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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANAacute
DANDARA DOS SANTOS DAMAS RIBEIRO
COMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS SANTOS IDENTIDADE E
FAMIacuteLIAS NEGRAS EM MOVIMENTO
CURITIBA
2015
DANDARA DOS SANTOS DAMAS RIBEIRO
COMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS SANTOS IDENTIDADE E
FAMIacuteLIAS NEGRAS EM MOVIMENTO
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Social Setor de Ciecircncias Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paranaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Antropologia Social
Orientadora Prof Dra Liliana de Mendonccedila Porto
CURITIBA
2015
uNivgRSiCAoe feoeR A t d o Pa r a n a
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA SETOR DE CIEcircNCIAS HUMANASPROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ANTROPOLOGIA RUA GENERAL CARNEIRO 460 6o ANDAR CEP 80060-150 - CURITIBA-PR Telefone (41) 3360-5272
PARECER DA BANCA EXAMINADORA
Os membros da Banca Examinadora designada pelo Colegiado do
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia da Universidade Federal do Paranaacute
(PPGA) para realizar a arguiccedilatildeo da Dissertaccedilatildeo de Mestrado de Dandara dos Santos
Damas Ribeiro intitulada ldquoCOMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS
SANTOS IDENTIDADE E FAMIacuteLIAS NEGRAS EM MOVIMENTOrdquo apoacutes terem
inquirido a aluna e realizado a avaliaccedilatildeo do trabalho satildeo de parecer pela
s u a j^ ^ ^Ccedil s f^ completando-se assim todos os requisitos previstos nas normas
desta Instituiccedilatildeo para a obtenccedilatildeo do Grau de Mestre em Antropologia Social
Consideraccedilotildees adicionais da Banca Examinadora
K CAtilde-~ ikjOu
ampJSraquo V3 51X ^V CUacuteUumlSS^sSi bull
Curitiba 23 de novembro de 2015
Profa Dra Liliana de Mendonccedila Porto Orientadora r
Prof Dr Andreacute Dumaifjs Guedes 1o Examinador
laacuteampgyCjProf Dr Ricardo Cid Fernandes
2a Examinador
Dedico este trabalho ao meu pai Antocircnio e agrave minha matildee Elisabete O apoio a
paciecircncia a generosidade e o amor que recebi de vocecircs foram o oxigecircnio para este
mergulho bem como para o recomeccedilo que se anuncia
AGRADECIMENTOS
Entendo essa pesquisa como uma primeira tentativa de organizaccedilatildeo de um
rico material de campo como a possibilidade de aprofundamento do viacutenculo que jaacute
possuiacutea e que pretendo manter com as famiacutelias quilombolas de GuaiacuteraPR e espero
o iniacutecio de uma longa caminhada de dedicaccedilatildeo agrave Antropologia Agradeccedilo muitiacutessimo
pela receptividade para a realizaccedilatildeo da pesquisa em todos os lugares que percorri
durante o trabalho de campo GuaiacuteraPR Presidente PrudenteSP Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG e SerroMG Agraves famiacutelias da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos
Santos o meu agradecimento pela hospitalidade confianccedila atenccedilatildeo e aprendizados
Sou grata a Deus por nossos caminhos terem confluiacutedo para a oportunidade deste
conviacutevio que foi repleto de experiecircncias incomensuraacuteveis
Agradeccedilo pela possibilidade de mergulho na Antropologia um novo caminho
que comecei a trilhar na minha graduaccedilatildeo no curso de Direito da UFPR Esta
curiosidade se ampliou com a oportunidade de trabalhar no Ministeacuterio Puacuteblico do
Paranaacute que me proporcionou o contato com vaacuterias comunidades quilombolas no
estado oportunidade pela qual agradeccedilo ao procurador de justiccedila e amigo Dr Marcos
Fowler Percebo como finalizo essa pesquisa com a convicccedilatildeo de que o que eu
precisava mesmo era de uma experiecircncia de trabalho de campo que fizesse do
conviacutevio a base para uma proposta de conhecimento que busca a horizontalidade o
diaacutelogo e a sensibilidade ndash o que gera uma transformaccedilatildeo dentro e fora de noacutes Natildeo
poderia ter realizado esta pesquisa sem o apoio da minha famiacutelia que diante das
inseguranccedilas e desafios do caminho confortaram-me com a inestimaacutevel sensaccedilatildeo e
certeza de ser amada incondicionalmente Pela simplicidade e grandiosidade deste
amor sem preacute-condiccedilotildees sou grata eternamente em especial aos meus avoacutes Doca
e Ruy Joatildeo aos meus pais Antocircnio e Elisabete agraves minhas irmatildes Tatiara Naiara e
Janaina ao meu cunhado Marcelo e agrave minha sobrinha Olga Agrave Naiara um
agradecimento todo especial pelas contribuiccedilotildees no processo de revisatildeo deste texto
em sua versatildeo final com seu amparo atenccedilatildeo e amor Aos meus avoacutes Joaquim e
Maria Julia em memoacuteria agradeccedilo e os homenageio lembrando de suas trajetoacuterias
como migrantes os quais assim como meus interlocutores(as) tambeacutem saiacuteram de
Minas Gerais em direccedilatildeo ao norte do Paranaacute em busca de melhores condiccedilotildees de
vida Durante o periacuteodo do trabalho de campo em Santo Antocircnio do Itambeacute e
SerroMG lembrei-me dos dois e no coraccedilatildeo os senti tatildeo proacuteximos
Se de longe recebi o incentivo dos meus familiares de perto agradeccedilo e
honro o conforto da presenccedila de meu companheiro de jornada Jean Luis com seu
apoio cotidiano confianccedila carinho atenccedilatildeo amor e magia Agrave grande famiacutelia que nos
tornamos junto com os amigos Simone e Julio Ceacutesar Angeacutelica e Gustavo com suas
crianccedilas abenccediloadas Brisa Mareacute Otto e Joatildeo eu agradeccedilo por terem preenchido
meu cotidiano de amor alegria e uniatildeo Aos meus colegas de mestrado agradeccedilo
pela convivecircncia proacutespera Em especial agrave Gabi ao ldquoTucanordquo e agrave Karina dos quais
recebi toda a ajuda necessaacuteria para o ingresso no programa de poacutes-graduaccedilatildeo em
Antropologia da UFPR Agradeccedilo tambeacutem o incentivo ao longo de todo o curso e a
confianccedila que depositaram em mim Com vocecircs compartilho memoacuterias muito
especiais de um periacuteodo uacutenico de minha vida Ao meu querido amigo Leonardo Bora
minha gratidatildeo e alegria por poder contar com sua generosidade na revisatildeo do texto
Agrave minha orientadora Profa Dra Liliana de Mendonccedila Porto agradeccedilo pelo
acompanhamento gentil e consistente pela delicadeza sensibilidade e estiacutemulos
contiacutenuos em nossas conversas por seu exemplo de antropoacuteloga e de pessoa que
seratildeo sempre referecircncias para mim A todos os professores e teacutecnicos do Curso de
Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia da Universidade Federal do Paranaacute agradeccedilo pela
dedicaccedilatildeo e pelos ensinamentos compartilhados Em especial aos Professores Dr
Ricardo Cid Fernandes e Dr Joatildeo Rickli pelas contribuiccedilotildees e sugestotildees ao trabalho
na banca de qualificaccedilatildeo
Ao pesquisador Cassius Cruz sou muito grata pela oportunidade da parceria
de pesquisa na realizaccedilatildeo das viagens a Minas Gerais Tambeacutem ao professor Dr
Matheus de Mendonccedila Gonccedilalves Leite e ao pesquisador Tiago Geisler ambos da
PUCSerro agradeccedilo pelo apoio e solicitude com que nos receberam no municiacutepio do
SerroMG Sem a disponibilidade de vocecircs nossa pesquisa na regiatildeo teria sido muito
difiacutecil ou mesmo inviaacutevel O significado dessa experiecircncia na minha vida e na de meus
interlocutores(as) transcende em muito as reflexotildees desta dissertaccedilatildeo
Preciso me encontrar
ldquoDeixe-me ir
Preciso andar
Vou por aiacute a procurar
Rir pra natildeo chorarrdquo
Cartola
Agraves vezes me chamam de negro
Agraves vezes me chamam de negro
Pensando que vatildeo me humilhar
Mas o que eles natildeo sabem
Eacute que soacute me faz relembrar
Que eu venho daquela raccedila
Que lutou pra se libertar
Que eu venho daquela raccedila
Que lutou pra se libertar
Que criou o maculelecirc
E acredita no candombleacute
E que tem o sorriso no rosto
Oi a ginga no corpo e o samba no peacute
O que eacute que tem
E que tem o sorriso no rosto
Oi a ginga no corpo e o samba no peacute
(Ladainha de Capoeira)
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo baseada na etnografia realizada junto agrave ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo localizada em GuaiacuteraPR problematiza a vinculaccedilatildeo direta entre a legitimidade da reivindicaccedilatildeo territorial das comunidades quilombolas e a ideia de territorialidade fixa que tem sido presumida pela poliacutetica de garantia de direitos territoriais quilombolas no Brasil Esta pesquisa indicou como a construccedilatildeo da identidade quilombola eacute perpassada pelos processos de deslocamentos constitutivos da trajetoacuteria das famiacutelias que vivem atualmente em GuaiacuteraPR mas satildeo provenientes de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG A reivindicaccedilatildeo da identidade quilombola eacute elaborada pelos meus interlocutores(as) com base na origem e na ancestralidade comuns com antepassados negros que foram escravizados nesta regiatildeo de Minas Gerais a partir da qual ocorre a saiacuteda das famiacutelias em busca de melhores condiccedilotildees de vida passando pelo estado de Satildeo Paulo ateacute a mudanccedila para GuaiacuteraPR onde adquirem aacuterea proacutepria Nas narrativas dos membros da comunidade percebe-se como o movimento natildeo dissolve mas ao contraacuterio sustenta o pertencimento coletivo Este caso exemplifica como a ideia de territorialidade fixa desconsidera experiecircncias de ldquoresistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo ndash criteacuterio trazido pelo Decreto Federal 48872003 ao regulamentar o processo de titulaccedilatildeo quilombola ndash constituiacutedas por meio de estrateacutegias de deslocamento e natildeo pela permanecircncia em um mesmo territoacuterio de ocupaccedilatildeo tradicional Estas dinacircmicas de movimento foram em um primeiro momento do processo de regularizaccedilatildeo territorial que ainda tramita no Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (INCRA) entendidas como um elemento de descaracterizaccedilatildeo da legitimidade da reivindicaccedilatildeo do grupo pelo primeiro relatoacuterio antropoloacutegico produzido sobre a comunidade Com a natildeo aprovaccedilatildeo deste estudo por parte do INCRA um novo relatoacuterio foi contratado tendo este investido no argumento de que haacute uma continuidade entre as dinacircmicas socioculturais do grupo de GuaiacuteraPR e as comunidades quilombolas de sua regiatildeo origem a partir de pesquisa realizada no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio ItambeacuteMG Esta pesquisa realizada pelo segundo relatoacuterio criou o interesse por parte da comunidade de que eles mesmos pudessem visitar a regiatildeo Tais viagens de retorno foram realizadas no acircmbito desta dissertaccedilatildeo para buscarmos mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica das famiacutelias o que gerou um entrelaccedilamento entre a minha pesquisa e a trajetoacuteria do grupo O (re)encontro entre parentes perdidos e a possibilidade de acesso agraves histoacuterias dos antepassados proporcionados por estas viagens sugerem que a busca pela reconstituiccedilatildeo de histoacuterias e viacutenculos com a regiatildeo de origem por parte dos quilombolas de GuaiacuteraPR natildeo se restringe ao acircmbito instrumental e administrativo mas tem tambeacutem uma importante dimensatildeo afetiva A articulaccedilatildeo destas dimensotildees aponta para o anseio dos quilombolas pelo reconhecimento da legitimidade de sua versatildeo sobre sua histoacuteria do valor de sua origem e trajetoacuteria bem como do direito de se construiacuterem como sujeitos e como coletividade especiacutefica
Palavras-chave comunidade quilombola relatoacuterios antropoloacutegicos movimento memoacuteria
ABSTRACT
The present thesis based on ethnography with the Quilombola Community Manoel Ciriaco dos Santos a black community located in Guaiacutera Paranaacute State (PR) Brazil questions the direct link between the legitimacy of the territorial claims of quilombola communities and the fixed territoriality idea that has been assumed by the quilombola land rights guarantee policy in Brazil This research indicated how the construction of a quilombola identity includes process of movement that are present in the trajectory of displacements of a group of families who although originally from Santo Antocircnio do Itambeacute in Minas Gerais State live nowadays in GuaiacuteraPR Their claim over a quilombola identity is elaborated on the bases of a common origin and ancestrality of black enslaved ancestors from the Center-Northeast region of Minas Gerais which unfolds in a journey for better life conditions leaving the place crossing Satildeo Paulo State and finally arriving at GuaiacuteraPR where they acquired their own land In the narratives of community members it is noticeable that the movement does not dissolve but rather sustains the collective pertaining This case exemplifies how the fixed territoriality idea disregards experiences of resistance to historical oppression- feature brought by the Federal Decree 48872003 that regulates the process of quilombola titling - that are based on shifting strategies and not by staying in one traditionally occupied territory These movement dynamics were regarded in the first instance of the land regularization process which is still pending in the National Institute of Colonization and Agrarian Reform (INCRA) as a distortion element of the legitimacy of the groups identity claim by the first anthropological report on the community With the rejection of this study by the INCRA a new report was hired From research held in the surrounding area of the municipality of Santo Antocircnio do ItambeacuteMG the repory argument that there is a continuity between the socio-cultural dynamics of the Guaira group and the quilombola communities of their region of origin This research by the second anthropological report has created the interest from the community that they themselves could visit the region Such return trips were undertaken in this thesis to seek more information on the historical trajectory of these families which generated an entanglement between my research and the trajectory of the group The re-gathering among long unseen relatives and the possibility of access to the stories of ancestors provided by these trips suggest that the search for the reconstitution of stories and links with the region of origin by the quilombolas of GuaiacuteraPR is not restricted by mere instrumental or administrative aim but also it has an important affective dimension The articulation of these dimensions points to the quilombolarsquos desire for recognition of the legitimacy of the communityrsquos version of their own history of the value of their origin and trajectory of their right to shape themselves as subjects and as an specific collectivity
Key-words quilombola community anthropological reports movement memory
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Guaiacutera na divisa com o Paraguai e o estado
Mato Grosso do Sul32
FIGURA 2 Presenccedila de tekohas guaranis e da comunidade quilombola Manoel
Ciriaco dos Santos em Guaiacutera e Terra Roxa34
FIGURA 3 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute39
FIGURA 4 Excerto Genealoacutegico 143
FIGURA 5 Excerto Genealoacutegico 2 44
FIGURA 6 Excerto Genealoacutegico 348
FIGURA 7 ndash Documentos de identidade de Manoel Ciriaco dos Santos nascido em
16031920 e Ana Rodrigues nascida em 26071930 ambos no municiacutepio de Santo
Antocircnio do ItambeacuteMG (Comarca de Serro)50
FIGURA 8 Foto do acervo da famiacutelia53
FIGURA 9 Fluxo migratoacuterio54
FIGURA 10 Divisatildeo setorial da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos
Santos57
FIGURA 11 Cartaz sobre a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia65
FIGURA 12 Geralda com imagem de preto-velho que compotildeem o seu altar79
FIGURA 13 Carteirinha de Geralda do Conselho Mediuacutenico do Brasil80
FIGURA 14 Altina importante benzedeira na memoacuteria comunitaacuteria81
FIGURA 15 Geralda e Antocircnio (Guaraacute) em frente ao altar apoacutes a realizaccedilatildeo da
ldquoGirardquo85
FIGURA 16 Capelinha para Nossa Sordf Aparecida presenteada por D Ana92
FIGURA 17 Geraldo em 1972 quando foi pagar sua promessa em AparecidaSP93
FIGURA 18 Liacuteder da comunidade quilombola eacute ameaccedilado139
FIGURA 19 ldquolsquoLaparsquo utilizada ateacute os dias atuais como moradia quilombola na
comunidade Mata dos CrioulosMGrdquo153
FIGURA 20 O encontro entre os dois irmatildeos ldquoJoatildeordquo em Presidente PrudenteSP175
FIGURA 21 Famiacutelia reunida em Presidente PrudenteSP na casa de D Jovelina176
FIGURA 22 Valdeniacutecio explicando o funcionamento da farinheira178
FIGURA 23 Mesa ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos
geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova
(MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo184
FIGURA 24 Seu Adatildeo D Necila (ambos de Vila Nova) Adir Geralda D Maria
Geralda (Vila Nova) e Seu Joatildeo185
FIGURA 25 Em frente agrave casa de D Necila Na esquerda da foto ela e Adir estatildeo
conversando e ao lado dois parentes tocando violatildeo e sanfona186
FIGURA 26 Regiatildeo no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute identificado
pelo traccedilado vermelho187
FIGURA 27 Geralda e D Necila na frente do forno de barro no quintal da casa de D
Necila190
FIGURA 28 Adir gravando a conversa com Seu Daniel194
FIGURA 29 D Zulmira e D Regina mandam mensagens para a irmatilde D Maria das
Dores197
FIGURA 30 Excerto Genealoacutegico 4199
FIGURA 31 Adir e Geralda com a tia Ana Raimunda202
FIGURA 32 Geralda faz uma reverecircncia em frente agrave Igreja Matriz203
FIGURA 33 Retrato de Padre Joviano na casa de Seu Daniel205
FIGURA 34 Adir Seu Joatildeo e Geralda junto agrave estaacutetua de Padre Joviano206
FIGURA 35 As trecircs irmatildes na missa na Igreja de Santo Antocircnio do Itambeacute213
FIGURA 36 D Maria sentada na cadeira ao lado de sua irmatilde D Zulmira sua
sobrinha com o marido e os filhos214
FIGURA 37 Teresa D Maria das Dores e Anita na rodoviaacuteria de Belo
Horizonte215
FIGURA 38 Reencontro de Ana Raimunda com Jovelina depois de 59 anos217
FIGURA 39 D Ana Raimunda com os parentes em Presidente PrudenteSP na casa
da sobrinha Jovelina218
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO12
i ndash Estrutura dos Capiacutetulos19
ii ndash Notas sobre a pesquisa26
1 IDENTIDADE EM MOVIMENTO 31
11 SANTO ANTOcircNIO DO ITAMBEacuteMG E GUAIacuteRAPR DOIS PONTOS DE UMA
LINHA 31
12 A MEMOacuteRIA DOS CAMINHOS E OS CAMINHOS DA MEMOacuteRIA59
13 O CONTINUUM DA RELIGIOSIDADE74
2 IDENTIDADE QUILOMBOLA E RELATOacuteRIOS ANTROPOLOacuteGICOS96
21 O AUTORRECONHECIMENTO COMO QUILOMBOLAS109
22 O PRIMEIRO RELATOacuteRIO ldquoANTI-ANTROPOLOacuteGICOrdquo116
23 O CONFLITO COM OS PROPRIETAacuteRIOS VIZINHOS131
24 UM NOVO RELATOacuteRIO ANTROPOLOacuteGICO142
3 ldquoEacute COMO SE NOacuteS VOLTASSE A PAacuteGINA DA NOSSA VIDA DO COMECcedilOrdquo159
31 A ldquoVIAGEM DA VOLTArdquo159
32 O CAMINHO ATEacute MINAS GERAIS 168
321 A passagem por Presidente PrudenteSP e os irmatildeos mais velhos171
322 A chegada em SerroMG e a ida agrave Comunidade Quilombola Vila Nova180
323 Enfim em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG191
3231 Encontro com D Zulmira D Regina e D Ana Raimunda194
3232 Padre Joviano o pai de criaccedilatildeo de Maria Olinda203
3233 A famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente206
324 Novos movimentos210
3241 O reencontro das irmatildes211
3242 D Jovelina e o convite para a tia Ana Raimunda216
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS221
12
INTRODUCcedilAtildeO
As narrativas das famiacutelias negras a respeito do periacuteodo posterior agrave aboliccedilatildeo
formal da escravidatildeo no Brasil em 1888 tecircm vindo agrave tona nas uacuteltimas trecircs deacutecadas
por meio da emergecircncia da reivindicaccedilatildeo identitaacuteria das ldquocomunidades quilombolasrdquo
Este florescimento de narrativas foi estimulado pela inserccedilatildeo do direito agrave propriedade
coletiva dos territoacuterios sociais tradicionalmente ocupados conforme previsto na
Constituiccedilatildeo Federal (CF) de 1988 no artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees
Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) que versa ldquoaos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras eacute reconhecida a
propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivosrdquo Com este
ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo1 (OLIVEIRA FILHO 1998) e a consequente
reelaboraccedilatildeo da relaccedilatildeo com o passado como novos sujeitos poliacuteticos tem ocorrido
a ldquorecuperaccedilatildeo e reenquadramento da memoacuteria ateacute entatildeo recalcadardquo (ARRUTI 2006
p 28)
O ldquoprocesso de nominaccedilatildeordquo dos ldquoremanescentes das comunidades dos
quilombosrdquo na CF instituiu assim uma categoria juriacutedica e administrativa para
identificar sujeitos de direitos coletivos como objeto de accedilatildeo do Estado (ARRUTI
2006 p 45) No entanto o artigo constitucional permaneceu sem aplicaccedilatildeo ateacute 1995
(tricentenaacuterio da morte de Zumbi) sendo que soacute foi complementado por uma
regulamentaccedilatildeo que previa a criaccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica com condiccedilotildees miacutenimas
para realizar a titulaccedilatildeo territorial das comunidades quilombolas em 2003 Trata-se
do Decreto Federal 4887 que revogou o Decreto Federal anterior 3912 de 2001 Para
esta regularizaccedilatildeo territorial eacute exigida a elaboraccedilatildeo de um relatoacuterio antropoloacutegico ndash
que figura como a primeira peccedila teacutecnica produzida no acircmbito do processo de titulaccedilatildeo
quilombola ndash responsabilidade do Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio por meio
1 Segundo o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo consiste no
processo por meio do qual os grupos sociais (no caso da discussatildeo especiacutefica do autor o foco satildeo povos indiacutegenas mas este mesmo raciociacutenio pode ser estendido para as comunidades quilombolas) tornam-se coletividades organizadas enquanto objeto poliacutetico-administrativo de modo que formulam uma identidade proacutepria estabelecem mecanismos de decisatildeo e de representaccedilatildeo e reestruturam as suas formas culturais Assim ldquoas afinidades culturais ou linguiacutesticas bem como os viacutenculos afetivos e histoacutericos porventura existentes entre os membros dessa unidade poliacutetico-administrativa (arbitraacuteria e circunstancial) seratildeo retrabalhados pelos proacuteprios sujeitos em um contexto histoacuterico determinado e contrastados com caracteriacutesticas atribuiacutedas aos membros de outras unidades deflagrando um processo de reorganizaccedilatildeo sociocultural de amplas proporccedilotildeesrdquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 56)
13
do Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (INCRA) atraveacutes de suas
superintendecircncias estaduais2
Esta dissertaccedilatildeo busca analisar o processo de reconstituiccedilatildeo das memoacuterias e
da histoacuteria coletiva fruto da emergecircncia identitaacuteria da comunidade negra
autodenominada ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo localizada em
Guaiacutera no estado do Paranaacute (PR) Esta comunidade desde 2008 haacute sete anos
iniciou o processo de titulaccedilatildeo de seu territoacuterio junto agrave Superintendecircncia do INCRA no
Paranaacute Este procedimento administrativo que tramita com o nordm 542000010752008-
46 foi marcado pelo desencadeamento de conflitos e incompreensotildees resultando na
produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos em decorrecircncia da anulaccedilatildeo do primeiro
A trajetoacuteria de reconhecimento desta comunidade apresentou desafios especiacuteficos
tendo em vista que sua histoacuteria destoa do imaginaacuterio redutivo e preacute-concebido
comumente atribuiacutedo agraves comunidades quilombolas3 que parte de uma ideia de
fixaccedilatildeo territorial e de uma relaccedilatildeo ancestral e contiacutenua com um mesmo territoacuterio
tradicionalmente ocupado Este grupo quilombola no Paranaacute constroacutei sua identidade
coletiva como iremos analisar ao longo deste trabalho a partir de processos de
deslocamentos geograacuteficos no qual GuaiacuteraPR eacute o ponto de chegada para algumas
famiacutelias e ponto de passagem para outras
O municiacutepio de Guaiacutera estaacute na regiatildeo de fronteira internacional entre o Brasil
e o Paraguai definida pelos contornos do Rio Paranaacute no extremo oeste do estado
Nesta regiatildeo tais famiacutelias chegaram como gostam de narrar no comeccedilo da deacutecada
de 60 a partir de um movimento iniciado no estado de Minas Gerais (MG) passando
2 Esta atribuiccedilatildeo de titulaccedilatildeo dos territoacuterios quilombolas nas Superintendecircncias Regionais do INCRA
eacute executada pelo ldquoServiccedilo de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolasrdquo que integra a ldquoDivisatildeo de Ordenamento da Estrutura Fundiaacuteriardquo Disponiacutevel em httpwwwincragovbrincra-nos-estados Acesso em 291015 3 Um exemplo da forte presenccedila desta loacutegica reducionista no campo juriacutedico eacute o voto do entatildeo Ministro
do Supremo Tribunal Federal (STF) Cezar Peluso que foi o relator em 18 de abril de 2012 da Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade 3239 proposta pelo Partido Democratas questionando a constitucionalidade do Decreto Federal 4887 de 2003 O voto do Ministro Relator que abriu o julgamento baseou-se na acepccedilatildeo histoacuterica de quilombo para interpretar o sentido e a abrangecircncia da aplicaccedilatildeo do artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias Caso o julgamento venha a confirmar este mesmo entendimento do Ministro Peluso haveraacute um enorme retrocesso na poliacutetica quilombola com a retirada do Decreto 4887 de 2003 do ordenamento juriacutedico e com a necessidade de que tal direito seja regulamentado por lei a ser aprovada pelo Congresso Nacional no qual a bancada ruralista eacute muito expressiva Endereccedilo eletrocircnico do viacutedeo da sessatildeo de julgamento httpwwwyoutubecomwatchv=ZV94XhbFV6s Acesso em 08012015 Para uma anaacutelise do voto do ministro ver artigo que desenvolvi neste sentido (RIBEIRO 2015)
14
pela regiatildeo oeste do estado de Satildeo Paulo (SP) no municiacutepio de Caiabu4 ndash distante
quarenta quilocircmetros de Presidente Prudente5 que eacute o municiacutepio polo da regiatildeo ndash
onde chegaram em 1956 As narrativas quilombolas destacam que Manoel trabalhou
com a famiacutelia em CaiabuSP na colheita de algodatildeo e amendoim ateacute que ele e mais
alguns parentes resolvem se mudar com o objetivo de comprar terras no extremo
oeste do Paranaacute na regiatildeo dos municiacutepios de Guaiacutera e Terra Roxa
Em Minas6 viviam no municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute considerado o
local de origem do grupo localizado proacuteximo ao iniacutecio da regiatildeo conhecida como ldquoVale
do Jequitinhonhardquo Satildeo as memoacuterias dos mais velhos sobre esta regiatildeo de origem que
constituem a base da histoacuteria deste grupo conforme eacute mobilizada pelas famiacutelias que
vivem atualmente em Guaiacutera e cujos membros importante destacar jaacute nasceram no
estado de Satildeo Paulo ou no Paranaacute ou seja depois do iniacutecio do processo de
descolamento das famiacutelias
Nas narrativas sobre o passado mineiro da comunidade haacute referecircncias a
ancestrais que foram escravizados no garimpo e em fazendas da regiatildeo cujo
povoamento ainda no seacuteculo XVIII surgiu com a exploraccedilatildeo de ouro vinculada agrave
expansatildeo bandeirante paulista com forte presenccedila da escravidatildeo africana (PORTO
2007 p 66) No entanto as memoacuterias da escravidatildeo deste grupo natildeo estatildeo
circunscritas em suas narrativas ao tempo da escravidatildeo jaacute que haacute uma extensatildeo
temporal que expressa uma percepccedilatildeo de continuidade desta experiecircncia por meio
da situaccedilatildeo de viver como escravo (MELLO 2012 p 214)
4 O municiacutepio de CaiabuSP antes distrito de Regente Feijoacute foi criado pela Lei Estadual nordm 2456 de
1953 Nesta localidade desde 1935 com o iniacutecio do povoamento havia plantaccedilotildees de algodatildeo e outras culturas na qual a famiacutelia de Manoel se inseriu a partir de 1956 De acordo com Censo do IBGE realizado em 2010 o municiacutepio tem uma populaccedilatildeo de 4072 habitantes Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=350890ampsearch=||infogrE1ficos-informaE7F5es-completas Acesso em 041115 5 De acordo com Censo do IBGE realizado em 2010 o municiacutepio de Presidente PrudenteSP tem uma
populaccedilatildeo de 207610 habitantes Seu povoamento foi iniciado ainda no seacuteculo XIX a partir dos deslocamentos de mineiros para a regiatildeo que com o esgotamento das minas de ouro estavam ldquoem busca de terras boas para a lavourardquo Foi elevado agrave categoria de municiacutepio pela Lei nordm 1798 de 1921 desmembrado do municiacutepio de Campos Novos e Conceiccedilatildeo de Monte Alegre Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrpainelhistoricophplang=ampcodmun=354140ampsearch=sao-paulo|presidente-prudente|infograficos-historico Acesso em 041115 Presidente PrudenteSP exerce assim influecircncia sobre os municiacutepios menores do entorno Iremos destacar ao longo do trabalho a passagem das famiacutelias provenientes de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG pelo estado de Satildeo Paulo por meio da referecircncia agrave ldquoregiatildeo de Presidente Prudenterdquo pois natildeo tive acesso a muitas referecircncias especiacuteficas em relaccedilatildeo agrave forma e ao histoacuterico de ocupaccedilatildeo das famiacutelias nesta regiatildeo embora se indique que Manoel viveu em CaiabuSP 6 Uso a grafia em itaacutelico para a sinalizaccedilatildeo de expressotildees nativas e aspas duplas para as falas dos meus interlocutores e citaccedilotildees bibliograacuteficas
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Nestes deslocamentos de Minas Gerais ao Paranaacute o movimento destas
famiacutelias negras foi traccedilado em direccedilatildeo primeiro agrave regiatildeo de Presidente PrudenteSP
onde se estabeleceram por alguns anos trabalhando na aacuterea rural em terras
arrendadas No comeccedilo da deacutecada de 60 vislumbraram entatildeo a possibilidade de
adquirirem aacutereas proacuteprias nos loteamentos rurais na regiatildeo de GuaiacuteraPR em contato
com pessoas que trabalhavam como ldquocorretoresrdquo e buscavam pessoas interessadas
no estado de Satildeo Paulo Novamente resolvem se deslocar agora em direccedilatildeo ao
extremo oeste paranaense onde adquirirem aacuterea no loteamento rural de iniciativa da
Sociedade Agropecuaacuteria Industrial e Comercial Maracaju LTDA que tinha sede em
Caxias do Sul Este loteamento eacute atualmente denominado como bairro rural ldquoMaracaju
dos Gauacutechosrdquo distante vinte quilocircmetros do centro comercial do municiacutepio de
GuaiacuteraPR
Estes deslocamentos constitutivos da experiecircncia do grupo satildeo articulados
por meio da atribuiccedilatildeo de uma dimensatildeo moral em relaccedilatildeo ao desrespeito coletivo ao
qual percebem terem sido submetidos e que constitui um aspecto central da
elaboraccedilatildeo de sua identidade coletiva A identificaccedilatildeo deste desrespeito7 ndash percebido
na situaccedilatildeo de precariedade de condiccedilotildees de vida e no preconceito racial sofrido por
estas famiacutelias negras enquanto fator determinante para tais movimentos com o alto
custo emocional gerado pela separaccedilatildeo entre parentes ndash veio agrave tona com o processo
de reconhecimento do grupo como quilombolas Como procuraremos apontar eacute a
trajetoacuteria coletiva de movimento e a relaccedilatildeo com esta origem mineira que constitui a
fonte de pertencimento identitaacuterio que estrutura o processo de etnogecircnese no caso do
quilombo de GuaiacuteraPR8
No entanto esta trajetoacuteria natildeo foi tida como legiacutetima em muitas situaccedilotildees de
contato do grupo com agentes externos inclusive no acircmbito do procedimento de
regularizaccedilatildeo territorial que tramita no INCRA Em contraste com este modo de
elaboraccedilatildeo da identidade que eacute reivindicada a partir da trajetoacuteria de movimento a
interpretaccedilatildeo corrente com base na previsatildeo normativa tem tomado a territorialidade
7 Ao que Arruti denomina ldquoprocesso de identificaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 46) 8 A relaccedilatildeo entre trajetoacuteria e origem segundo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho pode ser compreendida
como dinacircmica constitutiva da etnicidade pois esta supotildee necessariamente uma trajetoacuteria histoacuterica ldquodeterminada por muacuteltiplos fatoresrdquo e uma origem enquanto experiecircncia primaacuteria ldquotraduzida em saberes e narrativas aos quais vem a se acoplarrdquo Deste modo ldquoo que seria proacuteprio das identidades eacutetnicas eacute que nelas a atualizaccedilatildeo histoacuterica natildeo anula o sentimento de referecircncia agrave origem mas ateacute mesmo o reforccedila Eacute da resoluccedilatildeo simboacutelica e coletiva dessa contradiccedilatildeo que decorre a forccedila poliacutetica e emocional da etnicidaderdquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64)
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como epicentro da identidade bem como da mobilizaccedilatildeo por direitos no processo de
reconhecimento puacuteblico dos grupos quilombolas no Brasil Tendo como referecircncia a
previsatildeo constitucional do artigo 68 do ADCT referida acima tem sido pressuposta
uma equivalecircncia entre a ancestralidadecontinuidade da ocupaccedilatildeo do territoacuterio
tradicional e a legitimidade da emergecircncia eacutetnica
A relaccedilatildeo entre ldquoterritoacuteriordquo e ldquoidentidaderdquo tambeacutem tem sido enfocada no debate
atual mais amplo sobre as comunidades tradicionais o que se daacute por meio da
construccedilatildeo de ldquouma articulaccedilatildeo especiacutefica entre certas dimensotildees lsquoespaciaisrsquo e outras
lsquoculturaisrsquordquo Poreacutem eacute necessaacuterio pensar as praacuteticas espaciais desses grupos sociais
sem pressupor ndash como parece mais palataacutevel e administraacutevel pela loacutegica estatal ndash que
eles estejam ldquoa priori (ou a posteriori) destinados ou lsquocondenadosrsquo a se enraizar num
pedaccedilo de solo qualquerrdquo (GUEDES 2013b p 53-56) Portanto
Faz-se necessaacuterio entatildeo contextualizar historicamente as ideias de ldquoterritoacuteriordquo e ldquoidentidaderdquo bem como destacar a contingecircncia da associaccedilatildeo existente entre elas em razatildeo da crescente popularidade de certas narrativas que certamente imbuiacutedas de propoacutesitos criacuteticos e poliacuteticos simpaacuteticos agrave causa das comunidades tradicionais inadvertidamente naturalizam o ldquoenraizamentordquo de tais grupos (GUEDES 2013b p 54)
A naturalizaccedilatildeo do enraizamento dos grupos quilombolas consiste em uma
ldquoidealizaccedilatildeo da situaccedilatildeo ldquopreacute-desterritorializaccedilatildeordquo esta uacuteltima implicitamente
sugerindo uma estabilidade ldquoterritorializadardquo destes grupos na terra que no contexto
brasileiro eacute antes a exceccedilatildeo do que a regrardquo (GUEDES 2013b p 55) Tal
interpretaccedilatildeo desconsidera no caso da formaccedilatildeo de grupos quilombolas o histoacuterico
de intensa movimentaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra nas deacutecadas poacutes-aboliccedilatildeo em busca
de terras para sua reproduccedilatildeo como campesinato autocircnomo Deste modo o
deslocamento de famiacutelias negras para aacutereas de colonizaccedilatildeo recente ndash como
GuaiacuteraPR ndash aparece como estrateacutegia de garantia de liberdade sempre ameaccediladas
pelo padratildeo de relaccedilotildees entre brancos e negros em regiotildees com um histoacuterico antigo
e consolidado de escravidatildeo (LIMA 2000) ndash caso de Minas Gerais Sem essa
consideraccedilatildeo mais ampla e complexa restringe-se a possibilidade de abarcar a
pluralidade de formas e contextos nos quais ocorreram a constituiccedilatildeo de territoacuterios
negros e as articulaccedilotildees identitaacuterias quilombolas no Brasil
A ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo por exemplo leva o
nome do patriarca da famiacutelia que liderou o processo de saiacuteda de Minas Gerais
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chegada e consolidaccedilatildeo do grupo no Paranaacute Esta histoacuteria de deslocamentos implicou
em dificuldades natildeo soacute para a manutenccedilatildeo do contato entre parentes que se
dispersaram como tambeacutem para a reproduccedilatildeo intergeracional da memoacuteria coletiva
Um dos principais desafios dos membros da comunidade passava pela necessidade
de reelaboraccedilatildeo da memoacuteria coletiva que precisava ser reinterpretada agrave luz da
autoidentificaccedilatildeo como quilombolas O aumento do ciacuterculo de interaccedilatildeo do grupo com
agentes externos e a consequente influecircncia que este processo passou a ter em sua
autoimagem tornava necessaacuteria a construccedilatildeo de um novo lugar de legitimidade para
a sua histoacuteria na medida em que esta se transformava em ldquoprinciacutepio de justificaccedilatildeo
das demandas do presenterdquo (MELLO 2012 p 20) A construccedilatildeo de uma imagem de
si como quilombolas fez surgir entatildeo a necessidade de organizar ldquouma memoacuteria
linear e coerente sobre suas lsquoorigensrsquordquo (ARRUTI 2001 p 243) o que antes natildeo
aparecia como uma questatildeo a ser elaborada de forma sistemaacutetica por essas famiacutelias
No entanto a resposta a esta demanda esbarrou na ausecircncia dos parentes mais
velhos que viveram em Minas pois jaacute haviam falecido ou saiacutedo de GuaiacuteraPR
Esta necessidade de acessar a memoacuteria atraveacutes dos mais velhos e assim
subsidiar as suas narrativas em acircmbito oficial reconhecida pelos(as) proacuteprios(as)
quilombolas intensificou-se diante do questionamento levantado pelo primeiro
relatoacuterio antropoloacutegico9 publicado em 2010 e produzido no acircmbito do procedimento
do INCRA A trajetoacuteria de movimento do grupo foi em um primeiro momento lida
como obstaacuteculo para o reconhecimento puacuteblico de sua autoidentificaccedilatildeo Com o
transcorrer do processo de reconhecimento cada vez mais a busca pela nossa
histoacuteria e o desejo de retomar o contato com os parentes que permaneceram em MG
passam a ser um objetivo principalmente da lideranccedila do grupo Adir e tambeacutem uma
demanda de legitimaccedilatildeo identitaacuteria no contexto mais amplo Isso porque as memoacuterias
do grupo sobre a regiatildeo de origem e os processos de deslocamento que constituiacuteram
sua trajetoacuteria no seacuteculo XX mesmo que acessadas de modo indireto pelos que vivem
9 Como mencionado acima foram realizados dois relatoacuterios antropoloacutegicos no acircmbito do Procedimento
Administrativo (PA) 542000010752008-46 de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos que tramita na Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute instaurado em 24 de abril de 2008 O primeiro relatoacuterio realizado levantou questionamentos ao negar a legitimidade da autoidentificaccedilatildeo do grupo como quilombola e de sua trajetoacuteria histoacuterica especiacutefica tendo em vista a natildeo ancestralidade de ocupaccedilatildeo do territoacuterio e a inexistecircncia de registros de escravidatildeo negra na regiatildeo de GuaiacuteraPR Este primeiro relatoacuterio foi anulado pelo INCRA bem como foi rejeitado pelos quilombolas Estas questotildees referentes agrave produccedilatildeo dos relatoacuterios seratildeo aprofundadas no capiacutetulo 2
18
hoje na comunidade em Guaiacutera constituiacuteam o eixo da reivindicaccedilatildeo de uma
identidade quilombola
Tendo em vista a natildeo aprovaccedilatildeo do primeiro relatoacuterio eacute soacute a partir do
segundo estudo publicado em 2012 que a identidade quilombola do grupo seraacute
reconhecida e sustentada teoacuterica e etnograficamente Com este estudo a anaacutelise natildeo
seraacute mais baseada em interpretaccedilotildees substancializadas por meio de estereoacutetipos e
substratos culturais Neste debate travado dentro do procedimento administrativo do
INCRA a especificidade da experiecircncia histoacuterica da trajetoacuteria de movimento destas
famiacutelias negras foi uma questatildeo central para ambos os relatoacuterios antropoloacutegicos No
entanto as anaacutelises foram opostas o primeiro entendeu que a identidade do grupo
quilombola natildeo era legiacutetima e estava sendo forjada enquanto o segundo afirmou que
o processo de migraccedilatildeo consistia em mecanismo de resistecircncia agrave experiecircncia de
opressatildeo histoacuterica sofrida
A reivindicaccedilatildeo territorial do grupo no acircmbito deste procedimento
administrativo eacute a ampliaccedilatildeo do que restou da aacuterea que adquiriram em GuaiacuteraPR
por meio de anos de trabalho 85 alqueires onde vivem atualmente em meacutedia vinte
e cinco pessoas (sete famiacutelias)10 A conquista desta aacuterea possibilitou a manutenccedilatildeo
da coesatildeo e da identidade dos grupos familiares que haviam se deslocado de Minas
Gerais Importante ressaltar neste sentido que o acesso agrave terra eacute um instrumento
fundamental para a reproduccedilatildeo fiacutesica econocircmica social e cultural do grupo de modo
que seja viaacutevel a manutenccedilatildeo de uma forma de vida especiacutefica Apesar de poucos
moradores efetivos atualmente na aacuterea a reinvindicaccedilatildeo pela ampliaccedilatildeo territorial eacute
estimada a partir da amplitude de moradores potenciais pois contempla
principalmente a expectativa de retorno de familiares que moraram em GuaiacuteraPR
