) e aos prognoacutesticos
antigos 471 Isso ocorre especialmente quando Ptolomeu procura responder agraves criacuteticas agrave astrologia realizadas por
Cicero (De Divinatione I 2) centradas na natildeo factibilidade dos prognoacutesticos zoodiacais Por
qualidades acidentais Ptolomeu entende elementos como nacionalidade pais e criaccedilatildeo Ver
Tetrabiblos 129 472 Tetrabiblos 1312 ROBBINS 1940 p 23 ldquoRather it is true that the movement of the heavenly
bodies to be sure is eternally performed in accordance with divine unchangeable destiny while the
change of earthly things is subject to a natural and mutable fate and in drawing its first causes from
above it is governed by chance and natural sequencerdquo 473 Fiacutesica VIII 1 252a12 17 In ARISTOTE Physique Texte eacutetabli et traduit par Henri Carteron Vol
I 2ed Paris Budeacute 1956 474 Sobre a ordem da natureza na fiacutesica de Aristoacuteteles sigo LANG Helen S The Order of Nature in
Aristotlersquos Physics Place and the elements Cambridge University Press 1998 O estudo parte de uma
rejeiccedilatildeo da visatildeo anacrocircnica (projetada por um meacutetodo natildeo contextual) de que a fiacutesica aristoteacutelica
ldquoadiantariardquo certas concepccedilotildees modernas tornando-se algo como proto-mecacircnica O objetivo de Helen
Lang eacute ldquocompreender a concepccedilatildeo de natureza como sempre uma causa de ordem e a definiccedilatildeo dos
problemas cujas soluccedilotildees exibem essa pressuposiccedilatildeordquo p 5 475 ldquoIndeed there is no difference between the order of nature and the teleology of nature Aristotlersquos
teleology is often identified with his account of ldquofinal causesrdquo as if apart from them the rest of his
physics (or philosophy more generally) were not teleological Such an account is anoter version of the
view that Aristotlersquos philosophy is a proto-mechanistic view with teleology in the guise of final
causes added on But such a view is more than misleading it is falserdquo LANG 1998 274 476 LANG 1998 7-8 Para a autora ldquoAristotle presents a cosmos with the earth stationary at its center
the stars going around eternally and each element ndash earth air fire and water ndash is moved always toward
its natural place Because it is like form place renders this cosmos determinate in respect of direction
154
Se em Platatildeo como num gentil repouso de suas asas o demiurgo impunha a
forma na mateacuteria e na alma em Aristoacuteteles os ceacuteus governam pelo divino e o corpo
deseja a alma como sua primeira enteleacutequia477 A natureza possui o princiacutepio do
movimento e os ceacuteus satildeo o grande modelo para toda accedilatildeo elementar os corpos
celestes estatildeo em contiacutenuo deslocamento rumo a seus lugares naturais em uma danccedila
que eacute a proacutepria relaccedilatildeo entre potecircncia e ato movimento circular perfeito cujas
revoluccedilotildees alguns seacuteculos mais tarde vatildeo ser pontuadas matematicamente nas
efemeacuterides ptolomaicas
Os ciclos tambeacutem poderiam ser entendidos na fiacutesica de Aristoacuteteles como o
espaccedilo entre a vida e a morte entre a luz e a escuridatildeo entre o frio e o calor entre a
Geraccedilatildeo e a Corrupccedilatildeo Nesse breve tratado ndash situado entre o De Caelo e a
Meteorologica ndash o filoacutesofo faz um exame das ldquocondiccedilotildees e das causas fiacutesicas da
produccedilatildeo e da destruiccedilatildeo das coisas e dos seres individuaisrdquo478 Problema antigo jaacute
havia sido tratado por reflexotildees anteriores como por exemplo aquela desenvolvida
por Empeacutedocles Para Aristoacuteteles no entanto nenhum dos esforccedilos anteriores foi
capaz de sistematizar uma teoria capaz de dar conta tanto da formaccedilatildeo e estrutura do
quadro coacutesmico geral quanto das coisas e seres que o habitam Unir as dimensotildees
macroscoacutepicas e microscoacutepicas do universo mesmo Platatildeo quando direcionou seus
esforccedilos a essa tarefa no Timeu (29b-d) natildeo deixou de lanccedilar matildeo de contos
mitoloacutegicos (eikos muthos) Mas no De geratione et corruptione coisas e seres que
coexistem na esfera sublunar reclamam explicaccedilotildees de ordem fiacutesica da mesma
maneira que o fazem os fenocircmenos celestes Ainda uma investigaccedilatildeo sobre as causas
agora dispostas em um elo comum entre o macro e o micro da archeacute e do telos das
coisas e dos seres
Eacute ao capiacutetulo X do segundo livro que os comentadores costumam remeter
quando buscam respostas para a articulaccedilatildeo ordenadora entre o mundo sublunar e o
cosmos celestial Eacute nele que Aristoacuteteles argumenta que os elementos satildeo criados uns
dos outros em uma geraccedilatildeo que forma um ciclo eterno e contiacutenuo o qual emula a
locomoccedilatildeo circular Eacute tambeacutem nele que o filoacutesofo explica a dinacircmica do gerador
causa de toda transformaccedilatildeo sublunar baseada em ocorrecircncias regulares Na Fiacutesica
ie up down left right front and back and all things within the world are determined in respect of
placerdquo Idem p 9 477 LANG 1998 275 478 MUGLER Charles Introduction In ARISTOTE De la Geacuteneacuteration et de la Corruption Paris
Socieacuteteacute drsquoeacutedition 1966 p VIII
155
(VIII7-9) jaacute tiacutenhamos a demonstraccedilatildeo de que o movimento de revoluccedilatildeo celeste era
eterno e anterior agrave geraccedilatildeo pois seguindo sua loacutegica uma coisa que estaacute para ser natildeo
pode existir ainda Corrupccedilatildeo e geraccedilatildeo sendo contraacuterios natildeo deveriam tambeacutem se
dar ao mesmo tempo como toda investigaccedilatildeo antiga o sistema aristoteacutelico eacute uma
busca por causas O gerador faz esse papel Ele eacute a causa fiacutesica da loacutegica de
transformaccedilatildeo contiacutenua tanto das coisas quanto dos seres
Os fenocircmenos sensiacuteveis satildeo tambeacutem claramente
conformes ao nosso raciociacutenio Noacutes observamos que
quando o sol [gerador] se aproxima temos a geraccedilatildeo e
quando ele se afasta temos a destruiccedilatildeo de modo que
essas duas fases possuem a mesma duraccedilatildeo uma vez
que o tempo da destruiccedilatildeo natural eacute o igual ao da
geraccedilatildeo479
Na concepccedilatildeo aristoteacutelica do cosmos o Sol orbitando ao redor da Terra
aproximava-se da esfera sublunar nos meses quentes afastando-se dela nos meses de
outono e de inverno O astro rei eacute dessa forma a causa das transformaccedilotildees ocorridas
entre noacutes do surgimento das coisas e dos seres a sua corrupccedilatildeo e morte O exemplo
do gerador aponta para o papel solar mas o argumento bastante geral foi extrapolado
por diversos autores ao longo da antiguidade tardia e do medievo Natildeo era apenas o
Sol afinal de contas que na perspectiva geocecircntrica orbitava e influenciava nossa
esfera a lua e as estrelas errantes tambeacutem o faziam Aleacutem de Ptolomeu que aplicou o
argumento teoacuterico aristoteacutelico da influecircncia (no caso do Sol geradora e corruptora)
aos demais corpos celestes poderiacuteamos ainda lembrar de Averroacuteis480 Em seu
comentaacuterio sobre a o tratado de Aristoacuteteles o filoacutesofo cordobenho reafirmava que a
ldquocausa eficiente para a continuidade da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeordquo seria o ldquomovimento
primaacuterio contiacutenuordquo Embora ele reconhecesse que essa relaccedilatildeo de influecircncia fosse
ldquomais aparente no caso do Solrdquo (pelo seu papel de gerador) ela natildeo era limitada a ele
mas tambeacutem se fazia sentir igualmente nos casos ldquoda Lua e de todos os planetasrdquo481
479 ARISTOTE 1966 p 68 Ross em sua traduccedilatildeo inglesa remete ao termo ldquogeradorrdquo no que pese agrave
tradiccedilatildeo de comentadores sempre ter associado esse termo ao Sol (que de fato eacute traduccedilatildeo recorrente na
liacutengua francesa) Ver ARISTOTLE The works of Aristotle translated into English ROSS WD (ed)
Oxford Claredon 1931 Livro II X 480 Ptolomeu discute o problema da influecircncia do Sol e dos planetas em termos jaacute similares aos de
Averroacuteis no capiacutetulo 4 do primeiro livro do Tetrabiblos Ver Tetrabiblos IVI ROBBINS 1940 p
117-121 481 KURLAND S (ed) Averroes on Aristotlesrsquos De generatione et corruptione Middle commentary
and Epitome Translated from the original arabic and the hebrew and latin versions Cambridge MA
The Medieval Academy of America 1958 Apud MARTINS Roberto de Andrade A Influecircncia de
156
No ocidente como vimos jaacute durante o principado as efemeacuterides uniam
exemplos naturais a casos particulares relacionando passado e presente ainda sem se
esquivarem agrave tarefa de perscrutar bases matemaacuteticas para o estabelecimento de
prognoacutesticos racionais De uma modalidade do gecircnero histoacuterico (res gestas) baseada
na narraccedilatildeo dia-a-dia dos feitos dos homens elas tambeacutem comeccedilaram a remeter agraves
gestas estelares ainda assim descrevendo seus movimentos diaacuterios Em Ptolomeu
entretanto natildeo se falava mais em simpatias como entre certos estoicos ou mesmo
alguns neoplatocircnicos mas de influecircncia pelo contato elementar (via eacuteter celestial) e
pelo jogo de contraacuterios que ao menos desde Empeacutedocles fazia parte do repertoacuterio
claacutessico (calor e frio umido e seco) Ao serem assim utilizadas pela filosofia natural
elas tambeacutem edificavam uma ponte racionalizada ndash dentro eacute claro dos criteacuterios de
um regime de evidecircncia antigo ndash para a filosofia moral482 O estudo descritivo da
posiccedilatildeo dos planetas possibilitava o estabelecimento das bases tabulares de uma
praacutetica se assim pudermos dizer cronosoacutefica que lia na regularidade do movimento
das estrelas os meios de prever efeitos futuros Tratava-se de uma teacutecnica que operava
a partir de uma relaccedilatildeo entre ordem do tempo e ordem da natureza na qual a primeira
dependia em uacuteltima instacircncia da essecircncia imutaacutevel e do sentido teleoloacutegico da
uacuteltima
32 Primeiras experiecircncias cristatildes a ordem do tempo comemorada
A relaccedilatildeo entre as teacutecnicas cronosoacuteficas de prediccedilatildeo e as experiecircncias do
tempo tornaram-se uma evidecircncia ao longo do periacuteodo heleniacutestico e da antiguidade
tardia Mas em Santo Agostinho no seacuteculo V essa jaacute era uma associaccedilatildeo indesejaacutevel
Para o bispo de Hipona a histoacuteria deveria limitar-se a narrar o que foi Nisso ela se
diferenciava dos livros de adivinhos e aruacutespices uma vez que tais escritos ensinavam
o que deveria ser feito ou observado aparentando seu gecircnero agrave ousadia de um
conselheiro Caberia a histoacuteria pelo contraacuterio a tarefa inversa a qual definiria sua
utilidade (de historiae utilitate) credenciar-se pela fidelidade de um narrador Afinal
Aristoacuteteles na obra astroloacutegica de Ptolomeu (O Tetrabiblos) TransFormAccedilatildeo Satildeo Paulo 18 1995 p
70 Texto que como o tiacutetulo indica esforccedila-se por demonstrar as caracteriacutesticas aristoteacutelicas do tratado
de Claudio Ptolomeu 482 Apoacutes expor ao longo do livro I uma defesa dos meacutetodos da astrologia e suas caracteriacutesticas gerais
Ptolomeu comeccedila no livro II a descrever os efeitos da influecircncia dos astros celestes no clima e nas
caracteriacutesticas fiacutesicas das populaccedilotildees sublunares Jaacute no livro III (13-14) ele discute respectivamente a
influecircncia dos planetas nas qualidades da alma (determinadas por Mercuacuterio e pela Lua assim como
pelos planetas que se relacionam a ela) e nas doenccedilas que a afligem
157
ela natildeo poderia ter como linha mestra as instituiccedilotildees humanas nem a intenccedilatildeo de
retorno agravequilo que jaacute passou uma vez que o passado ldquopertence a ordem do tempo
cujo fundador e administrador eacute Deusrdquo483
O conhecimento das estrelas ndash que na tradiccedilatildeo astronocircmica claacutessica era
relacionado como vimos agrave ordem da natureza ndash na Doutrina Cristatilde tambeacutem natildeo
aparecia enquanto ldquouma questatildeo de narraccedilatildeo mas de descriccedilatildeordquo Mesmo assim ela
envolve como admite o pai da Igreja ldquoalgo como uma narrativa do passadordquo 484
Pode-se eacute verdade voltar de uma posiccedilatildeo presente e traccedilar o itineraacuterio de um astro
ateacute seus movimentos anteriores Da mesma forma conhecer as estrelas tambeacutem torna
possiacutevel indicar algumas antecipaccedilotildees (futurorum regulares coniecturas) ndash natildeo feitas
a ldquomaneira absurda dos astroacutelogosrdquo (genethliaci) que buscavam com isso prever
accedilotildees e fatos humanos ndash mas tatildeo somente a respeito do translado dos proacuteprios corpos
celestes Entender a danccedila dos orbes havia deixado de ser uacutetil para julgar
compreender ou prognosticar quaisquer dimensotildees temporais relativas ao mundo
sublunar Com a providecircncia assumindo as reacutedeas da ordem do tempo restava aos
cristatildeos orientarem-se pela palavra divina E muito pouco a respeito das estrelas era
comemorado na Biacuteblia (quorum perpauca Scriptura commemorat) Aleacutem da lua
483 AUGUSTINI S Aureii De Doctrina Christiana Libri Quatuor et Enchiridion ad Laurentium
Editio Stereotypa Lipsiae Sumtibus et typis caroli tauchnitii 1838 pp Livro II Cap XXVIII [2844]
pp 64-65 ldquoNarratione autem historica cum praeterita etiam hominum instituta narrantur non inter
humana instituta ipsa historia numeranda est quia iam quae transierunt nec infecta fieri possunt in
ordine temporum habenda sunt quorum est conditor et administrator Deus Aliud est enim facta
narrare aliud docere facienda Historia facta narrat fideliter atque utiliter libri autem aruspicum et
quaeque similes litterae facienda vel observanda intendunt docere monitoris audacia non indicis fiderdquo
Grifos meus Na sua leitura da De Doctrina Christiana Odilo Engels escreveu que ldquoEntre as doctrinae
dos pagatildeos Agostinho distingue duas institutiones as que decorrem da praacutetica humana e que por isso
satildeo dispensaacuteveis ainda que uacuteteis e aquelas que o Criador institui a favor do homem e que por
consequecircncia natildeo satildeo cambiaacuteveis Nesse contexto eacute verdade que os acontecimentos histoacutericos se
devem a accedilotildees humanas mas se concretizam dentro de uma dada ldquo(ordo) temporum quorum est
conditor et administrator Deusrdquo Ver ENGELS Odilo Compreensatildeo do conceito na Idade Meacutedia In
KOSELLECK Reinhart (org) O Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 81 484Na Doutrina Cristatilde em capiacutetulos imediatamente sucessivos Agostinho traz a discussatildeo da histoacuteria
da adivinhaccedilatildeo e da astrologia [2844 a 2946] Eacute possiacutevel que ele estivesse respondendo a uma
tradiccedilatildeo que buscava analogias entre a ordem do tempo e o cosmos (ou agrave ordem da natureza) Esse tipo
de relaccedilatildeo natildeo era incomum e poderia ser recuada no ocidente ao menos ateacute o Timeu de Platatildeo senatildeo
mesmo ateacute a Palavra de Anaximandro Jaacute em Posidocircnio existe uma relaccedilatildeo expliacutecita com a escrita da
histoacuteria Para o estoico a tarefa do historiador deveria ser a de ldquoenquadrar toda a humanidade naquilo
que tange a sua parentela bem como a seu distanciamento espacial e temporal sob a uacutenica ordem
representada transformando-a por assim dizer num oacutergatildeo da providecircncia divina Pois da mesma
forma que ela unifica a ordem das estrelas no ceacuteu e as naturezas humanas numa analogia comum
fazendo-as circular numa mesma trajetoacuteria por toda a eternidade atribuindo a cada um aquilo que o
destino lhe reserva aqueles que registram os acontecimentos comuns do mundo como se fossem uma
uacutenica cidade transforam sua representaccedilatildeo numa justificativa unitaacuteria e num ato de administraccedilatildeo
comum do acontecidordquo APUD MEIER Christian Antiguidade In KOSELLECK Reinhart (org) O
Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 56 Grifos meus
158
marcar o aniversaacuterio da paixatildeo quase nada mencionava-se Era o que bastava Ir aleacutem
poderia incitar o ldquopernicioso errordquo das supersticcedilotildees485
Agostinho natildeo era uma voz isolada entre os pensadores cristatildeos da antiguidade
tardia Em obra endereccedilada ao imperador Constantino do qual chegou a ser
conselheiro e segundo a tradiccedilatildeo convencera-lhe a mandar suas legiotildees lutarem a
batalha da ponte Miacutelvia tendo um cristograma pintado em seus escudos Lactacircncio
criticava os adivinhos e os fazedores de horoacutescopos486 No capiacutetulo XVII do segundo
livro de suas Instituiccedilotildees Divinas o ldquoCiacutecero cristatildeordquo dos humanistas eruditos natildeo
apenas afirmava que a ldquoastrologia os auguacuterios os oraacuteculos a necromancia a magiardquo
enfim todo esse repertoacuterio de conhecimentos ocultos pagatildeos eram supersticcedilotildees
Lactacircncio ia aleacutem defendendo que tais procedimentos eram obras incitadas pelo
democircnio487 Viver em uma histoacuteria sacra significaria de igual maneira que ao fieacutel
caberia tatildeo somente comemorar em culto puacuteblico certas datas a partir da leitura ritual
das escrituras enquanto ele espera indefinidamente o retorno do salvador no sabaacute do
seacutetimo dia como explicou-nos Agostinho em outra oportunidade488
485 Ibid Livro II Cap XXIX [2946] Siderum autem cognoscendorum non narratio sed demonstratio
est quorum perpauca Scriptura commemorat Sicut autem plurimis notus est lunae cursus qui etiam ad
passionem Domini anniversarie celebrandam sollemniter adhibetur () Quae per se ipsa cognitio
quamquam superstitione non alliget non multum tamen ac prope nihil adiuvat tractationem divinarum
Scripturarum et infructuosa intentione plus impedit et quia familiaris est perniciosissimo errori fatua
fata cantantium commodius honestiusque contemnitur Habet autem praeter demonstrationem
praesentium etiam praeteritorum narrationi simile aliquid quod a praesenti positione motuque siderum
et in praeterita eorum vestigia regulariter licet recurrere Habet etiam futurorum regulares coniecturas
non suspiciosas et ominosas sed ratas et certas non ut ex eis aliquid trahere in nostra facta et eventa
temptemus qualia genethliacorum deliramenta sunt sed quantum ad ipsa pertinet sidera () 486 Sobre a questatildeo do chi-rho ver LACTANTIUS De la mort des perseacutecuteurs de lrsquoEglise In Choix
des monuments primitfs de lrsquoEacuteglise chreacutetienne Paris Socieacuteteacute du Pantheacuteon Litteacuteraire 1843 No capiacutetulo
445 da ediccedilatildeo francesa ldquoConstantin averti en songe de faire peindre sur les boucliers de ses soldats le
signe adorable de la croix et dengager ensuite le combat obeacuteit et fit peindre sur ses boucliers un X
avec un accent circonflexe qui signifie Jeacutesus-Christrdquo 487 LACTANTIUS Institutions Divines In Choix des monuments primitfs de lrsquoEacuteglise chreacutetienne
Paris Socieacuteteacute du Pantheacuteon Litteacuteraire 1843 Livro II CAP XVII Astrologiam aruspicinam et similes
artes esse daemonum inventa No latim ldquoEorum inventa sunt astrologia et aruspicina et auguratio et
ipsa quae dicuntur oracula et necromantia et ars magica et quiquid praeterea malorum exercent
homines vel palam vel occulte Quae omnia per se falsa sunt ut Sibylla Erythraea testatur Επεὶ πλάνα
πάντα τάδ ἐστίν Ἅπερ ἄφρονες ἀνδρες ἐρευνῶσι κατ ἧμαρ Sed iidem ipsi auctores praesentia sua
faciunt ut vera esse credantur Ita hominum credulitatem mentita divinitate deludunt quod illis verum
aperire non expedit Hi sunt qui imagines et simulacra fingere docueruntrdquo Na ediccedilatildeo francesa
ldquoLastrologie judiciaire les auspices les augures les oracles la neacutecromancie la magie et tous les
mauvais arts que les hommes exercent soit en particulier soit en public sont des inventions des
deacutemons et ces arts-lagrave sont faux comme la sibylle Erythreacutee le teacutemoigne quand elle dit que tout ce que
les hommes deacutepourvus de sagesse cherchent par lexplication des songes nest quillusion et tromperie
Mais bien que ces moyens de parvenir agrave la connaissance de la veacuteriteacute soient faux les deacutemons qui les ont
inventeacutes abusent tellement de la creacuteduliteacute des hommes quils les leur font recevoir comme veacuteritablesrdquo 488 AUGUSTIN La citeacute de Dieu 22 30 5 Apud HARTOG 2013 p 91
159
Astrocircnomos de Miletos como Tales e Anaximandro tambeacutem Platatildeo e
Aristoacuteteles os estoicos e epicuristas ainda Plotino teorias filosoacuteficas sobre o tempo
foram abundantes na antiguidade e constituiram ldquoindubitavelmente saberes adquiridos
sem os quais Santo Agostinhordquo como lembrou Franccedilois Hartog ldquonatildeo teria podido
comeccedilar sua proacutepria reflexatildeordquo 489 ldquoO que eacute o tempordquo perguntava ndash talvez em sua
mais ceacutelebre questatildeo ndash o velho bispo de Hipona Eacute melhor natildeo pressionaacute-lo pois se
ningueacutem o indagar ele saberaacute mas se algueacutem ousar questionar-lhe e ele tiver de
explicar nem o santo poderaacute fazecirc-lo490 Eacute no capiacutetulo XI das Confissotildees que
encontramos sua reflexatildeo sobre o assunto Agostinho acredita que eacute preciso um ser
para conferir realidade ao tempo Para um cristatildeo como comentou Pomian relegar o
tempo ao natildeo-ser tornar-se-ia inaceitaacutevel diferente do que apresentava-se em
Aristoacuteteles ndash quando aparecia como uma intrusatildeo metafiacutesica no mundo fiacutesico ndash nas
Confissotildees o tempo era uma questatildeo gnoseoloacutegica Para o ser portanto existiria um
presente do passado talhado na memoacuteria um presente do presente manifestando-se
pela visatildeo e ainda um presente do futuro antecipando-se em expectativa Assim
Agostinho lanccedilava a tese de que a sensaccedilatildeo da temporalidade natildeo passava de um
alongamento da alma (animo) a qual se articulava a partir dela por meio de uma
experiecircncia intelectual dada entre a ldquodistensatildeordquo (distensio) e a ldquoatenccedilatildeordquo (attentio)491
ldquoA alma (animo) espera (expectat) e estaacute atenta (adtendit) e lembra-se (meminit) de
maneira que o que espera transpondo aquilo ao que estaacute atento passa para o que se
lembrardquo492
489 HARTOG 2013 p 84 Ver tambeacutem PAPACHRISTOU Ioannis Time for Aristotle Physics IV10-
14 by Ursula Coope Oxford Clarendon Press 2005 Book review In Rhizai III2 (2006) pp 63-66
Para quem o ldquotermo lsquoTemporsquo(chronos) aparece desde o periacuteodo preacute-socraacutetico como podemos ver em
um fragmento atribuiacutedo a Tales (frs A1 I 71 13 DK) e em um fragmento atribuiacutedo a Anaximandro
(frs B1 I 89 14 DK) no qual o tempo eacute representado mais como um poder personalizado do que
como uma noccedilatildeo filosoacutefica strictu senso A primeira importante referecircncia agrave noccedilatildeo de tempo eacute
encontrada no Timeu (37c5-38c3) no qual Platatildeo considera o tempo um ingrediente do universo como
um todo de acordo com a cosmologia explicitada em seu trabalho () Depois de Aristoacuteteles e aleacutem
dos fragmentos estoicos e epicuristas a mais importante e sistemaacutetica reflexatildeo sobre o tempo eacute
encontrada no tratado de Plotino (II7[45]) Sobre a Eternidade e o Tempordquo (63) 490 AUGUSTIN Les confessions 11 28 38 In Ouvres de Saint Augustin Paris Descleacutee de Brouwer
1996 Bibliothegraveque Augustinienne 14 utilizei tambeacutem AUGUSTINE Confessions With an English
Translatin by William Watts The Loeb Classical Library London William Heinemann New York
The Macmillan co Vol II 1912 491 Franccedilois Hartog em sua leitura dessa passagem das Confissotildees traduz animo por ldquoespiacuteritordquo
Krzystof Pomian por outro lado prefere traduzir o mesmo termo latino por ldquoalmardquo Ver POMIAN
1984 246-247 Cf HARTOG 2013 84-85 492 AUGUSTINE Confessions 1912 Em latim ldquosed quomodo minuitur aut consumitur futurum quod
nondum est aut quomodo crescit praeteritum quod iam non est nisi quia in animo qui illud agit tria
sunt nam et expectat et attendit et meminit ut id quod expectat per id quod attendit transeat in id quod
meminerit quis igitur negat futura nondum esse sed tamen iam est in animo expectatio futurorum et
160
Esqueccedilamos por ora o chamado de Plutarco que rogava seus leitores a
ldquoaplicar suas curiosidades para o Solrdquo perguntando ldquoaonde ele se potildee e aonde ele
nasce ()rdquo e incentivando o interesse ldquopelas mudanccedilas da Lua como terias sobre as
coisas humanasrdquo (Moralia 6 473-485-507) O questionaacuterio agostiniano sobre o
tempo natildeo mais ancora suas meditaccedilotildees na ordem da natureza natildeo mais olha para o
movimento dos ceacuteus mas para dentro de si abandonando a metafiacutesica aristoteacutelica ao
mesmo passo em que relegava as influecircncias celestes ndash senatildeo agraves obras do democircnio
como o fez antes dele um mais modesto Lactacircncio ndash agraves supersticcedilotildees da plebe Essa
primeira experiecircncia do tempo cristatilde eacute uma percepcatildeo iacutentima tatildeo pertencente ao
acircmago do ser que Pomian viu nela um ldquotempo psicoloacutegicordquo enquanto que Hartog
tendo Ricoeur em mente natildeo deixou de pontuar sua novidade o esboccedilo de uma
fenomenologia do tempo493
Com a emergecircncia vitoriosa do cristianismo no ocidente e o fim do mundo
romano as efemeacuterides retecircm o sentido presente no jornal escrito por Eumenes de
Caacuterdia Em Isidoro de Sevilha ldquohistoriardquo era a maneira de retomar tudo o que fosse
passado ndash historia est narratio rei gestae (Etymologiae 1 41 1) Se a distinccedilatildeo entre
annales como enumeraccedilatildeo de acontecimentos impessoais e historia como experiecircncia
vivida se perdeu isso ocorre em nome de uma moldura narrativa que permita ao
pregador no ato da oraccedilatildeo comemorar junto ao seu auditoacuterio exemplos como modo
de transmitir-lhes valores morais e pedagoacutegicos Essa narraccedilatildeo incluiacuteda no ato
predicante nos sermotildees e nas crocircnicas poderia ser pontuada em anos em meses ou
em dias respectivamente falava-se em annales em kalendas ou em ephemerida
(Etymologiae 1 44)494 Integradas no projeto agostiniano as efemeacuterides contam o
tempo dos homens suas gestas dia-a-dia venerando os exemplos cuja autoridade
(auctoritas) era obra concedida pela matildeo da providecircncia (providentia Dei) Mesmo
em um ambiente cristatildeo os exemplos quando reflexotildees da virtude guardam ainda
quis negat praeterita iam non esse sed tamen adhuc est in animo memoria praeteritorum et quis negat
praesens tempus carere spatio quia in puncto praeterit sed tamen perdurat attentio per quam pergat
abesse quod aderit non igitur longum tempus futurum quod non est sed longum futurum longa
expectatio futuri est neque longum praeteritum tempus quod non est sed longum praeteritum longa
memoria praeteriti estrdquo [112837] pp 276 seguida de uma traduccedilatildeo inglesa na paacutegina 277 que verte
ldquoanimordquo para ldquomindrdquo 493 HARTOG 2013 84 POMIAN 1984 principalmente 245-250 Para o tratamento de Ricoeur a
respeito do problema do tempo em Agostinho ver RICOEUR Paul Tempo e Narrativa Tomo I
Campinas Papirus 1994 pp 19-42 Para uma leitura que dialoga entre Agostinho e Aristoacuteteles ver
RICOEUR Paul Tempo e Narrativa Tomo III Satildeo Paulo Martins Fontes 2010 pp 15-36 494 ENGELS Odilo Compreensatildeo do conceito na Idade Meacutedia In KOSELLECK Reinhart (org) O
Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 64
161
algo de origem divina Era o momento como comentou Hartog de prestar mais
atenccedilatildeo ao passado e menos ao futuro e mantendo os olhos em Cristo diriacuteamos noacutes
deixar seduzir-se pela boa nova comemorando em eucaristia a lembranccedila de seu
modelo vivo ldquoEssa inflexatildeo da ordem cristatilde do tempo em direccedilatildeo ao jaacute a um passado
em verdade continuamente reativado pelo ritual ndash anotou o autor dos Regimes de
historicidade ndash permite agrave Igreja () recuperar retormar habitar os modelos antigos
da mos maiorum e da historia magistrardquo que agora podem operar em seu proveito
Potecircncia temporal a ordem cristatilde ndash guiada pelos signos da palavra de um Deus
narrativo ndash faz o presente o passado e o futuro perdurarem com flexibilidade Atraveacutes
da teologia medieval as trecircs categorias baacutesicas da temporalidade se articulam na
aeternitas da mesma forma que nos seacuteculos anteriores uma Roma Invicta havia sido
oficiada pela lembranccedila dos costumes de seus ancestrais495
33 A escolaacutestica e a via media
Durante a Idade Meacutedia Central o pensamento de Aristoacuteteles ganha nova
acolhida no seio das nascentes universidades A escolaacutestica faz debater e comentar
ainda mais uma vez a fiacutesica aristoteacutelica suas sistematizaccedilotildees sobre o tempo e a
relaccedilatildeo necessaacuteria que ele mantem com a vicissitude Tomaacutes de Aquino retorna a um
problema intimista anaacutelogo agrave ordem das meditaccedilotildees agostinianas pode o tempo
sendo ele nuacutemero e medida da mudanccedila existir alheio a uma alma capaz de contar
sua passagem O argumento tomista reitera a relaccedilatildeo de dependecircncia explicitada na
Fiacutesica (IV10-14) que o tempo possui frente agrave mudanccedila (kinecircsis) asseverando que
ldquose o movimento eacute posicionado entatildeo tambeacutem eacute necessaacuterio posicionar o tempo
porque lsquoantesrsquo e lsquodepoisrsquo existem no movimento e satildeo essas coisas ndash a saber o
lsquoantesrsquo e o lsquodepoisrsquo no movimento uma vez contaacuteveis ndash que satildeo o tempordquo496
495 HARTOG 2013 p 91-92 496 AQUINAS Thomas Commentary on Aristotles Physics Book 4 Richard J Blackwell Richard J
Spath amp W Edmund Thirlkel (trans) Yale University Press 1963 Lecture 23 The Problems are
Solved as to the Existence and Unity of Time (Liber 4 123 n5) 629 For as motion is posited so is it
also necessary to posit time because ldquobeforerdquo and ldquoafterrdquo exist in motion and it is these things
namely the ldquobeforerdquo and ldquoafterrdquo in motion insofar as they are numerable that are time [icut enim
ponitur motus ita necesse est poni tempus quia prius et posterius in motu sunt et haec scilicet prius et
posterius motus inquantum sunt numerabilia sunt ipsum tempus]
162
ldquoEntretantordquo diria Aquino logo a seguir ldquoisso natildeo significa que se natildeo tivermos
quem conte natildeo haveraacute nada contaacutevel que eacute a objeccedilatildeo levantada pelo Filoacutesofordquo497
O comentaacuterio de Tomaacutes de Aquino parece ler uma relaccedilatildeo de imanecircncia entre
tempo e mudanccedila que asseguraria o estatuto ontoloacutegico do primeiro ancorando-o nas
manifestaccedilotildees cineacuteticas do segundo como se um natildeo pudesse existir sem o outro ou
talvez mais precisamente como se o tempo imitasse ou tentasse seguir de perto os
caminhos movimentados pela vicissitude Recentemente Ursula Coope considerou a
interpretaccedilatildeo tomista um erro Na leitura da filoacutesofa de Oxford o tempo em
Aristoacuteteles natildeo eacute apenas dependente do intelecto como tambeacutem o eacute de maneira
diferente que a mudanccedila498 Logo a autora vem propugnar a interpretaccedilatildeo oposta
agravequela desenvolvida no comentaacuterio do monge dominicano Nela o tempo eacute
dependente da existecircncia das almas uma vez que se trata de algo contaacutevel que precisa
da racionalidade dos seres para fazecirc-lo499 A tese de Coope trata dos uacuteltimos cinco
capiacutetulos da Fiacutesica IV Dentre a ordem dos assuntos trecircs toacutepicos destacam-se no
investimento de suas reflexotildees a relaccedilatildeo do tempo com a mudanccedila a condiccedilatildeo do
tempo como uma espeacutecie de nuacutemero a unidade e diversidade dos tempos500
ldquoUm nuacutemero da mudanccedila com relaccedilatildeo ao antes e ao depoisrdquo (219b1-2) Essa
passagem da Fiacutesica inspira comentadores haacute milhares de anos Ela acena para a
relaccedilatildeo entre tempo e movimento mas seu corolaacuterio tambeacutem indica que a
temporalidade soacute pode ser reconhecida atraveacutes da percepccedilatildeo das mudanccedilas (219a22-
9)501 Convertido assim em uma espeacutecie de nuacutemero o desenho do tempo seria o de
um continuum Ao contraacuterio da mudanccedila ndash que pode ser lenta ou raacutepida ndash o tempo eacute
sempre o mesmo Eacute precisamente essa identidade entre o antes e o depois que garante
a sua analogia com uma linha502 imagem que como comentaremos a seguir seraacute
497 AQUINAS Idem Ibidem However it does not follow that if there is no one counting there is
nothing countable which is the objection raised by the Philosopher [non tamen sequitur quod si non
est numerans quod non sit numerabile ut obiectio philosophi procedebat] 498 COOPE Ursula Time for Aristotle Physics IV 10-14 Oxford Aristotle Studies Clarenton Press
Oxford 2008 p 160 ldquoOnce we fully understand Aristotlersquos view about the way in which time is
countable we should be able to see for ourselves not just that it is mind-dependent but also that it is
mind-dependent in a way in which change is notrdquo 499 PAPACHRISTOU 2006 p 65 lembra que Ursula Coope natildeo leva em consideraccedilatildeo ldquoos argumentos
a respeito dos animais que mesmo natildeo sabendo contar possuem uma consciecircncia do tempo que eacute
essencial nas suas habilidades de lembranccedila (De memoria et reminiscentia 450a 15-23)rdquo 500 Sigo tambeacutem a leitura de ROARK Tony Time for Aristotle Physics IV10-14 by Ursula Coope
In Mind Oxford Journals Clarendon Press Vol 118 470 April 2009 501 ibid I-II 502 COOPE op cit p 36
163
recorrente na histoacuteria da cronologia moderna reiterando a unidade da diversidade do
tempo
Em Aristoacuteteles como mostra Coope os ciclos naturais natildeo fazem exatamente
parte da ordem do tempo Sua causa de ordem eacute como jaacute citamos a natureza As
coisas e os seres buscam ndash no processo teleoloacutegico da realizaccedilatildeo da potecircncia em ato ndash
seu lugar natural O movimento emula a locomoccedilatildeo circular pela loacutegica das
revoluccedilotildees E uma revoluccedilatildeo cindida em duas ou mais partes natildeo deixaria de ser
uma revoluccedilatildeo Os ciclos naturais natildeo podiam assim depender da temporalidade
imaginada como uma linha reta a oposiccedilatildeo potencial entre anterior e posterior
percebida na alma do ser eacute o que permite a ele repartir e contar o tempo esse
enigmaacutetico ldquonuacutemero da mudanccedilardquo
Uma mudanccedila que como movimento eacute sempre relativa e contiacutenua mais lenta
ou mais raacutepida portanto desigual na sua diversidade Para medir-la dispotildee-se um
nuacutemero uma racionalizaccedilatildeo que o ser faz perante as vicissitudes ordenando-lhe em
espaccedilos percebidos no agora como tempo de igual passagem que entre o anterior e o
posterior formam uma unidade do diverso Algo como o ldquotempo absolutordquo de que nos
falou Pomian se as mudanccedilas satildeo localizadas o tempo torna-se universal e
simultaneamente o mesmo por todo o cosmos503 Mas a temporalidade como razatildeo
matemaacutetica da mudanccedila natildeo chega a se confundir com o movimento ou a proacutepria
mudanccedila Ela eacute tatildeo somente ldquoalgo da mudanccedilardquo ndash quelque chose du changement504
Teriacuteamos entatildeo uma ordem do tempo na fiacutesica de Aristoacuteteles Ora como
argumenta Coope existe uma ordem temporal pois eacute dentro dela que as mudanccedilas
acontecem relacionam-se entre si satildeo percebidas e contabilizadas pela alma dos seres
racionais505 Eacute calculando a ordem definitiva de ldquoagorasrdquo ou ldquoinstantesrdquo ao longo do
movimento que podemos estabelecer uma uniformidade no entendimento desse
503 Como comentou Pomian ldquoAs mudanccedilas satildeo muacuteltiplas o tempo eacute um A mudanccedila eacute variaacutevel o
tempo uniforme Tudo isso daacute ao tempo um estatuto estranhamente ambivalente ele mesmo invisiacutevel
natildeo fica confinado agraves esfeacuteras celestesrdquo () ldquoNatildeo haacute nem lugar nem vazio nem tempo fora dos ceacuteusrdquo
[De Caello I 9 279 a 12] POMIAN 1984 p 235 504 Cito a paraacutefrase na liacutengua de Voltaire uma vez que a proacutepria Ursula Coope ndash comentando a traduccedilatildeo
da passagem para liacutenguas modernas ndash admite que a francesa eacute a mais inteligiacutevel Ver COOPE op cit p
31 505 Encontramos esse raciociacutenio ndash que opotildee os ciclos naturais da mudanccedila a uma ordem do tempo ndash
tambeacutem no tratado sobre a Geraccedilatildeo e a Corrupccedilatildeo ldquoLa destruction et la geacuteneacuteration naturelles de plus
srsquoopegraverent en un temps eacutegal C lsquoest lagrave la raison pour laquelle la dureacutee de la vie de chaque ecirctre srsquoexprime
et se deacutetermine par un nombre car il y a un ordre reacutegulier en toutes choses et le temps que dure
chaque vie est mesureacuterdquo ARISTOTE 1966 p 68 Grifos meus
164
nuacutemero da mudanccedila506 ldquoEacute a nossa contagem que cria uma seacuterie ordenada de
instantesrdquo concluiu Coope e ldquosem esses instantes contados natildeo haveria uma simples
ordem de antes e depois na qual todas as mudanccedilas satildeo organizadasrdquo Em outras
palavras ldquosem eles natildeo teriacuteamos tempordquo507 Ordenaacute-lo tarefa de uma alma capaz de
contar eacute um procedimento que realizamos tendo por acircncora fiacutesica o cosmos
organizado pela imutabilidade da natureza508 Logo na obra de Aristoacuteteles natureza e
tempo satildeo sistemaacuteticamente distintos a primeira eacute ldquocausa de ordemrdquo enquanto que
das reflexotildees a respeito do segundo poderiacuteamos intuir um plano racional de
ordenamento das vicissitudes senatildeo mesmo das causas509
No centro dessa reflexatildeo aristoteacutelica como tambeacutem lembrou Pomian estava o
ldquoagorardquo ou o instante ldquoPorque o agora eacute precisamente o movimento no qual a alma
apreendendo o anterior-posterior dentro do movimento viraacute sincronizado com elerdquo
fazendo com que o tempo ateacute esse momento potecircncia virar ato e ldquoo fiacutesico-coacutesmico
psiacutequicordquo510 Entatildeo para que o tempo exista como ato seria necessaacuterio um intelecto
que perceba no movimento da alma o instante do anterior-posterior Eacute preciso no
miacutenimo a alma de um ser racional capaz de contar Parece residir aiacute o motivo que faz
Coope refutar a interpretaccedilatildeo tomista da natildeo dependecircncia do tempo em relaccedilatildeo agraves
almas
Eacute nesse instante em que Coope ndash seguindo a justa tarefa da filosofia ndash
interessou-se por reconhecer um erro que proponho que enxerguemos na bem mais
506 Segundo Pomian 1984 p 236 ldquoO movimento em Aristoacuteteles comporta trecircs princiacutepios os dois
contraacuterios ndash privaccedilatildeo e forma ndash e o sujeito cuja persistecircncia preserva a identidade da coisa atraveacutes das
mudanccedilas a qual foi submetida A privaccedilatildeo eacute o estado passado da coisa a forma eacute o seu futuro o
sujeito corresponde asim ao presente ou melhor ao agora ou ao instante dois termos que tomaremos
aqui por intercambiaacuteveisrdquo 507 COOPE op cit p 172 508 Como explicou Pomian 1984 p 239 ldquo() la reacutevolution ceacuteleste fournissant un eacutetalon naturel de
mesure du temps et donc de tous les mouvements ce qui explique pourquoi le temps est un au lieu
drsquoecirctre deacutemultiplieacute comme lrsquoest le mouvement et pourquoi il est universel partout le mecircme et
uniformerdquo 509 Trata-se de uma loacutegica distinta daquelas operadas pelas tradiccedilotildees que o estagirita teve de dialogar
diretamente 1) para os astrocircnomos de Miletos como na palavra de Anaximandro ldquoas coisas que satildeo
() se fazem justiccedila e reparam suas injusticcedilas conforme a ordem do tempordquo (Fragmento B1) apud
HARTOG 2013 p 17 2) para a academia platocircnica que seguia o Timeu de Platatildeo a origem do tempo
se dava com o movimento dos astros (ver Timeu 39d e 38c tambeacutem Definiccedilotildees 411b) Aristoacuteteles
conseguiu a seu modo sistematizar a dualidade presente nas teorias filosoacuteficas antigas entre imagens
de um ldquotempordquo ciacuteclico e imagens de um tempo linear Para um artigo escrito pelo tradutor de
Aristoacuteteles que trata desse problema geral entre os gregos ver MUGLER Charles Deux thegravemes de la
cosmlogia grecque Devenir cyclique et pluraliteacute des monde Paris 1953 E tambeacutem os comentaacuterios de
MOMIGLIANO Arnaldo Time in Ancient Historiography History And Theory Separate number 6
1966 p 1 e passim Assim como a siacutentese realizada por MEIER Christian Antiguidade In
KOSELLECK Reinhart (org) 2013 p 54 510 POMIAN 1984 p 327
165
modesta incumbecircncia compreensiva da historiografia os filtros de uma praacutetica de
leitura cristatilde Natildeo teriacuteamos aqui uma apropriaccedilatildeo que buscava unir o pensamento
peripateacutetico agrave tradiccedilatildeo patriacutestica comemorando Aristoacuteteles ao lado de Agostinho
unindo razatildeo e feacute submetendo enfim a ordem da natureza aristoteacutelica a uma ordem
cristatilde do tempo Imaginemos um monge dominicano ndash ao qual a auctoritas manda
chamar Aristoacuteteles por ldquoo Filoacutesofordquo ndash sonhando com um universo desprovido de
almas racionais ou de qualquer inteligecircncia capaz de contar Existiraacute o tempo
Deixemos que Tomas de Aquino responda e com os olhos fechados em meditaccedilatildeo
conclua diante da invisibilidade do tempo que ldquoa existecircncia de coisas contaacuteveis natildeo
depende de um intelecto a natildeo ser que se trate do intelecto que eacute a causa das coisas
como o divino intelectordquo511
Se uma alma racional capaz de contar se faz necessaacuteria para o cristatildeo sempre
existira uma na Aeternitas Nesse sentido a leitura de Aquino foi ndash aleacutem de um
possiacutevel erro no entedimento da loacutegica claacutessica de antes do Cristo ndash a resoluccedilatildeo de um
problema teoloacutegico presente em um ano do Senhor A praacutetica de leitura tomista natildeo
poderia deixar de lado todo o repertoacuterio dos pais da Igreja E se em Agostinho o
tempo jaacute dependia do ser quem era essa inteligecircncia fundadora da ordem senatildeo
como vimos a proacutepria providecircncia divina Deus natildeo depende da temporalidade nem
tampouco da natureza Como logos Ele manifesta-se aos homens narrativamente
Faz o tempo na mesma medida em que se determina a partir dele A providecircncia jaacute