mas que em algum momento tiveram que se deslocar novamente
Tomando o tema do movimento como eixo desta dissertaccedilatildeo a histoacuteria do
grupo quilombola Manoel Ciriaco dos Santos seraacute pensada atraveacutes de uma linha que
desenha o caminhar constitutivo da identidade do grupo (INGOLD 2007) Esta linha
os conecta segundo suas narrativas apontam desde Minas Gerais no tempo da
escravidatildeo ateacute Guaiacutera no presente e segue se ramificando no movimento das
famiacutelias que continuaram se deslocando A opccedilatildeo deste recorte temaacutetico eacute fruto de
10 Este nuacutemero variou durante o periacuteodo de trabalho de campo apontando para a continuidade das dinacircmicas de movimento
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uma sistematizaccedilatildeo que se demonstrou coerente com base na etnografia realizada e
que retrata uma escolha de anaacutelise como autora mas que principalmente emerge
no processo dialoacutegico com os sujeitos de pesquisa
i ndash Estrutura dos capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo ldquoIdentidade em movimentordquo busco analisar como os
processos de deslocamento vivenciados por essas famiacutelias no sentido MG↦SP↦PR
satildeo por elas articulados em termos de dinacircmicas constitutivas da resistecircncia
quilombola uma vez que as experiecircncias de fixaccedilatildeo remetem sobretudo agrave exclusatildeo
social e a relaccedilotildees de preconceito racial Busco refletir sobre como os membros do
grupo de Guaiacutera sentem-se fortemente vinculados e unidos por meio das memoacuterias
construiacutedas sobre a origem mineira e sobre a trajetoacuteria de deslocamentos O sentido
de unidade criado por estas famiacutelias eacute tambeacutem consequecircncia de sua inserccedilatildeo em
Guaiacutera em um contexto considerado por eles como adverso tendo em vista que o
municiacutepio foi colonizado por descendentes de europeus a partir de um vieacutes
modernizador sendo atualmente marcado pelos interesses do agronegoacutecio
Situaccedilotildees de discriminaccedilatildeo racial satildeo constantemente relatadas pelos quilombolas na
interaccedilatildeo com os italianos e alematildees proprietaacuterios vizinhos no bairro rural onde se
localiza a comunidade
O acionamento da identidade quilombola os faz reforccedilar a importacircncia das
narrativas de memoacuteria sobre a regiatildeo de origem do grupo em Minas Gerais o
municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute bem como sobre a chegada das famiacutelias em
GuaiacuteraPR Satildeo memoacuterias elaboradas a partir de um sentimento de continuidade
expresso na ecircnfase atribuiacuteda agraves dificuldades de sobrevivecircncia e agrave busca pela
superaccedilatildeo do sofrimento Esta experiecircncia de estigmatizaccedilatildeo social e racial passa a
ser positivada internamente atraveacutes do autorreconhecimento como quilombolas o
qual cria uma ruptura com a experiecircncia de silenciamento anterior A inserccedilatildeo no
movimento quilombola fez com que o grupo se colocasse em uma nova rede de
relaccedilotildees com agentes externos Adir na posiccedilatildeo de presidente da Associaccedilatildeo
Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) passou a realizar
viagens para encontros e debates sobre a temaacutetica quilombola o que o construiu
como lideranccedila e abriu espaccedilo para o pronunciamento puacuteblico sobre a proacutepria histoacuteria
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e identidade A possibilidade destas viagens como a que foi realizada por Adir para
Brasiacutelia no Distrito Federal em novembro de 2014 na qual o acompanhei coloca-os
novamente em movimento agora de circulaccedilatildeo em acircmbito poliacutetico
A religiosidade do grupo tambeacutem seraacute abordada no primeiro capiacutetulo na
medida em que eacute permeada por dinacircmicas de movimento (a) deslocamentos
concretos como as viagens religiosas de pagamentos de promessas a saiacuteda de
Manoel Ciriaco de Minas Gerais depois de ter sido viacutetima de agressatildeo maacutegica e a
saiacuteda do filho de Manoel Ciriaco Antocircnio do siacutetio em GuaiacuteraPR para ir morar na
cidade por conta do preconceito religioso que sofriam no bairro rural ldquoMaracaju dos
Gauacutechosrdquo e (b) movimentos natildeo concretos como praacuteticas de devoccedilatildeo cotidianas que
os colocam em relaccedilatildeo com santos Orixaacutes entidades espiacuteritos almas abrindo
assim a possibilidade de se deslocarem entre mundos conectando tempos espaccedilos
linguagens possibilitando curas e orientaccedilotildees etc Aleacutem disso a religiosidade aponta
para dinacircmicas de continuidade marcadas pelas imbricaccedilotildees entre um catolicismo
negro e experiecircncias proacuteprias do universo da umbanda Nas narrativas sobre este
tema tambeacutem eacute possiacutevel perceber a convergecircncia entre as dimensotildees religiosa racial
e social considerando que as praacuteticas das religiotildees afro-brasileiras satildeo natildeo soacute
desvalorizadas mas socialmente condenadas Esta dimensatildeo cultural religiosa ndash que
os conecta com sua origem mineira ndash tende a natildeo ser enfatizada publicamente pelos
membros da comunidade como um sinal diacriacutetico opccedilatildeo que parece permeada pelo
receio de que isso possa ser usado para reforccedilar um lugar de marginalidade e
estigmatizaccedilatildeo para o grupo
No segundo capiacutetulo ldquoIdentidade quilombola e relatoacuterios antropoloacutegicosrdquo
analiso o novo voacutertice de movimento presente na trajetoacuteria coletiva do grupo que se
consolidou a partir de sua inserccedilatildeo no acircmbito poliacutetico como sujeito de direitos coletivo
o autorreconhecimento como quilombolas A inserccedilatildeo no campo de reivindicaccedilatildeo
como quilombolas colocou-os novamente nos termos de Adir diante de uma longa
caminhada Muitos percalccedilos foram enfrentados no processo de regularizaccedilatildeo
quilombola pelo INCRA ainda em tracircmite tendo em vista os questionamentos
levantados pelo primeiro relatoacuterio antropoloacutegico produzido em 2010 Eacute muito faacutecil
iniciar uma conversa de horas com Adir e Joaquim presidente e vice da ACONEMA
a respeito de suas criacuteticas e decepccedilotildees em relaccedilatildeo aos conflitos gerados a partir do
iniacutecio das atividades do INCRA junto agrave comunidade Apesar dos descontentamentos
21
e frustraccedilotildees continuam a alimentar a esperanccedila de uma resoluccedilatildeo futura que lhes
garanta a regularizaccedilatildeo territorial
A pesquisa para elaboraccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico ainda em
2009 havia sido liderada pelo professor da Universidade Estadual do Oeste do
Paranaacute (UNIOSTE) Antocircnio Pimentel Pontes Filho o qual questionou a legitimidade
das narrativas quilombolas tomando-as como oportunistas11 O fato de o grupo natildeo
ter uma relaccedilatildeo ancestral com o territoacuterio atual natildeo apresentar informaccedilotildees
consideradas consistentes sobre a existecircncia de ancestrais escravizados e natildeo se
adequar ao modelo de quilombo tiacutepico foi considerado como criteacuterio para negar a
legitimidade da identidade quilombola de modo que foram entendidos ldquoapenasrdquo como
um grupo de trabalhadores rurais negros O primeiro relatoacuterio ndash apoacutes pedidos de
alteraccedilotildees solicitados pelo INCRA mas desconsiderados pelo antropoacutelogo
responsaacutevel ndash foi rejeitado tanto pelos quilombolas quanto pelo INCRA O
desencadeamento de conflitos com os gauacutechos proprietaacuterios vizinhos agrave comunidade
quilombola a situaccedilatildeo de isolamento e a perda de relaccedilotildees de trabalho que
mantinham nas propriedades do entorno foram algumas das consequecircncias geradas
pelo iniacutecio do trabalho do INCRA com o grupo a partir da atuaccedilatildeo da primeira equipe
de pesquisadores
Um segundo relatoacuterio foi entatildeo realizado por uma nova equipe em 2012 a
partir da contrataccedilatildeo pelo INCRA via sistema de licitaccedilatildeo puacuteblica (pregatildeo eletrocircnico)
da empresa Terra Ambiental Com a possibilidade de reelaboraccedilatildeo da pesquisa
antropoloacutegica o historiador da segunda equipe de pesquisadores Cassius Cruz
deslocou-se ateacute Minas Gerais a fim de pesquisar sobre as comunidades quilombolas
da regiatildeo de origem do grupo A partir da memoacuteria coletiva indicada pelo grupo em
Guaiacutera12 muitos pontos em comum com as narrativas dos quilombolas da regiatildeo
mineira foram identificados as referecircncias a personagens histoacutericos comuns a
memoacuteria da estrateacutegia de habitaccedilatildeo em lapas de pedra (tipo de moradia construiacuteda
dentro de cavernascasa de pedra) a mobilidade espacial como processo de
formaccedilatildeo de algumas das comunidades quilombolas mineiras a tendecircncia
11 Este mesmo antropoacutelogo em 2014 foi contratado pelos produtores rurais da regiatildeo para fazer um contralaudo em contestaccedilatildeo ao relatoacuterio antropoloacutegico da FUNAI para a demarcaccedilatildeo de uma terra indiacutegena Avaacute-Guarani em GuaiacuteraPR 12 Conforme me esclareceu Cassius Cruz nenhum quilombola pocircde acompanha-lo nesta oportunidade para a realizaccedilatildeo da pesquisa em Minas Gerais em decorrecircncia de falta de recursos previstos no contrato com o INCRA
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endogacircmica dos casamentos bem como possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco entre a
Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos e a Comunidade Quilombola Vila
Nova localizada no municiacutepio de SerroMG O segundo relatoacuterio fundamentou-se
entatildeo na capacidade de manutenccedilatildeo da organizaccedilatildeo social do grupo em continuidade
com sua regiatildeo de origem que entre outros fatores geram o sentimento de
pertencimento comum e identificaccedilatildeo como quilombolas Com a aprovaccedilatildeo do 2ordm
relatoacuterio o reconhecimento da legitimidade da identidade do grupo finalmente ganhou
mais forccedila
Por fim esta possibilidade de buscar mais conhecimento sobre a histoacuteria dos
antepassados articulada por meio da pesquisa produzida pelo segundo relatoacuterio
antropoloacutegico impulsionou aos quilombolas de Guaiacutera e a mim junto com Cassius
Cruz ndash que foi por noacutes convidado para essa empreitada ndash a ir ateacute Minas Gerais com
o objetivo de seguir o caminho de volta da trajetoacuteria de deslocamentos dos
antepassados do grupo A pesquisa por noacutes realizada em Minas Gerais eacute o tema
central do terceiro capiacutetulo denominado ldquoEacute como se noacutes voltasse a paacutegina da nossa
vida do comeccedilordquo Foram duas viagens ateacute a regiatildeo mineira realizadas em marccedilo e
em junho de 2015 A pesquisa acabou entatildeo tornando-se uma etnografia nocircmade e
entrelaccedilando-se com a histoacuteria do grupo A linha de movimento deste grupo ateacute
Guaiacutera somada a sua inserccedilatildeo no movimento quilombola gerou assim um impulso
de reaproximaccedilatildeo no qual tambeacutem nos inserimos que pode ser interpretado na chave
tripla de (a) saiacuteda (b) afirmaccedilatildeo identitaacuteria e (c) retorno Esta linha no entanto natildeo
deve ser entendida como se fechando em um movimento circular mas se constituindo
como uma espiral jaacute que natildeo eacute possiacutevel retornar mais ao mesmo lugar de onde se
saiu tendo em vista que este lugar para o qual se quer voltar jaacute se transformou bem
como os sujeitos envolvidos
Assim o esforccedilo de pesquisa natildeo esteve focado na anaacutelise do grupo
quilombola como totalidade autocontida pois buscou compreender os fluxos e
relaccedilotildees que perpassam esta trajetoacuteria de movimento conectando pessoas e
experiecircncias espalhadas por diferentes locais (ARRUTI 2006 p 35) O trabalho de
campo ritual central na antropologia e parte constitutiva do arqueacutetipo do etnoacutegrafo
ganhou dessa forma contornos especiais Permitiu uma abordagem realizada com
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os sujeitos de pesquisa a partir de sua historicidade13 de modo que a continuidade
dos movimentos empreendidos pelos quilombolas parece demonstrar a presenccedila de
dinacircmicas de distanciamentos e aproximaccedilotildees com a potencialidade de atualizaccedilatildeo
dos viacutenculos e relaccedilotildees mesmo apoacutes muito tempo de interrupccedilatildeo
Para que a viagem ateacute Minas Gerais pudesse atender os propoacutesitos dos
quilombolas de GuaiacuteraPR inclusive de fortalecimento identitaacuterio os irmatildeos Adir (46)
e Geralda (53) filhos de Manoel Ciriaco e tambeacutem lideranccedilas locais sugeriram que
antes de irmos ateacute Santo Antocircnio do ItambeacuteMG deveriacuteamos passar por Presidente
PrudenteSP Este municiacutepio faz parte da regiatildeo para onde desde a deacutecada de 1980
retornaram os seus irmatildeos mais velhos que jaacute haviam morado com seus pais no
municiacutepio proacuteximo em CaiabuSP Com a inclusatildeo de Presidente PrudenteSP em
nosso roteiro de viagem ateacute Minas Gerais iriam assim retraccedilar o caminho de seus
ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100) atraveacutes de seu trajeto de deslocamento
realizado nas deacutecadas de 19501960 agora no sentido inverso de GuaiacuteraPR ateacute
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Em Presidente PrudenteSP moram atualmente os quatro irmatildeos mais
velhos Olegaacuterio (78) Jovelina (73) Joatildeo Loriano (71) e Eurides (65) que nasceram
em Minas Gerais e acompanharam seu pai na trajetoacuteria de deslocamento ateacute
GuaiacuteraPR e depois nas deacutecadas de 19801990 estabeleceram-se no estado de Satildeo
Paulo regiatildeo na qual jaacute haviam morado entre a deacutecada de 19501960 antes
chegarem no estado do Paranaacute Dentre os irmatildeos Joatildeo Loriano seria a pessoa mais
indicada para nos acompanhar ateacute Minas Gerais conforme me explicaram Adir e
Geralda
Joatildeo Loriano nascido em 1944 foi o uacutenico filho que Manoel Ciriaco havia
deixado em Minas Gerais quando de laacute saiu em 1956 histoacuteria que conheceremos
mais a fundo no terceiro capiacutetulo O menino ficou aos cuidados de sua avoacute Izidora
(matildee de Manoel) que foi quem o criou desde quando tinha um mecircs e sete dias de
vida pois a matildee da crianccedila Maria Olinda primeira esposa de Manoel havia falecido
na sequecircncia de seu nascimento Manoel segundo relatam natildeo teria tido coragem
de levar o menino junto com ele para natildeo o separar de sua avoacute Izidora Em 1981
quando Joatildeo Loriano jaacute tinha 37 anos seu irmatildeo Antocircnio foi ateacute Santo Antocircnio do
13 ldquoAssim a etnografia histoacuterica converge com a chamada microhistoacuteria justamente ao adotar como
procedimento acompanhar o fio de um destino particular e com ele a multiplicidade de espaccedilos de tempos e de relaccedilotildees em que se inscreverdquo (ARRUTI 2006 p 36)
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ItambeacuteMG e conseguiu lhe achar convidando-o para ir com ele embora para o
Paranaacute Antocircnio entatildeo levou Joatildeo e sua famiacutelia esposa e filhos para GuaiacuteraPR
regiatildeo em que viveram ateacute 1992 quando decidem residir em Presidente PrudenteSP
Sendo Joatildeo o filho de Manoel que mais tempo viveu em MG ele seria afinal de
contas a pessoa que poderia ter mais facilidade para caccedilar os parentes que
permaneceram na regiatildeo mineira e com os quais perderam contato nas uacuteltimas
deacutecadas Seu Joatildeo quando por noacutes interpelado aceitou o convite para nos
acompanhar na viagem com muito entusiasmo depois de trinta e quatro anos que de
laacute havia saiacutedo sem nunca mais ter conseguido retornar
A intensidade das emoccedilotildees despertadas pelos encontros entre parentes que
jaacute natildeo se sabiam mais vivos ou que ainda natildeo se conheciam contagiou a todos
durante nossa estadia em Santo Antocircnio do Itambeacute e no municiacutepio vizinho SerroMG
Isso permitiu conversas e entrevistas que soacute poderiam ter sido geradas neste
entrelaccedilamento de lugares tempos e pessoas instaurando um regime de
temporalidade especial no qual o presente o passado e o futuro destas famiacutelias
ganhavam novos sentidos ndash concomitantemente As circunstacircncias nas quais estes
depoimentos foram produzidos e colhidos permitiam que a cacircmera de viacutedeo ligada a
maior parte do tempo ou mesmo o gravador de voz natildeo causassem estranhamento
agraves pessoas ndash quando tudo o que se passava estava contido em um momento uacutenico
que deveria ser registrado ndash nestes encontros que marcaram a histoacuteria de vida dessas
pessoas bem como a minha e a de Cassius
De alguma forma o futuro da comunidade quilombola em GuaiacuteraPR era o
retorno a Santo Antocircnio do ItambeacuteMG a esse passado depois de deacutecadas de
interrupccedilatildeo do contato efetivo Este anseio pelo retorno agrave origem que remete a uma
certa busca pela ldquocomprovaccedilatildeordquo do viacutenculo da comunidade com sua ancestralidade
mineira partiu da proacutepria comunidade no bojo de um processo controverso de
regularizaccedilatildeo territorial mas natildeo de uma demanda ou de uma opccedilatildeo teoacuterica da minha
pesquisa Deve-se levar em conta que a autoidentificaccedilatildeo de grupos como
quilombolas natildeo demanda a demonstraccedilatildeo de viacutenculos genealoacutegicos com ancestrais
escravizados como veremos com calma no segundo capiacutetulo Este modo de
25
compreensatildeo construiria um sentido de origem histoacuterica muito limitado que natildeo estaacute
refletido na regulamentaccedilatildeo do Decreto Federal 48872003 em vigor14
A primeira viagem de quinze dias em marccedilo de 2015 oportunizou que os
quilombolas se tornassem pesquisadores e agentes da construccedilatildeo da sua proacutepria
narrativa histoacuterica Enfim o passado pocircde ocupar o importante papel que jaacute lhe era
conferido como quando os quilombolas de Guaiacutera reforccedilam a continuidade e natildeo a
ruptura em suas construccedilotildees discursivas mesmo que tal continuidade fosse
constituiacuteda por meio de dinacircmicas de movimento e mudanccedila Haacute linearidade portanto
mas natildeo aquela da linha reta
Com as oportunidades promovidas pelas viagens novos caminhos se
abriram A irmatilde de Manoel Ciriaco Ana Raimunda que encontramos morando no
municiacutepio de SerroMG aos cuidados de vizinhos decidiu que queria morar perto da
famiacutelia a convite de sua sobrinha filha de Manoel Ciriaco Jovelina que mora
atualmente em Presidente PrudenteSP Esta decisatildeo de Dona Ana Raimunda
mesmo aos oitenta e sete anos eacute significativa para apontar que o movimento das
famiacutelias natildeo implicou em rompimentos definitivos dos viacutenculos como eacute comum na
regiatildeo mineira do ldquoAlto Vale do Jequitinhonhardquo (GALIZONI 2002)15 mesmo cinquenta
e nove anos depois que Manoel saiu de Minas com parte de sua famiacutelia
Eu e Cassius fomos entatildeo em junho trecircs meses depois da primeira viagem
a Minas Gerais em uma raacutepida aventura de quatro dias Nosso objetivo foi
acompanhar D Jovelina (73) para que buscasse sua tia Ana Raimunda no SerroMG
e D Maria das Dores (70) ndash esposa de Seu Joatildeo Loriano que saiu de Santo Antocircnio
do ItambeacuteMG para acompanha-lo em 1982 ndash para rever suas duas irmatildes ndash D
Zulmira (73) e D Regina (77) ndash que tambeacutem encontramos e fizemos contato na
primeira viagem em marccedilo de 2015 A elas eu e Cassius haviacuteamos prometido que
ajudariacuteamos a organizar estes reencontros Por fim realizei mais uma uacuteltima viagem
de campo para Presidente PrudenteSP em agosto de 2015 para entrevistar D Ana
Raimunda depois de dois meses que jaacute estava morando com sua sobrinha D
Jovelina
14 Segundo seu artigo 2o ldquoconsideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos para os
fins deste Decreto os grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo 15 Regiatildeo muito proacutexima a Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
26
ii ndash Notas sobre a pesquisa
Importante neste momento finalizada a siacutentese dos temas principais dos
capiacutetulos desta dissertaccedilatildeo refletir sobre como foi a minha entrada em campo as
condiccedilotildees e as escolhas da pesquisa O meu contato com o grupo se iniciou pelo
nuacutecleo de famiacutelias em Guaiacutera trecircs anos antes da presente pesquisa realizada entre
2014 e 2015 Nos anos de 2011 e 2012 atuei como assessora juriacutedica em um setor
especializado em direitos humanos do Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute
(MPPR) em decorrecircncia da minha formaccedilatildeo como bacharel em direito Tal setor tinha
como parte de suas atividades a articulaccedilatildeo com as comunidades quilombolas do
estado visando mediar as suas demandas por acesso a direitos junto aos oacutergatildeos
puacuteblicos Tornando-me uma referecircncia enquanto pessoa que trabalha dentro do
Estado junto ao grupo busquei com a pesquisa de mestrado um reposicionamento
em campo saindo da figura de agente estatal que traz a resposta para construir
relaccedilotildees de horizontalidade no conviacutevio cotidiano
Para mim o reposicionamento tambeacutem tinha uma dimensatildeo pessoal jaacute que
eu ainda vivo essa experiecircncia de transiccedilatildeo profissional entre o direito e a
antropologia Um novo caminho que em muito tem enriquecido e desafiado a minha
formaccedilatildeo inicial a qual tambeacutem influenciou na direccedilatildeo dos meus interesses de
pesquisa Tal interesse aparece por exemplo na anaacutelise do processo de
regularizaccedilatildeo territorial quilombola em suas relaccedilotildees com o universo juriacutedico
problematizado especialmente no capiacutetulo 2 Interessante observar neste sentido
que se a identidade do grupo natildeo eacute produzida a partir do Estado por outro lado ela
teraacute que ser modulada com o Estado no processo de reconhecimento enquanto
sujeito poliacutetico e cultural especiacutefico (MARCUS 1991)
Sobre o tema do processo no INCRA as entrevistas selecionadas foram na
maioria realizadas com os homens mais envolvidos com a poliacutetica e a representaccedilatildeo
puacuteblica do grupo A predominacircncia da voz masculina no segundo capiacutetulo natildeo reflete
no entanto a caracteriacutestica da pesquisa em geral Em todos os lugares que a pesquisa
percorreu seja em GuaiacuteraPR Presidente PrudenteSP e Santo Antocircnio do Itambeacute ou
SerroMG enquanto pesquisadora mulher minha inserccedilatildeo se deu pelo universo
feminino o que me possibilitou uma reflexividade muacutetua com essas mulheres
27
quilombolas Por elas fui recebida de modo muito hospitaleiro e natildeo demorei a criar
viacutenculos
Ao fazer da subjetividade um meio de conhecimento a antropologia evidencia
como os ldquodadosrdquo estatildeo prenhes de representaccedilotildees e satildeo a proacutepria anaacutelise
construiacutedos no corte possiacutevel do etnoacutegrafo A reflexatildeo etnograacutefica constroacutei portanto
aquilo que descreve bem como constroacutei o modo de relacionamento que produz o
conhecimento pois natildeo haacute um real que jaacute estaacute laacute no campo O tema e os recortes do
trabalho se delinearam como resultado da construccedilatildeo da proacutepria etnografia por isso
soacute puderam ser definidos no final da pesquisa o que prova que sair a campo vale a
pena (CALAVIA SAEZ 2001 597-599) Essas experiecircncias etnograacuteficas satildeo antes
de tudo experiecircncias de vida perpassadas por relaccedilotildees de afetividade e mediadas
pela compreensatildeo de que a expressatildeo da identidade ganha contornos especiacuteficos
conforme os contextos com os quais o grupo interage (MELLO 2012 p 117)
Em Guaiacutera realizei trabalho de campo por periacuteodos equivalentes em dois locais
(siacutetio e Vila Eletrosul) somando quarenta dias No periacuteodo em que estive no ldquosiacutetiordquo
(como eles mesmos denominam o local onde fica a ldquocomunidaderdquo16) foi importante eu
ter sido hospedada na casa de Joaquim e Eva e natildeo na casa de Adir presidente da
associaccedilatildeo pois isso me possibilitou expandir e aprofundar o contato com outras
pessoas aleacutem da lideranccedila com quem jaacute tinha mais proximidade desde a eacutepoca da
minha atuaccedilatildeo no Ministeacuterio Puacuteblico Eva minha anfitriatilde e suas duas filhas moccedilas
Jaqueline (20) e Janaina (14) foram as minhas principais referecircncias de conviacutevio
Quando natildeo estive no siacutetio fiquei hospedada na casa do casal Geralda e
Guaraacute (apelido de Antocircnio) em uma vila localizada na periferia de Guaiacutera
denominada Vila Eletrosul A casa de Geralda tem um importante papel para seus
irmatildeos que moram no siacutetio quando eles precisam resolver questotildees na cidade Deste
modo minha estadia na Vila Eletrosul me permitiu visualizar as dinacircmicas de
interaccedilatildeo entre urbano e rural o contexto perifeacuterico do municiacutepio de Guaiacutera aleacutem de
me aprofundar na religiosidade umbandista jaacute que Geralda e Guaraacute satildeo os dois
membros do grupo que efetivamente participam de um terreiro de Umbanda
localizado no municiacutepio vizinho Terra Roxa Ademais Geralda eacute benzedeira e
16 Deve-se levar em conta a criacutetica em relaccedilatildeo ao fato de que o termo aciona ldquoum estereoacutetipo de comunidade relativamente igualitaacuteria harmocircnica coesa solidaacuteria com projetos poliacuteticos comuns (em siacutentese uma visatildeo romacircntica ndash e pode-se dizer cristatilde ndash de comunidade)rdquo (PORTO 2012 41) Atualmente este termo se tornou um conceito ecircmico
28
mobiliza uma forte rede de reciprocidade com seus vizinhos sendo um referencial
local de sabedoria conselhos e cura
Joaquim (55) Geralda (52) Adir (45) e Joatildeo Aparecido (42) satildeo irmatildeos filhos
de Manoel Ciriaco dos Santos e sua segunda esposa Ana Rodrigues dos Santos o
casal fundador da comunidade em Guaiacutera hoje jaacute falecidos Estes quatro irmatildeos tecircm
um importante papel na manutenccedilatildeo do grupo quilombola atualmente satildeo os dentre
os herdeiros do ldquoVelho Maneacuterdquo os que permaneceram na propriedade que foi
comprada por ele (e no caso de Geralda moradora da periferia do mesmo municiacutepio
que permanece com viacutenculos cotidianos com a famiacutelia) Destes quatro irmatildeos os trecircs
homens moram no siacutetio e tocam a produccedilatildeo da horta e outros plantios aleacutem da criaccedilatildeo
de pequenos animais estando diretamente engajados no projeto de manutenccedilatildeo da
comunidade quilombola com a geraccedilatildeo de renda no proacuteprio territoacuterio e com o
processo de titulaccedilatildeo no INCRA Outro nuacutecleo familiar que permanece na comunidade
satildeo os trecircs filhos (com seus cocircnjuges e filhos) e a viuacuteva de Joseacute Maria (irmatildeo mais
velho de Joaquim Geralda Adir e Joatildeo Aparecido) que faleceu em 2009 durante os
conflitos da comunidade com os vizinhos gauacutechos Mais duas famiacutelias durante o
periacuteodo que estive fazendo trabalho de campo na comunidade eram de agregados
ao nuacutecleo familiar por meio do casamento entre Adir e Solange Jaqueline ndash enteada
de Adir que mora com seus trecircs filhos pequenos ndash e D Luzia sogra de Adir com o
marido e um de seus netos
Joatildeo Aparecido o irmatildeo caccedilula por exemplo preferiu se separar da esposa
que se mudou para Presidente PrudenteSP Kelly com os dois filhos do casal em
busca de trabalho do que ir com ela e deixar a comunidade Sobre esta possibilidade
Joatildeo Aparecido comentou o seguinte
Esta luta aqui natildeo daacute pra deixar o Adir e o Joaquim Essa luta que noacutes viemos hoje abandonar assim tambeacutem natildeo daacute neacute Dandara Falei ldquodeixar eles Natildeo natildeo vira natildeo noacutes comeccedilamos noacutes temos que ir ateacute o final e meu pai sofreu muito pra comprar esse pedacinho de chatildeo aquirdquo Aiacute eu falei assim ldquocomeccedila a sair um sair o outro daqui uns dias aiacute acabou a comunidaderdquo
Estes quatro irmatildeos filhos de Manoel Ciriaco ndash que continuaram morando na
comunidade em GuaiacuteraPR ndash mantecircm contato por telefone celular aleacutem de algumas
visitas esparsas com seus quatro irmatildeos mais velhos que moram em Presidente
PrudenteSP como citado acima Laacute eles tecircm mais uma irmatilde tambeacutem filha de Manoel
e Ana Eurides (64) e aleacutem dos trecircs irmatildeos que satildeo filhos do primeiro casamento de
29
Manoel Ciriaco dos Santos com Maria Olinda Olegaacuterio (79) Jovelina (74) e Joatildeo
Loriano (71) Os quatro irmatildeos que moram no municiacutepio paulista satildeo nascidos em
Minas Gerais Santo Antocircnio do Itambeacute antes de seu pai decidir sair de sua terra natal
e iniciar uma trajetoacuteria de deslocamentos
Para aleacutem do trabalho de campo em Guaiacutera o processo de mapeamento
desta rede de parentesco realizado por meio de duas viagens a Minas Gerais foi fruto
da minha parceria de pesquisa com Cassius Cruz Ele doutorando em ciecircncias sociais
na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) ndash aleacutem de ter participado da
produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico publicado em 2012 ndash neste momento
pesquisa em sua tese o tema da mobilidade e das redes sociais de parentesco
quilombola Com a confluecircncia dos temas de pesquisa e o seu compromisso pessoal
de se aprofundar no estudo por ele realizado anteriormente em Minas Gerais sobre a
Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos Cassius se interessou em somar
esforccedilos para viabilizar que os proacuteprios quilombolas pudessem ir em busca de seus
parentes e assim realizar o objetivo do grupo de compreender melhor a trajetoacuteria de
seus antepassados
O fato no entanto das viagens para Minas Gerais soacute terem se concretizado
em marccedilo e junho de 2015 apoacutes a minha banca de qualificaccedilatildeo fez com que natildeo
fosse possiacutevel o aprofundamento necessaacuterio diante da riqueza do material de
pesquisa coletado e da intensidade das experiecircncias que este trabalho de campo me
proporcionou o que tambeacutem demanda uma maturaccedilatildeo para a posterior reflexatildeo
atraveacutes da escrita Assim de um uacuteltimo capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo acredito que este
material possa vir a se transformar no iniacutecio de uma nova pesquisa que poderaacute ser
desdobrada posteriormente e que me permitiraacute a atenccedilatildeo e o cuidado que esta
experiecircncia de trabalho de campo merece
Enfim a escrita desta dissertaccedilatildeo colocou-me diante do desafio de lidar com
o intervalo entre a pesquisa etnograacutefica e o texto antropoloacutegico o que confirma a
dimensatildeo parcial da anaacutelise e o caraacuteter inesgotaacutevel da experiecircncia Importante
ressaltar neste sentido a desconstruccedilatildeo de um lugar de objetividade na teoria
antropoloacutegica para reconhecer o texto como uma anaacutelise perspectiva relacional e
contextual17 A partir da experiecircncia deste grupo quilombola busco analisar nas
17 A criacutetica de Geertz por exemplo direciona-se a certas estrateacutegias de escrita em que o antropoacutelogo
natildeo se coloca no texto ndash ao construiacute-lo como se sua experiecircncia pudesse ser transposta em uma ldquojanela de cristalrdquo revelando supostamente o mundo laacute fora como ele ldquorealmente eacuterdquo Tal estrateacutegia buscaria
30
paacuteginas que seguem como a construccedilatildeo de um ldquonoacutes quilombolasrdquo neste caso
especiacutefico aponta para dinacircmicas de movimento que natildeo dissolvem mas ao
contraacuterio sustentam o pertencimento coletivo
credibilidade em relaccedilatildeo a questionamentos fundados em paracircmetros objetivistas pautados em criteacuterios das ciecircncias exatas mas para Geertz a antropologia estaria muito mais proacutexima dos ldquodiscursos literaacuteriosrdquo do que dos ldquocientiacuteficosrdquo (GEERTZ 2009)
31
1 IDENTIDADE EM MOVIMENTO
11 SANTO ANTOcircNIO DO ITAMBEacute E GUAIacuteRA DOIS PONTOS DE UMA LINHA
O percurso de deslocamento das famiacutelias negras em questatildeo pode ser
pensado como uma linha que conecta Santo Antocircnio do ItambeacuteMG agrave GuaiacuteraPR
distantes aproximadamente mil e seiscentos quilocircmetros O conceito de ldquolinhardquo aqui
trazido tem inspiraccedilatildeo nas contribuiccedilotildees do antropoacutelogo britacircnico Tim Ingold como
seraacute melhor abordado no item 12 O que eacute importante retermos por enquanto eacute que
a ideia de linha aqui natildeo remete a uma reta mas a uma trajetoacuteria de movimento que
tem uma dinacircmica e um traccedilado especiacuteficos
Em seu livro Lines a brief history o autor se propotildee a realizar uma
ldquoantropologia comparativa da linhardquo e delinear um campo de reflexatildeo que aglutina
aspectos das atividades humanas cotidianas como falar gesticular e caminhar ndash
subsumidos pela caracteriacutestica comum de geraccedilatildeo de linhas (INGOLD 2007) A partir
do caminhar o deslocamento constitui uma linha que pode ser tanto aquela que
descobre o seu percurso enquanto o caminho eacute percorrido ndash ou seja uma jornada que
natildeo tem um comeccedilo ou um fim oacutebvios ndash em contraste com um outro tipo de linha a
linha reta ndash que faz a conexatildeo entre pontos e que estaacute fragmentada em destinaccedilotildees
sucessivas preacute-determinadas como uma sequecircncia de compromissos
assemelhando-se a um mapa de rota onde se vecirc tudo de uma vez (2007 p 72-103)
No caso do grupo em questatildeo a trajetoacuteria de deslocamento estaacute muito mais proacutexima
da primeira caracterizaccedilatildeo de linha como jornada na qual o movimento se desenvolve
como processo de descoberta e de interaccedilatildeo como no caminho de Minas Gerais ateacute
o Paranaacute passando antes pelo estado de Satildeo Paulo
Eacute em GuaiacuteraPR que parte de um grupo maior de parentes ndash composto por
unidades familiares que estatildeo espalhadas por todo canto ndash passou a se reconhecer
como quilombola e a refletir sobre sua proacutepria trajetoacuteria histoacuterica Alguns dados
estatiacutesticos nos ajudam a compreender o perfil atual de GuaiacuteraPR e a histoacuteria da
inserccedilatildeo do grupo quilombola neste municiacutepio De acordo com o uacuteltimo censo de 2010
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) Guaiacutera tem uma populaccedilatildeo
32
de 30704 pessoas18 Do total 28206 habitantes estatildeo na aacuterea urbana ou seja 92
da populaccedilatildeo e apenas 2498 8 na aacuterea rural (IPARDES 2013 p10) Em termos
raciais19 apenas 269 (828 pessoas) da populaccedilatildeo se declarou como ldquopretardquo
3658 (11233 pessoas) como ldquopardardquo 166 (512 pessoas) como ldquoindiacutegenardquo e
217 (669 pessoas) como ldquoamarelardquo A predominacircncia da populaccedilatildeo que se declarou
ldquobrancardquo que representa quase 57 do total (17462 pessoas) aponta para a poliacutetica
de colonizaccedilatildeo e povoamento ocorrido no iniacutecio do seacuteculo XX marcado pelo estiacutemulo
agrave vinda de colonos da regiatildeo sul principalmente descendentes de italianos e alematildees
FIGURA 1 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Guaiacutera na divisa com o Paraguai e o Mato Grosso do Sul FONTE Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 718 [p 25]
A expansatildeo dos colonos e das colonizadoras gauacutechas em direccedilatildeo agrave Guaiacutera
ocorreu a partir da deacutecada de 1930 ndash viabilizada como poliacutetica de Estado ndash sob o
slogan de ldquoMarcha para o Oesterdquo Este estiacutemulo estatal veio com o entatildeo Presidente
da Repuacuteblica Getuacutelio Vargas que tomou como base a ideia de ldquovazio demograacuteficordquo e
a referecircncia ao ldquoespiacuterito do bandeiranterdquo Tal poliacutetica tinha como um de seus objetivos
a nacionalizaccedilatildeo da chamada ldquofronteira guaranirdquo (regiatildeo fronteiriccedila entre Brasil
Paraguai e Argentina) que estava ainda dominada pelos interesses estrangeiros por
18 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em
httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=410880ampsearch=parana|guaira Acesso em 140115 19 Dados sobre Populaccedilatildeo Censitaacuteria - Cor Raccedila disponiacuteveis em httpwwwipardesprgovbrimpindexphp Acesso em 140115 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpcidadesibgegovbrxtrastemasphplang=ampcodmun=410880ampidtema=91ampsearch=parana|guaira|censo-demografico-2010-resultados-da-amostra-religiao- Acesso em 20022015
33
meio do sistema de exploraccedilatildeo da erva-mate desenvolvido na regiatildeo entre o final do
seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX20
Esta poliacutetica de colonizaccedilatildeo significou o avanccedilo sobre o territoacuterio da
populaccedilatildeo nativa da etnia Guarani que jaacute tinha sido submetida desde o seacuteculo XVI
agraves reduccedilotildees jesuiacuteticas21 ao processo de miscigenaccedilatildeo e ao trabalho escravo nas
obrages O povoamento da regiatildeo no seacuteculo XX reforccedilou assim o processo de
desterritorializaccedilatildeo desta populaccedilatildeo cujos desdobramentos se refletem nos conflitos
entre os proprietaacuterios do municiacutepio e o povo indiacutegena autodenominado ldquoAvaacute-guaranirdquo22
que vieram agrave tona no iniacutecio do seacuteculo XXI Nos uacuteltimos anos houve um processo de
forte mobilizaccedilatildeo e retorno desta populaccedilatildeo agrave Guaiacutera e ao municiacutepio vizinho Terra
Roxa com o objetivo de reivindicar a demarcaccedilatildeo de um territoacuterio guarani na regiatildeo
Como eacute possiacutevel observar no censo de 2010 ao qual fizemos referecircncia
acima 166 da populaccedilatildeo guairense (512 pessoas) se declarou ldquoindiacutegenardquo o que
aponta para este processo de reorganizaccedilatildeo das famiacutelias ldquoavaacute-guaranirdquo Desde o final
dos anos 1980 tais famiacutelias passam a ldquose reagrupar e organizar novamente em
aldeamentos os tekoha em busca de reconstituir o espaccedilo onde eacute possiacutevel viver
segundo o modo de ser guaranirdquo (OLIVEIRA 2014 p 167)23
20 As obrages foram um sistema de exploraccedilatildeo da erva-mate e madeira tiacutepico da regiatildeo entatildeo
dominada por interesses hispano-platinos que utilizou o trabalho escravo da populaccedilatildeo nativa guarani Tais empreendimentos se beneficiavam do isolamento estrateacutegico da regiatildeo o que evitava a possibilidade de questionamento da violecircncia na qual se dava o modo de exploraccedilatildeo do trabalho Neste contexto a Companhia Mate Laranjeira exercia importante papel econocircmico e eacute considerada como a fundadora do distrito de Guaiacutera em 1902 que se torna sua sede Neste distrito a empresa construiu um porto por meio do qual escoava os sacos de erva-mate e as toras de madeira extraiacutedas (WACHOWICZ 1987 p 52 141) 21 O histoacuterico de colonizaccedilatildeo do municiacutepio de Guaiacutera remonta ao seacuteculo XVI quando a regiatildeo do antigo
ldquoGuairaacuterdquo jaacute era alvo do interesse dos colonizadores Entre 1608 e 1767 foram fundadas na regiatildeo mais de uma dezena de reduccedilotildees jesuiacuteticas sendo uma das mais importantes a ldquoCiudad Real del Guayraacuterdquo criada em 1554 Em 1600 ldquoas autoridades administrativas espanholas sediadas em Assunccedilatildeo acham por bem transformar a Ciudad Real em sede da Proviacutencia de Guairaacute () Eacute atraveacutes da Proviacutencia del Guairaacute e pela atividade missioneira dos jesuiacutetas que a Coroa espanhola amplia a sua presenccedila e o seu campo de atuaccedilatildeo no atual Oeste paranaenserdquo (COLODEL 2008 p 38) Nesta localidade atualmente estaacute localizado o municiacutepio de Terra Roxa vizinho ao municiacutepio de Guaiacutera 22 A estimativa atual da lideranccedila Guarani cacique Ilson Soares conforme me relatou eacute que em torno
de mil guaranis residem na regiatildeo de Guaiacutera e Terra Roxa 23 ldquoDesta forma no final dos anos 1990 intensifica-se o processo de judicializaccedilatildeo das ocupaccedilotildees
indiacutegenas inicialmente com accedilotildees movidas pela Itaipu seguida de inuacutemeros pleitos movidos por particulares que passam a reivindicar a posse das aacutereas indiacutegenas as quais possuem tiacutetulos registrados nos cartoacuterios municipais A intervenccedilatildeo intensa do Ministeacuterio Puacuteblico Federal para a promoccedilatildeo dos direitos coletivos dos iacutendios acaba por repercutir em decisotildees judiciais favoraacuteveis agrave permanecircncia dos aldeamentos indiacutegenas em algumas aacutereas Aleacutem disso as sentenccedilas determinaram agrave Uniatildeo e agrave FUNAI que promovessem os estudos necessaacuterios para identificaccedilatildeo e delimitaccedilatildeo das terras de ocupaccedilatildeo tradicional Avaacute-Guarani na regiatildeo deflagrando processos que ainda se encontram em tracircmite no acircmbito da Fundaccedilatildeordquo rdquo (OLIVEIRA 2014 p 167)
34
FIGURA 2 Presenccedila de tekohas guaranis e da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos em Guaiacutera e Terra Roxa FONTE Projeto de pesquisa ldquoA questatildeo indiacutegena no oeste do Paranaacute e a reconstruccedilatildeo do territoacuterio Avaacute-Guaranirdquo24 (2014) (Grifos meus)
24 O Projeto eacute apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico (CNPQ) e desenvolvido no curso de Direito da PUC-PR O mapa foi elaborado com base nos dados do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) Violaccedilotildees dos direitos humanos e territoriais dos Guarani no Oeste do Paranaacute (1946-1988) Subsiacutedios para a Comissatildeo Nacional da Verdade Ver httpbdtrabalhoindigenistaorgbrdocumentoviolaC3A7C3B5es-dos-direitos-humanos-e-territoriais-dos-guarani-no-oeste-do-paranC3A1-1946-1988-sub Acesso em 07 de janeiro de 2015
35
No mapa apresentado estatildeo identificadas as localizaccedilotildees das tekoha
existentes nos municiacutepios de Guaiacutera e Terra Roxa bem como a presenccedila da
Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos destacada no canto esquerdo
inferior do mapa No atual contexto de reivindicaccedilatildeo territorial tanto por indiacutegenas
como por quilombolas em Guaiacutera os proprietaacuterios rurais da regiatildeo tecircm se articulado
e promovido fortes reaccedilotildees em forma de protestos e de articulaccedilotildees poliacuteticas para se
oporem a essas reivindicaccedilotildees Deve-se ter em conta para compreender esta
mobilizaccedilatildeo dos proprietaacuterios rurais25 que ldquoa demarcaccedilatildeo de territoacuterios e o
reconhecimento de identidades tradicionais satildeo uma forma de resistecircncia mais eficaz
e imediata agraves lsquoagroestrateacutegiasrsquo do que outras modalidades de luta e reivindicaccedilatildeo
fundiaacuteriasrdquo (GUEDES 2013b p 43)
A forccedila destes atores organizados localmente tambeacutem por meio do Sindicato
Rural patronal deve-se ao perfil econocircmico do municiacutepio estruturado na produccedilatildeo de
ldquocommoditiesrdquo para exportaccedilatildeo A topografia plana e a boas condiccedilotildees de fertilidade
do solo possibilitaram o forte desenvolvimento do agronegoacutecio na regiatildeo com o
processo de mecanizaccedilatildeo da agricultura26 Deste modo a regiatildeo oeste do Paranaacute
apresenta atualmente intensa atividade do agronegoacutecio o que fez com que o preccedilo
da terra aumentasse muito nos uacuteltimos anos um alqueire na regiatildeo jaacute estaacute valendo
em meacutedia cem mil reais Esta valorizaccedilatildeo do preccedilo da terra eacute percebida de forma
expressiva pelos membros da comunidade quilombola Em 2003 depois de dez anos
que os trecircs irmatildeos mais velhos Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano saiacuteram da
comunidade para morar em Presidente PrudenteSP quando resolveram vender 15
alqueires da aacuterea adquirida por seu pai conseguiram o valor equivalente a dezoito mil
reais por alqueire Conforme relato do filho caccedilula do segundo casamento de Manoel
Joatildeo Aparecido em seis meses o preccedilo do alqueire jaacute tinha subido para o equivalente
a cinquenta mil reais de modo que seus irmatildeos demonstram arrependimento por
terem vendido a aacuterea que lhes cabia da heranccedila por um valor tatildeo baixo
Segundo dados do IBGE referentes agrave produccedilatildeo agriacutecola municipal de Guaiacutera
em 2013 as trecircs principais culturas foram o milho (182470 toneladas) depois a soja
25 Esta articulaccedilatildeo dos proprietaacuterios rurais tem ocorrido em Guaiacutera e no estado do Mato Grosso do
Sul por exemplo por meio da ldquoOrganizaccedilatildeo Nacional de Garantia do Direito de Propriedaderdquo 26 Conforme informaccedilotildees trazidas pelo antropoacutelogo da FUNAI Diogo Oliveira no I Congresso ldquoA questatildeo indiacutegena no Oeste do Paranaacute e a Reconstruccedilatildeo do Territoacuterio Guaranirdquo realizado em novembro de 2014 em Foz do Iguaccedilu 80 das terras de Guaiacutera em extensatildeo (natildeo em nuacutemero) pertencem a grandes proprietaacuterios rurais e em 90 das terras agricultaacuteveis planta-se milho e soja
36
(110425 toneladas) e por uacuteltimo o trigo (990 toneladas)27 Por outro lado diante deste
cenaacuterio adverso agrave efetivaccedilatildeo de direitos territoriais Avaacutes-Guarani e quilombolas tecircm
se fortalecido de modo articulado por meio do contato gerado entre as lideranccedilas no
acircmbito do Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos (PAA) 28 com visitas frequentes dos
quilombolas nas aldeias indiacutegenas para a realizaccedilatildeo das entregas de alimentos Neste
cenaacuterio tais grupos sociais tentam colocar na agenda puacuteblica dominada pelos
interesses hegemocircnicos do agronegoacutecio importantes debates e disputas a partir de
outras loacutegicas de uso e de relaccedilatildeo com a terra29
O contexto de Guaiacutera eacute visto como adverso pelos quilombolas ao reforccedilar um
discurso regional predominante que vecirc o agronegoacutecio como expressatildeo do
desenvolvimentordquo e da ldquoevoluccedilatildeordquo e que desloca por conseguinte indiacutegenas e
quilombolas para o passado por meio do que pode ser qualificado como um
ldquorebaixamento diacrocircnico do outrordquo estabelecendo uma sinoniacutemia entre diferenccedila e
distacircncia temporal (FABIAN 2013) Vaacuterias vezes comentaram que na regiatildeo Sul do
Brasil existe muito mais discriminaccedilatildeo contra negros do que na regiatildeo de onde satildeo
provenientes jaacute que laacute a expressividade da populaccedilatildeo negra eacute muito maior Esta
perspectiva por eles articulada pode ser entendida em relaccedilatildeo ao processo de
consolidaccedilatildeo da imagem de um Paranaacute eminentemente europeu pelas diversas
esferas do poder e da sociedade paranaense que tende a negar o reconhecimento
27 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=410880ampsearch=parana|guaira Acesso em 20022015 Outra comunidade quilombola que enfrenta um contexto de grande impacto do agronegoacutecio no Paranaacute (centro-sul) eacute a Comunidade Paiol de Telha (HARTUNG 2004) 28 O PAA consiste em um programa do Ministeacuterio do Desenvolvimento Social (MDS) criado em 2003 a partir do Programa Fome Zero Por meio desta poliacutetica puacuteblica oacutergatildeos estatais puderam adquirir com dispensa de licitaccedilatildeo produtos da agricultura familiar e doaacute-los para grupos em situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar No caso de Guaiacutera os quilombolas por meio de contrato com a Secretaria de Trabalho e Economia Solidaacuteria (SETS) atuam como produtores dos alimentos e entregam essas doaccedilotildees diretamente agraves aldeias indiacutegenas de Guaiacutera e Terra Roxa 29 Este estreito contato parece ser decorrente do ldquoefeito provaacutevel de certos mecanismos histoacutericos
comuns de repressatildeo controle e territorializaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 32) Ademais tanto no caso dos indiacutegenas da etnia Guarani como no caso dos quilombolas de Guaiacutera a presenccedila do histoacuterico de deslocamentos na trajetoacuteria destes grupos aparece como argumento mobilizado pelos articuladores do movimento contraacuterio agrave demarcaccedilatildeo territorial enquanto elemento deslegitimador das reivindicaccedilotildees destas comunidades No caso dos Guaranis a partir da deacutecada de 70 com a mecanizaccedilatildeo da agricultura sua matildeo-de-obra passou a ser desprezada e aquelas famiacutelias que resistiram ao processo de colonizaccedilatildeo foram se estabelecendo apenas nas margens do Rio Paranaacute pela pressatildeo e esbulho territorial que sofreram A maior parte foram afugentadas para o leste paraguaio sob grande violecircncia dos oacutergatildeos do Estado processo no qual o Estado ditatorial brasileiro participou ativamente Trata-se portanto de um processo de migraccedilatildeo forccedilada que ocorreu nas uacuteltimas deacutecadas e que contrasta com a dinacircmica de deslocamentos proacuteprios da etnia ligados a perspectivas e significados cosmoloacutegicos (CARVALHO 2013)
37
agraves demais alteridades e grupos eacutetnicos no estado Neste sentido afirma a antropoacuteloga
Mirian Hartung
A invisibilidade tornou-se um dos aspectos mais relevantes da identidade social dos afrodescendentes no sul do Brasil O projeto de colonizaccedilatildeo com europeus implantado entre meados do seacuteculo XIX e o XX foi a sua contraface Em um seacuteculo foram concedidos aos colonos europeus todas as primazias sobre as terras os capitais as oportunidades de trabalho e o crescimento econocircmico Este modelo seletivo e excludente orientou as poliacuteticas puacuteblicas as accedilotildees particulares e a voz dos cientistas (2004 p 7)
Em relaccedilatildeo aos desdobramentos deste modelo de colonizaccedilatildeo regional por
descentes de europeus implantado em Guaiacutera a partir da deacutecada de 1930 Joaquim
(55 anos) tambeacutem filho de Manoel Ciriaco do segundo casamento eacute pessimista no
tocante agraves mudanccedilas em curso no mundo rural O que seus vizinhos enxergam como
progresso segundo ele me relatou eacute a produccedilatildeo de transgecircnicos na base de
veneno30 o uso de sementes esteacutereis fabricadas em laboratoacuterio que implicam no
pagamento de lsquordquoroyaltiesrdquo para as empresas multinacionais Muitas plantas agriacutecolas
satildeo resistentes ao veneno que acaba por sua vez com o mato natildeo havendo
necessidade capinar Assim natildeo tem mais emprego nas plantaccedilotildees Eacute a maacutequina que
planta a semente uma por uma Denunciou entatildeo o fato de que quando os vizinhos
passam o veneno (e eles acompanham estes ciclos praticamente todos juntos) soacute
com o cheiro do veneno as folhas das plantas que estatildeo na aacuterea do grupo quilombola
tambeacutem se enrolam em consequecircncia
Estes satildeo exemplos entre outros que Joaquim citou como modificaccedilotildees
alarmantes de modo que os mais jovens ressente-se natildeo chegam sequer a
conhecer como era antes quando a regiatildeo de Guaiacutera era tomada pela mata fechada
e a produccedilatildeo era manual familiar pautada em uma loacutegica de valorizaccedilatildeo do trabalho
na terra do alimento da solidariedade Ao olhar para o passado Joaquim apontou
que na eacutepoca que Seu Manoel comprou aquela terra no iniacutecio da deacutecada de 1960 o
preccedilo era muito barato e aleacutem disso pagava-se como podia ao longo dos anos Na
eacutepoca Manoel natildeo teria comprado uma aacuterea maior porque natildeo teriam como tocar
aquele tanto de terra o que indica que a loacutegica do grupo era de ocupaccedilatildeo efetiva da
30 A imagem de Guaiacutera estaacute muito associada ao contrabando de produtos do Paraguai Um dos
produtos que satildeo contrabandeados e afetam diretamente a comunidade quilombola satildeo os defensivos agriacutecolas comercializados no Paraguai e proibidos no Brasil para uso em plantaccedilotildees como no caso do MPK 40 que foi a mim denunciado pelos quilombolas e por mais dois servidores puacuteblicos que trabalham no municiacutepio
38
aacuterea para produccedilatildeo familiar Em relaccedilatildeo ao futuro Joaquim afirmou que soacute Deus para
colocar um limite nesta ambiccedilatildeo nas alteraccedilotildees feitas na Sua criaccedilatildeo
No contexto das dificuldades que enfrentam no municiacutepio ainda mais
significativa eacute a relevacircncia atribuiacuteda pelos quilombolas agrave memoacuteria coletiva e aos laccedilos
sociais e histoacutericos principalmente no que se refere aos mais velhos que tentam
direcionar os mais novos neste mesmo sentido Este sentimento de um pertencimento
comum embasa a autoidentificaccedilatildeo e a mobilizaccedilatildeo do grupo pelo reconhecimento
como quilombolas A emergecircncia desta identidade estaacute inserida em um contexto de
relaccedilotildees de tensatildeo antes velada e que aponta para dinacircmicas de fronteira entre
brancos e negros no bairro rural ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo onde residem31
A reproduccedilatildeo da coesatildeo do grupo estaacute presente na leitura que fazem dos
processos de deslocamento que natildeo passa pela ideia de ruptura como mencionamos
na introduccedilatildeo Pelo contraacuterio desenha-se a partir da continuidade do movimento
como mecanismo de reproduccedilatildeo do grupo o que reforccedila os viacutenculos com o local de
proveniecircncia (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64) A regiatildeo do municiacutepio de Santo Antocircnio
do Itambeacute sobre a qual traremos abaixo uma breve apresentaccedilatildeo eacute o lugar de
sustentaccedilatildeo do ldquomito de origemrdquo do grupo e remonta agrave vivecircncia dos mais velhos que
laacute residiram
Apesar de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG estar abrangido pela divisatildeo
institucional da ldquomesorregiatildeo metropolitana de Belo Horizonterdquo o municiacutepio estaacute muito
mais proacuteximo em termos sociais e culturais da ldquomesorregiatildeo do Vale do
Jequitinhonhardquo situada no nordeste do estado No que tange agraves bacias hidrograacuteficas
o municiacutepio localiza-se entre a bacia do Alto Jequitinhonha e a bacia do Rio Doce e
como sugerem os moradores da regiatildeo ldquoeacute o comeccedilo do Valerdquo
31 Segundo Barth ldquoos elementos da cultura presente em um grupo eacutetnico natildeo surgem por conseguinte
do conjunto particular que constituiu a cultura do grupo em um periacuteodo anterior embora o grupo tenha uma existecircncia organizacional contiacutenua com fronteiras (criteacuterios de pertenccedila) que apesar das modificaccedilotildees nunca deixaram de delimitar uma unidade contiacutenuardquo (BARTH 2011 p 227) Tais reflexotildees deste autor continuam sendo segundo Joseacute Mauriacutecio Arruti ldquoas melhores orientaccedilotildees para a anaacutelise de grupos autodefinidos com base na origem ou em atributos de formaccedilatildeordquo e embasam a noccedilatildeo de etnicidade na reflexatildeo antropoloacutegica contemporacircnea (ARRUTI 2006 p 39)
39
FIGURA 3 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute FONTE Autora (2015)
Atualmente o municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG possui 4121
habitantes conforme estimativa do IBGE para 201432 Segundo o Censo de 2010
1230 pessoas moravam na zona urbana o equivalente a 2984 e mais de 70 da
populaccedilatildeo continua habitando a zona rural um total de 2905 pessoas Em termos
raciais em Santo Antocircnio do Itambeacute apenas 863 da populaccedilatildeo (357 pessoas) se
declarou como ldquobrancardquo Jaacute a autoidentificaccedilatildeo como sendo da cor ldquopretardquo somou
1947 (805 pessoas) e ldquopardardquo 6972 (2883 pessoas) A diferenccedila no que tange
ao percentual de brancos e negros com relaccedilatildeo agrave GuaiacuteraPR33 eacute significativa jaacute que laacute
a populaccedilatildeo que se declarou branca eacute a maioria 57 em contraste com os apenas
863 de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Dito isto voltemos agraves narrativas quilombolas que destacam principalmente a
capacidade de resistecircncia dos antepassados em condiccedilotildees adversas de muito
sofrimento vivenciadas na regiatildeo mineira Em Guaiacutera me contaram sobre os relatos
32 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316020 Acesso em 22062015 33 Praticamente todos os dados que seratildeo apresentados para a comparaccedilatildeo entre as duas regiotildees satildeo
fortemente contrastantes
40
que ouviram dos pais avoacutes tios irmatildeos mais velhos sobre experiecircncias de fome
trabalho aacuterduo e precariedade das moradias que tinham que ser feitas dentro de lapas
ou locas de pedra (cavernas) Por outro lado Minas eacute valorizada por sua cultura local
narrada pelas histoacuterias sobre os antepassados
Importante levar em conta que na narrativa sobre o passado certos traccedilos se
esvanecem e outros satildeo reforccedilados conforme o momento presente daqueles que
compotildeem uma mesma ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo (HALBWACHS 2003 p 94) O
relato de Jovelina filha mulher mais velha de Manoel Ciriaco atualmente com 73
anos que morou em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ateacute seus quinze anos e atualmente
reside em Presidente PrudenteSP34 destaca a fome como uma memoacuteria central nos
tempos de sua infacircncia
Dandara Dona Jo a senhora repete entatildeo pra gente o que comentou laacute das memoacuterias do pessoal mais antigo de Minas
D Jovelina Laacute no siacutetio do meu pai tinha tinha natildeo que deve ter ateacute hoje que aquilo ali natildeo foi tampado aquele valo Aliacute era cerca pros bois natildeo passar pra roccedila pra comer a roccedila Ali tinha aqueles buracatildeo os boi chegava laacute e olhava assim via aquele buraco laacute e saiacutea E se ele quebrasse a perna ali dentro aiacute entatildeo o dono dele dava pra aquelas pessoas repartir Aiacute a gente pegava e ia laacute buscar e eles repartiam tudo pra aquelas pessoas e a nossa turma ia alegre pra casa porque tava tudo morrendo de fome Ai entatildeo ia naquele lugar onde aquele boi tentou cair ali aiacute escavava mais pra baixo ainda E tinha uns ainda que tinham minha voacute sempre falava que tinha ateacute corrente no peacute que aquele ali que natildeo trabalhasse era preguiccediloso ia ser amarrado laacute no tronco da aacutervore laacute E laacute ficava
Eacute possiacutevel observar que quando Dona Jovelina fala de sua infacircncia relembra
as histoacuterias contadas pela avoacute Izidora sobre o tempo da escravidatildeo35 Interessante
refletir que na forma como a narradora conta esta lembranccedila natildeo aparece um corte
temporal entre o periacuteodo em que a famiacutelia se alimentava da carne do boi que caiacutea no
valo utilizado como cerca entre as propriedades e a eacutepoca em que as pessoas
trabalhavam acorrentadas e eram castigadas no tronco da aacutervore como a avoacute sempre
falava Haacute deste modo uma continuidade sugestiva na narrativa que faz um
34 Esta entrevista ocorreu durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo de 2015
quando passamos por Presidente PrudenteSP justamente para conversar com os irmatildeos mais velhos Jovelina Olegaacuterio e Joatildeo Loriano sobre suas lembranccedilas da vida em Santo Antocircnio do Itambeacute 35 Com os pais provavelmente ocupados em atividades laborais os avoacutes conforme problematizado por
Connerton ocupam uma posiccedilatildeo central no processo de transmissatildeo de conhecimentos sobre o passado diretamente agrave geraccedilatildeo mais nova (CONNERTON 1999 p 43-44) No caso de Jovelina ela ficou sem a matildee que faleceu quando ela tinha dois anos de idade tendo sido cuidada por sua avoacute Izidora e sua tia Ana Raimunda junto com seu pai Manoel Ciriaco
41
entrecruzamento de temporalidades em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da escravidatildeo
apontando para uma forte conexatildeo entre periacuteodos cronoloacutegicos experiecircncias e
vivecircncias ateacute o momento de sua infacircncia na deacutecada de 1940 (MELLO 2012 p 170)
D Jovelina lembrou-se tambeacutem de que quando crianccedila ela e seu irmatildeo Joatildeo ainda
muito pequenos recorriam agrave alternativa de encontrar no rio utilizando uma bateia
algum ouro que entregavam para a tia Ana Raimunda para fazer um pouco de dinheiro
e comprar algo para a famiacutelia36
D Maria das Dores esposa de Seu Joatildeo (filho de Manoel Ciriaco do primeiro
casamento) que atualmente tambeacutem mora em Presidente PrudenteSP37 comentou
sobre seu sofrimento em Minas Gerais38
Cassius A sra falou que comeccedilou a trabalhar desde pequena laacute em Santo Antocircnio
D Maria Desde pequenininha lavando mandioca no rio de manhatilde cedo com frio eacute eu sofri muito Depois cresci trabalhando pras casas dos outros Eu nunca tive vida forgada Eu criei meus filhos tudo sofrendo O menino que natildeo foi sofrido foi esse aiacute que nasceu no Paranaacute mas os outros laacute de Minas tudo () Nem roupa pra vestir a gente natildeo tinha chinelo pra pocircr no peacute era uma vida cruel A gente natildeo comia nem um arroz nem nada Nem oacuteleo pra pocircr na comida natildeo tinha
Dandara A terra era fraca neacute
D Maria Terra natildeo ia nada soacute o que eu plantava laacute era soacute cafeacute cana e mandioca soacute a fartura que vocecirc via laacute era isso eacute natildeo tinha nada natildeo
A baixa qualidade da terra e a escassez de aacutereas para plantio podem ter
impulsionado a estrateacutegia de Manoel Ciriaco de sair rumo a regiatildeo de Satildeo Paulo e
depois norte do Paranaacute acompanhado de demais parentes o que era uma praacutetica
recorrente nesta regiatildeo mineira De acordo com Flaacutevia Galizoni a regiatildeo nordeste de
Minas Gerais tem uma caracteriacutestica proacutepria em relaccedilatildeo ao modo de aquisiccedilatildeo do
direito agrave terra que se daacute principalmente por heranccedila Este eacute o caso da famiacutelia de
36 Esta forma de garimpo eacute muito comum entre mulheres e crianccedilas (GUEDES 2013a p 126) Em sua
etnografia no norte de Goiaacutes Guedes destaca como o garimpo eacute visto como uma alternativa precisamente a situaccedilotildees entendidas como cativeiro eou escravidatildeo Segundo o autor ldquotratamos aqui da continuidade ndash ou para ser mais preciso da eterna expectativa pelo retorno ou volta ndash de uma escravidatildeo cuja aboliccedilatildeo lsquoformalrsquo por vezes eacute tratada como objeto de escaacuternio natildeo passando de uma iniciativa hipoacutecrita dos ricosrdquo Garimpeiros e quilombolas ldquocompartilham assim interstiacutecios e margens e sempre estiveram a se fundir e confundir uns com os outrosrdquo (GUEDES 2013a p 118-119) 37 Esta entrevista tambeacutem realizada durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo
de 2015 38 Esta entrevista tambeacutem ocorreu durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo de
2015
42
Manoel cuja herdeira era sua matildee Izidora pois o siacutetio havia sido comprado pelo pai
dela como me relata Jovelina
As pessoas foram morrendo e deixando pros filhos agora aqueles filhos que morriam ficava pros outros netos deles e era assim ia ficando () Era tudo negro que tinha por aiacute Quando um tava meio apurado de serviccedilo ia laacute ah fulano vocecirc vai trabalhar pra mim que eu te pagordquo () Entatildeo chamava ia aquela turma de gente ali ajudava quando era o outro dia ia laacute na casa do outro trabalhar pro outro pagar aquele dia Que eles trabalhavam natildeo era pra receber dinheiro porque natildeo tinha Entatildeo trabalhava o dia trocado Hoje vocecirc vinha aqui e ajudava eu a fazer aquele serviccedilo aiacute amanhatilde eu ia e te ajudava tambeacutem era trocado
A terra eacute um patrimocircnio familiar transmitida pela heranccedila no acircmbito de uma
ordem moral camponesa que natildeo a restringe ao valor de mercadoria mas que a
concebe a partir de valoraccedilotildees eacuteticas Aquele que se torna dono o faz mediante o
trabalho que eacute ademais um trabalho familiar no qual as relaccedilotildees de reciprocidade
satildeo centrais (WOORTMANN 1990) em um modelo relacional que fica niacutetido na fala
de Dona Jovelina Nesta dinacircmica a migraccedilatildeo39 eacute um dos elementos importantes para
manter a terra em um tamanho necessaacuterio para as futuras geraccedilotildees jaacute que seu
fracionamento extremo pode ldquoinviabilizar a continuidade da famiacutelia como grupo de
agricultores independentesrdquo
A terra eacute o principal meio de produccedilatildeo e patrimocircnio dos agricultores mas em decorrecircncia da pressatildeo demograacutefica e da exaustatildeo do ambiente torna-se ao longo do tempo um limite para a sua reproduccedilatildeo social Quando o nuacutemero de membros excede a capacidade de suporte da terra surge o imperativo de se decidir no interior da famiacutelia como seraacute resolvida essa questatildeo e nesse contexto a heranccedila constitui um ponto nodal para compreender as estrateacutegias de permanecircncia dos agricultores familiares na terra (GALIZONI2007 p 564)
Para que parte da famiacutelia fique na terra como herdeiros torna-se imperativo
que outra saia enquanto excedente familiar no que tange o uso da terra A migraccedilatildeo
ocorre como processo familiar pois acontece em grupo a partir de estrateacutegias de
contatos nos locais de destino com o objetivo de reconstruir as unidades familiares
No caso em questatildeo Manoel antes de sair definitivamente praticava a migraccedilatildeo
39 Importante ressaltar a criacutetica ao conceito de migraccedilatildeo jaacute que esta concepccedilatildeo esta permeada
frequentemente por uma visatildeo de que o ldquomovimento natildeo teria um valor em si mesmo constituindo-se basicamente como a passagem entre dois pontosrdquo Assim o deslocamento eacute visto como acontecimento excepcional e a sedentariedade como regra Deste modo o movimento e natildeo a permanecircncia eacute o que tem que ser explicado (GUEDES 2013a p 31-36)
43
sazonal movimento recorrente nesta regiatildeo no periacuteodo da seca quando saiacutea para
trabalhar como peatildeo mundo afora Um dos seus destinos de trabalho era a regiatildeo de
Londrina norte do Paranaacute para onde se deslocava de trem Foi atraveacutes desta
experiecircncia preacutevia que traccedilou a estrateacutegia de saiacuteda definitiva com demais parentes
para a regiatildeo de Presidente PrudenteSP onde morou no municiacutepio de CaiabuSP Eacute
importante salientar que nesta regiatildeo paulista Manoel Ciriaco e demais parentes
puderam contar com o suporte da famiacutelia de seu primo de primeiro grau Raimundo
Constantino ndash filho de sua tia materna Joana ndash que laacute jaacute se encontrava Raimundo
que havia saiacutedo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG com esposa e filhos em 1949 jaacute
havia falecido quando Manoel chegou em CaiabuSP
Na eacutepoca em que Manoel deixou sua regiatildeo de origem ele jaacute havia ficado
viuacutevo de Maria Olinda sua primeira esposa com quem teve quatro filhos Luiza ndash que
faleceu aos 8 anos de idade ndash Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano
FIGURA 4 Excerto Genealoacutegico 1
Como afirmei anteriormente quando Maria Olinda faleceu Joatildeo Loriano tinha
apenas um mecircs de vida tendo sido criado pela avoacute Izidora e pela irmatilde de seu pai
Ana Raimunda Depois Manoel casou-se com Ana Rodrigues com quem teve mais
quatro filhos ainda em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Eurides Sebastiana (falecida)
Antocircnio (falecido) e Joseacute Maria (falecido) Os outros filhos deste casal jaacute nasceram
no processo de deslocamentos da famiacutelia ndash dos quais apenas Paulo faleceu quando
tinha 15 anos ndash e os quatro irmatildeos mais novos satildeo os que atualmente continuam
morando em GuaiacuteraPR e atuam de forma direta no projeto de estruturaccedilatildeo da
comunidade quilombola Joaquim Geralda Adir e Joatildeo Aparecido
44
FIGURA 5 Excerto Genealoacutegico 2
45
Para compreender o contexto da saiacuteda dessas famiacutelias em 1956 deve-se ter
em conta que a deacutecada de 1950 eacute o periacuteodo de decliacutenio da produccedilatildeo camponesa na
regiatildeo mineira em decorrecircncia da abertura de estradas bem como do
desenvolvimento e da urbanizaccedilatildeo do entorno De 1950 a 1970 a regiatildeo do ldquoVale do
Jequitinhonhardquo40 vivenciou um importante marco histoacuterico de integraccedilatildeo na economia
nacional por meio da possibilidade de acesso a produtos industrializados o que como
consequecircncia provocou a desvalorizaccedilatildeo dos produtos regionais Este periacuteodo eacute
marcado pela expansatildeo do capitalismo e pela expropriaccedilatildeo do campesinato com o
aumento significativo do deslocamento da populaccedilatildeo local (PORTO 2007 p 79)
A produccedilatildeo e o comeacutercio de alimentos e artigos artesanais eram justamente
o trabalho realizado pelas famiacutelias negras em questatildeo principalmente na lavoura de
cana-de-accediluacutecar com a qual se fazia a cachaccedila o melado e a rapadura e no
transporte destes produtos em lombo de burro para sua comercializaccedilatildeo aleacutem da
lavoura de cafeacute do trabalho no garimpo de ouro e da agricultura de subsistecircncia
Deste modo a saiacuteda dos camponeses decorre da pressatildeo das ldquoformas empresariais
e capitalistasrdquo em direccedilatildeo agrave regiatildeo ldquoos primeiros continuamente deslocados pela
marcha dos segundosrdquo (GUEDES 2013b p 53) Dentre tais empreendimentos
destaca-se a produccedilatildeo em moldes capitalistas de eucalipto de gado e de cafeacute Deste
modo eacute possiacutevel perceber como a memoacuteria e a experiecircncia do grupo quilombola vai
tomar como um marco os efeitos do histoacuterico de modernizaccedilatildeo regional e do decliacutenio
da produccedilatildeo camponesa no acircmbito de um processo mais amplo de pressatildeo
migratoacuteria (PORTO 2007 p 60) Olegaacuterio (77 anos) filho de Manoel Ciriaco que saiu
de MG com o pai contou que ele e seus parentes foram de Santo Antocircnio do Itambeacute
ateacute Diamantina no pau de arara caminhatildeo coberto de lona e de Diamantina ao estado
de Satildeo Paulo de ocircnibus
Recuando um pouco mais na histoacuteria no que tange ao comeccedilo do seacuteculo XX
os estudos historiograacuteficos demonstram como a migraccedilatildeo jaacute aparecia como uma
estrateacutegia importante para a populaccedilatildeo negra que vivia em regiotildees de colonizaccedilatildeo
antiga como eacute o caso de Minas Gerais Estes estudos tecircm analisado como os negros
40 Esta divisatildeo regional que a partir da deacutecada de 1960 cria de uma forma unificada o ldquoVale do
Jequitinhonhardquo eacute fruto de uma articulaccedilatildeo da esfera poliacutetica que tomou como criteacuterio a carecircncia e a pobreza enquanto argumentos dos poliacuteticos regionais para acessar recursos para uma aacuterea definida como ldquobolsatildeo da pobrezardquo O ldquoprogressordquo por meio desenvolvimento capitalista seraacute entatildeo apresentado como o caminho de redenccedilatildeo para a populaccedilatildeo localrdquo (PORTO 2007 p 61)
46
libertos e seus descendentes traccedilaram estrateacutegias para buscar caminhos de
autonomia e de subsistecircncia tendo em vista as dinacircmicas de disponibilidade de terra
e trabalho no poacutes-aboliccedilatildeo (1888) Esta populaccedilatildeo tinha que lidar com a permanecircncia
das categorizaccedilotildees sociais como a de ldquoex-senhores libertos e homens nascidos
livresrdquo enquanto uma das principais limitaccedilotildees para sua capacidade de negociaccedilatildeo
nas regiotildees de colonizaccedilatildeo mais antigas (MATTOS RIOS 2004 p 180) Eacute sabido
que o fim do regime escravocrata natildeo concretizou a presunccedilatildeo legal de igualdade e
cidadania para esta populaccedilatildeo que ficou sujeita agrave manutenccedilatildeo das hierarquias locais
jaacute que ser negro ainda era visto em alguma medida como sinoniacutemia de ter sido
escravo Eacute necessaacuterio neste sentido refletir sobre o projeto dos libertos no periacuteodo
do poacutes-aboliccedilatildeo ldquosua lsquovisatildeorsquo do que seria liberdade os significados deste conceito
para a populaccedilatildeo que iria finalmente vivenciaacute-la ()rdquo Uma das expressotildees destes
projetos foi a ldquomobilidade espacialrdquo a partir do direito que passaram a ter sobre os
proacuteprios corpos de ir e vir livremente (MATTOS RIOS 2004 p 171-178)
Muitas eram as dificuldades enfrentadas pelos negros nas regiotildees onde a
escravidatildeo tinha sido significativa como a localidade de Santo Antocircnio do Itambeacute que
faz parte do ldquoCaminho dos Diamantesrdquo e da ldquoEstrada Realrdquo vinculada agrave colonizaccedilatildeo
mineradora A movimentaccedilatildeo geograacutefica dos ldquonatildeo-brancos livresrdquo para aacutereas de
colonizaccedilatildeo mais recente como eacute o caso de Guaiacutera na regiatildeo noroeste do Paranaacute
onde poderiam se organizar como ldquocampesinato reconstituiacutedordquo foi uma opccedilatildeo muito
utilizada Carlos Lima denominou este processo de ldquopequena diaacutesporardquo apontando
para a ldquoforte tendecircncia emigratoacuteriardquo que partia ldquodas aacutereas centrais onde haviam sido
gerados para localidades onde o acesso agrave terra fosse mais plausiacutevelrdquo (LIMA 2000 p
109)41 Deste modo destaca em suas pesquisas sobre o poacutes-aboliccedilatildeo a inserccedilatildeo de
libertos em processos de povoamento e a tendecircncia ao deslocamento de seus
descendentes de aacutereas de colonizaccedilatildeo antiga para regiotildees mais novas ndash como no
caso em questatildeo da regiatildeo de DiamantinaMG ateacute GuaiacuteraPR O autor observou na
documentaccedilatildeo um alto grau de natildeo brancos livres no estado do Paranaacute no seacuteculo
XIX e em relaccedilatildeo inversa um nuacutemero relativamente baixo de natildeo-brancos livres nas
aacutereas de escravidatildeo mais antiga (LIMA 2000)
41 No entanto nem todos os deslocamentos eram bem-sucedidos e como aponta o estudo das historiadoras Hebe Mattos e Ana Maria Rios tambeacutem implicaram em certos casos em ldquohistoacuterias de privaccedilotildees extremas e desestruturaccedilatildeo da vida familiarrdquo (MATTOS RIOS 2004 p 171)
47
Com esta estrateacutegia de movimento o grupo familiar proveniente de MG
conseguiu adquirir terras em GuaiacuteraPR depois de quase uma deacutecada em que
moraram e trabalharam principalmente na colheita de algodatildeo e de amendoim na
regiatildeo de Presidente PrudenteSP em aacutereas arrendadas no municiacutepio de CaiabuSP
A partir do contato com Seu Olindo que era corretor foram para o Paranaacute porque
tinham interesse de comprar terras principalmente porque lhes falaram que a terra laacute
era muito boa Em Guaiacutera estabeleceram-se no iniacutecio da deacutecada de 1960 e adquiriram
quatro pequenos lotes rurais todos proacuteximos os quais demoraram anos para quitar
atraveacutes de muito trabalho modo de pagamento inaceitaacutevel nos padrotildees atuais Com
o estabelecimento de Manoel e de sua esposa Ana Rodrigues com demais parentes
em Guaiacutera outras famiacutelias tambeacutem foram se deslocando para laacute tanto provenientes
do estado de Satildeo Paulo como da regiatildeo mineira Destacam-se nas narrativas sobre
a chegada em uma aacuterea que estava comeccedilando a ser colonizada as dificuldades que
enfrentaram acampando embaixo de lona no meio do mato de onde passaram a
retirar toda a sua sobrevivecircncia por meio da caccedila e da coleta aleacutem da derrubada da
mata para limpar o terreno e para iniciar o plantio agriacutecola
Os quatro homens chefes de famiacutelia que se tornaram proprietaacuterios no Paranaacute
tinham viacutenculos de parentesco entre si e com o casal ancestral Joseacute e Joana
ascendentes mais antigos sobre o qual o grupo tinha referecircncias (antes da pesquisa
realizada em Minas Gerais) inclusive de terem trabalhado como escravos em Minas
Gerais Assim aleacutem de Manoel Ciriaco e Geraldo Domingos dos Santos os quais
adquiriram respectivamente dez e cinco alqueires contiacuteguos da Sociedade
Agropecuaacuteria Comercial e Industrial Maracaju LTDA (lotes 186 e 186-A 187 e 187-A)
tambeacutem adquiriram lotes o ldquotio Raimundatildeordquo que era tio de Ana Rodrigues e Joatildeo
Ferreira cunhado de Ana Nestes siacutetios moravam mais parentes aleacutem daqueles que
tambeacutem residiam em propriedades da regiatildeo e tocavam arrendado No caso de
Raimundo e Joatildeo Ferreira natildeo tive acesso a informaccedilotildees sobre a histoacuteria de aquisiccedilatildeo
e perda dessas aacutereas Imagino que este silenciamento seja decorrente dos conflitos
territoriais que antecederam esta pesquisa com a grupo conforme abordaremos no
segundo capiacutetulo Apesar disso membros da comunidade comentam saudosos sobre
a relevacircncia da dinacircmica de tracircnsito dos parentes entre estas aacutereas periacuteodo no qual
havia em torno de oitenta pessoas da famiacutelia morando na regiatildeo de Guaiacutera e de Terra
RoxaPR
48
FIGURA 6 Excerto Genealoacutegico 3
49
As aacutereas do ldquotio Raimundatildeordquo e de Joatildeo Ferreira atualmente natildeo constam no
processo de reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo do territoacuterio que tramita no INCRA A natildeo
indicaccedilatildeo dessas duas aacutereas parece ter sido uma estrateacutegia da comunidade na
produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico Esta estrateacutegia como pude
compreender estaacute relacionada aos conflitos gerados pela produccedilatildeo do primeiro
relatoacuterio sobre a comunidade Assim os quilombolas entenderam que era mais
seguro neste segundo relatoacuterio natildeo indicar as duas aacutereas que natildeo satildeo contiacuteguas ao
territoacuterio atual o que poderia reestabelecer a animosidade entre a comunidade e os
proprietaacuterios vizinhos Atualmente o procedimento do INCRA utiliza como base
territorial as aacutereas indicadas pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico que foram
adquiridas por Manoel Ciriaco e Geraldo dos Santos as quais somavam 15 alqueires
contiacuteguos dos quais soacute restam atualmente 85 alqueires O relatoacuterio indica tambeacutem a
aquisiccedilatildeo de uma aacuterea complementar para que possa haver meios de reproduccedilatildeo
social cultural e econocircmica das famiacutelias que atualmente permanecem na
comunidade42
Em 1992 Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano ndash filhos de Manoel Ciriaco do
primeiro casamento ndash migram de GuaiacuteraPR com suas famiacutelias As famiacutelias de
Olegaacuterio e Joatildeo Loriano foram para a TarabaiSP proacuteximo a Presidente PrudenteSP
e Jovelina foi com a famiacutelia para ColiacutederMS O ldquoVelho Maneacuterdquo havia falecido em 1989
Em 1993 Geraldo dos Santos primo de Manoel que havia comprado lote limiacutetrofe ao
seu vende seus cinco alqueires e migra com sua famiacutelia para Satildeo Jorge do
PatrociacutenioPR municiacutepio proacuteximo onde adquiriu aacuterea maior mas de menor qualidade
pois a terra mais arenosa Eva me contou o motivo de seu pai Geraldo ter preferido
sair de Guaiacutera em 1993 e vender seus cinco alqueires
Dandara Eu queria perguntar tambeacutem para a Sra sobre a saiacuteda do seu pai daqui ele foi muito pressionado pra sair pra vender
Eva Ele quis sair Dandara ele natildeo quis ficar aqui mais pouca terra muito pouco com raiva tambeacutem quando os vizinhos ia limpar a estrada rancava tudo as coisas que ele plantava na beira da estrada ele ficava muito nervoso Ele pegou e natildeo quis viver aqui mais natildeo foi embora caccedilou um outro lugar pra ele morar que um lugar que era tudo gente pobre natildeo queria morar perto
42 Esta aacuterea natildeo necessita de acordo com o procedimento ser limiacutetrofe agrave comunidade e seraacute adquirida
atraveacutes do instrumento de desapropriaccedilatildeo por interesse social pelo INCRA Aleacutem das famiacutelias que atualmente moram na comunidade haacute a previsatildeo de que vaacuterias dentre as que migraram de GuaiacuteraPR poderatildeo caso haja esta ampliaccedilatildeo do territoacuterio retornar e se juntar ao grupo Esta previsatildeo de retorno eacute utilizada para calcular o tamanho da aacuterea adicional conforme abordo no segundo capiacutetulo
50
de gente rica (risos) Daiacute ele pegou e foi embora e chegou laacute e falou que era tudo pobre tambeacutem Soacute que sofreu muito tambeacutem laacute hein
Foram muitas as dificuldades que superaram conforme narram para
permanecerem em uma regiatildeo na qual se sentem discriminados racial e socialmente
Dentro deste processo histoacuterico de deslocamento e estruturaccedilatildeo das famiacutelias no
Paranaacute o casal Manoel Ciriaco dos Santos e Ana Rodrigues dos Santos ocupa o lugar
de casal fundador e aglutinador das relaccedilotildees de parentesco da comunidade
quilombola organizada a partir de GuaiacuteraPR mas que abrange famiacutelias que estatildeo
fora do territoacuterio Esta estruturaccedilatildeo das famiacutelias na regiatildeo de GuaiacuteraPR tambeacutem
portanto foi passageira para alguns nuacutecleos familiares e mais prolongada para outros
Atualmente as famiacutelias que continuaram no territoacuterio em GuaiacuteraPR lutam para
garantirem o direito de laacute permanecerem e para que seja ampliada a aacuterea da
comunidade a qual foi sendo reduzida ao longo das uacuteltimas deacutecadas com o processo
de mecanizaccedilatildeo da agricultura da perda dos meios de trabalho da valorizaccedilatildeo
comercial da terra na regiatildeo e da saiacuteda dos ldquoparentesrdquo
Manoel e Ana o casal que estrutura o modo de elaboraccedilatildeo da narrativa
histoacuterica e da reivindicaccedilatildeo de direitos pela comunidade atualmente eram primos de
segundo grau jaacute que Joana avoacute de Ana Rodrigues era irmatilde de Izidora matildee de
Manoel
FIGURA 7 Documentos de identidade de Manoel nascido em 16031920 e Ana nascida em 26071930 ambos no municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG (Comarca de Serro)
51
Sobre as dificuldades vivenciadas quando as famiacutelias se estabeleceram em
GuaiacuteraPR e do aperto que viveram Eva filha de Geraldo Domingos dos Santos
destacou
Eva Nossa Senhora Noacutes passou um aperto aqui Aqui o que noacutes passemo aqui Eu acho mesmo o que noacutes comia era peixinho assado no fogo A muieacute que morava assim vizinha aqui quando ela colhia milho e levava milho na casa dela pra moer fazer fubaacute que noacutes comia polenta com radiche do mato serraia nem a gordura pra comer natildeo tinha Tinha dia que noacutes natildeo tinha um gratildeo de accediluacutecar Quando eles trabalhava assim que colhia as coisa pra vender daiacute jaacute comprava aproveitava que o dinheirinho era pouco mesmo depois o dinheiro natildeo dava entatildeo jaacute aproveitava e comprava de uma vez Comprava meio saco de accediluacutecar aiacute entrava pura abeia dentro de casa pura abeia (risos) Quando acabava daiacute meu pai socava poacute no pilatildeo pra noacutes fazer cafeacute de manhatilde cedo Eu falei assim ldquoeacute minha fia hoje natildeo ensina mais nada disso vocecircs nem conhece o que que eacute issordquo
Nos termos de Geralda filha de Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues que saiu
dos siacutetios haacute muitos anos e atualmente mora na periferia de Guaiacutera (Vila Eletrosul)43
eles sempre trabalharam para enriquecer os coroneacuteis mas para os negros natildeo
sobrava nada A histoacuteria de seu marido Antocircnio conhecido por Guaraacute44 segundo ela
eacute um exemplo disso ldquopara mim o meu marido foi igual escravo para sofrer o que ele
sofreu As crianccedilas hoje tecircm liberdade Noacutes natildeo noacutes tinha que trabalhar e ningueacutem
tinha doacute E se fosse negro mais aindardquo A experiecircncia da escravidatildeo natildeo fica restrita
portanto a um passado longiacutenquo pois se perpetuou para aleacutem de sua instituiccedilatildeo
oficial por meio da reproduccedilatildeo de um sistema baseado na exploraccedilatildeo continuada e