no Genesis (11-31) marca o anterior e o posterior antes fez da escuridatildeo a luz do
firmamento o ceacuteu ainda edificando as estrelas a terra e todo mundo natural depois
criou o homem para ouvir contar e soacute entatildeo arrebanhar os auditoacuterios dizendo missa
com a commemoratio dos signos da palavra divina Nessas Escrituras Deus eacute o gecircnio
ordenador fundador e administrador da natureza outrora profana e do tempo agora
sacramentado por suas constantes eucaristias comemorativas
Eacute verdade que desde outro contemporacircneo de Constantino Euseacutebio bispo de
Cesareia jaacute tiacutenhamos um conceito que tentava expressar essa experiecircncia cristatilde do
tempo A sua Histoacuteria Eclesiaacutestica vai da boa nova ateacute o tempo presente narrando o
ritmo da chegada de Cristo em direccedilatildeo agravequilo que Oroacutesio disciacutepulo de Santo
511 AQUINAS Ibidem However the existence of counted things does not depend on an intellect
unless it be an intellect which is the cause of things as is the divine intellect It does not depend on the
intellect of the same [Esse autem rerum numeratarum non dependet ab intellectu nisi sit aliquis
intellectus qui sit causa rerum sicut est intellectus divinus non autem dependet ab intellectu animae]
166
Agostinho mais tarde chamaraacute de pax christiana512 Ao emular Flavius Josephus
Euseacutebio de Cesareacuteia acordou sua Histoacuteria Eclesiaacutestica com uma vida de
Constantino513 Eacute com Euseacutebio que temos tambeacutem aquela que vai ser uma das mais
ceacutelebres cronologias glosada e imitada ao longo da idade meacutedia e da primeira
modernidade O Chronicon dispunha em colunas paralelas taacutebuas cronoloacutegicas de
reis e povos iniciando pelos primeiros reis da Assiacuteria e pela histoacuteria do patriarca
Abraatildeo
Em meio a essa sequecircncia de linhas paralelas temos sua cisatildeo potencial em
grupos de 50 anos loacutegica que parece seguir o Livro dos Jubileus o ldquopequeno genesisrdquo
do povo judeu que baseava todo ordenamento do tempo comemorativo nos muacuteltiplos
do nuacutemero sete sublinhados no Leviacutetico514 Como que guiadas por um ldquoplano secreto
de Deusrdquo todas as colunas paralelas todos os povos que elas representam parecem
sofrer paacutegina a paacutegina uma intervenccedilatildeo milagrosa e natildeo euclidiana convergindo
uma a uma em direccedilatildeo primeiro agrave macedocircnia depois agrave civilizaccedilatildeo romana que enfim
unida a Israel apoacutes as guerras judaicas vem se tornar cristatilde e univeral Essa era a
ldquogigantesca liccedilatildeordquo que Euseacutebio vinha ensinar ao mundo515 Como escreveram
Rosenberg e Grafton a respeito do Chronicon de Euseacutebio ldquoao comparar histoacuterias
individuaisrdquo entre si ldquocom o progresso uniforme dos anos o leitor poderia ver a matildeo
da providecircncia trabalhandordquo 516
As matildeos da providecircncia agora encarnadas no ministeacuterio petrino resolveram
comemorar ao final do seacuteculo XIII o primeiro jubileu cristatildeo fartamente registrado
512 Sobre a identificaccedilatildeo entre pax romana e pax christiana em Oroacutesio ver ENGELS Odilo
Compreensatildeo do conceito na Idade Meacutedia In KOSELLECK Reinhart (org) 2013 p 73 513 GRAFTON Anthony What was history Cambridge University Press New York Kindle Edition
(sem paginaccedilatildeo) 2007 Proacuteximo a nota 72 514 Uma interpretaccedilatildeo corrente do Livro dos Jubileus assevera que ao multiplicar sete anos por sete o
ano seguinte ndash contando a unidade de 50 ndash deveria ser o Sabbath dos Sabbaths Ver VANDERKAM
James The Book of Jubilees Guides to Apocrypha and Pseudepigrapha Sheffield Sheffield Academic
Press 2001 Ver tambeacutem CAMPION Nicholas The Great Year Astrology Millenarism and History
in the Western Tradition London Pinguin Books 1994 p 115 Obra que sigo apenas parcialmente E
ainda VANDERKAM James Textual and Historical Studies in the Book of Jubilees Harvard Semitic
monographs no 14 Scholars Press Missoula 1977 Sobre o debate renascentista a respeito dos grupos
de 50 anos no Chronicon de Euseacutebio ver GRAFTON Anthony Defenders of the Text The traditions
of scholarship in an age of science 1450-1800 Cambridge and London Harvard University Press
1991 p 143 Voltarei brevemente a essa discussatildeo no uacuteltimo capiacutetulo 515ldquo() Enquanto todas as outras listas de governantes sumiam e apenas a romana permanecia
enquanto as muacuteltiplas colunas que estabeleciam a histoacuteria antiga da Greacutecia e do Oriente Proacuteximo
afunilavam-se em uma uacutenica longa e cheia coluna dedicada apenas a Roma a Crocircnica provava atraveacutes
de imagens que a histoacuteria mundial culminava no Impeacuterio Romanordquo GRAFTON Anthony
WILLIAMS Megan Christianity and the Transformation of the Book Origen Eusebius and the
Library of Caesarea Cambridge Harvard University Press 2006 p 141 516 ROSENBERG Daniel GRAFTON Anthony Cartographies of time A history of the timeline
Princenton Architectural Press New York 2010 p 15
167
Em 1300 o papa Bonifaacutecio VIII emite a bula Antiquorum fida relatio exortando os
cristatildeos a peregrinar para Roma Atenta as palavras de Giacomo Gaetani Stefaneschi
cardeal conselheiro papal e autor do De Anno Jubileo a bula reivindicava tradiccedilotildees
ancestrais as quais prometiam perdotildees aos pecados para os visitantes da Basiacutelica do
Priacutencipe dos Apoacutestolos Bonifaacutecio VIII planejava observar esses jubileus a cada cem
anos formando dessa forma jaacute a unidade de um seacuteculo mas questotildees decorrentes do
cisma do ocidente levaram o antipapa Clemente VI residente em Avignon a
antecipar um jubileu para 1350 mantendo a suposta sequumlecircncia leviacutetica517
Unidades de cinquenta ou mesmo de cem anos cisotildees potenciais pelo caacutelculo
das almas nada disso alteraria o estatuto ontoloacutegico do passado conferido pelo
fundador e administrador da ordem cristatilde do tempo Em uma de suas Quaestiones
Quodlibetales (V 2 3) Tomaacutes de Aquino pergunta se uma moccedila perdendo a
virgindade pode ser restituida a seu estado de graccedila (utrum Deus possit virgine
reparare) A resposta de Tomaacutes como afirmou um notoacuterio escritor foi corajosa
ldquoDeus pode perdoar e portanto restaurar a virgem () atraveacutes de um milagrerdquo poreacutem
ldquonem mesmo Deus pode fazer com que aquilo que foi natildeo tenha sidordquo518 Lembrar o
passado ou purgaacute-lo de seus erros natildeo faz os pecados terem deixado de existir o
tempo cristatildeo eacute linear e irreversiacutevel Seria ele completamente alheio aos ciclos
naturais ou celebrativos que no ocidente ao menos desde a Carmen Saeculare de
Horaacutecio jaacute eram vistos como annos orbis ciclos que em um mundo pagatildeo trariam
de volta os cantos e os jogos519
Ora jaacute em Euseacutebio os reinos e os povos parecem ascender e decair seguindo
um fluxo natural Mesmo que paacutegina a paacutegina todos eles convergissem rumo agrave
cristandade universal a cronologia posterior continuava a indicar certa tensatildeo entre
histoacuteria eclesiaacutestica e histoacuteria profana Sim o tempo sagrado da Igreja esse dardo
lanccedilado dos ceacuteus parecia irreversiacutevel Como afirmou Pomian eacute nele que a ldquoIgreja ndash
517 Sobre a bula e as intenccedilotildees do papa Bonifaacutecio VIII ver o claacutessico THURSTON Herbert SJ The
Holy Year of Jubilee An account of the history and ceremonial of the Roman jubilee London Sands amp
Co 1900 principalmente pp 6 13-14 Tambeacutem o comentaacuterio de Jacques Le Goff para quem ldquo() o
seacuteculo (talvez preparado na Idade Meacutedia pelo Jubileu de 1300 celebrado pela primeira vez pelo papa
Bonifaacutecio VIII e que em princiacutepio deveria celebrar-se todos os cinquenta anos) favoreceu todo um
renovar-se de comemoraccedilotildees os centenaacuterios que podem ser muacuteltiplosrdquo LE GOFF Jacques
ldquoCalendaacuteriordquo in Enciclopeacutedia Einaudi Memoacuteria - Histoacuteria (trad) Lisboa Imprensa NacionalCasa da
Moeda 1984 vol1 p 286 518 ECO Umberto Os limites da representaccedilatildeo Perspectiva Satildeo Paulo 1990 p 22 519 HORATIUS Flaccus Q Carmen Saeculare In Horace Odes and Epodes Paul Shorey Boston
Benj H Sanborn amp Co 1898 1 20 p 117 ldquocertus undenos deciens per annos orbis ut cantus
referatque ludos ter die claro totiensque grata nocte frequentisrdquo
168
como o foi Roma ndash eacute eternardquo Por outro lado ainda parecendo resistir agrave loacutegica do
devir celestial temos ldquoo tempo profano dos Estadosrdquo contado em ciclos nos quais os
corpos poliacuteticos ldquose levantam prosperam decaem e desaparecemrdquo 520
Durante o periacuteodo medieval e em especial a partir da retomada dos textos
aristoteacutelicos por volta do seacuteculo XII os saacutebios do ocidente investem no
desenvolvimento de reflexotildees que permitam coadunar o tempo ciacuteclico com o tempo
linear a ordem da natureza profana com a ordem do tempo cristatilde Siger de Brabante e
Boeacutecio da Daacutecia ambos leitores de Aristoacuteteles e Averroacuteis vatildeo defender que o mundo
foi criado fora do tempo e eacute eterno com Deus Verdadeira clivagem ontoloacutegica ela
separa natildeo exatamente o criador das criaturas mas os seres invariaacuteveis perfeitos pela
graccedila daqueles que satildeo submissos aos ciclos sublunares da corrupccedilatildeo e da geraccedilatildeo521
Eacute novamente Tomaacutes de Aquino quem vem responder a essa controveacutersia que
se instaura no seio do ensino universitaacuterio Na Suma Teoloacutegica ele parte como natildeo
poderia deixar de fazecirc-lo da concepccedilatildeo aristoteacutelica de que o tempo nada mais eacute do
que o nuacutemero do movimento de acordo com o antes e o depois (Nihil est aliud quam
numerus motus secundum prius et posterius 1a 10 1) Logo a seguir propotildee aquilo
que vai ser uma medida conciliatoacuteria aceita ao menos ateacute que o antiquariado
humanista demonstre o seu desgaste a distinccedilatildeo entre Tempus Aevum e Aeternitas
O Tempus possui antes e depois Ao aevum natildeo pertencem em si um anterior
e um posterior embora como cisatildeo potencial esses elementos possam ser nele
relacionados A Aeternitas por sua vez natildeo reivindica nem antes nem depois
desprovida de comeccedilo ou de fim constituindo uma temporalidade completamente
avessa a esse raciociacutenio (Tempus habet prius et posterius aevum autem non habet in
se prius et posterius sed ei conjugi possunt aeternitas non habet prius posterius
neque ea compatitur Ia 10 5)522 A grande novidade atendia pela nomenclatura
intermediaacuteria do Aevum Ao longo do seacuteculo XII os processos lineares comeccedilam a ser
acompanhados por essa palavra Palavra que designa um comeccedilo e um final ainda
difere de Tempus uma vez que nela natildeo eacute a substacircncia dos seres que se modifica
sendo as vicissitudes que sofremos apenas mudanccedilas ocasionais
Ao trabalhar a dicotomia entre Aeternitas e Tempus certos aristoteacutelicos da
idade meacutedia central ndash como Siger e Boeacutecio ndash ofereciam soluccedilotildees que ameaccedilavam
520 POMIAN 1984 pp 40-41 521 Ibid p 43 522 AQUINAS Thomas Summa Theologiae Vol 2 (ia 2-11) Existence and Nature of God
McDermott Timothy (ed) Cambridge University Press Oct 26 2006 Ia 10 6 pp 136-148
169
escapar agrave tradiccedilatildeo cristatilde A eternidade agora natildeo pertencia mais unicamente a Deus
mas a todo universo imutaacutevel o que incluiria os corpos celestes e seus movimentos
ciacuteclicos ao passo em que Tempus parece ter sido reduzido ao tempo sublunar dos
seres corporais os quais seguiriam a sua maneira os velhos ciclos de geraccedilatildeo e de
corrupccedilatildeo O Deus aristoteacutelico imaginado como motor imoacutevel que anima atraveacutes do
movimento circular e perfeito dos astros todos os seres da primeira esfera desafiava
a cosmologia cristatilde e sua histoacuteria linear e irreversiacutevel Natildeo restava a Igreja outra
alternativa senatildeo condenar essas perspectivas por duas vezes entre 1270 e 1277523
Grande parte das 219 opiniotildees rejeitadas em 1277 eram astroloacutegicas em algum
sentido da palavra524 Em Satildeo Boaventura temos uma resposta a esse problema
apresentada junto agrave tentativa de demonstrar que a noccedilatildeo mesma de um mundo criado
fora do tempo carrega uma contradiccedilatildeo interna ldquoA linha divisoacuteria passava portanto
entre o criador e o conjunto das criaturasrdquo entre os seres corporais e espirituais
ldquoentre aeternitas e tempusrdquo525 Tomaacutes de Aquino em geral cauteloso preferiu iniciar
na Suma Teoloacutegica por uma suspensatildeo do juiacutezo natildeo poderiacuteamos responder
racionalmente nem demonstrar a tese da eternidade do mundo nem defender seu
contraacuterio embora tenhamos que aceitar a finitude por um ato de feacute Apenas Deus eacute
eterno enquanto que suas criaturas corporais submissas agrave geraccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo tem
a existecircncia acolhida no Tempus Por sua vez as criaccedilotildees espirituais ndash como a santa
Igreja os anjos os astros e as almas ndash natildeo existiriam no tempo mas no Aevum526 Ao
aceitar o caraacuteter linear e irreversiacutevel da temporalidade como um elemento natildeo
submetido agrave atividade humana mas agrave providecircncia divina ndash sendo os homens
incapazes de produzirem quaisquer modificaccedilotildees substanciais no mundo (omnis
forma artis est accidens et accidentalis) ndash o tomismo autorizou-se a salvar algumas
repercussotildees cosmoloacutegicas da fiacutesica peripateacutetica adaptando-as ao repertoacuterio cristatildeo
elaborado desde os Pais da Igreja
Era uma eacutepoca de popularidade para os saberes astrais Os espiacuteritos cristatildeos da
Idade Meacutedia animavam-se com a ideia de influencia Algumas centenas de anos antes
de Tomaacutes de Aquino por volta do seacuteculo X o Papa Silvestre II chegou a requisitar
523 POMIAN 1984 p 43 524 THORNDIKE Lynn The true place of astrology in the History of Science Isis Vol 46 No 3
Setembro de 1955 pp 273-278 University of Chicago Press p 273 nota 2 525 POMIAN 1984 p 43 526 AQUINAS Summa Theologiae Questatildeo 10 pp 135-151
170
uma coacutepia do poema didaacutetico de Marcus Manilius astroacutelogo de Otaacutevio527 Em 1150 a
tradiccedilatildeo de relacionar as efemeacuterides tambeacutem agraves gestas estelares eacute registrada no
almanaque atribuiacutedo a Solomon Jarchus conhecido de Petrus da Daacutecia e Roger Bacon
nos anos 1300 autores que tambeacutem criaram suas proacuteprias versotildees desse tipo de
trabalho Conhecimento tradicional saber passado de mestre a aluno as teses a
respeito dos astros e suas implicaccedilotildees no mundo sublunar eram mateacuteria para
discussotildees eruditas cujas aplicaccedilotildees dependiam de tabelas descritivas do movimento
dos astros No seacuteculo XIII Alfonso X de Castela o rei saacutebio reuniu um grupo de
tradutores e estudiosos dos ceacuteus com o objetivo de renovar as Taacutebuas de Toledo
compiladas por volta do final do seacuteculo XI Suas sucessoras diretas as Taacutebuas
Alfonsinas como ficaram conhecidas combinavam os dados de Claacuteudio Ptolomeu a
respeito da precessatildeo dos equinoacutecios (revisados por Al-Battani e Al-Souphi) com a
doutrina da oitava esfera e da trepidatio fixarum instruiacuteda por Azarquel Seriam
traduzidas para o latim por volta da deacutecada de 20 do seacuteculo seguinte por Jean de
Lignegraveres e Jean de Murs e difundidas um seacuteculo depois tambeacutem no Canoni de Joatildeo
da Saxocircnia528 Essas tabelas eram utilizadas pelos astroacutelogos para o caacutelculo das
efemeacuterides necessaacuterias agrave feitura dos horoacutescopos
No terceiro livro da Summa Contra Gentiles Tomaacutes de Aquino envolve-se
diretamente no debate a respeito da influencia celeste Estamos entre os capiacutetulos 82 e
87 e neles podemos seguir seus argumentos sobre a relaccedilatildeo entre a ordem natural
(ordine naturae) e a ordem providencial (ordo providentiae) Aquino recupera eacute
claro Aristoacuteteles mas tambeacutem revisa os estoicos lembra os pais da Igreja para por
fim criticar Avicena e Albumasar Nos capiacutetulos anteriores da Summa aprendemos
sobre a diferenccedila entre substacircncias intelectuais (substantiis intelectualibus) inferiores
e superiores de modo que agora assistimos adentrarem o debate as proacuteprias
substacircncias corpoacutereas ldquoSubstacircncias intelectuaisrdquo ndash e de tal maneira comeccedila o capiacutetulo
82 ndash ldquosatildeo governadas pelas superiores uma vez que a disposicatildeo da divina
providecircncia descende proporcionalmente a mais baixardquo 529
527 GONCcedilALVES 2007 p 5 528 Ver POUELLE E Les Tables alfonsines avec les Canons de Jean de Saxe Paris 1984
principalmente p 6 e pp 17-19 Ver tambeacutem HUumlBNER Wolfgang The Culture of Astrology from
Ancient to Renaissance In DOOLEY Brandan (org) A companion to astrology in the Renaissance
Introduction Brill 2014 principalmente pp 126-127 529 AQUINAS Summa Contra Gentiles Livro 3 Providecircncia Vernon J Bouker (trad) New York
Hanover House 1955-57 Caput 82 Quod inferiora corpora reguntur a Deo per corpora caelestia Na
traduccedilatildeo inglesa ldquoBut intellectual substances are ruled by the higher ones since teh disposition of
divine providence descendes proportionally to the lowestrdquo () No latim ldquoSubstantiae autem
171
Atentar aos ceacuteus e conhecer as privaccedilotildees do inferno eram tarefas que pareciam
uacuteteis a muitos como forma de unir a lembranccedila ao desenvolvimento de estrateacutegias
morais diante das fatalidades da ordem natural organizando a experiecircncia passada
com as expectativas nutridas no presente Os antigos que de tudo um pouco sabiam
conheciam o espaccedilo mas tambeacutem dominavam algumas artes do tempo Em 1460
Thomas Swatwell copiou uma Ars oratoria que duas deacutecadas mais tarde seria
impressa em Veneza O monge teve cuidado especial ao transcrever o appendix da
obra o qual continha uma Ars memorativa Nela Jacobus Publicius seu autor
tomava emprestada a concepccedilatildeo dualista do Ad Herennium ciceroniano segundo a
qual existiriam duas formas de memoacuteria ldquouma natural e outra produto da arterdquo530
Essa Arte da Memoacuteria bem estudada por Frances Yates implicava em treinamento e
disciplina baseando associaccedilatildeo de lembranccedilas agrave composiccedilatildeo mental de imagens de
fundo A demanda por lugares de memoacuteria ou ficta loca era suprida por Publicius a
partir de um repertoacuterio imageacutetico que iniciava pelas esferas do universo visualizar os
elementos os planetas as estrelas fixas o ceacuteu e o inferno ndash alegoriais morais dos
viacutecios e das virtudes ndash era a melhor maneira de aliar memoacuteria e prudecircncia Publicius
acreditava que tanto intenccedilotildees simples quanto meditaccedilotildees espirituais escapavam com
facilidade agrave lembranccedila a menos que ingressas compartilhadas e associadas a uma
similitude corporal ndash e nisso natildeo parecia em nada longe de Tomaacutes de Aquino531
De fato os corpos celestes apareciam na Summa Contra Gentiles como
ldquosimilares agraves substacircncias intelectuaisrdquo nos criteacuterios de incorruptibilidade Seus
movimentos aperfeiccediloados pela natureza sem a necessidade de contraacuterios tornam-os
dotados de ldquomais poder universal do que os corpos inferioresrdquo De movimentos
imutaacuteveis regulares e uniformes as estrelas eram dispostas como a causa de todo e
qualquer movimento posterior como se dos ceacuteus fosse ldquopatente que os corpos
inferiores satildeo regidos por Deus atraveacutes dos corpos celestesrdquo 532 No capiacutetulo 83
intellectuales reguntur a superioribus ut dispositio divinae providentiae proportionaliter descendat
usque ad infimardquo 530 CICERO Rhetorica ad Herennium Harry Clapman (transl) London-Cambridge Harvard
University Press 1954 p 205 531 Jacobus Publicius natildeo era eacute claro um caso uacutenico Fazia parte de uma tradiccedilatildeo que alcanccedila pelo
menos Alberto Magno Pedro de Ravenna (Phoenix sive artificiosa memoria 1491) e um pouco mais
tarde o dominicano Johannes Romberch (Congestorium artificiose memorie 1520) que expande e
desenvolve o uso do universo como sistema de memoacuteria Sobre a ars memorativa e os autores citados
sigo YATES Frances The Art of memory London Pimlico 1992 principalmente pp 117-128 532 Ibid C 82 8 Na traduccedilatildeo inglesa ldquoThus it is evident that lower bodies are ruled by God through
the celestial bodiesrdquo No Latim ldquosic ergo patet quod corpora a inferiora a Deo per corpora caelestia
regunturrdquo
172
Tomaacutes recorda-se das palavras de Gregoacuterio ldquoaquele que criou o mundo por Si
Mesmo governa por Si Mesmordquo (Moralia XXIV 20) e Boeacutecio ldquoDeus dispotildee todas as
coisas de si mesmo sozinhordquo (De consolatione Philosophiae III) Tambeacutem comemora
Agostinho com a leitura do terceiro livro do tratado sobre A Trindade quando o bispo
de Hippona reconheceu que as coisas do mundo sublunar satildeo regidas ldquoem uma certa
ordemrdquo pelos corpos superiores533
No capiacutetulo 84 no entanto os argumentos do dominicano mudam de ecircnfase
Mesmo que a ordem da providecircncia deva reger os corpos inferiores pelos superiores
o entendimento (intellectus) ndash que natildeo eacute um poder corporal mas uma substacircncia
proacutexima do divino ndash excede todos os corpos na ordem da natureza534 Sendo os efeitos
dos movimentos celestes sujeitos ao tempo (nuacutemero de sua mudanccedila) eventos que
abstraiam da temporalidade natildeo podem estar submissos a eles Desde as Confissotildees de
Agostinho ndash e agora observamos seu eco embora natildeo citado nominalmente por
Aquino ndash ldquoo intelecto em sua operaccedilatildeo abstrai sim do tempo assim como o faz do
lugarrdquo535 A distinccedilatildeo agostiniana natildeo era dessa forma compatiacutevel com o fatalismo
dos estoicos e dos filoacutesofos mouros ndash ou de tal modo lembrados por Aquino ndash para
quem ldquonoccedilotildees intelectuaisrdquo eram ldquoimpressas em noacutes pelos corpos celestesrdquo536
Mas se o movimento dos astros natildeo poderia influir em nosso entendimento
(intelligentiae) ele conseguiria ainda assim atuar nele de maneira indireta Se a
inteligecircncia humana natildeo eacute uma forma de poder corporal eacute tambeacutem verdade que ela
natildeo pode se fazer sem operar funccedilotildees corporais as quais seriam ldquoa imaginaccedilatildeo
(imaginatio)rdquo e os ldquopoderes da memoacuteria e da cogniccedilatildeordquo (vis memorativa et
533 AUGUSTIN De la Triniteacute Livre Troisiegraveme Comment Dieu a-t-il apparu C IV Empire Souverain
de Dieu sur toute creacuteature In Ouvres Complegravetes de Saint Augustin M Raulx (trad) T 2 Bar-le-Duc
1868 p 392 Na traduccedilatildeo francesa ldquoMais de mecircme que dans lrsquoordre physique les corps lourds et
infeacuterieurs reccediloivent lrsquoinfluence des corps plus leacutegers et supeacuterieurs ainsi dans lrsquoordre moral tous les
corps obeacuteissent agrave lrsquoaction de lrsquoesprit de vierdquo No texto latino ldquoSed quemadmodum corpora crassiora et
inferiora per subtiliora et potentiora quodam ordine reguntur ita omnia corpora spiritum uitae et
spiritus uitae irrationalis per spiritum uitae rationalemrdquo Curiosa traduccedilatildeo oitocentista que verte
ldquospiritum uitaerdquo para ldquolrsquoordre moralrdquo 534 AQUINAS Summa Contra Gentiles Livro 3 Cap 84-8 ldquoBut our sould is united to the intellectual
substances which are superior to the celestial bodies in the order of nature by virtue of the part which
is the understanding In fact our soul cannot understand unless it receives intellectual light from those
substancesrdquo No latim ldquoAnima autem nostra secundum quod intelligit unitur substantiis
intellectualibus quae sunt superiores ordine naturae corporibus caelestibus non enim potest anima
nostra intelligere nisi secundum quod lumen intellectuale inde sortiturrdquo 535Ibid Cap 84 6 Em Inglecircs ldquoBut the intellect in its operation does abstract from time as it does from
placerdquo No Latim ldquoIntellectus autem in sua operatione abstrahit a tempore sicut et a locordquo 536 Ibid 84-10 ldquoAccording to their view it followed that intellectual notions are impressed on us
chiefly by an impression from the celestial bodiesrdquo No latim ldquo() impressione corporum caelestium
intellectuales notiones nobis imprimenturrdquo
173
cogitativa)537 Eacute manobrando nos entornos do problema do livre-arbiacutetrio que Aquino
ndash seguindo observaccedilotildees favoraacuteveis de Agostinho (Cidade de Deus) e Joatildeo Damasceno
(De fide orthodoxa) ndash pocircde credenciar-se a citar o aforisma 38 do Centiloquium uma
falsificaccedilatildeo atribuiacuteda durante a Idade Meacutedia a Ptolomeu ldquoquando no momento do
nascimento de um homem Mercuacuterio estaacute em conjunccedilatildeo com Saturno ()rdquo a geraccedilatildeo
resultaraacute em um ser de inteligecircncia notaacutevel538
A circulaccedilatildeo das esferas portanto atuaria indiretamente no entendimento
humano a partir da capacidade de influenciar corpos inferiores Assim ldquocomo os
meacutedicos podem julgar a sauacutede de um intelecto a partir das condiccedilotildees do corpo ()
tambeacutem um astroacutelogo poderia julgaacute-lo pelos movimentos celestesrdquo sempre como uma
causa remota dessas disposiccedilotildees539 Causa remota ela natildeo conseguiria da forma que
imaginaram Avicenna e Albumasar ser efetiva e ditar os rumos de nossas escolhas
540 Se eles natildeo podem realizar uma impressatildeo direta nos intelectos tambeacutem seratildeo
ineficientes em fazecirc-lo sob a vontade Como na sempre ldquocausa de ordemrdquo aristoteacutelica
a natureza tomista ldquoeacute determinada a um uacutenico resultadordquo mas as ldquoescolhas humanasrdquo
por seu turno ldquotendem a terminar em vaacuterios caminhos tanto na moral quanto na
arterdquo541 Ora seguindo a Eacutetica do Filoacutesofo o par de contraacuterios lembrados como viacutecios
e virtudes natildeo encontram seu iacutendice geral na natureza mas nos costumes A retidatildeo e
o pecado ndash para um cristatildeo os princiacutepios de qualquer ato de escolha ndash natildeo podem ser
537 Ibid 84-14 538 Ibid 84-14 In this way then it is possible that there is some truth in what Ptolomy says in his
Centiloquium ldquoWhen at the time of a manrsquos birth Mercury is in conjunction with Saturn and is itself
in a strong condition is gives inwardly to things the goodness of understandingrdquo () ldquoEt per hunc
modum potest verificari quod Ptolomaeus in Centilogio dicit cum fuerit Mercurius in nativitate
alicuius in aliqua domorum Saturni et ipse fortis in esse suo dat bonitatem intelligentiae medullitus in
rebusrdquo Quanto a falsidade do Centiloacutequio ver DOOLEY 2014 p 4 obra coletiva e que uso como
referecircncia para os recentes estudos sobre a astrologia da primeira modernidade 539 Ibid 84-14 ldquoThus just as physicians may judge the goodness of an intellect from the condition of
its body as from a proximate disposition so also may an astronomer judge from the celestial motions
as the remote cause of such dispositionrdquo ldquoEt sic sicut medici possunt iudicare de bonitate intellectus
ex corporis complexione sicut ex dispositione proxima ita astrologus ex motibus caelestibus sicut ex
causa remota talis dispositionisrdquo 540 Ibid C 87 Quod motus caelestis corporis non sit causa electionum nostrarum ex virtue animae
moventis ut quidam dicunt 1 ldquoHowever we should not that Avicenna maintains that the motions of
the celestial bodies are also the causes of our acts of choice not simply as occasions as was said
above but directly () On this point also he seems to return to the theory of Albumasar in his
Introduction I ldquoEst tamen attendendum quod Avicenna vult quod motus caelestium corporum sint
etiam nostrarum electionum causae non quidem per occasionem tantum sicut supra dictum est sed per
se () Ad quod etiam redire videtur positio Albumasar in primo sui introductoriirdquo 541 Ibid 85-5 () for nature is determined to one result But human choices tend to their end in various
ways both in moral actions and in artistic productions Therefore human choices are not accomplished
by naturerdquo ldquoElectiones autem humanae diversis viis tendunt in finem tam in moralibus quam in
artificialibus Non igitur electiones humanae sunt naturaliterrdquo
174
agraciados ou redimidos explicados ou justificados unicamente atraveacutes dos ceacuteus 542
Novamente lemos o Centiloquium atribuiacutedo a Ptolomeu nos escritos de Aquino ldquoa
alma saacutebia favorece o trabalho das estrelasrdquo ao passo que o ldquoastroacutelogo natildeo pode fazer
julgamento baseado nas estrelas a natildeo ser que ele conheccedila bem o poder da alma e seu
temperamento naturalrdquo543
O topos da influecircncia celeste com as ressalvas feitas agraves tradiccedilotildees estoicas e
mesmo aos interlocutores mouros que eram apresentados a Aquino consegue
sobreviver atraveacutes das palavras de uma farsa amarrada na esteira do prestiacutegio
renovado da fiacutesica peripateacutetica e da reforma dos proacuteprios modelos geocecircntricos
alexandrinos544 A resposta de Tomaacutes de Aquino ao problema da influecircncia celeste
natildeo deixou de ser acompanhada por outros membros da ordem dominicana Em
Alberto Magno os seres vivos satildeo ainda mais sujeitos agraves impressotildees vindas das
estrelas do que os objetos inanimados Lynn Thorndike chegou mesmo a escrever que
ldquoessa lei geral de que o mundo da naturezardquo eacute governado pelos ldquomovimentos das
estrelas eacute expressamente repetidardquo nos estudos de Alberto Magno ldquoe sua verdade
assumida com ainda mais frequecircnciardquo545
Em breve os conhecimentos ocultos e astronocircmicos deixariam de ser
privileacutegio ou monopoacutelio dos debates universitaacuterios e teoloacutegicos Alguns seacuteculos mais
tarde na Mainz de 1472 Gutenberg publicaria o primeiro exemplar impresso de uma
542 Ibid 85-8 ldquo() virtues and vices are the proper principles for acts of choice for virtues and vices
differ in the fact that they choose contraries Now the political virtues and vices are not present in us
from nature but come from custom as the Philosopher proves in Ethics IIrdquo ldquoVirtutes et vitia sunt
electionum principia propria nam virtuosus et vitiosus differunt ex hoc quod contraria eligunt Virtutes
autem politicae et vitia non sunt nobis a natura sed ex assuetudine ut probat philosophus in II Ethicrdquo 543 Ibid 85-22 ldquothe wise soul assists the work of the starsrdquo and that ldquothe astronomer could not give a
judgement based on the stars unless he knew well the power of the sould and the natural
temperamentrdquo No latim ldquoquod anima sapiens adiuvat opus stellarum et quod non poterit astrologus
dare iudicia secundum stellas nisi vim animae et complexionem naturalem bene cognoveritrdquo 544 O cosmos aristoteacutelico e ptolomaico tinha como limite a esfera das estrelas fixas ndash contando a partir
da terra a oitava e uacuteltima em ordem Ao longo da Idade Meacutedia quando os astrocircnomos perceberam que
a oitava esfera movia-se mais lentamente em relaccedilatildeo aos movimento de precessatildeo definiu-se a
existecircncia de uma nona esfera desprovida de estrelas Essa nona esfera imaterial tornou-se na filosofia
escolaacutestica o primum mobile manancial de todo o movimento do universo e usualmente relacionado
ao motor aristoteacutelico imoacutevel e eterno como descrito na Fiacutesica VIII 6 Ver BEZZA Giuseppe
Representation of the Skyes and the Astrological Chart In DOOLEY 2014 pp 73-74 Edward Grant
ressalta no entanto que tais modificaccedilotildees estavam longe de ser consensuais As posiccedilotildees dos
astroacutelogos variavam entre a defesa de oito a onze orbes A avaliaccedilatildeo dependia da contagem (ou natildeo)
dos trecircs tipos diferentes de movimento que se atribuiacuteam agraves estrelas fixas o movimento diaacuterio o
movimento de precessatildeo dos equinoacutecios e o movimento progressivo e regressivo das estrelas Ver
GRANT Edward Planets Stars and Orbs The Medieval Cosmos 1200-1687 Cambridge Cambridge
University Press 1994 545 THORNDIKE Lynn A history of magic and the experimental Science Vol II New York
Columbia University Press 1923 p 583 Sobre a relaccedilatildeo entre magia e experimentalismo em Alberto
Magno ver paacuteginas 720-750
175
efemeacuteride astroloacutegica O livreto inscrevia-se em um gecircnero de faacutecil acesso raacutepida
leitura e barato consumo que ndash como um dos primeiros best-sellers da histoacuteria ndash vai
divulgar ao longo da modernidade toda uma gama de conhecimentos celestes unidos
a ldquoinformaccedilotildees uacuteteisrdquo e mesmo pequenas notas locais Em geral publicadas ano a ano
essas primeiras efemeacuterides modernas (que no mundo anglo-saxatildeo desde o iniacutecio do
seacuteculo XVII vatildeo ser chamadas de almanaques) eram capazes de ndash ao descrever o
movimento diaacuterio dos astros ndash oferecer as tabelas necessaacuterias agrave leitura prognoacutestica dos
ceacuteus ao passo em que raramente deixavam de promover suas proacuteprias previsotildees
anuais546
34 Experiecircncias humanistas brechas na ordem natural
Aportemos no seacuteculo XVI Estamos na eacutepoca das Guerras Italianas e do
conciliaacutebulo gaacutelico de Pisa da eleiccedilatildeo de Carlos V e do pontificado de Adriano VI
das Teses de Lutero e da dieta de Worms momento em que a antes poderosa Milatildeo
dos Sforza dobra seus joelhos diante das disputas francas e imperiais Mas durante o
Renascimento como notou Grafton as cortes e os saacutebios da Europa natildeo se
preocupavam apenas com os problemas sublunares da cristandade No iniacutecio da
deacutecada de 20 do seacuteculo XVI muito se especulava a respeito de pressaacutegios e de sinais
nos ceacuteus Em fevereiro de 1524 seis planetas dentre eles os dois mais lentos (Jupiter
e Saturno) entrariam em Peixes A deacutecima segunda casa conclui o zodiaco e junto a
Escorpiatildeo e Cacircncer tambeacutem a triacuteplice dos signos aquaacuteticos todos representados por
formas estranhas ao corpo humano ndash um iacutectio um aracniacutedeo e um crustaacuteceo ndash
546 Em 1741 Johan Friedrich Wiedler preparou uma extensa lista bibliograacutefica de obras astronocircmico-
astroloacutegicas Dentre elas figuravam diversas efemeacuterides Sobre as informaccedilotildees apresentadas ver
WIEDLER Johan Friedrich Historia astronomiae Vitembergae Sumtibus GH Schwartzii
Bibliopolae 1741 p 265 Mais tarde em 1785 Jean-Sylvain Bailly ndash astrocircnomo primeiro prefeito de
Paris e um dos principais organizadores da Festa da Federaccedilatildeo ndash utiliza a obra de Wiedler ao escrever
sua Histoacuteria da Astronomia Moderna BAILLY Histoire de lrsquoastronomie moderne depuis la fondation
de lrsquoeacutecole drsquoAlexandrie jusqrsquoagrave lrsquoeacutepoque de 1730 Tome 1 De Bure Paris 1785 Pouco mais tarde
reunindo toda a bibliografia levantada por Wiedler e Bailly aparece a obra de La Lande DE LA
LANDE Jeacuterocircme Bibliographie astronomique avec lhistoire de lastronomie depuis 1781 Jusqursquoaagrave
1802 Paris Imprimerie de la Reacutepublique 1803 No mundo medieval anglo-saxatildeo aleacutem dos
almanaques de Jarchus Petrus e Bacon (preservadas no Museu Britacircnico e na Biblioteca de Oxford)
temos tambeacutem um Almanaque para o ano de 1386 publicado no seacuteculo XIX como curious particulars
mas infelizmente omitindo a maiorias de suas tabelas e cronologias HACKNEY Stower (printed for)
Almanac for the Year 1386 Transcribed Verbatin From the Original Antique Illuminated Manuscript
in the Black Letter 1812 Esse almanaque oferecia uma descriccedilatildeo das casas zodiacais dos planetas e
de suas propriedades uma exposiccedilatildeo dos signos tambeacutem uma breve cronologia a partir do nascimento
de Caim (tanto de eventos sagrados quanto naturais e profanos) algumas explicaccedilotildees numeroloacutegicas
sobre nuacutemeros primos e notas em medicina entre outros toacutepicos
176
relacionadas segundo a tradiccedilatildeo astroloacutegica ao elemento aacutegua O prognoacutestico a
respeito do movimento das estrelas errantes e de sua entrada em Peixes era ressaltado
em cores profeacuteticas desde ao menos 1499 data a partir da qual 56 autores em 113
escritos preservados comeccedilaram a prever um grande diluacutevio para 1524547
Nenhum desses genethliaci contava perto de seiscentos anos embora muitos
guardassem como uma aquisiccedilatildeo para sempre algo em torno de seis seacuteculos de
leituras Ao inveacutes de preparar uma arca e convocar animais imprimiram os tipos de
suas previsotildees em folhetos livros e almanaques resultando em um clima de
apreensatildeo generalizada que transbordou para aleacutem das florestas da Germacircnia e jaacute do
outro lado foi bem aleacutem dos ciclos eruditos frequentados por astroacutelogos de prestiacutegio
como Seitz e Carion Copp Reynmann Volmar Virdung e Ranssmar assim como
teoacutelogos interessados nos sinais celestes como Stephan Wacker Balten Wilhelms e
Heinrich Pastoris548
E no mesmo ano entraram na naacuteu dos Hallucinatii catoacutelicos e reformados
seus saacutebios e seus plebeus suas mulheres e suas crianccedilas
Do leste ao oeste do Reno do sul ao norte dos Alpes o ldquogrande medo de
1524rdquo de fato natildeo atormentava apenas os homens de letras Pomian seguindo de perto
o trabalho de Ottavia Niccoli lembra que na Itaacutelia do seacuteculo XVI um ldquomedo real das
inundaccedilotildeesrdquo ndash associado agrave frequecircncia do fenocircmeno na regiatildeo ndash foi indentificado agrave
propagaccedilatildeo do luteranismo Frente a esses perigos os dois glaacutedios uniam-se na
organizaccedilatildeo ou incentivo de rituais de reparaccedilatildeo coletiva ndash fossem eles procissotildees de
penitecircncia fossem eles corrobories vulgares549 Martinho Lutero natildeo demorou para
assumir a defensiva criticando os ldquoastroacutelogos que foram iludidos naquele ano a
anunciar (ou negar) o fim iminente do mundordquo550
547 Aqui sigo POMIAN Krzystof Les sciences les croyances occultes et les niveaux de culture en
Europe (XVIe-XVIIe siegravecle) In History European Ideas Vol 3 no 1 pp 133-139 1982 Reprinted
from Le Deacutebat No 6 Novembro 1980 p 135-136 tambeacutem HUumlBNER Wolfgang The Culture of
Astrology from Ancient to Renaissance In DOOLEY 2014 p 30 BARNES R Prophecy and
Gnosis Stanford Stanford University Press 1988 GRAFTON Anthony Starry Messengers Recent
Work in the History of Western Astrology Perspective on science Volume 8 n 1 spring 2000
principalmente pp 75-77 GRAFTON Anthony Cardanorsquos Cosmos The World and Works of a
Renaissance Astrologer Cambridge MA 1999 pp 38 53-54 e 40 Na paacutegina 53 Grafton lembra que
Stoeffler e Pflaum anunciaram no seu Almanach Nova (1499) a configuraccedilatildeo dos planetas para 1524
Agradeccedilo ao colega Vitor Batalhone pela disponibilizaccedilatildeo do livro 548 ZAMBELLI Paola (org) Introduction In Astrologi Hallucinati Stars and the End of the World
in Luthers Time Berlin New York De Gruyter 1986 p 11 549 POMIAN 1980-1982 p 136 NICCOLI Ottavia Prophecy and People in Renaissance Italy
Cochrane Princenton University Press 1990 550 ldquo() astrologers who had been deluded that year into announcing (or denying) the imminent end of
the world due to a flood brought on by the conjunction of the three upper planets in the sign of Piscesrdquo
177
As factiacuteveis relaccedilotildees entre as crenccedilas astroloacutegicas ndash com seu inegaacutevel tracircnsito
por vaacuterios segmentos da sociedade ndash e o sentimento de medo ou inseguranccedila jaacute foram
exploradas desde pelo menos a histoacuteria das mentalidades francesa551 Mas os efetivos
prognoacutesticos astroloacutegicos natildeo poderiam ser realizados sem o intenso
desenvolvimento acelerado no quattrocento das observaccedilotildees astronocircmicas e do
cocircmputo dos movimentos celestes Grande parte das previsotildees arriscadas ao longo
dos dois seacuteculos seguintes seriam baseadas em tabelas de efemeacuterides sofisticadamente
apuradas primeiro atraveacutes daquelas editadas por Peuerbach e seu disciacutepulo
Regiomontanus depois por outras jaacute incentivadas pela publicaccedilatildeo do De
revolutionibus orbium coelestium de Nicolau Copeacuternico (1543) como as Tabulae
Prutenicae de Rhenold (1551) e as Ephemerides novae de Johannes Stadius
publicadas em Colocircnia no ano de 1556552
Toda essa precisatildeo matemaacutetica natildeo seria suficiente para garantir o sucesso das
previsotildees Aceitemos apenas por um instante a premissa da influecircncia celeste
Hiparco de Niceacuteia (circa 190ndash120 AC) jaacute havia calculado a precessatildeo dos
equinoacutecios e seus resultados apontavam que ndash dado o movimento irregular do eixo
terrestre hoje bem conhecido ndash os signos zodiacais deslocam-se um grau do leste para
o oeste em um intervalo regular de cerca de 72 anos Isso equivale a dizer que as doze
constelaccedilotildees ldquonatildeo mais correspondem aos doze setores geomeacutetricos contados a partir
e adiante dos pontos tropicaisrdquo Como relembrou Wolfgang Huumlbner ldquoos astroacutelogos
prestam atenccedilatildeo aos duodeacutecimos abstrados dos ciacuterculos ecliacutepticos ao inveacutes das
constelaccedilotildees reaisrdquo 553 Choveu um pouco na Itaacutelia eacute verdade Mas o diluacutevio universal
natildeo veio Mesmo assim o episoacutedio natildeo parece ter abalado fatalmente as crenccedilas
astroloacutegicas e o prestiacutegio geral de seus adeptos mesmo que as criacuteticas comuns desde
Ciacutecero e Sexto Empiacuterico continuassem frequentes Se mais tarde para Antocircnio
Vieira como veremos as estrelas falam com autoridade muitos saacutebios celestes do
LUTHER Werke Kritische Ausgame (Henceforth WA) Briedfweschsel (Henceforth Br) III
Weimar 1933 p 260 Nr 724 apud ZAMBELLI 1986 p 1 551 Ver entre outros o claacutessico de DELUMEAU Jean La Peur en Occident Paris Fayard 1978
principalmente pp 90-102 552 BEZZA Giuseppe Representation of the Skyes and the Astrological Chart In A Companion
Astrology in Renaissance Brill Brills Companions to the Christian Tradition Vol 49 Leiden e
Boston 2014 p 94 Na mesma paacutegina Bezza ressalta que ldquoContrary to what a number of historians
have claimed the spread of Copernicus heliocentric theory did not occasion a crisis in astrology
ldquoReformerrdquo astrologers precisely claimed to be disciples of the Ptolomy of the Tetrabiblos but they
took the new astronomy on board without difficulty both in its Copernican and in its Tychonic
versionsrdquo idem ibidem 553 HUumlBNER Wolfgang op cit p 31
178
renascimento natildeo precisavam olhar os ceacuteus Cegos para o cosmos ouvidos bem