na discriminaccedilatildeo racial Haacute uma perspectiva bem proacutexima na comunidade quilombola
Aacutegua Morna no estado do Paranaacute registrada no relatoacuterio antropoloacutegico da
comunidade
() Natildeo vinculam a escravidatildeo somente ao periacuteodo preacute-aboliccedilatildeo mas a percebem em tempo muito mais recente Ela estaacute relacionada ao trabalho para os ldquode forardquo e agrave experiecircncia da negritude que os colocaria constantemente em uma situaccedilatildeo de poder desprivilegiada () Nas falas dos moradores locais a escravidatildeo se confunde com a discriminaccedilatildeo relacionada ao racismo e agrave pobreza Muito mais que uma oposiccedilatildeo entre o tempo da escravidatildeo e o tempo da liberdade com uma delimitaccedilatildeo clara entre ambos
43 Outra importante caracteriacutestica sobre a caracterizaccedilatildeo negativa de Guaiacutera eacute que mesmo sendo um
municiacutepio de porte pequeno apresenta um dos maiores iacutendices de homiciacutedio do paiacutes (WAISELFISZ 2013) A Vila Eletrosul eacute tida como um dos bairros mais perigosos de Guaiacutera com vaacuterios casos de
homiciacutedios e apreensotildees Localizada nas proximidades do Rio Paranaacute eacute por laacute que entra parte da droga e do contrabando jaacute que por meio deste desvio evita-se a entrada principal saindo de Salto del Guairaacute no Paraguai para Guaiacutera onde se concentra a fiscalizaccedilatildeo 44 Irei utilizar o apelido de Guaraacute para o distinguir de ldquofinado Antocircniordquo irmatildeo de Geralda
52
dada pela assinatura da Lei Aacuteurea em Aacutegua Morna encontramos a escravidatildeo simultaneamente percebida como una e como tripartida haacute a experiecircncia dos antepassados trazida principalmente atraveacutes do relato de Benedita e da qual a caminhada ndash e a accedilatildeo da Princesa Isabel ndash os libertou haacute a opressatildeo mais recente dos antigos jaacute no proacuteprio territoacuterio mas sujeitos agrave desigualdade que marca as relaccedilotildees com os ldquobrancosricosrdquo e por fim a vivecircncia da discriminaccedilatildeo e exploraccedilatildeo no trabalho que permanece na atualidade em que escravidatildeo se aproxima de racismo (PORTO 2008 p 71-72)
A lembranccedila da ausecircncia de acesso a recursos baacutesicos estaacute sempre presente
nas falas da Geralda
Geralda Noacutes tocava um banhado de um homi laacute e eu de a peacute pra leva comida pro Zeacute Maria e aiacute ele falou que tinha dia que ele olhava ateacute na terra pra comer de tanta fome que natildeo comia nada de manhatilde que natildeo tinha nada pra comer Aiacute eu chegava correndo minha matildee pegava um pedacinho de carne eu pegava na matildeo e iacutea correndo leva a marmita comigo longe Ele falava que natildeo tava aguentando mais de fome Ixi minha filha noacutes cheguemo pra aqui ele amarrava roupa de cipoacute num tinha roupa menina () Aiacute a minha sogra ela falava assim quando ele corria da minha sogra ela falava ldquoparece que ocecirc taacute que nem o capeta correndo da cruzrdquo correndo que natildeo tinha roupa Era tudo amarrado de cipoacute
Uma vez quando Geralda estava esquentando fogo quando era moccedila
ocorreu um acidente
Geralda Ah a gente era pobre meu pai comprava aquele paninho bem fininho que a gente falava ldquocarne secardquo aiacute sobrou o resto que minha matildee fez o colchatildeo pegou e mandou meu irmatildeo fazer uma calccedila pra mim Eles ainda ficaram tirando sarro que a calccedila pantalona aiacute as minhas irmatildes tavam ralando uma mandioca pra fazer farinha pra passar Satildeo Joatildeo e eu fiquei esquentando fogo quando eu vi o fogo pegou na minha perna aiacute a minha irmatilde correu e pegou um balde drsquoaacutegua e jogou
Haacute tambeacutem uma outra histoacuteria a da fogueira do dia de Satildeo Joatildeo que me foi
contada por Adir logo que nos encontramos na minha primeira ida a campo ainda na
rodoviaacuteria em sua famiacutelia haacute pessoas como seu irmatildeo Zeacute Maria que jaacute eacute falecido e
tambeacutem tios e tias que eram capazes de andar descalccedilos em cima da brasa da
fogueira de Satildeo Joatildeo Para isso acrescentou Adir eacute preciso ter feacute Assim se a
fogueira aparece nas narrativas de uma situaccedilatildeo de extrema falta de recursos ela
tambeacutem retorna nas memoacuterias de uma famiacutelia que tem tanta feacute que permite que
ocorram milagres como caminhar na brasa ardente sem se queimar
Ao mesmo tempo em que destacam as agruras de um passado difiacutecil um
tempo em que o frio entrava pelas frestas das casas feitas de coqueiro tambeacutem
53
aparece em seus relatos no entanto o sentimento de que havia muito mais uniatildeo no
grupo de parentes A comemoraccedilatildeo do dia de Satildeo Joatildeo por exemplo envolvia o
preparo coletivo da farinha de mandioca e do beiju45 Tambeacutem do manuseio da
mandioca se retirava o polvilho que era utilizado para o preparo de biscoitos46 No
siacutetio em Guaiacutera ressaltam que se hoje moram apenas vinte e tantas pessoas
somavam na deacutecada de 1970 mais de 80 parentes
O iniacutecio da fixaccedilatildeo do grupo em Guaiacutera eacute ressaltado em todas as falas dos
adultos como um tempo de trabalho duro para homens e mulheres Infacircncia difiacutecil
onde produziam quase tudo que consumiam natildeo tinham nem um cobertor nem um
chinelo roupa era produto de luxo Viviam da agricultura de subsistecircncia produccedilatildeo e
criaccedilatildeo de animais para comercializaccedilatildeo arrendamento de terras para derrubada e
plantio atividades que ampliavam o espaccedilo de trabalho para aleacutem das aacutereas
adquiridas Por outro lado destacam a uniatildeo e a solidariedade entre parentes O lote
de Manoel Ciriaco era o ponto de referecircncia para os demais entre os quais havia uma
forte sociabilidade relaccedilotildees de ajuda muacutetua e momentos de diversatildeo do grupo ao
som de vaacuterios instrumentos produzidos por eles mesmos
FIGURA 8 Foto do acervo da famiacutelia tirada na cidade em um ldquoestuacutediordquo (da direita para a esquerda) Seu Davi (esposo de Jovelina) sanfoneiro da famiacutelia com um casal de vizinhos e a esposa de seu primo Maria Madalena com seu filho Antocircnio (marido de Geralda)
45 O beiju eacute ldquouma espeacutecie de patildeo de mandiocardquo Para descriccedilatildeo do modo de preparo tradicional ver a
dissertaccedilatildeo de Andreacuteia Cambuy (CAMBUY 2011 103-105) 46 Estes satildeo alimentos que remetem ao jeito de viver do passado e que satildeo feitos agraves vezes Eles me
foram apresentados pelo meu interesse nas preparaccedilotildees tradicionais mas atualmente envolvem a compra dos ingredientes jaacute prontos do mercado As peccedilas da antiga farinheira estatildeo ainda guardadas mas atualmente natildeo possuem um espaccedilo fiacutesico onde possam reativaacute-la como desejam
54
O grupo de parentes em Guaiacutera engajou-se tambeacutem no plantio e
beneficiamento de hortelatilde (oacuteleo) produccedilatildeo de milho mandioca algodatildeo arroz e o
trabalho como diaristas para os vizinhos-empregadores Tais leques de atividades
contribuiacuteram para um certo grau de autonomia para os membros da comunidade
Poreacutem contam como houve uma grande mudanccedila local com o processo de
mecanizaccedilatildeo da agricultura de modo que os proprietaacuterios vizinhos passaram a natildeo
se interessar pelo arrendamento jaacute que toda a aacuterea de suas propriedades poderia ser
explorada A reduccedilatildeo da aacuterea de trabalho disponiacutevel implicou em grande dificuldade
para a manutenccedilatildeo das famiacutelias que passaram a se deslocar novamente a partir da
deacutecada de 1990
FIGURA 9 Fluxo Migratoacuterio47 FONTE A autora (2015)
Em 1989 ocorre tambeacutem o falecimento de Manoel Ciriaco que era uma
lideranccedila na articulaccedilatildeo das famiacutelias provenientes de Minas Gerais na regiatildeo de
GuaiacuteraPR Ele desempenhava ainda a sua autoridade paterna na condiccedilatildeo de
proprietaacuterio legal da aacuterea de sua famiacutelia (SEYFERTH 1985) coordenando o trabalho
47 A representaccedilatildeo cartograacutefica atraveacutes de linhas de migraccedilatildeo tem um objetivo didaacutetico neste momento
do texto Como veremos no proacuteximo subitem as discussotildees do antropoacutelogo Tim Ingold (2007) problematizam este tipo de representaccedilatildeo do deslocamento atraveacutes da linha reta A representaccedilatildeo com base no autor estaria muito mais proacutexima de um emaranhado de linhas representando o processo do movimento por meio do qual se descobre o proacuteprio caminho
55
familiar e centralizando o contato com pessoas externas Com sua morte deixou
diacutevidas para os filhos que ficaram em uma situaccedilatildeo econocircmica difiacutecil aleacutem de terem
perdido este papel de referecircncia exercido pelo pai48
Este processo de saiacuteda dos parentes de Guaiacutera eacute lembrado como um
momento muito difiacutecil e marcante por aqueles que ficaram Segundo Joaquim noacutes
fiquemo aqui abandonado Atualmente soacute restou destes quatro lotes 85 alqueires do
lote de Manoel Ciriaco sendo que os demais foram vendidos Satildeo vaacuterios os destinos
apontados em relaccedilatildeo aos parentes que migraram na deacutecada de 1990 De Guaiacutera
parentes foram para Salto del Guayra (Paraguai) Satildeo Jorge do PatrociacutenioPR
AssisPR para a regiatildeo Presidente PrudenteSP e uma famiacutelia retornou para Santo
Antocircnio do ItambeacuteMG De volta para regiatildeo de Presidente PrudenteSP onde jaacute
haviam morado na deacutecada de 1960 foram os irmatildeos mais velhos filhos do primeiro
casamento de Manoel Ciriaco com Maria Olinda ndash Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano
ndash aleacutem de Eurides filha de Manoel com Ana Rodrigues
O siacutetio onde residem atualmente fica distante 20 km da sede do municiacutepio de
Guaiacutera e mais proacuteximo da divisa com o municiacutepio vizinho Terra Roxa Segundo me
contaram a permanecircncia ali soacute foi possiacutevel porque resistiram agraves pressotildees dos
proprietaacuterios vizinhos os quais satildeo na maioria gauacutechos descendentes de imigrantes
italianos e alematildees que queriam comprar suas terras e retiraacute-los do bairro rural O
nuacutemero de moradores variou no periacuteodo que estive em campo e a perspectiva do
grupo eacute que aumente com a possibilidade de retorno dos parentes em decorrecircncia da
possiacutevel ampliaccedilatildeo do territoacuterio prevista no processo de titulaccedilatildeo quilombola pelo
INCRA (Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria)49
Segundo Geralda haacute uma divisatildeo natildeo verbalizada entre um ldquoMaracaju dos
Pretosrdquo e um ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo nome pelo qual eacute conhecido o bairro rural onde
vivem A convivecircncia (ou a falta dela) com os gauacutechos eacute um elemento importante para
compreender a manutenccedilatildeo das fronteiras do grupo a partir de uma perspectiva
48 Desde sua morte e de sua esposa Ana Rodrigues em 1994 o inventaacuterio da propriedade ainda natildeo
foi realizado havendo a observaccedilatildeo por parte dos herdeiros inclusive dos que natildeo moram mais no siacutetio em GuaiacuteraPR de um acordo interno para a organizaccedilatildeo do uso da terra entre eles Importante ressaltar que a natildeo realizaccedilatildeo do inventaacuterio eacute uma estrateacutegia importante na organizaccedilatildeo camponesa para evitar a fragmentaccedilatildeo do lote original (SEYFERTH 1985) 49 A questatildeo de quem pode requerer o direito a morar no territoacuterio a partir de relaccedilotildees de pertencimento comeccedila a ser trabalhada pelas lideranccedilas do grupo jaacute que a fase de cadastramento das famiacutelias pelo INCRA eacute a proacutexima etapa do procedimento apoacutes a publicaccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) prevista para 2015
56
poliacutetica e relacional de grupos eacutetnicos50 As relaccedilotildees com seus vizinhos foram
estabelecidas majoritariamente pela mediaccedilatildeo de relaccedilotildees de trabalho informais
Antes do conflito desencadeado com o processo no INCRA mantinham relaccedilotildees
proacuteximas apesar de os quilombolas sempre terem percebido as manifestaccedilotildees de
preconceito racial
Geralda Eu natildeo gosto do Maracaju natildeo gosto daquelas turma Menina porque o que noacutes viveu ali Vocecirc chega na igreja noacutes natildeo vai na Igreja que eacute pra rezar Natildeo eacute pra pessoa pensar olhar laacute no padre Eles ficava olhando se vocecirc tava bem vestido se vocecirc tava limpo Hum negro Negro pra eles natildeo presta Eles fazia amizade com noacutes assim de frente mas eles nenhum gostava de noacutes a gente via na cara a gente natildeo eacute besta Noacutes convivia desde pequeno junto com eles ali Eu natildeo tenho saudade natildeo () Porque eu gosto de morar no lugar que eacute humilde neacute que a gente sente bem Vocecirc mora no lugar pro resto da vida se vocecirc morrer ali vocecirc se sente bem Aqui eacute assim (Vila Eletrosul) tem gente metido mas aqui tem gente legal E a amizade que eu tenho aqui dentro dessa Eletrosul Aqui tem muita coisa mas tanta amizade que eu tenho aqui com crianccedila com gente velho com gente novo eacute rapaz eacute moccedila eacute tudo Laacute no Maracaju natildeo eu natildeo tinha amizade Noacutes ia no baile vocecirc taacute pensando que os rapaz de laacute danccedilava com noacutes Eu posso conta procecirc que eu natildeo dancei com um rapaz laacute dentro do Maracaju Nenhum Eles natildeo danccedilava com noacutes que era preto Aiacute vocecirc vai viver num lugar desse e vocecirc vai ficar feliz
O mapa abaixo mostra a porccedilatildeo de terra da comunidade cercada pelas
propriedades vizinhas De acordo com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico produzido na
comunidade (TERRA AMBIENTAL 2013) pode-se dividir a aacuterea atual em quatro
setores O setor 1 e o setor 2 na parte superior do mapa em verde claro
correspondem agrave aacuterea onde se concentram as casas dos moradores o accedilude a
criaccedilatildeo de pequenos animais e a plantaccedilatildeo de verduras para consumo e comeacutercio
Os setores 3 e 4 satildeo de plantaccedilotildees dos proacuteprios quilombolas de mandioca milho
aveia soja entre outros Depois do setor 4 haacute um pequeno pedaccedilo de 15 alqueires
que foi vendido para o vizinho Jacomine em 1992 (quando da saiacuteda dos trecircs irmatildeos
mais velhos que foram para Presidente PrudenteSP) e por fim a aacuterea de reserva
legal da propriedade
50 O enfoque nas fronteiras nos mecanismos necessaacuterios para criaacute-las e mantecirc-las e na diferenciaccedilatildeo estrutural dos grupos em interaccedilatildeo tornam-se elementos centrais para as anaacutelises que tomam a autoatribuiccedilatildeo como traccedilo fundamental da etnicidade conforme reflexatildeo proposta por Barth acerca do modo de constituiccedilatildeo dos limites sociais dos grupos eacutetnicos (BARTH 2011)
57
FIGURA 10 ldquoDivisatildeo setorial da Comunidade Quilombola Manoel Ciriacordquo FONTE Terra Ambiental Relatoacuterio Antropoloacutegico Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos Guaiacutera ndash PR (p88)
58
Se o grupo familiar saiu de Minas Gerais ateacute o Paranaacute visando a reinserccedilatildeo
social em melhores condiccedilotildees de vida e fugindo do racismo e da marginalizaccedilatildeo
percebe-se que as estruturas de opressatildeo se reproduziram novamente Nestas cinco
deacutecadas em que estatildeo vivendo no Paranaacute natildeo houve a criaccedilatildeo de laccedilos de
parentesco com os vizinhos e a tendecircncia endogacircmica deste grupo familiar que jaacute
ocorria em Minas Gerais acentuou-se Geralda por exemplo eacute casada com Antocircnio
cujo pai Joseacute dos Santos eacute seu primo de 2ordm grau O casamento entre parentes
aparece entatildeo como fator constitutivo da manutenccedilatildeo da coesatildeo do grupo e do
territoacuterio tendo em vista o histoacuterico de deslocamentos (MELLO 2012 p 24) No
entanto para aleacutem de caracteriacutestica proacutepria da organizaccedilatildeo social o racismo e a
discriminaccedilatildeo do entorno reforccedilaram a fronteira do casamento entre brancos e negros
A partir de 2005 com a possibilidade de reivindicarem a identidade
quilombola o estigma do racismo que enfrentaram e ainda enfrentam pocircde ser
recolocado como uma afirmaccedilatildeo positiva de ser negro e uma releitura da proacutepria
trajetoacuteria do grupo Neste sentido
O ato de aquilombar-se ou seja de organizar-se contra qualquer atitude ou sistema opressivo passa a ser portanto nos dias atuais a chama reacesa para na condiccedilatildeo contemporacircnea dar sentido estimular fortalecer a luta contra a discriminaccedilatildeo e seus efeitos Vem agora iluminar parte do passado aquele que salta aos olhos pela enfaacutetica referecircncia contida nas estatiacutesticas onde os negros satildeo maioria dos socialmente excluiacutedos Quilombo vem a ser portanto o mote principal para se discutir parte da cidadania negada (LEITE 2000 p 349)
Tal categoria natildeo correspondia a como os proacuteprios grupos se
autodenominavam de modo que essa identidade quilombola passa a ser politicamente
construiacuteda com base na mobilizaccedilatildeo de elementos histoacutericos e culturais preacute-
existentes em cada caso especiacutefico Ao inveacutes de querer estabelecer portanto uma
ldquouma lista de traccedilos de natureza racial ou cultural originada da interpretaccedilatildeo
historiograacutefica sobre os quilombos da colocircnia ou do Impeacuteriordquo (ARRUTI 2006 p 39-
40)51 deve-se buscar perceber quem satildeo os grupos que se mobilizam a partir desta
51 Tais criteacuterios riacutegidos baseados em estereoacutetipos satildeo defendidos pelos que se opotildeem aos direitos destes grupos sociais e tecircm a despeito do reconhecimento legal do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo uma repercussatildeo significativa no imaginaacuterio geral impactando nas expectativas colocadas em relaccedilatildeo por exemplo ao teor dos relatoacuterios antropoloacutegicos
59
identidade tomando como base o criteacuterio de autoidentificaccedilatildeo como reconhecido pelo
ordenamento juriacutedico brasileiro52
Com a inserccedilatildeo do artigo 68 no Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais
Transitoacuterias no acircmbito da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 a literatura antropoloacutegica
sobre quilombos vem destacando a diversidade de estrateacutegias e saiacutedas produzidas
pelos grupos sociais que passaram a se mobilizar politicamente e a se reconhecerem
a partir da ldquometaacutefora do quilombordquo (OrsquoDWYER 2011 p 120) Esta diversidade de
experiecircncias sociais dos quilombos implica na necessidade de ressemantizar o
conceito histoacuterico e compreender processos especiacuteficos como o caso da Comunidade
Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos
Nesta experiecircncia social a identidade quilombola eacute pensada a partir de uma
origem comum que se desdobra por meio do movimento de deslocamento do grupo
em uma trajetoacuteria de resistecircncia Para o reconhecimento de trajetoacuterias histoacutericas
coletivas como esta como aponta o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho eacute
muito importante o processo de amadurecimento teoacuterico que sai da abordagem da
ldquoantropologia das perdasrdquo para anaacutelises dos processos de emergecircncia eacutetnica jaacute que
ldquoo que seria proacuteprio das identidades eacutetnicas eacute que nelas a atualizaccedilatildeo histoacuterica natildeo
anula o sentimento de referecircncia agrave origem mas ateacute mesmo o reforccedilardquo (OLIVEIRA
FILHO 1998 p 64) Assim eacute necessaacuterio olhar para o processo que gerou a
territorialidade reconhecendo a historicidade a dinamicidade bem como a variedade
de estrateacutegias dos grupos quilombolas
12 A MEMOacuteRIA DOS CAMINHOS E OS CAMINHOS DA MEMOacuteRIA
ldquoA histoacuteria de nosso bisavocirc escravo chamado negro Joseacute Joatildeo Paulo
casado com a negra Maria Joana O lugar que eles moravam no
Estado de Minas Gerais era a cidade de Santo Antocircnio Itambeacute do
Serro aonde eles eram escravizados pelo sinhocirc na eacutepoca da
escravidatildeo Eles eram escravizados no garimpo tirano ouro e pedras
preciosas Ele e sua esposa naquela eacutepoca trabalhavam junto no
52 O criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo atualmente estaacute consagrado em acircmbito internacional e nacional por uma seacuterie de dispositivos normativos Neste sentido destaca-se a convenccedilatildeo 169 da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho sobre Povos Indiacutegenas e Tribais que estabelece em seu artigo 1ordm ldquoA consciecircncia de sua identidade indiacutegena ou tribal deveraacute ser considerada como criteacuterio fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposiccedilotildees da presente Convenccedilatildeordquo Esta convenccedilatildeo foi ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo nordm 143 de 2062002 e entrou em vigor em 2003 No que tange agrave questatildeo especificamente quilombola o Decreto Federal 4887 de 2003 em seu artigo 2ordm sect 1ordm estabelece que ldquoPara os fins deste Decreto a caracterizaccedilatildeo dos remanescentes das comunidades dos quilombos seraacute atestada mediante autodefiniccedilatildeo da proacutepria comunidaderdquo
60
garimpo e tiveram filhos e filhas Seus filhos eram negra Maria
Eduarda negra Dolarina Domingos dos Santos negra Jorgina
Domingos dos Santos negro Joaquim Domingos dos Santos negro
Sebastiatildeo Dama Domingos dos Santos e negro Raimundo Domingos
dos Santos Eles criavam seus filhos com restos que seu sinhocirc dava e
agraves vezes ficavam ateacute sem comer para render mais porque a comida
era pouca ateacute aacutegua era retirada da mina eles tinham que beber aacutegua
suja para poder ateacute cozinhar Aiacute se um negro chegasse perto dessa
mina eles era amarrado e chicotiado e ficavam preso numa das parte
da senzala e ficavam muitos dias ateacute sem comer e doentes por causa
das chicotiadas Seu lugar de descanso eram chamados de lapa
chamado de caverna ou casa de pedra Ali se abrigavam em muitos
para poder aquecer do frio porque natildeo tinham roupa nem sapatos
andavam descalccedilos e assim criavam os seus filhos como meu avocirc
Joaquim Paulo dos Santos que se casou com Maria Zidora dos
Santos que tiveram seus filhos chamados Manoel Ciriaco dos Santos
Sebastiatildeo Vicente dos Santos Ana Raimunda dos Santos Na eacutepoca
que eles se casaram eles natildeo eram mais escravos jaacute eram alforriados
e trabalhavam para os senhores do retiro nos garimpo e na lavoura de
cana e cafeacute A cana para poder fazer a cachaccedila a rapadura e o
melado Eles vivia disso mais trabalhava mais natildeo tinha valor o seu
serviccedilo e moravam tambeacutem na lapa (casa de pedra) que nem foram
criados nos seus costumes porque natildeo era valorizado e ali criavam
seus trecircs filhos junto no trabalho da lavoura e alimentavam Aiacute casou
um dos seus filhos o que era meu pai Manoel Ciriaco dos Santos que
casou com Maria Olina do primeiro casamento que teve quatro filhos
com sua primeira esposa Os filhos Jovelina Ciriaco dos Santos Luiza
Ciriaco dos Santos Olegario da Silva e Joatildeo Loriano dos Santos E aiacute
foi trabalhar para poder criar seus quatro filhos no Estado de Minas
Gerais em Santo Antonio do Itambeacute do Serro O meu pai trabalhava
no retiro dos fazendeiros com carpi lavoura de mandioca retirando
carvatildeo no garimpo do ouro Transportava cachaccedila o queijo rapadura
carne secada no sol farinha de mandioca milho O transporte era feito
na cangaia no lombo de burro que era o trabalho que meu pai fazia
Era pra quem trabalhava que ele chamava de seus fulanos que eram
os fazendeiros para sustentar a sua primeira famiacutelia Com o passar do
tempo o meu pai perdeu a minha irmatilde que faleceu com 8 anos laacute em
Minas Gerais Ela se chamava Luiza Ciriaco dos Santos Meu pai ficou
viuacutevo ai ele ficou sozinho para poder cuidar dos filhos aiacute resolveu
casar de novo com a minha matildee Ana Rodrigues dos Santos aiacute tiveram
quatro filhos laacute no Estado de Minas Gerais Eurides dos Santos
Sebastiana Feliciana dos Santos Antocircnio Gregoacuterio dos Santos e Joseacute
Maria Gonccedilalves Aiacute eu sai dali com minha matildee e meu pai e meus
irmatildeos eu tinha seis meses de vida Aiacute naquela eacutepoca meu pai deixou
o meu irmatildeo com sete anos o Joatildeo Loriano dos Santos Aiacute nos fomos
para o Estado de Satildeo Paulo na cidade de Caiabuacute perto de Presidente
Prudente no ano de 1956 municiacutepio de Martinoacutepolis Meus pais
tiveram mais dois filhos Joaquim dos Santos e Geralda dos Santos Laacute
meu pai trabalhava torrando farinha para meu tio aiacute ele foi pra uma
fazenda arrendocirc uma terra de fazendeiro aiacute prantocirc amendoim
algodatildeo feijatildeo aiacute depois de oito anos noacutes saiacutemos de laacute e vinhemos
para o Paranaacute em 1964 na cidade de Guairaacute no Patrimocircnio do
Maracaju dos Gauacutechos aonde noacuteis residimos ateacute hoje Mais na
chegada aqui era tudo mato aiacute eu meu pai e meus irmatildeos mais velhos
ajudamos meu pai a caccedilar e derrubar a mata Fizemos uma barraca de
lona e acampamos no meio do mato Aiacute com o tempo fizemos um
rancho com taubinha de cedro e cercado de coqueiro e no chatildeo
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passava argila misturada com esterco de vaca Noacuteis dormia no chatildeo e
minha matildee cozinhava no fogatildeo de barro mais mesmo assim noacutes
passava necessidade tinha dia que noacutes natildeo tinha nem o angu para
comer nem feijatildeo Caccedilava caccedila do mato pescava assava e comia
porque a gordura noacuteis natildeo tinha Minha matildee lavava nossa roupa No
lugar do sabatildeo porque natildeo tinha usava cinza de madeira e lavava na
mina Aiacute com o tempo noacuteis fomo roccedilando fomo preparando a terra e
aiacute saiu a lavoura que noacuteis comecemos a plantar Com o tempo tivemos
mais trecircs irmatildeos Paulo dos Santos Adir Rodrigo dos Santos e Joatildeo
Aparecido dos Santos Com o tempo o meu irmatildeo Paulo ele era
deficiente mental aiacute veio a falecer com 15 anos Aiacute depois faleceu
Manoel Ciriaco dos Santos com 69 anos Aiacute depois faleceu Antocircnio
Gregoacuterio dos Santos faleceu com 35 anos depois faleceu Sebastiana
Feliciana dos Santos depois faleceu Ana Rodrigues dos Santos aiacute
depois que meus pais e meus irmatildeos faleceram ficamos soacute nois os
filhos Continuamos lidando com a terra mais com muita dificuldade
Passamos fome e humilhaccedilatildeo pelos grande fazendeiro porque na
eacutepoca que meu pai faleceu deixou muita diacutevida por causa da lavoura
aiacute comeccedilamos a trabaiaacute por dia para poder sustentar nossas famiacutelia e
assim mesmo tinha muita dificuldade para pode pagar as contas Por
causa disso noacutes nunca pudemos ir pra frente soacute ficamos pra trais aqui
nesse lugar passamos a trabaiaacute mais por dia pros outros nas lavoura
de mandioca para pequeno e grande agricultor para podecirc pagar as
nossas contas e mesmo assim natildeo conseguimos porque se pagasse
as contas ficava sem comer Trabalhamos no rancadatildeo de mandioca
para poder se alimentar Com muita dificuldade trabalhamos dias
mecircs anos e ateacute hoje continuamos no mesmo serviccedilo sem futuro pra
noacutes e nossos filhos Isto eacute um pouco da nossa histoacuteria da nossa
comunidade e o contador da histoacuteria eacute o negro Joseacute Maria Gonccedilalves
filho do Manoel Ciriaco dos Santosrdquo (Joeacute Maria Gonccedilalves) (GRUPO
DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA 2010 p 149-151)
A fala apresentada acima eacute central para este trabalho por ser a primeira
narrativa do grupo para agentes do Estado que foi registrada53 O finado Zeacute Maria eacute o
narrador perante os membros do Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM)54 e resume
a trajetoacuteria histoacuterica da comunidade Ele era na eacutepoca o mais velho dentre os irmatildeos
que permaneceram no siacutetio em GuaiacuteraPR depois da saiacuteda da maior parte das
famiacutelias a partir da deacutecada de 1990 Com este decreacutescimo de famiacutelias e com a morte
dos mais velhos que vieram de Minas (tendo como referecircncia principal os pais Manoel
Ciriaco falecido em 1989 e Ana Rodrigues em 1994) os adultos que ficaram na
comunidade se tornaram os portadores das lembranccedilas daqueles que vivenciaram
esta histoacuteria familiar de movimento Zeacute Maria por exemplo saiu de Minas Gerais com
53 Este relato foi gravado em 15 de janeiro de 2007 Disponiacutevel em httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=69 Acesso em 30042014 54 Grupo Intersecretarial criado pelo governo do estado do Paranaacute em 2005 para realizar levantamento de comunidades quilombolas no estado Foi extinto em 2010
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apenas seis meses de vida Dentre os irmatildeos mais novos que satildeo os que
permanecem em Guaiacutera atualmente Joaquim (55) e Geralda (53) nasceram no estado
de Satildeo Paulo proacuteximo a Presidente Prudente ndash no municiacutepio de CaiabuSP ndash
enquanto Adir (46) e Joatildeo Aparecido (43) nasceram no Pararaacute em Guaiacutera55
Na narrativa acima observa-se que a organizaccedilatildeo dos fatos se daacute de modo
cronoloacutegico e tem iniacutecio com o marco fundamental dos seus bisavocircs casal ancestral
que foi escravizado em Santo Antocircnio Itambeacute do SerroMG Suas lembranccedilas falam
da situaccedilatildeo de pobreza e sofrimento dos antepassados associada a elementos como
o trabalho escravo no garimpo a moradia na senzala a submissatildeo agrave violecircncia fiacutesica
a fome a falta de acesso a roupa e recursos baacutesicos O nascimento de seu pai
Manoel Ciriaco dos Santos em 1920 eacute um acontecimento destacado eacute ele o
personagem central do processo de deslocamento do grupo para o Paranaacute Durante
toda a narrativa destaca os viacutenculos de parentesco nascimentos casamentos e
mortes em uma percepccedilatildeo do tempo baseada na sequecircncia de geraccedilotildees Zeacute Maria
reforccedila que mesmo com o fim da escravidatildeo seus avoacutes continuaram a trabalhar para
os senhores no garimpo e na lavoura de cana e cafeacute tendo se mantido a
desvalorizaccedilatildeo de seu trabalho e a dificuldade de sobrevivecircncia da famiacutelia Indica que
a alforria natildeo trouxe portanto uma mudanccedila significativa para as suas condiccedilotildees de
vida e as relaccedilotildees de trabalho O movimento em etapas eacute iniciado pelas famiacutelias ateacute
chegarem em Guaiacutera onde conquistam novas aacutereas de terra atraveacutes do trabalho duro
em uma histoacuteria de ldquoluta e humilhaccedilatildeordquo O narrador finaliza sua histoacuteria demonstrando
os motivos pelos quais os membros da comunidade natildeo tecircm perspectivas de futuro
pois tal reconfiguraccedilatildeo acaba novamente reproduzindo a opressatildeo
Esta narrativa como todo ato de recordaccedilatildeo deve ser entendida como uma
interpretaccedilatildeo e natildeo como recordaccedilatildeo literal Trata-se da ldquoconstruccedilatildeo de um
lsquoesquemarsquo de uma codificaccedilatildeo que nos permite discernir e por isso recordarrdquo
(CONNERTON 1999 p 30) A autoidentificaccedilatildeo final do narrador como negro bem
como sua insistecircncia em destacar tal caracteriacutestica em relaccedilatildeo aos parentes parece
55 No plano narrativo uma situaccedilatildeo rememorada natildeo seraacute contada a partir de um narrador onisciente
que daacute um testemunho autecircntico e estaacute ldquoacima do desenvolvimento dos fatos mas a partir de um narrador parcial e imerso em seu interiorrdquo permeado portanto pela rede de relaccedilotildees em que se insere o narrador Eacute o processo de visatildeo decorrente do caraacuteter parcial do ponto de vista em sua subjetividade e natildeo os fatos que satildeo vistos o que eacute mais relevante na anaacutelise das narrativas de memoacuterias o que aponta para as condiccedilotildees sociais de sua produccedilatildeo bem como suas articulaccedilotildees com o momento presente (PORTELLI 1996 p 64)
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apontar a percepccedilatildeo do lugar que cabe ao negro nos contextos descritos O aspecto
da resistecircncia do grupo natildeo eacute lido pelo narrador como confronto aberto em relaccedilatildeo agrave
ordem instituiacuteda Resistir eacute de certa forma persistir na reproduccedilatildeo da ldquocampesinidade
como ordem moralrdquo (WOORTMANN 1990) na luta contiacutenua por estar na terra
condiccedilatildeo de sua existecircncia material afetiva e simboacutelica o que aponta para uma
amaacutelgama entre resistecircncia racial e resistecircncia camponesa (RUBERT SILVA 2009)
Na histoacuteria desta famiacutelia portanto o foco do deslocamento natildeo era o urbano
como comum na deacutecada de 1960 mas a possibilidade de reinserccedilatildeo do grupo por
meio da reproduccedilatildeo do trabalho rural Este anseio do grupo pode ser inserido como
desdobramentos de um panorama histoacuterico mais amplo no qual a resistecircncia dos ex-
escravos passou pela consolidaccedilatildeo de uma alternativa camponesa que
() possibilite a autonomia produtiva direcionada tanto para o autoconsumo quanto para diversos circuitos do mercado Essa autonomia produtiva soacute eacute possiacutevel por sua vez mediante a consolidaccedilatildeo de um espaccedilo em que instacircncias de socializaccedilatildeo que no caso satildeo fundamentadas em uma gramaacutetica do parentesco operam a passagem por parte de escravos e ex-escravos da condiccedilatildeo de coisa agrave condiccedilatildeo de pessoa (RUBERT SILVA 2009 p 267)
A busca pela reproduccedilatildeo camponesa destas famiacutelias negras implicou entatildeo
na decisatildeo de saiacuterem de sua regiatildeo origem com o alto custo emocional e econocircmico
que tal escolha gera O antropoacutelogo Klaas Woortmann com importante contribuiccedilatildeo
para os estudos do campesinato demonstrou como a migraccedilatildeo eacute uma praacutetica de
reproduccedilatildeo dos camponeses enquanto condiccedilatildeo para a permanecircncia de parte da
famiacutelia na aacuterea rural Isso porque a migraccedilatildeo definitiva tem como um dos principais
motivos minimizar ou impedir o fracionamento da terra pela heranccedila56 tendo em vista
o processo histoacuterico de reduccedilatildeo da aacuterea do campesinato pelo avanccedilo capitalista
Outro mecanismo para preservar o patrimocircnio familiar eacute o ldquopadratildeo de preferecircncias
matrimoniaisrdquo pelo casamento endogacircmico (WOORTMANN 2009 p 229-230)
praacutetica que era comum nestas famiacutelias negras desde Minas e que se mantiveram no
processo de migraccedilatildeo A definiccedilatildeo de quem dentro da famiacutelia se tornaraacute migrante
passa por praacuteticas como a valorizaccedilatildeo da primogenitura que define a condiccedilatildeo de
ldquoherdeiro preferencialrdquo No caso de Manoel Ciriaco ao passo que Manoel migrou o
irmatildeo mais velho Sebastiatildeo Vicente tornou-se herdeiro da terra da famiacutelia
56 Assim tambeacutem demonstrou o estudo de Galizoni sobre a regiatildeo especiacutefica do Alto Jequitinhonha (MG) como citado na Introduccedilatildeo (GALIZONI 2002)
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Devem migrar todos os filhos de determinada famiacutelia menos o herdeiro Para
os membros de um conjunto de irmatildeos haacute portanto como que duas temporalidades
a continuidade para uns e a descontinuidade para outros Para que uns continuem
sitiantes outros devem deixar de secirc-lo (WOORTMANN 2009 p 233) A migraccedilatildeo
ocorre por meio da rede de parentesco os que migram de uma mesma localidade
tendem a buscar um destino comum Laacute iratildeo constituir redes onde se replica o
casamento entre primos e forma-se um sistema de apoio para novos migrantes
(WOORTMANN 2009 p 234) Conforme expliacutecito no cartaz que seraacute apresentado
abaixo exposto no barracatildeo da comunidade o movimento destas famiacutelias negras eacute
compreendido na memoacuteria do grupo como parte fundamental do processo de
emergecircncia eacutetnica
O iniacutecio da trajetoacuteria de deslocamento da comunidade eacute identificado no
cartaz57 abaixo em referecircncia ao traacutefico de africanos para serem comercializados
como escravos no Brasil mais especificamente no estado de Minas Gerais O paiacutes de
origem na Aacutefrica de onde imaginam serem provavelmente descendentes eacute Angola
mas natildeo haacute informaccedilotildees sobre este passado mais remoto A relaccedilatildeo com a regiatildeo de
origem africana surgiu a partir da identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas fiacutesicas comuns a
alguns membros da comunidade Segundo Adir lideranccedila quilombola em Guaiacutera
Nosso pessoal natildeo veio de um lugar soacute da Aacutefrica porque tem uns que satildeo alto e magro canela fina que o senhor do engenho usava mais no serviccedilo da roccedila Outros que satildeo mais baixo e forte satildeo mais lento usava mais no trabalho em casa As mulheres mais fortes mais baixa mais troncuda eacute que serviria para dar de mamar para as crianccedilas do senhor de engenho
57 O cartaz foi elaborado pelos membros da comunidade junto com uma teacutecnica da EMATER com quem tecircm forte proximidade quando da inauguraccedilatildeo em 2008 do Telecentro (sala com computadores com acesso a internet) instalado na comunidade pela empresa ELETROSUL Nesta oportunidade foi feita uma festa no barracatildeo da comunidade para receber as pessoas da regiatildeo (inclusive Adir destacou que os vizinhos do Maracaju estiveram presentes pois ainda natildeo havia ocorrido o conflito desencadeado pela elaboraccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico no acircmbito do procedimento do INCRA) Para divulgar a histoacuteria da comunidade nesta oportunidade resolveram entatildeo fazer um cartaz em que contassem os momentos principais da sua trajetoacuteria marcada pelo deslocamento Atualmente o cartaz fica exposto no barracatildeo da comunidade ndash espaccedilo onde fazem reuniotildees ocorrem as aulas de educaccedilatildeo de jovens e adultos jogam capoeira recebem visitas de escolas e agentes diversos
65
FIGURA 11 Cartaz sobre a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia
66
Em Minas Gerais onde os antepassados dessas famiacutelias criaram raiacutezes
ldquocomeccedila a saga da famiacutelia dos Remanescentes dos Quilombos com a histoacuteria do
patriarca Manoel Ciriaco dos Santos A famiacutelia morava em uma lsquolaparsquo de pedra A vida
era feita de fome e muito trabalhordquo como legendado no cartaz A palavra saga aponta
para o caraacuteter heroico que eacute atribuiacutedo a esta histoacuteria dos antepassados pois de Minas
Gerais tiveram que sair rumo ao desconhecido com bebecircs crianccedilas idosos com
poucos recursos para a viagem enfrentando inuacutemeras dificuldades e desafios para
buscarem oportunidades no estado de Satildeo Paulo Foi a ldquomudanccedila de vida rumo a Satildeo
Paulo com destino a Caiabu O trabalho colheita de algodatildeo e amendoimrdquo Por fim
o terceiro momento descrito no cartaz eacute marcado pelo deslocamento em direccedilatildeo ao
Paranaacute e eacute identificado como sendo a ldquoconquista da liberdade Manoel Ciriaco compra
terras em Guaiacutera no Estado do Paranaacute em 1962 A famiacutelia do patriarca chega ao
patrimocircnio do Maracaju dos Gauacutechos em suas terras no ano de 1964rdquo A liberdade
real significa entatildeo a autonomia e a possibilidade de reproduccedilatildeo do grupo viabilizada
pela conquista de um pedaccedilo de terra em Guaiacutera um ldquoterritoacuterio quilombolardquo a partir
do qual novas conquistas seratildeo alcanccediladas pela comunidade
Ao comparar a fala de Zeacute Maria com a trajetoacuteria descrita no cartaz eacute possiacutevel
perceber que ele na articulaccedilatildeo de suas memoacuterias ainda natildeo apontava o caminho
do reconhecimento como quilombolas enquanto uma possibilidade de alteraccedilatildeo do
percurso histoacuterico de exclusatildeo que narra jaacute que conclui sua fala apontando para a
falta de perspectiva de futuro para ele e seus parentes No caso do cartaz ao
contraacuterio a perspectiva de futuro aparece com a conquista do territoacuterio e
posteriormente com o conhecimento de uma seacuterie de direitos dos quais se
consideram detentores e em busca dos quais passam a se organizar em torno da
identidade quilombola Isto mostra como a memoacuteria eacute dinacircmica enquanto fruto do
trabalho coletivo realizado com base no ldquorepertoacuterio de narrativas de uma comunidade
afetivardquo Tal repertoacuterio estaacute ldquoem permanente relaccedilatildeo com o oral apresentando-se
sempre como versatildeo aberta permanentemente reconstruiacuteda pelas trocas sociais e
constantemente reestabelecida pela repeticcedilatildeo e pela negociaccedilatildeo de versotildeesrdquo
(ARRUTI1996 p 32-33)
Considerando que a fala de Zeacute Maria foi registrada nos primeiros contatos dos
representantes do grupo com agentes externos em janeiro de 2007 eacute interessante
observar que o eixo narrativo do deslocamento do sofrimento e da discriminaccedilatildeo
67
provavelmente natildeo foi elaborado com a intenccedilatildeo de adequar a histoacuteria do grupo como
uma resposta agrave demanda pela construccedilatildeo identitaacuteria enquanto quilombolas pois esta
questatildeo natildeo aparece em sua reflexatildeo Por outro lado em termos de sistematizaccedilatildeo
histoacuterica da trajetoacuteria do grupo que lhe foi demandada naquele momento os
elementos que estruturaram o seu relato continuaratildeo a subsidiar este processo de
construccedilatildeo identitaacuteria quilombola da comunidade em GuaiacuteraPR
O cartaz por sua vez elaborado pelos membros da comunidade junto com
uma teacutecnica da EMATER com quem consideram ter uma relaccedilatildeo de bastante
confianccedila e proximidade tambeacutem tinha o intuito de contar visualmente a histoacuteria da