atentos ao som celestial codificado nas efemeacuterides os astroacutelogos viviam para
prognosticar alheios aos increacutedulos e agraves chamas da inquisiccedilatildeo
35 Conjunccedilotildees astrais e eventos sublunares
O tipo de previsatildeo praticada a respeito do diluacutevio de 1524 eacute um bom exemplo
da doutrina astroloacutegica do conjuncionismo Pierre drsquoAilly (1351-1420) cardeal
catoacutelico e teoacutelogo com fama de homem saacutebio era tambeacutem um proliacutefico autor de
textos a respeito da filosofia natural Seu famoso Ymago Mundi tratado geral sobre
cosmografia foi lido com atenccedilatildeo e preenchido de anotaccedilotildees por Cristovatildeo Colombo
que tambeacutem preparou algumas tabelas de efemeacuterides mediando o estudo da obra com
suas proacuteprias observaccedilotildees astronocircmicas Leitor de Platatildeo Aristoacuteteles e Pliacutenio DrsquoAilly
natildeo deixava de citar os astrocircnomos aacuterabes e mouros O problema da influecircncia celeste
forma assim uma das premissas fundamentais de toda sua produccedilatildeo Mas havia algo
de singular na maneira pela qual o cardeal abordava o topos
Em 13 de janeiro de 1493 navegando as Antilhas Colombo lamenta em seu
diaacuterio natildeo haver um porto melhor para observar a conjunccedilatildeo da lua com o sol que
deveria ocorrer dia 17 mesma data em que Jupiter entraria em oposiccedilatildeo com nossa
estrela e em conjunccedilatildeo com Mercuacuterio Ele parecia entusiasmado com o espetaacuteculo
celeste que como acreditava era sinal de ldquograndes ventosrdquo554 Aleacutem de ter declarado
que seria possiacutevel alcanccedilar o outro lado da Terra navegando pelo seu oposto ndash sem
esquecer de comentar que a Iacutendia era imensa em tamanho e em maravilhas ndash o Ymago
Mundi trazia tambeacutem entre citaccedilotildees do Centiloquim do pseudo-Ptolomeu a imagem
de um ldquociacuterculo do zoodiacordquo como ldquoo cinto do firmamentordquo555
Mas eacute em outro tratado o ambicionsamente intitulado De concordia
astronomicae veritatis et narrationis historicae que DrsquoAilly vai expor a sua teoria
das conjunccedilotildees organizadas ainda a partir das tabelas de efemeacuterides alfonsinas Na
hierarquia celeste Saturno e Juacutepiter ndash o titatilde Chronos e o deus dos deuses ndash os
554 COLUMBUS Christopher The Diario of Christopher Columbusrsquos First Voyage to America 1492-
1493 Abstracted by Fray Bartolomeacute de las Casas O Dunn JE Kelley Jr (trad) Library of Congress
1989 pp 328-329 Folio 55r 555 DrsquoAILLY Pierre Ymago Mundi Edmond Buron (eacuted) Texte latin et traduction franccedilaise des quatre
traiteacutes cosmographiques de drsquoAilly et des notes marginales de Christophe Colomb Tome I Librarie
Orientale et Ameacutericaine Paris 1930 Tome I p 169 Sobre os usos do Centiloquium ver por exemplo
pp 248-249 para o capiacutetulo sobre as iacutendias ver p 265 e seguintes
179
planetas mais lentos conhecidos ateacute entatildeo ocupam um papel especial A cada 960
anos ocorre entre eles uma grande conjunccedilatildeo Outra intermediaacuteria se passa a cada
240 anos Uma menor eacute observada em 19 intervalos anuais e proacuteximo a cada 30 anos
os dois gigantes entram em oposiccedilatildeo DrsquoAilly propocircs uma narrativa que buscava
relacionar grandes eventos da histoacuteria sagrada e profana com esses fenocircmenos
celestes com a vantagem de que assinalavam uma periodicidade natural que se
aproximava de nuacutemeros redondos 20 30 250 e 1000 anos O tratado sobre A
concordacircncia da verdade astronocircmica e da narraccedilatildeo histoacuterica era com certeza um
dos tipos extremos mais importantes para aquilo que Krysztof Pomian seacuteculos depois
chamaria de astrologia como uma teologia naturalista da histoacuteria556 Foi tambeacutem
bastante lido e comentado ao longo dos seacuteculos XVI e XVII por eruditos e antiquaacuterios
como William Camden557 Natildeo era pouco para um autor que antecipou as ondas
diluvianas um seacuteculo antes de elas varrerem os quatro cantos do Sacro Impeacuterio
Abolindo o ordenamento do tempo enquanto percepccedilatildeo do ser seu modelo eacute o
exemplo mais bem acabado de integraccedilatildeo da histoacuteria humana aos ciclos das
conjunccedilotildees e das luas cheias dos eclipses e das siziacutegias da escuridatildeo e da luz da matildeo
providencial e da ordem da natureza
Mas Pierre drsquoAilly tambeacutem teve criacuteticos ilustres A concordacircncia entre a
verdade astronocircmica e a narraccedilatildeo histoacuterica atraveacutes dos ciclos de conjunccedilotildees
implicaria no avatar milenarista de um regime de historicidade com olhos no futuro
ancorado na ordem da natureza e dado a prognoacutesticos ldquoracionaisrdquo mas encrustrado
em uma experiecircncia do tempo que insistia em ouvir o passado aos exempla e a
auctoritas Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) assim como mais tarde o
cronologista Joseph Scaliger (1540-1609) e mesmo o astrocircnomo Johannes Kepler
(1571-1630) ndash que natildeo deixava de interessar-se pela influecircncia celeste ndash viam a
astrologia horoscoacutepica confrontada com Hiparco como uma antiga ilusatildeo e
perguntavam-se em debates acalorados como uma premissa tatildeo fraacutegil pocircde coexistir
556 POMIAN Krzysztof Astrology as a Naturalistic Theology of History In Astrologi Hallucinati
Stars and the End of the World in Luthers Time Berlin New York De Gruyter 1986 sobre os ciclos
de Pierre D`Ailly ver p 36 Jonathan Dove ndash autor de almanques de efemeacuterides ndash em 1667 jaacute havia
feito uma afirmaccedilatildeo parecida com a de Pomian quando definiu a astrologia como uma forma de natural
theologie ou seja uma ciecircncia que nos aproximaria da providecircncia DOVE Jonathan Dove speculum
anni aacute partu virginis MDCLXVII or an almanack for the year of our Lord God 1667 Cambridge
1667 557 GRAFTON 2000 p 72 SMOLLER Ackerman L History Prophecy and the Stars Princenton
NJ Princenton University Press 1994 E tambeacutem GRAFTON Anthony Joseph Scaliger 2 vol
Oxford Clarendon Press 1983-93 especialmente p 351
180
em um mundo de saacutebios como Claudio Ptolomeu e Hermes Trimegistus558 Muitos
dos participantes do debate a respeito do diluacutevio de 1524 aproveitaram as
circunstacircncias para atacar o modelo conjuncionista do cardeal DrsquoAilly Pico della
Mirandola talvez seu mais jovem e feroz opositor anos antes jaacute havia colocado em
cena toda a sua velha carga de leituras para apontar que se a teoria do Grande Ano
estava mesmo presente na filosofia claacutessica (Timaeus 39d) aquela dos ciclos
baseadas em conjunccedilotildees era completamente ausente A validade de sua tese como
lembrou Paola Zambelli continua sendo corroborada ateacute hoje segundo a
historiografia atual a teoria das conjunccedilotildees veio da Peacutersia Sassacircnida e chegou ao
ocidente atraveacutes dos escritos de Mashallah (740-815) Al-Kindi (801-873) e
Abumasar (787-886) astroacutelogos dentre os quais Tomaacutes de Aquino ainda no seacuteculo
XII encontrava interlocutores criacuteticos559 Os profetas do diluacutevio de 1524 poderiam
natildeo ter os seiscentos anos de Noeacute mas eacute possiacutevel que contassem tempo muito
parecido em erudiccedilatildeo560
558 Vide GRAFTON Anthony Commerce with the Classics Ann Arbor University of Michigan Press
1997 principalmente capiacutetulo 5 559 ZAMBELLI 1986 p 24-25 Tambeacutem GRAFTON 2000 p 73 e HUumlBNER op cit p 29 Sobre a
astrologia no mundo islacircmco ver KENNEDY E S Ramification of the World-year concept in Islamic
Astrology Congress of the History of Science Paris 1962 pp 23-42 Sobre as conjunccedilotildees e seu
impacto nos eventos da histoacuteria humana em Mashallah ver LORCH RP The Astrological History of
Māshāallāh In The British Journal for the History of Science Cambridge Mass Cambridge
University Press 6 (4) novembro de 2013 pp 438-439 Sobre a interface entre a escolaacutestica e a
filosofia natural araacutebico-ptolomaica ver LEMAY Richard Abu Marsquoshar and Latin Aristotelianism in
the Twelfth Century The Recovery of Aristotlersquos Natural Philosophy through Arabic Astrology Beirut
American University of Beirut 1982 Existem indiacutecios que apontam para um claro contrabando de
textos e conceitos matemaacuteticos vindos do oriente nos trabalhos de astroacutelogos matemaacuteticos (genethliaci)
ocidentais Em instigante ensaio Jerky Dobrzycki e Richard Kremer propuseram-se a refazer os
caacutelculos das efemeacuterides de Johannes Angelus mestre de artes na Vienna do seacuteculo XVI Engel como
era igualmente conhecido publicou suas Ephemeris entre 1510 e 1512 Seus almanaques imitavam
ldquoexatamente o formato impresso estabelecido para o gecircnero em 1747 pelas efemeacuterides de Johannes
Regiomonatnus e continuadas por Johan Stoumlffler e Jacob Pflaum em seu Almanach nova de 1499rdquo No
entanto no Almanach novum atque correctum Angelus afirmava que seu trabalho era mais preciso do
que os ldquoalmanaques comunsrdquo pois era computado a partir de ldquonovas taacutebuas de equaccedilotildees planetaacuteriasrdquo
Angelus dizia ter encontrado as novas tabelas em um manuscrito inacabado de Peurbach e ldquocom a
ajuda do todo poderosordquo teria sido capaz de completaacute-las As refazer os caacutelculos das efemeacuterides
comparando-os com Stoumlffler e Pflaum os autores sugerem que as correccedilotildees realizadas por Angelus no
sistema Ptolomaico a partir dos modelos alfonsinos (cujas tabelas foram publicadas em 1483)
empregaram teacutecnicas matemaacuteticas (como os ldquomoderadores harmocircnicosrdquo) desenvolvidas pela escola
persa de Maragha Ver DOBRZYCKI Jerzy KREMER Richard Peurbach and Maragha Astronomy
The Ephemeris of Johannes Angelus and their implications In Journal for the History of Astronomy
Provided by NASA Astrophysics Data System Xxvii 1996 560 Cf SENECA Naturales Quaestiones De Aquis Terrestribus Liber III-291 [291] ldquoQuidam
existimant terram quoque concuti et dirupto solo noua fluminum capita detegere quae amplius ut e
pleno profundant Berosos qui Belum interpretatus est ait ista cursu siderum fieri adeo quidem
affirmat ut conflagrationi atque diluuio tempus assignet arsura enim terrena contendit quandoque
omnia sidera quae nunc diuersos agunt cursus in Cancrum conuenerint sic sub eodem posita
uestigio ut recta linea exire per orbes omnium possit inundationem futuram cum eadem siderum
turba in Capricornum conuenerit Illic solstitium hic bruma conficitur magnae potentiae signa
181
A recepccedilatildeo do conjuncionismo desde cedo levantou polecircmica no ocidente
Suas teses jaacute haviam sido condenadas e proibidas em Paris e Oxford no ano de 1277
e continuavam sendo atacadas no seacuteculo seguinte por Henrich von Langenstein porta
voz da Sorbonne em seu Contra astrologos coniuctionistas de eventibus futurorum
datado de 1371561 Publicada de forma poacutestuma em 1498 as Disputationes adversus
astrologiam divinatricem de Pico defendiam que ldquoo poder dos planetas conjurados
natildeo eacute maior do que o dos planetas divididosrdquo concluindo categoricamente que ldquoessas
grandes conjunccedilotildees satildeo uma nova invenccedilatildeo que deriva do desentendimento de um
locus em Ptolomeurdquo 562
A questatildeo que comeccedilava a surgir na esteira dos estudos humanistas era a de
como justificar a presenccedila na obra ptolomaica dos aforismas que tratavam das
conjunccedilotildees dos planetas superiores Pico della Mirandola apesar de jaacute semear
algumas duacutevidas natildeo chegou ao ponto de questionar nas suas disputationes a autoria
do Centiloquium (Dip III 14)563 No mesmo periacuteodo em que aparece o comentaacuterio de
Ibn al-Daya surgiu tambeacutem a primeira versatildeo latina das 100 pequenas teses atribuiacutedas
a Ptolomeu feita por Joatildeo de Sevilha em 1136 um par de anos antes da traduccedilatildeo do
Tetrabiblos realizada por Platatildeo de Tivoli A divulgaccedilatildeo do texto menor que
circulava em cerca de 150 manuscritos intensificou-se entre os seacuteculos XIII e XIV
depois das universidades rejeitarem a proibiccedilatildeo da leitura e ensino da filosofia natural
de Aristoacuteteles564
No entanto eacute apenas com as sucessivas traduccedilotildees do Tetrabiblos de Ptolomeu
ndash que comeccedilam tambeacutem a ser realizadas diretamente do texto grego ndash que os
humanistas passam pouco a pouco a suspeitar dos aforismas do Centiloquium
George de Trebizonda jaacute na metade do seacuteculo XV iniciou o esforccedilo filoloacutegico ao
quando in ipsa mutatione anni momenta suntrdquo CLARKE John (trans) Physical Science in the Time of
Nero Being a translation of the Quaestiones Naturales of Seneca Macmillan and co Limited
London 1910 ldquoforth from their full source in larger volume Berosus the translator of [the records of]
Belus affirms that the whole issue is brought about by the course of the planets So positive is he on
the point that he assigns a definite date both for the conflagration and the deluge All that the earth
inherits will he assures us be consigned to flame when the planets which now move in different
orbits all assemble in Cancer so arranged in one row that a straight line may pass through their
spheres When the same gathering takes place in Capricorn then we are in danger of the delugerdquo
Grifos meus 561 HUumlBNER op cit p 30 562 apud ZAMBELLI 1986 p 25 563 Agora sigo a introduccedilatildeo e o comentaacuterio agrave traduccedilatildeo do Centiloquium realizada por BEZZA
Giuseppe Commento al primo libro della Tetrabiblos di Claudio Tolemeo Nuovi Orizzonti Milano
sp 19901992 564 LEMAY Richard The Teaching of Astronomy in Medieval Universities principally at Paris in the
Fourteenth Century Manuscripta 1976 XX3 pp 197-217
182
tentar recuperar o texto original do Tetrabiblos tambeacutem vertendo para o latim o
Almagesto compondo-lhe uma versatildeo que renderia criacuteticas de seu adversaacuterio o
cardeal Bessarion565 Versotildees latinas do Tetrabiblos e do Centiloquium foram
publicados juntas em Veneza no ano de 1493 Um pouco antes entre 1477 e 1491
Lorenzo Bonincontri Giorgio Valla Girolamo Cardano e enfim Franciscus Junctius
jaacute haviam tecido seus comentaacuterios agrave obra Pouco menos de meio seacuteculo mais tarde
em 1535 aparece uma ediccedilatildeo dos textos ptolomaicos em grego realizadas por
Joaquim Camerarius e Philipp Melanchthon que em 1553 publicaria uma versatildeo
latina do Tetrabiblos566 Alguns anos antes as casas editoriais de Nurenberg
resolveram reciclar a ediccedilatildeo de Joatildeo de Sevilha publicando-a em 1548 sob o nome de
Epitome totius astrologiae567
Do outro lado do Reno ndash mas compartilhando o espiacuterito da reforma astroloacutegica
levada a cabo pelo ciacuterculo de Melanchthon ndash Cardano natildeo teria mais duacutevidas a
respeito do Centiloquium Ao recuperar o texto grego chamado de Karpos e
confrontar-lhe o estilo a linguagem e a teoria com o Tetrabiblos ele natildeo demorou a
declarar em sua Opera Omnia que aqueles ceacutelebres aforismas natildeo haviam sido
escritos por Ptolomeu apontando Hermes Trimegistus como seu provaacutevel autor568
Tratavam-se de fato de dois escritos muito singulares O tratado em quatro livros
pareceu-lhe de difiacutecil leitura exigindo o estudo de conhecimentos muito especiacuteficos
o que levou Cardano a classificaacute-lo como obscurissimus569 Era de todo diferente da
astrologia ecleacutetica na qual Ptolomeu Hermes e astroacutelogos aacuterabes pareciam coexistir
em uma espeacutecie de harmonia sincreacutetica que natildeo era incomumente defendida pelos
saacutebios medievais570
Algum tipo de uso do corpus Ptolomaico era visiacutevel mesmo nos autores
ligados a Ars Historica renascentista Jean Bodin de fato comeccedila seu Methodus ad
facilem historiarum cognitionem argumentando em favor da distinccedilatildeo entre historia
humana historia naturalis e historia divina No entanto mais adiante no quinto
capiacutetulo ele propotildee que ldquopesquisemos () os fatos regidos pela natureza e natildeo pelas
565 FARACOVI 2014 92 566 HUumlBNER op cit 20 567 FARACOVI 2014 90 568 CARDANO Opera Omnia vol V Astronomica Astrologica Oneirocritica Lugduni 1663 apud
BEZZA 1992 569 Sobre os usos da metodologia de Cardano na criacutetica do Centiloquium para quem seguindo Galeno
primeiro era necessaacuterio realizar perguntas filoloacutegicas e soacute depois lanccedilar as devidas questotildees
filosoacuteficas ver GRAFTON Cardanorsquos Cosmos 1999 p 137 570 FARACOVI op cit pp 90-91
183
instituiccedilotildees humanas os fatos estaacuteveis que nada pode modificarrdquo O autor do Meacutetodo
inicia eacute verdade ldquopor estabelecer que nenhuma influecircncia assim como dos lugares
quanto dos corpos celestes implique em uma necessidade absolutardquo 571 Como notou
Grafton de todo modo Bodin ldquotratou o clima como um fator determinante no
desenvolvimento de cada genius nacionalrdquo 572
Enquanto os humanistas realizavam a criacutetica erudita da obra ptolomaica seus
textos falsos ou natildeo continuavam a ser impressos e ao lado deles seguiam um sem
nuacutemero de almanaques de conteuacutedo astroloacutegico Na Franccedila do seacuteculo XVI a
popularidade das efemeacuterides eacute atestada por um documento conservado na Biblioteca
Nacional Assinado por Oronce Fineacute matemaacutetico cartoacutegrafo e astroacutelogo judiciaacuterio
preso no contexto de 1524 tratava-se de um pequeno manual relativo ao Uso amp
praacutetica dos almanaques a que chamamos de Efemeacuterides As tabelas de movimento
dos astros mais apuradas como aquelas produzidas no ciacuterculo de Peuerbach e Muumlller
eram ainda publicadas em latim e abarrotadas de nuacutemeros o que de certo dificultava o
entendimento do puacuteblico Fineacute organizou assim um manual de leitura astronocircmico
indicando aos interessados natildeo apenas o que deveriam encontrar em cada secccedilatildeo de
uma efemeacuteride cotejando suas partes com os nomes latinos que lhes acompanhavam
mas tambeacutem ensinando a utilizar e adaptar suas tabelas aos mais variados usos que
iam com naturalidade do agriacutecola ao medicinal Dividido em 30 toacutepicos aos quais
preferiu chamar de cacircnones em trecircs deles o manual tocava diretamente a praacutetica
judiciaacuteria oportunidade em que aflorava o vocabulaacuterio conjuncionista573
A crenccedila no poder das conjunccedilotildees enumeradas com a precisatildeo de dias entre as
tabelas publicadas na Europa da eacutepoca natildeo raro antecipavam expectativas ou
quando quase inevitavelmente falhavam contentavam-se a retroalimentar suas
convicccedilotildees celestes na interpretaccedilatildeo de um evento passado agrave luz do conhecimento das
revoluccedilotildees astrais Assim a conquista de Jerusalem por Saladin em 1187 foi anos
571 ldquoCherchons au contraire des faits reacutegis pas la nature et non par les institutions humaines des faits
stables que rien ne puisse modifier si ce nrsquoest une grande force ou une discipline prolongeacutee des faits
que lrsquoon ne saurait deacuteranger snas les voir revenir drsquoeux-mecircmes agrave leur nature primitiverdquo () Mais je
commence par eacutetablir qursquoaucune influence aussi bien des lieux que des corps celestes nrsquoinplique une
necessite absolue () BODIN Jean Agevin Meacutethode pour faciliter la connaissance de lrsquohistoire P
Mesnard (trad) Paris Martin le Jeune 1572 respectivamente pp 313-314 572 GRAFTON 2007 sp cap 1 proacuteximo a nota 61 573 FINEacute Oronce Les canons amp documents tregraves amples touchant l`usage amp practique des communs
almanachz que lrsquoon nomme eacutepheacutemeacuterides Briefve amp isagogique introduction sur la judiciaire
astrologie avc un traicteacute drsquoAlcabice touchant les conjonctions des planegravetes en chascun des 12 signes
et de leur prognostications Impr De R Chadiegravere Paris 1551 BNF Deacutepartemente Reacuteserve des livres
rares V-21376
184
depois interpretada a partir do encontro dos planetas em Libra ocorrida em 16 de
setembro de 1186 Em 1484 uma grande conjunccedilatildeo em Escorpiatildeo ocorrida no dia 25
de novembro foi depois relacionada por alguns astroacutelogos ao surto de siacutefilis na
Europa e por outros ao nascimento de Lutero Algumas decadas mais tarde a uniatildeo
de trecircs planetas exteriores em Cacircncer no ano de 1503 seria cotejada com a morte do
papa Alexandre VI574
Apoacutes o episoacutedio de 1524 a nova geraccedilatildeo de astroacutelogos parece ter aprendido a
ser mais cuidadosa Em 1583 Saturno e Juacutepiter voltaram a se unir ainda uma vez em
Peixes Essa conjunccedilatildeo era agurdada com ansiedade sendo conhecida pelo menos
desde as primeiras tabelas de Johannes Muumlller (depois apelidado por Melanchthon de
Regiomontanus) datadas de 1474 e ampliadas em escopo temporal e precisatildeo pelas
Ephemerides sive almanach perpetuus de 1498 Rumores a respeito de uma previsatildeo
de grandes calamidades para o ano de 1588 atribuiacuteda ao proacuteprio Muumlller ndash um dos
mais respeitados matemaacuteticos da renascenccedila ndash comeccedilaram rapidamente a se espalhar
apoacutes a sua publicaccedilatildeo em 1553 Regiomontanus teria escrevinhado tal prognoacutestico em
alguns versos encontrados em uma folha de papel solta em seu escritoacuterio Em 1564
Cyprien Leowitz no De coniunctionibus magnis endorsa a suposta profecia do
ceacutelebre matemaacutetico lanccedilando expectativas para a segunda chegada do filho de
Deus575
Com esses elementos em mente os saacutebios celestes utilizaram entatildeo um
procedimento que natildeo seria estranho um seacuteculo antes ao cardeal DrsquoAilly Miraram
seus prognoacutesticos natildeo ao momento da conjunccedilatildeo em Peixes de 1583 mas cinco anos
depois dela quando seus efeitos acreditavam eles seriam efetivamente sentidos
Mais comedidos ndash com algum tempo para revisar cada prognoacutestico apoacutes a leitura
atenta da Bula de Sisto V de 1586 ndash natildeo arriscaram suas reputaccedilotildees falando em
diluacutevio fosse particular ou universal mas tatildeo somente e de maneira mais vaga
previram um acidente aquaacutetico E nesse caso puderam observar a profecia realizar-se
na destruiccedilatildeo da Armada Invenciacutevel no annus mirabilis de 1588576
574 HUumlBNER op cit pp 30-31 575 LEOWITZ Cyprien De coniunctionibus magnis insignioribus superiorum planetarum apud
EAMON William Astrology and Society In DOOLEY 2014 p 182 ldquoSince () a new trigon which
is the fiery is now imminent undoubtedly new worlds will follow which will be inaugurated by
sudden and violent changesrdquo Leowitz chegou a dizer que a conjunccedilatildeo ldquosem duacutevida anuncia a segunda
vinda do filho de Deusrdquo 576 Ver EAMON op cit pp 180-181
185
36 Le Roy e o Imperador uma (des)ordem da natureza
Enchentes e conjunccedilotildees foram apenas dois fenocircmenos entre uma seacuterie de
eventos naturais observados com certa mistura de temor e curiosidade pelos homens
do seacuteculo XVI Philip Melanchthon demonstrava preocupaccedilatildeo ao procurar sinais de
cometas nos ceacuteus577 Martinho Lutero que em geral natildeo via a praacutetica astroloacutegica com
bons olhos acreditava que os eclipses eram ldquomaus pressaacutegios assim como os partos
monstruososrdquo O autor das teses de 1517 tambeacutem pensava que esse tipo de evento
estava se tornando cada vez mais comum em um sinal provaacutevel da proximidade do
fim dos tempos578 A reforma fazia bom uso dos evangelhos de Marcos (1320) e
Mateus (2422) os quais asseveravam que Deus administrador do tempo e mestre da
natureza poderia acelerar o teacutermino do mundo em nome do fim do sofrimento dos
fieacuteis E tal natildeo era uma leitura que fosse de todo singular ao leste do Reno Louis Le
Roy (1510-1577) homem erudito dado a devaneios entre infolios pagatildeos professor
de grego no Collegravege Royal tradutor de Platatildeo Isoacutecrates Xenofonte Demoacutestenes e
tambeacutem da Poliacutetica de Aristoacuteteles jaacute na velhice encontrou tempo para publicar um
longo tratado sobre a Vicissitude ou Variedade das Coisas no Universo Datada de
1575 nesta obra seu projeto intelectual e as traduccedilotildees dos claacutessicos para o francecircs
ganhavam sentido ainda sob seus ombros Le Roy vertera os gigantes em liacutengua
moderna na esperanccedila de que seu tempo pudesse ver o nascimento de pensadores e
homens de letras tatildeo grandes quanto os modelos vindos da antiguidade579
577 Sobre o problema dos ceacuteus no pensamento de Melanchthon ver METHUEN Charlotte The Role of
the Heavens in the Thought of Philip Melanchthon Journal of The History of Ideas 57 1996 pp 385-
403 Entre os seacuteculos XVI e XVII surge toda uma seacuterie de tratados de cometografia que buscavam
catalogar registros de atividades de cometas muitos dos quais produzidos no ciacuterculo luterano de
Melanchthon Entre 1532 e 1558 Joaquim Camerarius com o endorso do mestre publica textos nos
quais defende a natureza portentosa dos cometas Milich Jakob entendendo que os corpos celestes satildeo
movidos por uma ldquocerta ordem e lei da naturezardquo (certa lege naturae atque ordine moventur) tambeacutem
via neles sinais divinos Caspar Peucer por sua vez acreditava que os prognoacutesticos astroloacutegicos eram
meios legiacutetimos de ldquose compreender a ordem natural estabelecida por Deusrdquo Sobre os tratados de
cometografia sigo as informaccedilotildees de MOSLEY Adam Past Portents Predict Cometary historiae
and catalogues in the sixteenth and seventeenth centuries In TESSICINI D BONER PJ (org)
Celestial Novelties on the Eve of the Scientific Revolution 1540-1630 Florencia Leo Olschki Museo
Galileo 2013 pp 2-32 para quem os ldquoacadecircmicos luteranos foram condicionados a entender os
cometas tanto como sinais naturais quanto providenciais de um mundo divinamente ordenadordquo (p 6) 578 GRAFTON Anthony Some uses of Eclipses () 2003 p 213 579 Trata-se da opiniatildeo de uma obra que sigo parcialmente em minha leitura da cosmologia de Louis Le
Roy GUNDERSHEIMER Werner L The Life and Works of Louis Le Roy Droz 1966 Genebra p 37
Gundersheimer ao longo de seu estudo pensa as reflexotildees de Louis de Roy como se estivessem
integradas a uma ldquofilosofia da histoacuteriardquo Natildeo eacute uma opiniatildeo incomum entre estudiosos da astrologia
renascentista como Eugenio Garin para quem o saber celeste constituia-se em uma ldquofilosofia da
histoacuteria baseada em uma concepccedilatildeo do universo caracterizada por um consistente naturalismo e um
186
Dividida em doze livros escritos em liacutengua francesa sua obra maacutexima
declarava estudar as ldquomudanccedilas alternativas do universo tanto em sua parte superior
quanto inferiorrdquo e a partir daiacute chegar ao problema das ldquoinsignes mutaccedilotildees do gecircnero
humanordquo Seguia-se a elas jaacute no penuacuteltimo capiacutetulo uma comparaccedilatildeo entre seacuteculos
daquele que lhe era contemporacircneo com os ldquoprecedentes mais ilustresrdquo em suma do
seacuteculo XVI com o mundo antigo580 Os paiacuteses as religiotildees os costumes os povos
todos pareciam em constante mutaccedilatildeo O percurso traccedilado por Le Roy o permitiria se
perguntar no deacutecimo primeiro livro em que o tempo presente era inferior superior
ou igual aos seacuteculos exemplares581 Nada mudava mais do que o homem mas era essa
uma corrente de vicissitudes que seguia alguma ordem
O primeiro livro declarava a premissa fundamental da obra ldquoDa vicissitude ou
variedade observada dos movimentos dos ceacuteus e das esferas celestesrdquo dependiam
segundo Le Roy todas as ldquomudanccedilas advindas neste mundo inferiorrdquo O topos da
influecircncia celeste natildeo era assumido sem fazer concessotildees ao modelo agostiniano o
qual o obrigada a reconhecer ldquomuito humildemente a providecircncia divinardquo como ldquofator
e governador dessa grande obra de excelecircncia e beleza admiraacutevel em variedade
singularidade e perenidaderdquo582
Poucos anos antes em 1571 Girolamo Cardano ndash um dos mais eminentes
doutores a praticar e ensinar a astrologia em solo catoacutelico ndash fora condenado pela
inquisiccedilatildeo583 A alianccedila do autor das Vicissitudes com a via media encontrada anos
riacutegido determinismordquo GARIN Eugenio Astrology in the Renaissance The Zoodiac of Life Routledge
amp Kegan Paul London-Boston 1983 p 16 Nesta tese ao falar na astrologia medieval e renascentista
prefiro a distinccedilatildeo esboccedilada por Pomian (1986) entre duas teologias da histoacuteria uma teocecircntrica e
outra naturalista guardando a filosofia da histoacuteria para o momento em que Voltaire e seus
interlocutores alematildees comeccedilam a relacionar as noccedilotildees de movimento (e mudanccedila) agrave accedilatildeo sublunar
humana 580 ldquoDoncques en toute lrsquooeuure sont representez les changemens alternatifs de lrsquovnivers taacutet em as
partie superieure qursquoinferieurerdquo () ldquorecontres les insignes mutations du genre humainamp comparaison
de ce siecle aux precedes plus ilustres pour ssccedilauoiren en quoy il leur est inferieur ou superieur ou
egalrdquo Sommaire de lrsquoouvre LE ROY Louis De la Vicissitude ou variete des choses en l`univers et
concurrence des armes et des lettres par les premieres et plus illustres nations du monde depuis le
temps ougrave agrave commenceacute la civiliteacute amp memoire humaine jusques agrave present Paris Pierre l`Huilier 1575
Doravante citada apenas como Viciss 581 Keith Thomas em trabalho muito citado natildeo deixou de comentar que durante a renascenccedila italiana
ldquodoutrinas astroloacutegicas a respeito das recorrecircncias de conjunccedilotildees planetares e sua influecircncia no curso
dos assuntos humans ajudaram a formar o conceito de periacuteodo histoacutericordquo Ver THOMAS Keith
Religion and the Decline of Magic Studies in Popular Beliefs in Sixteenth and Seventeenth-Century
England Oxford University Press Oxford 1971 p 386 582 ldquoLa vicissitude amp variete obseruee eacutes mouuemens du ciel amp des spheres celestes dont dependente
les changemens aduenans em ce monde inferieur ()rdquo ldquo() ie recognois treshumblement la prouidance
diuvine estre par dessus croyant certainement que Dieu tout puissant facteur amp gouuerneur de ce grand
ouurage excelleacutet en baeuteacute admirable en varieteacute singulier enduree ()rdquoViciss I1 583 Ver GRAFTON 1999 4-5
187
antes pela escolaacutestica garantia-lhe certamente proteccedilatildeo combinada com o cauteloso
expediente de citar os pensadores pagatildeos mouros e mesmo os astroacutelogos
contemporacircneos sem encampar nominalmente suas teses584 Na praacutetica entretanto o
que o leitor assiste ao longo do primeiro e tambeacutem do uacuteltimo capiacutetulo da obra eacute a uma
grande revisatildeo ecleacutetica da tradiccedilatildeo astroloacutegica de onde deriva a assimilaccedilatildeo
cosmoloacutegica que guia os rumos de sua anaacutelise histoacuterica A causa das modificaccedilotildees
sublunares diria Le Roy eacute dupla uma advem do ldquoprimeiro motor imoacutevel a outra do
motor moacutevel atraveacutes da virtude e da influecircncia do primeirordquo que expressa os
desiacutegnios ldquoda providecircncia divina dominanterdquo restauradora e renovadora de todos os
corpos sensiacuteveis por meio da apropriaccedilatildeo cristatilde do cacircnone aristoteacutelico da geraccedilatildeo e da
corrupccedilatildeo585
Tanto ldquoastroacutelogos quanto meacutedicos afirmam que da parte superior do universo
descendem certas virtudes companhadas de luz e calorrdquo caracteriacutesticas que ldquoalguns
chamam de espiacuterito do universo outros de naturezardquo Mas esse espiacuterito transcende a
ordem da natureza integrando-se no iacutentimo de todas as caracteriacutesticas humanas
influindo nos ldquocostumes (moeurs) das pessoas propriedades das naccedilotildees viacutecios e
virtudes sauacutedes e doenccedilasrdquo e mesmo nas ldquoprosperidades e a adversidadesrdquo Natildeo se
trata entretanto de uma ldquolei fatalrdquo podemos diminuir ou aumentar a accedilatildeo da natureza
atraveacutes da prudecircncia da alimentaccedilatildeo dos costumes e das instituiccedilotildees humanas586
Le Roy compreende a dinacircmica das vicissitudes a partir da influecircncia dos dois
motores embora ressalte que as mudanccedilas eram tambeacutem ldquotemperadasrdquo pelo repertoacuterio
claacutessico dos contraacuterios e desiguais lido atraveacutes de Heraacuteclito Homero e eacute claro
584 Le Roy sabia por exemplo como tambeacutem soubera Pico dela Mirandola que o conjuncionismo
astroloacutegico (tal como praticado no seacuteculo anterior por Pierre Drsquoailly) vinha atraveacutes dos filoacutesofos
naturais mouros ldquoSi ont les Arabes diuseacute ce longe espace de temps par les grandes conionctions des
Planetes signamment des trois Superieures Saturne Iupiter amp Mars que ils maintiennet auoir
meilleur pouuoir sur les alteratios principales de ce mode inferieur ()rdquoViciss I 3 585 ldquoLa cause mouuante est double lvne du premier moteur immobile lautre du moteur mobile par la
vertu amp influence duquel (la diuine prouidence dominant les choses caduques au mode sensible sont
incessamment restaures amp renouuelles moyennant la generation ()rdquoViciss I4 586 ldquoDocques les Astrologiens amp Physiciens afferment de la partie superieure de lvnivers descendre
certaine vertu accompagnee de lumiere amp chaleur quaucuns deux appellent lesprit de lvnivers les
autres nature () Lagrave estre le premier mouuement dont deppendent les autres inferieurs amp toute
essence De lagrave proceder diuerses temperatures des corps inclinations dentedemens moeurs des
personnes proprietez des nations vices amp vertus santeacute amp maladies force amp foiblesse briueteacute amp
longuer de vie mortaliteacute richesse amp pauureteacute prosperitez amp aduersitez () Non pas que tels effects
aduiennent necessairement amp inuiolablement par vne loy fatale ains quils peuuent estre euitez pra
sagesse ou destournez par prieres diuines ou augmentez amp diminuez par prudence ou moderez par
nourriture coustume institutionrdquo Viciss I 2
188
Empeacutedocles587 Para a filosofia natural desenvolvida sob os escombros dos antigos as
efemeacuterides solares produziam divisotildees anuais quadripartidas as quais abarcam dois
solstiacutecios um de inverno outro de veratildeo e dois equinoacutecios um durante a primavera e
outro no outono Assim satildeo lidas as alternacircncias entre o calor e frio geraccedilatildeo e
corrupccedilatildeo Tanto o movimento quanto a luz e a influecircncia eram os agentes da accedilatildeo
celeste Agentes que operacionalizavam o comportamento astral por meio da
produccedilatildeo de quatro qualidades principais a saber o calor o frio a secura e a
humidade Combinadas entre si elas originariam os quatro elementos fundamentais o
fogo a aacutegua o ar e a terra
Entre os ldquocontraacuterios e dissimilaresrdquo Louis le Roy imaginava uma espeacutecie de
dialeacutetica celeste ldquoentendida pela discoacuterdiardquo essa ldquovariedade das coisas que se unemrdquo
devem tender a ldquosuperar a contrariedaderdquo Eacute o que se passa quando Marte e Venus
Jupiter e Saturno equilibram suas caracteriacutesticas naturais E assim ocorre com o
mundo inferior composto pelos elementos com os humores humanos ndash suas paixotildees
e accedilotildees ndash ainda com a poliacutetica e com a economia588 Dessa forma como explica o
humanista ldquohoje se opotildee os escoceses aos ingleses os ingleses aos franceses e os
franceses aos italianosrdquo dentre muitos outros povos citados e comparados em
especiacutefico ao longo dos capiacutetulos restantes Sobra uma linha para comentar a
influecircncia dos contraacuterios ao sul do equador americano ldquoao Brasil dos selvagensrdquo
rudes habitantes que se potildee a ldquocomer uns aos outros quando satildeo pegos em guerrardquo 589
O seacuteculo XVI era de ansiedades e guerras de religiatildeo fez catoacutelicos e
protestantes tremerem diante das incertezas da morte da deterioraccedilatildeo das relaccedilotildees
sociais e da crise da cosmologia medieval Essa apreensatildeo eacute expressa diretamente nas
paacuteginas finais do deacutecimo livro no qual o professor do Collegravege Royal levanta o 587 ldquo() lrsquovnivers nrsquoest seulement conferueacute par la vicissitude des cieux amp des elemens mais aussi
tempere par contraiacuteres ()rdquoViciss I 6 588 ldquoEntendant par discorde la varieteacute des choses qui srsquoassemblent amp par concorde lrsquovnion drsquoiccelles
Mais lrsquovnion en celle assemblee doit surmonter la contrarieteacute Autrement se resouldroit la chose les
priacutencipes se separans Ainsi nous noions au ciel mouuemens contraiacuteres conseruer lrsquovniuers Venus
colloquee au mylieu prez Mars afin de dompter son impetuositeacute qui est de sa nature corruptif amp
Iuppiter prez Saturne pour corriger as malice Le monde inferieur composeacute drsquoElemens contraiacuteres se
maintenir par la proportion qursquoils ont ensemble les natures faittes drsquoeux se conserner par la
temperature de qualitez diferentes Se trouuent au corps de lrsquovniuers terre eua air feu soleil lune amp
autres astres Il y a matiere forme priuation simpliciteacute mixtion substance quantiteacute qualiteacute action
passion Em lrsquohumain sang flegme cholere melancholie chair os nerfs veines arteres () En
lrsquoeconomique Mari femme enfans seigneur serf maistre amp feruiteur Au politique iustice fortitude
prudence temperance religion militie iudicature finance conseil magistrats amp priuez () Lrsquoart
imitant nature em la peinture du noir blanc iaune rouge ()rdquoViciss 15-6 589 ldquoAinsi sont auiordrsquohuy opposez les Escossois aux Anglois les Anglois aux Franccedilois les Franccedilois
aux Italiens () Et au Bresil les Sauluages iusques agrave srsquoentremanger quando sont prins em guerrerdquo
Viciss I 6
189
problema das vicissitudes negativas de seu seacuteculo ldquoPor muito tempo natildeo se viu tanta
maliacutecia no mundo tanta impiedade e felonia ()rdquo a ldquodevoccedilatildeo foi extinta simplicidade
e inocecircncia satildeo zombadas e soacute nos resta sombras da justiccedilardquo 590 Como artifiacutecio para
entender o que toma como modificaccedilotildees radicais na ordem do universo Le Roy vai
buscar em Platatildeo a velha teoria do Grande Ano esse momento em que ldquoos sete
planetas e as outras estrelas fixas retornam a seus postos primitivos representando a
mesma natureza que eles possuiacuteam no comeccedilo dos temposrdquo 591
Como do outro lado do Reno fez Martinho Lutero Louis Le Roy parecia se
perguntar se o fim estava proacuteximo Mas sua impune erudiccedilatildeo ao contraacuterio do que
aconteceu com o austero reformador permitia-lhe uma interface entre a escatologia
cristatilde e os mitos platocircnicos Quando a revoluccedilatildeo do Grande Ano chegar ao fim de um
ciclo dizia o autor das Vicissitudes ldquoapareceratildeo diversos signos na terra e no ceacuteurdquo E
natildeo ldquoparecia a muitos que uma grande mutaccedilatildeordquo estava para ocorrer considerando os
sinais que teimavam em aparecer ldquonos ceacuteus nos astros nos elementos e em toda a
naturezardquo Nunca foram vistos tantos eclipses Nunca foram observados tantos
cometas Nunca se teve tantas notiacutecias de inundaccedilotildees fluviais e mariacutetimas terremotos
violentos e nascimentos de criaturas monstruosas Tambeacutem natildeo havia registros ldquona
memoacuteria humana de tantas mutaccedilotildees frequentes sobrevindas nos paiacuteses nas pessoas
nos costumes (moeurs) nas leis na poliacutetica e na religiatildeordquo
Ao fazer o percurso ptolomaico que pretendia unir em reflexatildeo a ordem do
tempo agrave ordem da natureza Le Roy natildeo se furtava a traccedilar relaccedilotildees diretas entre a
filosofia moral e a filosofia natural o sol e a lua segundo ele natildeo estavam mais na
mesma posiccedilatildeo que ocupavam na eacutepoca do saacutebio de Alexandria Leitor de Hiparco e
conhecedor da precessatildeo dos equinoacutecios ele natildeo parecia outrossim disposto a
abandonar a astrologia horoscoacutepica como a seguir fariam Scaliger e Kepler Pelo
contraacuterio as mudanccedilas na disposiccedilatildeo dos signos eram vistas como um alerta a
respeito de grandes transformaccedilotildees mundanas Chegamos a perceber uma curiosa
leitura das teorias heliocecircntricas que comeccedilavam a animar os espiacuteritos de sua eacutepoca
590 ldquoCari l nrsquoy eut pieccedila plus de malice au monde plus drsquoimpieteacute amp de defloyauteacute Deuotion est
esteinte simpliciteacute amp innocence mocquees ne reste que lrsquoombre de Iusticerdquo Viciss X 102 591 ldquoLe grand an quand les sept planetes amp autres estoilles fixes retornent agrave leurs premiers sieges
representes la mesme nature qui estoit au coacutemencement estans les vies de toute choses amp temps prefix
de leur duree terminez par nombres moindres ou plus grands selon la disposition de la matiere dont
elles sont faittes () sentant chacune sa corruption cause dautre generation Tellement quil semble agrave
Platon que lvniuers se nourisse par sa consomptions amp vieillesse surrogeant touiurs nouuelles
creatures aux vielles amp mettant au lieu des peries autress semblables sans que les especes en defaillent
qui demourent par ce moyen comme immortellesrdquo Viciss I 2
190
ldquoa terra retornourdquo diziam alguns ldquoa sua situaccedilatildeo primeira natildeo estando inteiramente
como ela estaria depois no centro do universordquo 592
Pela tradiccedilatildeo aristoteacutelica como vimos a natureza era sempre uma causa de
ordem Posta em franco movimento ciclos naturais acelerados o que sobraria para
os homens uma vez que neles a ldquovicissitude eacute maior do que em qualquer outra coisardquo
estando seus corpos mortais submetidos a uma constante variaccedilatildeo nos ldquocostumes nas
opiniotildees nos apetites nos prazeres nas doresrdquo mas igualmente nos ldquomedos e nas
esperanccedilasrdquo593 Com a imprensa e os sistemas de comunicaccedilatildeo dinamizando a forma
de transmissatildeo de saberes e informaccedilotildees registros de atividades celestes e cataacutestrofes
naturais tornavam-se disponiacuteveis em maior quantidade e rapidez Se natildeo era ainda o
momento da consciecircncia da aceleraccedilatildeo do tempo jaacute presente nos homens do seacuteculo
XVIII e XIX teriacuteamos a percepccedilatildeo de um desregramento da ordem da natureza
Quase ao final de sua obra no penuacuteltimo paraacutegrafo do livro onze Louis Le Roy
arrisca um prognoacutestico De maneira anaacuteloga ao encerramento da Repuacuteblica de Ciacutecero
o humanista cria uma seacuterie de imagens apocaliacutepticas calculadas como comentou
Gundersheimer para ldquocausar arrepios na espinha dos leitoresrdquo594
Eu prevejo guerras por toda a parte brotando no interior
e no estrangeiro facccedilotildees e heresias levantando-se para
profanar todo o humano e o divino que possam
encontrar fomes e pestes ameaccedilando os mortais a
ordem da natureza a regra dos movimentos celestes e a
harmonia dos elementos rompendo-se enquanto por um
lado enchentes ocorrem e por outro temos calor
excessivo e terremotos violentos Prevejo tambeacutem o 592 ldquoMais que toutes viennent agrave finir leurs cours dedans la reuolutions du grand an Et que quand lvne
vient agrave finir lautre est preste agrave commencer il se face plusieurs signes estranges en la terre amp au ciel
Parquoy il semble a plusieurs quelque mutation grande approcher considerans les signes apparus puis
quelque temps au ciel eacutes astres eacutes elements amp en toute nature Oncques le Soleil amp la Lune
neclipserent plus apparemment Oncques ne furent veues tant de Cometes amp autres impressios en lair
Oncques la mer amp les riuieres ne desborderent si violemment Oncques ne furent ouys tels tremblement
de terre Oncques ne nasquirent tant de monstres amp si hideux () Aussi na lon veu de memoire
humaine tant de mutations amp si frequentes aduenueumls eacutes paiumls gens meurs loix polices religions Le
cours du Soleil nest plus tel quil estoit anciennement ny les poincts mesmes des Solstices amp
Equinocces ains depuis quatorze cens ans que vesquit Ptolomee trasdiligent obseruateur des affaires de
lvnivers il est plus prochain quil nestoit lors de la terre enuiron douze degrez () Dauantage lon dict
que toutes les parties du Zodiaque amp les signes entiers ont change leurs lieux amp que la terre est remuee
de sa premiere situation nestant entierement comme elle estoit parauant le centre de lunivers ()
Aucuns aussy (comme Hipparque Astrologie fort estimeacute entre les Grecs) ont mis en auant que les
mouuements celestes nont quelquefois agrave lopposite amp que les cours des astres changeront deuenant
lOrient Occident amp le Midy Septentrion Cependant la continuation de la vicissitude que voions cy bas
consiste en la cause mouuante amp en la matiere premiererdquo Viciss I 4 593 ldquoOr est la varieteacute amp vicisstude plusgrande en lhomme quen nulle autre chose () que par lame
changeant de meurs coustumes opinions appetis plaisirs douleurs craintes esperancesrdquo Idem I 10 594 GUNDERSHEIMER op cit p 116
191
universo se aproximando do fim por uma ou outra forma
de desregramento trazendo consigo a confusatildeo de todas
as coisas e levando-as de volta ao seu estado anterior de
caos 595
Natildeo estava na pauta da Vicissitude se transformar em um tratado escatoloacutegico
No paraacutegrafo seguinte seu autor lembra que a despeito de tudo que os fiacutesicos da
eacutepoca diziam quanto agraves causas e leis fatais do mundo ldquotodos os eventos dependem
principalmente da providecircncia divina que estaacute acima de toda a naturezardquo e que
apenas ela sozinha sabe o tempo em que tudo isso pode ocorrer ldquoAs pessoas de boa
vontade natildeo deveriam se assustarrdquo conclui ldquomas tomar coragem trabalhando com
cuidado nas vocaccedilotildees a que foram chamadasrdquo 596 Na verdade Louis Le Roy fora
tudo menos um pessimista O suposto Toynbee ou Spengler de seu tempo ndash como
qualificou uma notoacuteria estudiosa do hermetismo renascentista ndash tambeacutem faria no
deacutecimo livro de sua obra maacutexima um balanccedilo fortemente favoraacutevel ao seacuteculo em que
viveu comparando-o com outras eras ilustres597 O voraz leitor dos antigos e haacutebil
feitor de paralelos era em igual medida um defensor dos modernos Uma das
primeiras a falar em progressos a erudiccedilatildeo de Le Roy ldquoencontra sua justificaccedilatildeo
uacuteltima na proacutepria asserccedilatildeo de que amanhatilde ela pode ser superadardquo 598 O progresso
sobre o qual escrevia ndash o movimento que tendia a exonerar a agecircncia humana ndash
dependia ainda dos ciclos de uma natureza que natildeo havia ldquoexaurido sua forccedilardquo e a
qual permitia aos homens ldquodar agrave luz a inovaccedilotildees genuiacutenasrdquo599 Eacute claro que isso natildeo o
595 ldquoIe preuoy guerres de toute pars sourdre intestines amp foraines factioacutes amp heresies srsquoefmouuoir qui
prophaneront tout ce que trouueron de diun amp humain famines amp pestes menasser les mortels lrsquoordre
de nature reiglement des mouuemeacutes celestes amp conuenance des elements se rompant drsquovn costeacute
aduenir deluges de lrsquoautre ardeurs excessius amp tremblemens tref-violents Et lrsquovunivers approchat de
la fin par lrsquovn ou lrsquoautre desreiglement emportant auec foy la confusion de toutes choses amp les
reduisant agrave leur ancient chaosrdquo Viciss XI 114 Grifos meus 596 ldquoParainsi combien que ces choses procedente agrave lrsquoaduis des Phisiciens selon la loy fatale du monde
amp ayent leurs causes naturelles Toutefois les euenemens drsquoicelles dependente principalement de la
prouidence diuine qui est par dessus toute nature amp sccedilait seulle les temps prefix eacutesquels douient
eschoir Parquoy ne srsquoem doiuent esbahir les gens de bonne volonteacute ains plustot prendre courage
trauaillant soigneusement chacun em la vaccation ougrave il est appelleacute ()rdquo Viciss XI 114 597 O paralelo com Toynbee e Spencer foi feito na deacutecada de 60 em uma resenha da obra de
Gundersheimer por YATES Frances A The Life and Works of Louis Le Roy By Werner L
Gundersheimer Librairie Droz Geneva New York Review of Books August 24 1967 598 GUNDERSHEIMER op cit p 121 Franccedilois Hartog viu na Vicissitude um ponto de vista que reflete
mudanccedilas na relaccedilatildeo com o tempo o qual deixaria de ser visto como fundamental ou uniformemente
decadente ldquoHaacute progressosrdquo escreveu Hartog ldquoou mais exatamente haacute progressordquo no tempo
Progressos que formam uma espeacutecie de senoacuteide que natildeo eacute ldquonem naturalmente contiacutenua nem
indefinida nem uniformerdquo embora o graacutefico da decadecircncia tambeacutem natildeo o fosse HARTOG Anciens
Modernes Sauvages 2005 p 36-37 599 Anthony Grafton por sua vez disse que Louis le Roy ldquoargumentou tatildeo cedo quanto em 1542 que a
natureza natildeo havia exaurido sua forccedila e que o homem poderia ainda produzir inovaccedilotildees genuinasrdquo
GRAFTON What was history 2007 cap 3 sp proacuteximo a nota 75
192
impediu ndash ainda que sobre uma tela bem diversa ndash de pintar as partes finais de sua
cosmologia nas mesmas cores do chamado moral com que Cicero encerrou o Sonho
de Cipiatildeo
Ainda no seacuteculo XVI as primeiras escolas foram criadas no Brasil tendo
membros da Companhia de Jesus entre seus primeiros professores Quinze dias depois
de aportarem ao lado de Tomeacute de Souza em 1549 membros da ordem fundaram a
ldquoEscola de ler e Escreverrdquo Em 1556 criaram o coleacutegio de Todos os Santos para um
ano depois construiacuterem outro no Rio de Janeiro e em 1558 mais um em Olinda 600
Nos seus cursos de artes os padres ensinavam matemaacutetica fiacutesica loacutegica eacutetica e
metafiacutesica e entre 1575 e 1578 enquanto Le Roy escrevia seu tratado sobre a
Vicissitude o Coleacutegio da Bahia comeccedila a conferir os primeiros graus de Bacharel e de
Mestre em Artes601 Apesar dos saberes celestes natildeo figurarem em seus curriacuteculos
alguns professores eram versados nessas artes e permaneceram cultivando-as em
terras tropicais 602
Parece ter sido o caso deacutecadas mais tarde de Paulo da Costa professor de
Padre Antocircnio Vieira (1608-1697)603 Vieira estudou filosofia natural no Coleacutegio da
Bahia entre os anos de 1628 e 1631 e segundo suas proacuteprias palavras foi um aluno
bastante aplicado tendo preparado de punho uma suacutemula filosoacutefica604 Aleacutem de
Imperador da liacutengua portuguesa no ceacutelebre dizer de Fernando Pessoa o padre fora
tambeacutem tradutor e diplomata da voz divina Mas ela natildeo vinha lhe fazer menccedilatildeo de
uma sarccedila ardente Em 1695 um cometa foi avistado na Cidade do Salvador Vieira
no incanccedilaacutevel papel de pregador apressa-se para redigir um longo juiacutezo sobre o
fenocircmeno que atento a leitura dos antigos e dos pais da Igreja considerava como um
portento maleacutefico Natildeo queria no entanto reivindicar o estatuto de uma anaacutelise
astronocircmica desinteressado que estava em definir a natureza material do cometa
medir-lhe as distacircncias tomar-lhe os tamanhos e precisar seus formatos Fez tambeacutem
600 LEITE Serafim As Primeiras Escolas do Brasil In Paacuteginas de Histoacuteria do Brasil col ldquoBrasilianardquo
vol 95 Companhia Editora Nacional 1937 p 39 601 ____________ Histoacuteria da Companhia de Jesus no Brasil Tomo I Rio de Janeiro Livraria
Civilizaccedilatildeo Brasileira 1938 p 75 602 MORAES Abrahatildeo A Astronomia no Brasil Usp 1984 p 17 603 Sobre Padre Antocircnio Vieira em particular (pp 140-141) assim como a respeito da teoria da
influecircncia celeste portuguesa em geral sigo CAROLINO Luiacutes Miguel Ciecircncia Astrologia e
Sociedade a Teoria da Influecircncia Celeste em Portugal (1593-1755) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian
Porto 2003 604 LEITE Serafim Histoacuteria da Companhia de Jesus no Brasil Tomo VII op cit p 222
RODRIGUES Francisco Histoacuteria da Companhia de Jesus na Assitecircncia de Portugal Porto
Apostolado da Imprensa 1931-1950 Tomo III vol I p 134-135
193
uma ressalva aos juiacutezos astroloacutegicos criticando na esteira das sucessivas
condenaccedilotildees papais o caminho judiciaacuterio essa inuacutetil e vatilde parte da nobre arte que
ldquocostuma entreter os discursos e enganar as esperanccedilasrdquo grave crime contra a
providecircncia e mais importante um claro ldquodesprezo pelos seus avisos taotilde manifestosrdquo
605 Sim um aviso Deus a ecoar Agostinho ldquoauthor amp governador do Universordquo
envia-nos sobre as asas de um anjo essa ldquoportentosa figurardquo Motivo pelo qual ldquoao
juizo do cometa interpretadordquo Vieira daria o ldquoSegundo nome de voz de Deosrdquo 606
Muitos em seu tempo jaacute lhe pareciam increacutedulos Entre alguns se notava a
ousadia de observar os cometas meramente atraveacutes de ldquocausas naturaesrdquo sem neles
reconhecer ldquooutro mysterio ou documento mais altordquo607 De fato alguns anos antes
entre marccedilo de 1680 e fevereiro de 1881 a passagem de um cometa inspirou um
combatido represente da Repuacuteblica das Letras a redigir alguns Penseacutees Diverses Em
1682 Pierre Bayle utilizando registros telescoacutepicos como oportunidades editoriais
promovia em paacuteginas impressas a querela dos ceacuteticos contra os superticiosos
Criticava os astroacutelogos chamava agrave palavra os catoacutelicos associando-os ao paganismo
em seus diaacutelogos e de laacute agrave ignoracircncia ancestral608
605ldquoNatildeo se chama este juizo Astronomico porque natildeo he nosso intento examinar ou diffinir a natureza
a materia o nascimento o lugar as distancias os aspectos os movimentos nem algumas das outras
circunstacircncias em que curiosamente se empregravegaotilde as observaccedilotildees da Astronomia (hellip) Tambem se natildeo
chama Astrologico este juizo porque reputando nograves com os mais Sabios amp prudentes professores da
mesma Arte quam inutil instructosa amp vatilde seja aquella parte da Astrologia que com o nome de
Judiciaria costuma entreter os discursos amp enganar as esperanccedilas ou fantasias dos homens naotilde soacute
seria crime cotildentra a Providencia Altissima mas desprezo pelos seus avisos taotilde manifestos (hellip)rdquo
VIEIRA Antonio Voz de Deos ao mundo a Portugal amp aacute Bahia Juizo do cometa que nella foi visto
em 27 de Outubro de 1695 amp continua ateacute hoje 9 do Novembro do mesmo anno In Sermoens e Varios
Discursos () da Companhia de Jesu Pregravegador de Sua Magestade Tomo XIV Obra posthuma
dedicada a purissima Conceyccedilam da Virgem Maria Nossa Senhora Lisboa Valentim da Costa
Deslandes 1710 p 225-226 doravante citada como Voz de Deos 606 Voz de Deos 226 607 A tradiccedilatildeo representada pelos tratados de cometologia da primeira modernidade apresentava os
registros de avistamentos de cometas como documentos ou evidecircncias relacionadas a eventos
sublunares unindo como tambeacutem faratildeo outras formas de de cronologia os meacutetodos da filologia agraves
observaccedilotildees astronocircmicas Com frequecircncia os avistamentos eram organizadas em uma sequecircncia de
datas e associados a algum desastre ou fato traacutegico morte de reis pestes fomes guerras etc As
dificuldades poliacuteticas do seacuteculo XVI asseguravam que a apariccedilatildeo de um cometa pudesse logo ser
associada a algum fato negativo Por sua vez a concepccedilatildeo aristoteacutelica de que os cometas seriam
exalaccedilotildees terrestres na atmosfera facilitava seu uso meacutedico climaacutetico e poliacutetico Como escreveu Adam
Mosley ldquoos cataacutelogos de cometas dos seacuteculos XVI e XVII testemunham ateacute que ponto a historia como
uma forma de investigaccedilatildeo atravessava a fronteira moderna entre os reinos natural e socialrdquo
MOSLEY 2013 p 18 608 BAYLE Pierre Penseacutees Diverses agrave lrsquooccasion drsquoun comegravete In Oeuvres Diverses Tome III parte
I La Haye Compagnie des libraires 1737 John Robertson chegou a ver nesse texto de Bayle a origem
das discussotildees que levariam ao desenvolvimento do iluminismo em Naacutepoles e na Escoacutecia a partir da
asserccedilatildeo de que uma sociedade construiacuteda por ateus era natildeo apenas concebiacutevel como tambeacutem possiacutevel
ROBERTSON John The Case for the Enlightenment Scotland and Naples 1680ndash1740 Cambridge
Cambridge University Press 2005 principalmente p 130 apud POCOCK J G A Historiography and
194
ldquoNos dias que precederagraveotilde o Juizo finalrdquo e nesse tom dirige Vieira a palavra
aos ceacuteticos ldquohaveraacute alguns homens tatildeo increacutedulos que zombem dos sinaesrdquo Mas os
efeitos desses pressaacutegios castigaratildeo toda obstinaccedilatildeo ldquopor natildeo quererem dar credito aos
avisos do ceordquo 609 Na leitura que deveria fazer eco a via media os cometas satildeo
efeitos de uma causa secundaacuteria criados ex nihilo pela vontade da Primeira Causa
como vozes da Providecircncia Igual a muitos de seu tempo o jesuiacuteta estava convencido
de que esses fenocircmenos celestes eram cada vez mais frequentes ldquoporque em nenhua
historia sagrada ou profana se faz memoria ou menccedilatildeo de que fosse visto Cometardquo
excetuando-se o ldquoprimeiro anno da Olympiada setenta amp seterdquo quando os gregos
avistaram hoje sabemos o cometa Halley por volta de 466 AC610
Entatildeo por que os antigos natildeo registravam esses eventos Caso aceitemos
seguir a leitura como o faz o sacerdote de textos atribuiacutedos a Berossus deveriacuteamos
acreditar que os antigos conheciam bem a astrologia essa ciecircncia que receberam ldquoos
Chaldeos de Adamrdquo e o patriarca pessoalmente de Deus Seria negligecircncia ou
ldquodesatenccedilatildeo dos histoacutericosrdquo Falta de ouvidos agrave palavra divina Ora responderia
Vieira natildeo os anotavam porque ldquoem todas aquelas idades natildeo houve Cometasrdquo tendo
o Senhor reservado ldquoeste modo de linguagem para falar por ella ao mundo nos tempos
posteriores destinados a sua Providenciardquo Mas tatildeo logo cessaram os profetas apoacutes a
vinda do Cristo e a ldquomesma Chronologia dos temposrdquo vem confirmar toda conjectura
pontuada pela apariccedilatildeo das ceacutelebres estrelas novas611
As estrelas novas vieram ao mundo oferecer alertas e instigar conselhos
Mundo que poderia ser pensado como natural ldquoou como mundo poliacuteticordquo Enquanto
pressaacutegios da natureza os cometas anunciam pestes fomes secas enchentes
erupccedilotildees de fogo e tremores de terra Os avisos do segundo tipo que parecem lhe
interessar mais diziam respeito aos governos e a sua ruiacutena poliacutetica dividindo-se em
relaccedilatildeo a trecircs questotildees sublunares a guerra a mudanccedila de impeacuterios e a morte de
priacutencipes Atraveacutes da leitura dos historiadores antigos e da era cristatilde Padre Antonio
Enlightenment a view of their History In Modern Intellectual History 51 Cambridge University
Press 2008 p 84 609 Voz de Deos 226-227 610 () porque em nenhuma historia sagrada ou profana se faz memoria ou menccedilatildeo de que fosse visto
Cometa senatildeo no primeiro anno da Olympiada setenta amp sete que responde aos anos quatrocentos amp
oitenta antes do nascimento de Christo E daqui se poacutede formar hum novo amp naotilde vulgar argumento de
que se prova que os Cometas como dizia saotilde liacutengua ou voz de Deos o qual desde aquelle tempo
comeccedilou a falar amp avisar aos homens por meyo destes sinais do Ceo costumando de antes fallarlhes
por outros modos como diz S Paulo muytos amp diversos () Voz de Deos 227 611 Voz de Deos 228-229
195
Vieira relaciona ndash em um esboccedilo cronoloacutegico que lembra os esforccedilos conjuncionistas
de Pierre DrsquoAilly ndash a observaccedilatildeo dos cometas agrave eclosatildeo de conflitos Sua narrativa
comeccedila quatro seacuteculos antes da vinda do Salvador quando um corpo celeste
incandescente anunciaria a guerra de Xerxes contra a Greacutecia Mais tarde as batalhas
de Estilicatildeo entre os Getas tambeacutem seriam anunciadas por um fenocircmeno similar
assim como a luta de Carlos Martel frente aos sarracenos e de Lotaacuterio a seus
irmatildeos612
O segundo tipo de pressaacutegio relativo ao mundo poliacutetico dizia respeito agraves
mudanccedilas de impeacuterios ldquoNatildeo haacute cousa mais vulgar na opiniatildeo commuardquo acreditava o
padre ldquonem mais celebre nas Escriturasrdquo ndash mesmo que fosse essa uma posiccedilatildeo ousada
e francamente contraacuteria como vimos no iniacutecio deste capiacutetulo ao que pensava
Agostinho Alexandre vencendo Dario Otaacutevio derrotando Antocircnio a Peacutersia
conquistada pela Araacutebia sagraccedilatildeo de Carlos Magno levando o impeacuterio agrave Germacircnia
tambeacutem a tomada de Constantinopla pelos Latinos em 1204 todas as grandes
mudanccedilas poliacuteticas teriam sido acompanhadas com precisatildeo pelo avistamento de
cometas613 Vieira encontra espaccedilo para citar as tabelas conjuncionistas de Andrea
Argoli ceacutelebres entre os lusitanos com quem ldquotodos os Mathematicos antigos
concordaratildeordquo referindo-se ao encontro dos dois gigantes no ano de 1683 ldquoAssim
refere Argolo nas suas Efemeridesrdquo fez dizer o jesuiacuteta ldquotendo conjunccedilatildeo superior de
Saturno e Juacutepiter no triacircngulo de fogordquo grandes modificaccedilotildees em questotildees gerais e
nas propriedades ocorreriam facilmente614 Seguindo de muito perto as palavras de
Joatildeo Damasceno sacerdote siacuterio dado a divagaccedilotildees celestes Vieira lembra a uacuteltima
categoria de avisos que seriam trazidos na cauda das estrelas Chrysorrhoas o Boca
de Ouro ldquodistintamente affirma que os Cometas saotilde instituidos por Deos para
significar a morte dos Reysrdquo Unindo como bom jesuiacuteta o estudo dos doutores da
612 Voz de Deos 232-235 613 Voz de Deos 336 614 ldquoE se as Estrellas tem sobre ele algum poder ou significaccedilatildeo todos os Mathematicos antigos
concordaratildeo de Saturno amp Jupiter que soy no anno de oytenta amp trecircs deste seacuteculo haveraacute grande
mudanccedila de domiacutenios Assimo refere Argolo nas suas Efemerides sendo muyto para notar que natildeo faz
outra notaccedilatildeo em todas ellas as palavras com que o diz satildeo as seguintes fol 363 Cur celeretur
conjunctio superiorum Saturni amp Jovis in trigonoigneo antiquorum consensis mutationes magna
contingente amp generales constitutiones ac de facili dominiorum mutationesrdquo Voz de Deos 336 Para o
texto citado ver ARGOLO Andrea Avectore Exactissimae Caelestivm Motvvm Ephemerides Ad
Longitvdinem Almae Vrbis Et Tychonis Brahe Hypotheses AC Deductas Caelo Accurat
Observationes AB Anno 1641 Ad Annum 1700 () Praeter Stellarum Fixarum Catalogum Extat
Tabula Ort Encontrei citaccedilatildeo das efemeacuterides de Argolo tambeacutem em outro autor portuguecircs do seacuteculo
XVII TEIXEIRA Antonio Epitome das noticias Astrologicas para a Medicina Lisboa Officina de
Ioam da Costa 1670 p 340
196
Igreja com observaccedilotildees astronocircmicas eacute a vez de comemorar ldquoKeplero na sua
Philologiardquo Kepler havia comentado o medo que Carlos V sentiu ao avistar a estrela
nova de 1586 O imperador no entanto viveu mais alguns anos O que poderia fazer
o governante pio frente a uma sentenccedila de morte senatildeo arrepender-se e ajoelhar-se
diante de Deus Imitem a Carlos diria Vieira e que nenhum ldquose fie de sua idade nem
se engane com seu poderrdquo Assim poderatildeo sobreviver615
A Voz de Deus tambeacutem clamava seu chamado moral aos reinos ldquoA Primeyra
cousa que diz a Portugal () he que entenda () que este Cometa fala
particularmenterdquo com ela Lembre-se diz o pregador do astro que apareceu nos ceacuteus
em 1580 anunciando uma das maiores trageacutedias de sua histoacuteria ldquomorreo Dom
Henrique amp o Reynordquo fora ldquoherdado sem direyto comprado sem preccedilo amp
conquistado sem Guerrardquo Vieira inteacuterprete da voz de Deus natildeo evoca apenas a
memoacuteria do cativeiro eacutepoca de uniatildeo forccedilada sob o julgo habsburgo e de insatisfaccedilatildeo
da aristocracia lusitana Fala tambeacutem em pressaacutegios de esterilidade de secas de fome
e todo o tipo de ldquoestragos nos poubresrdquo 616 Palavras endereccediladas a Bahia eacute claro
igualmente chegavam na poeira das estrelas Por mais de dez dias avistado na costa
brasileira o portento de 1695 rogava segundo Antonio Vieira pela ldquoreformaccedilatildeo da
justiccedilardquo ldquomelhora dos costumes amp tal emenda nas vidasrdquo O terror causado pelos
avistamentos seria como nos diz um bom pressaacutegio exortando os fieacuteis a largarem os
ldquopecados escandalososrdquo Deus eterno e imutaacutevel ameaccedila os pecadores mas
ldquoentenderdquo conclui Vieira que Ele ldquosoacute te castigaragrave () se te natildeo emendaresrdquo 617
Educado no seio da Companhia de Jesus Padre Antonio Vieira tanto no juiacutezo
do cometa quanto em inuacutemeros sermotildees expressa uma formaccedilatildeo que teve por base os
Commentarii Collegi Conimbrencis apostilhas de filosofia natural aristoteacutelica
615 Voz de Deos 240 616 () herdado sem direyto comprador sem preccedilo amp conquistador sem Guerra por estes tres titulo (ou
por outros no Tribunal Divino mais justos) ficou cativo amp sugeyto ao Rey estranho naotilde por menos
espaccedilo que de sessenta anos inteyros (hellip) As novas q aqui chegaacuteratildeo ultimamente de Portugal saotilde de
esterilidade amp fome mas como a fome faz os seus effeytos amp estragos nos poubres amp nos pequenos
amp a Sybilla falla dos grandes poderosos amp illustres fique a explicaccedilatildeo amp applicaccedilatildeo deste oraculo a
Lisboa () Voz de Deos pp 241-251 617 ldquoEmfin Bahia que se veja em tit al reformaccedilatildeo de justice tal melhora de costumes amp tal emenda
nas vidas que assim como hoje te quadra o nome de Civitas vanitatis assim mereccedilas o de Civitas justi
() E porque a peccados escandalosos amp publicos se deve satisfaccedilatildeo tambem publica veja publicas
penitencias o Ceo em tuas ruas amp publicas deprecaccedilotildees Christo Senhor (hellip) confia em Deos cuja
condiccedilatildeo se natildeo muda que se te ameaccedila peccadora natildeo te castigaraacute penitente Entende que o que
pertende Deos com o terror deste Cometa natildeo he castigarte senatildeo emendarte amp soacute te castigaragrave se te
natildeo emendaresrdquo Voz de Deos pp 263-264
197
preparadas ao longo do seacuteculo XVII618 A comparaccedilatildeo entre Le Roy e o Imperador
natildeo se daacute apenas pelo proselitismo providencialista e moral que ambos os discursos
levam como marca Os dois autores supracitados expressam cada um a seu modo
uma apreensatildeo cosmoloacutegica frente a um desregramento dos ciclos naturais
entendidos ora como sinal do fim dos tempos ora como anuacutencio de desgraccedilas
seculares Ou como deveriacuteamos entender as preocupaccedilotildees do padre jesuiacuteta quando
inspirado por questotildees debatidas nos bancos escolares da ordem imagina tendo a
Corte como auditoacuterio um cosmos desprovido de movimento Valendo um Louis le
Roy agraves avessas contraacuterio e dissimilar natildeo eacute a percepccedilatildeo de uma aceleraccedilatildeo dos
ciclos naturais mas seu exato oposto que inflama a alma racional e a (natildeo) contagem
do tempo
Quando o Sol parou agraves vozes de Josueacute aconteceram no
mundo todas aquelas consequecircncias que parando o
movimento celeste consideram os filoacutesofos As plantas
por todo aquele tempo natildeo cresceram as qualidades dos
elementos e dos mistos natildeo se alteram a geraccedilatildeo e a
corrupccedilatildeo com que se conserva o mundo cessou as
artes e os exerciacutecios humanos de um e outro hemisfeacuterio
estiveram suspensos os antiacutepodas natildeo trabalhavam
porque lhes faltava a luz os de cima cansados de tatildeo
comprimido dia deixavam o trabalho estes pasmados de
verem o Sol que se natildeo movia aqueles tambeacutem
pasmados de esperarem pelo Sol que natildeo chegava
cuidavam que se acabara para eles a luz imaginavam
que se acabava o mundo tudo eram laacutegrimas tudo
assombros tudo horrores tudo confusotildees619
Como notou Luiacutes Miguel Carolino Vieira apropriava-se das teses presentes no
Cursus Philosophicus de Francisco Soares que por sua vez seguiam os Commentari
de Coimbra a respeito do De Caelo Caso o movimento circular dos astros deixasse de
618 Vieira considerou a autoridade dos Comentarii ldquoa mais autorizada e elegante que ateacute agora apareceu
no mundordquo Ver CAROLINO 2003 p 152 Para uma lista dos comentaacuterios ver p 19 Vieira
provavelmente leu o Cursus Philosophicus de Rodrigo de Arriaga publicado na Antueacuterpia em 1632
Sobre essa questatildeo ver LEITE Serafim Histoacuteria da Companhia de Jesus no Brasil vol VII p 222 619 VIERA Antonio Sermatildeo do Esposo da Matildee de Deus S Joseacute In Sermotildees XV tomos Porto Lello
amp Irmatildeo 1959 Vol VI pp 389-390 Grifos meus O compromisso poliacutetico de Vieira neste sermatildeo era
legitimar o Duque de Braganccedila frente aos seus rivais ao trono portuguecircs D Joatildeo IV era neto por
linhagem matriarcal de Dona Catarina e Vieira argumentava que a Providecircncia possuiacutea em certos
momentos da histoacuteria predileccedilatildeo pela prole masculina O exemplo era buscado em Jesus que teria
herdado o reino de Davi atraveacutes de Maria e natildeo de Joseacute Sobre essa questatildeo ver BUESCU Ana Isabel
Sentimento e Esperanccedilas de Portugal In A Restauraccedilatildeo e sua eacutepoca Lisboa Cosmos 1993 e
tambeacutem CUNHA Mafalda Soares da A questatildeo juriacutedica na crise dinaacutestica In Histoacuteria de Portugal
No Alvorecer da Modernidade Lisboa Estampa 1997
198
se fazer notar nos ceacuteus os ciclos de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo seriam suspensos na terra e
com ele o comportamento natural dos corpos sublunares verteria suas regras na mais
pura desordem620 Sem efemeacuterides para marcar a mudanccedila natildeo poderia haver vida e
sem ela almas para contar o tempo Imagens escatoloacutegicas eram lugares comumente
evocados na retoacuterica do Padre Antonio Vieira Mas sua teologia natural da histoacuteria se
pudermos emprestar novamente a concepccedilatildeo de Pomian encontrou senatildeo uma paacutelida
imagem no projeto inacabado que visava reciclar as profecias de Bandarra de
Trancoso e que natildeo poderia existir sem se basear em uma tensatildeo621 Enquanto
profecia suas palavras certamente ultrapassavam o ldquohorizonte de experiecircncia
calculaacutevelrdquo destruindo o tempo ldquode cujo fim ela se alimentardquo 622 Como prognoacutestico
nutria-se da situaccedilatildeo poliacutetica do qual era uma instacircncia de accedilatildeo permitindo-se mirar
para antes do fim dos tempos uma pax lusitana a ordenar a cristandade Como em
Louis le Roy lia nos astros um uso do futuro ainda que em nome de um passado
uma advertecircncia escatoloacutegica pela manutenccedilatildeo dos bons costumes cristatildeos
incentivada agora pela imagem do impeacuterio glorioso
Talvez um dos uacuteltimos resquiacutecios daquilo que o autor de A Ordem do Tempo
viu em Pierre drsquoAilly como um ldquobeco sem saiacutedardquo alguns dos escritos que renderiam
argumentos aos inquisidores contra Vieira portavam consigo a crise das formas
aristoteacutelicas de representaccedilatildeo da natureza delimitando os limites da via media tomista
e com ela da proacutepria cosmologia medieval623 Se com o heliocentrismo e o retorno
aos textos claacutessicos de Ptolomeu a astrologia sofreu propostas de reforma com o
sucesso acadecircmico das teses de Sir Isaac Newton ao longo dos seacuteculos seguintes a
620 ldquo() natildeo hesitava em tomar para si a posiccedilatildeo de Francisco Soares segundo a qual se os astros
cessassem a sua operaccedilatildeo natildeo apenas por intermeacutedio do movimento mas ainda pela influecircncia cessaria
na verdade a reproduccedilatildeo dos seres vivosrdquo [Si Astra non solum cessarent a motu sed etiam ab influxo
cessarent quidem generationes viventium] SOARES Francisco Cursus Philosophicus Tomus
secundus continens universam doctrinam in Libros Aristotelis Physicorum de Coelo Meteoris et
Parvis Naturalibus Eacutevora ex typographia Academia 1668 (1651) Apud CAROLINO 2003 158 621 Sobre o uso das profecias de Bandarra na obra de Padre Antonio Vieira ver MANDUCO
Alessandro Histoacuteria e Quinto Impeacuterio em Antocircnio Vieira In Topoi v 6 n 11 Jul-dez 2005 p 252
Bandarra de Trancoso acusado pela inquisiccedilatildeo teria tomado seu messianismo poliacutetico dos judeus ver
ANTOcircNIO Seacutergio Interpretaccedilatildeo Natildeo Romacircntica do Sebastianismo In Obras Completas Ensaios
Tomo I Ed Claacutessicos Saacute da Costa 2ordf ediccedilatildeo Lisboa pp 239-271 apud NOVISNKY Anita Padre
Antocircnio Vieira a Inquisiccedilatildeo e os Judeus Novos Estudos Cebrap n o 29 Marccedilo de 1991 p 173 Para
quem ldquoa prisatildeo de Vieira pela Inquisiccedilatildeo estaacute ligada agrave sua mensagem poliacutetica agrave sua criacutetica social e aos
seus escritos a favor dos cristatildeos-novosrdquo 622 KOSELLECK Reinhart O Futuro Passado dos Tempos Modernos In Futuro Passado
Contribuiccedilatildeo agrave semacircntica dos tempos histoacutericos Rio de Janeiro Contraponto 2006 p 33 623 Sobre o modelo de Pierre drsquoAilly como um ldquobeco sem saiacutedardquo ver POMIAN Krzysztof Astrology
as a Naturalistic Theology of History 1986 p 43
199
teoria da influecircncia celeste receberia enfim a sua paacute de cal624 A percepccedilatildeo de uma
desordem da natureza deslocou consigo a necessidade de reformular suas formas de
representaccedilatildeo Ela insuflou expectativas olhares aos ceacuteus e ao horizonte
acompanhando a libertaccedilatildeo de toda uma seacuterie de modalidades da experiecircncia do
tempo Em uma de suas obras da mesma fase do Clavis Prophetarum Padre Antonio
Vieira jaacute expressava essa inquietaccedilatildeo
O tempo como o Mundo tem dois hemisfeacuterios um
superior e visiacutevel que eacute o passado outro inferior e
invisiacutevel que eacute o futuro no meio de um e outro
hemisfeacuterio ficariam os horizontes do tempo que satildeo
estes instantes do presente que iamos vivendo onde o
passado se termina e o futuro comeccedila desde este ponto
tendo seu principio a nossa histoacuteria625
Fascinado pelo sol como metaacutefora de Cristo a escrita de Vieira rumou ao
horizonte e esperanccedilosa em se iluminar pelos raios dourados da verdade e da vida
fez o saacutebio observar descendo agraves celas da inquisiccedilatildeo a sua inacapada Histoacuteria do
Futuro ter o mesmo triste fim das asas de Iacutecaro626 O bem aventurado infante faleceu
antes que pudesse contar jubileus e com ele saudou-se em adeus o sonho do Quinto
Impeacuterio A tensatildeo que as interpretaccedilotildees escatoloacutegicas do tempo refletiam ndash abrindo o
horizonte a um porvir mesmo que em nome da restauraccedilatildeo de uma moral passada ndash jaacute
foi observada enquanto parte do processo de ldquodescobertardquo da dimensatildeo histoacuterica
Segundo essa leitura o ldquoencurtamento do tempordquo teve como surpreendente efeito a
aceleraccedilatildeo da proacutepria histoacuteria627
624 Tal eacute a tese claacutessica de THORNDIKE Lynn The true place of astrology in the History of Science
op cit 1955 Thorndike argumenta que um dos efeitos da revoluccedilatildeo cientiacutefica foi a substituiccedilatildeo da
influecircncia celeste como lei geral da natureza pela teoria da gravitaccedilatildeo universal O debate acadecircmico
a respeito da superaccedilatildeo da filosofia natural peripateacutetica eacute no entanto bem mais vasto e sua anaacutelise
foge as minhas pretensotildees Edward Grant dedicou-se a estudar as reaccedilotildees tradicionalistas aos modelos
heliocecircntricos e mecacircnicos Para o estudioso o sistema aristoteacutelico ldquocontinuou a ganhar adesatildeo da
esmagadora maioria das classes educadas do seacuteculo XVII o seu uacuteltimo como um sistema creditaacutevelrdquo
GRANT Edward In Defense Of The Earths Centrality and Immobility Scholastic Reaction To
Copernicanism In The Seventeenth Century American Philosophical Society 1984 p 3 625 VIERA Antonio Histoacuteria do Futuro Livro Ante-Primeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees e Publicaccedilotildees
Brasil 1937 p 37 A seguir Vieira explica o tiacutetulo de sua obra ldquoE porque havemos de distinguir
tempos e annos signalar proviacutencias e cidades nomear naccedilotildees e ainda pessoas quanto o sofrer a
mateacuteria por isso sem ambiccedilatildeo nem injuria de ambos os nomes chamaremos a esta narrativa histoacuterica
histoacuteria do futurordquo Idem p 40 626 Para um alonga lista das imagens que associam o sol a Cristo no sermonaacuterio de Viera ver
CAROLINO 2003 p 154 nota 67 627 () if one observes the topos of the eschatological foreshortening of time in terms of its historical
interpretations one arrives at the astonishing finding that from the initially suprahistorical
foreshortening of time came a gradual acceleration of history itselfrdquo KOSELLECK Reinhardt Some
200
De todas as profecias astroloacutegicas arriscadas ao longo do renascimento e da
primeira modernidade talvez a mais impressionante natildeo seja mesmo a referente ao
fatiacutedico projeto de um Quinto Impeacuterio tema final das previsotildees de Vieira e topos
recorrente nos pregadores da restauraccedilatildeo628 Pierre drsquoAilly em seu tratado sobre a
concordacircncia da verdade astronocircmica e da narraccedilatildeo histoacuterica jaacute havia lanccedilado
palavras muito mais certeiras Ao prognosticar os movimentos combinados entre
Saturno e Jupiter motor de toda a sua teologia natural da histoacuteria o cardeal anotou o
que seria uma derradeira conjunccedilatildeo entre os dois gigantes ldquoDito isto se o mundo
durar ateacute aquele ano o que soacute Deus sabe aconteceraacute grandes enormes e
surpreendentes mudanccedilas () principalmente na lei e na religiatildeordquo 629 O ano para a
previsatildeo 1789
No percurso iluminista a confusatildeo entre efeitos e causas que as profecias
movimentam nos espiacuteritos seria bem delineada ao longo do combate aos ldquoprogressos
das supersticcedilotildeesrdquo Em busca de uma ldquovocaccedilatildeo legiacutetimardquo Pierre Bayle ergueu a
bandeira da ldquoRepuacuteblica das Letrasrdquo levantando com ela a voz da razatildeo contra todo o
tipo de ldquovisotildeesrdquo e ldquocredulidades popularesrdquo Para o filoacutesofo cujo Dicionaacuterio Histoacuterico
e Criacutetico inspirou a Enciclopeacutedia natildeo haveria profissatildeo melhor capacitada do que a
sua a assumir a tarefa de se tenir a la bregraveche contra as ldquoirrupccedilotildees e desordensrdquo
causadas pela credulidade imoral da idolatria dos supersticiosos630 Poderia-se dizer
que esse eacute um processo que culmina natildeo em Voltaire sequer na Revoluccedilatildeo mas nas
suas memoacuterias Mais tarde a data de 1789 seria lembrada por palavras devedoras da
proacutepria ilustraccedilatildeo natildeo como a chegada do anticristo ou o retorno do messias mas
como mais um dos finais possiacuteveis do tempo biacuteblico e dos ldquosistemas antigosrdquo fosse
para o ecircxtase de uns fosse para o lamento de outros As festas revolucionaacuterias que lhe
seguiram de perto junto a todo seu corroborie vulgaire inversotildees e rituais
Questions Regarding the Conceptual History of ldquoCrisesrdquo In KOSELLECK The practice of
conceptual history timing history spacing concepts Stanford University Press 2002 p 245 628 Sobre essa questatildeo ver MARQUES Joatildeo Francisco A utopia do Quinto Impeacuterio em Vieira e nos
pregadores da Restauraccedilatildeo E topia Revista Electroacutenica de Estudos sobre a Utopia nordm 2 2004 629 DrsquoAILLY Pierre De concordantia astronomie cum hystorica narratione cap 1 e 2 Teoria das
conjunccedilotildees de Saturno e Juacutepiter apud BURON Edmond Essai critique t I p 6i 64-70 96-108 t II
In DrsquoAilly Pierre Imago Mundi op cit 1930 Na passagem traduzida por Buron ldquoLa huitiegraveme aura
lieu en 1789 dit-il lsquoCeci dit si le monde dure encore jusquagrave cette anneacutee-lagrave ce que Dieu seul sait il y
aura de grands nombreux et eacutetonnants changementsdans le monde principalement dans la loi et la
religionrsquordquo 630 Je preacutetends avoir une vocation leacutegitime pour mopposer aux progregraves des superstitions des visions et
de la creacuteduliteacute populaire Agrave qui appartient-il mieux quaux personnes de ma profession de se tenir agrave la
bregraveche contre les irruptions de ces deacutesordres () BAYLE Pierre La Cabale Chimeacuterique ou
Refutation de lrsquoHistoire Fabulouse In Oeuvres Diverses La Haye Par la Compagnie des Libraries
1737 Tomo II Lettre XIII p 681
201
comemorativos logo passariam a ser ordenadas por uma vontade poliacutetica cujos
desiacutegnios natildeo ignoravam a ldquotransferecircncia de sacralidaderdquo 631
ldquoPor volta de 1800rdquo como escreveu Reinhardt Koselleck o proacuteprio
ldquoprogresso se transformou em um genuiacuteno conceito histoacutericordquo vertendo ou
esquecendo o ldquopano de fundo naturalrdquo de algo que ldquopercorre um espaccedilordquo As
efemeacuterides tambeacutem deixariam por volta do mesmo periacuteodo revolucionaacuterio de
pontuar tatildeo somente o movimento das estrelas ao longo dos ceacuteus marcando
igualmente o passo dos homens no percurso de suas vidas sublunares Nessa histoacuteria
particular a ordem do tempo parecia superar a ordem da natureza natildeo tivesse com
isso guardado um detalhe que soava desagradaacutevel aos apoacutestolos do progressismo os
conceitos de ldquodecliacuteniordquo e ldquodecadecircnciardquo mostravam-se mais e mais incapazes ldquode
verter seus significados de fundo natural e bioloacutegico da mesma maneirardquo632 As
imagens da decadecircncia continuariam seguindo uma loacutegica agora humanizada da
geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo a assombrar os homens pelo chamado dos magistrados
morais Chamado que jaacute no seacuteculo XIX teraacute hora marcada com o sublime juacutebilo
organizado no ciclo dos centenaacuterios
631 Ver OZOUF Mona 1976 principalmente cap X un transfert de sacraliteacute pp 317-340 632 ldquoProgress became a modern concept when it shed or forgot its natural background meaning of
stepping through space The figurative reference faded Since around 1800 progress has turned into a
genuinely historical concept while ldquodeclinerdquo and ldquodecayrdquo have not been able to shed their natural and
biological background meaning in the same wayrdquo KOSELLECK Reinhardt Progress and Decline In
The practice of conceptual history op cit 2002 p 221
202
4
Ordem do Tempo
O retorno das efemeacuterides agrave histoacuteria
ldquoTalvez nunca tenha existido um espiacuterito mais saacutebio mais metoacutedico um
loacutegico mais exato do que o Sr Lockerdquo633 Entre 1726 e 1728 Voltaire exilou-se na
Inglaterra Dentre os muitos aspectos da vida e da filosofia insular que seriam
incorporados em suas reflexotildees o problema da inexistecircncia das ideias inatas e do
conhecimento relacionado agrave experiecircncia merecia destaque em seu elogio epistolar ao
autor do Ensaio Acerca do Entendimento Humano E esse era um problema que fazia
referecircncia direta agraves aporias sobre a natureza da alma Desde a antiguidade ou como a
lia o iluminista francecircs os filoacutesofos tentavam entender sem sucesso essa questatildeo O
divino Anaxaacutegoras crente que o Sol era maior do que o Peloponeso a neve negra e os
ceacuteus feitos de pedra afirmava que a alma possuiacutea um espiacuterito aeacutereo e imortal
Diogenes o ciacutenico pensava nela como porccedilatildeo da substacircncia divina Aristoacuteteles a
quem Voltaire natildeo mostrava satisfaccedilatildeo em render longos comentaacuterios jaacute havia sido
explicado ldquode mil maneiras porque era ininteligiacutevelrdquo embora parecesse defender que
o ldquoentendimento de todos os homens fosse uma mesma e soacute substacircnciardquo enquanto
que seus mestres Platatildeo e Soacutecrates tinham sem cessar apregoado o caraacuteter corporal e
eterno das almas634
633 ldquoJamais il ne fut peut-ecirctre un esprit plus sage plus methodique un Logicien plus exact que Mr
Locke ()rdquo VOLTAIRE Treisiegraveme Lettre sur Mr Locke In Lettres eacutecrites de Londres sur les
Anglois et autres sujets Bowyer Londres 1734 pp 91-104 A citaccedilatildeo supracitada figura logo no
iniacutecio da carta 634 ldquoDans la Grece berceau des arts amp des erreurs amp ougrave on pussa si loin la grandeur amp la sotise de
l`esprit humain on raisonnoit comme chez nous sur lrsquoAme () Le divin Anaxagoras agrave qui on dressa
un autel pour avoir apris aux hommes que le Soleil eacutetoit plus grand que le Peloponnese que la neige
eacutetoit noire amp que les Cieux eacutetoient de pierre affirma que lrsquoAme eacutetoit un Esprit aeumlrien mais cependeant
immortel Diogene un autre que celui devint Cinique apregraves avoir eacuteteacute faux monnoyeur assuroit que
lrsquoame eacutetoit une portion de la substance mecircme de Dieu amp cette ideacutee au moins eacutetoit brillante Epicure la
composiot de parties comme le corps () Aristote qursquoon a expliqueacute de mille faccedilons parce qursquoil eacutetoit
inintelligible croyot si lrsquoon srsquoen rapporte agrave quelques uns de ses disciples que lrsquoentendement de tous
les hommes eacutetoit une seule amp mecircme substance () Le divin Platon maicirctre du divin Aristote amp le