comunidade Isto ocorreu em 2008 apoacutes a autoidentificaccedilatildeo do grupo como
quilombolas de modo que eacute possiacutevel observar como o cartaz aponta para a afirmaccedilatildeo
desta identidade como o comeccedilo de um novo ciclo na histoacuteria dessas famiacutelias desde
seus antepassados Se no seacuteculo XIX foram escravizados em Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG e laacute resistiram ateacute a deacutecada de 50 do seacuteculo XX com os deslocamentos e
a reorganizaccedilatildeo do grupo em Guaiacutera novas perspectivas de futuro se apresentam
pelo caminho da identidade quilombola no iniacutecio do seacuteculo XXI Deste modo ldquoa
identidade contrastiva constituiacuteda sob a eacutegide do estigmardquo seraacute invertida como uma
afirmaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a si mesmos (RUBERT SILVA 2009 p 252-258)
A elaboraccedilatildeo da identidade quilombola conforme eacute possiacutevel perceber na fala
de Adir passa a ser construiacuteda a partir da temaacutetica da resistecircncia frente a contextos
contiacutenuos de adversidade desde nossos antepassados da luta e da busca pela
efetivaccedilatildeo dos nossos direitos A categoria de autoidentificaccedilatildeo como ldquoquilombolasrdquo
seraacute mobilizada portanto a partir de elementos preacute-existentes da histoacuteria e da
memoacuteria do grupo Esta fala foi realizada para um puacuteblico de alunos de uma escola
da regiatildeo que visitaram a comunidade na semana da comemoraccedilatildeo da aboliccedilatildeo da
escravatura (13 de maio) em 20 de maio de 201458
Adir () Vou contar pra vocecircs as nossas dificuldades a nossa luta no dia a dia a nossa trajetoacuteria desde os nossos antepassados na Aacutefrica trajetoacuteria da Aacutefrica em navio negreiro de laacute pra caacute e tambeacutem da onde o nosso pessoal foi
58 Esta foi uma de muitas visitas que recebem (segundo Adir recebem mais de mil pessoas durante o
ano todo enfatizando a intensidade dos agendamentos) quando satildeo procurados principalmente por professores da regiatildeo que querem levar os alunos para conhecer a histoacuteria dos quilombolas Aleacutem do 13 de maio as visitas ocorrem com maior frequecircncia proacuteximo ao dia 20 de novembro dia da consciecircncia negra A professora que acompanhou este grupo especiacutefico em 20 de maio de 2014 contou ao final da apresentaccedilatildeo de Adir como jaacute incorporou a visita agrave comunidade como uma proposta de levar todo ano seus alunos para conhecer o ldquoquilombo de Guaiacuterardquo
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centralizado no estado em Minas Gerais onde o trabalho desde o trabalho escravo e depois o trabalho nas mesmas fazendas garimpo de ouro cana-de-accediluacutecar cafeacute Entatildeo todo aquele trabalho que eles faziam em Minas Gerais desde os mais velhos que sofreram na eacutepoca da escravidatildeo Eu sei que o local onde eles morava laacute era um local de difiacutecil acesso em loca de pedra muito difiacutecil o trabalho deles o sofrimento fome sem identidade sem nenhum tipo de direito e isso fez com que eles saiacutessem de laacute e procuramos um local melhor procurando sobreviver melhor e aconteceu que hoje noacutes estamos aqui Eles fizeram a trajetoacuteria de Minas ateacute o Estado de Satildeo Paulo e do estado de Satildeo Paulo nessa regiatildeo aqui em Guaiacutera Eacute uma regiatildeo de muito preconceito o local onde a gente taacute centralizado aqui Me lembro que na idade de vocecircs que a gente estudava no coleacutegio a gente era chamado de macaco de filho do capeta natildeo tinham respeito com a gente jaacute dizia que por causa da cor da pele jaacute significava tudo pra eles a separaccedilatildeo de negro e de branco Entatildeo noacutes sobrevivemos a tudo isso o maior preconceito e mesmo assim noacutes trabalhamos pra eles Depois que a gente cresceu os nossos mais velhos dependiam do trabalho porque quando nosso pai chegou era tudo o mato natildeo tinha nada a sobrevivecircncia era tirar o sustento tambeacutem da mata aproveitar ao maacuteximo possiacutevel pra sobrevivecircncia e poder criar a famiacutelia Aqui noacutes aprendemos a nossa religiatildeo aqui noacutes aprendemos a trabalhar e respeitar as pessoas aqui noacutes aprendemos a sobreviver de forma difiacutecil de forma sofrida E por isso a gente taacute aqui hoje mesmo com esse sofrimento todo toda a pressatildeo opressatildeo de latifundiaacuterio opressatildeo que queria tomar as nossas terras opressatildeo de toda forma E noacutes a nossa resistecircncia pra noacutes taacute aqui ateacute hoje aqui nessa luta sem sonho sem poder sem direito E noacutes a partir de 2005 e 2006 foi aonde que a gente criou essa esperanccedila de que a gente podia conhecer os nossos direitos lutar se organizar construir uma associaccedilatildeo e aonde a gente aprendeu e ainda estamos aprendendo muitas coisas para noacutes requerer nossos direitos Natildeo digo soacute direito da terra mas direito tambeacutem das poliacuteticas puacuteblicas direito de conviver com a naccedilatildeo direito de sobreviver com dignidade e que as pessoas possam nos respeitar E de vocecirc olhar pra um negro e dizer que esse negro natildeo deve andar no meio da sociedade natildeo possa ter as suas poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode ter nada de garantia nem sobrevivecircncia Mas a nossa mentalidade hoje a gente pensa diferente de antes Antes a gente ficava calado a gente natildeo falava numa religiatildeo a gente natildeo falava na nossa culinaacuteria e a gente natildeo podia falar em nada tudo que a gente aprendeu e aprendia isso era guardado soacute na mente E hoje natildeo hoje a gente possa pronunciar que a gente vecirc o direito que tecircm E natildeo soacute por causa do direito porque eu acho que nem precisaria a gente ficar correndo atraacutes de algum direito Se eacute que o negro trabalhou nesse paiacutes de forma injusta e quantos derramaram o seu sangue nesse solo brasileiro pra construir esse paiacutes que natildeo precisava a gente taacute aiacute nessa correria pra recorrer aos nossos direitos recorrer a algumas coisas e ateacute mesmo agrave nossa sobrevivecircncia
Nesta construccedilatildeo identitaacuteria raccedila eacute um conceito ecircmico fundamental no
cotidiano das pessoas que influenciou de modo determinante os significados
atribuiacutedos agrave identidade quilombola neste grupo (MELLO 2012 p 50) A importacircncia
da noccedilatildeo de raccedila no contexto local remete ao processo de ldquooutrificaccedilatildeordquo a que a
populaccedilatildeo negra foi submetida no Brasil conforme analisado por Rita Segato ldquoser
negro significa exibir traccedilos que lembram e remetem agrave derrota histoacuterica dos povos
africanos perante os exeacutercitos coloniais e sua posterior escravizaccedilatildeordquo Enquanto
ldquoalteridade histoacutericardquo a experiecircncia de ldquoser outro no contexto da naccedilatildeo e da regiatildeordquo
69
(SEGATO 2005) eacute ainda mais sentida pelos membros do grupo em sua inserccedilatildeo na
regiatildeo Sul do Brasil onde a segregaccedilatildeo racial remonta ao projeto estatal de
branqueamento da populaccedilatildeo no iniacutecio do seacuteculo XX Mas se antes natildeo se sabiam
ldquoquilombolasrdquo e ficavam calados como aponta Adir passaram entatildeo a se pronunciar
a partir do processo de autoidentificaccedilatildeo identitaacuteria que toma os deslocamentos como
marcos de uma histoacuteria de resistecircncia contiacutenua
Assim o ldquocaminhar quilombolardquo que orienta as narrativas locais no acircmbito do
processo de emergecircncia do grupo como sujeito poliacutetico tema deste capiacutetulo
questiona o cerne dos estereoacutetipos constituintes dos discursos colonial e poacutes-colonial
sobre a construccedilatildeo da alteridade nos termos de sua ldquodependecircncia em relaccedilatildeo ao
conceito de lsquofixidezrsquo Fixidez implica repeticcedilatildeo rigidez e uma ordem imutaacutevelrdquo como
observou o autor indiano Homi Bhabha (BHABHA 1998 p 70-104) Este discurso de
fixidez tem grande reverberaccedilatildeo dentre os agentes do Estado que satildeo aqueles que
instituem categorias para identificaccedilatildeo de sujeitos de direitos coletivos que passam
desta forma a ser objeto da accedilatildeo estatal o que Arruti entende por ldquoprocesso de
nominaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 45-46)
Tomando por base tal ideia de ldquofixidezrdquo a ldquopoliacutetica das identidadesrdquo tende a
captar e reduzir as expressotildees de ldquoidentidades poliacuteticasrdquo que foram engendradas
como resposta dos grupos sociais ao processo hegemocircnico e verticalizante de
produccedilatildeo de ldquoalteridades histoacutericasrdquo A autoidentificaccedilatildeo dos grupos de saiacuteda estaacute
sobredeterminada pela ldquopoliacutetica das identidadesrdquo que eacute institucionalizada legal e
administrativamente em torno da perspectiva de enraizamento territorial o que pode
implicar na perda da profundidade histoacuterica da complexidade de origem da riqueza e
da densidade ldquodas outredades localmente modeladasrdquo (SEGATO 2005) como no
caso de uma comunidade quilombola que se constroacutei a partir do movimento e natildeo na
relaccedilatildeo ancestral com um mesmo territoacuterio Identidade quilombola esta reivindicada
vale destacar pelo grupo que saiu da regiatildeo de origem
A partir destas narrativas e reflexotildees dos quilombolas em Guaiacutera os debates
do antropoacutelogo britacircnico Tim Ingold em seu livro Lines a brief history ganharam
relevacircncia para as anaacutelises desta dissertaccedilatildeo O autor traz exemplos de cosmologias
de grupos para os quais o movimento consiste em um modo de ser Este eacute o caso do
povo Inuit habitantes da regiatildeo do Aacutertico para os quais o ato de viajar define quem o
viajante eacute Neste sentido o viajante e a linha de seu movimento sua trilha satildeo o
70
mesmo Outro exemplo eacute do povo Walbiri estudado por Roy Wagner para os quais a
vida de uma pessoa eacute a soma de seus caminhos e a inscriccedilatildeo de seus movimentos
algo que pode ser traccedilado atraveacutes do chatildeo (INGOLD 2007 p 75-79)
Por mais efecircmeras que sejam essas trilhas permanecem na memoacuteria pois o
trajeto eacute mais do que a distacircncia de um ponto ao outro Implica em atividades
permanentes de interaccedilatildeo e de monitoramento perceptivo do ambiente visando a
sustentaccedilatildeo daquele que o percorre (INGOLD 2007 p 76) Observando uma estreita
ligaccedilatildeo entre locomoccedilatildeo e percepccedilatildeo Ingold define movimento como
(hellip) Not a casting about the hard surfaces of a word in which everything is already laid out but an issuing along with things in the very process of their generation not the trans-port (carrying across) of completed being but the pro-duction (bringing forth) of perpetual becoming (INGOLD 2011 p 12)
A partir dessa compreensatildeo de movimento Ingold elabora sua perspectiva do
habitar que perpassa a imersatildeo dos seres nas correntes do mundo da vida atraveacutes
da atenccedilatildeo e do engajamento com o ambiente em um movimento ao longo de um
caminho no qual as vidas satildeo vividas os talentos desenvolvidos as observaccedilotildees satildeo
feitas e as compreensotildees crescem Observaccedilatildeo implica movimento todos os seres
observadores satildeo animais e todos os animais satildeo moacuteveis O caminho deste modo eacute
a condiccedilatildeo primeira de ser ou melhor de se tornar jaacute que ldquowayfaring is the
fundamental mode by which living beings inhabit the earthrdquo (INGOLD 2011 p 09-12)
O autor reforccedila a prioridade dos processos contiacutenuos sobre a forma final na constante
coproduccedilatildeo do ambiente e de seus habitantes humanos e natildeo humanos Questiona
assim as premissas de uma antropologia sincrocircnica jaacute que esta desconsidera a
historicidade dos grupos sociais em suas trajetoacuterias A questatildeo poreacutem eacute mais ampla
pois tambeacutem eacute possiacutevel abordar a histoacuteria atraveacutes de lugares e eventos circunscritos
A ecircnfase seria em Ingold principalmente em dinacircmicas e processos os quais natildeo se
fixam em momentos ou locais especiacuteficos A anaacutelise de tais movimentos portanto
demandaraacute em sua abordagem uma perspectiva necessariamente diacrocircnica
Ingold dialoga com outras propostas teoacutericas da antropologia que buscam
superar o paradigma da fixidez em prol de anaacutelises que trabalhem com a fluidez59 O
59 Esta anaacutelise proposta por Ingold estaacute conectada com a influecircncia trazida para as discussotildees
contemporacircneas da Antropologia por meio do livro Mil Platocircs dos filoacutesofos franceses Deleuze e Guattari cuja primeira ediccedilatildeo eacute de 1980 Com o enfoque analiacutetico na complexidade na heterogeneidade na coexistecircncia nos processos os autores apontam para a importacircncia das
71
autor entende que a vida se desenvolve natildeo dentro dos lugares mas atraveacutes em
torno e a partir deles para outros lugares ao longo dos caminhos em trajetoacuterias de
movimento A ideia do que se pode tentar traduzir como ldquoviagem a peacuterdquo (wayfaring) eacute
utilizada entatildeo para descrever a experiecircncia corporal deste movimento
perambulatoacuterio pois eacute como ldquocaminhantesrdquo que os humanos habitam a terra O autor
prefere entatildeo conceituar as pessoas como ldquohabitantesrdquo e natildeo como ldquolocaisrdquo pois
seria equivocado supor que estas pessoas estivessem confinadas dentro de um lugar
particular ou que sua experiecircncia ficasse circunscrita pelo restrito horizonte de uma
vida vivida apenas ali Trata-se ao contraacuterio da ligaccedilatildeo entre lugares que ocorre por
meio das trilhas deixadas Onde as pessoas se encontram neste caminhar as trilhas
se entrelaccedilam formando um noacute O lugar portanto eacute como um noacute mais ou menos
denso de acordo com a quantidade de linhas de vida entrelaccediladas (INGOLD 2011
p 148)
Dentro deste modo de anaacutelise o siacutetio onde vivem os quilombolas de
GuaiacuteraPR pode ser entendido como um noacute de trilhas entrelaccediladas cuja origem
descreve uma linha de conexatildeo com o noacute originaacuterio Santo Antocircnio do ItambeacuteMG60 e
um outro noacute tambeacutem relevante na regiatildeo de Presidente PrudenteSP Natildeo uma
territorialidade fechada e circunscrita em Guaiacutera mas uma base territorial que
diferentes linhas que compotildeem uma multiplicidade Apesar de sua relevacircncia e profundidade teoacuterica iremos apenas mencionar que no que tange aos processos de territorializaccedilatildeo tema que se relaciona diretamente com a anaacutelise desta dissertaccedilatildeo a partir da ecircnfase no movimento haveraacute sempre um potencial de desterritorializaccedilatildeo e de reterritorializaccedilatildeo conforme as respostas agenciadas diante de elementos cuja interferecircncia gera novos contextos de modo que as configuraccedilotildees nunca satildeo fechadas Por outro lado ponderam que o aparelho do Estado enquanto ldquoo logos o filoacutesofo-rei a transcendecircncia da Ideia a interioridade do conceito a repuacuteblica dos espiacuteritos o tribunal da razatildeo os funcionaacuterios do pensamento o homem legislador e sujeitordquo natildeo compreende em sua atuaccedilatildeo de sobrecodificaccedilatildeo este tipo de dinacircmica presente por exemplo em praacuteticas como a do nomadismo (DELEUZE GUATTARI 2000 [1997] p 35) Neste sentido importante mencionar que a proacutepria descriccedilatildeo do funcionamento do rizoma modelo epistemoloacutegico nesta teoria filosoacutefica aponta para dinacircmicas de territorializaccedilatildeo e desterritorializaccedilatildeo e reterritorializaccedilatildeo Por um lado as linhas de segmentaridade que compotildeem o rizoma iratildeo estratificaacute-lo de modo a territorializaacute-lo e organizaacute-lo mas por outro o rizoma tambeacutem eacute composto por linhas de desterritorializaccedilatildeo linhas de fuga as quais podem reencontrar ldquoorganizaccedilotildees que reestratificam o conjuntordquo Resumidamente podemos entender o rizoma a partir da seguinte citaccedilatildeo ldquooposto a uma estrutura que se define por um conjunto de pontos e posiccedilotildees por correlaccedilotildees binaacuterias entre estes pontos e relaccedilotildees biuniacutevocas entre estas posiccedilotildeesrdquo O rizoma eacute feito somente de linhas ldquolinhas de segmentaridade de estratificaccedilatildeo como dimensotildees mas tambeacutem linha de fuga ou de desterritorializaccedilatildeo como dimensatildeo maacutexima segundo a qual em seguindo-a a multiplicidade se metamorfoseia mudando de naturezardquo (DELEUZE GUATTARI 2000 p 31) 60 Antes das viagens realizadas para Santo Antocircnio do Itambeacute e Serro em Minas Gerais no final da
pesquisa em marccedilo e junho de 2015 estas conexotildees permaneciam no plano da memoacuteria posteriormente o viacutenculo estaacute sendo reconstruiacutedo com os parentes que foram (re)encontrados
72
possibilitou a reproduccedilatildeo de uma comunidade61 que se entende aberta em uma
articulaccedilatildeo entre identidade parentesco e origem comum Importante destacar que
um elemento importante na construccedilatildeo desta identidade tambeacutem passa pela
possibilidade de movimento que surge atraveacutes de viagens que se tornaram frequentes
na vida da lideranccedila do grupo Adir em contato com agentes externos em encontros
reuniotildees audiecircncias etc Para seguir nas trilhas abertas pelos habitantes da
comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos natildeo se pode portanto
desconsiderar a importacircncia dessas relaccedilotildees externas inclusive para ldquoproduzir natildeo soacute
o a imagem do grupo mas o proacuteprio grupordquo
Nesta produccedilatildeo o exerciacutecio de representaccedilatildeo das ldquolideranccedilas peregrinasrdquo
em seu papel de porta-voz eacute fundamental ao ldquose fazerem conhecer por autoridades
extra-locaisrdquo atraveacutes do circuito das viagens e do paulatino domiacutenio da loacutegica de
mediaccedilatildeo (ARRUTI 1996 p 57) A busca por reconhecimento contatos acesso a
direitos projetos de futuro atraveacutes das lideranccedilas em constantes viagens podem ser
entendidas portanto como ldquoverdadeiras romarias poliacuteticasrdquo (OLIVEIRA FILHO 1998
p 65) Pude acompanhar uma dessas viagens da lideranccedila do grupo Adir para a
participaccedilatildeo como delegado representando o estado do Paranaacute na Conferecircncia
Nacional de Educaccedilatildeo (CONAE)62 em novembro de 2014 que ocorreu em
BrasiacuteliaDF Durante o evento Adir me falou em uma entrevista sobre sua experiecircncia
com viagens para diversos encontros que destaca como um dos pontos mais
61 Se em relaccedilatildeo aos parentes que estatildeo fora a comunidade quilombola natildeo pode ser vista como
unidade fechada em relaccedilatildeo aos que estatildeo morando no territoacuterio vale ressaltar isso tambeacutem natildeo se sustenta O papel de lideranccedila de Adir apesar de natildeo haver candidato disposto agrave substituiacute-lo mesmo depois de sete anos na presidecircncia da ACONEMA colocaria segundo outros parentes me falaram seu nuacutecleo familiar numa posiccedilatildeo privilegiada Por outro lado Adir entende que sua atuaccedilatildeo como lideranccedila as constantes viagens para outras cidades ou mesmos os deslocamentos entre a comunidade e a sede do municiacutepio em Guaiacutera (distante vinte quilocircmetros do siacutetio) prejudica seu trabalho como agricultor e a possibilidade de dedicaccedilatildeo agrave sua ldquovida particularrdquo o que os outros parentes natildeo reconheceriam Haacute tambeacutem fissuras internas em relaccedilatildeo ao modo adequado de gerir a associaccedilatildeo e de lidar com os projetos e programas do governo que a comunidade acessa o que fica restrito a conversas indiretas e natildeo eacute explicitado em contextos mais amplos tendo em vista que mais do que um grupo poliacutetico trata-se de relaccedilotildees de convivecircncias diaacuterias de uma comunidade estruturada nos viacutenculos de parentesco Haacute tambeacutem visotildees dissonantes de projetos de futuro entre as geraccedilotildees sendo que os jovens satildeo criticados pelos mais velhos por natildeo valorizarem as ldquofacilidadesrdquo que eles teriam se comparado com a infacircncia e juventude de precariedade material que os adultos viveram Os jovens satildeo vistos como seduzidos por padrotildees de consumo por exemplo e distantes de Deus Apesar da relevacircncia das dinacircmicas internas natildeo me aprofundarei neste tema No entanto se enfatizo a dimensatildeo do grupo em distinccedilatildeo ao contexto local natildeo desconsidero essas fissuras internas e a criacutetica necessaacuteria a uma idealizaccedilatildeo do conceito de comunidade como unidade harmocircnica 62 Adir foi delegado com direito a voz e voto na Conferecircncia por indicaccedilatildeo estadual enquanto representante ldquodos movimentos de afirmaccedilatildeo da diversidaderdquo Dentro deste conceito estavam abarcados os seguintes movimentos ldquoLGBT movimento feminista movimento negro representaccedilatildeo quilombola representaccedilatildeo social dos povos indiacutegenasrdquo conforme regulamento da conferecircncia
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positivos em relaccedilatildeo agrave inserccedilatildeo da comunidade no movimento quilombola O grupo
passou a ter contato com os oacutergatildeos puacuteblicos estaduais de modo que ele chegou a
fazer treze viagens em um mesmo ano para Curitiba capital do Paranaacute distante mais
de setecentos quilocircmetros de Guaiacutera
Tais viagens como reforccedilou Adir o transformaram profundamente e o
construiacuteram enquanto lideranccedila Nesta viagem para Brasiacutelia em novembro de 2014
jaacute era a quarta vez que Adir estava na capital nacional Segundo ele a primeira vez
que laacute esteve foi a viagem mais marcante pois as lideranccedilas quilombolas foram
recebidas no dia 20 de novembro o ldquoDia da Consciecircncia Negrardquo pelo entatildeo
presidente da repuacuteblica Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que estava comeccedilando a abrir a
porta para as comunidades quilombolas no governo federal Adir relata como por
meio desta participaccedilatildeo em encontros eventos reuniotildees foi aos poucos perdendo a
timidez que considera caracteriacutestica dos membros do grupo quando em contato com
pessoas de fora
Adir Comecei a se soltar um pouco mas na hora que eu falava eu tremia porque totalmente uma realidade diferente da que noacutes veve a nossa vida ali foi uma vida inteira soacute ali entre noacutes mesmos No mais as pessoas ali da cidade que a gente as vezes no comeccedilo a gente nem ia soacute vivia entre noacutes aiacute depois ter o conhecimento na cidade mas a vida pacata mesmo aquela vidinha laacute escondida Ai de repente acontece o reconhecimento da nossa comunidade aiacute eu comeccedilo a sair em busca de objetivo melhoria em vaacuterias aacutereas poliacuteticas puacuteblicas Ai comecei a conhecer pessoas de dentro do estado comecei a conhecer pessoas fora do estado e hoje eu tenho contato no RS SC MS BA um monte contato com outras comunidades quilombolas e aldeia indiacutegena
A caracteriacutestica de movimento como algo que empodera as lideranccedilas
tambeacutem estaacute presente na anaacutelise de Yara Alves em seu artigo Como etnografar um
mundo em que tudo gira gera e mexe sobre a comunidade quilombola de Pinheiro
no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais A relaccedilatildeo entre ldquoandanccedilasrdquo e ldquosabedoriardquo
eacute acionada pelos membros do grupo no contexto de sua inserccedilatildeo no movimento
quilombola a partir das experiecircncias das viagens a eventos realizadas pelas
lideranccedilas ao representarem a associaccedilatildeo63 (ALVES 2015 p 85) Deste modo as
63 A centralidade do movimento abrange tambeacutem outras formas e escalas de socialidade do grupo As
ldquosaiacutedas para trabalharrdquo que os conectam com a regiatildeo do interior de Satildeo Paulo municiacutepio de Barreirinha eacute um dos elementos que compotildeem movimentos muacuteltiplos ldquoencarados de maneiras diversas e altamente valorizados - um motor existencial muito mais do que um recurso econocircmicordquo
(ALVES 2015)
74
viagens feitas pelas lideranccedilas poliacuteticas adquirem uma dimensatildeo fundamental no
processo de emergecircncia eacutetnica dos grupos sociais
No caso da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos portanto a
possibilidade de deslocamento constituiu a experiecircncia dos antepassados enquanto
estrateacutegia de conquista de condiccedilotildees melhores de vida para as famiacutelias e continua se
desdobrando na ativa atuaccedilatildeo da lideranccedila do grupo em viagens fora de Guaiacutera Eacute a
partir do processo de elaboraccedilatildeo identitaacuteria que ocorre a passagem de uma
experiecircncia de silenciamento para a possibilidade de se pronunciarem sobre a proacutepria
identidade e buscarem novos caminhos de reproduccedilatildeo social do grupo
13 O CONTINUUM DA RELIGIOSIDADE
A importacircncia das dinacircmicas de movimento para a Comunidade Quilombola
Manoel Ciriaco dos Santos que buscamos demonstrar ateacute aqui tambeacutem estaacute
presente na dimensatildeo da religiosidade dos membros do grupo tema que iremos tratar
neste subitem Na minha uacuteltima viagem a campo para Presidente PrudenteSP
realizada no iniacutecio de agosto de 2015 pude perceber como as relaccedilotildees entre
movimento e religiosidade estavam presentes na histoacuteria do grupo de um modo
marcante na proacutepria motivaccedilatildeo da saiacuteda de Manoel Ciriaco de Minas O intuito desta
viagem de campo foi visitar D Ana Raimunda irmatilde de Manoel Ciriaco que haviacuteamos
encontrado em marccedilo morando em SerroMG e que em junho ajudamos a trazecirc-la
de mudanccedila para morar com a sobrinha D Jovelina em Presidente PrudenteSP
Nas outras duas viagens anteriores em que estive com D Ana em marccedilo e
em junho de 2015 natildeo havia tido oportunidade de conversar com ela sobre os motivos
que impulsionaram a saiacuteda de seu irmatildeo Manoel Ciriaco de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG em 1956 quando foi embora e nunca mais voltou Imaginando que ela
iria me falar das dificuldades de sobrevivecircncia de toda a famiacutelia na terra que era
heranccedila da matildee deles Izidora sou surpreendida com sua resposta ela conta que o
que desencadeou a saiacuteda de Manoel foi que ele ficou muito doente e assim que
melhorou resolveu ir embora O movimento inicial de deslocamento do grupo familiar
segundo me contou tinha sido impulsionado por causas maacutegico-religiosas
D Ana Raimunda Ele ficou doente depois a cabeccedila esquentou e saiu de laacute que laacute era bom e era ruim ficou doente demais doenccedila quase matou ele laacute mas Deus ajudou que
75
Dandara Mas era coisa feita pra ele
D Ana Raimunda Era ele oh (fez sinal com as matildeos)
Dandara Tinha tambeacutem desentendimento entre os parentes
D Ana Raimunda Tinha cascou fora foi bom ter vindo embora se natildeo ia mais de pressa neacute Entatildeo eles vieram e a gente ficou laacute rezando se apegando com Deus pra eles Demorou dar notiacutecia nossa ela (Izidora matildee de D Ana e Manoel) ficava chorando dia e noite eu falei natildeo chora natildeo que eles daacute notiacutecia e como deu neacute deu notiacutecia que tava bem graccedilas a Deus
Se ateacute agora analisamos os fatores sociais e econocircmicos que contribuiacuteram
para a decisatildeo de deslocamento destas famiacutelias neste momento da conversa com D
Ana vieram agrave tona informaccedilotildees sobre como dentro deste quadro social mais amplo
as tensotildees sociais internas foram decisivas e atuaram para o impulso de saiacuteda
Importante observar neste sentido que natildeo haacute uma reaccedilatildeo mecacircnica ao
desenvolvimento regional mas sim uma combinaccedilatildeo de fatores externos e internos
ao grupo familiar
A fala de D Ana aponta para uma acusaccedilatildeo de que Manoel teria sido alvo de
uma agressatildeo maacutegica com consequecircncias muito seacuterias pois quase o levou agrave morte
e que quando ele se recuperou dos efeitos deste enfeiticcedilamento64 deu na cabeccedila de
vir embora As dimensotildees maacutegico-religiosas nesta visatildeo de mundo especiacutefica
portanto podem gerar deslocamentos concretos
Neste momento do texto apresento alguns exemplos sinteacuteticos65 do modo
como a religiosidade implica em movimento concretos na trajetoacuteria de vida dessas
pessoas e tambeacutem estaacute permeada por movimentos natildeo concretos em seu cotidiano
Estes movimentos sutis se apresentam por exemplo no acircmbito das relaccedilotildees que satildeo
estabelecidas entre o humano e o divino como quando acionam a capacidade de se
64 Importante considerar que a histoacuteria sobre a morte de Manoel em GuaiacuteraPR tambeacutem eacute narrada como
resultado de um feiticcedilo Geralda me contou que foi uma pessoa bem proacutexima da famiacutelia que tinha muita inveja de Manoel porque eles tinham progredido ele era respeitado e querido na cidade Relatou que Manoel estava trabalhando na roccedila e foram buscar uma aacutegua para ele a seu pedido Soacute que o pessoal que estava na roccedila comeccedilou a achar estranho que estava demorando demais para voltarem e parecia ateacute que tinham ido furar o poccedilo D Ana falou com Manoel que ela estava esganado por aacutegua e por quecirc natildeo esperava chegar em casa A pessoa que fez o feiticcedilo entatildeo pegou um sapo raspou o couro dele e pocircs na aacutegua Daiacute Manoel bebeu mas os outros natildeo quiseram porque tinham cisma Com o passar do tempo ele comeccedilou a se sentir mal natildeo conseguia comer porque sentia gosto de areia a pressatildeo subia foi piorando sofreu muito ateacute que morreu Ressalta-se que estas natildeo foram as uacutenicas histoacuterias sobre feiticcedilo que me foram relatadas durante o trabalho de campo no entanto natildeo irei me deter neste assunto pois isso geraria uma dispersatildeo no texto 65 Natildeo eacute possiacutevel levando em conta o enfoque analiacutetico da dissertaccedilatildeo abordar as questotildees relativas
agrave religiosidade do grupo com a profundidade necessaacuteria em apenas um subitem Por isso iremos analisar sobre a religiosidade apenas alguns aspectos que satildeo relevantes para o conjunto do argumento do texto no que tange ao tema do movimento
76
deslocar entre mundos e conectar subjetividades temporalidades e espacialidades
distintas Os mortos os espiacuteritos as entidades os santos em suas diversas formas
de manifestaccedilatildeo satildeo agentes importantes e presentes no dia-a-dia dos quilombolas
As formas como suas praacuteticas de devoccedilatildeo satildeo interpretadas pelos vizinhos
consideradas como preconceituosas pelos quilombolas eacute tambeacutem uma dimensatildeo
importante Este preconceito que combina dimensotildees raciais e religiosas como
iremos analisar impulsionou a saiacuteda de Antocircnio filho de Manoel Ciriaco que realizava
trabalhos mediuacutenicos na comunidade Ele teve que ir morar na periferia de Guaiacutera
pois sua praacutetica espiritual como curador e meacutedium natildeo era aceita no bairro rural
ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo
A religiosidade importante destacar eacute uma esfera significativa de reproduccedilatildeo
da memoacuteria comunitaacuteria e do viacutenculo que o grupo manteacutem com a regiatildeo de origem
Aleacutem de narrativa (cognitiva) como analisamos no subitem anterior a memoacuteria eacute
tambeacutem performativa e corporal O reencenamento do passado na conduta presente
constitui uma ldquomnemocircnica do corpordquo66 muito caracteriacutestica nas culturas orais67
conforme analisado no livro Como as sociedades recordam do antropoacutelogo Paul
Connerton (CONNERTON 1999 p 86) Um dos aspectos interessantes desta
mnemocircnica corporal quilombola foi indicado por Geralda que trabalha como meacutedium
em um terreiro de Umbanda haacute mais de sete anos a experiecircncia da incorporaccedilatildeo de
entidades como os pretos-velhos permite a reativaccedilatildeo de memoacuterias dos espiacuteritos de
escravos
Tais espiacuteritos satildeo investidos de eficaacutecia e de autoridade para fornecer
conselhos de cura para os vivos quando incorporados nos meacutediuns Estas entidades
espirituais se apresentam no terreiro de Umbanda para lidar com todos os tipos de
problemas pessoais da clientela que frequenta o terreiro Enquanto ldquoculto de
possessatildeordquo a Umbanda eacute composta por um panteatildeo que integra ldquoalgumas entidades
do candombleacute aleacutem de novos estereoacutetipos como iacutendios preto-velhos tropeiros
66 Para aleacutem das histoacuterias narrativas nos interessam tambeacutem o processo de permanecircncia social
enfocado atraveacutes da noccedilatildeo de ldquomemoacuteria-haacutebitordquo enquanto capacidade de reproduzir determinada accedilatildeo que dentro da dimensatildeo social eacute ldquoingrediente essencial para o desempenho bem-sucedido dos coacutedigos e normasrdquo Haacute outras formas de lembrar por exemplo por meio de ldquoatos de transferecircncia que tornam possiacutevel recordar em conjuntordquo Trata-se de ldquotipos particulares de repeticcedilatildeordquo que ocorrem no acircmbito da ldquomemoacuteria comunalrdquo como vivenciado nas cerimocircnias comemorativas e nas praacuteticas corporais (CONNERTON 1999 p 44) 67 Em contraste com a cultura escrita caracterizada pela ldquopraacutetica de inscriccedilatildeordquo por meio da qual a
memoacuteria se reproduz atraveacutes dos ldquodispositivos de armazenamento e recuperaccedilatildeo de informaccedilatildeordquo (CONNERTON 1999 p 84-87)
77
baianosrdquo Com profunda influecircncia do Espiritismo e do Catolicismo popular e derivada
em boa parte do Candombleacute a Umbanda deu cobertura para uma seacuterie de ldquopraacuteticas
miacutesticas populares altamente estigmatizadasrdquo Eacute a proacutepria marginalidade desses
espiacuteritos no que tange aos valores estabelecidos pelo sistema social hegemocircnico a
fonte da forccedila e da capacidade que possuem para resolver as afliccedilotildees humanas
(BRUMANA MARTIacuteNEZ 1991 p 64-86)
A manifestaccedilatildeo dos pretos-velhos ou as pretas-velha espiacuteritos de velhos(as)
escravos(as) traz agrave tona temas da memoacuteria coletiva brasileira e da ideologia religiosa
que resiste agraves hierarquias alienantes do colonialismo e do capitalismo (MATORY
2007 p 405) A representaccedilatildeo sobre estes espiacuteritos enquanto importante siacutembolo da
identidade nacional abrange desde a submissatildeo resignada agrave resistecircncia heroica do
escravo (HALE 1997 p 393)
These spirits constitute sign vehicles through which Umbandistas interpret and explore themes of racism national identity domination suffering and redemption within a moral framework broadly informed by the values and motifs of popular Catholicism At the same time pretos velhos work a reciprocal semiotic movement through them these cultural discourses and collective memories constitute bodily experience by way of spirit possession and spirit performance (HALE 1997 p 393)
Eacute por meio dessa experiecircncia corporal vivenciada por Geralda
quinzenalmente como meacutedium na ldquoAssociaccedilatildeo Espiacuterita Reino de Baluaecircrdquo que ela faz
a associaccedilatildeo dos pretos-velhos com sua trajetoacuteria pessoal e familiar Enquanto
quilombolas agricultores ela compara o desgaste fiacutesico que tiveram em decorrecircncia
dessas atividades rurais com a experiecircncia dos pretos(as) velhos(as) quando viveram
na terra e trabalharam como escravos(as) Esta memoacuteria corporal se manifesta na
forma de incorporaccedilatildeo do meacutedium quando ldquoo controle social do corpo natildeo eacute
simplesmente abolido no transe mas substituiacutedo por outro controle o dos estereoacutetipos
corporais da incorporaccedilatildeo de cada entidade miacutesticardquo (BRUMANA MARTINEZ 1991
p 84) A maioria destas entidades exibem sinais caracteriacutesticos de idade e debilidade
fiacutesica caminham debruccediladas sobre suas bengalas com rigidez articular movimentos
trabalhados e pausados Ao incorporarem no meacutedium portanto apresentam um
ldquodesempenho corporalrdquo que passa por uma certa codificaccedilatildeo estereotiacutepica que as
identificam entre si e as distinguem das demais entidades atraveacutes de atributos
materiais como o cachimbo e o vinho doce podendo usar chapeacuteu de palha e lenccedilos
(BRUMANA MARTINEZ 1991 p 240)
78
Podemos pensar nas entidades da Umbanda enquanto mediadores entre
temas culturais mais abrangentes e a experiecircncia corporal Ademais aleacutem desta
codificaccedilatildeo a performance da possessatildeo espiritual vai ocorrer tambeacutem a partir de
uma ldquogramaacutetica da accedilatildeo socialrdquo a partir do contexto do proacuteprio meacutedium (HALE 1997
P 393) Assim os pretos-velhos podem ser analisados como veiacuteculos atraveacutes dos
quais
Umbandistas speak to and embody Brazilian dramas of race and power () Their bodies are worn-out from hard labor torture hunger and accident This is understood most of the time the physical signs stand as a mute reproach for the suffering inflicted by the allegedly benevolent system of Brazilian slavery (HALE 1997 p 395 397)
Geralda entende que eacute a partir dessa experiecircncia comum que ela ganha forccedila
como meacutedium para trabalhar com os(as) pretos-velhos(as) Segundo ela me contou
sobre as histoacuterias dessas entidades eles(as) cantavam para aliviar a dor de tanto que
apanhavam amarrados com a matildeo para traacutes e com os cantos louvavam a Nossa
Senhora Aparecida para que os ajudassem E completou ldquoera soacute no chicote ficavam
presos comendo aquele angu os restos quando a princesa Isabel libertou os
negros eles louvaram a Deusrdquo Ela se lembrou tambeacutem de como ouvia seus pais
contarem sobre os parentes que tinham trabalhado como escravos em Minas Gerais
e da avoacute Maria Bernarda que chorava e falava que eles natildeo tinham liberdade
O acionamento dos espiacuteritos dos antepassados dos negros representado de
um modo abrangente por estas entidades espirituais deste modo faz com que se
tornem mediadores da elaboraccedilatildeo identitaacuteria o que reforccedila a forccedila poliacutetica da
memoacuteria revivida nos rituais da Umbanda Este paralelismo construiacutedo na fala de
Geralda sobre a experiecircncia de trabalho racismo pobreza escravidatildeo em relaccedilatildeo agraves
entidades dos pretos-velhos foi se explicitando ao longo do trabalho etnograacutefico
Segundo ela como trabalhou muito catando algodatildeo sabe bem o que eacute o trabalho
duro e o porquecirc de os pretos-velhos serem encurvados pois era de tanto trabalhar na
roccedila no sol quente Eacute por causa da lembranccedila deste corpo torturado sujeito a um
sofrimento ilegiacutetimo que quando o preto-velho sai do corpo do meacutedium e
desincorpora eles te mata ocecirc de tatildeo sofrido que eles eram
79
FIGURA 12 Geralda com imagem de preto-velho que compotildee o seu altar
Esta memoacuteria do sofrimento ilegiacutetimo do tempo da escravidatildeo se desdobra
em uma infeliz continuidade que se estende ao tempo presente Neste sentido haacute
uma reflexatildeo feita pelos quilombolas sobre como a pobreza assim como o racismo
institui uma realidade contraacuteria agrave vontade divina jaacute que foi Deus que nos deu esta cor
e todos somos irmatildeos perante a Ele Nesse sentido a cunhada de Geralda casada
com seu irmatildeo Joaquim Eva que eacute a principal referecircncia da praacutetica do catolicismo na
comunidade de Guaiacutera comenta sobre como passou a ter orgulho de sua cor
Eva Eu tenho o maior orgulho que eu sou preta eu natildeo tenho problema que eu sou preta natildeo Deus me deu esta cor e eu natildeo ligo natildeo () De primeiro eu tinha vergonha que eu era preta eu natildeo ligo que eu sou preta natildeo Deus fez eu assim eu tenho que ficar assim vou fazer o quecirc Natildeo tem como a pessoa mudar mais Eacute a vontade de Deus assim a cor da pessoa com sauacutede
A ideia de que haveria uma maior sacralidade dos negros eacute recorrente neste
grupo quilombola Liliana Porto encontrou uma concepccedilatildeo proacutexima nas suas
pesquisas no Vale do Jequitinhonha e aponta que ldquosatildeo os negros e pobres os
80
legiacutetimos representantes do divinordquo (PORTO 2007 p 143) Estas duas experiecircncias
de subalternidade a pobreza e o racismo muito presentes na histoacuteria do grupo
quilombola em Guaiacutera satildeo vistas por eles como recompensadas por Deus por outro
lado atraveacutes da presenccedila de dons mediuacutenicos e espirituais em vaacuterios membros da
famiacutelia como meacutediuns benzedores e adivinho Desde os meus primeiros contatos
com a comunidade ainda em 2011 quando eu era assessora do Ministeacuterio Puacuteblico
Geralda jaacute se identificara como umbandista e nos mostrou sua carteirinha do Conselho
Mediuacutenico do Brasil (CEBRAS)
FIGURA 13 Carteirinha de Geralda do Conselho Mediuacutenico do Brasil
As histoacuterias da manifestaccedilatildeo da mediunidade e dons de benzimento cura e
adivinhaccedilatildeo satildeo muito valorizadas internamente como um dom Seria como uma
missatildeo recebida do plano superior que coloca em movimento o acesso agraves fontes do
sagrado democratizando-o e provocando uma ldquorotinizaccedilatildeo dos milagresrdquo (BRUMANA
MARTINEZ 1991 p 23-25) A histoacuteria do finado Zeacute Maria eacute muito interessante
neste sentido Como me contou Geralda quando ele nasceu ele veio dentro de uma
espeacutecie de capa um envoltoacuterio que era um iacutendice reconhecido pelos adultos de sua
capacidade de adivinhaccedilatildeo um dom que ele jaacute veio trazendo porque Deus deu a ele
A parteira (Maria Inaacutecia das Dores matildee de Antocircnio e sogra de Geralda) que conhecia
o significado desta peculiaridade perguntou para D Ana matildee de Zeacute Maria se ela
81
queria guardar a capa mas a matildee disse que natildeo e esta foi enterrada Se tivesse sido
guardada quando ele completasse sete anos poderia ser confirmado seu dom
adivinhatoacuterio atraveacutes do seguinte desafio pegariam a roupa que ele usou quando
nasceu e colocariam no meio de outras Se ele adivinhasse qual era a que tinha usado
na ocasiatildeo de seu nascimento o seu dom estaria confirmado Mesmo este processo
natildeo tendo sido feito Geralda reforccedilou como ele era sabido e natildeo falava nada errado
ou seja o dom estaacute presente independente de um processo ritual de confirmaccedilatildeo
Haacute entre os membros do grupo a referecircncia mais forte dos seguintes
benzedoresbenzedeiras que jaacute faleceram e vieram de Minas Gerais morar em Guaiacutera
Ana Rodrigues (esposa de Manoel Ciriaco) Altina (tia de Ana Rodrigues irmatilde de sua
matildee Maria Bernarda) Maria Madalena (nora de Altina e sogra de Geralda) Geraldo
(filho de Altina e pai de Eva) Sobre Geralda sua matildee Ana Rodrigues benzeu muita
gente no ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo e depois falavam que a gente natildeo prestava
FIGURA 14 Altina importante benzedeira na memoacuteria comunitaacuteria68
68 Ela faleceu com 108 anos e segundo acreditam essa era sua idade miacutenima jaacute que ela foi registrada
em Minas Gerais e antigamente se demorava para fazer o registro da crianccedila
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Segundo Geralda nascida em 1962 e criada em Guaiacutera no siacutetio os meus pais
criaram noacutes assim iam buscar remeacutedio na casa dos benzedor o que destaca o
aspecto maacutegico das concepccedilotildees de sauacutede e doenccedila na comunidade Os remeacutedios
eram predominantemente caseiros produzidos a partir da proacutepria mata como as
garrafadas os chaacutes o uso terapecircutico de uma diversidade de plantas medicinais A
restauraccedilatildeo da sauacutede neste contexto eacute permeada por uma concepccedilatildeo ampla que
natildeo se restringe a males com origens fiacutesicas mas perpassam uma seacuterie de ameaccedilas
miacutesticas como o mau-olhado o quebrante ateacute a feiticcedilaria que soacute podem ser revertidos
por meio de benzeccedilotildees simpatias curas recebidas espiritualmente ou no caso do
feiticcedilo com accedilotildees de defesa que anulem seus efeitos69 Um contexto semelhante eacute
analisado por Porto a partir da etnografia realizada proacuteximo da regiatildeo de origem do
grupo no Alto Jequitinhonha
No universo acima delineado a percepccedilatildeo do processo sauacutede e doenccedila eacute bastante complexa envolvendo uma seacuterie de avaliaccedilotildees em torno de questotildees religiosas maacutegicas e orgacircnicas e natildeo sendo evidente a separaccedilatildeo entre estas esferas () natildeo se baseia em uma distinccedilatildeo clara entre natural e sobrenatural Mesmo a distinccedilatildeo entre ldquodoenccedila de meacutedicordquo e ldquodoenccedila de curadorrdquo hoje existente me parece muito mais o resultado de um processo de especializaccedilatildeo dos serviccedilos de cura e a classificaccedilatildeo natildeo eacute necessariamente excludente (PORTO 2005)
Geralda ressaltou vaacuterias vezes em conversas comigo e tambeacutem pude
observar na minha estadia em sua casa a quantidade de pessoas que ela benze
neste caso ldquosozinhardquo aleacutem do benzimento que ela faz como meacutedium no terreiro Haacute
para ela um sentido de obrigaccedilatildeo como benzedeira em atender a todos que lhe
pedem ajuda Desde pequena relatou jaacute pediam para que ela benzesse mas ela natildeo
queria e fugia Quando comeccedilou a trabalhar na Umbanda a demanda de benzimento
69 Atualmente satildeo muito mais dependentes da aquisiccedilatildeo de remeacutedios e alguns frequentam meacutedicos
regularmente tanto no postinho do Maracaju onde haacute uma tarde disponibilizada na semana exclusivamente para os quilombolas Haacute tambeacutem casos que dependem dos deslocamentos promovidos pelo municiacutepio principalmente a Cascavel para tratamentos especializados agendados pelo SUS (principalmente Joaquim que tem problema na perna Eva e Geralda que tecircm problemas nos olhos) Adir e Joaquim fazem questatildeo de frisar que natildeo tomam remeacutedio de farmaacutecia e Nilza viuacuteva de Zeacute Maria me relatou que foi pouquiacutessimas vezes no meacutedico durante toda a sua vida Se por um lado a medicina busca se impor como discurso hegemocircnico por outro os especialistas populares de cura natildeo desaparecem bem como haacute manifestaccedilotildees de resistecircncia de algumas pessoas da comunidade em aderir a ida aos meacutedicos ou o uso de remeacutedios como tratamento (PORTO 2013a p 73)
83
aumentou bastante e as entidades lhe orientaram no sentido de que ela tinha que
benzer sem restriccedilatildeo para que pudesse ter a felicidade em sua vida70
Em relaccedilatildeo aos dons mediuacutenicos entre os membros da comunidade de
Guaiacutera satildeo mais citados os irmatildeos de Geralda ldquofinado Antocircniordquo ldquofinado Zeacute Mariardquo e
Joaquim Geralda e seu marido Antocircnio conhecido como Guaraacute Os pais de Geralda
seu Manoel e dona Ana segundo ela comentou jaacute frequentavam centro de umbanda
desde Minas Gerais mas natildeo trabalhavam O finado Antocircnio assassinado no comeccedilo
da deacutecada de 90 eacute a principal referecircncia de trabalhos mediuacutenicos tendo manifestado
seus dons desde crianccedila enquanto ldquouma capacidade inata para encontrar e incorporar
espiacuteritosrdquo sem necessidade de iniciaccedilatildeo para tanto (SANSI 2009 p 141)
Segundo Sansi as religiotildees afro-brasileiras incorporam a histoacuteria em suas
praacuteticas rituais atraveacutes da relaccedilatildeo dialeacutetica entre a iniciaccedilatildeo pela reproduccedilatildeo das
dinacircmicas da tradiccedilatildeo e o dom expresso na capacidade dos meacutediuns de
incorporarem novos espiacuteritos (SANSI 2009) A presenccedila de manifestaccedilotildees de
mediunidade entre os membros da comunidade quilombola em questatildeo abrange
essas duas possibilidades pois em alguns casos ela parte de um dom de
mediunidade que a pessoa jaacute trouxe desde a infacircncia e desenvolveu de modo
autocircnomo como no caso de Antocircnio e em outros casos esta capacidade de
incorporaccedilatildeo mediuacutenica dependeu de um processo de iniciaccedilatildeo na Umbanda como
na histoacuteria de Geralda
Esta matriz de religiosidade afro-brasileira71 natildeo eacute portanto dependente
unicamente da relaccedilatildeo com terreiros de Umbanda mas tambeacutem eacute resultado de uma
experiecircncia histoacuterica e cultural proacutepria da trajetoacuteria familiar Nesta trajetoacuteria familiar o
que poderia ser compreendido em outros contextos como catolicismo e umbanda
enquanto esferas distintas manifestam-se em um mesmo continuum de dinamicidade
70 Quando as pessoas vatildeo em sua casa pedir benzimento geralmente mulheres moccedilas e crianccedilas ela
pega o nome completo acende uma vela para o anjo da guarda daquela pessoa e pede para que os orixaacutes intercedam por ela Entatildeo benze com um ramo de arruda o que pode se repetir por trecircs dias consecutivos caso necessaacuterio Geralda entende que a proacutepria pessoa deve trazer a vela para que o pedido seja feito em sua intenccedilatildeo mas muitas vezes as pessoas natildeo trazem e ela se sente sobrecarregada pois acaba oferecendo a vela com seus proacuteprios e escassos recursos Natildeo haacute nestes casos uma reciprocidade pela ajuda realizada o que fere a proacutepria dinacircmica de oferecimento e recompensa que permeia a relaccedilatildeo com o sagrado em sua visatildeo 71 Segundo GOLDMAN uma definiccedilatildeo inicial sobre as ldquoreligiotildees afro-brasileirasrdquo aponta para ldquoum
conjunto algo heteroacuteclito mas certamente articulado de praacuteticas e concepccedilotildees religiosas cujas bases foram trazidas pelos escravos africanos e que ao longo da sua histoacuteria incorporaram em maior ou menor grau elementos das cosmologias e praacuteticas indiacutegenas assim como do catolicismo popular e do espiritismo de origem europeiardquo (2009 p 106)
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Nas histoacuterias sobre o finado Antocircnio seus irmatildeos contam como ele comeccedilou a se
desenvolver mediunicamente em casa sozinho e passou a realizar trabalhos em uma
casinha de coqueiro e tambeacutem dentro da mata do siacutetio com o apoio dos demais
irmatildeos que tambeacutem tinham o dom Geralda e Guaraacute lembraram que ele trabalhava
com baiano (baiano Juvenal) caboclo exu penacho boiadeiro Zeacute Pilintra preto-
velho pomba-gira e outros
Por motivo do preconceito religioso que sofreram da parte dos vizinhos que
os acusavam de macumbeiros feiticeiros coisa do capeta entre outros Antocircnio
resolveu se mudar do siacutetio deixar o conviacutevio cotidiano com sua famiacutelia para poder
trabalhar como curador e cumprir sua missatildeo primeiro em Terra Roxa e depois se
fixou na Vila Guarani periferia de Guaiacutera Joatildeo Aparecido o irmatildeo caccedilula me contou
sobre este processo
Joatildeo Soacute que eu sei que na vila Guarani Dandara oacuteia ele recebia muita gente Aqui nessa regiatildeo ele tirava em primeiro lugar ele que atingia mais gente nessa regiatildeo aqui Dandara Mais ateacute que esse terreiro hoje que a Geralda vai Joatildeo Mais porque ela (a matildee de santo D Penha) natildeo tinha aquilo ali antigamente O dela era bem mais pequeno Soacute que ela natildeo recebia o tanto de gente que meu irmatildeo recebia natildeo Ele recebia muita gente por dia Tinha dia que a gente chegava laacute e ele falava assim ldquooh eu tocirc ateacute agora natildeo almocei tomei um cafezinho aacutegua soacuterdquo Era gente do Mato Grosso Paraguai Cascavel toda regiatildeo Dandara vinha Esses dias atraacutes o Joaquim recebeu um cara aqui o cara vinha a procura dele Aiacute o Joaquim falou com ele ldquoOh infelizmente o meu irmatildeo faleceurdquo O cara saiu daqui de cabeccedila baixa Entatildeo tem muita gente ainda que natildeo sabe e sempre na cidade eles pergunta noacutes o que aconteceu que meu irmatildeo natildeo recebe mais ningueacutem aiacute noacutes falamos ldquonatildeo ele faleceurdquo Eu tenho tudinho guardado na lembranccedila tudinho tem o local laacute em cima na mata onde ele fazia os trabalhos dele Entatildeo tenho ateacute hoje e foi uma desde pequeno que a gente vem nessa religiatildeo da Umbanda soacute que a gente assim Dandara natildeo vecirc assim tem gente que vecirc a Umbanda como se fosse assim ah a religiatildeo do democircnio outros natildeo vecirc como uma boa coisa mas a gente vecirc assim que vocecirc mesmo vocecirc pode assistir laacute natildeo sei se vocecirc pocircde assistir um trabalho Natildeo eacute coisa do outro mundo Que tem muitos que vecirc aquilo ali e meu deus do ceacuteu eacute coisa que que vai acabar com tudo Natildeo eacute Sempre a gente fala mesmo assim pra jogar pedra eacute faacutecil mas vocecirc tem que ver primeiro as coisas pra depois vocecirc estar criticando Porque essa religiatildeo a gente foi muito criticado por causa disso ai mesmo Quando ele (Antocircnio) trabalhava aqui teve uma eacutepoca que a gente teve que trabalhar escondido porque os pessoal natildeo podia saber que natildeo eles ia falava ldquoaqueles ali tatildeo mexendo tudo eles satildeo macumbeiro eles satildeo feiticeirordquo Soacute que a gente natildeo trabalhava pro mal porque foi um dom que ele recebeu neacute mas eles via aquilo ali e nossa Aiacute ele falava assim ldquoNatildeo eu sou obrigado a trabalhar escondido pra ningueacutem ficar sabendordquo
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Geralda eacute a irmatilde que daacute continuidade como meacutedium para os trabalhos de seu
irmatildeo Antocircnio atualmente Um siacutembolo desta vinculaccedilatildeo de forccedila e missatildeo eacute uma
guia (colar) com as sete linhas da Umbanda que ela recebeu de Antocircnio e que natildeo
tira do pescoccedilo haacute mais de vinte anos Geralda me disse que vai fazer um terreiro
ainda que isso eacute um desejo que ela vai realizar Ela (52 anos) e seu marido que
tambeacutem se chama Antocircnio (49 anos) frequentam a Associaccedilatildeo Espiacuterita Reino de
Baluaecirc72 localizada no Municiacutepio de Terra RoxaPR (vizinho agrave Guaiacutera)73
FIGURA 15 Geralda e Antocircnio (Guaraacute) em frente ao altar apoacutes a realizaccedilatildeo da ldquogirardquo
72 Disponiacutevel em wwwreinodebaluaecombr Acesso em 20082014 73 As ldquogirasrdquo nome dado ao ritual central da Umbanda aberto para que as pessoas se consultem
diretamente com as entidades (principalmente preto-velho caboclo e vaacuterias formas de Exu) ocorrem aos saacutebados duas vezes no mecircs Geralda eacute meacutedium de incorporaccedilatildeo e Guaraacute estaacute girando ainda ou seja estaacute sendo preparado para que possa incorporar Enquanto isso ele daacute suporte agrave muacutesica por meio do pandeiro ou tambor que satildeo muito importantes nas chamadas que satildeo feitas para que as
entidades baixem no terreiro
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Geralda fala do desenvolvimento de sua mediunidade como um mandato
espiritual pois se fosse por ela natildeo queria ter desenvolvido este trabalho o qual
implica em muitas obrigaccedilotildees e restriccedilotildees pois jaacute estava cansada pelo tanto que
trabalhara na roccedila em serviccedilo pesado a vida inteira Antes de comeccedilar a trabalhar
ela jaacute frequentava o terreiro para buscar atendimento e ficava na assistecircncia de onde
as pessoas que natildeo fazem parte do corpo de trabalho da casa observam a sessatildeo e
satildeo beneficiadas por ela Chegou um tempo em que ela comeccedilou a sentir muita
fraqueza colocava a panela no fogo e tinha que deitar Quando foi consultar no terreiro
para ver o que era a Matildee de Santo que eacute o cargo mais alto da hierarquia da Umbanda
(eacute quem tem e manteacutem o terreiro) lhe disse que teria que trabalhar como meacutedium
caso contraacuterio ela soacute iria piorar e ldquodava seis meses tava morta porque tinha que ter
algueacutem pra substituirrdquo O diagnoacutestico da doenccedila portanto como eacute muito comum nas
histoacuterias dos meacutediuns indicou a interferecircncia de um espirito no sentido da
necessidade do desenvolvimento da mediunidade da pessoa com seu consequente
ingresso na Umbanda (BRUMANA MARTIacuteNEZ 1991 p 64)
Geralda e seu marido Antocircnio (Guaraacute) fazem pedidos e oferecem retribuiccedilotildees
agraves entidades recorrentemente em um quarto de sua casa que aliaacutes era o quarto que
eu dormia quando fiquei hospedada com eles Quando eu ia me deitar geralmente
esperava a vela apagar o cigarro acabar e eles retiravam as oferendas para que eu
pudesse me deitar Essa experiecircncia me provocava sensaccedilotildees diferentes e
impactantes quando eu pensava que aquele quarto estava povoado por relaccedilotildees e
seres invisiacuteveis Esse processo de comunicaccedilatildeo entre pessoas e entidades e qual
entidade estava sendo acionada em determinado dia natildeo me era relatado apenas
algumas informaccedilotildees eram mencionadas mas sempre encobertas por um ar de
misteacuterio enquanto conhecimento iniciaacutetico Importante eacute perceber apesar de eu natildeo
poder me aprofundar neste tema agora que a Umbanda nesta dinacircmica de interaccedilatildeo
recupera a reciprocidade como valor de modo que o dar-e-receber atua ldquocomo um
princiacutepio moral fundamental que une todos os homens entre si e toda a humanidade
viva com uma humanidade morta este mundo com o outro e os homens com os
Orixaacutesrdquo (BRUMANA MARTINEZ 1991 p 25)
Geralda questionou em conversas comigo o porquecirc de algumas pessoas
terem inveja dela no terreiro como uma outra meacutedium com quem teve um seacuterio
desentendimento Na avaliaccedilatildeo de Geralda uma mulher branca de classe meacutedia que
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tem um carro e sabe dirigir tem muito mais reconhecimento na sociedade do que ela
que sendo ldquopreta e pobrerdquo em seus proacuteprios termos sabe que ocupa na classificaccedilatildeo
social hegemocircnica o lugar menos privilegiado No entanto por outro lado Geralda
reconhece que possui uma forccedila que esta sua mesma origem lhe confere uma forccedila
que eacute miacutestica podemos dizer e que estaacute ligada agrave feacute e agrave proteccedilatildeo que recebe dos seus
Orixaacutes74 o que tambeacutem eacute valorizado pelo Pai de Santo do terreiro que ela frequenta
Pude perceber que o reconhecimento em relaccedilatildeo ao papel de Geralda que lhe
eacute conferido pelos seus vizinhos da ldquoEletrosulrdquo enquanto benzedeira meacutedium de um
terreiro com sabedoria e capacidade de orientaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo valorizado no acircmbito
de sua proacutepria famiacutelia Se Adir eacute quem tem o manejo como mediador com os agentes
externos para realizar as articulaccedilotildees poliacuteticas ela desde o comeccedilo da minha
estadia estava me dizendo nas entrelinhas que era quem possuiacutea o manejo como
mediadora junto aos espiacuteritos e agraves forccedilas miacutesticas Ela eacute quem domina atualmente a
esfera da religiosidade afro-brasileira a qual embora seja em algumas situaccedilotildees
acionada como um siacutembolo para a afirmaccedilatildeo da identidade negra e quilombola do
grupo natildeo aparece de modo tatildeo expliacutecito como por exemplo a capoeira praacutetica que
tambeacutem remete a esta ldquomnemocircnica do corpordquo (CONNERTON 999 p 86)
Deve-se levar em conta que o tema da religiosidade afro-brasileira eacute ainda
muito delicado pois vinculado a um forte preconceito racialreligioso presente na
sociedade brasileira Jaacute a capoeira eacute um marcador negro muito menos polecircmico e cuja
performance da roda se consolidou como modo de apresentaccedilatildeo da comunidade
quilombola nas visitas feitas pelas escolas Este natildeo acionamento da Umbanda como
elemento diacriacutetico enquanto quilombolas remete ao fato de esta religiatildeo que
apresenta aspectos de influecircncia africana e que remete agrave experiecircncia negra no Brasil
eacute tambeacutem um motivo de estigmatizaccedilatildeo para o grupo como explicitado na fala acima
de Joatildeo sobre a saiacuteda de Antocircnio do siacutetio pelas acusaccedilotildees que recebia tendo que
desenvolver seu trabalho como meacutedium na periferia de Guaiacutera
Neste sentido interessante refletir sobre a dinacircmica que se estabeleceu no
Brasil entre religiosidade magia e preconceito racial jaacute que ldquoa visatildeo construiacuteda do
negro e de sua religiatildeo os vincula a caracteriacutesticas natildeo soacute desvalorizadas mas
74 Ela estaacute sempre dizendo que se natildeo fossem os seus Orixaacutes lhe ajudando ela natildeo sabe como
conseguiria dar conta de todas as suas atribuiccedilotildees cotidianas jaacute que tem a sauacutede fraca desde pequena o que se agravou de tanto trabalhar aleacutem de um problema especiacutefico nos olhos
88
tambeacutem socialmente condenadasrdquo75 Construiu-se assim um sistema classificatoacuterio
elaborado a partir da perspectiva dicotocircmica entre bem e mal no qual as religiotildees
cristatildes figuram no polo do bem e enquanto modelo branco satildeo vistas precisamente
como religiotildees Jaacute as religiotildees afro-brasileiras aparecem no polo oposto entendidas
ao contraacuterio como feiticcedilaria ou ldquomacumbariardquo ou seja em alusatildeo ao mal (PORTO
2014187-190) Deste modo este viacutenculo entre preconceito racial e preconceito
religioso somado agrave ldquocondenaccedilatildeo moral da magiardquo a partir da identificaccedilatildeo feita com
ldquoo uso da magia maleacutefica ndash feiticcedilaria ou lsquomagia negrarsquordquo remonta a processos histoacutericos
do periacuteodo colonial Eacute ainda no Brasil colocircnia que se consolida o medo do feiticcedilo no
Brasil direcionado por meio de acusaccedilotildees feitas pelos sujeitos legitimados do sistema
dominante branco e catoacutelico aos natildeo brancos indiacutegenas e negros ou seja aos que
constituiacuteam as alteridades deste modelo (PORTO 2014 191) A imagem do negro
portanto eacute elaborada pela elite a partir de estereoacutetipos negativos que se reforccedilam e
que constroem seu lugar marginal na sociedade Evidencia-se assim a importacircncia
do preconceito para a manutenccedilatildeo da ordem vigente por atribuir argumentos que
legitimariam a exclusatildeo e exploraccedilatildeo desta camada da populaccedilatildeo
O caso do grupo quilombola em questatildeo eacute relevante notar articula estas
referecircncias de religiotildees de matriz afro-brasileiras com expressotildees do catolicismo
popular ou mesmo com o que podemos chamar de ldquocatolicismo negrordquo Esta
articulaccedilatildeo eacute muito presente na religiosidade de Eva quilombola de 50 anos que eacute
detentora de vasta memoacuteria da histoacuteria do grupo76 Ela mora no siacutetio desde seus dois
anos de idade quando seus pais Geraldo e Antocircnia migraram de Satildeo Paulo para o
Paranaacute junto com as demais famiacutelias Eacute casada com Joaquim filho de Manoel Ciriaco
com quem possui certo grau de parentesco consanguiacuteneo (primos de terceiro grau)
Sua devoccedilatildeo eacute reconhecida pelas demais pessoas simbolicamente no fato de ela
cumprir seu ritual cotidiano de rezar o terccedilo de joelhos todos os dias agrave noite depois
de jaacute ter rezado de manhatilde vinte ave-marias (por isso os dois joelhos dela estatildeo
75 A reafirmaccedilatildeo do preconceito teve papel fundamental no momento em que foi abolida a escravidatildeo
no paiacutes sendo que a religiosidade negra eacute um dos pilares que o sustenta Como se pode observar na associaccedilatildeo estrateacutegica realizada por meio da criminalizaccedilatildeo de praacuteticas das religiotildees afro-brasileiras no Coacutedigo Penal de 1890 Interessante notar neste sentido que apesar de os elementos maacutegico-religiosos marcarem toda a religiosidade nacional sua identificaccedilatildeo ficou restrita aos sujeitos natildeo brancos (PORTO 2014 200-201) 76 Lembrando inclusive o ano em que os fatos preteacuteritos aconteceram data de aniversaacuterio de muitos
parentes Eva conversa tranquilamente sobre a genealogia da famiacutelia sabendo contaacute-la a partir da histoacuteria de fixaccedilatildeo do grupo no Paranaacute
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marcados com uma espeacutecie de calo como lembrou sua filha Jaqueline enquanto
conversaacutevamos sobre este assunto)77
Ademais ela frequenta com seu marido Joaquim (55) e suas duas filhas
Jaqueline (20) e Janaina (14) as missas em Guaiacutera apenas uma vez por mecircs apesar
de que gostaria de poder ir mais frequentemente Isso se torna difiacutecil devido ao
dispecircndio com o combustiacutevel necessaacuterio para percorrer o trecho entre o bairro rural
Maracaju dos Gauacutechos e a sede do Municiacutepio distante 20 km Por muitas vezes natildeo
poder se deslocar ela utiliza aleacutem do raacutedio a televisatildeo que transmite missas e
terccedilos78 Antes do conflito ocorrido entre o grupo e os proprietaacuterios vizinhos79 o qual
foi desencadeado pelo processo administrativo de regularizaccedilatildeo quilombola eles
frequentavam a igreja do ldquoMaracajurdquo o que se tornou insustentaacutevel para o grupo Eva
me explicou como ldquoficava sem jeito de ir para a igrejardquo
Dandara Como que foi essa saiacuteda Eva Isso aiacute porque as turma ficou com raiva de noacuteis por causa do negoacutecio do INCRA aiacute cara feia pra noacutes sei laacute eu ficava sem jeito pra ir na Igreja neacute as turma falava assim ldquoah pode ir eles natildeo pode toca ocecircs da igreja a igreja eacute puacuteblica a igreja eacute pra todo mundordquo ningueacutem pode tocar a gente da igreja mas a pessoa fica com vergonha de ir neacute porque eles natildeo conversa com a pessoa nem nada como eacute que a gente vai na igreja Dandara E o padre assim vocecirc sentiu alguma coisa da parte do padre Eva Ah o padre acho que puxava mais pras turma ele veio uma vez na comunidade aqui ele rezou a missa nem conversou muito com noacutes conversou pouco e quando noacutes puxou no assunto aqui das turma ele escapou fora foi embora e natildeo vortocirc mais Dandara A Sra imagina de ter uma igreja aqui Eva Meu sonho menina eacute ter uma Igreja aqui eu falo pro Adir direto eacute meu sonho que tivesse uma igreja perto direto eu tava na igreja
77 Tambeacutem ouve diariamente pelo raacutedio o programa ldquoExperiecircncia de Deusrdquo apresentado pelo Padre
Reginaldo Manzotti enquanto organiza a cozinha em seu ritmo hoje mais lento devido a seu problema de visatildeo Este programa tem uma hora de duraccedilatildeo e conta com a participaccedilatildeo de ouvintes leitura biacuteblica que Eva acompanha com sua biacuteblia em matildeos aleacutem da realizaccedilatildeo de novena 78 Eva contou que na sexta-feira santa como ela natildeo pocircde ir na ldquoprocissatildeo do Senhor Mortordquo ela
benzeu pela tv um ramo de aacutervore Esta procissatildeo antigamente era acompanhada por muitas pessoas do grupo e ldquouma renca de gente aqui da comunidade ia a peacute ateacute Terra Roxardquo municiacutepio vizinho agrave Guaiacutera cuja sede fica mais proacutexima ao siacutetio Os meios de comunicaccedilatildeo de massa portanto satildeo utilizados como em outras comunidades tradicionais com presenccedila de catoacutelicos para que se possa ter acesso a ritos religiosos e praacuteticas em certa medida maacutegicas como a benzeccedilatildeo de aacutegua 79 O tema do conflito ocorrido em 2009 e 2010 com os proprietaacuterios vizinhos seraacute abordado no proacuteximo
capiacutetulo
90
Apesar de natildeo poder mais frequentar a igreja com a frequecircncia que gostaria
isso natildeo diminui a vivecircncia cotidiana que ela tem de sua feacute Por outro lado as pessoas
do Maracaju dos Gauacutechos que estatildeo indo na igreja na visatildeo de Eva natildeo tecircm uma
atitude cristatilde Isso porque mesmo dentro da missa satildeo movidos por sentimentos de
discriminaccedilatildeo e de orgulho o que acabou fazendo com que os membros da
comunidade natildeo se sentissem mais confortaacuteveis para continuar frequentando tal
igreja
Em relaccedilatildeo ao preconceito racial que ateacute hoje sofrem no ldquoMaracaju dos
Gauacutechos ele se estende inclusive a Nossa Senhora Aparecida santa negra de quem
a comunidade eacute devota Neste sentido Joaquim me contou uma histoacuteria sobre uma
senhora que havia se mudado para bairro rural e que tinha feito uma promessa para
Nossa Senhora Aparecida Ela foi de ocircnibus com a famiacutelia agrave Basiacutelica em AparecidaSP
e de laacute trouxe uma imagem e tinha o desejo de colocaacute-la na igreja do Maracaju Mas
como a maioria dos moradores satildeo descendentes de imigrantes europeus com
atitudes consideradas racistas pelos quilombolas eles natildeo aceitaram a santa
alegando que ela era a ldquoNossa Senhora dos Morcegosrdquo em referecircncia a ser uma santa
negra Joaquim concluiu afirmando que se eles tinham raiva da santa que natildeo lhes
poderia fazer nenhum mal ele imaginava entatildeo o quanto tinham raiva das pessoas
da comunidade Mas ele acrescentou que posteriormente houve outra pessoa que
fez uma promessa e que entatildeo eles acabaram tendo que aceitar colocar a santa na
igreja do Maracaju Nossa Senhora Aparecida eacute natildeo somente negra mas tambeacutem a
padroeira do Brasil A devoccedilatildeo a ela eacute muito grande em todo o paiacutes (sendo um
exemplo a relevacircncia das romarias a Aparecida do Norte inclusive entre os membros
do grupo) A recusa agrave santa negra eacute sentida de uma forma particular pela comunidade
mas a resistecircncia dos vizinhos europeus natildeo pode se sustentar embora natildeo tenha
sido vencida por um membro da comunidade mas por uma pessoa natildeo identificada
Importante neste momento pontuar que uma anaacutelise aprofundada das
concepccedilotildees e praacuteticas religiosas da comunidade demandaria um capiacutetulo inteiro desta
dissertaccedilatildeo No entanto objetivo analisar neste subitem alguns aspectos dentro
deste universo religioso que sobressaem atraveacutes das dinacircmicas de movimento
(concretas e natildeo-concretas) e de comunicaccedilatildeo entre expressotildees religiosas Durante
o trabalho de campo fui me tornando mais atenta para situaccedilotildees e narrativas que
apontavam como as percepccedilotildees quilombolas sobre diferentes praacuteticas religiosas natildeo
91
eram descontiacutenuas ou antagocircnicas mas permeadas por diaacutelogos permanentes e
proacuteximos o que eacute comum observar em contextos de religiosidade popular80 O
movimento tambeacutem permeia a accedilatildeo religiosa dos membros da comunidade por meio
da praxe dedicada agrave circulaccedilatildeo entre pessoas e santos (permeada por promessas)
bem como em relaccedilatildeo agraves entidades da umbanda (por meio de pedidos oferendas e
obrigaccedilotildees) Esta dimensatildeo relacional vai tecendo uma socialidade comum entre
sujeitos que embora hieraacuterquica natildeo eacute irrevogaacutevel Em contraposiccedilatildeo a dinacircmica
estabelecida entre Deus e fiel eacute constituiacuteda pela distacircncia equivalente agrave relaccedilatildeo entre
sujeito e objeto (CALAVIA SAEZ 2009 p 204-205) As viagens rituais para o
pagamento de promessas para o santuaacuterio de Nossa Senhora Aparecida localizado
no municiacutepio de AparecidaSP tambeacutem apontam para a importacircncia do movimento no
contato com o sagrado como nas experiecircncias de peregrinaccedilatildeo e romaria (TURNER
2008 p 155-214)
Haacute muitas histoacuterias no grupo de promessas feitas a Nossa Senhora Aparecida
que foram atendidas Uma delas a primeira que Eva me contou foi feita por sua sogra
Ana Rodrigues esposa de Manoel Ciriaco Interessante notar que quando Eva foi me
contar como a promessa veio a se cumprir ou seja quando Joaquim enfim conseguiu
parar de beber o contexto passou a trazer elementos e entidades da Umbanda
demonstrando a continuidade a que nos referimos acima D Ana pediu agrave santa que
seu filho Joaquim marido de Eva parasse com o viacutecio com bebidas alcoacuteolicas
Mandou entatildeo fazer uma capelinha para a imagem da santa e quando Eva e Joaquim
se casaram ela lhes deu de presente A cura de Joaquim do viacutecio no entanto veio
de um modo inesperado e assustador Tudo aconteceu quando Joaquim tinha parado
de fazer suas obrigaccedilotildees com os Orixaacutes pois costumava ascender vela e defumar a
casa Um dia ele incorporou ldquoSeu Tranca Ruardquo (Exu) que chegou e falou para Eva
que iria jogar seu ldquopeacute-de-calccedilardquo81 embaixo de quatro rodas Neste momento a
entidade estava se referindo ao fato de que ela iria provocar um acidente com o seu
cavalo (o meacutedium) ou seja Joaquim E o que a entidade falou acabou acontecendo
80 Segundo a criacutetica do antropoacutelogo Calavia Saez ldquoa religiatildeo popular eacute a religiatildeo normal natildeo uma
versatildeo empobrecida de algo que se manifesta alhures com maior eficiecircncia ndash algo que boa parte dos estudos sobre religiatildeo subalterna manifesta agrave revelia do paradigma em que se desenvolvemrdquo (CALAVIA SAEZ 2009 p 201) 81 Essa expressatildeo ldquopeacute-de-calccedilardquo eacute utilizada no terreiro de Umbanda para se referir aos homens como me explicou Geralda Depois que eu assisti uma gira no seu terreiro e me consultei com a Preta-Velha que ela tinha incorporado Geralda me esclareceu a duacutevida sobre o significado dessa expressatildeo que a entidade tinha falado para mim
92
Eva me contou que um dia quando Joaquim estava becircbado ele e seu irmatildeo Adir
estavam lidando com o trator quando Joaquim caiu e o trator acabou passando em
cima da perna dele Ele soacute natildeo perdeu a perna neste acidente porque estava com
uma calccedila jeans nova que resistiu e protegeu a perna que ficou pendurada Eva
sonhou com Nossa Senhora Aparecida que lhe disse que natildeo seria necessaacuterio
amputar a perna dele Joaquim ficou vaacuterios dias no hospital e depois por meses em
recuperaccedilatildeo em casa Soacute assim com o susto provocado pelo acidente com o trator
que Joaquim parou de beber e a promessa da sua matildee foi entatildeo atendida
FIGURA 16 Capelinha para Nossa Sordf Aparecida presenteada por D Ana
Pode-se observar portanto que haacute uma comunicaccedilatildeo total entre estes seres
no universo maacutegico-religioso do grupo em uma histoacuteria em que a entidade da
Umbanda um Exu aparece como mediadora para o cumprimento de uma promessa
feita para Nossa Senhora Aparecida o que aponta um marcador de identidade
significativo em contraponto com um ldquooutro catolicismordquo dos vizinhos
O pai de Eva Geraldo tambeacutem foi um dos beneficiados com as graccedilas de
uma promessa atendida por Nossa Senhora Aparecida em mais uma relaccedilatildeo pessoal
bem-sucedida entre santos e fieacuteis Segundo Eva me contou ele pediu agrave santa para
que fosse capaz de aprender a ler e a escrever e que conseguisse comprar um pedaccedilo
93
de terra Aleacutem de ter aprendido o que pediu esse pedaccedilo de terra conquistado foram
os cinco alqueires que ele comprou no Maracaju dos Gauacutechos Deste modo esta
promessa aparece como um mito de origem da comunidade que fortalece a devoccedilatildeo
a Nossa Senhora Aparecida jaacute confirmada por outras promessas atendidas que me
foram narradas
FIGURA 17 Geraldo em 1972 quando foi pagar sua promessa em AparecidaSP
Eva me contou tambeacutem sobre quando ela e Joaquim foram em romaria a
Basiacutelica de Nossa Senhora Aparecida em AparecidaSP82 para pagar a promessa que
ele tambeacutem tinha feito para que ele conseguisse parar de beber Ela percebeu
sensaccedilotildees fiacutesicas diferentes ao chegar laacute o que reforccedila o sentimento de que se estaacute
diante de um local sagrado o corpo fica leve e a pessoa natildeo tem pensamentos
82 O Santuaacuterio Nacional eacute o ldquomaior santuaacuterio mariano do mundordquo construiacutedo em 1955 ldquoPreocupados
em providenciar o jantar para o poderoso Conde de Assumar de passagem pela Vila de Guaratinguetaacute trecircs pescadores retiraram com suas redes do Rio Paraiacuteba do Sul uma imagem de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo A imagem ficou abrigada durante anos na casa de um dos pescadores ateacute que em 1745 foi construiacuteda uma capela no Morro dos Coqueirosrdquo Disponiacutevel em httpaparecidaspgovbrhistoria-da-cidade Acesso em 01092014
94
Contou que era preciso pagar trecircs reais para subir ateacute o local onde fica a imagem da
santa que foi encontrada no rio onde tambeacutem ficam expostas as correntes dos
escravos Eva assim como Joaquim entende que eacute possiacutevel circular entre as religiotildees
e que se deve respeitar a todas Faz tempo que ela natildeo vai no terreiro de Umbanda
mas jaacute frequentou e sabe contar em quais dias satildeo realizadas as festas das entidades
como Preto Velho Cosme e Damiatildeo e Zeacute Pilintra Em sua casa possui uma imagem
de Satildeo Cosme e Damiatildeo os santos gecircmeos sincretizados com os orixaacutes ibejis
divindade gecircmea na mitologia yorubaacute (PRANDI 2001366-377)
Quando fui ao terreiro de Umbanda com a Geralda como estava ficando na
casa de Eva e Joaquim no siacutetio conversamos sobre este assunto quando voltei
Joaquim entatildeo contou-me sobre uma mulher de Terra Roxa municiacutepio vizinho que
antes de plantar oferecia as ervas para cada santo e entatildeo a muda dava ldquoTudo tem
um misteacuteriordquo e aquelas pessoas que tecircm matildeo boa sabem disso portanto quando vai
fazer o plantio do milho por exemplo eacute importante ter feacute para ter uma boa colheita Eacute
necessaacuterio ter matildeo boa tambeacutem para fazer o patildeo crescer para fazer vinagre de
mamona e para fazer sabatildeo83 reforccedilando como a intenccedilatildeo da pessoa que prepara
interfere no resultado obtido Eva tambeacutem eacute conhecedora da preparaccedilatildeo de
garrafadas que satildeo remeacutedios caseiros ensinados pelos antigos Mesmo entre aqueles
que natildeo frequentam atualmente terreiro de Umbanda percebe-se como a
religiosidade eacute maacutegica e eacute permeada por ritos de proteccedilatildeo relacionados com um
ldquocatolicismo negrordquo brasileiro
Ao olhar para o futuro Eva fala de uma mudanccedila que ocorreraacute na percepccedilatildeo
sobre as religiotildees pois segundo me contou no Apocalipse o fim do mundo estaacute
anunciado que todas as religiotildees seratildeo uma soacute jaacute que Deus eacute um soacute Este Deus uacutenico
aponta como sua a concepccedilatildeo de religiatildeo tem por base o cristianismo
Eva Eu Dandara natildeo desfaccedilo de nenhum tem gente que natildeo gosta assim de esprito assim os evangeacutelico tem gente que natildeo gosta Eu natildeo pra mim tudo eacute um soacute Tem gente que fala ldquoah eu natildeo gosto de crenterdquo Eu natildeo eu natildeo falo Porque quando no fim do mundo ateacute o pastor falou isso a igreja vai ser tudo uma soacute vai unir todo mundo junto Deus natildeo separou ningueacutem neacute Deus eacute um soacute Tem gente que natildeo acredita Eu natildeo eu natildeo desfaccedilo de nenhuma eu gosto tudo igual
83 Nesse sentido interessante que na pesquisa realizada por Cambuy na comunidade quilombola Joatildeo
Suraacute em AdrianoacutepolisPR o sabatildeo eacute tido como um preparo que eacute louco de reineiro pois entre todos eacute o mais faacutecil de reinar ou seja natildeo daacute certo se a pessoa que fizer ldquonatildeo tiver o coraccedilatildeo bomrdquo ou se for alvo de olho gordo sendo necessaacuterio para o sucesso do sabatildeo que seja feito em um contexto harmocircnico (CAMBUY 2011 250-252)
95
No entanto quando um pastor que agraves vezes realizava cultos na comunidade
(que mesmo com a forte presenccedila de praacuteticas afro-brasileiras natildeo tem dificuldade de
dialogar com os crentes) quis batizaacute-la ela contou que se negou ldquoAh eu natildeo batizo
na religiatildeo nisso aiacute natildeo Ele queria que eu batizasse na lei de crente mas eu natildeo jaacute
sou batizada desde pequena vou batizar outro batismo pra quecirc rdquo Haacute portanto uma
perspectiva da religiatildeo como abrangente natildeo havendo neste caso contradiccedilatildeo entre
denominaccedilotildees e frequecircncias a espaccedilos diversos No entanto haacute tambeacutem a
necessidade de uma escolha oficial que no caso de Eva se daacute pela religiatildeo catoacutelica
A religiosidade do grupo aponta assim para uma perspectiva proacutepria de um
universo negro que natildeo estabelece fronteiras claras entre as religiotildees mas uma
interdependecircncia constante Como tentamos demonstrar ao longo deste subitem
estas experiecircncias falam de dinacircmicas de movimento natildeo soacute no diaacutelogo entre esferas
religiosas mas de movimentos concretos como nas viagens realizadas para
pagamentos de promessas movimentos estabelecidos na relaccedilatildeo entre devoto e
santo entre meacutedium e entidades espirituais Estas praacuteticas falam de uma memoacuteria
corporal performaacutetica e ritual que constitui parte essencial da relaccedilatildeo que
estabelecem com o passado e da forma de atualizaacute-lo no presente Religiosidade que
marca a relaccedilatildeo entre negritude opressatildeo e santidade significativa nos discursos de
grupos quilombolas sobre sua relaccedilatildeo com o sagrado (PORTO 2007)
96
2 IDENTIDADE QUILOMBOLA E RELATOacuteRIOS ANTROPOLOacuteGICOS
Quando os funcionaacuterios do governo do Paranaacute chegaram ateacute as famiacutelias em
questatildeo em GuaiacuteraPR e lhes apresentaram a possibilidade de reivindicaccedilatildeo da
identidade quilombola nunca tinham ouvido falar neste termo ou sequer imaginavam
que poderiam reivindicar algum direito de um Estado que segundo afirmam nunca
lhes enxergou ou lhes protegeu pelo contraacuterio Esta situaccedilatildeo inesperada causou
muita duacutevida e inseguranccedila sobre acionar ou natildeo a autodeclaraccedilatildeo como quilombolas
tendo em vista os riscos e as consequecircncias da opccedilatildeo por este caminho Quando
optaram por trilhaacute-lo entraram aos poucos em mais uma trajetoacuteria de movimento
agora de inserccedilatildeo e circulaccedilatildeo em novas esferas sociais tanto concretas quanto
simboacutelicas
Passaram entatildeo a ter que lidar com uma linguagem estatal e burocraacutetica que
desconheciam com uma organizaccedilatildeo em termos poliacuteticos por meio de uma
associaccedilatildeo juriacutedica ndash que os integrou formalmente como sujeito coletivo ndash e neste
processo Adir como lideranccedila da comunidade desde entatildeo foi convidado a realizar
vaacuterias viagens como representante quilombola tanto no Paranaacute como em outros
estados Com a pauta de reivindicaccedilatildeo territorial foi desencadeada uma redefiniccedilatildeo
das relaccedilotildees locais vindo agrave tona de forma impactante processos de tensatildeo antes
latentes na convivecircncia com os proprietaacuterios vizinhos Por outro lado houve tambeacutem
uma ampliaccedilatildeo significativa de relaccedilotildees para aleacutem das dinacircmicas locais ndash um aspecto
considerado pelos quilombolas como muito positivo ndash pois a inserccedilatildeo no movimento
quilombola os colocou em contato com outras comunidades e inclusive proporcionou
uma retomada de viacutenculos dentro da proacutepria famiacutelia reconectando-os com sua regiatildeo
de origem em Minas Gerais por meio da realizaccedilatildeo das viagens de volta que seratildeo
abordadas no terceiro capiacutetulo
No entanto a peculiaridade de um grupo marcado por dinacircmicas de
movimento e que se reconhece como quilombola a partir de um viacutenculo com uma
regiatildeo de origem na qual natildeo mais habitam ndash pois de laacute saiacuteram em trajetoacuterias seguidas
de deslocamentos como vimos no capiacutetulo anterior ndash colocou um grande desafio e
quase um empecilho para o tracircmite do processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria do grupo
junto ao oacutergatildeo responsaacutevel o Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria
97
(INCRA) O caso da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos como
veremos nos permite o aprofundamento de uma reflexatildeo muito importante sobre ateacute