divin Socrate maicirctre du divin Platon disoient lrsquoame corporelle amp eternelle Le Demon de Socrate lui
avoit apris sans doute ce qui en eacutetoitrdquo Ibidem pp 92-93 A base das posiccedilotildees platocircnicas eacute encontrada
na doutrina da anamnese a qual defende que todo o aprendizado eacute uma recoleccedilatildeo e que tudo o que
203
Os padres da Igreja repetiriam as trilhas da antiguidade Satildeo Bernardo lido
nas palavras de Mabillon ldquoensina a respeito da alma que apoacutes a morte ela natildeo
enxerga Deus nos ceacuteus mas tatildeo somente conversa com a natureza humana de Jesus
Cristordquo Descartes tambeacutem seguiria esse caminho ainda que tenha substituiacutedo os erros
dos antigos pelos seus proacuteprios ao passo que Malebranche ndash o ldquofiloacutesofo ocasionalrdquo
que escrevia comentaacuterios mais obscuros do que os textos neles comentados ndash delirava
entre ilusotildees de grandeza retoacuterica que admitiam as ideias inatas e faziam ver o proacuteprio
Deus na alma dos homens635 Uma multidatildeo de pensadores assim contribuiram para o
ldquoRomance da Almardquo ateacute que um uacutenico saacutebio e modesto resolveu lhe escrever a
histoacuteria Locke desmontou o inatismo das ideias percorrendo ldquopasso a passo os
progressos de seu entendimentordquo consultando ldquoseu proacuteprio testemunhordquo ou a
ldquoconsciecircncia de seu pensamentordquo636 Consultar o proacuteprio testemunho Para o filoacutesofo
inglecircs essa era uma das tarefas da retenccedilatildeo faculdade da mente ldquoatraveacutes da qual se
faz () progresso em direccedilatildeo ao conhecimentordquo Trata-se da capacidade de guardar
ideias recebidas pela sensaccedilatildeo ou pela reflexatildeo637 A habilidade de retenccedilatildeo eacute
sabemos ou podemos apreender do mundo jaacute existe em noacutes Ver Mecircnon 80a-86c Feacutedon 73c-78b
PLATAtildeO Meno Warminster Aris amp Phillips 1991 PLATAtildeO Phaedrus Cambridge Cambridge
University Press 2011 A opiniatildeo de Voltaire sobre as posicotildees aristoteacutelicas parece controversa Cf De
Anima III 4-7 ARISTOacuteTELES De lrsquoame J Vrin (dir) Paris Organon Librarie Philosophique 1947
ARISTOacuteTELES De Anima In The Complete Works of Aristotle Barnes J (ed) Princeton Princeton
University Press 1984 Segundo Jean Pierre-Vernant em Platatildeo a memoacuteria natildeo visa elaborar uma
histoacuteria individual onde se afirmaria a unicidade do eurdquo mas ldquorealizar a uniatildeo da alma com o divinordquo
enquanto que em Aristoacuteteles ldquonada mais lembra a Mnemosyne miacutetica nem os exerciacutecios de
rememoraccedilatildeo destinados a liberar do tempo e a abrir o caminho para a imortalidaderdquo VERNANT
Jean-Pierre Aspectos miacuteticos da memoacuteria In Mito e pensamento entre os gregos Paz e Terra 2002
Satildeo Paulo pp 162 e 166 635 ldquoSt Bernard selon lrsquoavis du Pere Mabillon enseigna agrave propos de lrsquoame qursquoapregraves la mort elle ne
voyoit pas Dieu dans le Ciel mais qursquoelle conservoit seulement avec lrsquohumaniteacute de Jesus Christ ()
Nocirctre Descartes neacute non pour deacutecouvrir les erreurs de lrsquoAntiquiteacute mais pour y substituer les siennes amp
entraineacute par cet Esprit systematique qui aveugle les plus grands hommes srsquoimagina avoir deacutemontreacute que
lrsquoame eacutetoit la matiere selon lui est la mecircme chose que lrsquoeacutetendueuml () Mr Mallebranche de lrsquoOratoire
dans ses illusions sublimes non seulement admit les ideacutees inneacutees mais il ne doutoit pas que nous ne
vissions tout en Dieu amp que Dieu pour ainsi dire ne fut nocirctre amerdquo Ibidem pp 93-95 ldquo() quand il a
voulu deacutevelopper cette grand veacuteriteacute que Tout est en Dieu tous les lectuers ont dit que le comentaire est
plus obscur que le texterdquo TOLLADET Abbeacute de (pseud) Tout en Dieu commentaire sur
Malechanche 1769 In VOLTAIRE Oeuvres complegravetes T 287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie
de Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes biographiquesGarnier Fregraveres Paris 1877-1885 636 ldquoTant de raisonneurs ayant fait le Roman de lrsquoAme un Sage est venu qui en a fait modestement
lrsquohistoire Mr Locke a deacutevelopeacute agrave lrsquohomme la raison humaine comme un excellent Anatomiste
explique les ressorts du corps humain il srsquoaide par tout du flambeau de la Physique il ose quelquefois
parler affirmativemente () il fut pas agrave pas les progreacutes de son entendement () Il consulte sur tout son
propre temoignage la conscience de sa penseacutee ()rdquo Ibidem p 95 637 ldquoThe next Faculty of the Mind whereby it makes a farther Progress towards Knowledge is that
which I call Retention or the keeping of those simples Ideas which from Sensation or Reflection it
hath received This is done two ways First by keeping the Idea which is brought into it for some time
actually in view which is called Contemplationrdquo LOCKE John An Essay Concerning Human
Understanding Peter Nidditch (org) Oxford Clarendon Press 1975 (1690) p 149
204
susceptiacutevel de operar pequenos milagres como por exemplo aquele conjurado por
meio do ldquopoder de reviver novamente em nossas mentes essas ideiasrdquo
E assim noacutes fazemos () ao conceber o Calor ou a Luz
o Amarelo ou o Doce Esta eacute a memoacuteria algo como o
armazem de nossas ideias Uma vez sendo a Mente do
Homem incapaz de manter muitas ideias em vista e em
consideraccedilatildeo era necessaacuterio possuir tal repositoacuterio638
Guardas e acessar as ideias na perspectiva do empirismo a utilidade da
memoacuteria residiria na funccedilatildeo de resgatar aquilo que de fato ldquonatildeo estaacute em nenhum
lugar mas apenas ali residindo em uma habilidade da mente que com sua vontade
pode fazecirc-la reviver de novordquo639 Mnemosine se cala o mundo das ideias torna-se
mais difiacutecil de imitar a existecircncia sempiterna na via-laacutectea e a identificaccedilatildeo de vida
nas das esferas de Publicius e Romberch metaacuteforas morais Se com a metempsicose o
cristinismo havia encontrado ldquoa cama feitardquo o Voltaire leitor de Locke como lrsquoenfant
terrible veio pular sobre suas molas e bagunccedilaacute-la640 A vontade humana de lembrar
sugere ser mais importante do que as formas inatas de percepccedilatildeo e valoraccedilatildeo doadas
pela ordem natural e providencial641
Assim como aquele que os criou os personagens de Voltaire gostavam de
viajar Sua alma escondia-se entre pseudocircnimos e heterocircnimos que natildeo cansavam de
migrar impunes no tempo e no espaccedilo Natildeo seria esse o caso dos interlocutores dos
Entretiens Chinois Xain um mandarim que passou a juventude perambulando pela
Europa retorna a China e encontra em Pequim um amigo que ingressara na
Companhia de Jesus Dividido em trecircs conferecircncias o diaacutelogo se passa como uma
638 LOCKE op cit 149-150 639 ldquoAnd in this Sense it is that our Ideas are said to be in our Memories when indeed they are
actually no where but only there is an ability of the Mind when it will to revive it againrdquo Idem
Ibidem 640 Acima reflito sobre as seguintes palavras ldquoFoi precisamente o mito platocircnico da alma que teve a
capacidade de resistir ao processo de racionalizaccedilatildeo integral do ser e ateacute de se infiltrar novamente e
dominar progressivamente () o cosmos racionalizado Foi aqui que se inseriu a possibilidade da sua
aceitaccedilatildeo por parte da religiatildeo cristatilde que nele encontrou por assim dizer a cama feitardquo JAEGER
Werner Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Martins Fontes Satildeo Paulo 1995 p 192 641 Em sua resposta a Locke Lebniz no Novo Ensaio sobre o Entendimento Humano enxergava a
criacutetica empirista ao inatismo como um ataque velado ao princiacutepio da imortalidade da alma Para
Leibniz a ideia inata de substacircncia era fornecida pelo fato de que somos substacircncias e de que podemos
realizar uma reflexatildeo sistemaacutetica a respeito de nossa natureza Nesse sentido seriacuteamos ldquoinatos a noacutes
mesmosrdquo LEIBNIZ GW New Essays on Human Understanding P Remnant e J Bennett (trans)
Cambridge Cambridge University Press 1981 (1704) 51-52 Sobre o debate setecentista que opotildee
inatismo racionalista e anti-nativismo empirista ver HARRIS John Leibniz and Locke on Innate
Ideas In Ratio n 16 1974 pp 226-242 e WALL G Lockes Attack on Innate Knowledge In
Philosophy 49 1974 pp 414
205
polecircmica de alteridades sobre o tema maacuteximo da criacutetica agraves supersticcedilotildees O jesuiacuteta
reclama do irracionalismo das crenccedilas locais com o mandarim retrucando a respeito
das incoerecircncias de um ocidente que afastava o misticismo oriental na mesma medida
em que abraccedilava com forccedila de verdade os relatos maravilhosos do avistamento de
santos Incomodado com os maus tratos aos missionaacuterios o padre pede ao mandarim
jaacute na segunda parte que intervenha junto ao governo chinecircs recebendo como resposta
que toda pregaccedilatildeo estrangeira fosse cristatilde fosse maometana era proibida por uma lei
que tinha como justificativa os crimes cometidos contra o vizinho Japatildeo642
Na terceira conferecircncia no entanto os dois personagens encontram um
denominador comum no que o mandarim propotildee vinte teses ao espiacuterito de uma
ldquoprofissatildeo de feacuterdquo Contra a supersticcedilatildeo e o sectarismo religioso as teses tocam ao
longo da deacutecima primeira e da deacutecima segunda o tema dos almanaques ldquoCaso se decirc
a um charlatatildeo o privileacutegio exclusivo de fazer almanaquesrdquo redigiu Voltaire ldquoele faraacute
um calendaacuterio de supersticcedilotildees para todos os dias do anordquo intimidando povos e
magistrados ldquopelas conjunccedilotildees e influecircncias dos astrosrdquo Mas se forem vinte
charlatotildees ldquoeles vatildeo prever fatos diferentesrdquo contradizendo-se uns aos outros ldquoum
tempo viraacuterdquo concordariam os amigos entre dois mundos ldquoquando todo o povo teraacute
descoberto a patifaria de todos os astroacutelogosrdquo643 Neste dia natildeo teremos almanaques
que natildeo sejam feitos por ldquoastrocircnomos de verdade que calculam tatildeo somente o
movimento dos globos sem atribuir influecircncia a nenhumrdquo nem render previsotildees
fossem boas fossem maacutes644
642 Em outra oportunidade Voltaire esclaresceu essa questatildeo com o tom de chacota que lhe era proacuteprio
ldquoLes jeacutesuites avaient obtenu de lrsquoempereur de la Chine Kang-hi la permission drsquoenseigner le
catholicisme () Cependant lrsquoempereur Kang-hi mourut agrave la fin de 1722 Il laissa lrsquoempire agrave son
quatriegraveme fils Yong-Tching qui a eacuteteacute si ceacutelebre dans le monde entier par la justice et par la sagesse de
son gouvernement par lrsquoamour de ses sujets et par lrsquoexpulsion des jeacutesuitesrdquo VOLTAIRE Oeuvres
complegravetes de Voltaire Dictionnaire philosophique I Jean-Antoine-Nicolas de Caritat marquis de
Condorcet Furne 1835 p 331 643 ldquo11o Si vous donnez agrave un charlatan le privilegravege exclusif de faire des almanachs il fera un calendrier
de superstition pour tous les jours de lrsquoanneacutee il intimidera les peuples et les magistrats par les
conjonctions et les influences des astres Si vous laissez vingt charlatans faire des almanachs ils
preacutediront des eacuteveacutenements diffeacuterents ils se deacutecreacutediteront tous les uns les autres un temps viendra ougrave
tout le peuple aura deacutecouvert la friponnerie de tous les astrologuesrdquo VOLTAIRE Entretiens Chinois
In Dialogues et anecdotes philosophiques avec introduction notes et rapprochements Raymond
Naves (org) Garnier Paris 1939 p 250 644ldquo12o Alors il nrsquoy aura plus drsquoalmanachs que ceux des veacuteritables astronomes qui calculent juste les
mouvements des globes qui nrsquoattribuent drsquoinfluence agrave aucun et qui ne preacutedisent ni la bonne ni la
mauvaise fortune Le peuple insensiblement ne croira que ces sages il adorera drsquoun culte plus pur le
creacuteateur et le guide de tous les globes et notre petit globe en sera plus heureux rdquo VOLTAIRE 1939 p
251
206
Educado no coleacutegio dos jesuitas de Louis-le-Grand Voltaire natildeo apenas
atacava os saacutebios que buscavam prever futuro mas igualmente os eruditos que
julgavam organizar o passado A demanda por trabalhos de cronologia aumentou ao
longo da primeira modernidade unindo meacutetodos da filologia claacutessica vindos da
hermenecircutica medieval com observaccedilotildees astronocircmicas Seus objetivos manifestos
supunham conciliar a narrativa biacuteblica com os registros celestes feitos desde a
antiguidade ordenando a temporalidade em um momento em que os tradicionais
sistemas cosmoloacutegicos pareciam ndash literalmente para alguns como vimos ndash fazer aacutegua
Era tambeacutem o periacuteodo em que o tempo passava a ser visto como mesuraacutevel uniforme
ditado pela voz de Deus e pelo movimento das estrelas em uma linguagem acessiacutevel agrave
engenhosidade humana Era igualmente o periacuteodo em que o literalismo biacuteblico
encampado por movimentos que buscavam ir aos fundamentos do Velho Testamento
logo seria tambeacutem seguido pelas contrapartes romanas Natildeo poderia haver
contradiccedilatildeo entre o tempo do Livro e o tempo das estrelas mas seria essa uma
possibilidade viaacutevel
ldquoEu recebi hoje meu querido dia 27 de marccedilo a sua carta de 27 de fevereirordquo
escreveu Voltaire ao conde de Argental ldquoe ela eacute tatildeo difiacutecil de conciliar quanto a
cronologia da Vulgata e a da Septuagintardquo645 Seacuteculos antes ateacute pelo menos o final do
XVI as contradiccedilotildees entre as versotildees koineacute e latina da Biacuteblia natildeo eram dignas de
muitos percalccedilos fariacuteamos como o monge cartuxo Werner Rolevink que em seu
Fasciculus Temporum contava o tempo tambeacutem de frente para traz do apocalipse agrave
criaccedilatildeo conciliando judeus e cristatildeos e deixando que Deus ao cair dos tempos
decida quem estava certo e quem estava errado646 Em 1498 no entanto como um
profiacutecuo historiador da cronologia jaacute demonstrou em diversas oportunidades esse
quadro comeccedilaria a se alterar Naquele ano o dominicano Giovanni Nanni de Viterbo
publicou um livro que seria notado por todos os eruditos da Europa Annius seu
cognome latino apresentava pela primeira vez ao puacuteblico letrado uma seacuterie de autores
citados por Euseacutebio de Cesareia mas que ateacute o momento eram desconhecidos do
ocidente Os textos chegavam a desacreditar Heroacutedoto ndash o que desde ao menos
Luciano de Samoacutesata era um lugar comum ndash e dentre os nomes publicados dois se
645 ldquoJe reccedilois mon cher ange aujourdrsquohui 17 de mars votre lettre du 27 feacutevrier Cela est aussi difficile
agrave concilier que la chronologie de la Vulgate et des septanterdquo VOLTAIRE Ouvres complegravetes Tome
61 de lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-Typographique 1785 Recueil des lettres Lettre CLIII A
M Le Comte DrsquoArgental p 280 646 Sobre Werner Rolevink vide ROSENBERGGRAFTON 2010 pp 39 48
207
destacariam entre os interesses do puacuteblico Maneto historiador egiacutepcio da era
ptolomaica e Beroso autor de uma Histoacuteria da Babilocircnia
O livro de Nanni de Viterbo fechava inuacutemeras lacunas historiograacuteficas
partindo de um celebrado modelo que unia os criteacuterios de verdade (fides) da filologia
e do antiquariado647 Carregado de insights autores antes indiretamente conhecidos
como Metastenes Fabio Pictor e Catatildeo confirmavam-se uns aos outros em quarenta e
nove histoacuterias conectadas que com a exceccedilatildeo daquela de Propertio eram
absolutamente falsas Juan Luis Vives Pietro Crinito e Beatus Rhenanus jaacute haviam
notado a farsa648 Mais tarde em 1602 Joseph Scaliger intrigado pelos escritos de
Annius e ansioso por encontrar os textos reais recebe alguns fragmentos de uma
crocircnica bizantina Nela o cronologista encontra uma sequecircncia dos reis do Egito
atribuiacuteda ao verdadeiro Maneto Trata-se de um fragmento cujos registros podem ser
hoje confirmados na leitura dos papiros presentes em Turim Preservados pelo proacuteprio
Euseacutebio em uma espeacutecie de primeira nota de rodapeacute da histoacuteria aqueles textos
originais trariam problemas para o tempo biacuteblico
Joseph Scaliger natildeo soube como tambeacutem natildeo soubera o bispo de Cesareia o
que fazer com os textos transcritos por Euseacutebio e cuidadosamente esquecidos por Satildeo
Jerocircnimo em sua traduccedilatildeo latina Neles Beroso narrava como uma criatura chamada
Oannes corpo humano e cabeccedila de peixe emergiu do Mar Vermelho para fundar a
civilizaccedilatildeo Maneto era ainda mais ousado Sua lista de dinastias ia muito aleacutem do
diluacutevio universal Na verdade comeccedilava antes da criaccedilatildeo Diante do dilema moral a
eacutetica de Scaliger ditou que ele deveria publicar os documentos jogando as datas
egiacutepcias em direccedilatildeo ao vago lugar de um ldquotempo proleacutepticordquo649
647 ldquoWhen Annius argued that Berosus and his friends deserved credibility he did more than describe
them as Josephus had as priests with access to ancient records () Only those historians who met this
standard he argued deserved trust () Annius was steeped in a formal theology and he drew on his
training to offer the first formal principles of historical criticism ever elaborated in print For a century
to come anyone who hoped to formulate rules for assessing historical fides had to come to terms with
these influential precedentsrdquo GRAFTON 2007 sp cap 2 perto da nota 60Sobre o modelo de criacutetica
documental jaacute presente em finais da idade meacutedia ver GINZBURG Carlo Lorenzo Valla e a Doaccedilatildeo
de Constantino In Relaccedilotildees de Forccedila Histoacuteria Retoacuterica Prova Compania das Letras Satildeo Paulo
2000 pp 64-69 648 GRAFTON What was History 2007 sp perto da nota 60 649 Sigo GRAFTON 2007 cap 4 proacuteximo a nota 97 Ver tambeacutem GRAFTON Anthony MOST
Glenn SETTIS Salvatore The Classical Tradition Harvard University Press 2010 p 866 Paacutegina na
qual o autor explica que ldquoScaligerrsquos books provoked criticism from Johannes Kepler and refutation
from the erudite Jesuit Danys Petau It also indirectly helped inspire another Jesuit Martino Martini to
believe that Chinese history like Egyptian could have begun before the Flood By the end of the
century many scholars acknowledge that Scaligerrsquos hoped-for synthesis of biblical and secular history
could not be carried out without undermining the authority of the Bible ndash a paradoxical conclusion that
208
Athanasius Kircher o jesuita que a tudo sabia natildeo deixou de ler o calvinista
Scaliger Entre 1640 e 1650 Martino Martini um de seus pupilos do Collegio
Romano viaja a China com o objetivo de escrever a primeira cronologia baseada em
fontes e observaccedilotildees astronocircmicas orientais Para a infelicidade do literalismo biacuteblico
as datas da tradiccedilatildeo analiacutestica chinesa ndash acompanhadas de registros de eclipses ndash
tambeacutem iniciavam muito antes do diluacutevio universal650 Sobre essas ldquoprodigiosas
provas da antiguidade chinesardquo Voltaire homem de formaccedilatildeo jesuita lanccedilou nas
palavras do Essai sur les moeurs et lesprit des nations mais uma de suas costumeiras
e deliciosas ironias
Nossos viajantes missionaacuterios relatam com franqueza
que assim que conversaram com o imperador Cam-hi a
respeito das consideraacuteveis variaccedilotildees da cronologia da
Vulgata da Septuaginta e dos Samaritanos Cam-hi
lhes respondeu Seria possiacutevel que os livros nos quais
vocecircs acreditam se contradigam651
Voltaire realmente natildeo tinha a cronologia em alta conta No Dictionnaire
philosophique o verbete relativo ao tema aparece com o subtiacutetulo ldquoda vaidade dos
sistemasrdquo Para o iluminista a mateacuteria tratava da fuacutetil tarefa de instituir dataccedilotildees
precisas a respeito de personagens e eventos sem precisatildeo de modo que bastaria que
ldquoapenas um chinecircs a contradigardquo para que fosse universalmente comprometida652 O
que afinal importa perguntaria em De la Chine ldquoque esses livros nem sempre contecircm
uma cronologia confiaacutevelrdquo ldquoEu quero que natildeo saibamos em que tempo precisamente
viveu Carlos Magnordquo disparou o filoacutesofo desde que lembremos que o imperador
subjugou vaacuterios povos pela forccedila de seus exeacutercitos e que principalmente era filho de
Scaliger himself glimpsed as he confessed to his pupils though he also told them that he lsquodid not darersquo
to publish on such issuesrdquo 650 FINDLEN Paula (org) Athanasius Kircher The Last Man Who Knew Everything Routledge New
York 2004 p 184 651 ldquoNos voyageurs missionnaires rapportent avec candeur que lorsqursquoils parlegraverent au sage empereur
Cam-hi des variations consideacuterables de la chronologie de la Vulgate des Septante des Samaritains
Cam-hi leur reacutepondit Est-il possible que les livres em qui vous croyez se combattentrdquo VOLTAIRE
Essai sur les moeurs et lesprit des nations In Oeuvres complegravetes de Voltaire T 16 1785 de
lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-Typographique p 85 652 ldquoSrsquoil avait menti srsquoil avait fait une fausse chronologie srsquoil avait parleacute drsquoempereurs qui nrsquoeussent
point existeacute ne se serait-il trouveacute personne dans une nation savante qui eucirct reacuteformeacute la chronologie de
Confutzeacutee Un seul Chinois a voulu le contredire et il a eacuteteacute universellement basoueacuterdquo VOLTAIRE
Oeuvres complegravetes de Voltaire Dictionnaire philosophique I Jean-Antoine-Nicolas de Caritat
marquis de Condorcet Furne 1835 p 331
209
ldquouma naccedilatildeo numerosa formada por um grupo de pessoas em uma longa duraccedilatildeo de
seacuteculosrdquo653
As criacuteticas de Locke ao inatismo teriam levado-o a valorizar a ldquoimportacircncia da
memoacuteria em ancorar um senso de continuidade individual ao longo do tempordquo654 Eu
me pergunto se em Voltaire natildeo assistiriacuteamos a elevaccedilatildeo desse juizo de sucessatildeo a
esferas coletivas em um momento em que noccedilotildees de movimento encontram-se em
franco processo de singularizaccedilatildeo A tarefa de libertar o mundo do inatismo poderia
de todo modo ser entendida como uma tentativa de livrar os indiviacuteduos de ldquoter de
repetir as mesmas accedilotildees continuamenterdquo introduzindo-os a uma ldquovisatildeo de seus
proacuteprios progressos e desenvolvimentos possiacuteveisrdquo655 E quanto aos povos ldquoDepois
de ter lido quatro mil descriccedilotildees de batalhas e o teor de algumas centenas de
tratadosrdquo reconheceria Voltaire ldquoeu natildeo aprendi senatildeo os fatosrdquo Nas geraccedilotildees
anteriores a Voltaire os cronologistas buscavam contar o tempo cotejando as
narrativas biacuteblicas com os fatos duros da natureza como se deixassem na esteira do
projeto agostiniano a ordem do tempo nas matildeos da providecircncia Talvez em breve
rogava o iluminista francecircs novas descobertas que ldquofizeram banir os sistemas
antigosrdquo sejam realizadas tambeacutem ldquona maneira de escrever a histoacuteriardquo Afinal
ldquoqueremos conhecer o gecircnero humano em seu detalhe interessante que eacute hoje a base
da filosofia naturalrdquo656
Mas com a queda dos ldquosistemas antigosrdquo esse ldquodetalhe interessanterdquo natildeo se
apresentaria apenas por meio da descriccedilatildeo taxonocircmica dos povos humanos Natildeo cabia
apenas encontrar sentidos inatos no mundo mas tambeacutem fazer dele algum sentido Jaacute
em suas Novas Consideraccedilotildees a verdadeira histoacuteria aparece como histoacuteria do
ldquoespiacuterito humano cujo progresso se manifesta natildeo na poliacutetica mas nas artes e na
653 ldquoQursquoimporte apregraves tout que ces livres renferment ou non une chronologie toujours sucircre Je veux que
nous ne sachions pas em quel temps preacuteciseacutement veacutecut Charlemagne degraves qursquoil est certain qursquoil fait de
vastes conquecirctes avec des grandes armeacutees il est clair qursquoil est neacute chez une nation nombreuse formeacutee
en corps de peuple par une longue suite de siegraveclesrdquo VOLTAIRE De la Chine Chapitre Premier De la
Chine de son antiquiteacute de ses forces de ses lois de ses usages amp de ses sciences InOeuvres
complegravetes de Voltaire T 16 1785 de lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-Typographique pp 257-258
Grifos meus 654 FERGUSON Frances Romantic Memory In Studies in Romantism 1996 35 p 506 655 Ibidem p 509 656 ldquoMais apreacutes avoir lu trois ou quatre mille descriptions de batailles et la teneur de quelque centaines
de traiteacutes j`ai trouveacute que je n`eacutetais guegravere plus instruir au fond Je n`apprenais lagrave que des eacuteveacutenements
() Peut-ecirctre arrivera-t-il bientocirct dans la maniegravere d`eacutecrire l`histoire ce qui est arriveacute dans la physique
Les nouvelles deacutecouvertes ont fait proscrire les anciens systegravemes On voudra connaicirctre le genre humain
dans le deacutetail inteacuteressant qui fait aujourd`hui la base dela philosophie naturellerdquo VOLTAIRE
Nouvelles Consideacuterations sur l`histoire 1744 In Ouvres historiques Paris Bibliothegraveque de la Pleacuteiade
1957 pp 46-49
210
ciecircncia no comeacutercio e nas manufaturas nas leis e nos costumesrdquo657 Apaga-se a
providecircncia descartam-se os caracteres inatos da natureza e como em uma ironia ndash
dessa vez acreditamos involuntaacuteria ndash recorre-se ao uso libertaacuterio de um princiacutepio
ordenador (spiritus) antes tatildeo caro ao fatalismo dos estoicos ldquoVoltaire transforma o
objeto de pesquisa histoacuterica ndash como um singular coletivo ndash lsquolrsquohistoire de lrsquoesprit
humainrsquo () e numa analogia coacutesmicardquo corresponde como escreveu Hans Guumlnther
ldquoa ordem do universo que antigamente soacute podia ser imaginadardquo mas que agora a
ciecircncia teria dado a conhecer658
Se a crenccedila na metempsicose era saudada nos bracircmanes como forma
encontrada para manter vivos seus costumes frente agrave cobiccedila dos invasores europeus
para um saacutebio iluminista por outro lado esse tipo de instrumento mental jaacute
expressaria uma crenccedila na histoacuteria O curto circuito entre alma e memoacuteria
possibilitava o desenvolvimento de outro gecircnio ordenador de outro ser racional capaz
de contar e conferir sentido ao tempo O espiacuterito jaacute se manifestava no entanto bem
longe do aevum ou da aeternitas mas no tempus contado agora por seacuteculos Na
filosofia da histoacuteria a laacute Voltaire as vicissitudes satildeo ritmadas pelos progressos do
proacuteprio homem por meio da arte dos costumes da ciecircncia e da induacutestria659
Se vozes como as de Leibniz jaacute se levantavam contra o empirismo sugerindo
que ele ao fundo atacava a crenccedila na migraccedilatildeo das almas e por consequecircncia a moral
e a religiatildeo da parte de Voltaire essa seria uma culpa confessa No elogio a Locke o
filoacutesofo da histoacuteria tratava de acalmar seus leitores ldquojamais os filoacutesofos formaratildeo um
secto religiosordquo uma vez que ldquoeles natildeo escrevem para o povo e satildeo desprovidos de
entusiasmordquo660 Consciente de que os valores ancestrais podem ser lembrados ou
esquecidos selecionados ou descartados essa eacute uma regra que Voltaire ndash escrevendo
para o puacuteblico e com muito entusiasmo ndash iria jaacute com certa idade quebrar Para fazer
657 VOLTAIRE Nouvelles Consideacuterations sur l`histoire 1744 op cit pp 46-49 658 Portanto como disse Voltaire ldquoCrsquoest donc lrsquohistoire de lrsquoopinion qursquoil fallut eacutecrire et par lagrave ce
chaos drsquoeacuteveacutenements de factions de reacutevolutions et de crimes devenait digne drsquoecirctre presente aux
regards des sagesrdquo Apud GUumlNTHER Hans Pensamento histoacuterico no iniacutecio da Idade Moderna In
KOSELLECK Reinhart (org) O Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 109 659 A proacutepria expressatildeo ldquola philosophie de lrsquohistoirerdquo veio de Voltaire que em 1765 publicou sob o
pseudocircnimo de Abbeacute Bazin uma obra com esse tiacutetulo que logo veria diversas ediccedilotildees e reimpressotildees
BAZIN Abbeacute La Philosphie de lrsquohistoire Amsterdam 1765 660 ldquoJamais les Philosophes ne feront une secte de Reacuteligion pourquoi Crsquoest qursquoils nrsquoeacutecrivent point
pour le peuple amp qursquoils sont sans Entousiasme Divisez le Genre humain en vingt parts il y en a dix
neuf composeacutees de ceux qui travaillent de leurs mains amp qui ne sccedilauront jamais srsquoil y a eu un Mr
Locke au monde dans la vingtieacuteme partie qui reste combien trouve t-on peu drsquohommes qui lisent amp
parmi ceux qui lisent il y a vingt qui lisent des Romans contre un qui eacutetudie en Philosophie Le
nombre de ceux qui pensent est excessivement petir amp ceux-lagrave ne srsquoavisent pas de troubler le mondeldquo
VOLTAIRE Treisiegraveme Lettre sur Mr Locke 1734 op cit p 103-104
211
isso no entanto o filoacutesofo deveria se tornar um pouco como o pregador (mesmo que
agraves avessas da supersticatildeo) repudiando os fazedores de horoacutescopos que aparvalhariam
o povo com almanaques de prognoacutesticos e assumindo uma voz puacuteblica capaz de fazer
notar suas proacuteprias efemeacuterides histoacutericas por meio da autoconsciecircncia historiograacutefica
de que os signos do passado podem ser modificados E essa seria a defesa da sua
ldquoIgrejardquo
Haacute muito que deixara de ser vaacutelido perscrutar para os mais esclarecidos
sacedotes dessa repuacuteblica das letras a experiecircncia e a esperanccedila a partir da
observaccedilatildeo de regularidades nos ciclos naturais Da mesma forma entender a
memoacuteria a partir do inato daquilo que eacute dado por uma ordem providencial da
natureza apenas transformou a lembranccedila e a experiecircncia humana em um misteacuterio do
tamanho do cosmos Insuflar as expectativas por meio de prognoacutesticos celestes tatildeo
somente expunha seus feitores agrave ridicularizaccedilatildeo do choque entre as evidecircncias e suas
praacuteticas charlatatildes Mas essa mudanccedila de postura natildeo eacute percebida nas fontes como
resultado de uma estrondosa revoluccedilatildeo racional Nos seacuteculos imediatamente
anteriores os mestres da Ars Historica debatiam em um sintoma da ldquocompulsatildeo de
repeticcedilatildeordquo que marcaria a coerecircncia interna do gecircnero questotildees que derivavam da
filosofia natural peripateacutetica661 Com meacutetodos e livros gramaacuteticas e alguns preceitos
a passagem dos lunaacuterios e almanaques celestes agraves efemeacuterides histoacutericas a despeito de
toda mise-en-scegravene voltariana aconteceria quase ldquosem chicote e sem laacutegrimasrdquo662
Com a permissatildeo de Anthony Grafton que afirmara algo parecido a respeito dos usos
dos eclipses pretendo observar essa modificaccedilatildeo de princiacutepio tatildeo somente como uma
lenta mudanccedila de praacutetica663 As efemeacuterides como tabelas de movimentos diaacuterios dos
astros comeccedilam a ter seus conteuacutedos vistos mais como repositoacuterio de fatos do que
como anuacutencios de pressaacutegios e seguindo essa loacutegica interna vatildeo reinvestir-se
tambeacutem dos sentidos atribuiacutedos por Semprocircnio Aseacutelio e reeditados por Isidoro de
661 A imagem algo freudiana de uma ldquocompulsatildeo por repeticcedilatildeordquo nos debates da Ars Historica eacute trazida
por Grafton em alguns momentos de sua obra Ver por exemplo ldquo() the discussions of speeches in
the artes historicae illustrate the repetition compulsion that is one of the salient and stranger
characteristics of the genre as a wholerdquo GRAFTON Anthony 2007 Parte II entre as notas 96 e 97 662 Aqui parafraseio a bela passagem de Montaigne a respeito de sua instruccedilatildeo na liacutengua latina ldquosem
meacutetodo sem livro sem gramaacutetica ou preceito sem chicote e sem laacutegrimas tinha aprendido o latimrdquo
MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Cap XXV Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas Pinguin Books Satildeo
Paulo 2010 p 125 663 A mudanccedila de postura frente aos eclipses que passam de pressaacutegios a fatos como demonstra o
autor acontece como uma lenta mudanccedila de praacutetica Ver GRAFTON Anthony Some uses of Eclipses
() 2003 p 229 Embora o autor natildeo use o termo os meacutetodos de previsatildeo dos eclipses satildeo tambeacutem ndash e
isso ateacute os dias da astronomia que nos eacute contemporacircnea ndash baseados em caacutelculos de efemeacuterides
212
Sevilha Nesse longo processo que perpassa vaacuterios seacuteculos da modernidade a
astrologia seraacute superada ainda que algo guardados no interior das efemeacuterides
histoacutericas percebam-se instrumentos mentais anaacutelogos agravequeles presentes nas teacutecnicas
cronosoacuteficas dos sistemas antigos Nesse momento seria conveniente escutar o
conselho de Reinhardt Koselleck e ldquoprestar atenccedilatildeo ao conteuacutedo metafoacuterico de nossos
conceitos de modo a capacitarmos a avaliaccedilatildeo do poder de suas expressividades
histoacutericasrdquo664 Natildeo seraacute mais a hora eacute claro de completar o passado e o presente pela
antecipaccedilatildeo de um futuro lido nas conjunccedilotildees e influecircncias astrais mas de ndash jaacute sob a
aurora de uma ldquociecircncia causal sublunarrdquo ndash observar no choque entre vontades
poliacuteticas da memoacuteria as armas empregadas no impasse e na resoluccedilatildeo de batalhas
entre manifestaccedilotildees puacuteblicas e divergentes da experiecircncia do tempo 665
41 Conhecer os ciclos preluacutedio de um eclipse da natureza
Johannes Muumlller astrocircnomo e matemaacutetico natildeo era em nada avesso agraves teorias
da influecircncia celeste como natildeo o foram a maioria absoluta de seus contemporacircneos
Talvez no seu caso o interesse pelo tema fosse bem aleacutem Se as Efemeacuterides
Perpeacutetuas publicadas em Veneza em 1498 combinavam o calendaacuterio com certas
datas comemorativas oferecendo tambeacutem uma tabela de ciclos lunares e solares as
Tabulae directionum parecem ter sido projetadas para o uso astroloacutegico ndash embora
fossem criacuteticas ao modo judiciaacuterio dos saberes celestes condenado por tantos papas
Em suma essas Taacutebuas propunham uma reformulaccedilatildeo do velho sistema de casas
zodiacais apresentando um modelo que alcanccedilou alguma popularidade na Europa da
renascenccedila666 Mas natildeo seriam apenas esses elementos da astronomia de Muumlller hoje
664 KOSELLECK Reinhardt ldquoProgressrdquo and ldquoDeclinerdquo An Appendix to the History of Two Concepts
In The practice of conceptual history timing history spacing concepts Stanford University Press
Cultural Memory in the Presente Stanford 2002 p 221 665 Devo a imagem da histoacuteria enquanto ldquociecircncia causal sublunarrdquo a VEYNE Paul Como se escreve a
histoacuteria Lisboa Ediccedilotildees 70 1983 p 43 Para aleacutem da esfera terrestre temos ldquoa regiatildeo do
determinismo da lei da ciecircncia os astros natildeo nascem natildeo mudam e natildeo morrem e o seu movimento
tem a periodicidade e a perfeiccedilatildeo de um mecanismo de relojoaria ()rdquo No mundo sublunar ldquosituado
abaixo da lua reina o devir e tudo aiacute eacute acontecimento () O homem eacute livre o acaso existe os
acontecimentos tecircm causas cujo efeito permanece duvidoso o futuro eacute incerto e o devir eacute contingente
()rdquo 666 REGIOMONTANUS Ioannis de Monteregio Tabulae Directionum Profectionumque non tam
astrologiae iudiciariae quam tabulis instrumentisque innumeris fabricandis utiles ac necessariae
eiusdem Regiomontani tabula sinuum per singula minuta extensa universam sphaericorum
triangulorum scientiam complectens accesserunt his tabulae ascensionum obliquarum a 60 gradu
elevationis poli usque ad finem quadrantis per Erasmum Reinholdum () Supputae-Imprimebantur in
officina typographica Matthei Welack 1584 REGIOMONTANUS Ioannis de Monteregio
Ephemerides sive almanach perpetuus Impr Petri Liechtenstein Venetiis 1498 Para uma discussatildeo
213
associadas a uma pseudociecircncia que alimentariam com seus prognoacutesticos alguns
episoacutedios periclitantes do renascimento
Aparentemente menos dramaacuteticas do que seus usos judiciaacuterios a leitura
natural das efemeacuterides faria tremer diante da sofisticada arte europeacuteia alguns nativos
do novo mundo Com apenas duas naacuteus que jaacute deviam fazer aacutegua sem mantimentos e
rogando por um resgate Cristovatildeo Colombo faria de tudo para reaver o suporte
logiacutestico dos habitantes da Jamaica Entre uma coleccedilatildeo de tratados cosmoloacutegicos e
tabelas de movimento dos astros as matildeos do navegador logo tocariam as efemeacuterides
de Regiomontanus e perscrutando suas paacuteginas com os olhos de um filoacutesofo natural
fizeram-no encontrar a data e o horaacuterio previsto para um evento coacutesmico Mandou
chamar os caciques taiacutenos Era 29 de fevereiro de 1504 noite que assistiria agrave ascensatildeo
de uma lua cheia Colombo disse aos iacutendios que seu Deus estava furioso com o
tratamento dado aos aventureiros e prometeu que como sinal de sua insatisfaccedilatildeo Ele
pintaria o sateacutelite terrestre com as cores do sangue antes de extingui-lo para sempre
Foi seu filho Fernando Colombo quem registrou o ocorrido
Assim que na verdade um pouco depois de nascer a
lua comeccedilou a aparecer terna e avermelhada os iacutendios
foram tomados de terror e () se apressaram levando
consigo grandes quantidades de viveres proferindo
lamentaccedilotildees e assegurando ao Almirante que caso ele
intercedesse para desarmar a coacutelera de seu Deus eles se
comprometeriam a nunca mais deixar faltar nada aos
cristatildeos667
ldquoVocecirc vecirc isso foi um eclipserdquo disse o Yankee na corte do rei Arthur
ldquoOcorreu-me no calor da hora como Colombo Cortez ou uma dessas pessoasrdquo
usaram um fato celeste ldquopara alardear alguns selvagensrdquo E assim baseado em fatos
recente MOSLEY Adam Regiomontanus and Astrology Cambridge University History and
Philosophy of Science Department 1999 Sobre a popularidade do sistema de Regiomontanos ver
LEWIS James R The Astrology Book The Encyclopedia of Heavenly Influences Visible Ink Press
2013 p 574 667 COLOMB Fernand Histoire de la vie et des deacutecouvertes de Christophe Colomb Muller Eugecircne
(trad) Paris Maurice Dreyfous 1879 p 283 Na traduccedilatildeo de Muller ldquoLorsque en effet un peu apregraves
son lever la lune commenccedila drsquoapparaitre voileacutee et rougeacirctre les Indient furent saisis drsquoune veacuteritable
terreur et comme agrave mesure que lrsquoasire montait le pheacutenomecircne devenait plus sensible ils se haacutetegraverent de
prendre avec eux de grandes quantiteacutes de vivres et drsquoaccourir aux navires en poussant des lamentations
et en assurant lrsquoAmiral que srsquoil voulait bien interceacuteder pour deacutesarmer la colegravere de son Dieu ils
srsquoengageraient agrave ne jamais laisser les chreacutetiens manquer de rien agrave lrsquoavenirrdquo Para uma narrativa recente
a respeito desse episoacutedio das viagens de Colombo ver HEAT-MOON William Least Columbus in the
Americas John Wiley amp Sons New Jersey 2010 pp 175-176
214
semeando terror com o sarcasmo do Deus razatildeo o Sr Morgan viu a chance de escapar
da fogueira medieval salvo pelos astros como de volta a um futuro jaacute passado
aconteceria com o almirante genovecircs668 Mas natildeo deixemos nossas almas se perderem
entre o anterior e o posterior Comemoremos brevemente a ciecircncia renascentista que
se preocupava em pintar com precisatildeo alguns pontos (a partir dos quais poderiacuteamos
entre eles contar a mudanccedila) nas linhas irreversiacuteveis do tempo sagrado e profano
Quatro seacuteculos antes de Mark Twain e uma centena de anos apoacutes Colombo Henrich
Buumlnting presenteou o bispo luterano de Halberstadt com um trabalho descrito por ele
mesmo como uma ldquocerta cronologia e narrativa do tempo do iniacutecio do mundo ao
presenterdquo 669
Dos muitos estudos e propostas cronoloacutegicas que pululavam no periacuteodo o
texto de Buumlnting diferenciava-se pela arrojada proposta de estabelecer dataccedilotildees a
partir de registros de eclipses sem no entanto interessar-se por vecirc-los como sinais ou
relacionaacute-los pela premissa da influecircncia celeste com grandes eventos sublunares Ou
seraacute que natildeo poderiacuteamos ler em Buumlnting alguma pitada de sarcasmo quando ele
claramente parafraseia e corrige Ptolomeu ao dizer que ldquoduas formas de caacutelculo satildeo as
mais certas de todas aquela que eacute empreendida com a sagrada escritura e aquela que
eacute realizada a partir do intervalo dos eclipsesrdquo670
Buumlnting jaacute natildeo devia seu modelo cosmoloacutegico ao grande saacutebio de Alexandria
mas ao Copeacuternico do sistema heliocecircntrico cujas Revoluccedilotildees das Orbes Celestes
foram pontuados por Erasmus Reinhold nas ceacutelebres Taacutebuas Prutecircnicas de 1551
Como escreveu Anthony Grafton ldquoBuumlnting tratava eclipses enquanto fatosrdquo e fatos
como quaisquer outros ldquocom a exceccedilatildeo de que eram mais precisosrdquo Ao unir uma
abordagem filoloacutegica das crocircnicas de diversos povos com observaccedilotildees astronocircmicas
o cronologista tambeacutem fez questatildeo de ressaltar que sua ecircnfase nos eclipses nada tinha
a ver com quaisquer importacircncias simboacutelicas ou cosmoloacutegicas mas com as certezas
quantitativas que eles traziam671
668 TWAIN Mark A Connecticut Yankee in King Arthurrsquos Court Digireadscom Publishing Stilwell
2004 p 18 Interessante precisar que o eclipse de Twain datado de 21 de junho de 528 natildeo encontra
registro em outro lugar senatildeo no romance de 1889 669 Sobre os usos dos eclipses nas cronologias da primeira modernidade sigo GRAFTON Anthony
Some uses of Eclipses () 2003 A frase acima citada encontra-se na paacutegina 214 do artigo 670 Buumlnting dedicatory letter to Henrich Julius apud GRAFTON 2003 p 215 Peccedilo ao leitor que
compare essa afirmaccedilatildeo com a frase inicial ainda que traduzida para o inglecircs do Tetrabiblos ldquoOf the
means of prediction through astronomy O Syrus two are the most important and validrdquo ROBBINS
FE Ptolomy Tetrabiblos 1940 p 3 671 GRAFTON 2003 p 214-115
215
Quase todo almanaque publicado na Europa da primeira modernidade
apresentava algum tipo de tabela de efemeacuterides associadas ao calendaacuterio Nisso essas
publicaccedilotildees compartilhavam a obsessatildeo pela contagem do tempo que os trabalhos de
cronologia expressavam em ciacuterculos mais refinados Na Inglaterra reformada essa
reuniatildeo de informaccedilotildees astronocircmicas e festas religiosas natildeo escapou a usos poliacuteticos
Ao lado de ldquopreces e sermotildees estatutos e proclamaccedilotildeesrdquo crocircnicas e almanaques
expunham um padratildeo providencial que atuava como lembranccedila constante da boa
fortuna dinaacutestica e religiosa de uma naccedilatildeo eleita672
Juacutepiter e Saturno em Peixes natildeo foram alardes suficientes para Felipe II Com
as velas levantadas cruz catoacutelica amostra a Armada Espanhola rumou ao mar do
norte aonde para absoluto terror dos castelhanos ldquoDeus soprou e eles foram
dissipadosrdquo A vitoacuteria decisiva da monarquia elisabetana sobre a Armada Espanhola
em 1588 seria rapidamente trabalhada como um sinal conferido ao novo povo
escolhido (Godrsquos Englishmen) Mesmo sem estabelecer um ldquoano da Armadardquo o
evento foi comemorado em ldquomedalhas e tapeccedilarias pinturas e poemas sermotildees e
precesrdquo enquanto que o aniversaacuterio da rainha ofereceu um instante a cada novembro
para se relembrar a vitoacuteria e maldizer os catoacutelicos673 William Leigh (1550-1639)
cleacuterigo tutor real e orador escolhido para dirigir-se agraves tropas reunidas em Tilbury
diria sem deixar de lado as imagens astronocircmicas que ldquoo mirabilis annus de 88
jamais seraacute esquecido enquanto o sol e a lua existiremrdquo 674
A vitoacuteria assim foi naturalizada e com ela o proacuteprio inimigo Dezessete anos
mais tarde um grupo de conspiradores catoacutelicos liderados por Robert Catesby e Guy
Fawkes ensaiaram um atentado contra James I e seu governo sediado nas Casas do
Parlamento A Conjuraccedilatildeo da Poacutelvora permitiu aos pregadores protestantes
estabelecerem uma conexatildeo imediata entre os eventos de 1588 e os de 1605 Os
almanaques impressos no periacuteodo natildeo cansavam de relembrar e relacionar as duas
datas comemorando-as entre os poucos aniversaacuterios duradouros e marcando-os com
frequecircncia entre versos brutos e letras vermelhas O almanaque de Richard Allestree
para 1629 um dos perioacutedicos mais populares da Inglaterra contava os anos
672 Aqui sigo CRESSY David National Memory in Early Modern England In In GILLIS John R
(org) Commemorations the politics os national identity Princeton University Press New Jersey
1994 p 62 673 CRESSY 1994 p 63-64 674 ldquo() that mirabilis annus of rsquo88 will never be forgotten so long as the sun and moon durethrdquo
LEIGH William Queen Elizabeth Paraleld in her Princely Vertues with David Isosua and Hezekia
London 1589 p 36 Apud CRESSY 1994 p 63
216
retroativamente ldquodesde a criaccedilatildeo do mundo () a destruiccedilatildeo de Sodoma pelo fogo e
pelo enxofre () o iniacutecio do abenccediloado reinado de Elizabeterdquo e tambeacutem desde a
destruiccedilatildeo da ldquoArmada Espanholardquo e ldquoa maldita Traiccedilatildeo da Poacutelvorardquo675 Geraccedilotildees
mais tarde essa lista de efemeacuterides continuava a animar as almas leitoras do Poor
Robinrsquos Almanac ldquoa memoacuteria da Conspiraccedilatildeo da Poacutelvora dificilmente morreraacuterdquo 676
Entre as datas de 1588 1605 e 1666 teriacuteamos trecircs momentos em que a
histoacuteria da Inglaterra foi ldquofatalmente determinadardquo677 Ora se os almanaques ingleses
como que oficiando avant la lettre uma sorte de ldquomemoacuteria nacionalrdquo assim
construiacuteam uma identidade reformada em oposiccedilatildeo ao catolicismo romano o que
restava para as paacuteginas que lidavam com os horaacuterios da aurora e do crepuacutesculo as
fases da lua o translado das estrelas errantes a posiccedilatildeo dos horoacutescopos e todo o tipo
de prognoacutestico que munidos dessas informaccedilotildees esses pequenos textos populares
publicavam Curiosidades ou supersticcedilotildees de mero ldquointeresse histoacutericordquo Newmann e
Grafton jaacute chamaram a atenccedilatildeo para o perigo que correm alguns estudos quando ao
ligar a renascenccedila ao surgimento do nacionalismo ignoram ou desvalorizam o papel
da astrologia no periacuteodo678 Respeitar a dualidade entre as praacuteticas astroloacutegicas e uma
nascente memoacuteria coletiva eacute igualmente reconhecer a tensatildeo entre centro e periferia
Krzysztof Pomian explicou de que maneira duas teologias concorrentes da
histoacuteria coexistiram entre o final da idade meacutedia e os primoacuterdios da modernidade A
675 ALLESTREE Richard A New Almanach for Prognostication for the yeere of our Lord God 1629
and from the creation 5591 being the first frō leap-yeere calculated and properly referred to the
longitude amp sublimity of the pole articke of 52 amp 53 deg London Printed for the Company of
Stationers 1628 676 ldquoWhat erersquos forgot the memory orsquo the Powder Plot will hardly dierdquo Poor Robin An Almanac After
the Old and New Fashion London 1695 Segundo CRESSY op cit pp 65-71 ldquoO governo de Jaime I
respondeu a Conjuraccedilatildeo da Poacutelvora legislando uma comemoraccedilatildeo anual unindo prerrogativas
seculares e religiosas () [tratou-se de] An Act for Public Thanksgiving to Almighty God Every Year on
the Fifith Day of November () to the End this Unfained Thankfulness May Never be Forgotten but he
had in Perpetual Remembrance () Toda crianccedila inglesa conhece a rima remember remember the
fifth of November The Gunpowder Treason and Plot I see no reason why Gunpowder Treason
Should ever be Forgot () [Com Charles I casado com uma catoacutelica] A cultura da memoacuteria
fragmentou-se em linhas partisatildes e competitivas como rivais pelo controle do passado () Depois do
Grande Fogo de Londres em 1666 o Parlamento inaugurou um monumento () [uma] coluna Doacuterica
de 202 peacutes de altura () monumento ao desastre e a confiante reconstruccedilatildeo da cidade Mas logo ele
ganhou novos significados Rumores persistiram alegando que o fogo natildeo havia sido acidental mas
obra de papistas incendiaacuterios () Em 1681 quinze anos apoacutes o fogo () poliacuteticos Whig adicionaram
uma nova inscriccedilatildeo em maacutermore como um novo apelo agrave memoacuteria lsquoEste pilar foi erguido em
lembranccedila perpeacutetua do mais terriacutevel incecircndio desta cidade Protestante iniciado e levado a cabo pela
traiccedilatildeo e maliacutecia da facccedilatildeo papistarsquo () Sem surpresa James II mandou remover a inscriccedilatildeo mas ela
foi restaurada apoacutes o triunfo protestante na Revoluccedilatildeo gloriosa Eacute apenas em 1830 apoacutes a emancipaccedilatildeo
catoacutelica que a incrisccedilatildeo memorial seria permanentemente removidardquo 677 CRESSY op cit 65 678 NEWMANN William R GRAFTON Anthony (org) Secrets of Nature Astrology and Alchemy in
Early Modern Europe Cambridge MA 2001 principalmente pp 1-11
217
primeira delas representada pela astrologia oferecia inteligibilidade agrave histoacuteria
ldquoprocurando pela razatildeo suficiente de seu curso fora do mundo humanordquo Ao olhar
para os ceacuteus e tentar a partir do invisiacutevel traccedilar relaccedilotildees de influecircncia de uma regiatildeo
diferente do ser para com a esfera sublunar ldquoa razatildeo suficiente do curso da histoacuteria eacute
identificada com a sucessatildeo de eventos celestes resultando necessariamente da
locomoccedilatildeo circular dos astros dotados de poderes peculiaresrdquo Natildeo por acaso no
entanto com as bulas papais do seacuteculo XIII e a via media encontrada por Satildeo Tomaacutes
toda e qualquer doutrina natural da histoacuteria deveria ser subordinada agrave teologia
teocecircntrica ldquoIsso significardquo concluiu Pomian ldquoque se uma contradiccedilatildeo aparecer entre
as duas seraacute a segunda que vai ter a palavra decisivardquo 679
Formas de integrar todas as temporalidades de um dado objeto estudado
ambas as cronosofias projetavam descriccedilotildees de futuro de modo a tornar a histoacuteria do
passado e do presente inteligiacuteveis e completas680 Mas elas o fariam por caminhos
diferentes Uma das discrepacircncias mais significativas entre os pontos de vista
teocecircntrico-cristatildeo e astroloacutegico-natural da histoacuteria encontrava-se nos tratamentos
singulares dados aos problemas do espaccedilo e do tempo O sistema teocecircntrico vecirc as
relaccedilotildees espaciais com desinteresse tendo olhos ldquoapenas para a sucessatildeo temporalrdquo
ao passo que a astrologia reitera com forccedila o papel do espaccedilo da geografia em suma
do lugar como agente historicamente determinante681
Ao estudar as correspondecircncias entre o processo de secularizaccedilatildeo e a
emergecircncia do protestantismo na Inglaterra da primeira modernidade John
Sommerville argumentou que a feacute reformada levava a um entendimento diferente do
espaccedilo no qual capelas monasteacuterios e altares perdiam muitas das suas qualidades
sagradas Por sua vez as experiecircncias do tempo tambeacutem se modificavam com as
alteraccedilotildees nos calendaacuterios eclesiaacutesticos retirando a significaccedilatildeo dos santos682 Eacute
partindo de uma interface entre Pomian e Sommerville que Alison Chapman propotildee
679 POMIAN 1986 p 38-40 A via media estabelecida no seacuteculo XIII por Tomaacutes de Aquino continuou
pautando posiccedilotildees mesmo dentre as religiotildees reformadas John Booker (1602-1667) pregador puritano
tambeacutem foi um astroacutelogo profissional e escritor de almanaques Certamente natildeo dizia nada de
incomum quando escreveu que ldquoas estrelas satildeo letras e os ceacuteus o livro de Deusrdquo ldquoThe stars are letters
and the Heavenrsquos Godrsquos book which day and night we may at pleasure look and thereby learn
uprightly how to liverdquo apud CAPP Bernard English almanacs astrology and the popular press
1500-1800 Londres Farber amp Fauber 1979 p 143 680 Sobre a distinccedilatildeo entre cronometria cronologia e cronosofia ver pp 25-30 Tambeacutem POMIAN
1984 pp V-VI 681 POMIAN 1986 p 38-39 682 SOMMERVILLE John C The secularization of Early Modern England from religious culture to
religious faith Oxford 1992 p 8
218
uma leitura alternativa dos almanaques de efemeacuterides ingleses da primeira
modernidade Aonde autores como David Cressy enxergam o reflexo de um conjunto
nascente de poliacuteticas de memoacuteria e identidade nacional Chapman propotildee observar
tambeacutem uma miriacuteade de reaccedilotildees regionais ndash encabeccediladas por uma teologia natural de
tipo astroloacutegico ndash agraves mudanccedilas ocorridas nos calendaacuterios e nos lugares sagrados Com
a reforma carregando suas tintas no papel de um Deus onipresente a guiar o destino de
um novo povo eleito ndash relativizando assim o sentido do tempo e dos lugares
terrestres ndash os almanaques de efemeacuterides iriam contra a ldquotendecircncia geral do
pensamento protestanterdquo 683
Um almanaque que se proponha a oferecer por exemplo os horaacuterios precisos
para a aurora e o crepuacutesculo ao longo de todo um ano deveraacute fazecirc-lo tendo por base
uma regiatildeo bastante limitada como uma cidade ou um condado Era comum que
essas publicaccedilotildees anuais oferecerem indicaccedilotildees matemaacuteticas para que seus leitores
pudessem converter o valor dos horaacuterios para o uso em outras regiotildees Certos
almanaques eram vendidos com a promessa de possuiacuterem informaccedilotildees vaacutelidas ldquode
modo geral para toda a Inglaterrardquo enquanto outros de maneira provavelmente mais
sincera propagandeavam sua utilidade ldquopara as partes do Sul da Gratilde Bretanhardquo 684
William Lilly (1602-1681) astroacutelogo que se tornou popular com seus
almanaques de prognoacutesticos natildeo deixou de se preocupar com o problema das
aplicaccedilotildees regionais ldquoO mais abusado e celebrado astroacutelogo do seacuteculo XVIIrdquo
realmente construiu uma reputaccedilatildeo para si685 Lilly montou uma teia de contatos na
Inglaterra atraveacutes da qual impunemente praticava o contrabando de dados e profecias
astrais Ele quebrou a tradiccedilatildeo ao publicar textos que deixavam claro ao leitor
exatamente o que deveria saber para interpretar um caso astroloacutegico686 Lilly seguindo
o padratildeo dos dados astronocircmicos publicados nos almanaques do periacuteodo igualmente
683 CHAPMAN Alison A Marking time Astrology Almanacs and English Protestantism In
Renaissance Quaterly Volume 60 Number 4 Winter 2007 p 1260 ldquoI rehearse these broad shifts as
the necessary background to my primary subject the rise of the astrological almanach and the
consequent expansion of an astrologically informed awareness of the significance of time and spacerdquo p
1258 A tese do autor eacute certamente engenhosa Ela oferece um quadro explicativo bastante singular
para o sucesso editorial das efemeacuterides da primeira modernidade na Inglaterra Essa explicaccedilatildeo no
entanto natildeo da conta do igual sucesso desse tipo de publicaccedilatildeo em territoacuterios catoacutelicos como a Franccedila
a Itaacutelia e mesmo a Peniacutensula Ibeacuterica 684 CHAPMAN 2007 1264 685 CAPP 1979 p 57 686 GRAFTON Starry Messengers 2000 p 80
219
propocircs um sistema horoscoacutepico que subordinava suas leituras agraves diferentes
localizaccedilotildees geograacuteficas687
Estima-se que apenas entre os anos de 1664 e 1666 mais de um milhatildeo de
coacutepias desses almanaques foram impressas na Inglaterra Isso fez do gecircnero o maior
best-seller do periacuteodo excetuando-se eacute claro as diversas ediccedilotildees do Livro Sagrado688
Com a baixa nos preccedilos dos livros decorrente da invenccedilatildeo e proliferaccedilatildeo da imprensa
todo o tipo de calendaacuterio textual tornou-se mais e mais acessiacutevel689 Com as
efemeacuterides natildeo seria diferente Desde o seacuteculo XV segundo o dicionaacuterio de Oxford
ldquoos almanaques ou ephemerides comeccedilaram a ser preparados para periacuteodos definidos
como 30 ou 10 anosrdquo e a partir do seacuteculo seguinte jaacute eram editados ano a ano690
Tais publicaccedilotildees tambeacutem podem ser observadas como herdeiras de um tipo
de relaccedilatildeo com o tempo visiacutevel em algumas praacuteticas astroloacutegicas renascentistas que a
sua maneira valorizavam a dimensatildeo do instante Por anos a horoscopia cataacutertica
procurava a partir da observaccedilatildeo do movimento dos astros o momento mais oportuno
para a realizaccedilatildeo de eventos puacuteblicos e privados Popular nos territoacuterios germacircnicos a
teacutecnica foi utilizada para a escolha da data de fundaccedilatildeo da Universidade de
Wittenberg e da inauguraccedilatildeo de uma nova torre na abadia beneditina de Niederaltaich
que ateacute hoje conserva a inscriccedilatildeo de um horoacutescopo datado de 24 de julho de 1514691
Na Inglaterra o dramaturgo e poeta Thomas Middleton (1580-1627) expressou com
ironia essa experiecircncia do tempo ldquoEsposas satildeo como almanaquesrdquo escreveu em uma
687 CHAPMAN 2007 1265 688 Esses nuacutemeros foram estimados por BOSANQUET Eustace F English seventeenth century
almanacks In The Lybrary 10 1930 p 365 Bernard Capp trouxe mais recentemente outros nuacutemeros
ldquoNa deacutecada de 60 do seacuteculo XVII da qual evidencias detalhadas sobreviveram as vendas de
almanaques contaram em meacutedia 400000 coacutepias anuais () CAPP op cit p 23 Robert Houston por
sua vez referiu-se aos almanaques como ldquoo patildeo e mantega dos editores comunsrdquo HOUSTON Robert
Literacy in Early Modern Europe Culture and Education 1500-1800 London New York Longman
1988 p 169 Nuacutemeros para Portugal do seacuteculo XVIII foram trazidos ainda no seacuteculo XIX por
GUIMARAtildeES Ribeiro J Summaacuterio de Varia Histoacuteria Narrativas Lendas Biographias Descripccedilotildees
de Templos e Mommentos Estatiacutesticas Costumes Civis Poliacuteticos e Religiosos de outras eras Lisboa
Rolland amp Semiond 1873 para quem ldquoimprimiam-se por anno 15000 a 17500 folhinhas de algibeira
e 35500 de porta () antes o nuacutemero das de algibeira eta de 20000 e das de porta 40000rdquo p 196 Eacute
possiacutevel inferir que esse tipo de publicaccedilotildees fosse ao lado do livro sagrado o uacutenico tipo de leitura a
que muitas famiacutelias da primeira modernidade tinham acesso 689 Sobre essa questatildeo ver por exemplo os ensaios de CHARTIER Roger LrsquoOrdre des livres
Lecteurs Auteurs Bibliothegraveques en Europe entre XVI et XVIII siegravecle Alineacutea Aix-en-provence 1992
Para um tratamento a respeito de como o advento da imprensa criou as condiccedilotildees de possibilidade para
a revoluccedilatildeo cientiacutefica ndash tornando disponivel todo o corpus claacutessico ao escrutiacutenio criacutetico ver
EISENSTEIN Elizabeth The printing press as an agent of change 2 vol Cambridge 1979 Volume
II 573-575 690 SIMPSON John WEINER Edmund (org) The Oxford English Dictionary Clarendon Press
Oxford 1989 Entrada ldquoalmanachrdquo 691 HUumlBNER op cit p 25
220
de suas tragicomeacutedias ldquonoacutes podemos ter uma nova a cada anordquo Com tais escritos
diria Chapman o tempo comeccedilou a ser experenciado ele mesmo como algo
temporaacuterio692
O tempo efecircmero das efemeacuterides eacute demonstrado pela acircnsia dos letrados da
primeira modernidade em registraacute-lo e ordenaacute-lo Ateacute hoje somos pegos invejando se
surpreendendo ou mesmo fazendo chacotas com a pontualidade praticada nos paiacuteses
de feacute reformada Max Engammare dedicou-se a estudar como o renascimento e a
reforma calvinista produziram uma nova relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo A partir de
um diaacutelogo com autores como Max Weber Michel Foucault e Norbert Elias o autor
persegue a invenccedilatildeo da pontualidade ateacute a eacutetica calvinista segundo a qual todos os
instantes da vida humana deveriam ser consagrados agrave alianccedila com o fundador e
administrador da ordem do tempo Deveriacuteamos entatildeo circunscrever espacialmente as
noccedilotildees de um tempo renascentista ldquoflutuanterdquo ndash como expressaram as palavras
claacutessicas de Lucien Febvre ndash aos paiacuteses de religiatildeo romana693 Na Genebra do seacuteculo
XVI o tempo natildeo poderia se dar ao luxo de flutuar ou perder-se em sono improfiacutecuo
a ideia de aproveitar cada instante de produzir a cada minuto toma uma amplitude
que ndash somada agrave culpa protestante ndash adentra o proacuteprio vocabulaacuterio da eacutepoca A partir
da Formula Vivendi de Martin Bucer da Ratio Studiorum de Bullinger e tambeacutem das
Ephemerides de Cauzabon entre outras fontes o autor propotildee-se a analisar o medo da
perda de tempo cujos loci communes encontrariam siacutentese em uma nova economia
temporal voltada agrave caccedila das ociosidades694
Era uma eacutepoca em que reloacutegios espalhavam-se por todas as cidades da Europa
e encimando-se nos campanaacuterios ritmavam a vida comum do alto dos espaccedilos como
que zelando pela moral puacuteblica das praccedilas e mercados ao lembrar natildeo apenas da
passagem do tempo mas da iminecircncia da morte Michaeumll Beuther jurista e
historiador em nada estranho ao ciacuterculo de Lutero Melanchthon e Erasmus Reinhold
natildeo deixou de escrever uma Ephemeris Historica A obra surge em 1551 para logo
ganhar popularidade com sua experimentaccedilatildeo editorial As paacuteginas da publicaccedilatildeo
692 ldquowives are like almanacs we may have every year a new onerdquo MIDDLETON Thomas No wit no
help like a womanrsquos Lowell Johnson (ed) Lincoln 1976 (1611) 51324-325 CHAPMAN 2007
1270 693 ldquoTemps flottant temps dormantrdquo Lucien Febvre Le problegraveme de lrsquoincroyance au XVIe siegravecle La
religion de Rabelais Eacutedition revue Collection Lrsquoeacutevolution de lrsquohumaniteacute synthegravese collective Albin
Michel Paris 1947 Ver capiacutetulo III do segundo livro Les limites de lrsquoincroyance au XVIe siegravecle Les
appuis de lrsquoirreacuteligion les sciences Toacutepico 4 694 ENGAMMARE Max Lrsquoordre du temps Lrsquoinvention de la poncutualiteacute au XVIe siegravecle Droz Les
seuils de la moderniteacute Vol 8 Genebra 2004
221
ofereciam uma entrada geral para cada mecircs seguida de um artigo especiacutefico para cada
dia concordando a cronologia de latinos de gregos e de hebreus695 Mas sua real
inovaccedilatildeo tipograacutefica consistia em deixar a metade de cada paacutegina em branco
reservando espaccedilo aos leitores de modo que pudessem anotar suas proacuteprias
efemeacuterides Em 1551 o livro eacute publicado na Franccedila696 Franccedilois Rassius cirurgiatildeo
parisiense utilizou essa espeacutecie de cronologia interativa Entre os espaccedilos vazios
precisou informaccedilotildees sobre um evento marcante de sua vida ldquono ano do Senhor de
1551 casei-me com Maria la Prestre depois da meia noite entre a primeira e a
segunda horardquo697
O mais famoso exemplar da Ephemeris Historica de Beuther como um
resquiacutecio dessa era dos diaacuterios estaacute preservado na Biblioteca Municipal de Bordeaux
Nele lemos na entrada para o dia primeiro de agosto que em ldquo1581 quando estava
em Luca fui eleito prefeito de Bordeaux no lugar do senhor Marechal de Bironrdquo Na
entrada do dia 19 de dezembro descobrimos que ldquoem 1584 o rei de Navarra veio me
verrdquo Henrique III ndash que logo a seguir em 1589 seria tambeacutem o IV de seu nome em
Franccedila ndash ldquodormiu na minha camardquo e sequer se serviu de um essai esse teste de
prevenccedilatildeo de envenenamento realizado pela prova do manjar real por um ldquooficial de
bocardquo (officier de bouche) Jaacute para o dia 28 de outubro entendemos que ldquono ano de
1571 () fui feito cavaleiro da ordem de Satildeo Michelrdquo Por fim em uma entrada mais
precisa dia 5 de julho estaacute escrito que ldquono ano de 1573 por volta das cinco horas da
manhatilde em Montaigne nasceu de minha esposa Franccediloise de La Chassaigne e de mim
uma menina que foi o terceiro filho de nosso casamentordquo 698 Natildeo era apenas a respeito
695 BEVTHERI Michaelis Ephemeris historica Eivsdem de annorum mundi concinna dispositione
libellus Ex officina Michealis Fezandat et Roberti Grandion Taberna Graphyana Paris 1551 696 A foacutermula tipograacutefica de Beuther seria tambeacutem reeditada por casas editoriais inglesas Com o
Almanack de Thomas Hill publicado em 1571 e pensado na forma de um Livro da Memoacuteria oferecia
aos leitores uma coluna vazia na margem inferior de cada paacutegina Com Thomas Bretor Jonathan Dove
Daniel Browne e Richard Allestree uma geraccedilatildeo mais tarde os almanaques comeccedilaram a deixar
grandes colunas vazias bem no meio das paacuteginas de calendaacuterios Alison Chapman lembra o caso do
escritor John Evelyn (1620-1706) que ldquoresumiu essa preocupaccedilatildeo em recordar e precisar o tempo de
um evento Ele escreve que lsquocomecei a observar as coisas mais pontualmente das quais escrevi na
parte em branco do Almanaquersquo e suas notas satildeo cada vez mais precisas em relaccedilatildeo ao tempo e ao
espaccedilordquo EVELYN John The Diary of John Evelyn De Beer (ed) Oxford 1955 176 ver
CHAPMAN 2007 1282-1284 697 ldquoAnno D 1551 uxorem duxi Mariam la Prestre inter primam et 2am a media nocterdquo Citado por
LAUROUSSE Pierre Grand dictionnaire universel du xix siecle Paris Grand Dictionnaire Universel
Verbete Eacutepheacutemeacuteride p 689-6 698 O documento encontra-se na Bibliothegraveque municipale de Bordeaux Fonds patrimoniaux Ms 1922
e tambeacutem foi disponibilizado online recentemente em trecircs versotildees diplomaacutetica regularizada e
modernizada LEGROS Allan (org) Beuther annoteacute par Montaigne Bibliothegraveques Virtuelles
Humanistes Eacutedition selon trois modes successifs 20022014 Disponiacutevel em httpwwwbvhuniv-
toursfrMONLOEBeutherasp Acesso em 09072014 Refencio aqui os trechos supracitados em
222
de seu cursus honorum que Michel de Montaigne escrevia nas Efemeacuterides Histoacutericas
Em duas entradas dias 10 e 20 de julho ambas relativas ao ano de 1588 ele reclama
de dores no peacute esquerdo causadas por ldquouma espeacutecie de gotardquo 699
Tempo da moral privada as efemeacuterides tambeacutem poderiam contar o tempo da
moral puacuteblica quiccedilaacute em toda sua emaranhada trama poliacutetica caso o autor dos ensaios
ou outro membro da famiacutelia eacute claro tivesse interesse em registraacute-las para a
posteridade O supracitado Henrique de Bourdon chefe do partido protestante logo
se faria amigo e protetor Jean Lacouture pergunta onde estava Montaigne na fatiacutedica
noite de 24 de agosto de 1572 Ainda mais importante o que ele estaria fazendo nos
dias 3 4 e 5 de outubro quando trecircs centenas de huguenotes foram massacrados a dez
leacuteguas de sua casa em Bordeaux ldquoTeria sido faacutecil para ele manifestar sua reprovaccedilatildeo
ou simplesmente sua tristeza no lsquoBeutherrsquo a efemeacuteride familiar longe dos olhos do
puacuteblico das autoridades e dos fanaacuteticos armadosrdquo Mas Montaigne preferiu o silecircncio
As paacuteginas que contavam os primeiros dias do mecircs de outubro foram arrancadas ldquoPor
quem Por ele proacuteprio temeroso do julgamento que havia proferido sobre o ato de
seus concidadatildeosrdquo 700 Natildeo temos como saber Mas natildeo seria difiacutecil visualizar um
Montaigne consciente dos usos poliacuteticos que poderiam ser feitos do seu passado a
partir das efemeacuterides Ou quem sabe outro membro da famiacutelia Talvez sua esposa
Franccediloise quem sabe Leacuteonor sua filha ainda Marie a neta ou Claude-Madeleine
bisneta mulheres que se sucederam na tarefa de manter viva ateacute o seacuteculo XVIII a
tradiccedilatildeo de lembrar ou esquecer dos eventos marcantes da famiacutelia nos espaccedilos em
branco de seu exemplar da Ephemeris Historica de Beuther701
ldquoEmbora seja datado da antiguidaderdquo escreveu Eileen Reeves ldquoo almanaque
floresceu na revoluccedilatildeo impressa do final do seacuteculo XVrdquo Uacutetil ao uso imediato em
ordem a partir da versatildeo regularizada ldquo1581 estant a Lucques ie fus esleu maire de bourdeaus en la
place de mōsieur le mareschal de Biron ()rdquo(p 19) ldquo1584 le roy de nauarre me uint uoir a mōtaigne ou
il nrsquoauoit iamais este et y fut deus iours serui de mes ians sans aucun de ses officiers il nrsquoy souffrit ny
essai ny couuert et dormit dans mon()rdquo (p 26) ldquoLrsquoan 1571 suiuant le comādemāt du roy amp la
despesche que sa maiestegrave mrsquoen auoeumlt faicte ie fu faict chaeualier de lordre s michel ()rdquo (p 23) Lan
1573 enuiron les cinq heures du matin naquit de frāccediloise de la chassaigne ma fame et de moy a
montaigne une fille qui fut le troisiesme ēfant de nostre mariage ()(p 15) Sobre o essai ver a nota
lateral na ediccedilatildeo modernizada p 26 699 Ibidem ediccedilatildeo regularizada 10 de julho ldquo1588 entre trois et quatre apres midi estant logegrave aus faus
bours saint germein a Paris et malade drsquoun espece de goutte () 20 de julho 1588 entre trois et
quatre apres midi estant a Paris et au lit a cause drsquoune dolur qui mrsquoauoit pris au pied gauche trois iours
dauant qui sera a laduanture unrsquoespece de goutte () p 17 700LACOUTURE Jean Montaigne a Cavalo Record Rio de Janeiro 1998 p 161 701 Sobre a linhagem matriarcal das efemeacuterides da famiacutelia Montaigne ver LEGROS Allan (org)
Introduction In Beuther annoteacute par Montaigne op cit sp O texto natildeo faz menccedilatildeo ao silecircncio a
respeito da noite de Satildeo Bartolomeu
223
diversos aspectos da vida civil e domeacutestica suas paacuteginas traziam toda espeacutecie de
informaccedilatildeo a respeito do futuro proacuteximo ldquoquando eclipses solares e lunares
ocorreriam quando eram esperadas mudanccedilas nos padrotildees climaacuteticos quando
grandes feriados religiosos e datas festivas deveriam ser celebradasrdquo e mesmo
ldquoquando sangrias banhos e cortes de cabelo seriam melhor realizadosrdquo Na Itaacutelia para
oferecer dados astronocircmicos precisos assim como no resto da Europa esses panfletos
precisavam se especializar em uma determinada regiatildeo Pouco a pouco comeccedilavam a
publicar pequenas notas locais rumores e novidades Matteo Franzesi secretaacuterio na
Cuacuteria Romana entre a deacutecada de 30 e 40 do seacuteculo XVI relacionou prognoacutesticos com
a sede por notiacutecias ldquoDeixe que o adivinho com base em conjecturas e discussotildees
astrologizerdquo702
No final do seacuteculo XVI sucessivas bulas papais tentavam lidar condenar ou
censurar panfletos de notiacutecias que mesmo natildeo necessariamente astroloacutegicos em
origem costumavam arriscar seus prognoacutesticos A arte nuova dos publicistas
preocupava tanto a atenccedilatildeo dos pontiacutefices de Satildeo Pedro quanto as velhas tradiccedilotildees
secretas Como mostra Eileen Reeves o contrabando entre notiacutecias e almanaques
parece ter se intensificado a partir das primeiras deacutecadas do seacuteculo XVII com o
raacutepido desenvolvimento da astronomia e o aumento das tiragens impressas A
historiadora estudou aquilo que Franccedilois Hartog chamou em sua investigaccedilatildeo sobre a
evidecircncia da histoacuteria de ldquodescoberta ocular do mundo a partir da Renascenccedilardquo703 Os
astrocircnomos natildeo apenas abriam os olhos mas ampliavam sua visatildeo pela arte com a
invenccedilatildeo do telescoacutepio por Galileo e seu posterior aprimoramento com Kepler
A observaccedilatildeo dos ceacuteus alimentava o impresso que tratava de se fazer ouvir
como Mensageiro das estrelas a respeito da descoberta das luas mediceas do
surgimento de estrelas novas e da constataccedilatildeo que lua natildeo era como muitos
defensores do texto pensavam uma esfera lisa e perfeita mas possuidora de
irregularidades similares agraves presentes no mundo sujeito agrave geraccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo Em
1613 Adriano Politi publicou o seu Dicionaacuterio Toscano Nesse resumo do Dicionaacuterio
de Linguagem Italiana ndash lanccedilado em 1612 por uma academia florentina ligada a
Galileo ndash Politi adicionou uma nova entrada gazetta termo talvez derivado de uma
pequena moeda cunhada em Veneza ldquolsquoUma gazettardquo diz o verbete ldquoeacute composta de
702 FRANZESI Sopra le nouve 207-8 apud REEVES Eileen Evening News Optics Astronomy and
Journalism in Early Modern Europe University of Pennsylvania Press Philadelphia Kindle version
sp 2014 Texto que agora sigo 703 HARTOG 2011 p 143
224
paacuteginas de informaccedilotildees trazidas por mexeriqueirosrdquo que em latim poderiam ser
chamadas de ldquobreve comentaacuterio a respeito de eventos puacuteblicos ou lsquoephemeridesrsquordquo 704
Em Portugal os almanaques astroloacutegicos eram chamados de prognoacutesticos
sarrabais ou lunaacuterios dos tempos Pequenas e de largas tiragens essas peccedilas de
periodicidade anual seguiam os padrotildees editoriais comuns ao gecircnero trazendo a um
puacuteblico semiletrado todo o tipo de informaccedilotildees utilitaacuterias associadas a prognoacutesticos
celestes e indicaccedilotildees das fases da lua assim como eventuais eclipses e conjunccedilotildees
planetares As efemeacuterides lusitanas configuraram uma grande padronizaccedilatildeo embora
pouco a pouco a essa estrutura homogecircnea fossem incluiacutedos outros conteuacutedos
informativos O valenciano Francisco de Gusman jaacute trazia em seu Prognostico y
Lunario de los Tiempos para ano de 1610 listagens das famiacutelias nobres de Espanha
no que foi seguido no seacuteculo seguinte pelas contrapartes portuguesas representadas
pelos almanaques de Rodrigo de Sousa Alcaforado e Leonardo Vaz de Brito Era
igualmente recorrente a divulgaccedilatildeo de aspectos e descriccedilotildees das proviacutencias reais ao
longo dos periacuteodos filipino e brigantino705
Durante o seacuteculo XVII seguindo uma tendecircncia perceptiacutevel por toda a Europa
continental e insular os almanaques portugueses em conteuacutedo e em vocabulaacuterio
igualmente comeccedilam a oferecer avisos e novidades aos seus leitores Mas elas nem
sempre tratavam dos ceacuteus Notiacutecias a respeito das guerras com a Espanha ou ainda
com os holandeses que ocupavam o nordeste brasileiro satildeo publicadas nos lunaacuterios
dos tempos por vezes em secccedilotildees jaacute indicadas com essa finalidade nos proacutelogos Eacute o
que se pode observar nos escritos de Antocircnio Pais Ferraz que em seu Prognostico e
Lunario do ano de 1656 trazia a notiacutecia da libertaccedilatildeo de Pernambuco706
E quanto agrave credibilidade desses perioacutedicos e seus conteuacutedos ldquoEste ano os
cegos veratildeo muito pouco os surdos ouviratildeo bastante mal os mudos quase natildeo
704 Na traduccedilatildeo de Reeves ldquoa gazetta is composed of sheets of reports from newsmongers in Latin one
might phrase it lsquobrief commentary on public eventsrsquo or lsquoephemeridesrsquordquo POLITI Adriano Dittionario
toscano compendio del Vocabolario della Crusca Compilato dal sign Aggiuntoui assaissime voci e
auertimenti necessarij per il scriuere perfettamente toscano Venetia appresso Gio Guerigli amp
Francesco Bolzetta MDCXV p 359 Apud REEVES op cit sd 705 Continuo seguindo CAROLINO Luiacutes Miguel Ciecircncia Astrologia e Sociedade a Teoria da
Influecircncia Celeste em Portugal (1593-1755) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian Porto 2003
principalmente cap 6 p 204 E tambeacutem CAROLINO Luiacutes Miguel A escrita celeste almanaques
astroloacutegicos em Portugal nos seacuteculos XVII e XVIII Rio de Janeiro Access 2002 706 FERRAZ Antoacutenio Pais Prognostico e Lunario do anno de 1656 com as conjunccedilotildees e mais
aspectos da Lua com o Sol e mudanccedilas de tempo E alguns avisos muy importantes para os
Lavradores Calculando ao meridiano de Lisboa cabeccedila da Lusitana Composto por Filosofo e
Mathematico natural desta corte e Cidade de Lisboa Lisboa por Joatildeo Alvarez de Leatildeo 1655 fl1v
apud CAROLINO 2003 p 206
225
falaratildeo os ricos se sentiratildeo um pouco melhor do que os pobres e os que gozarem de
boa saacuteude melhor do que os doentesrdquo707 O prognoacutestico como saacutetira andava de par
como se vecirc com os primoacuterdios da imprensa efecircmera Mais tarde no entanto esse
topos chegaraacute a dominar o gecircnero Com a crescente perda de legitimidade da
cosmologia aristoteacutelica ao longo dos seacuteculo XVII e XVIII a ascensatildeo da astronomia e
o estatuto ambiacuteguo atribuiacutedo agraves teorias da influecircncia celeste ndash ora usadas pelos
priacutencipes ora condenadas agrave astrologia ldquopopularrdquo ndash o escaacuternio e o burlesco tomam
conta dos almanaques de efemeacuterides
Mais ao norte o Poor Robinrsquos previa chuvas para a Inglaterra e mortes para os
mais velhos Em Portugal os feitores de almanaques como uma primeira medida
defensiva tambeacutem esconderiam-se por meio de pseudocircnimos que sussuravam o
oacutebvio A descrenccedila na influecircncia dos ceacuteus mesmo por parte dos que se diziam saacutebios
no assunto jaacute natildeo parecia um problema ldquoQuem se quizer divirtir fale comigordquo
escreveu um astroacutelogo saacutetiro ldquoquem quizer instruir-se em Astrologias leya por
outrosrdquo708 Os prognoacutesticos propriamente ditos ndash que nos sarrabais lusitanos
raramente ousavam versar sobre a vida dos reis ndash tornam-se mais compaacutectos
resumindo-se a descrever os ciclos naturais e a prever aspectos climaacuteticos e utilitaacuterios
como a menccedilatildeo dos horaacuterios da aurora e do crepuacutesculo e a indicaccedilatildeo das fases da lua
e das estaccedilotildees do ano
Em Portugal a crise de legitimidade dos prognoacutesticos levava os feitores de
almanaques natildeo sem ironia a declarar seus leitores como inimigos lanccedilando
vitupeacuterios contra colegas e apresentando-se ndash ao sabor de uma tradiccedilatildeo satiacuterica que
707 RABELAIS Franccedilois Prognoacutesticos Pantagrueacutelicos In ROSSI Paolo (org) Visotildees do fim do
mundo Renata Cordeiro (trad) Satildeo Paulo Landy Editora 2006 p 86 No que continua o prognoacutestico
ao longo da paacutegina seguinte ldquoVaacuterios carneiros bois porcos aves frangos patos morreratildeo mas tatildeo
cruel mortandade natildeo se abateraacute sobre os macacos e os dromedaacuterios Neste ano a velhice seraacute
incuraacutevel por causa dos anos passados Os lacrimosos sentiratildeo grandes dores nos lados do corpo Os
que tiverem diarreacuteia montaratildeo sempre em selas furadas Neste ano os catarros desceratildeo do ceacuterebro ateacute
os membros inferiores A dor drsquoolhos seraacute muito contraacuteria agrave boa visatildeo Na Gasconha as orelhas seratildeo
curtas e mais raras do que de costume E quase universalmente reinaraacute uma doenccedila muito horriacutevel e
temida maligna perversa assustadora e de dar medo que deixaraacute o mundo muito aterrorizado sob a
sua influecircncia muitas pessoas natildeo saberatildeo de que maneira fazer as flechas e muito amiuacutede tentaratildeo
resolver esses problemas com fantasias fazendo planos sobre a pedra filosofal e as orelhas de Midas
Tremo de medo quando penso nisso pois eu lhes digo que essa doenccedila seraacute epidecircmica e Averrois a
chama de falta de dinheiro E devido ao cometa do ano passado e da retraccedilatildeo de Saturno no hospital
morreraacute um grande patife cheio de catarros e bexigas e por ocasiatildeo de sua morte haveraacute uma sediccedilatildeo
horriacutevel entre os gatos e os ratos entre os catildees e as lebres entre os falcotildees e os patos entre as focas e
os ovosrdquo 708 FIALHO (psued) Fuas Feio Sarrabal cidadaotilde Astrologo Casquilho Desenfado do Povo Remedio
dos Cegos e Palito dos Criticos ou Lunaacuterio verdadeiro (ou para cada hum chamar como quizer)
para o anno de 1745 p 5 Apud CAROLINO 2003 p 229 que fala em uma ldquototal descrenccedila no juiacutezo
dos astroacutelogosrdquo
226
poderia ser recuada agrave Histoacuteria Verdadeira de Luciano de Samoacutesata ndash como falsaacuterios
sem credibilidade Se havia alguma hesitaccedilatildeo em condenar a influecircncia celeste para
fora dos regimes de verdade do esclarescimento o terremoto de 1755 jaacute observado
por seus contemporacircneos como fenocircmeno meramente natural veio sepultar a
pretensatildeo dos astroacutelogos e sedimentar sobre eles os signos da mentira e da
inutilidade709 O seacuteculo XVIII foi o momento em que como afirmou Luiacutes Miguel
Carolino ao emular as fontes os almanaques entram pelo ldquobeco da astrologiardquo
ldquoSegurem-me agarraem-merdquo como certa feita escrevera um pobre cego ldquoprendaotilde-
me esse novelleiro esse cambaio esse embusteiro esse tomba lobos esse
historiadorrdquo homem que agora ldquoentra pelo becco da Astrologiardquo710
Como jaacute demonstravam os cacircnones para o leitura e uso das efemeacuterides ndash
publicados na metade do seacuteculo XVI por Oronce Fineacute ndash o saacutebio celeste era um
defensor do texto da tradiccedilatildeo e da autoridade escrita Com a observaccedilatildeo dos ceacuteus
intensificada no iniacutecio do seacuteculo seguinte por Galileo e Kepler essa realidade iria se
inverter Eacute sobre esse problema que Herveacute Dreacutevillon investigando a Astrologia na
Franccedila do Grande Seacuteculo (1610-1715) inicia o seu inqueacuterito ldquoAstrocircnomo ou
astroacutelogordquo escreveria o historiador ldquoesse homem eacute antes de mais nada um leitorrdquo
Abandonando por um momento a leitura dos claacutessicos como Ptolomeu ele passaria agrave
autoacutepsia do cosmos No entanto o que ele enxerga perguntaria Dreacutevillon senatildeo um
ldquoconjunto de signos de uma linguagem celeste na qual a astrologia forma o alfabeto e
a gramaacuteticardquo Na tarefa de decifrar a voz das esferas os Hallucinati voltam-se
novamente agrave leitura no que poderiacuteamos acrescentar que natildeo deixam de escutar
estrelas ldquoEsse eacute o universo dos astroacutelogos leitores de livros e leitores do mundordquo711
709 Sobre a relaccedilatildeo entre o terremoto e a descrenccedila na astrologia em Portugal Ver CAROLINO 2003
p 333-343 710 PEQUENO Antocircnio (pseud) O Cego astrologo Antonio Pequeno filho bastardo do Sarrabal
Saloyo offerece A todos os cegos cegonhas e tortos este grande Prognostico para o anno de 1739
terceiro depois do Bissexto Calculado em Cataluna e ajustado nas Lunaccediloens agraves duas Lisboas Pela
altura so seu Polo 38 graus e 42 minutos de curiosa elevaccedilatildeo ampc Lisboa Officina de Miguel
Rodrigues 1738 pp 2-3 apud CAROLINO 2003 p 199 e 201 Grifos meus 711 DREacuteVILLON Herveacute Lire et eacutecrire lrsquoavenir Lrsquoastrologie dans la France du Grand Siegravecle (1610-
1715) Seysell Champ Vallon 1996 p 10 Grifos meus Entre os seacuteculos XVI e XVII momento da
descoberta ocular do cosmos o autor opotildee duas fontes a primeira as Tableaux accomplis de tous les
arts libeacuteraux publicadas por Christophe de Savigny em 1587 que afiliam a astrologia agrave fiacutesica dos
corpos simples ignorando a astronomia a segunda o Dictionnaire Universel de Furetiegravere publicado
em 1690 que vai opor a astronomia agrave astrologia com a primeira expressando ldquoo maior alcance do
espiacuterito humanordquo e a segunda qualificada como ldquociecircncia vatilde e incertardquo Como um meio termo
publicado na metade do seacuteculo XVII encontramos no Traiteacute des supertitions de Jean-Baptiste Thiers
a astrologia simplesmente definida como uma arte que lecirc signos nos ceacuteus Idem ibidem pp 11-13
227
Na Praga do seacuteculo XVII como mostrou mais recentemente Eileen Reeves as
novidades encontradas nos ceacuteus eram acompanhadas de notiacutecias terrestres relaccedilotildees
tanto confusas entre as duas e disputas publicistas entre jesuiacutetas e protestantes712
Dreacutevillon escrevendo sobre a Franccedila atacou o problema em duas frentes a partir de
um exame da recepccedilatildeo da astrologia ao longo do Grande Seacuteculo e igualmente de um
estudo a respeito dos motivos que levaram os monarcas franceses a condenar e enfim
lanccedilar agrave oacuterbita das ldquosuperticcedilotildees do populachordquo um tipo de saber que nos anos
imediatamente anteriores natildeo haviam cansado de utilizar713
Uma das contribuiccedilotildees do trabalho de Dreacutevillon reside precisamente em
demonstrar que a perda de prestiacutegio da astrologia natildeo se resume agraves criacuteticas de uma
Repuacuteblica das Letras Se Reeves destacou que as bulas papais de 1586 e 1631 natildeo
voltavam suas vozes apenas contra os conhecimentos astroloacutegicos mas igualmente a
todo tipo de publicismo relacionado a elas o historiador francecircs ressaltou que em se
tratando de condenar os saberes celestes os documentos pontificais natildeo iam muito