que ponto o reconhecimento da diversidade sociocultural estaacute de fato presente nos
processos e procedimentos administrativos bem como na compreensatildeo dos agentes
que atuam em nome do Estado nesta temaacutetica Sobre esta delicada questatildeo a
antropoacuteloga Miriam Chagas argumenta que
() a sociedade moderna admitiria uma uacutenica foacutermula minimizada de reconhecimento das diferenccedilas ou seja a mera conversatildeo da igualdade em identidade Essa consideraccedilatildeo aponta para uma questatildeo de difiacutecil tratamento pois o proacuteprio conceito de identidade ndash tambeacutem cultural ndash seria fruto da configuraccedilatildeo ideonormativa do sistema de valores da sociedade moderna (CHAGAS 2001 p 232)
Deve-se levar em conta que antes da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 o
ordenamento juriacutedico nacional negava a diversidade cultural da populaccedilatildeo brasileira
procurando homogeneizaacute-la A partir da consolidaccedilatildeo em 1988 de ldquodireitos eacutetnicosrdquo
enquanto garantias constitucionais iniciou-se um novo momento de reconhecimento
formal e consolidaccedilatildeo do acesso a tais direitos Os agentes do Estado daiacute em diante
ao classificarem em legislaccedilotildees categorias como ldquoquilombolasrdquo ldquoindiacutegenasrdquo ldquopovos e
comunidades tradicionaisrdquo precisam considerar que natildeo estatildeo apenas a nomear e a
reconhecer tais grupos mas tambeacutem estatildeo produzindo alteridades Marcadas ldquopela
qualidade de lsquoprimitivorsquo lsquotradicionalrsquo e correlatosrdquo estas categorias criam e
caracterizam o que nomeiam ao oporem um quadro classificatoacuterio de definiccedilatildeo e
redefiniccedilatildeo da alteridade com desdobramentos na emergecircncia de novos sujeitos
poliacuteticos organizados (ARRUTI 2006 51-53) Eacute a partir da sobrecodificaccedilatildeo e
normatizaccedilatildeo estatal portanto que tais grupos estaratildeo categorizados e seu
reconhecimento territorial seraacute regulado em procedimentos administrativos atraveacutes de
regulamentaccedilatildeo infraconstitucional
Estes sujeitos coletivos se mobilizam em unidades sociais a partir de um
pertencimento comum que funda uma identidade coletiva em processos de
autodefiniccedilatildeo referenciados nas categorias juridicamente reconhecidas Esta
mobilizaccedilatildeo poliacutetica que se desenrola principalmente em torno da luta pela garantia
dos territoacuterios ocupados tradicionalmente tambeacutem gera efeitos por meio de pressotildees
de movimentos sociais articulados ao tensionar o centro de poder do Estado Neste
processo estes grupos sociais vatildeo atribuindo seus proacuteprios sentidos aos conceitos
98
geneacutericos de reconhecimento como ldquoquilombolasrdquo os quais satildeo acionados em uma
vasta gama de situaccedilotildees para expressar diversos significados
Uma multiplicidade de metaacuteforas eacute portanto atribuiacuteda aos signos eacutetnicos no
processo social da etnicidade pelos grupos sociais que reivindicam ldquodireitos de uma
cidadania diferenciada ao Estado brasileirordquo (OrsquoDWYER 2009 p 175) Este processo
de reivindicaccedilatildeo vai gerando uma maximizaccedilatildeo da alteridade ndash por meio da
diferenciaccedilatildeo de sentidos ndash mesmo no acircmbito instituiacutedo de padronizaccedilatildeo estatal Esta
maximizaccedilatildeo eacute necessaacuteria porque ldquoas unidades de descriccedilatildeo das populaccedilotildees
submetidas respondem ao custo de uma brutal reduccedilatildeo de sua alteridade agraves
necessidades de produccedilatildeo de unidades geneacutericas de intervenccedilatildeo e controle socialrdquo
(ARRUTI 1997 p 20) Haacute que se refletir sobre ateacute que ponto
() quilombo expressa a dimensatildeo poliacutetica da identidade negra no Brasil ou ele eacute uma nova reduccedilatildeo brutal da alteridade dos diferentes grupos que sob este prisma teriam que se adequar a um conceito geneacuterico para novos propoacutesitos de intervenccedilatildeo e controle social (LEITE 2000 p 343)
De forma anaacuteloga ao que ocorreu com os povos indiacutegenas com o
estabelecimento de um certo padratildeo de ldquoindianidaderdquo ndash imposto pelo oacutergatildeo estatal e
que acaba sendo assumido como padratildeo de comportamento dos grupos em questatildeo
ndash podemos observar a existecircncia tambeacutem de um modelo de ldquoquilombolidaderdquo com
uma determinada forma de compreender quem satildeo os ldquoquilombolasrdquo a partir da qual
se estabelece procedimentos padronizados para lidar com esta diversidade (ARRUTI
1997 p 41) Esta necessidade de limitar a complexidade social para definir de modo
impositivo quem seriam os destinataacuterios do direito territorial reconhecido
constitucionalmente mostra marcas de um colonialismo interno que em muito ainda
manteacutem ldquouma praacutetica de dominaccedilatildeo intimamente ligada agrave ideologia da concentraccedilatildeo
fundiaacuteria como sinocircnimo de progresso numa economia agroexportadorardquo (ALMEIDA
2011 p 07-13)
No caso do direito territorial das comunidades quilombolas o primeiro marco
normativo foi estabelecido na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 mas natildeo em seu corpo
permanente e sim no Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) pelo
artigo 68 ldquoaos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras eacute reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-
99
lhes os tiacutetulos respectivosrdquo84 A partir de 2003 com o Decreto Federal 4887 assinado
no primeiro ano de mandato do entatildeo Presidente Lula a questatildeo quilombola ganha
forccedila e passa por uma estruturaccedilatildeo paulatina no Governo Federal A competecircncia
para titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas eacute atribuiacuteda ao INCRA no acircmbito do Ministeacuterio
do Desenvolvimento Agraacuterio o qual passa a incidir diretamente na questatildeo fundiaacuteria
das comunidades quilombolas em todo o Brasil
O conceito de quilombo imposto arbitrariamente no periacuteodo colonial enquanto
tipo penal para reprimir escravos fugidos85 demandou novos procedimentos
interpretativos ao se tornar uma categoria para reconhecimento de sujeitos de direitos
no presente Deve haver assim um deslocamento conceitual sobre as ideias de
quilombo como sobrevivecircncia e reminiscecircncia para que se possa compreender o que
satildeo as comunidades que se reconhecem como quilombolas hoje e como construiacuteram
sua autonomia historicamente (ALMEIDA 2011 p 64) Para tal reconfiguraccedilatildeo
conceitual a perspectiva antropoloacutegica tem contribuiccedilatildeo fundamental e se contrapocircs
por exemplo agraves limitaccedilotildees trazidas pelo Decreto Federal 3912 de 2001 obra do
governo do entatildeo presidente Fernando Henrique Cardoso
Nesta regulamentaccedilatildeo em forma de decreto do artigo 68 do ADCT realizada
em 2001 natildeo se reconhecia a autoatribuiccedilatildeo identitaacuteria pelos proacuteprios grupos sociais
Ao partir de um criteacuterio de heteroidentidade o decreto reproduzia a recusa da titulaccedilatildeo
definitiva das comunidades quilombolas sendo que durante a vigecircncia deste
instrumento no periacuteodo de dois anos nenhuma titulaccedilatildeo foi realizada Foram
estabelecidas condiccedilotildees restritivas como
(a) a manutenccedilatildeo da competecircncia da Fundaccedilatildeo Cultural Palmares (FCP) para
titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas o que limitava o direito territorial unicamente agrave
dimensatildeo cultural Esta atribuiccedilatildeo de competecircncia a FCP impossibilitava a efetivaccedilatildeo
da desapropriaccedilatildeo fundiaacuteria necessaacuteria
84 Esta parte da Constituiccedilatildeo na qual foi inserido o artigo 68 o ADCT consiste em um ato para regulaccedilatildeo da transiccedilatildeo entre regimes constitucionais o que revela a dificuldade em pautar esta temaacutetica que natildeo constou no corpo do texto principal da Constituiccedilatildeo No entanto segundo os juristas que se utilizam do modo de interpretaccedilatildeo sistemaacutetica da Constituiccedilatildeo este fato natildeo minimiza a eficaacutecia da norma enquanto garantidora de um direito fundamental Sobre o debate doutrinaacuterio e jurisprudencial acerca da temaacutetica ver SOUZA 2013 85 O Conselho Ultramarino Portuguecircs de 1740 definia quilombo como ldquotoda habitaccedilatildeo de negros fugidos que passem de cinco em parte desprovida ainda que natildeo tenham ranchos levantados ou se achem pilotildees nelesrdquo (LEITE 2000 p 336)
100
(b) a aplicaccedilatildeo do direito apenas para o caso das terras que jaacute estavam
ocupadas por quilombos em 1888 data da aboliccedilatildeo da escravidatildeo e que
continuassem ocupadas por ldquoremanescentesrdquo em 1988 quando da promulgaccedilatildeo da
Constituiccedilatildeo Federal Trata-se no entanto de duas datas arbitraacuterias do calendaacuterio do
Estado que por si soacute natildeo produziram ldquoa instituiccedilatildeo de um novo estado de coisas na
sociedaderdquo e que somadas estabeleceram um requisito temporal arbitraacuterio
colocando a necessidade de comprovaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo por cem anos para a
aquisiccedilatildeo do direito (MILANO 2011 p 97)
Em um contexto em que eacute o Estado no exerciacutecio de um poder tutelar que
define se um grupo eacute ou natildeo quilombola dentro desta perspectiva da heteroidentidade
estabelecida no decreto federal de 2001 a interlocuccedilatildeo do fazer antropoloacutegico dentro
do procedimento administrativo de titulaccedilatildeo seria direcionada para a produccedilatildeo de
laudos que teriam uma funccedilatildeo dupla de investigaccedilatildeo primeiro do da legitimidade do
reconhecimento eacutetnico da identidade reivindicada pelo grupo para entatildeo analisar o
reconhecimento territorial
Um novo cenaacuterio vem agrave tona com a ratificaccedilatildeo da Convenccedilatildeo 169 sobre Povos
Indiacutegenas e Tribais da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) por meio do
Decreto Legislativo nordm 143 de 200286 de modo que passa a ser incorporado no
ordenamento juriacutedico nacional o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo na identificaccedilatildeo de grupos
eacutetnicos Este criteacuterio foi previsto entatildeo no Decreto Federal 4887 de 2003 ndash tendo
revogado o decreto anterior 3912 de 2001 ndash o qual estaacute atualmente em vigor e
regulamenta os procedimentos para a titulaccedilatildeo territorial quilombola de
responsabilidade do INCRA
Com o Decreto 4883 de 2003 ndash que precedeu o Decreto 4887 tambeacutem de
2003 ndash a competecircncia para titulaccedilatildeo quilombola havia sido transferida da Fundaccedilatildeo
Cultural Palmares (FCP) para o INCRA Esta mudanccedila teve uma repercussatildeo positiva
pois este oacutergatildeo federal eacute o que possui atribuiccedilatildeo para ordenaccedilatildeo da estrutura fundiaacuteria
nacional podendo realizar assim desapropriaccedilotildees com o intuito de efetivar as
titulaccedilotildees quilombolas Entretanto o INCRA natildeo possuiacutea estrutura institucional para
lidar com demandas de caraacuteter eacutetnico ndash em contraste com a Fundaccedilatildeo Cultural
86 Aleacutem do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo a ratificaccedilatildeo da Convenccedilatildeo 169 trouxe outras inovaccedilotildees significativas para o ordenamento juriacutedico nacional sobre as quais natildeo iremos nos aprofundar neste trabalho Sobre este tema ver MILANO 2011
101
Palmares (FCP) e a Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI) oacutergatildeos federais que jaacute
contavam com ampla experiecircncia de trabalho com demandas eacutetnicas
Com uma nova conjuntura estabelecida pela incorporaccedilatildeo do criteacuterio de
autoatribuiccedilatildeo nos processos de regularizaccedilatildeo territorial os laudos antropoloacutegicos
deixam de exercer a funccedilatildeo de ldquoreconhecimento eacutetnico-territorialrdquo para assumir a
funccedilatildeo apenas de ldquoreconhecimento territorialrdquo (ARRUTI 2006 p 27-32) pois o
reconhecimento eacutetnico passou a ser definido pela autoidentificaccedilatildeo dos proacuteprios
grupos sociais A questatildeo deixa de ser a quem se aplica o direito para quais satildeo os
grupos que dirigem suas reivindicaccedilotildees a estes direitos ou ainda quem satildeo os sujeitos
que orientam suas accedilotildees a partir do sentimento de pertencer a um grupo especiacutefico
quilombola O criteacuterio de autoidentificaccedilatildeo estaacute de acordo com a perspectiva
antropoloacutegico de que os grupos eacutetnicos satildeo entidades autodefinidas e de que ldquoas
etnicidades demandam uma visatildeo construiacuteda de dentro e elas natildeo tecircm relaccedilotildees
imperativas com qualquer criteacuterio objetivordquo (OrsquoDWYER 2011 p 113)87
Eacute por meio dos processos de emergecircncia de novas identidades sociais que o
passado e as narrativas histoacutericas da memoacuteria coletiva vatildeo ser articulados de modo
ldquopoliacutetica e socialmente operacionaisrdquo no sentido de subsidiar as reivindicaccedilotildees
identitaacuterias (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 22) Assim como natildeo haacute criteacuterios
objetivos para a definiccedilatildeo da etnicidade natildeo haacute tambeacutem um passado pronto que
vecircm agrave tona Ademais eacute por meio destes novos contextos de interaccedilatildeo que as
diferenccedilas culturais seratildeo percebidas pelos proacuteprios sujeitos como socialmente
significativas (BARTH 2011)
Neste cenaacuterio de reconhecimento de direitos eacutetnicos a interlocuccedilatildeo do saber
antropoloacutegico com o juriacutedico tem se potencializado mas natildeo sem ambivalecircncias A
participaccedilatildeo de antropoacutelogos como peritos em procedimentos de reconhecimento
territorial tem sido fundamental para a realizaccedilatildeo de ldquoestudo in loco dos processos
pelos quais emergem os grupos negrosrdquo (LEITE FERNANDES 2006 p 09-10) A
antropologia tem contribuiacutedo portanto com seu acuacutemulo teoacuterico que passa a ser
colocado a serviccedilo das instituiccedilotildees puacuteblicas o que torna necessaacuteria por conseguinte
a ldquobusca por paracircmetros de avaliaccedilatildeo e execuccedilatildeo para a antropologia e antropoacutelogosrdquo
em um novo acircmbito de profissionalizaccedilatildeo
87 Este eacute um aspecto central discutido pela tradiccedilatildeo teoacuterica da antropologia cuja referecircncia fundamental
eacute o antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth com seu texto Grupos eacutetnicos e suas fronteiras publicado inicialmente em 1969 (BARTH 2011)
102
Para a elaboraccedilatildeo de tais paracircmetros eacute preciso que haja ampla discussatildeo
divulgaccedilatildeo e debate acerca dos trabalhos de periacutecia criando assim um espaccedilo de
reflexatildeo criacutetica dentro da disciplina antropoloacutegica capaz de responder a tais demandas
geradas na interface entre o saber juriacutedico e antropoloacutegico visando que ldquoo campo se
consolide e este instrumento (o relatoacuterio antropoloacutegico) seja cada vez mais eficaz no
contexto e objetivos a que se propotildeerdquo (LEITE FERNANDES 2006 p 09-10) Este eacute
o principal objetivo deste segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo no qual pretendo analisar
comparativamente os dois relatoacuterios antropoloacutegicos produzidos sobre a ldquoComunidade
Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo
Ambos os relatoacuterios foram produzidos no acircmbito do Procedimento
Administrativo (PA) 542000010752008-46 de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria que tramita na
Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute instaurado em 24 de abril de 2008 O primeiro
relatoacuterio foi produzido por meio do convecircnio do INCRA com a Universidade Estadual
do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE) tendo a versatildeo final sido encaminhada a este oacutergatildeo
federal em 29 de outubro de 2010 Os argumentos levantados iam de encontro agraves
premissas da autoatribuiccedilatildeo questionando assim a legitimidade da reivindicaccedilatildeo
identitaacuteria e territorial da comunidade Este relatoacuterio foi recusado pelo INCRA com
base em vaacuterios argumentos dentre os quais destaco o fato de os autores terem
apresentado ldquobaixa qualidade teacutecnica e antropoloacutegicardquo e natildeo terem cumprido ldquocom os
termos do convecircnio e da IN 492008rdquo 88
Este primeiro relatoacuterio que seraacute a partir de agora denominado de ldquorelatoacuterio
anti-antropoloacutegicordquo nesta dissertaccedilatildeo foi posteriormente retirado do procedimento de
regularizaccedilatildeo territorial do grupo passando a constar apenas no procedimento
referente agrave finalizaccedilatildeo e tomada de contas do convecircnio com a UNIOESTE
(Procedimento Administrativo nordm 542000023842008-33) Dentre os argumentos
levantados questionando a legitimidade da reivindicaccedilatildeo da comunidade destaca-se
o entendimento de que natildeo havia ancestralidade de ocupaccedilatildeo de um mesmo territoacuterio
e que aquele natildeo era um territoacuterio quilombola tendo em vista por exemplo a
inexistecircncia de registros histoacutericos de escravidatildeo negra na regiatildeo de GuaiacuteraPR
Em decorrecircncia do trabalho do INCRA com a comunidade houve o
desencadeamento de um seacuterio conflito causado pela mobilizaccedilatildeo dos proprietaacuterios
88 Instruccedilatildeo Normativa que regia o procedimento de titulaccedilatildeo quilombola no INCRA na eacutepoca da
produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico
103
vizinhos contraacuterios agraves reivindicaccedilotildees quilombolas sendo que a lideranccedila do grupo foi
ameaccedilada de morte vaacuterias vezes em um clima de forte tensatildeo e animosidade Em
resposta a esta situaccedilatildeo de inseguranccedila e agrave recusa do primeiro relatoacuterio o INCRA
contratou um segundo relatoacuterio antropoloacutegico que foi produzido pela empresa Terra
Ambiental Esta empresa foi a vencedora do pregatildeo eletrocircnico realizado pela
Coordenaccedilatildeo Geral de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolas (DFQ) da sede do
INCRA em Brasiacutelia tendo em vista a urgecircncia deste processo de regularizaccedilatildeo
territorial em GuaiacuteraPR A versatildeo final do segundo relatoacuterio foi encaminhada em 15
de julho de 2013 E avaliado em sua consonacircncia com a instruccedilatildeo normativa em vigor
572009 o relatoacuterio antropoloacutegico foi aprovado e incorporado ao Relatoacuterio Teacutecnico de
Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID)89 da comunidade
A pesquisa para produccedilatildeo de um novo relatoacuterio antropoloacutegico teve que lidar
com as questotildees provocadas pelo primeiro estudo e sua recusa em reconhecer a
autoidentificaccedilatildeo do grupo como quilombolas Como resposta a equipe de
pesquisadores contratados pela empresa Terra Ambiental realizou um levantamento
acerca das memoacuterias coletivas do grupo sobre sua origem mineira deslocando o
historiador Cassius Cruz ateacute a regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG de onde as
famiacutelias satildeo provenientes Atraveacutes deste levantamento de informaccedilotildees em Minas
Gerais foi possiacutevel apontar os viacutenculos e as referecircncias comuns de memoacuteria entre a
comunidade de Guaiacutera e comunidades quilombolas desta regiatildeo mineira bem como
levantar possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco com a Comunidade Quilombola Vila Nova
localizada em SerroMG especificamente
89 O RTID eacute um conjunto de peccedilas teacutecnicas que eacute produzido pelo INCRA no acircmbito do procedimento administrativo para regularizaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas O relatoacuterio antropoloacutegico eacute a primeira peccedila teacutecnica do RTID (o qual eacute composto por outros estudos) e tem como objetivo ldquocaracterizarrdquo a comunidade quilombola e o territoacuterio reivindicado conforme a Instruccedilatildeo Normativa 57 de 2009 que regulamenta o procedimento De um modo mais geral sobre as etapas que compotildeem o processo de titulaccedilatildeo tem-se que ldquoa primeira parte dos trabalhos do Incra consiste na elaboraccedilatildeo de um estudo da aacuterea destinado agrave confecccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) do territoacuterio Uma segunda etapa eacute a de recepccedilatildeo anaacutelise e julgamento de eventuais contestaccedilotildees Aprovado em definitivo esse relatoacuterio o Incra publica uma portaria de reconhecimento que declara os limites do territoacuterio quilombola A fase seguinte do processo administrativo corresponde agrave regularizaccedilatildeo fundiaacuteria com desintrusatildeo de ocupantes natildeo quilombolas mediante desapropriaccedilatildeo eou pagamento de indenizaccedilatildeo e demarcaccedilatildeo do territoacuterio O processo culmina com a concessatildeo do tiacutetulo de propriedade agrave comunidaderdquo Disponiacutevel em httpwwwincragovbrestrutura-fundiariaquilombolas Acesso em 180915
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Para entender a complexidade da produccedilatildeo destes dois relatoacuterios eacute
importante levar em conta que a produccedilatildeo de tal tipo de documento no acircmbito de um
procedimento do INCRA consiste em uma forma especiacutefica de pesquisa
antropoloacutegica Trata-se de um processo dirigido de interaccedilatildeo entre o antropoacutelogo e os
sujeitos de pesquisa a partir de paracircmetros legais e administrativos O territoacuterio a ser
delimitado como proposta final do estudo seraacute neste contexto resultado de uma
fabricaccedilatildeo mediada por atores que interagem em uma rede configurada tambeacutem como
um forte campo de disputas Em jogo estatildeo natildeo soacute as tensotildees entre estes campos
de conhecimento mas tambeacutem entre interesses antagocircnicos sobre a questatildeo eacutetnica
e territorial principalmente no que tange agrave resistecircncia dos setores conservadores da
sociedade em relaccedilatildeo agraves possibilidades de alteraccedilatildeo e democratizaccedilatildeo da estrutura
agraacuteria nacional
Um dos efeitos em relaccedilatildeo a essa disputa que cria entraves para a efetivaccedilatildeo
de titulaccedilotildees de territoacuterios quilombolas foi o aumento na burocratizaccedilatildeo dos
procedimentos exigidos pelo INCRA por meio da alteraccedilatildeo das instruccedilotildees normativas
(IN) que regem este processo ateacute a atual IN 57 de 2009 Ainda em 2008 a Associaccedilatildeo
Brasileira de Antropologia (ABA) se posicionou sobre o debate acerca da reforma da
IN 20 anterior agrave mais exigente IN 5790 por meio da ldquoCarta de Porto Segurordquo criticando
o estabelecimento de um roteiro com itens descritivos a serem seguidos pelo
antropoacutelogo responsaacutevel pela realizaccedilatildeo de relatoacuterios de identificaccedilatildeo territorial
() Diferentemente de outras periacutecias teacutecnicas o relatoacuterio antropoloacutegico natildeo trabalha sob o suposto de uma verdade absoluta e externa aos atores mas desempenha o papel de apreender e interpretar o ponto de vista nativo sobre sua histoacuteria sociedade e ambiente de forma a traduzi-lo nas linguagens externas a ele Como corolaacuterio deste papel principal a Antropologia tambeacutem tem o papel de relativizar e enriquecer tais saberes e linguagens do Estado ao confrontaacute-lo com concepccedilotildees e conceitos que lhe satildeo externos A recusa de qualquer destes objetivos deve ser assumida pelas agecircncias de Estado como fruto de decisatildeo poliacutetica expliacutecita e natildeo transferida para o exerciacutecio antropoloacutegico por meio de constrangimentos legais ou normativos Diante destas consideraccedilotildees repudiamos a pretensatildeo do Estado Brasileiro em interferir sobre o saber e o fazer antropoloacutegicos tendo em vista interesses
90 Segundo Arruti as alteraccedilotildees da Instruccedilatildeo Normativa 202005 para a 572009 foram decorrentes da
mediaccedilatildeo do Governo Federal frente agrave pressatildeo poliacutetica que os opositores ao tema provocaram com a proposta de Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3239 encaminhada pelo partido Democratas ao Supremo Tribunal Federal Esta ADIn questiona o Decreto 48872003 que regulamenta o procedimento de titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas Arruti afirma que ldquo() o governo federal assumiu o ocircnus de incorporar o contraditoacuterio imposto pela oposiccedilatildeo ao tema na forma de uma nova proposta de reformulaccedilatildeo da Instruccedilatildeo Normativa interna ao Incra abrindo um novo campo de disputas que agora o opotildee ele mesmo ao movimento quilombolardquo (ARRUTI 2009 p 120)
105
conjunturais e externos ao legiacutetimo debate puacuteblico em torno dos objetivos que formalmente sustentam o diaacutelogo entre antropoacutelogos e agecircncias de Estado91
O contato do campo juriacutedico com os antropoacutelogos ndash tanto na esfera
administrativa como na judicial ndash nas quais o relatoacuterio antropoloacutegico pode ser
interpretado como prova pericial ndash cria uma expectativa por parte dos operadores do
direito da produccedilatildeo de um conhecimento cientiacutefico objetivo pensado a partir de fatos
como elementos externos e preacute-existentes bem como a partir da dicotomia entre
representaccedilatildeo e realidade (OrsquoDWYER 2009 p 177) Esta aproximaccedilatildeo entre campos
de conhecimento tem sido permeada portanto de desentendimentos muacutetuos
Haacute o poder e a autoridade do juiz de dizer de quem eacute ou natildeo eacute o direito quem pode ou natildeo pode quem vai ou natildeo vai ter direito agrave condiccedilatildeo pleiteada ou neste exemplo agrave terra reivindicada O mesmo natildeo pode ser esperado do antropoacutelogo embora sua voz seja importante na decisatildeo do juiz () Haacute muitas vezes durante esse processo uma dificuldade de entendimento sobre o lugar efetivo do antropoacutelogo Entatildeo lhe recaem responsabilidades que parecem criar uma confusatildeo entre saberes poderes e responsabilidades a ponto de ser atribuiacutedo ao antropoacutelogo um lugar de juiz isto eacute o papel de julgar e definir quem seraacute beneficiado (LEITE 2004 67)
Os criteacuterios juriacutedicos natildeo deveriam desta forma desconsiderar os paracircmetros
de execuccedilatildeo e de avaliaccedilatildeo da proacutepria antropologia jaacute que eacute a esta tradiccedilatildeo teoacuterica
que se estaacute recorrendo em funccedilatildeo de seu campo interpretativo para subsidiar a
compreensatildeo das dinacircmicas sociais em questatildeo A relevacircncia do meacutetodo etnograacutefico
para a antropologia coloca em questatildeo as dificuldades impostas em contextos de
pesquisa em que a temporalidade do processo natildeo eacute a mesma da etnografia para
estudos acadecircmicos Eacute importante que este meacutetodo de pesquisa possa ser
incorporado nos procedimentos desta poliacutetica de reconhecimento em condiccedilotildees de
efetivo respeito agrave alteridade Nesse sentido para que a etnografia possa se realizar a
partir do criteacuterio da produccedilatildeo de um conhecimento dialoacutegico e operar como um
instrumento adequado antropologicamente seria necessaacuterio que a poliacutetica de
reconhecimento do Estado incorporasse outros saberes e linguagens capazes de
enriquecer e problematizar a questatildeo da diversidade cultural
Ademais se por um lado o direito cria um filtro para lidar com a antropologia
a antropologia por outro eacute ela mesma um filtro Importante destacar que o problema
91 ldquoCarta de Porto Seguro sobre as posturas estatais diante das consultas formais aos antropoacutelogosrdquo
Disponiacutevel em httpwwwabantorgbrconteudoANAISCD_Virtual_26_RBAcartadeportoseguropdf Acesso em 180915
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do poder e do silenciamento na produccedilatildeo de textos antropoloacutegicos estaacute teoricamente
elaborado desde a deacutecada de 1970 com a virada poacutes-moderna O etnoacutegrafo natildeo pode
mais escapar imune dessa ldquocrise teoacuterico-poliacuteticardquo Necessaacuterio retomar desta maneira
a criacutetica aos modos de escrita antropoloacutegica que instauram regimes de verdade em
relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo do nativo a partir de padrotildees de disciplinamento e controle
que escamoteiam a presenccedila do antropoacutelogo como autor e que podem reforccedilar uma
ldquounidade cognoscenterdquo92 em relaccedilotildees de poder sobre os grupos estudados
(CARVALHO 2002 p 06)
Ao passo que este debate sobre a representaccedilatildeo etnograacutefica estaacute colocado
para a antropologia em situaccedilotildees de diaacutelogo com esferas como o direito que trabalha
com a busca de provas a partir da elaboraccedilatildeo de periacutecias torna-se muito mais
complexo (mas natildeo menos necessaacuterio) problematizar o lugar do antropoacutelogo na
relaccedilatildeo de pesquisa e na forma de escrita Nesta intersecccedilatildeo de aacutereas de saber o
que vem agrave tona muitas vezes em primeiro plano eacute a possibilidade pragmaacutetica dos
antropoacutelogos participarem dos processos de garantia de direitos para os grupos aos
quais tecircm dedicado longa tradiccedilatildeo de estudos e neste processo debates importantes
da antropologia podem acabar negligenciados em prol de estrateacutegias de persuasatildeo
argumentativa dos relatoacuterios antropoloacutegicos
Neste contexto de traduccedilotildees e incompreensotildees eacute necessaacuterio reafirmar
conforme pautado pelo documento produzido pela Associaccedilatildeo Brasileira de
Antropologia (ABA) ndash a Carta de Ponta das Canas93 ndash que agrave antropologia cabe a
produccedilatildeo de inteligibilidade e natildeo de julgamentos a construccedilatildeo de interpretaccedilotildees e
natildeo de ldquoverdadesrdquo natildeo tendo o relatoacuterio antropoloacutegico um caraacuteter de atestado (ABA
2001) A diferenccedila deste tipo de trabalho com relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo acadecircmica estaria
em uma certa economia a que o antropoacutelogo deve responder restringindo na medida
do possiacutevel a riqueza etnograacutefica aos limites da demanda Essa tensatildeo entre
antropologia e direito no entanto natildeo deve ser eliminada pois isso soacute ocorreria por
meio da submissatildeo de um saber ao outro Assim recomenda-se que o antropoacutelogo
92 O antropoacutelogo Joseacute Jorge de Carvalho problematiza o fato de que a comunidade antropoloacutegica eacute
avassaladoramente branca e que se de um lado a antropologia estaacute interessada na diversidade nativa natildeo conseguiu ainda superar a homogeneidade social racial e de classe dos proacuteprios antropoacutelogos profissionais (CARVALHO 2002 p 08) 93 Documento produzido na ldquoOficina sobre Laudos Antropoloacutegicosrdquo realizada pela Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia (ABA) e organizada pelo Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Ver ABA Laudos Antropoloacutegicos - Carta de Ponta das Canas Textos e Debates n 9 Florianoacutepolis NUERUFSC 2001
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seja minucioso e sistemaacutetico na explicitaccedilatildeo das razotildees que o levaram agrave apresentaccedilatildeo
das informaccedilotildees selecionadas tendo em vista os objetivos especiacuteficos deste tipo de
documento (ABA 2001 p 04- 05)
Eacute sabido que diferentes situaccedilotildees etnograacuteficas iratildeo gerar diferentes respostas
dos grupos sociais em termos da possibilidade de estabelecimento de relaccedilotildees de
confianccedila compreensibilidade e diaacutelogo (OLIVEIRA FILHO 2003 141-180) Para
aleacutem do caraacuteter juriacutedico que assume o relatoacuterio antropoloacutegico haacute uma importante
dimensatildeo de valorizaccedilatildeo da memoacuteria da legitimidade e dos conhecimentos dos
grupos que passam por tal tipo de estudo o que iraacute depender do posicionamento eacutetico
dos profissionais envolvidos e das relaccedilotildees estabelecidas com seus interlocutores
Com um relatoacuterio antropoloacutegico que possa embasar teoricamente esta experiecircncia
histoacuterica e coletiva especiacutefica abre-se a possibilidade inclusive de uma confrontaccedilatildeo
de historicidades tendo em vista que a histoacuteria oficial em sua linearidade
uniformizadora natildeo incorpora esta diversidade de experiecircncias histoacutericas (CHAGAS
2005 p 75)
Neste capiacutetulo busco analisar de que forma o processo de reconhecimento
da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos ndash por meio da atuaccedilatildeo de diferentes atores
externos e especialmente no que tange agrave produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos
ndash foi percebido pelos membros do grupo quilombola e ao mesmo tempo em um certo
sentido produziu o proacuteprio grupo94 em um acircmbito institucional Assim como afirmou
Homi Bhabha importante teoacuterico dos estudos poacutes-coloniais eacute preciso reconhecer a
forccedila da escrita e de seu discurso retoacuterico ldquocomo matriz produtiva que define o lsquosocialrsquo
A textualidade natildeo eacute simplesmente uma expressatildeo ideoloacutegica de segunda ordem ou
um sintoma verbal de um sujeito poliacutetico preacute-dadordquo (BHABHA 1988 p 48) Assim
deve-se ter em vista o potencial transformador contido no processo que se pretende
de ldquoreconhecimentordquo e que muitas vezes incorre no equiacutevoco de buscar uma
identidade e um territoacuterio preacute-existentes
94 Se no primeiro relatoacuterio os autores afirmaram que natildeo se tratava de um grupo quilombola mas sim
de famiacutelias negras de trabalhadores rurais no segundo relatoacuterio reconheceu-se a autoindentificaccedilatildeo como grupo quilombola e fundamentou-se sua reivindicaccedilatildeo identitaacuteria a partir das referecircncias sobre a regiatildeo de origem do grupo Com base na pesquisa feita pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico impulsionou-se o retorno de quilombolas para Minas Gerais em busca de seus parentes e de mais informaccedilotildees sobre seus antepassados Isto demonstra como os processos de escrita sobre o grupo repercutiram em sua proacutepria dinacircmica interna de modo significativo tendo em vista que a memoacuteria coletiva estava passando por uma adequaccedilatildeo a este tipo de avaliaccedilatildeo externa
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O que natildeo pode ser deixado de lado eacute o caraacuteter criativo e transformador deste processo que tende a ser obscurecido quando se supotildee que o ldquoterritoacuteriordquo remete necessariamente a sentidos e usos do espaccedilo preexistentes a ele A proacutepria noccedilatildeo de ldquoreconhecimentordquo tende a favorecer tal interpretaccedilatildeo sugerindo que o que estaacute em jogo eacute apenas a ldquoformalizaccedilatildeordquo ou ldquolegalizaccedilatildeordquo de um estado de coisas jaacute existente Ainda que fosse esse o caso eacute preciso destacar tambeacutem que tal ldquoformalizaccedilatildeordquo ou ldquolegalizaccedilatildeordquo implica em substanciais mudanccedilas na dinacircmica vital e social dos grupos envolvidos Sem qualquer pretensatildeo agrave exaustividade poderiacuteamos a esse respeito evocar apenas a intensificaccedilatildeo da presenccedila dos ldquomediadoresrdquo (lideranccedilas de movimentos sociais e sindicatos universitaacuterios pesquisadores funcionaacuterios do Estado e de ONGs) na vida cotidiana destas pessoas No contexto da luta poliacutetica elas satildeo obrigadas a se ver agraves voltas com dinacircmicas que se por um lado satildeo positivamente avaliadas como indicadores da ldquopolitizaccedilatildeordquo ou ldquoresistecircnciardquo da ldquocomunidaderdquo por outro satildeo por elas mesmas contrapostas ao ldquosossegordquo ou ldquotranquilidaderdquo que usufruiacuteam nos momentos em que podiam manter uma maior autonomia perante as exigecircncias e pressotildees do mundo ldquourbanordquo eou ldquoletradordquo Note-se que nesse uacuteltimo caso estamos nos referindo tanto aos ldquoinimigosrdquo destes grupos como aos seus aliados as ameaccedilas oriundas dos primeiros muitas vezes tornando imperativo o estabelecimento e consolidaccedilatildeo de relacionamentos com os segundos ndash frequentemente a partir de formas praacuteticas e linguagens que satildeo mais familiares a estes mediadores do que agravequeles que por eles ldquomediadosrdquo Que as dificuldades decorrentes desses relacionamentos sejam desconsideradas em prol das vantagens deles originadas soacute confirma o que pretendemos argumentar aqui para o bem ou para o mal natildeo se vive impunemente a luta poliacutetica e as alianccedilas vinculadas a ela as marcas decorrentes de tal processo frequentemente se convertendo em marcos na histoacuteria e memoacuteria dos grupos que optaram por ndash ou foram compelidos a ndash ldquose engajarrdquo (GUEDES 2013b p 56-57)
Entre inimigos e aliados o grupo quilombola Manoel Ciriaco dos Santos natildeo
viveu impunemente a sua opccedilatildeo pelo engajamento poliacutetico Parece que a primeira
impressatildeo de que o reconhecimento como quilombolas poderia representar um risco
como veremos abaixo veio a se confirmar para eles com os desdobramentos
conflituosos que se seguiram agrave presenccedila do INCRA na comunidade (a partir da
atuaccedilatildeo da equipe que realizou o primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo) resultando na
perda de empregos nas propriedades vizinhas no isolamento das famiacutelias e na
necessidade de receberem cestas baacutesicas por falta de meios de sobrevivecircncia Com
o segundo relatoacuterio antropoloacutegico uma nova perspectiva se apresentou atraveacutes da
busca por informaccedilotildees que demonstrassem o viacutenculo da comunidade em Guaiacutera com
sua regiatildeo de origem em Minas Gerais Essa pesquisa trouxe repercussotildees
significativas natildeo soacute no acircmbito do procedimento do INCRA pois ganhou dimensotildees
profundas em termos emocionais simboacutelicos e poliacuteticos para o grupo Eacute a partir dos
questionamentos levantados pelo primeiro relatoacuterio e desta conflituosidade do
processo de reconhecimento que os quilombolas em GuaiacuteraPR impulsionam-se
para a busca de maiores informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica de seus
109
antepassados e reacionam os viacutenculos com a regiatildeo de origem bem como com seus
parentes em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG como analisaremos no uacuteltimo capiacutetulo
21 O AUTORRECONHECIMENTO COMO QUILOMBOLAS
O autorreconhecimento como quilombolas remete ao contato que as famiacutelias
tiveram com agentes do Estado que lhes apresentaram esta via de direitos no ano de
2005 a partir da visita de Clemilda Santiago Neto professora de histoacuteria e militante
do movimento negro que na eacutepoca trabalhava na Secretaria de Educaccedilatildeo do Estado
do Paranaacute (SEED) e no Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) O chamado ldquoGT
Cloacutevis Mourardquo foi criado por iniciativa do governo estadual95 tendo atuado entre os
anos de 2005 e 2010 enquanto uma equipe intersecretarial com o objetivo de realizar
um ldquoLevantamento Baacutesico de Comunidades Negras do Paranaacuterdquo96 o qual teve
importacircncia fundamental no estiacutemulo agrave certificaccedilatildeo de grupos quilombolas no estado
Poreacutem como iremos analisar o contato com agentes estatais no caso da comunidade
quilombola em questatildeo desde o primeiro momento envolveu tensotildees e foi marcado
pela desconfianccedila por parte dos quilombolas
Os grupos sociais que foram identificados no levantamento do governo do
estado tendo em vista o objetivo de ldquodescobrir o Paranaacute Negrordquo poderiam ser
classificados segundo os membros do GTCM em trecircs categorias Remanescente de
Quilombo Negros Tradicionais ou Comunidade Negra (LEWANDOWISKI 2009 p
42 50) Tais comunidades foram vistas pelo GTCM como ldquohistoricamente e ateacute agora
invisibilizadas eou suprimidas pelas diversas esferas do poder e da sociedade civilrdquo
e para superar tal situaccedilatildeo o levantamento visava ldquoatingir objetivos mais imediatos
tornaacute-las alvo de poliacuteticas puacuteblicas que estatildeo sendo disponibilizadas a outras
comunidades e segmentos sociais em accedilatildeo de inclusatildeo socialrdquo97
O resultado da pesquisa apontava em 2010 quando o grupo de trabalho foi
extinto para um quadro de trinta e seis comunidades quilombolas certificadas pela
95 Resoluccedilatildeo conjunta nordm 012005 que inclui a Secretaria do Estado da Educaccedilatildeo Assuntos Estrateacutegicos Cultura Comunicaccedilatildeo Social e Meio Ambiente 96 O relatoacuterio final elaborado pelo GTCM estaacute disponiacutevel em httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=69 Acesso em 30042014 97 Texto de apresentaccedilatildeo que consta no site institucional do GTCM Disponiacutevel em
httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=16 Acesso em 170215
110
Fundaccedilatildeo Cultural Palmares (FCP) vinte ldquocomunidades negras tradicionaisrdquo ainda
natildeo certificadas e 32 (trinta e dois) indicativos da existecircncia de outras comunidades
no estado do Paranaacute (GRUPO DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA 2010 17-21)
Atualmente a Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute possui 37 procedimentos de
regularizaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas abertos Deste total dez estatildeo em andamento
e cinco estatildeo em processo de elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e
Delimitaccedilatildeo (RTID) dentre os quais o da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos
Santos98
Durante o governo estadual de Roberto Requiatildeo (PMDB2003-2010) levando
em consideraccedilatildeo o alinhamento com o governo federal de Luis Inaacutecio Lula da Silva
(PT2003-2010) foi gerado portanto um momento propiacutecio para pautar a agenda