aleacutem das criacuteticas agraves abordagens judiciaacuterias e divinatoacuterias714 Manobrando entre os
ldquoexcessosrdquo de suas praacuteticas sensiacuteveis ao problema do livre arbiacutetrio os apoacutestolos da
influecircncia celeste mantiveram-se ativos Natildeo se tratava ainda de condenar a validade
de seus pressupostos mas certo uso de seu repertoacuterio Com as ordonnaces de 1560 e
1576 reforccediladas pela declaraccedilatildeo real de 1628 os almanaques de efemeacuterides contendo
prognoacutesticos de natureza poliacutetica foram condenados e proibidos o que natildeo impediu
no entanto que consultas inviduais a astroacutelogos fossem realizadas715
Dreacutevillon mostra por outro lado como essa foi a era da paulatina
marginalizaccedilatildeo social e intelectual da astrologia popular Com os almanaques de
Troye as efemeacuterides manteacutem as mesmas rubricas o mesmo tipo de previsotildees
metereoloacutegicas e tambeacutem a mesma linguagem por vezes hermeacutetica que
712 Ver REEVES 2014 principalmente cap 1 e 2 713 Acompanho tambeacutem a leitura de GUERY Alain Herveacute Dreacutevillon Lire et eacutecrire lrsquoavenir
Lrsquoastrologie dans la France du Grand Siegravecle Resenha Annales Histoire Sciences Sociales 1999
Volume 54 Numero 2 pp 415-117 714 A bula papal de 1586 ndash Contra exercedentes artem Astrologiae judicariae ndash baseava-se na oposiccedilatildeo
entre astrologia natural e astrologia judiciaacuteria A primeira era a arte de prever os efeitos naturais da
influecircncia celeste (clima ventos tempestades trovotildees cometas eclipses etc) a segunda tratava de
prever eventos humanos (guerras queda de Estados morte de reis e papas etc) DREacuteVILLON op cit
p 33 e 79 O historiador francecircs debate essa distinccedilatildeo no ldquoDiscours sur lrsquoastrologie judiciairerdquo que
Richelieu encomendou ao orador Gondren sublinhando que as criacuteticas agrave astrologia natildeo se resumem
pelo seu confronto com a racionalidade cientiacutefica Tratava-se no entanto de uma distinccedilatildeo recorrente
utilizada por autores tatildeo diacutespares quanto Hobbes e Calvino Ver WEBER Dominique Hobbes et les
deacutesir des fous rationaliteacute preacutevisions et politique Presses de la Sorbonne Paris 2007 p 117 715 Segundo CAPP 1979 45 na Inglaterra em alguns casos os almanaques serviam para divulgar os
serviccedilos individuais dos astroacutelogos
228
caracterizava o gecircnero na Franccedila A diferenccedila Ela residia tatildeo somente na
apresentaccedilatildeo papel ruim caracteres borrados xilogravuras grosseiras Tais eram as
caracteriacutesticas das publicaccedilotildees de Pierre I de Larivey o Claude Morel de Troyes que
fez escola desde seu Almanaque para o ano da graccedila de mil seiscentos e onze ateacute a
morte de seu sobrinho e continuador Pierre II de Larivey em 1634716 Como algumas
deacutecadas antes havia sublinhado Geneviegraveve Bollegraveme esse tipo de publicaccedilatildeo era
popular no interior da Franccedila natildeo tanto pelo seus conteuacutedos astroloacutegicos mas
principalmente pelas informaccedilotildees uacuteteis relativas ao cotidiano camponecircs717
Seguindo a tensatildeo antiga entre bonae artes e externae supertitiones Richelieu
natildeo deixaria de chamar a Paris o autor da Citeacute du soleil obra publicada em diversas
versotildees entre 1602 e 1643 Tommaso Campanella imaginou em um diaacutelogo de estilo
platocircnico entre um cavaleiro hospitalaacuterio e um genovecircs uma sociedade utoacutepica
localizada na ilha de Taprobana regida pela ldquoordem da naturezardquo e governada por um
ldquoMetafiacutesicordquo Seus habitantes adoravam o gerador uma vez que ldquono Sol eacute a imagem
do todo poderoso que eles reconhecem sauacutedam nele o Criador sua figura sua estaacutetua
viva eacute ele quem distribui a luz o calor e a vidardquo 718 Dreacutevillon faz uma leitura dos
termos ldquofigurardquo e ldquoestaacutetua vivardquo a partir do sentido que a filosofia hermeacutetica de
Campanella os conferiria ldquoDessa formardquo defendeu o historiador ldquoo sol natildeo faz agraves
vezes de criador ele eacute o criadorrdquo ligando-se por uma relaccedilatildeo de similitude na qual o
ldquoMetafiacutesicordquo sacerdote-rei ocuparia o terceiro niacutevel da representaccedilatildeo719
Representaccedilatildeo que como se pode ver em duas fontes apresentadas pelo autor
corresponderia a certa visatildeo de Luiacutes XIII
Em 1614 surge um panfleto condenando Morgard autor que dava seu nome a
uma popular efemeacuteride astroloacutegica As Memoacuterias de Richelieu chegam a lembrar o
caso quando comentam que ldquoos almanaques desde o comeccedilo do ano soacute falavam da
guerrardquo O Anti-Morgan atacava pessoalmente o astroacutelogo homem que natildeo tinha
ldquooutra estima perante o mundo senatildeo a de um fazedor de almanaquesrdquo Mas natildeo se
716 DREacuteVILLON op cit 145 717 ver BOLLEgraveME Geneviegraveve Les Almanachs Populaires aux XVIIe et XVIII siegravecles Essai d`histoire
sociale Paris Mouton 1969 pp 14-16 718 ldquodans le Soleil crsquoest lrsquoimage du tout puissant qursquoils reconnaissent ils saluent en lui le Creacuteateur sa
figure sa statue vivante crsquoest lui qui distribue la lumiegravere la chaleur et la vierdquoCAMPANELLA T La
Citeacute du Soleil In Voyages aux pays de nulle part Paris Robert Laffront 1990 (1623) p 269 apud
DREacuteVILLON op cit p 110 719 ldquoMais ce systegraveme drsquoeacutequivalence symbolique entre le Soleil et le Creacuteateur ne srsquoarrecircte pas lagrave puisque
le grand precirctre de la Citeacute du soleil srsquoappelle le ldquoMeacutetaphysicienrdquo ou encore le ldquoSoleilrdquo Ainsi le
monarque lrsquoimage et le creacuteateur ne font qursquoun ne sont qursquoun dans cette relation de similitude agrave trois
niveauxrdquo Idem Ibidem
229
tratava de uma criacutetica ao saber celeste Para Dreacutevillon ldquoa acusaccedilatildeo de uso iliacutecito da
astrologia foi apenas um pretextordquo Ou natildeo vemos o autor anocircnimo do panfleto de
1614 ensaiando uma tentativa de ldquorestauraccedilatildeo do prestiacutegio da monarquia pela
exploraccedilatildeo da metaacutefora solar e das trecircs propriedades do solrdquo em uma cena que
contempla os raios da estrela sua circularidade e sua luz ldquoaos quais satildeo associadas
lsquotrecircs virtudes particulares anexas agrave pessoa real () a Majestade o Poder e a
Justiccedilarsquordquo720 Quatro anos antes no contexto do assassinato de Henrique IV conforme
Reeves muitos haviam visto na publicaccedilatildeo do Mensageiro das Estrelas mediceas de
Galileo o prenuacutencio de uma regecircncia italiana na Franccedila721 No conturbado ano dos
Estados Gerais imagens inspiradas no hermetismo de Campanella disputavam espaccedilo
com as previsotildees dos almanaques e ldquoenunciando as propriedades do solrdquo afirmava-
se como declarou Dreacutevillon ldquouma definiccedilatildeo da monarquiardquo 722
Assim como aconteceria na Inglaterra da Guerra Civil aonde os almanaques
de efemeacuterides chegaram a ser vistos como ldquolsquopropaganda de guerrarsquordquo utilizada por
ldquoambos os lados do conflitordquo e seus autores ldquoformadores de opiniatildeordquo esse tipo de
primeiro publicismo emaranhava-se entre as disputas e quimeras poliacuteticas francesas
do seacuteculo XVII723 Logo no entanto o rei sol que refletia as imagens do Metafiacutesico
de Campanella declararia natildeo precisar mais da influecircncia de outros astros para
governar na Terra Afinal natildeo era apenas o ldquoavenir radieuxrdquo da Cidadela do Sol que
reluzia em certos usos das efemeacuterides Em 1631 e mesmo antes em 1614 astroacutelogos
foram acusados de crime lesa-majestade Jaacute na metade do seacuteculo a Previsatildeo
Maravilhosa de Sieur Andreas atribuiacuteda ao ldquogrande astroacutelogo Eistadius nas suas
Efemeacuteridesrdquo prognosticava com precisatildeo o eclipse total de 1654 E indicando uma
ldquopavorosa escuridatildeordquo de trecircs horas na verdade alardeava a proximidade do fim dos
tempos que seria antecedida pela conflagraccedilatildeo de todos os poderes pela a subversatildeo
720 RICHELIEU Meacutemoires In Michaud et Poujoulat Nouvelles Collections des meacutemoires pour servir
agrave lrsquohistoire de France Paris 1838 2 seacuterie vol 7 p 65 LrsquoAnti-Morgard (anocircnimo) Sur ses preacutedictions
de la presente anneacutee mil six cens quatorze Paris Anthoine de Breuil 1614 p 4 apud DREacuteVILLON op
cit p 102 Na mesma paacutegina o autor lembra que Pierre de lrsquoEstoile jaacute descrevia a censura de Maria de
Meacutedicis sobre o Almanaque Morgar para 1611 com a justificativa de que aquela publicaccedilatildeo ldquopreacutedisait
toutes choses funestes et malencontreuses comme pestes guerres renversements drsquoeacutetats avec morts
de rois et de reinesrdquo Pierre de lrsquoEstoile Journal pour la regravegne de Henri IV (1610-1611) Vol 3 Paris
Gallimard 1960 p 198 721 Para a recepccedilatildeo do Sidereus Nuncius na Praga e na Florenccedila de comeccedilos do seacuteculo XVII ver
REEVES op cit principalmente cap 2 722 No que ele completa ldquoLrsquoastrologie ne constitue pas une repreacutesentation neutre elle participe agrave la
deacutefinition du pouvoir et de sa missionrdquo DREacuteVILLON op cit 110 723 As expressotildees satildeo de FERREIRA Juliana Mesquita Hidalgo Propaganda e criacutetica social nas
cronologias dos almanaques astroloacutegicos durante a Guerra Civil inglesa no seacuteculo XVII In Revista
Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo Dezembro de 2007 V 27 N 54 pp 199 e 200
230
de todas as autoridades seguidas por discoacuterdias guerras querelas e divisotildees724 Natildeo
poderiam haver notiacutecias mais indesejaacuteveis aos ciacuterculos de poder
Cleacuterigos literatos da corte e homens proacuteximos agrave Academia Real de Ciecircncias
eram os principais grupos de adversaacuterios da astrologia Se durante o reino de Luiacutes
XIII a luta do Estado se deu no sentido de controlar a imprensa fazendo prevalecer as
prerrogativas celestes oficiais com Luiacutes XIV o exemplo do rei cederaacute aos argumentos
de Port-Royal suprimindo a proacutepria gramaacutetica dos genethliaci A astrologia superior
ou inferior no que era tambeacutem chamada de alquimia lia na ordem dos signos certas
virtudes ndash acompanhadas de luz e calor ndash capazes de modificar o mundo material Ao
aceitar-se a Loacutegica ou a arte de pensar de Arnauld e Nicole publicada em 1662 natildeo
seria mais possiacutevel no entanto confundir substacircncia e representaccedilatildeo palavras e
coisas Com o eacutedito de 1682 realizado sob a eacutegide da Academia de Ciecircncias as
especulaccedilotildees astroloacutegicas a respeito da analogia rei-sol vatildeo ser banidas por Luiacutes XIV
que passa a defender uma concepccedilatildeo binaacuteria da representaccedilatildeo abandonando a trama
hermeacutetica que o emaranhava a outros dois signos Como sol o monarca agora fulgura
por si soacute sob os auspiacutecios da razatildeo Esse eacute precisamente o periacuteodo em que cresce
publica-se e repete-se a importacircncia da noccedilatildeo de supersticcedilatildeo na polecircmica contra os
apoacutestolos da influecircncia celeste725 Em 1699 Pierre Bayle perguntava-se por que esses
saberes continuavam a seduzir todo um seacutequito lamentando que ldquoas grandes luzes 724 ldquoToutes les puissances seront presque aneanties em sorte que toute authoriteacute amp superioriteacute seront
rejetteacutees par les Subjets Les dissentions guerres quereles amp diuisions srsquoeschauferont amp
srsquoenflammeront em sorte que tout Empire Chrestien sera em danger ()rdquo ANDREAS Prediction
merveillevse Du Sieur Andreas Astrologue amp Mathematicien de Padouumle Sur lrsquoEclipse de Soleil qui se
ser ale douziesme iour drsquoAoust MDCLIV Avec son explication amp lrsquoapprobation drsquoEistadius Grand
Astrologue A Paris Par Iacques Beslay 1654 p 4-5 725 Sobre os grupos da Repuacuteblica das Letras que detratavam a astrologia ver DREacuteVILLON op cit p
211 Sobre a Loacutegica de Port-Royal ver pp 179 190-191 195 251 Sobre a polecircmica contra a
astrologia e as noccedilotildees de supersticcedilatildeo e credulidade ver 242 A tese do autor eacute na verdade bem mais
ambiciosa do que julguei necessaacuterio incorporar defendendo que Luiacutes XIV ao banir a leitura
astroloacutegica afetava a eficaacutecia de seu sistema de representaccedilatildeo o qual seria ldquofundado nos mesmos
coacutedigos simboacutelicosrdquo ldquoEn deacutefendant une conception purement meacutecaniste de la convention de
repreacutesentation le roi introduit une faille dans le systegraveme des similitudes et des eacutequivalences
symboliques Or ce systegraveme cette coheacutesion entre toutes les parties du monde fonde aussi le mystegravere de
la preacutesence reacuteelle du roi dans ses repreacutesentations Si le roi nrsquoest pas le soleil alors lrsquoimage du roi nrsquoest
pas le roi Toute se passe en fait comme si Louis XIV demandait agrave ses sujets de croire en ce que lui-
mecircme ne croit pas lrsquoanalogie entre le roi et le soleil doit srsquoimposer aux sujets mais pas au roi Ce
paradoxe est aux origines drsquoune profonde crise de la repreacutesentation royale Car les savants et
lrsquoAcadeacutemie des Sciences contribuent eux aussi agrave briser le systegraveme des analogies par la promotion
drsquoun nouveau statut du signe et du langage que nous avons vu inaugureacute par ces ldquoMessieursrdquo de Porto-
Royalrdquo idem p 242 Cf GUERY 1999 416-417 para quem ldquoLes travaux de Jean-Marie Goumelot
sur lsquoLe regravegne de lrsquohistoirersquo() auraient permis agrave H Dreacutevillon de voir un problegraveme lagrave ougrave il pense avoir
apporteacute une solution Louis XIV peut reacutegner sans fou et sans astrologue aupregraves de lui selon un projet
ougrave peu agrave peu il fait entrer les travaux des savants de ses Acadeacutemies parce qursquoapregraves 1662 date de
publication de la ldquoLogiquerdquo de Port-Royal il nrsquoest plus possible de confondre substance et
repreacutesentation ordre des choses et ordre des motsrdquo
231
filosoacuteficas do seacuteculo XVII natildeo puderam arruinar a astrologiardquo 726 Abandonado pelas
musas com a autoridade de seu corpus e a representaccedilatildeo de seu cosmos na defensiva
o cego que lia as estrelas natildeo poderia mais ao menos para os correspondentes da
Repuacuteblica das Letras fazer delas sentido como se as escutasse Para os philosophes a
crenccedila na gramaacutetica dos astros jaacute estava identificada afinal de contas como
supersticcedilatildeo Supersticcedilatildeo que perdeu-se no ldquobeco da astrologiardquo
Loacutegica jansenista como causa remota ndash e Agostinho tanto mais remoto ndash os
paralelos do rei mudam de direccedilatildeo Eles natildeo vem mais de uma ilha distante governada
por um Metafiacutesico em nome da ordem da natureza mas da ordem do tempo na qual
como fez o Racine de 1666 busca-se o exemplo de Alexandre727 Assim ao rei sol de
Campanella sobrepotildee-se o Ludovico Magno do arco triunfal da porta de Saint-Denis
Apoacutes 1680 como lembra Hartog os proacuteprios paralelos seratildeo postos em duacutevida A
monarquia absoluta que natildeo mais sabia trabalhar com modelos do passado faz do rei
sua proacutepria medida de virtude Louis le Grand cantara Perrault era o ldquomais perfeito
modelordquo 728 ldquoA semelhanccedila deixou de formar no interior do saber uma figura
estaacutevel suficiente e autocircnomardquo completaria um recente filoacutesofo O monarca natildeo era a
imagem mas o proacuteprio centro do sistema poliacutetico como se viesse consolidar ldquouma
ordem de conhecimentos em que a similitude pode ter apenas um lugar precaacuterio e
provisoacuterio no limite da ilusatildeordquo729 Da superaccedilatildeo dos exemplos do passado rumo agrave
gloacuteria literaacuteria do presente o grande homem estava pronto para dar nome ao espiacuterito
de um seacuteculo e capitanea-lo rumo ao futuro
Os ldquofazedores de almanaquesrdquo com suas relaccedilotildees de influecircncia e semelhanccedila
foram condenados pelos censores da Repuacuteblica das Letras ao mais baixo degrau da
literatura A leitura das efemeacuterides do cruzamento de seus nuacutemeros e signos da 726 ldquo() les grandes lumiegraveres philosophiques du XVIIe siegravecle nrsquoont pu ruiner lrsquoastrologierdquo BAYLE
Pierre Continuations des Penseacutees diverses Rotterdam Reinier Leers 1705 [1699] p 180 727 Luiacutes XIV escreveu em suas memoacuterias ldquoJe consideacuterai () que lrsquoexemple de ces hommes ilustres et
de ces actions singuliegraveres que nous fournit lrsquoAntiquiteacute pouvait donner au besoin des ouvertures trecircs
utiles soit aux affaires de la guerre ou de la paix ()rdquo GRELL Chantal MICHEL Christian LrsquoEacutecole
des princes ou Alexandre disgracieacute Paris Gallimardm 2000 p 155 apud HARTOG 2005 p 155
Sobre o paralelo entre o Luiacutes XIV e o rei da macedocircnia na dedicatoacuteria do Alexandre de Racine ver
paacutegina anterior 728 PERRAULT Charles Le Siegravecle de Louis le Grand 1687 apud HARTOG 2005 p 156 ldquoLouis le
Grandrdquo PERRAULT Charles Paralelle des Anciens et des Modernes En ce qui regard les arts et les
sciences Nouvelle Edition augmenteacutee de quelques Dialogues Tome I Paris Coignard 1663 p 7 729 ldquoEis que haacute mais de dois seacuteculos no nossa cultura a semelhanccedila deixou de formar no interior do
saber uma figura estaacutevel suficiente e autocircnoma A eacutepoca claacutessica a mandou embora Bacon de iniacutecio
depois Descartes instauraram para um tempo do qual natildeo saiacutemos uma ordem de conhecimentos em
que a similitude pode ter apenas um lugar precaacuterio e provisoacuterio no limite da ilusatildeordquo FOUCAULT
Michel Arqueologia das Ciecircncias e Histoacuteria dos Sistemas de Pensamento Manoel Barros da Motta
(org) Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2000 p 10
232
mudanccedila natildeo poderia mais influenciar a ordem da mateacuteria atraveacutes de conjunccedilotildees
cometas e eclipses associados agraves qualidades acidentais doadas pelas casas zodiacais
em que se manifestavam Mas a sua escrita assentada nas praacuteticas da geraccedilatildeo de
Poliacutebio como uma narrativa dia-a-dia dos feitos natildeo das estrelas mas dos homens ndash
ainda acompanhada de ldquocomentaacuterios a respeito de eventos puacuteblicosrdquo ndash poderia influir
no mundo a partir da associada consciecircncia secular de que os signos do passado
podem ser debatidos reescritos e de que a dureza dos fatos eacute apenas uma saacutetira
imprecisa do desenvolvimento do espiacuterito dos homens Nos afastamos
progressivamente de um ldquopseudo-conhecimentordquo ndash jaacute intelectualmente excluiacutedo
quando da fundaccedilatildeo da Academia de Colbert em 1666 ndash para aproximar-nos dos
novos saberes da moda das sciences morales et politiques que no Larousse de 1876
teraacute a histoacuteria como ldquoo foco e o controlerdquo730 Em Portugal talvez natildeo por acaso eacute a
partir de 1 de novembro de 1755 ndash dia do terremoto de Lisboa e data selecionada por
Carolino para o sepultamento simboacutelico das crenccedilas astroloacutegicas ndash que narram as
Rerum Luisitanarum Ephemerides compilaccedilatildeo de eventos humanos e sublunares que
segue ateacute a expulsatildeo dos jesuiacutetas em 3 de setembro de 1760731 Passamos ao lado do
Seacuteculo de Luiacutes XIV e rumo agrave esfera puacuteblica as efemeacuterides sauacutedam sua influecircncia nas
ldquohistoacuteriasrdquo e nas ldquonotiacuteciasrdquo
42 As Diatribes das Efemeacuterides
Em 1765 o abade Nicolas Baudeau funda as Efemeacuterides do Cidadatildeo folheto
que de iniacutecio circularia duas vezes por semana levando o sugestivo subtiacutetulo de
crocircnica do espiacuterito nacional A ambiccedilatildeo do projeto era bem maior do que indicava o
peso de sua brochura No editorial de lanccedilamento Baudeau economista e teoacutelogo
refletia sobre as feuilles periodiques e imaginava a funccedilatildeo do novo perioacutedico
Eacute preciso ir mais longe Examinem na Cidadatildeo qual eacute e
qual pode ser a influecircncia dos Escritos puacuteblicos sobre o
Espiacuterito Nacional como eles podem corrigir os erros do 730 ldquoLe mouvement historique inaugure au XVIIe par Bossuet continue au XVIII par Vico Herder
Condorcet et deacuteveloppeacute par tant drsquoesprits remarquables de notre XIXe siegravecle ne peut manquer de
srsquoaccentuer encore davantage pour ainsi dire une religion universelle Elle remplace dans toutes les
acircmes les croyances eacuteteintes et eacutebranleacutee ele est devenue le foyer et le controle des sciences morales agrave
lrsquoabsence desquelles ele suppleacuteerdquo LAUROUSSE Pierre Grand dictionnaire universel du XIXe siegravecle
Vol XII article Histoire p 301 apud HARTOG Croire em lrsquohistoire 2013 op cit p 10 731 FIGUEIREDIO Antonio Rerum Lusitanarum Ephemerides Ab Olisiponensi Terraemotu ad
jesuitarum expulsionem Olisipone Typis Regiis Sylvianes 1762
233
povo ressucitar as antigas verdades () obrigaacute-los a
abrir os olhos agrave luz desmascarar o interesse pessoal
forccedilando-o a seu uacuteltimo refuacutegio ()732
Nos anos seguintes o folheto torna-se a publicaccedilatildeo dos ldquofiloacutesofos
economistasrdquo termo que o editor das Eacutepheacutemeacuterides utilizava para designar os
fisiocratas grupo ao qual tinha se aproximado733 ldquoFisiocraciardquo explicava uma ediccedilatildeo
da revista ldquosignifica governo da naturezardquoTratava-se de defender que eacute a ldquoNatureza
e natildeo os homens () o direito a ordem e as leisrdquo e que nosso ldquodever e interesserdquo era
de ldquoconhecer e de seguir o Governo natural uacutenico invariaacutevelrdquo 734 Para os adeptos da
doutrina as leis da natureza apareciam como as ldquocondiccedilotildees essenciaisrdquo da execuccedilatildeo e
manutenccedilatildeo da ldquoordem instituiacuteda pelo Autor da Naturezardquo735
O vocabulaacuterio fazia eco a uma obra que apareceu no ano anterior publicada
na Londres de 1767 A Ordem Natural e Essencial das Sociedades Poliacuteticas escrita
por Le Mercier de La Riviegravere aparecia como bibliografia fundamental para as
discussotildees e combates que figuravam como Efemeacuterides736 Natildeo se tratava mais eacute
732 BAUDEAU Nicolas Eacutepheacutemeacuterides du Citoyen ou Chronique de lrsquoEsprit National T 1 4 de
Novembro de 1765 Paris Augustin Delalain p 15 ldquoIl faut aller encore plus loin Examinez en Citoyen
quelle est amp quelle peut ecirctre lrsquoinfluence des Ecrits publics sur lrsquoEsprit national comment ils peuvent
corriger les erreurs du peuple ressusciter les antiques veacuteriteacutes investir lrsquoignorance aveugle amp
preacutesomptuese lrsquoobliger drsquoouvrir les yeux agrave la lumiere deacutemasquer lrsquointeacuteret personell amp le forcer dans
son dernier retranchement vous verrez que les maximes les plus utiles seront toujours enseacutervelies pour
le Public Franccedilois tant qursquoelles demeureront dans les Livres didactiques du petit nombre qui les lit
une moitieacute les oublie lrsquoautre les retient em silencerdquo Baudeau ao publicar as Efemeacuterides teria se
inspirado no The Spectator fundado por Joseph Addison e Richard Steele em 1711 com a ambiccedilatildeo de
ldquotocar todos os puacuteblicosrdquo Sobre os periacuteodos editoriais das Efemeacuterides seguidos de uma longa
compilaccedilatildeo de suas tables de matiegravere ver o recente trabalho de HERENCIA Bernard Les
Eacutepheacutemeacuterides du citoyen et les Nouvelles Eacutepheacutemeacuterides eacuteconomiques (1765-1788) Documents et table
complegravete Centre international drsquoeacutetude du XVIIIe siegravecle Ferney-Voltaire 2014 principalmente pp ix-x 733 Veja-se por exemplo Correspondance entre M Graslin de lrsquoAcadeacutemie eacuteconomique de S
Peacutetesbourg Auteur de lrsquoEssai Analytique sur la Richesse amp sur lrsquoImpocirct et M LrsquoAbbeacute Baudeau Auteur
des Epheacutemeacuterides du Citoyen Sur un des Principes fondamentaux de la Doctrine des soi-disants
Philosophes Eacuteconomistes Londres 1777 734 BADEAU Nicolas NEMOURS Dupont (et all) Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou Chronique de lrsquoesprit
national 1768 Tome Troisieme Seconde Partie Critiques Raisonneacutees N Premier ldquoPhysiocratie
signifie Gouvernement de la nature comme Monarchie veut dire Gouvernement drsquoun seul homme
Oligarchie le Gouvernement drsquoun petit nombre Deacutemocratie le Gouvernement de tout le Peuple La
Doctrine dont tous les priacutencipes sont renfermeacutes dans ce Recueil preacutecieux consiste agrave soutenir que crsquoest
la Nature amp non pas les hommes qui sont le droit lrsquoordre amp les loix que le devoir amp lrsquointeacuterecirct des
hommes est de connaicirctre amp de suivre le Gouvernement naturel unique invariable simple amp le plus
avantageux quirsquoil soit possible agrave notre especerdquo p 165 735 Ibidem ldquoLes Loix Naturelles consideacutereacutees en general sont les conditions essentielles selon
lesquelles tout srsquoexeacutecute dans lrsquoordre institueacute par lrsquoAuteur de la Nature Elles diferente de lrsquoordre
comme la partie difere du toutrdquo p 174 736 Eacute em uma resenha publicada nas Efemeacuterides do Cidadatildeo em 1767 que encontramos a primeira
referecircncia ao termo ldquofisiocraciardquo Nous lui devons avant tout cette justice quil a plutocirct ignoreacute que
combattu les Princies de la Physiocratie cest-agrave-dire de lordre naturel amp social fondeacute sur la neacutecessiteacute
physique amp sur la force irreacutesistible de leacutevidence pp 121-122 Principes de tout gouvernement In
234
claro da ordem natural dos astroacutelogos renascentistas Se a geraccedilatildeo anterior jaacute havia
clamado por uma philosophie nouvelle Le Mercier veio revelar com clareza e
distinccedilatildeo uma nova ordem da natureza ldquoPensei que devia examinar se as leis naturais
da sociedade satildeo as verdadeiras causas de seus proacuteprios malesrdquo explicava sua
enquecircte ldquoou se elas natildeo satildeo nada mais do que os frutos necessaacuterios de nossa
ignoracircncia sobre as disposiccedilotildees dessas leisrdquo Suas pesquisas como vemos logo
fizeram-no passar ldquoda duacutevida agrave evidecircnciardquo convencendo-o da existecircncia de uma
ldquoordem naturalrdquo que governava os homens em sociedade737 Como escreveu o autor
logo no iniacutecio do capiacutetulo VI
Natildeo se pode confundir a ordem sobrenatural com a
ordem natural a primeira eacute a ordem das vontades de
Deus conhecidas pela revelaccedilatildeo e ela natildeo eacute sensiacutevel
senatildeo agravequeles para os quais decidiu manifestar-se A
segunda pelo contraacuterio eacute dada a conhecer por todos os
homens por meio das luzes da razatildeo A autoridade desta
ordem encontra-se em sua evidecircncia assim como na
forccedila irresistiacutevel atraveacutes da qual a evidecircncia domina e
submete nossas vontades738
Superando a duacutevida meacutetodica o que vinha evidenciar a nova ordem da
natureza esse todo fiacutesico a partir do qual as sociedades cresciam como meros ramos
de uma aacutervore divina La Riviegravere acreditava que a relaccedilatildeo de ldquonecessidade fiacutesicardquo
entre as trecircs formas de propriedade ndash pessoal (personelle) moacutevel (mobiliegravere) e
imoacutevel (fonciegravere) ndash era a base da ordem natural e essencial das sociedades
Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou Chronique de lesprit national Lacombe Paris 1767 T4 Parte 2 pp 121-
122 737 LE MERCIER Pierre Paul de La Riviegravere Lrsquoordre naturel et essentiel des socieacuteteacutes politiques T 1
Desaint ndash J Nourse Londres 1767 pp xiii-xv ldquojrsquoai cru devoir examiner si les loix naturelles de la
socieacuteteacute sont les veacuteritables causes de ces mecircmes maux ou srsquoils ne sont point plutocirct les fruits neacutecessaires
de noitre ignorance sur les dispositions de ces loix ()Mecircs recherches sur ce point mrsquoont fait passer du
doute agrave lrsquoeacutevidence elles mrsquoont convaincu qursquoil existe un ordre naturel pour le gouvernement des
hommes reacuteunis en socieacuteteacute un ordre qui nous assure neacutecessairement toute la feacuteliciteacute temporelle agrave
laquelle nous sommes appelleacutes pendant notre seacutejour sur la terre toutes les jouiumlssances que nous
pouvons raisonnablement y deacutecirer amp auxquelles nous ne pouvons rien ajouter qursquoagrave notre preacutejudice
um ordre pour la connoissance duquel la nature nous agrave donneacute une portion suffisante de lumieres amp qui
nrsquoai besoin que drsquoecirctre connu pour ecirctre observeacute un ordre ougrave tout est bien amp neacutecessairement bien ougrave
tout les inteacuterecircts sont si parfaitement combineacutes si inseacuteparablement unis entre eux ()rdquo 738 LE MERCIER 1767 p 60 ldquoIl ne faut pas confondre lrsquoordre surnaturel avec lrsquoordre naturel le
premier est lrsquoordre des volonteacutes de Dieu connues par la reacutevelation amp il nrsquoest sensible aursquoagrave ceux
auxquels il a bien voulu le manifester Le scond au-contraire se fait connoicirctre agrave tous les hommes par le
secours des seules lumieres de la raison Lrsquoautoriteacute de cet ordre est dans son eacutevidence amp dans la force
irreacutesistible avec laquelle lrsquoeacutevidence domine amp assujettit nos volonteacutesrdquo
235
humanas739 Nascida com a agricultura a propriedade imoacutevel era o divisor de aacuteguas
para com a ordem primitiva da natureza Os ldquotrecircs tipos de propriedadesrdquo explicava o
fisiocrata ldquosatildeo tatildeo unidas que devemos observaacute-las como um uacutenico todo do qual natildeo
se pode separar nenhuma parte sem que se resulte na destruiccedilatildeo de todas as outrasrdquo740
Poderiacuteamos sem grandes dificuldades aiacute ler a maacutexima de Malebranche presente eacute
verdade como epiacutegrafe do estudo ldquoa ordem eacute a lei inviolaacutevel dos espiacuteritosrdquo741
Natildeo faltaram criacuteticos a esse ideaacuterio ldquoAs duas primeiras partes da obra natildeo
produziram sob meu espiacuterito o mesmo efeito que a terceirardquo diria Gabriel Bonnot
referindo-se aos capiacutetulos da Ordem Natural que lidavam com o problema da
imanecircncia entre as formas de propriedade ldquoVejo que falamos muito sobre evidecircncia
e me parece que nada ali eacute evidenterdquo continuava o abade de Mably Insatisfeito ele
arregaccedila as mangas e prepara duas sinceras cartas remetendo-as aos cuidados do
editor das Efemeacuterides do Cidadatildeo sob o tiacutetulo de Duacutevidas propostas aos filoacutesofos
economistas742 Para Mably tudo se passa como se uma anaacutelise da ordem da natureza
natildeo devesse partir da deduccedilatildeo cartesiana indo do geral para o particular mas pela
induccedilatildeo histoacuterica que vai do particular para o geral a partir da experiecircncia do passado
ou mesmo da visatildeo do presente Ele jaacute havia explicitado seu meacutetodo no proacutelogo de
uma obra anterior Nas Observaccedilotildees sobre a Histoacuteria da Franccedila o historiador se
propunha a investigar as ldquodiferentes formas de governo que os franceses obedeceram
depois de seu estabelecimento nas Gaacuteliasrdquo e descobrir ldquoas causas que ao impedir que
nada fosse estaacutevel entre eles os entregaram durante uma longa sequecircncia de seacuteculos
a revoluccedilotildees contiacutenuasrdquo Essa parte da histoacuteria da Franccedila como acreditava Mably
seria ainda desconhecida
tanto dos analistas antigos quanto dos historiadores
modernos Eu a aprovei por mim mesmo desde que
remontei agraves verdadeiras fontes de nossa histoacuteria ou seja
a nossas leis aos capitulares agraves foacutermulas antigas agraves
cartas aos diplomas aos tratados de paz e de alianccedila
739 LE MERCIER 1767 p 27 740 Ibidem p 46 ldquoCes trois sortes de proprieacuteteacutes sont ainsi tellement unies ensemble qursquoon doit les
regarder comme ne formant qursquoum seul tout dont aucune partie ne peut ecirctre deacutetacheacutee qursquoil nrsquoem
reacutesalte la destruction des deux autresrdquo 741 ldquoIl est vrai qursquoon demeure assez drsquoaccord que lrsquoordre est la loi inviolable des esprits et que rien
nrsquoest reacutegleacute srsquoil nrsquoy est conformerdquo MALEBRANCHE Traiteacute de Morale IIIX In Ouvres Complegravetes
Paris De Sapia 1837 p 405 742 MABLY Gabriel Bonnot abade de Doutes proposeacutes aux Philosophes Eacuteconomistes sur lrsquoOrdre
Naturel et Essentiel des Socieacuteteacutes Politiques In Ouvres Complegravetes de Lrsquoabbeacute de Mably Tome 11
Lyon Delamolliere 1792 p 3
236
Descobri um sem nuacutemero de erros grosseiros os quais
havia me deparado em meio ao meu Parallegravele des
Romains et des Franccedilois Vi aparecer em frente aos
meus olhos uma naccedilatildeo em tudo diferente daquela que
acreditava conhecer743
Quem natildeo sabia afinal que ldquoa moral e os costumes dos povosrdquo estatildeo sempre
em movimento mudam adaptam-se natildeo ldquotendo nada de estaacutevelrdquo744 Era essa
prerrogativa que impedia Mably de aceitar as ldquoevidecircnciasrdquo de uma ordem da natureza
que manteria a dita relaccedilatildeo de necessidade fiacutesica entre as trecircs formas de propriedade
Exemplos particulares que indicavam o contraacuterio natildeo faltavam ao abade Iroqueses e
hurotildees natildeo conheciam a partilha de terras o que em nada significava que natildeo
possuiacutessem propriedades pessoais Entre os espartanos para quem o Estado doava as
terreas necessaacuterias agrave subsistecircncia ocorreria fenocircmeno parecido Mesmo os iacutendios do
Paraguai habitantes das Missotildees e instruiacutedos no usufruto coletivo das terras pelos
jesuiacutetas pareciam lutar ldquoimpunementerdquo contra a tal ldquolei essencialrdquo da ordem da
natureza745 ldquoTalvez esteja enganado mas me parece que as coisas que natildeo podem ser
separadas sem que causem suas proacuteprias destruiccedilotildees deveriam estar sempre unidasrdquo
provocou Gabriel Bonnot746
Os fisiocratas em sua resposta publicada nas Efemeacuterides pareciam
escandalizados Como seria possiacutevel a um homem que visse ldquocom admiraccedilatildeo a ordem
que rege o universordquo atribuiacutendo toda multiplicidade de efeitos a ldquouma causa superior
e inteligenterdquo acreditar que a ordem da natureza ndash a instacircncia cujo conhecimento nos
743 MABLY Gabriel Bonnot abade de Observations sur lrsquoHistoire de France In Ouvres Complegravetes
de LrsquoAbbeacute de Mably op cit T 1 pp 121-122 ldquoJe me propose dans cet ouvrage de faire connoicirctre les
diferentes formes du gouvernement auxquelles les Franccedilois ont obeacutei depuis leur eacutetablissement dans les
Gaules et de deacutecouvrir les causes qui en empecircchant que rien nrsquoait eacuteteacute stable chez eux les ont livres
pendant une longue suiacutete de siegravecles agrave de continuelles reacutevolutions Cette partir interessante de notre
histoire est entiegraverement inconnue des lecteurs qui se bornent agrave eacutetudier nos annalistes anciens et nos
historiens modernes Je lrsquoai eacuteporouveacute par moi-mecircme degraves que je remontai aux veacuteritables sources de
notre histoire crsquoest-agrave-dire agrave nos lois aux capitulaires aux formules anciennes aux chartes aux
diplomes aux traiteacutes de paix et drsquoaliance etc Je deacutecouvris les erreurs grossiegraveres et sans nombre ougrave
jrsquoeacutetois tombeacute dans mon Parallegravele des Romains et des Franccedilois Je vis paroicirctre devant mecircs yeux une
nation toute diffeacuterent de celle que je croyois connoicirctrerdquo 744 Ibidem p 125 ldquoQui ne sait pas que les lois les moeurs et les coutumes des peuples nrsquoont rien de
stablerdquo 745 MABLY Doutes proposeacutes op cit p 7-8 746 Idem p 5 ldquoJe me trompe peut-ecirctre mais il me semble que des choses qursquoon ne peut seacuteparer sans
causer leur destruction doivent toujours avoir eacuteteacute unies parce qursquoelles le sont essentiellement et par
leur naturerdquo
237
traria o justo absoluto ndash natildeo fosse imutaacutevel com o criador747 O abade certamente natildeo
aceitava que as instituiccedilotildees sociais resultavam de uma necessidade fiacutesica pelo
contraacuterio chocava seus interlocutores ao demonstrar simpatias pelas formas
comunitaacuterias de propriedade Os fisiocratas como se devia esperar tinham boas
respostas ao autor das Duacutevidas Hurotildees Iroqueses e Taacutertaros natildeo eram mais do que
povos selvagens presos agrave ordem primitiva e desprovidos de senso de comunidade
Comparar os ldquoiacutendios que vivem no Paraguai com nossos trabalhadores manuaisrdquo por
outro lado lhes parecia ldquopouco justordquo uma vez que os indiacutegenas desprovidos da
liberdade fiacutesica ldquonatildeo gozavam de sua propriedade pessoalrdquo748
No mesmo ano de 1767 a defesa do ldquodespotismo legalrdquo aparecia em
Despotisme de la Chine assinada por Franccedilois Quesnay nas Efemeacuterides do Cidadatildeo
entre os meses de marccedilo e junho evento que antecipa para o primeiro semestre os
determinismos da Ordem da Natureza de Le Mercier publicada no meio daquele ano
Em sua polecircmica contra os fisiocratas Mably guardaria palavras pouco carinhosas
para Quesnay ldquoVemos que nossos filoacutesofosrdquo escreveu o abade ldquopossuem uma
espeacutecie de desprezo contra os povos aos quais estamos acostumados a respeitarrdquo Ora
por que outro motivo senatildeo a de uma vontade poliacutetica teriam eles falado em
despotismo legal reivindicando o governo da China ldquoNatildeo sabemos como conciliarrdquo
tal admiraccedilatildeo ldquocom os princiacutepios de uma boa filosofiardquo mas acrescentaria M
Bonnot ldquotemendo blasfemar contra verdades desconhecidas esperamos em silecircncio o
oraacuteculo falar com menos misteacuteriordquo749 Natildeo era preciso citar Quesnay diretamente a
imagem de Eudoxo ndash ldquoda boa doutrinardquo que levou o ano solar do Egito agrave Greacutecia ndash
dava conta de transmitir a mensagem de ironia750
Jaacute a partir das ediccedilotildees de 1769 Du Pont mais tarde chamado de Nemours
assume a direccedilatildeo das Efemeacuterides que passa a ter peridocidade semanal modificando
o subtiacutetulo para bibliothegraveque raisonneacutee des sciences morales et politiques Entre
correspondentes e colaboradores aparecem com regularidade os nomes de Mirabeau
Turgot Roubaud e Vauvilliers751 Incitado pelo controlador geral Maynon dInvaut
Du Pont coordena uma ruidosa campanha contra o monopoacutelio da Companhia das 747 MD Les doutes eacuteclaircis ou reacuteponse a m lrsquoabbeacute de Mably In Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou
Chronique de lrsquoesprit national 1768 Tome Troisieme Seconde Partie Critiques Raisonneacutees p 195
Sobre o justo e o injusto absolutos no pensamento fisiocraacutetico ver LE MERCIER 1767 cap 2 748 Idem p 206-208 749 MABLY Doutes proposeacutes op cit p 3 750 Idem ibidem 751 Sigo tambeacutem em minha leitura da revista as informaccedilotildees apresentadas no claacutessico de SCHELLE
Gustav Du Pont de Nemours et lrsquoEcole physiocratique Paris Guillaumin 1888 principalmente 124
238
Iacutendias e pela liberdade do comeacutercio colonial A imagem liberal do grupo fisiocrata
como recentemente lembrou Florence Gauthier natildeo era entretanto compartilhada por
seus contemporacircneos No seacuteculo XVIII Galiani se referia agraves teorias do grupo como
eacutecomystification Linguet falava em eacuteconomisme enquanto que Adam Smith preferia
descrevecirc-los como um ldquosectordquo de linhagem francesa752
Na deacutecada de 70 do seacuteculo das luzes os fisiocratas com sua ldquoboa doutrinardquo
orbitando a esfera do despotismo legal aproximariam-se efetivamente da corte solar
A atuaccedilatildeo do ministeacuterio Turgot ligado a Du Pont e colaborador da revista ao lado de
suas tentativas de reforma fiscal e liberaccedilatildeo da exportaccedilatildeo de gratildeos ndash assuntos
tambeacutem muito debatidos nas paacuteginas das Efemeacuterides ndash estatildeo bem documentadas
desde o trabalho pioneiro de Georges Weulersse753 Mas isso natildeo significa que os
editores natildeo tivessem alguns anos antes rendido suas criacuteticas agrave memoacuteria dos
Bourbon
ldquoHoje estaacute na moda degradar os grandes homensrdquo escreveu um indignado
Voltaire no que ele completaria algumas paacuteginas depois protestando contra diversas
ldquohistoacuterias modernasrdquo que foram ldquocompiladas sob esses jornais preenchidos de novas
impertinecircncias parecidas com essas mentiras impressas das quais eu falordquo754
Mentiras em jornais impertinentes No final de 1769 as Efemeacuterides do Cidadatildeo
haviam publicado o esboccedilo de uma histoacuteria da Companhia das Iacutendias A parte
dedicada agrave apreciaccedilatildeo do reinado de Luiacutes XIV era lotada de pesadas criacuteticas Quanto agrave
ldquogloacuteria desse grande seacuteculordquo dizia o texto ela teria passado ldquocomo as estopas que
752 Ver GAUTHIER Florence Agrave lrsquoorigine de la theacuteorie physiocrate du capitalisme la plantation
esclavagiste lrsquoexpeacuterience de Le Mercier de La Riviegravere Intendant de la Martinique Presses
Universitaires de France Actuel Marx 20022 ndash no 32 p 51-52 Para quem ldquoLa physiocratie fut ainsi
interpreacuteteacutee successivement au XXe siegravecle comme appartenant aux courants libeacuteraux puis marxistes
enfin totalitaires La confusion est donc agrave son comble Notons que les reacutefeacuterents interpreacutetatifs se
rattachent aux trois couleurs politiques qui dominegraverent ce siegraveclerdquo Sobre a leitura ldquomarxistardquo dos
fisiocratas em seu apego ldquomaterialistardquo ver QUESNAY Physiocratie Introduction et textes choisis
par J Cartelier Garnier-Flammarion 1991 apud GAUTHIER op cit para a leitura de uma ldquodoutrina
totalitaacuteriardquo entre os fisiocratas ver tambeacutem REVIGLIO Madame Marie-Claire Laval In Revue
franccedilaise de science politique 37e anneacutee ndeg2 1987 pp 181-213 753 WEULERSSE Georges La Physiocratie sous les ministeres de Turgot et de Necker (I774-I781)
Paris Presses Universitaires de France I950 [Tese defendida em 1910] 754 VOLTAIRE Deacutefense de Louis XIV [13 de outubro de 1769] In Ouvres Complegravetes de Voltaire T
287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes biographiques
Garnier Fregraveres Paris 1877-1885 ldquoCrsquoest la mode aujourdrsquohui de deacutegrader les grands hommesrdquo p 334
ldquoPlus de cent histoires modernes ont eacuteteacute compileacutees sur des journaux remplis de nouvelles
impertinences semblables agrave ces mensonges imprimeacutes dont je parle Peut-ecirctre um jour ces histoires
passeront pour authentiques Celui qui consacrerait son travail son travail agrave preacutevenir le public contre
cette foule drsquoimpostures eacutelegraveverait um monument utilerdquo p 339
239
queimamos em frente ao papa durante sua entronizaccedilatildeordquo755 O autor do Seacuteculo de Luiacutes
XIV como parece lia nas palavras empregadas nas Efemeacuterides uma criacutetica indireta a
seu trabalho Contra a visatildeo negativa que sublinhava no periacuteodo do rei sol o pior mais
regulamentado avesso agrave natureza metoacutedico e imperioso dos regimes fiscais com
resultados funestos ao espiacuterito dos homens Voltaire reeditava os argumentos de sua
obra ldquoSim eu me veria como um baacuterbaro como um espiacuterito falso e baixo sem
cultura sem gostordquo caso pudesse esquecer de Corneille Racine La Fontaine
Quinault Moliegravere ainda Bossuet e mesmo Descartes malgreacute les chimegraveres absurdes
de sua fiacutesica as quais inspiraram o gecircnio preceptor da natureza fisiocrata o maldito
Malebranche756 A Defesa de Luiacutes XIV sugeria que apenas seguindo o Tratado dos
erros dos sentidos e da imaginaccedilatildeo esse ldquoexcelente comeccedilo de um sistema que
termina tatildeo malrdquo conceberia-se dar de ombros a seguinte questatildeo
Como foi ele [o seacuteculo de Luiacutes XIV] capaz de poder
fazer tantos homens superiores em tantos gecircneros
diferentes florescerem todos juntos em uma mesma era
Esse prodiacutegio aconteceu trecircs vezes na histoacuteria do
mundo e talvez natildeo reapareccedila mais757
Eacute em uma polecircmica um pouco posterior que o problema dos trecircs grandes
homens aflora novamente Jaacute natildeo eram as Efemeacuterides do Cidadatildeo mas as Novas
Efemeacuterides perioacutedico que sucedeu o folheto original o qual naufragou em 1772 A
publicaccedilatildeo foi retomada a partir de 1774 durando um biecircnio e apoacutes novo hiato
ressurge durante dois outros anos no final da deacutecada seguinte (1787 e 1788) Em
agosto de 1775 aperece no Mercure de France um texto escrito em 20 de maio no
calor da ldquoguerra da farinhardquo758 Era o auge do ministeacuterio Turgot e o eacutedito de 13 de
755 ldquoLa gloire de ce grand siegravecle si cher agrave nos beaux esprits eacutetait passeacutee comme les eacutetoupes qursquoon brucircle
devant le pape agrave son exaltationrdquo Eacutepheacutemeacuterides du Citoyen De La Compagnie des Indes Capiacutetulo II Ce
que devint la Compagnie des Indes depuis la mort de Louis XIV jusqursquoem 1725 p 236 756 VOLTAIRE Deacutefense de Louis XIV p 328-329 757 ldquoComment srsquoest-il pu faire que tant drsquohommes supeacuterieurs dans tant de genres diffeacuterents aient fleuri
tous ensemble dans le mecircme acircge Ce prodige eacutetait arriveacute trois fois dans lrsquohistoire du monde et peut-
ecirctre ne reparaicirctra plusrdquo Idem p 330 758 Sobre a ldquoguerra da farinhardquo caberia lembrar a ceacutelebre passagem ldquoVers lrsquona 1750 la nation
rassasieacutee de vers de trageacutedies de comeacutedies drsquoopeacuteras de romans drsquohistoires romanesques de
reacuteflexions morales plus romanesques encore et disputes theacuteologiques sur la gracircce et sur les
convulsions se mit enfim agrave raisonner sur les bleacutesrdquo VOLTAIRE Bleacute ou bled In In Ouvres
Complegravetes T 18 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes
biographiques Garnier Fregraveres Paris 1877-1885 p 41
240
setembro que revogava o droit de hallage e instituia o livre comeacutercio de gratildeos
sofreria oposiccedilatildeo tanto nas ruas quanto no alto conselho real
ldquoUma pequena sociedade de cultivadores nas profundezas de uma proviacutencia
ignorada lecirc assiduamente vossas efemeacuterides e tenta tirar proveito delasrdquo O desprezo
tanto esnobe de Voltaire pelo perioacutedico visto algo como um libello de economistas
aparece desde as primeiras linhas de sua Diatribe ao autor das Efemeacuterides Ora seu
editor natildeo era digno de ser retratado como um homme du monde embora lhe coubesse
bem a pecha de ldquocidadatildeo do universordquo universo que nos Diaacutelogos de Evemeacuterio
aparecera como sinocircnimo de natureza759 O philosophe inicia concordando com a
premissa fundamental da revista pois de fato ldquoa agricultura eacute a base de tudordquo
embora inclua igualmente em sua conta os fundamentos das primeiras festas
religiosas Ora os ritos e faacutebulas da antiguidade base do que viria a se chamar
paganismo eram sumariamente ligados agrave fertilidade e agrave colheita agrave ldquocelebraccedilatildeo dos
trabalhos campestresrdquo e agrave ldquoproteccedilatildeo de um Deus supremordquo760
Para um grupo de adoradores da evidecircncia a sutileza da ironia de Voltaire
logo deveria se fazer visiacutevel Do campo o paganismo ensinou ldquoa venerar Deus nos
astros cujo curso restitui as estaccedilotildeesrdquo marcando-as com festivais que ofereciam ao
ldquogrande demiurgo () os frutos cuja providecircncia havia enriquecido a terrardquo761
Outrossim a classe sacerdotal jamais poderia ser vista como uma amiga dos
agricultores Na Babilocircnia e em Mecircnfis dacircndis de saltos vermelhos (petits-maicirctres agrave
talons rouges) tratavam de abocanhar toda produccedilatildeo dos camponeses julgando que
com isso lhes fazia uma grande honra Na idade meacutedia os trabalhadores rurais da
Europa teriam suas terras pilhadas por monges e falsaacuterios Na Franccedila de 1775 o eacutedito
759 ldquoUne petite socieacuteteacute de cultivateurs dans le fond drsquoune province ignoreacutee lit assidument vos
eacutepheacutemeacuterides amp tacircche drsquoem profiter () Mais vous nous paroissez par vos eacutecrits le citoyen de
lrsquouniversrdquo VOLTAIRE Diatribe a lrsquoauteur des Eacutepheacutemeacuterides BNF Tolbiac - Rez-de-jardin ndash
magasin Cote RZ- 3182 p 3 Sobre os diaacutelogos acompanho PUJOL Steacutephane O jogo do erro e da
verdade nos diaacutelogos filosoacuteficos de Voltaire In Doispontos Curitiba-Satildeo Carlos Vol 9 n3 dezembro
de 2012 p 183 ldquoA palavra natureza eacute uma palavra usada para dizer universo uma palavra de acordo
com a foacutermula de Evheacutemegravere para significar ldquoa universalidade das coisasrdquo 760 ldquoLa religion mecircme nrsquoeacutetoit fondeacutee que sur lrsquoagriculture Tout eles fecirctes tous les rites nrsquoeacutetoient que
des emblemes de cet art le premier des arts qui rassemble les hommes qui pourvoit agrave leur nourriture
agrave leur logements agrave leurs vecirctements les trois seules choses qui sufissesent agrave la nature humaine () Les
premiers mysteres inventeacutes dans la plus haute antiquiteacute eacutetoient la ceacuteleacutebration des travaux champecirctres
sous la protection drsquoum Dieu suprecircmerdquo As faacutebulas natildeo deixavam de ser vistas para algueacutem que seguia
de perto os escritos de Evemeacuterio como ridiacuteculas ldquoCe nrsquoest point sur les fables ridicules amp amusantes
recueillies par Ovide que la religion nommeacutee depuis paganisme fut originairement eacutetablierdquo
VOLTAIRE Diatribe p 4 761 ldquoOn enseignoit agrave reacuteveacuterer Dieu dans les astres dont le cours ramene les saisons amp on offroit le au
grand Demiurgos sous le nom de Ceacuteregraves amp de Bacchus les fruits dont as providence avoit enrichi la
terrerdquo Ibidem p 5
241
do controlador geral ndash homem que ldquoconhece as leis divinas e as leis humanasrdquo ndash
obrigava em nome da ordem natural a que todos os suacuteditos comprassem patildeo a vinte
leacuteguas bem longe da sombra de suas figueiras afastando-os para o bem da alta dos
preccedilos do fruto proibido do monopoacutelio 762
Voltaire insinuava que os fisiocratas eram um secto religioso como o foram
antes deles outros grupos de padres adoradores da natureza Filosofavam com voz
oracular enquanto solapavam a economia domeacutestica levando fome ao campo e agrave
cidade Franccedilois-Marie chegou a publicar ndash aventurando-se em perigoso decorum ndash
um discurso imaginaacuterio de Luiacutes XVI no qual o rei condenava Turgot O objetivo da
Diatribe era questionar as soluccedilotildees agrave crise orgamentaacuteria do reino propostas e
defendidas com paixatildeo nas Efemeacuterides contenccedilatildeo de gastos e cortes nos impostos
como forma de arrecadar mais contribuiccedilotildees ao lado eacute claro do polecircmico problema
da farinha763 Mas natildeo seriam os argumentos de filosofia econocircmica que serviriam de
justificativa legal agrave condenaccedilatildeo de sua pequena diatribe
O texto publicado no Mercure perioacutedico de fama semi-oficial durante o
Antigo Regime natildeo trazia a assinatura do Priacutencipe dos Filoacutesofos764 A Diatribe teria
sido escrita por um celta de alma pagatilde pretensotildees pequenas e famiacutelia grande algo em
torno de vinte e quatro bocas a alimentar O simploacuterio cidadatildeo acreditava no entanto
que existiram trecircs grandes homens na histoacuteria de seu paiacutes O uacuteltimo tinha sido Luiacutes
XIV que ndash reinando sozinho com o auxiacutelio de outro grande homem Corbin ndash havia
assistido a Franccedila nascer765 O segundo fora ldquonosso grande Henrique IVrdquo morto por
um fanaacutetico catoacutelico O primeiro seria ningueacutem menos do que ldquoJuliano o filoacutesofo
que hospedou-se na Cruz-de-ferro na rua de la Harperdquo governando os gauleses com
equidade e clemecircncia diminuindo impostos e vingando a pilhagem dos
germacircnicos766
762 Ibidem ldquoAllez-vous-em plaindre au controcircleur-geacuteneacuteral crsquoest um homme drsquoeacuteglife amp um
jurisconsulte il connoicirct les loix divines amp les loix humaines vous aurez double satisfactionrdquo p 19 ()
ldquo() que la loi naturelle ordonne agrave tous les hommes drsquoaller acheter leur pain agrave vingt lieuesrdquo p 21 763 Como ele mesmo explica em nota Voltaire refere-se aos texto publicados no tomo IV das
Efemeacuterides de 1775 764 Sobre as relaccedilotildees entre a editoria do Mercure e os privileacutegios reais ver DARNTON Robert
Boemia Literaacuteria e Revoluccedilatildeo O submundo das letras no Antigo regime Satildeo Paulo Companhia das
Letras 1987 principalmente p 22 765 VOLTAIRE Diatribe p 12 ldquoEnfin Louis XIV reacutegna par lui-mecircme amp la France naquitrdquo 766 ldquoLa nation fut cruellement eacutecraseacutee depuis Jules-Ceacutesar jusqursquoau grand Julien le philosophe qui
logeoit agrave la Croix-de-fer dans la rue de la Harperdquo ibidem p 6 Voltaire chegara a publicar discursos
suplementos comentaacuterios e perfis literaacuterios de Juliano o apoacutestata figura que parece ter lhe fascinado
em sua fase mais pagatilde Ver VOLTAIRE Discours de lrsquoEmpereur Julian contre les Chretiens In
242
Com a controladoria geral em matildeos fisiocratas as cortes natildeo conseguiriam rir
dos gracejos publicados em um dos jornais que patrocinava Sem um nome para
cravar acabaram julgando Jean-Franccedilois de la Harpe redator do Mercure e notoacuterio
protegido de Voltaire culpado pela divulgaccedilatildeo das nouveauteacutes Talvez pela menccedilatildeo
supracitada como nome de rua talvez porque ele tenha mesmo diretamente ldquotomado a
precauccedilatildeo de anunciar que o artigo era obra suardquo de la Harpe ganhou a desonra de
tornar-se autor de uma ldquosaacutetira tatildeo despreziacutevel quanto fanaacuteticardquo767 O parlamento
preocupava-se com essa nova safra de escritores que insatisfeitos em poetar ou
filosofar dirigiam ldquoa opiniatildeo puacuteblica a respeito de mateacuterias importantesrdquo
Quais satildeo entretanto os pontos sobre os quais desejamos
dirigir a opiniatildeo geral Eacute a ldquomiseacuteria na qual a Naccedilatildeo
estava oprimida depois de Juacutelio Ceacutesar ateacute o grande
Juliano o filoacutesofordquo Priacutencipe que de iniacutecio cristatildeo
depois apoacutestata ldquotratou-nos com clemecircnciardquo ele fez
tudo o que quizera fazer depois nosso grande Henrique
IV amp logo em uma comparaccedilatildeo odiosa de um rei que
estaraacute sempre entre as deliacutecias da Franccedila fingindo
esquecer que Henrique () elevado na religiatildeo
pretensamente reformada abjurou os erros para adentrar
o seio da religiatildeo catoacutelica o autor procura esboccedilar o
mais impressionante contraste oponto Juliano apoacutes sua
apostasia a Henrique antes de sua conversatildeo e escreve
que ldquoeacute a um pagatildeo e a um huguenote que devemos os
mais belos dias que jamais teriacuteamos ateacute o seacuteculo de Luiacutes
XIVrdquo768
Nessa significativa passagem a memoacuteria jaacute natildeo aparece como vontade
poliacutetica ordenando pelo peso da lei o que natildeo se pode esquecer e como se deve
Ouvres Complegravetes T 287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par Condorcet et dautres
eacutetudes biographiques Garnier Fregraveres Paris 1877-1885 pp 1-64 767 ldquoLrsquoauteur de cet article le sieur de la Harpe (car il a pris la preacutecaution drsquoannoncer que cet article
est son ouvrage) ()rdquo PARLEMENT DE PARIS Arrecirct du parlement (qui enjoit agrave de La Harpe
auteur de lrsquoarticle intitule Diatribe agrave lrsquoauteur des eacutepheacutemeacuterides paru dans le Mercure de France du
moins drsquoaoucirct 1775 agrave Louvel censeur et agrave La Combe imprimeur drsquoecirctre plus circonspects agrave lrsquoavenir
Paris Imprimeur du Parlement 1775 p 1 768 Ibidem p 2 Grifos meus ldquoQuels sont cependant les points sur lesquels on veut diriger lrsquoopinion
geacuteneacuterale Crsquoest la misere dont la Nation a eacuteteacute accableacutee depuis Jules Cesar jusqursquoau grand Julien le
Philosophe Ce Prince drsquoabord Chreacutetien ensuite Apostat nous traita avec cleacutemence il fit tout ce qursquoa
voulu faire depuis notre grand Henri IV amp bientocirct dans une comparaison odieuse pour un Roi quis
era toujours les deacutelices de la France seignant drsquooublier que Henri le grand eacuteleveacute dans la Religion
preacutetendue reacuteformeacutee en avoit abjureacute les erreurs pour rentrer dans le sein de la Religion catholique
lrsquoAuteur cherche agrave rendre le constraste plus frappant em opposant Julien apregraves son apostasie agrave Henri
avant as conversion amp srsquoeacutecrie crsquoest agrave um Payen amp agrave um Huguenot que nous devons les seuls beaux
jours dont nous ayons jamais joui jusqursquoau siecle de Louis XIVrdquo Grifos originais
243
lembrar Caso respondamos positivamente deveriacuteamos reconhecer que no momento
em que a ldquoidentidaderdquo parecia correr o risco de ser desnaturalizada pelas luzes do
seacuteculo XVIII a memoacuteria veio cumprir-lhe um papel reificador Eacute claro que os
advogados do rei sabiam reconhecer um texto de Voltaire quando o liam769 De la
Harpe no entanto mais ligado aos cafeacutes do que aos salotildees vivendo com cerca de 600
livres do Mercure protegia seu protetor servindo de escudo moral ao patrono770
Aliaacutes a moral catoacutelica compartilhava com a poliacutetica o papel de maicirctre na escola que
os historiographes de lrsquoOrdre julgavam ensinar ldquoA religiatildeordquo escreveram os
censores ldquoeacute um dos principais lugares da sociedade natildeo podemos aviltar-la sem
alterar o motivo primordial da obediecircncia dos povosrdquo771 E se era preciso atentar aos
ldquoOraacuteculos da Justiccedilardquo como se fossem ldquouma porccedilatildeo da justiccedila divinardquo essa ldquomultidatildeo
de escritos imoderados de brochuras escandalosas de libellos iacutempiosrdquo ndash os quais
atacavam a ldquoMajestade divinardquo e a ldquoMajestade realrdquo ndash apenas conspiravam contra a
harmonia entre o ceacuteu e a terra base da cosmologia do absoluto solar
Voltaire jaacute entendia que a histoacuteria natildeo deveria ser ldquonem um panegiacuterico nem
uma saacutetira nem uma obra de partido nem um sermatildeo ou um romancerdquo Alegava ter
percebido essa regra quando lanccedilou seu olhar sinoacuteptico ndash que um dia existiu na
geraccedilatildeo de Poliacutebio ndash por toda a terra Outrossim natildeo deixaria de quebrar esse estatuto
proacuteprio Ao cair de seus sessenta anos de combate por ldquojusticcedila aos grandes homensrdquo
o philosophe talvez em nada acreditasse em supersticcedilotildees pagatildes como a metempsicose
Mas ao saudar essa crendice entre os bracircmanes ele igualmente esboccedilava uma crenccedila
primeiro na sua Igreja a Repuacuteblica das Letras depois na histoacuteria natildeo que ela fosse
sempre verdadeira mas ainda assim existente e capaz de produzir verdades ao fazer
justiccedila aos tempos e aos grandes homens que foram em suas paacuteginas eleitos a
representaacute-los Como escreveu durante a Defesa do rei sol ldquovejo ainda o seacuteculo de
Luiacutes XIV como aquele do gecircnio e o seacuteculo presente como aquele que racionaliza
sobre o gecircniordquo772 O seacuteculo da razatildeo eacute tambeacutem lembrado como o seacuteculo da aceleraccedilatildeo
769 ldquoNous ne revelons ici cette citation que pour vous faire mieux sentir amp la mauvaise foi de lrsquohomme
ceacuteleacutebre agrave qui ont attribue cette Diatribe amp la partialiteacute de lrsquoEacutediteur qui en a rendu compte dans le
Mercurerdquo Idem Ibidem 770 Sobre o salaacuterio de La Harpe ver DARNTON 1987 p 19 771 ldquoLa Religion est un des principaux liens de la socieacuteteacute on ne peut lrsquoavilir sans alteacuterer le premier
motif de lrsquoobeacuteissance des Peuplesrdquo PARLEMENT DE PARIS 1775 p 3 772 ldquoOn sait assez que lrsquohistoire ne doit ecirctre ni un paneacutegyrique ni une satire ni un ouvrage de parti ni
um sermon ni un roman Jrsquoai eu cette regravegle devant les yeux quan jrsquoai oseacute jeter um oeil philosophique
sur la terre entiegravere Jrsquoenvisage encore le siegravecle de Louis XIV comme celui du geacutenie et le siegravecle preacutesent
comme celui qui raisonne sur le geacutenie Jrsquoai travailleacute soixante ans agrave rendre exactement justice aux
grands hommes de ma patrierdquo VOLTAIRE Deacutefense p 388
244
do tempo de sua desordem da falecircncia dos sistemas antigos e da Grande Revoluccedilatildeo
Nisso as Efemeacuterides desempenharam o papel de uma ldquoobra digna de seu nomerdquo
contando mesmo a revelia das vozes que ecoam em suas paacuteginas um dos capiacutetulos
da mudanccedila773 O parlamento declarava a improbidade dos excertos que atacavam a
ldquoReligiatildeo o Governo amp a memoacuteria de nossos Reisrdquo774 La Harpe escudeiro de um
enfant terrible eacute quem receberia uma repreensatildeo junto a promessa de que seria mais
cuidadoso no futuro A Voltaire mesmo que na seguranccedila dos piacutencaros do le monde
sobrava continuar a tarefa de senatildeo demolir o tempo cristatildeo ao menos desorientar
suas bases providenciais ao projetar um futuro no qual os homens seriam senhores de
seus proacuteprios destinos E para dialogar com as almas e esferas puacuteblicas como em
outro contexto alegava o editorial de abertura das Efemeacuterides do Cidadatildeo precisaria-
se ldquodas Brochuras amp dos folhetosrdquo775
43 As efemeacuterides na escola de moral e de poliacutetica
Apoacutes a leitura da Chronoligia de Abraham Bucholzer publicada no final do
seacuteculo XVI Joseph Scaliger pegou-se refletindo sobre uma velha questatildeo O texto
seguia Euseacutebio de Cesareacuteia ao pontuar a histoacuteria por jubileus de 50 anos alegando
reconhecer ali uma ldquoanalogia secretardquo Em seu De emendatione o cronologista
huguenote jaacute havia explicado esse ordenamento tatildeo singular o qual atribuia agrave grande
semana judaica ndash uma periodizaccedilatildeo que contava sete anos para guardar o uacuteltimo como
sabaacute ldquoNo ano sabaacutetico caso dividirmosrdquo o nuacutemero de ldquoanos do mundo por 7 o
restanterdquo eacute a posiccedilatildeo do ldquoano na atual semanardquo escreveu Scaliger 776 O que o
intrigava no trabalho de Bucholzer era o fato de que ele teria cometido
() um bom nuacutemero de erros no momento em que fez o
Jubileu consistir em 50 anos completos algo que
contradiz tanto a autoridade da escritura quanto a razatildeo
De que modo 50 pode ser dividido por 7 Natildeo se
poderia levar a seacuterio algueacutem simplesmente por acreditar
nisso pois os gregos tambeacutem tinham essa opiniatildeo ndash pelo
menos lembro de ter encontrado essa fantasia em um 773 ldquoJrsquoai lu les Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ouvrage digne de son titrerdquo Idem p 327 774 PARLEMENT DE PARIS 1775 p 4 775 ldquoLe mal a gagneacute les hommes amp fait de grands progregraves ce nrsquoest pas la seule deacutelicatesse de ce genre
qui se soit comunique drsquoun fexe agrave lrsquoautre il faut donc des Brochures amp des Feuilles agrave notre Sieclerdquo
BAUDEAU Nicolas Eacutepheacutemeacuterides du Citoyen op cit novembro de 1765 p 16 776 SCALIGER De emendatione 429 apud GRAFTON Defenders of the Text op cit 1991 p 142
245
dos antigos escritores eclesiaacutesticos gregos Isso seria
toleraacutevel se ao menos ele natildeo tivesse baseado alegorias
dignas de um Oriacutegenes nesses Jubileus de 50 anos777
Bem pouca astrologia e numerologia como comenta Grafton pode ser
encontrada nas obras de Scaliger Mas ao criticar o jogo dos nuacutemero por Bucholzer
homem que parecia julgar ter encontrado ali o ldquoplano secreto de Deusrdquo o autor do De
emendatione ldquorevelava a verdadeira novidade de sua atituderdquo no que ldquoas datas que
ele estabelecia eram datas natildeo liccedilotildeesrdquo Algo pouco usual para a eacutepoca segundo o
historiador americano ao menos para um leitor acostumado agraves cronologias
tradicionais778
Seria tambeacutem pouco comum para um leitor familiarizado com as efemeacuterides
histoacutericas Na Franccedila tabelas de fatos de diversos periacuteodos precisando suas datas em
um calendaacuterio anual comeccedilam a aparecer desde o ano 10 da Revoluccedilatildeo Em 1796
surgem as Efemeacuterides de Noeumll obra que alegava preencher um lacuna que ldquofaltava agrave
literatura francesa e estrangeirardquo Ningueacutem havia antes elaborado ldquouma tabela de
eventos notaacuteveis datados de um mesmo dia ao longo da sequecircncia dos seacuteculosrdquo
Considerar a histoacuteria dessa maneira dizia Noumlel seria uma forma tatildeo ldquocuriosa quanto
instrutivardquo fazendo desfilar aos olhos do leitor ldquorevoluccedilotildees conspiraccedilotildees batalhas
tomada de cidades tratados de paz fenocircmenos fiacutesicos nascimento e morte de homens
celebres de todos os gecircnerosrdquo e mesmo a estreacuteia de peccedilas de teatro e cerimocircnias
religiosas Nessas Efemeacuterides publicadas no periacuteodo revolucionaacuterio ldquoa histoacuteria de
todos os seacuteculos e de todos os paiacuteses encontra-se dessa forma fechada no ciclo de um
uacutenico ano ao mesmo tempo em que ela eacute reduzida aos fatos singularesrdquo que
importariam lembrar referenciados a partir dos ldquomais fieacuteis historiadoresrdquo779
777 SCALIGER para BEZA 7 de dezembro de 1584 (calendaacuterio Juliano) Leiden University Library
MS Perizonianus Q 5 fols II recto ndash 14 apud GRAFTON ibidem p 143 Na traduccedilatildeo de Grafton ldquoHe
has made a good many mistakes as when he makes the Jubilee consist of 50 complete years a thing
which constradicts both the authority of Scripture and reason For how can 50 be divisible by 7 It
would not be a serious matter simply to have believed this for the old Greeks also held this view ndash at
least I remember coming across this fantasy in one of the old Greek ecclesiastical writers That would
be tolerable if only he did not base allegories worthy of Origen on these 50-year Jubileesrdquo Cf
Leviacutetico 258-10 ldquoContaraacutes sete anos sabaacuteticos sete vezes sete anos dos quais a duraccedilatildeo faraacute um
periacuteodo de quarenta e nove anos Faraacutes entatildeo soar a trombeta no deacutecimo dia do seacutetimo mecircs ()
Santificareis o quinquageacutesimo ano e publicareis a liberdade na terra para todos os habitantes Seraacute o
vosso jubileurdquo 778 GRAFTON Idem Ibidem 779 NOEumlL Franccedilois-Joseph-Michel Eacutepheacutemeacuterides politiques litteraires et religieuses preacutesentant pou
chacun des jours de lrsquoanneacutee un tableau des eacuteveacutenements remarquables qui datent de ce mecircme jour dans
lrsquohistoire de tous les siegravecles et de tous les pays et commencant au I septembre 1796 pour finir au I
septembre 1797 Paris 1796 De limprimerie de Le Normant 1796 p III Dada a autodeclarada
246
Eacute no periacuteodo da restauraccedilatildeo no entanto que aparece uma Efemeacuteride
proclamadamente dada a oferecer liccedilotildees Jaacute em 1825 Cyprien Desmarais um
publicista habituado a ldquoestudar a poliacutetica atraveacutes dos jornaisrdquo escreve suas
Efemeacuterides do reino de Luiacutes XVIII780 No Prospectus pequeno sumaacuterio das propostas
do projeto os editores adiantavam que o livro seria seguido por novos volumes
publicados ano a ano contendo as ldquoEfemeacuterides histoacutericas poliacuteticas e universais do
ano precedenterdquo A obra completaria uma tabela cronoloacutegica da histoacuteria universal ldquoe
particularmente da Histoacuteria da Franccedila depois da restauraccedilatildeordquo 781
Os editores natildeo deixariam de tomar o cuidado de elucidar a foacutermula da nova
publicaccedilatildeo Mas ela natildeo seguia a ordem do ldquogrande anordquo de Noeumll ldquoAs Efemeacuteridesrdquo
eram como diziam aos leitores ldquoas tabelas histoacutericas nas quais os fatos e eventos
politicos notaacuteveis satildeo classificados pela ordem da data em que aconteceramrdquo782
Tratava-se de uma sucessatildeo de anos dentro deles meses os uacuteltimos pautados por
dias dias nos quais assinalavam-se eventos politicos e notiacutecias gerais referentes ao
reinado de Luiacutes XVIII Sua utilidade era justificada como uma primeira seleccedilatildeo de
fragmentos que serviriam a uma geraccedilatildeo futura a tarefa de raisonneacuter perscrutar
refletir analisar fontes e compor uma histoacuteria ainda sob um terreno previamente
ordenado pela boa memoacuteria do rei ldquoAs Efemeacuterides de uma eacutepocardquo e assim escreveu
novidade da foacutermula os editores tomaram cuidados didaacuteticos ao explicaacute-la ldquoNous ne parlons pas des
rapprochemens singuliers que le lecteur aura souvent occasion de remarquer en voici un que nous
offre le tableau historique du 14 mai agrave lrsquoarticle France Lrsquoan 1554 le 14 mai le roi Henri II ordonne
drsquoeacutelargir la rue de la Feacuteronnerie (ce qursquoon neacutegligea drsquoexeacutecuter) Lrsquoan 1610 le 14 mai Henri IV est
assassineacute dans la rue de la Feacuteronnerie son carosse ayant eacuteteacute arrecircteacute par un embarras de voitures Lrsquoan
1643 le 14 mai mort du fils drsquoHenri IV (Louis XIII) Lrsquoan 1771 le 14 mai Monsieur fregravere de Louis
XVI srsquoeacutetant marieacute avec la fille aicircneacutee du roi de Sardaigne les faiseurs drsquohoroscopes auguregraverent mal de
ce mariage ceacuteleacutebre dans un pareil jour (hellip) Lrsquoexposeacute de chaque fait est suivi drsquoun deacuteveloppement tireacute
des historiens les plus fidegraveles eu auquel on donne plus ou moins drsquoeacutetendue suivant que le fait est plus
ou moins inteacuteressant Nous citons avec soin les sources ougrave nous avons puiseacute dans toutes les choses qui
peuvent sembler extraordinair esau lecteur mais nous omettons les citations qual il srsquoagit
drsquoeacuteveacutenemens trop connus et dont les circonstances sont avoueacutees de tout le monde Enfin nous nrsquoavons
rien neacutegligeacute pour qursquoau meacuterite de lrsquoinvention se joignicirct encore celui de lrsquoexeacutecutionrdquo pp III-IV As
Efemeacuterides de Noumlel conheceriam reimpressotildees NOEumlL Franccedilois-Joseph-Michel Eacutepheacutemeacuterides
politiques litteacuteraires et religieuses preacutesentant pour chacun des jours de lanneacutee un tableau des
eacuteveacutenemens ()Seconde eacutedition revue corrigeacutee et augmenteacutee Paris Le Normant 1803 780 ldquoHabitueacutes depuis quelque temps () agrave eacutetudier la politique dans les journaux ()rdquo DESMARAIS
Cyprien Voyage Pittoresque dans lrsquointeacuterieur de la chambre des deputes suivi Du Temps Present ou
essai sur lrsquohistoire de la civilization au dix-neuviegraveme siegravecle Deuxiegraveme eacutedition Paris Ponthieu
Librarie 1827 p 1 781 DESMARAIS Cyprien Eacutepheacutemeacuterides Historiques et Politiques du Regravegne de Louis XVIII depuis la
restauration FM Maurice Librarie-Eacutediteur 1825 Prospectus sp ldquoCet ouvrage formera um tableu
chronologique et complet de lrsquoHistoire politique de tous les peuples et particuliegraverement de lrsquoHistoire
de France depuis la restauration (1814) Chaque volume qui suivra celui intitule Eacutepheacutemeacuterides du regravegne
de Louis XVIII sera publieacute anneacutee par anneacutee dans le courant du mois de janvier il contiendra les
Eacutepheacutemeacuterides historiques politiques et universelles de lrsquoanneacutee preacuteceacutedenterdquo 782 Idem Ibidem
247
Desmarais ldquosatildeo como o material que o obreiro extrai da pedreira e que transporta ao
local da construccedilatildeo aonde ele deve servir para elevar um edifiacutecio majestosordquo
Continham natildeo apenas os fatos mas a indicaccedilatildeo de suas circunstacircncias783 Imerso na
curta duraccedilatildeo o publicista chegaria alguns anos mais tarde a escrever um conjunto de
ensaios sobre o tempo presente784 Mesmo ele entretanto reconhecia a necessidade
historiograacutefica de ldquofechar os olhosrdquo e algo paciente esperar o teacutermino dos relatoacuterios
de trabalho do arquiteto-tempo785 Esse era um expediente que de todo modo natildeo
deixava de expressar uma tensatildeo
Poderiacutea-se fazer notar que o modelo assumido por Desmarais praticava uma
inversatildeo na ordem das efemeacuterides astronocircmicas as quais publicavam os movimentos
celestes do proacuteximo ano ou das astroloacutegicas que o faziam rendendo prognoacutesticos
que variavam de previsotildees metereoloacutegicas a profecias sobre a morte de reis
Concentrar-se no passado recente no entanto natildeo significava ignorar o futuro e de
certo modo essa mudanccedila de praacutetica ainda guardava as mesmas pretensotildees vaticinais
ainda que submetidas a uma nova experiecircncia do tempo ldquoO reino de Luiacutes XVIII
ainda natildeo tombou ao domiacutenio da Histoacuteriardquo como defendia o escritor ldquomas a era da
revoluccedilatildeo o pertence a posteridade jaacute se levantou por elardquo786 O monarca da
restauraccedilatildeo predizia Desmarais ldquoseraacute nomeado grande pela histoacuteriardquo pois se ele natildeo
pocircde mais convocar a ldquoexperiecircncia do passadordquo foi outrossim saacutebio o suficiente para
dominar o presente antecipando e adivinhando o futuro787 ldquoQualquer que seja o
lugarrdquo que ocuparaacute na ldquoHistoacuteria a revoluccedilatildeo e a usurpaccedilatildeo o retorno a monarquiardquo
completava o prognoacutestico ldquoseraacute o fato dominante nos anais do seacuteculo XIXrdquo788
783 Ibidem p I ldquoLes Epheacutemeacuterides sont de tableaux historiques ougrave les eacuteveacutenement et les fait politiques et
remarquables sont classes dans lrsquoordre de date ougrave ils sont arriveacutes On trouve agrave cocircteacute de chaque fait
lrsquoexplication succinte de as cause et de ses conseacutequences des notes attacheacutes agrave chaque article eacutetablissent
les correacutelations que peuvent avoir entre eux des eacuteveacutenements arriveacutes dans la mecircme anneacutee sous les
mecircmes regravegnes et sous lrsquoinfluence des mecircmes circonstancesrdquo 784 DESMARAIS 1827 op cit 785 ldquoLes Ephemeacuterides drsquoune eacutepoque sont comme ces mateacuterieux que lrsquoouvrier extrait de la carrier et
qursquoil transporte sur le lieu meme ougrave ils doivent server agrave eacutelever un majestueux edifice lrsquoarchitecte qui
doit dresser et executer le plan de ce monument nrsquoa point encore paru cet architecte crsquoest le tempsrdquo
DESMARAIS Eacutephemeacuterides 1825 p I 786 Idem Ibidem ldquoLe regravegne de Louis XVIII nrsquoest pas encore tombeacute dans le domaine de lrsquoHistoire mais
lrsquoegravere de la revolution lui appartient la posteacuteriteacute srsquoest deacutejagrave levee pour ellerdquo 787 Ibidem p XIX ldquoIl sera nommeacute Grand par lrsquohistoire parce qursquoappeleacute agrave regir um ordre de choses
entiegraverement nouveau il nrsquoa eacuteteacute aideacute que par as propre sagesse par la force de son caractegravere et par la
supeacuterioriteacute de ses lumiegraveres ne pouvant invoquer agrave son aide lrsquoexpeacuterience du passeacute qui avoit ignoreacute cette
politique pour ainsi dire impreacutevue il a maicirctriseacute le preacutesent en pressentant et comme en devinant
lrsquoavenirrdquo 788 Idem p XII-XIII ldquoQuelle que soit la place que demandent agrave occuper dans lrsquoHistoire la reacutevolution et
lrsquousurpation le retour de la monarchie sera le fait dominant dans les annales du 19e siegraveclerdquo
248
As Efemeacuterides elogiavam o priacutencipe registravam seus feitos mecircs por mecircs
dia-a-dia como uma vez imaginamos fizera Eumenes de Caacuterdia em relaccedilatildeo a
Alexandre Cyprien Desmarais devemos mencionar fora tambeacutem o curioso autor de
uma Histoacuteria das Histoacuterias da Revoluccedilatildeo Francesa retrato ciacutenico e criacutetico da
primeira geraccedilatildeo liberal de historiadores do movimento de 1789 Poreacutem como os
historiadores liberais que detratava ele natildeo era um ldquoobservador desligado fora do
campo ou da histoacuteria que na proacutepria distacircncia apreende em uma visatildeo sinoacuteptica a
verdade de seu objetordquo789 Publicada em 1834 a Histoire des Histoires acompanhava
um ldquomomento poliacutetico () graverdquo caracterizado segundo um escritor bem mais
ceacutelebre ldquopela repercussatildeo perpeacutetua da tribuna sobre a imprensa e da imprensa sobre a
tribunardquo790 Observador atento ao presente Desmarais eacute engajado escreve para ser
lido por seus contemporacircneos e natildeo se furta a fazer as efemeacuterides transitarem de um
uso do futuro em nome do passado a um uso do passado em nome do futuro Para tal
era preciso refletir sobre a revoluccedilatildeo e mais do que isso julgaacute-la a comeccedilar pelo
escrutiacutenio de seus historiadores liberais ou natildeo como o Thiers da Histoacuteria da
Revoluccedilatildeo o Thierry das Lettres sur lrsquohistoire de France ainda Rabaut do Resumo ou
Bouchez e Roux da Histoacuteria Parlamentar
Tal lembranccedila da revoluccedilatildeo natildeo deixava de dever algo agrave tradiccedilatildeo das
efemeacuterides celestes talvez mesmo a pregadores como Antocircnio Vieira embora as
expectativas centradas na voz de Deus fossem substituiacutedas pelas depositadas nos
feitos dos homens sorvendo da influecircncia celeste senatildeo um conjunto de metaacuteforas
luminosas A imagem dos eventos iniciados em 1789 era a mesma de um ldquometeoro
tenebroso que ilumina o horizonte como um incecircndiordquo para depois ldquose perder e sumir
nos abismos dos ceacuteus sem que os astrocircnomos tivessem sido capazes de prever sua
apariccedilatildeo nem explicar sua trajetoacuteriardquo791 Escutar as vozes dessa estrela cadente
prenuacutencio do assassinato dos reis era natildeo mais a tarefa da filosofia natural mas de
um jornalismo moralista Se ldquoa luta de opiniotildees suspendida durante a passagem da
789 HARTOG 2011 p 145 790 ldquoLe moment politique est grave personne ne le conteste () le retentissement perpeacutetuel de la
tribune sur la presse et de la presse sur la tribunerdquo HUGO Victor Les feuilles drsquoautomne J Hetzel amp
cia Paris 1831 prefaacutecio p 1 791 DESMARAIS Cyprien Histoire des Histoires de la Reacutevolution Franccedilaise Pour servir de
compleacutement agrave tous les eacutecrits sur la mecircme eacutepoque Paris Paul Meacutequignon 1834 pp 3-4 ldquoMeacuteteacuteore
effrayant qui eacuteclaire lhorizon comme un incendie et puis va se perdre et srsquoeacuteteindre dans les abicircmes des
cieux sans que les astronomes aient pu ni deviner son apparition ni expliquer son coursrdquo
249
anarquia e do despotismordquo voltava agora com ldquouma nova energiardquo Desmarais jaacute
havia escolhido o seu lado792
A era da revoluccedilatildeo era vista como um tempo de esquecimento ldquoToda a
Franccedilardquo portava-se como se medo ou receio tivesse de ao olhar para o passado
declinar em direccedilatildeo ldquoao abismordquo do qual havia ldquoacabado de sairrdquo793 Nada muito
distante deveria-se dizer da distinccedilatildeo de Tocqueville entre sociedades aristocraacuteticas
suas casas e costumes resistindo ao tempo pela memoacuteria dos ancestrais e sociedades
democraacuteticas com famiacutelias emergindo enquanto outras envoltas pelas neacutevoas do
esquecimento sumiam sem sequer conhecer seus pais 794 Tampouco das opiniotildees de
Edmond Burke que via na memoacuteria e na tradiccedilatildeo as bases de toda ordem social autor
que mereceu uma longa compilaccedilatildeo de citaccedilotildees que dominam o capiacutetulo XXIV da
Histoacuteria das Histoacuterias795
Interessado em fazer conhecer o ldquoespiacuterito da histoacuteria e dos historiadores da
revoluccedilatildeo francesardquo natildeo era a perspectiva criacutetica de Burke e Tocqueville que
Desmarais encontrava nos escritos de homens como Thiers ou Thierry Ao grande
caos iniciado em 1789 eles em geral eram simpaacuteticos fechando os olhos para
quaisquer abusos e dizendo em alta voz que foram todos inevitaacuteveis e eacute
precisamente ldquoa isso que chamamos de escola histoacuterica fatalistardquo796 Avesso a dita
abordagem seu ldquoestudo comparado dos principais historiadores da revoluccedilatildeordquo foi
levado a cabo preferindo associar-se ao lado oposto ldquoa esse trabalho geral de reaccedilatildeo
contra-revolucionaacuteria que se opera nos espiacuteritosrdquo797
Se Thiers era lembrado como aquele que viu no espiacuterito republicano a
representaccedilatildeo da vontade geral da naccedilatildeo Desmarais pergunta-se como ldquocomo uma
revoluccedilatildeo que no desenrolar de seus fatos foi conduzida pelos homens mais perversos
792 DESMARAIS Fragments In Eacutepheacutemeacuterides Historiques 1825 op cit p XXVI 793 Idem ldquoToute la France agrave cette eacutepoque se portoit en avant et dans lrsquoavenir on nrsquoosoit pas regarder
em arriegravere de peur de reculer dans lrsquoabicircme dont on venoit de sortirrdquo p XVIII-IX 794 TOCQUEVILLE Alexis de De la deacutemocratie en Ameacuterique Les classiques des sciences sociales
version numeacuterique par Jean-Marie Tremblay principalmente parte I capiacutetulos XX-XXI e parte II
capiacutetulo I e II pp 84-101 795 ldquoThe very idea of the fabrication of a new government is enough to fill us with disgust and horror
We wished at the period of the Revolution and do now wish to derive all we possess as an inheritance
from our forefathersrdquo BURKE Edmund Reflection of the Revolution in France London John Sharpe
1820 p 49-50 Desmarais chegou a descrever as reflexotildees de Burke como ldquo() ce qui a eacuteteacute eacutecrit de
ramarquable sur la reacutevolution franccedilaiserdquo DESMARAIS Histoire des Histoires 1834 pp 129-156 796 ldquoEm geacuteneacuteral () les historiens de la reacutevolution sont loin de lui ecirctre hostiles () ce qursquoon appeleacute
lrsquoeacutecole historique fataliste () ils ont vu le crime mais ao lieu de dire il est hideux ils ont dit il eacutetait
ineacutevitablerdquo DESMARAIS Histoire des Histoires 1834 p 7 797 ldquoNous avons preacutefeacutereacute nous associer agrave ce travail geacuteneacuteral de reacuteaction contre-reacutevolutionnaire qui srsquoopegravere
dans les espritsrdquo Idem p 8
250
da sociedade poderia produzir efeitos vantajosos a essa proacutepria sociedaderdquo O
publicista via a usurpaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo do rei como um ldquoprinciacutepio anti-socialrdquo o
qual teria sido passado de Mirabeau a ala radical da Assembleia da esquerda aos
girondinos deles agrave montanha os quais por sua vez o abandonaram aos
ldquoterroristasrdquo798 Eacute na transferecircncia desse princiacutepio maligno o qual reside nos coraccedilotildees
dos maus homens que assenta-se a analogia moral preenchida nas paacuteginas da Histoacuteria
das Histoacuterias Desmarais via na revoluccedilatildeo de julho de 1830 ndash na sua nova charte
baseada no princiacutepio da ldquosoberania popularrdquo ndash uma ldquovia difiacutecil e perigosardquo799 Uma
armadilha na qual o girondinos agrave eacutepoca da grande revoluccedilatildeo terminaram por tombar
A historiografia liberal com suas atenccedilotildees voltadas exclusivamente ao futuro seria
incapaz de perceber os sinais da tirania Simpaacuteticos ao espiacuterito da revoluccedilatildeo agraves
sociedades de esquecimento a geraccedilatildeo de Thiers e Thierry terminaria por justificar
seus levantes e usurpaccedilotildees
O sistema da fatalidade (se ele for um sistema) eacute muito
comodo aos historiadores que natildeo querem admitir o
curso loacutegico dos acontecimentos Este sistema natildeo tem
sentido para um seacuteculo que racionaliza e que busca na
histoacuteria liccedilotildees Cordeiros natildeo geram tigres e a
civilizaccedilatildeo uma vez em progresso natildeo deve e natildeo
sabera gerar a barbaacuterie800
Cyprien Desmarais natildeo era exatamente um passadista Mais do que acessar o
topos da histoacuteria mestra da vida ao qual ele natildeo se presta a tecer comentaacuterios
cuidava-se de submetecirc-lo a uma praacutetica historiograacutefica circunscrita ao ldquotempo e a
experiecircncia do tempordquo uacutenicas instacircncias capazes de determinar o ponto de vista
verdadeirordquo801 Isso o permite falar para o presente manter olhos nas liccedilotildees do
passado e as expectativas no futuro Sua escrita reacionaacuteria reconhece a vicissitude
dos costumes a evidecircncia da aceleraccedilatildeo do tempo a falecircncia mesmo que algo
lamentaacutevel dos ldquosistemas antigosrdquo da velha ldquoordem intelectual e moralrdquo como antes
dele reconheceram igualmente os nomes bem menos modestos de Tocqueville e
Chateaubriand
798 Idem pp 39-40 799 Idem p 29 800 ldquoLe systegraveme de la fataliteacute (si crsquoest un systegraveme) est fort commode pour les historiens qui ne veulent
point avouer la marche logique des eacuteveacutenements Ce systegraveme nrsquoest point fait pour un siegravecle qui raisonne
et qui veut chercher des leccedilos dans lrsquohistoire Les agneaux nrsquoengendrent pas les tigres et la civilization
tant qursquoelle est en progregraves ne doit et ne saurait engendrer la barbarierdquo Idem p 49 801 ldquoEm effet crsquoest le temps et lrsquoexperience du temps qui seuls peuvent deacuteterminer la vrai point de
vuerdquo Idem p 5