puacuteblica com as questotildees relativas agraves minorias eacutetnicas com base em leis e decretos
que inovaram no tratamento destas questotildees99 Buscou-se assim sensibilizar os
administradores em relaccedilatildeo agraves demandas das comunidades quilombolas e dar apoio
para que os proacuteprios segmentos pudessem acionar com a mediaccedilatildeo do GTCM as
diversas secretarias de estado bem como os oacutergatildeos federais
Quando a comunidade se auto-reconhecia como remanescente de quilombo o grupo de trabalho prestava uma assessoria para organizaccedilatildeo das associaccedilotildees de moradores condiccedilatildeo fundamental para abertura dos processos junto ao Incra na construccedilatildeo dos estatutos e na eleiccedilatildeo de uma diretoria Quando escolhidas as novas lideranccedilas comunitaacuterias passavam a ter contato intenso com a equipe do GT A orientaccedilatildeo era para que diante de qualquer duacutevida ou problema o GT pudesse ser acionado para resolver (LEWANDOWSKI 2009 p 51)
Em relaccedilatildeo agrave chegada de Clemilda ndash uma das principais protagonistas do
processo de levantamento das comunidades pelo GTCM ndash e a como ocorreu o
reconhecimento do grupo em GuaiacuteraPR Eva (50) esposa de Joaquim (55) (portanto
98 As outras comunidades em processo de elaboraccedilatildeo do RTID satildeo Adelaide Maria Trindade Batista em Palmas Varzeatildeo em Doutor Ulysses Serra do Apon em Castro e Mamatildes em Cerro Azul Notiacutecia disponiacutevel em httpwwwincragovbrnoticiasmesa-de-acompanhamento-da-politica-de-regularizacao-quilombola-e-instalada-no-parana Acesso em 24022015 99 Dentre as principais normatizaccedilotildees estatildeo a Lei 106392003 (que inclui ldquono curriacuteculo oficial da Rede
de Ensino a obrigatoriedade da temaacutetica Histoacuteria e Cultura Afro-Brasileira) o Decreto Federal 48872003 (que regulamenta o processo de titulaccedilatildeo ldquodas terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos) e o Decreto Federal 60402007 (que ldquoinstitui a Poliacutetica Nacional de Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionaisrdquo) dentre outras regulamentaccedilotildees federais neste sentido
111
nora de Manoel Ciriaco) contou-me sobre como ficaram surpresos com a visita de
uma funcionaacuteria puacuteblica interessada na histoacuteria do grupo
Dandara Como seraacute que ela ficou sabendo de vocecircs mesmo
D Eva Porque eu estudava aqui na escola com a Lucia daiacute ela tambeacutem trabaiava no negoacutecio que a Clemilda trabaia laacute Daiacute entatildeo ela falou que aqui ni Guaiacutera tinha ela achava que era descendente de escravo era remanescente de quilombo Daiacute ela mandou vim aqui daiacute a Clemilda veio Ela veio primeiro falar daiacute depois a Clemilda veio Acho que ela (Lucia) veio aqui se era dois mil ih fazia tempo nem lembrava disso mais Daiacute foi a Clemilda chegou aqui Ningueacutem acreditava E o Zeacute Maria falava assim ldquonatildeo eles vatildeo roubar de noacutesrdquo Eacute (risos) ldquoNoacutes nunca foi conhecido nesse lugar Noacutes nunca foi reconhecido nesse lugar aqui Noacutes sempre desprezado aqui Como eacute que domingo ainda Ah natildeo acredito ah natildeo acreditordquo (risos) Pegou a muletinha dele e foi embora pra casa Natildeo quis nada de jeito nenhum
Dandara E antes da Clemilda vocecircs natildeo imaginavam que teriam direito
D Eva Natildeo noacutes natildeo imaginava natildeo que noacutes natildeo sabia de nada eacute natildeo falava nem nada disso aiacute
As pessoas da comunidade natildeo soacute ficaram surpresas com a chegada de
Clemilda como tambeacutem desconfiaram de suas intenccedilotildees ainda mais porque ela
chegou em um dia de domingo Me contaram como desconfiaram ateacute se ela era do
governo principalmente o ldquofinado Zeacute Mariardquo que na eacutepoca era a referecircncia e a
lideranccedila da famiacutelia sendo o filho mais velho dentre os que permaneceram na
comunidade Ele resistiu muito ateacute concordar em assinar os papeacuteis que solicitariam o
reconhecimento da comunidade como quilombola Joaquim destacou como a postura
do irmatildeo foi enfaacutetica e estava legitimada na sua posiccedilatildeo de autoridade
Joaquim Ai uma hora ele falou com ela ldquoeacute eu fico muito emocionado noacutes aqui nesse fim de mundo e vocecircs que eacute pessoal do governo veio procurar a gente que nunca aconteceu issordquo Ele falou pra ela (risos) Aiacute a hora que ela caccedilou ele falou ldquoMelhor ficar que eu vou embora agora que o que meu pai deixou pra noacutes eacute mixaria e eu natildeo quero perder e ningueacutem me faz eu assinarrdquo
A fala de Joaquim em referecircncia ao comentaacuterio de Zeacute Maria indica uma
sensaccedilatildeo de invisibilidade e abandono por parte do Estado para com estas famiacutelias
o que eacute reforccedilado na leitura dos membros do grupo pela condiccedilatildeo histoacuterica de
exclusatildeo e opressatildeo do negro no Brasil Se esta percepccedilatildeo poderia ter sido alterada
com o processo de reconhecimento do grupo como quilombola percebe-se no
entanto que o Estado entendido como figura abstrata dissociada de seus agentes
112
especiacuteficos ndash com os quais em alguns casos eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees de
confianccedila e amizade ndash continua apresentando posicionamentos duacutebios e natildeo dignos
de confianccedila O Estado de alguma forma segundo Adir se isentaria diante do fato
de que os quilombolas tecircm ainda que correr atraacutes de direitos que deveriam lhes ser
garantidos prontamente tendo em vista a histoacuteria de opressatildeo a que vem sendo
submetidos Para conquistar algum direito com muita luta e paciecircncia sentem-se
refeacutens dos labirintos burocraacuteticos e hieraacuterquicos de procedimentos instruccedilotildees
normativas leis e barganhas poliacuteticas
Joaquim Eva e Adir me relataram como foi conturbado este contato inicial
com agentes do Estado Zeacute Maria pediu inclusive para que Adir solicitasse agrave Clemilda
o seu crachaacute comprovando que ela era funcionaacuteria puacuteblica Esta desconfianccedila em
assinar os papeacuteis que solicitariam o reconhecimento da comunidade como quilombola
parece decorrente do risco de expropriaccedilatildeo por eles percebido bem como aponta
para a dificuldade de domiacutenio do mundo documental pelos membros do grupo100 Fala
tambeacutem sobre o processo de exclusatildeo e sobre como o grupo o percebe jaacute que se
estar invisiacutevel era algo que confirmava a situaccedilatildeo perifeacuterica em que viviam por outro
lado a visibilidade tambeacutem eacute percebida como um risco101 No entanto Zeacute Maria foi
depois convencido e assinou o documento que subsidiou a elaboraccedilatildeo da ldquoCertidatildeo
de Auto-Reconhecimentordquo expedida em 02 de outubro de 2006 Em 2007 o grupo
funda com auxiacutelio do GTCM a Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos
Santos (ACONEMA)
Antes disso eles desconheciam que esta identidade era reconhecida e
guarnecida pelo Estado bem como desconheciam as nominaccedilotildees de ldquoquilombolasrdquo
ou ldquoremanescente de quilombosrdquo agraves quais iratildeo paulatinamente conferir significado
com base na releitura de sua proacutepria histoacuteria Neste sentido
A noccedilatildeo de ldquoremanescenterdquo como algo que jaacute natildeo existe ou em processo de desaparecimento e tambeacutem a de ldquoquilombordquo como unidade fechada igualitaacuteria e coesa tornou-se extremamente restritiva Mas foi principalmente porque a expressatildeo natildeo correspondia agrave autodenominaccedilatildeo destes mesmos
100 No caso da Comunidade Quilombola Aacutegua Morna localizada em CuriuacutevaPR por exemplo o relatoacuterio antropoloacutegico relata como eles foram enganados por parente proacuteximo que pediu que assinassem documento que foi posteriormente utilizado para a expropriaccedilatildeo de uma aacuterea do grupo (PORTO 2012 p 61-62) 101 O fato tambeacutem de se tratar de um grupo com niacutevel baixo de acesso agrave educaccedilatildeo formal reforccedila esta dificuldade em lidar com a documentaccedilatildeo principalmente concernente agrave terra Este quadro estaacute sendo modificado na geraccedilatildeo de jovens hoje os quais tecircm condiccedilotildees de terminar o ensino meacutedio e ateacute o ensino superior comeccedila a ser acessado
113
grupos e por tratar-se de uma identidade ainda a ser politicamente construiacuteda que suscitou tantos questionamentos De saiacuteda exigiu-se nada mais que um esforccedilo interpretativo do processo como um todo por parte dos intelectuais e militantes bem como das proacuteprias comunidades envolventes e sem o qual seria impossiacutevel a aplicabilidade juriacutedica do artigo (LEITE 2000 p 341)
A experiecircncia que meus interlocurores(as) possuiacuteam de uma ldquotrajetoacuteria
histoacuterica proacutepriardquo vinculada agrave ldquoresistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo conceitos da
definiccedilatildeo de quilombo trazida pelo Decreto 44872003 (que regulamenta o processo
de titulaccedilatildeo quilombola) ficava restrita enquanto objeto de introspecccedilatildeo interna ao
grupo Isto porque tal afirmaccedilatildeo segundo eles seria percebida como motivo de
escaacuternio e de discriminaccedilatildeo por parte das outras pessoas da regiatildeo102 Eacute atraveacutes de
uma rede de mediadores como o GTCM organizaccedilotildees governamentais natildeo
governamentais e movimento negro que o ldquoprocesso de reconhecimentordquo eacute
estimulado no Paranaacute e neste caso especiacutefico
Na fala dos irmatildeos Adir e Joaquim atualmente presidente e vice-presidente
da Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) aparece
este sentimento de que se comentassem sobre sua histoacuteria antes do processo de
reconhecimento como quilombolas ningueacutem iria acreditar neles e seriam alvo de
ridicularizaccedilatildeo
Dandara Mas essa histoacuteria da origem do Manoel Ciriaco laacute de Minas que tinha descendecircncia de ex-escravos isso tudo era todo mundo que conhecia ou era soacute alguns que sabiam dessa histoacuteria
Adir Vocecirc fala a populaccedilatildeo
Dandara Natildeo vocecircs da famiacutelia mesmo
Adir Noacutes jaacute sabia
Joaquim E muitos aqui sabia tambeacutem que meu pai falava neacute com os italiano aqui que eles Mas eles natildeo ligava
Adir Mas era coisa que nem eles mais falava assim ldquoque vatildeo buscar nada de histoacuteria deles nada atraacutes nadardquo Chegaram contaram o que eles passaram quando chegaram aqui que teve dificuldade que vieram de um lugar laacute onde teve escravo isso e aquilo outro Mas quem que ia ligar nisso Nem noacutes mesmos Noacutes aprendemos com nossos pais nossos avoacutes nossa matildee sim nossa histoacuteria que noacutes natildeo podia pronunciar pra ningueacutem Ia falar pra quem Dizer pra quem isso aiacute E quando surge isso nos pega tambeacutem de surpresa E ai vocecirc vai falar o quecirc Vai divulgar o quecirc Quem que vai acreditar em vocecirc Natildeo eacute difiacutecil E eacute isso aiacute
102 Sobre o tema da introspecccedilatildeo acerca da identidade ver o caso do grupo indiacutegena Caxixoacute de Minas Gerais (SANTOS OLIVEIRA 2003 p 22)
114
Nesta fala de Adir e Joaquim eacute relevante notar a diferenccedila entre o que eacute
entendido como um silenciamento sobre o passado em contraste com um processo
de esquecimento (PORTO 2013b p 175) Eacute a partir do momento em que se encontra
uma possibilidade de escuta que a memoacuteria passa a ser pronunciada publicamente
Ateacute entatildeo estava contida como algo indiziacutevel pois soacute fazia sentido enquanto processo
de transmissatildeo de memoacuteria interno agrave famiacutelia (POLLAK 1989 p 09) Haacute uma
polarizaccedilatildeo portanto entre um passado de silenciamento e um presente de
pronunciamento que aparece como um princiacutepio de operaccedilatildeo na forma como
percebem a relaccedilatildeo deles com o contexto mais amplo no qual se inserem Poderem
ser ouvidos como narradores legiacutetimos de sua proacutepria histoacuteria por meio deste novo
contexto de reconhecimento pelo Estado eacute um ganho que transcende as questotildees
juriacutedicas e poliacuteticas na medida em que representa para eles uma valorizaccedilatildeo e um
reconhecimento da necessidade de reparaccedilatildeo da opressatildeo sofrida
Esta fala tambeacutem aponta para a expectativa que a comunidade tinha frente agrave
produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio de que sua histoacuteria seria registrada e reconhecida aleacutem
de significar um marco para a possibilidade de conquista de direitos que os
empoderaria diante do contexto local adverso Como veremos adiante foram muitas
as dificuldades que tiveram para lidar com o fato de sua identidade ter sido negada
oficialmente por um antropoacutelogo bem como com os conflitos gerados a partir dos
desdobramentos do procedimento que tramita no INCRA103
O registro da histoacuteria comum dos membros da comunidade deu um novo
status agrave memoacuteria coletiva e agravequeles que satildeo vistos internamente como os guardiotildees
destas histoacuterias Os elementos preacute-existentes da memoacuteria passam a ser mobilizados
de formas especiacuteficas tendo em vista que eacute o Estado quem estabelece os criteacuterios
normativos que funcionaratildeo como modelos a partir do qual a populaccedilatildeo passa a se
pensar em termos de identidade objetivada conceitualmente o que se faraacute por meio
de mediaccedilotildees e modulaccedilotildees (MARCUS 1991)104
103 Este impasse vivido pelo grupo aponta para a ldquodificuldade de identificar os sujeitos do direito e suas
complexas demandasrdquo bem como ldquoas tensotildees entre as conceituaccedilotildees histoacuterica antropoloacutegica e juriacutedica de quilombordquo (LEITE FERNANDES 2006 p 12) sobre as quais no entanto natildeo iremos nos aprofundar neste trabalho 104 Interessante observar o deslocamento semacircntico no que tange estas modulaccedilotildees do Estado que foi ocorrendo ldquorealizado tanto por agentes estatais quanto por membros do movimento social e representantes do meio acadecircmico - em que os remanescentes de comunidades de quilombos passam a ser definidos como comunidades remanescentes de quilombos e no momento seguinte
115
O claacutessico estudo de Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva demonstra como
apesar da aparecircncia de experiecircncia individual a memoacuteria soacute eacute possiacutevel por meio das
relaccedilotildees sociais de interaccedilatildeo enquanto fenocircmeno coletivo Assim a duraccedilatildeo de uma
memoacuteria estaria limitada agrave duraccedilatildeo do grupo no acircmbito do qual tais lembranccedilas foram
geradas e enquanto fenocircmeno construiacutedo coletivamente tambeacutem estaacute sujeita a
transformaccedilotildees Dentro destas dinacircmicas o autor ressalta a existecircncia de pontos de
referecircncias comuns que formam um nuacutecleo resistente relativamente invariaacutevel um fio
condutor de acontecimentos-chaves (HALBWACHS 2003 p 35)
No caso do quilombo de Guaiacutera enquanto ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo
(HALBWACHS 2003) que gera o sentimento de pertencimento de identificaccedilatildeo e
aglutinaccedilatildeo entre seus membros este fio condutor passa pelo compartilhamento da
memoacuteria das dinacircmicas de movimento e fixaccedilatildeo das famiacutelias Este movimento inicia-
se a partir do que podemos chamar de um ldquolugar formador de memoacuteriardquo (POLLAK
1992 p 203) a regiatildeo de origem do grupo Mesmo fora do espaccedilo-tempo da vida da
comunidade no Paranaacute esta referecircncia eacute fundamental para a identidade do grupo a
partir da qual se contextualiza a memoacuteria herdada dos antepassados em continuidade
com a construccedilatildeo da autoimagem do grupo no presente A origem mineira assume
entatildeo uma dimensatildeo miacutetica pois seu significado eacute ampliado e formalizado de modo
simboacutelico como autorrepresentaccedilatildeo partilhada pelo grupo (PORTELLI 1998 p 120)
A memoacuteria coletiva do grupo quilombola como vimos no primeiro capiacutetulo foi
reorganizada discursivamente a partir do autorreconhecimento identitaacuterio de modo
que pudessem se tornar testemunhas contra o ldquoesquecimento compulsivordquo da sua
proacutepria trajetoacuteria histoacuterica (CONNERTON 1999 p 17) A organizaccedilatildeo poliacutetica do
grupo como quilombolas foi fundamental para a preservaccedilatildeo do que podemos chamar
de ldquomemoacuterias subterracircneasrdquo as quais satildeo majoritariamente reproduzidas pela
oralidade e ldquocomo parte integrante das culturas minoritaacuterias e dominadas se opotildeem
agrave lsquoMemoacuteria Oficialrsquo no caso a memoacuteria nacionalrdquo (POLLAK 1989 p 05)
A percepccedilatildeo de um passado comum em relaccedilatildeo ao qual se destacam as
histoacuterias contadas pelos mais velhos sobre o sofrimento que viveram em Minas
Gerais com a memoacuteria de ascendentes que foram escravizados integra-se agrave busca
por uma nova possibilidade de reproduccedilatildeo do grupo por meio dos deslocamentos a
comunidades quilombolas apontando para a modificaccedilatildeo conceitual ocorrida ()rdquo (PORTO KAISS COFREacute 2012 p 41)
116
percepccedilatildeo da distintividade cultural enquanto grupo negro rural viacutetima de preconceito
racial e religioso em GuaiacuteraPR bem como a perspectiva da reelaboraccedilatildeo de um
futuro comum com acesso a direitos historicamente negados mobilizam dentre outros
fatores este processo de etnogecircnese
22 O PRIMEIRO RELATOacuteRIO ldquoANTI-ANTROPOLOacuteGICOrdquo
Quatro anos depois do iniacutecio do processo de contato com agentes externos e
do autorreconhecimento da comunidade como quilombola em 2009 e 2010 foi
realizado o primeiro relatoacuterio de cunho antropoloacutegico dentro do procedimento de
titulaccedilatildeo territorial da comunidade quilombola em Guaiacutera de responsabilidade do
INCRA105 O posicionamento dos autores defendido no documento no entanto negou
que esta comunidade em GuaiacuteraPR seria um grupo quilombola entendendo que se
tratava de uma famiacutelia negra de trabalhadores rurais e que o grupo estava construindo
recentemente esta identidade de modo vinculado com o interesse de garantia de
direitos concluindo que
ldquoO que se percebeu por intermeacutedio da pesquisa eacute que a identidade quilombola eacute algo novo entre as pessoas e que ainda esta (sic) em processo de formaccedilatildeo natildeo estando presente no pensamento coletivo eacute como se os membros da auto denominada (sic) comunidade Negra estivessem aprendendo a ser quilombolasrdquo (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1521 [p 111])
Como jaacute citado o primeiro relatoacuterio foi fruto de um convecircnio entre o INCRA e
a UNIOESTE Conforme a legislaccedilatildeo quando natildeo dispuser de profissional em seu
quadro para a realizaccedilatildeo do relatoacuterio antropoloacutegico o INCRA poderaacute realizar
contrataccedilotildees Junto com Antocircnio Pimentel Pontes Filho antropoacutelogo responsaacutevel pela
equipe tambeacutem participaram da pesquisa mais um mestre em antropologia Roberto
Biscoli e duas auxiliares de pesquisa graduandas da UNIOESTE106 A uacuteltima versatildeo
do relatoacuterio apresentada pelo antropoacutelogo responsaacutevel ndash depois dos pedidos de
105 Percebe-se como o desdobramento do procedimento no INCRA demonstra como este oacutergatildeo natildeo
tinha ainda uma compreensatildeo amadurecida sobre como lidar com as questotildees antropoloacutegicas tendo deixado que o primeiro relatoacuterio fosse concluiacutedo com suas graves consequecircncias para o grupo quilombola para apenas depois de sua finalizaccedilatildeo o avaliar como insuficiente tecnicamente e o retirar do procedimento de titulaccedilatildeo da comunidade 106 Neste convecircnio com a UNIOESTE foi produzido mais um relatoacuterio antropoloacutegico de responsabilidade do mesmo antropoacutelogo na Comunidade Quilombola Maria Adelaide Trindade Batista localizada no Municiacutepio de PalmasPR o qual tambeacutem natildeo foi aprovado
117
adequaccedilatildeo solicitados pelo INCRA os quais foram em grande parte desconsiderados
ndash era composta de centro e trinta e quatro paacuteginas organizadas nas seguintes partes
sobre as quais destacamos alguns pontos principais
(1) Introduccedilatildeo os autores do relatoacuterio trazem um debate sobre o conceito de
quilombo e se posicionam no sentido de que o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo
natildeo eacute compatiacutevel com a perspectiva relacional de etnicidade a qual
entenderia os grupos eacutetnicos como constituiacutedos em relaccedilatildeo por meio das
fronteiras O relatoacuterio afirma que esta abordagem pressupotildee que deva
haver o reconhecimento tambeacutem pelos ldquooutrosrdquo de que o grupo que se
autoidentifica apresenta uma identidade diferenciada em um processo de
ldquohetero-identidaderdquo Eacute segundo esta perspectiva reconhecida por eles
mesmos como incompatiacutevel com o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo que estatildeo
embasadas suas anaacutelises no relatoacuterio Trazem tambeacutem uma seacuterie de
informaccedilotildees sobre o processo de elaboraccedilatildeo da pesquisa elencando ao
longo de quinze paacuteginas cada uma das entrevistas realizadas bem como
demais atividades da equipe desde ofiacutecios e-mails visitas destacando
inclusive os contatos externos aos membros do grupo que foram
realizados Comentam sobre o conflito desencadeado durante a pesquisa
mas se isentam de qualquer responsabilidade em relaccedilatildeo aos
acontecimentos
(2) ldquoA auto denominada (sic) comunidade negra Manoel Ciriaco dos Santosrdquo
pelo proacuteprio tiacutetulo atribuiacutedo ao segundo capiacutetulo do relatoacuterio recusam a
denominaccedilatildeo de ldquoquilombolasrdquo e parecem estar denunciando em uma
negaccedilatildeo dupla o processo de autorreconhecimento da comunidade como
ilegiacutetimo Apresentam uma anaacutelise sobre os membros da comunidade
como se este pertencimento estivesse restrito agraves pessoas que estatildeo
indicadas no estatuto da Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco
dos Santos (ACONEMA) Trazem tambeacutem uma descriccedilatildeo das famiacutelias
que moravam na aacuterea na eacutepoca
(3) ldquoGuaiacutera ndash Paranaacute descriccedilatildeo sobre a regiatildeordquo retomam o processo histoacuterico
de colonizaccedilatildeo da regiatildeo Depois analisam o histoacuterico de constituiccedilatildeo do
que chamam ldquoComunidade de Maracaju dos Gauacutechosrdquo atribuindo ao
bairro rural tambeacutem um sentido de grupo e de relaccedilotildees de pertencimento
118
em equiparaccedilatildeo com a autodenominaccedilatildeo como comunidade por parte dos
quilombolas Afirmam que as aacutereas adquiridas pela ldquofamiacutelia Santosrdquo natildeo
constituem um territoacuterio quilombola preacute-existente e que o levantamento
realizado pelo Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) careceu de
ldquocriteacuterios antropoloacutegicosrdquo
(4) ldquoTrajetoacuteria histoacuterica da auto denominada (sic) comunidade negra Manoel
Ciriaco dos Santosrdquo analisam os relatos dos membros da comunidade
sobre sua trajetoacuteria histoacuterica de fixaccedilatildeo em GuaiacuteraPR mas o fazem de
modo a desvalorizar a memoacuteria e as informaccedilotildees trazidas que satildeo
entendidas pelos autores como insuficientes ou improcedentes ao serem
por exemplo cotejadas com dados repassados pelos vizinhos Afirmam
que natildeo houve segregaccedilatildeo racial na constituiccedilatildeo do bairro rural e que natildeo
existiria preconceito por parte dos vizinhos acusando ao contraacuterio os
membros da comunidade de serem preconceituosos em relaccedilatildeo aos
ldquoitalianosrdquo
(5) ldquoCaracterizaccedilatildeo atual da auto denominada (sic) comunidade negra Manoel
Ciriaco dos Santos sua organizaccedilatildeo espacial e socialrdquo apresentam uma
descriccedilatildeo da comunidade destacando as poliacuteticas puacuteblicas e os cursos a
que passaram a ter acesso bem como as atividades de cultivo e criaccedilatildeo
de animais Afirmam haver um sentimento de propriedade e de posse
particular por parte dos membros da comunidade que natildeo se organizaria
por dinacircmicas propriamente comunitaacuterias Concluem que os moradores da
comunidade natildeo se diferenciam em suas praacuteticas de seus vizinhos
Trazem informaccedilotildees geneacutericas sobre ldquopapeacuteis sociaisrdquo entre os seus
membros e tambeacutem sobre religiatildeo
(6) ldquoRe-construccedilatildeo (sic) de uma memoacuteria e de uma identidade socioculturalrdquo
defendem a perspectiva de que deve ser alcanccedilada uma objetividade
etnograacutefica e afirmam neste sentido que o processo de construccedilatildeo da
identidade eacutetnica do grupo seria recente e giraria em torno de uma
finalidade poliacutetica a partir do contato do grupo com agentes externos com
o objetivo de criar uma distinccedilatildeo ldquonoacutesrdquo e ldquoelesrdquo Os autores afirmam que tal
identidade estaacute baseada em suposiccedilotildees de uma origem e de
antepassados que teriam sido escravos Defendem que se haacute preconceito
119
no acircmbito da relaccedilatildeo com os vizinhos eacute um preconceito muacutetuo e concluem
dizendo que a ldquoauto denominada comunidade negrardquo (sic) natildeo apresenta
os sinais diacriacuteticos que ldquodeveriamrdquo os diferenciar
(7) ldquoResultado da periacuteciardquo por fim asseveram que apesar de terem partido da
categoria do autorreconhecimento entendem que natildeo haacute territoacuterio
quilombola a ser indicado pois a equipe de pesquisa ldquoconstatourdquo que eles
seriam apenas herdeiros de uma propriedade e que portanto ldquopossuem
relaccedilotildees comuns ao mundo ruralrdquo natildeo havendo um territoacuterio quilombola
preacute-existente
(8) Bibliografia e anexos
Para analisar os argumentos apresentados por este relatoacuterio ldquoanti-
antropoloacutegicordquo eacute importante primeiramente trazer algumas reflexotildees dos quilombolas
em relaccedilatildeo agrave forma como foram conduzidos os trabalhos pela primeira equipe de
pesquisadores
Joaquim Os antropoacutelogos que eles arrumaram Dandara eu falei assim ldquovocecircs tinha que arrumar uns antropoacutelogo que sabia fazer antropologia Os antropoacutelogos natildeo ficavam com noacutes aqui Era duas horas trecircs horas por dia soacute vinha e voltava raacutepido noacutes desconfiou dos antropoacutelogo Aiacute noacutes tava laacute dentro de Guaiacutera e eles trataram com o Adir que era pra noacutes encontrar que eles ia pegar coacutepia do certificado da comunidade Noacutes taacute esperando e ldquonoacutes tamo chegando tamo chegandordquo e natildeo chegava Aiacute tinha esse advogado que eacute vizinho nosso aqui que mora laacute em Guaiacutera Daqui a pouco ele vem e vem os dois antropoacutelogos de laacute pra caacute no escritoacuterio dele e noacutes tava em frente a prefeitura que eacute pertinho Aiacute eles chegaram ldquoeacute mas noacutes natildeo pode ficar aqui que a turma taacute de zoacuteio em noacutes que natildeo sei que laacuterdquo Pegou a coacutepia da nossa matildeo e despediu de noacutes ldquoNoacutes tem que vazar emborardquo ldquoentatildeo taacute bomrdquo Mas a gente natildeo eacute tanto besta neacute aiacute noacutes pensamos ldquosabe de uma coisa vou dar uma volta na rua aqui pra ver se eles foram embora mesmordquo Noacutes damo a volta na rua eles laacute no advogado e tinha ido embora Aiacute tudo que eles falavam no raacutedio o advogado tava sabendo que era representando os agricultor neacute Ele tava sabendo tudinho Mas quem taacute passando informaccedilatildeo eacute os antropoacutelogos Menina noacutes teve raiva laacute em Toledo na Universidade eles chamaram pra noacutes pra ter uma reuniatildeo () Quando esse antropoacutelogo comeccedilou a falar eu falei com eles assim ldquovocecircs pensa que noacutes eacute tatildeo besta Tatildeo besta natildeo eacute noacutes eacute da roccedila natildeo temo estudo natildeo temo a linguagem que vocecircs fala mas vocecirc lembra aquele dia que vocecircs tava em Guaiacutera Vocecircs dando noacute em noacutes falando que ia embora se vocecircs tava laacute junto com o advogado e tudo ele taacute sabendo o que vocecircs tava fazendordquo E eu falei ldquoa antropologia de vocecircs eacute fraca Eu natildeo entendo de antropologia a antropologia de vocecircs eacute fracardquo Eu falei ldquovocecircs fica sabendordquo - e tava gravando e filmando ndash ldquovocecircs tatildeo fazendo antropologia de cem quilocircmetros de distacircncia cem quilocircmetrordquo Aiacute o reitor da universidade abanou a cabeccedila Aiacute eu falei ldquovocecircs natildeo fizeram nada vocecircs natildeo fizeram nada nadardquo
120
Percebe-se que a criacutetica que Joaquim faz inicia-se com uma
responsabilizaccedilatildeo do INCRA pois foram eles que ldquoarrumaramrdquo estes antropoacutelogos
para fazer o estudo Interessante observar neste sentido que Antocircnio Pimentel
Pontes Filho o pesquisador responsaacutevel pelo estudo natildeo tinha experiecircncia com
grupos etnicamente diferenciados sendo que suas pesquisas de graduaccedilatildeo e
mestrado giravam em torno de questotildees relacionadas agrave antropologia da religiatildeo com
foco na organizaccedilatildeo da Igreja Catoacutelica O INCRA com uma gestatildeo burocratizada e
impessoal apesar de ter tido acesso a versotildees preliminares do relatoacuterio que iam
abertamente de encontro ao criteacuterio da autoatribuiccedilatildeo natildeo evitou contudo que um
relatoacuterio final - depois considerado pelo proacuteprio INCRA como de ldquobaixa qualidaderdquo ndash
fosse incorporado ao procedimento da comunidade Apenas depois da natildeo aprovaccedilatildeo
da versatildeo final pelo INCRA encaminharam-se as medidas administrativas para
finalizar o convecircnio com a UNIOESTE por meio de um procedimento separado ainda
em tracircmite no qual passou a constar o primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo
(Procedimento Administrativo 542000023842008-33) retirado do procedimento de
regularizaccedilatildeo do territoacuterio da comunidade (Procedimento Administrativo
542000010752008-46)
A partir da fala de Joaquim citada acima eacute possiacutevel tambeacutem entender qual o
lugar que a relaccedilatildeo com os antropoacutelogos passa a ocupar no discurso dos quilombolas
sistematizada na indicaccedilatildeo de trecircs momentos centrais O primeiro momento diz
respeito agrave constataccedilatildeo da falta de contato da equipe de pesquisa com o grupo jaacute que
natildeo estavam presentes na comunidade durante um periacuteodo de tempo considerado
satisfatoacuterio pelos quilombolas A permanecircncia em campo eacute tida portanto como um
criteacuterio determinante para a antropologia inclusive na visatildeo das lideranccedilas
quilombolas O segundo momento central apresentado por Joaquim diz respeito agrave
percepccedilatildeo de que haveria um viacutenculo dos pesquisadores com os proprietaacuterios
vizinhos o que lhes causou revolta dada a mobilizaccedilatildeo agressiva desencadeada
contrariamente ao trabalho do INCRA na localidade Assim a leitura que Joaquim faz
em relaccedilatildeo ao resultado do relatoacuterio passa pela percepccedilatildeo de um compromisso direto
dos antropoacutelogos com os proprietaacuterios vizinhos O terceiro momento eacute quando
Joaquim destaca a possibilidade de uma reaccedilatildeo bem-sucedida do grupo em uma
reuniatildeo realizada na UNIOESTE Nesta oportunidade eles verbalizaram
publicamente esta insatisfaccedilatildeo com o trabalho produzido e questionaram os
121
antropoacutelogos diretamente sobre o que consideraram ser uma ldquoantropologia de cem
quilocircmetros de distacircnciardquo destacando a importacircncia que datildeo agrave relaccedilatildeo de proximidade
e confianccedila que natildeo se estabeleceu em nenhum momento com esta primeira equipe
A dificuldade de comunicaccedilatildeo foi outro ponto destacado por Joaquim o que
se configura em um problema muito seacuterio e limitador em uma pesquisa antropoloacutegica
ainda mais quando se trata de um estudo sobre a reivindicaccedilatildeo territorial do grupo
Adir E depois laacute em Cascavel dizer pra noacutes assim ldquopelo que noacutes pesquisamos vocecircs durante esse tempo vocecircs eacute uma comunidade igual agrave comunidade de Maracaju natildeo tem diferenccedila nenhuma Vocecircs natildeo satildeo quilombolardquo ()
Joaquim O que os outros plantava noacutes plantava tambeacutem Eu falei assim ldquoOh noacutes planta pimenta noacutes planta taioba noacutes planta inhame Vocecirc viu os italianos se eles tecircm inhame plantado tem taioba tanta coisa se eles temrdquo aiacute ele diz que eacute tarde
Adir Eu mostrei pra eles o que noacutes cultivava eu falei ldquooacute a nossa histoacuteria professor Antocircnio vocecirc pode prestar atenccedilatildeo da nossa histoacuteria Noacutes nossos antepassados vieram da Aacutefrica trazido pra um solo brasileiro trabalharam como escravo cara
Joaquim Eles falaram isso laacute em Cascavel soacute que em Toledo eles mudaram
Adir ldquoAjudar a construir esse paiacutes soacute isso jaacute chega natildeo precisa de mais nada Soacute a nossa cor jaacute nos identifica noacutes mesmo a nossa escravidatildeo no passado Seraacute que pra vocecirc que eacute um professor um doutor vem falar issordquo
O depoimento acima sintetiza a concepccedilatildeo de que o fato de serem da cor
negra jaacute demonstra a descendecircncia de africanos escravizados Esta compreensatildeo
identificada no plano eacutetnico-racial correlaciona parentesco com traccedilos fenotiacutepicos e
expressa ldquoas propriedades primordiais elegidas para a construccedilatildeo de uma memoacuteria
das lsquoorigensrsquo remetida agrave experiecircncia comum do cativeirordquo (RUBERT SILVA 2009 p
269) A fala aponta tambeacutem para a percepccedilatildeo dos sujeitos quilombolas em relaccedilatildeo agrave
valorizaccedilatildeo das diferenccedilas entre eles e os proprietaacuterios vizinhos sendo que os sinais
diacriacuteticos destacados por Joaquim se referem aos tipos de alimentos cultivados pelo
grupo quilombola As diferenccedilas se expressam aleacutem disso no lugar social dos
quilombolas em contraste com o lugar dos antropoacutelogos de um lado a experiecircncia
histoacuterica de opressatildeo a autoidentificaccedilatildeo que comeccedila pela cor da pele a afirmaccedilatildeo
de uma cultura proacutepria e distinta e de uma relaccedilatildeo especiacutefica com uma base territorial
de outro pesquisadores de uma elite (branca) ldquoum doutorrdquo que mesmo antropoacutelogo
desconsiderou a percepccedilatildeo do grupo sobre sua proacutepria histoacuteria quando deveria ter
pelo menos buscado compreendecirc-la
122
O fato de as famiacutelias que se autodefinem como quilombolas natildeo terem um
viacutenculo ancestral com aquele territoacuterio por serem provenientes de outra regiatildeo bem
como o fato de serem donos da aacuterea que ocupam em GuaiacuteraPR foi interpretado pelo
primeiro relatoacuterio como um fator de descaracterizaccedilatildeo de sua ldquoquilombolidaderdquo A
conquista do acesso formal agrave terra por estas famiacutelias superando todo um contexto de
exclusatildeo territorial da populaccedilatildeo negra foi entendida como um criteacuterio para negar o
reconhecimento do direito de ampliaccedilatildeo deste territoacuterio considerado como condiccedilatildeo
fundamental pelos quilombolas para viabilizar a sobrevivecircncia do grupo Este tipo de
compreensatildeo por parte dos autores do relatoacuterio evidencia uma certa expectativa de
que a condiccedilatildeo de estar agrave margem do sistema formal de propriedade seria um iacutendice
da legitimidade da reivindicaccedilatildeo de direitos territoriais quilombolas
As propriedades adquiridas na comunidade de Maracajuacute dos Gauacutechos pela famiacutelia Santos por meio de Seu Manuel natildeo caracterizam um territoacuterio preacute-existente nem se justifica o pedido pelos membros desta comunidade ou de sua representante coletiva ACONEMA de uma expansatildeo territorial (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1466 [p 56])
Tal perspectiva que parte da ideia de um territoacuterio ancestralmente ocupado
desconsidera o fato de que ldquopor sua mesma estrutura e mobilidade os quilombos natildeo
permitiram uma continuidade da ocupaccedilatildeo da terra e sobretudo natildeo deixaram restos
arqueoloacutegicos ou provas documentaisrdquo (MALIGUETTI 2000 p 102) (traduccedilatildeo minha)
Eacute muito difiacutecil encontrar provas factuais da existecircncia de quilombos histoacutericos e
praticamente impossiacutevel provar que o lugar e a terra onde as comunidades
quilombolas vivem hoje sejam os mesmos em que originariamente se formaram Este
tipo de comprovaccedilatildeo faacutetica natildeo eacute exigido pelo Decreto 48872003 que regulamenta o
procedimento de titulaccedilatildeo atualmente em vigor Em seu artigo 2ordm considera como
ldquoremanescentes das comunidades dos quilombosrdquo os grupos eacutetnico-raciais ldquosegundo
criteacuterios de auto-atribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria dotados de relaccedilotildees
territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra relacionada com a
resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo Em relaccedilatildeo agrave territorialidade afirma no sect2ordm
do mesmo artigo que ldquosatildeo terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos as utilizadas para a garantia de sua reproduccedilatildeo fiacutesica social econocircmica e
culturalrdquo
123
Natildeo haacute na legislaccedilatildeo portanto a imposiccedilatildeo de uma noccedilatildeo de verdadeiro ou
falso a partir da ideia de prova histoacuterica em relaccedilatildeo agraves narrativas daqueles que se
autodefinem como quilombolas No entanto a utilizaccedilatildeo de argumentos de ordem
histoacuterica se torna o padratildeo de persuasatildeo discursiva de modo mais amplo na
produccedilatildeo de relatoacuterios antropoloacutegicos sobre grupos quilombolas adotando loacutegicas e
linguagem proacuteprias agraves instacircncias do Estado pautadas em criteacuterios de verdade para
ganhar eficaacutecia
() os laudos sobre remanescentes de quilombos satildeo produzidos quase invariavelmente ndash com maior ou menor competecircncia clareza e elaboraccedilatildeo por parte dos seus autores ndash lanccedilando matildeo de argumentos histoacutericos Assim ao ser expulsa pela porta a histoacuteria retorna pela janela numa versatildeo ingecircnua e positivista quando natildeo simplesmente hipoteacutetica (ARRUTI 2005 p 24)
A postura analiacutetica defendida pelo primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo
aponta para a supremacia de instacircncias externas de legitimaccedilatildeo e a desconsideraccedilatildeo
do ponto de vista da comunidade o que se expressa por exemplo na busca por
comprovaccedilotildees histoacutericas Deste modo emprestam ldquoagraves identidades sociais substacircncia
e permanecircnciardquo buscando no passado uma continuidade linear com as dinacircmicas do
presente e assim desconsideram as ldquocategorias e praacuteticas nativas da construccedilatildeo
simboacutelica do grupo e de sua atualizaccedilatildeo por meio de accedilotildees sociaisrdquo (OLIVEIRA
FILHO SANTOS 2003 p 116-131) que satildeo o vetor da elaboraccedilatildeo de laudos periciais
antropoloacutegicos Ignorando o processo contiacutenuo de produccedilatildeo de fronteiras sociais o
relatoacuterio em um tom de autoridade afirma que se ldquoconstatourdquo
() com relaccedilatildeo agrave presunccedilatildeo de ancestralidade da Famiacutelia Santos primeiro natildeo haacute nenhuma memoacuteria sobre escravismo na regiatildeo em que vivem hoje segundo que eles mesmos natildeo descrevem essa ancestralidade como sendo do local onde estatildeo pois se dizem filhos de mineiros (e por exemplo o mineirismo a mineiridade satildeo demonstrados pela culinaacuteria que praticam pelo que cultivam em suas hortas dentre outros aspectos (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1528 [p 118])
Este tom objetivista perpassa todo o relatoacuterio e se amplifica no uso de
expressotildees como ldquocomprovaccedilatildeo documentalrdquo ldquoinformaccedilatildeo confirmadardquo
ldquocomprovaccedilatildeo por meio de pesquisa histoacutericardquo assim como o uso dos verbos como
ldquoconstatou-serdquo e ldquoverificou-serdquo entre outras construccedilotildees discursivas este mesmo
padratildeo Aleacutem disso ao longo do texto os autores expressam de maneira reiterada as
124
suas desconfianccedilas em relaccedilatildeo agrave legitimidade das fontes orais107 Estas posturas
estatildeo todas articuladas em uma certa visatildeo do que seria o criteacuterio antropoloacutegico de
pesquisa enquanto conhecimento teacutecnico e cientiacutefico e o papel do antropoacutelogo como
ldquopesquisador-censorrdquo em sua abordagem essencialista da identidade eacutetnica (MELLO
2012 p 44) como fica evidenciado neste trecho do relatoacuterio
Como apontam diversos autores e estudos antropoloacutegicos a antropologia se baseia nas etnografias feitas e estas natildeo satildeo apenas subjetividade dos autores eou um amontoado de dados mas sim uma compreensatildeo objetiva com argumento de objetividade etnograacutefica sobre um problema social posto para estudo Assim natildeo se incorre em um jogo de versotildees sobre um fato eou mera disputa de opiniotildees (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1511 [p 101])
Dentro desta visatildeo de uma pretensa ldquoobjetividade etnograacuteficardquo os autores do
relatoacuterio entendem que tecircm como atribuiccedilatildeo averiguar a existecircncia ou natildeo de uma
comunidade quilombola Apesar de afirmarem reconhecer e operar a partir do conceito
de autoidentificaccedilatildeo que estaacute previsto na legislaccedilatildeo nacional natildeo a incorporam como
premissa teoacuterica e etnograacutefica No iniacutecio do relatoacuterio haacute uma tentativa de justificar a
natildeo adesatildeo completa ao criteacuterio da autodefiniccedilatildeo com o argumento de que este seria
insuficiente para definir a identidade do grupo devendo ser complementado por uma
noccedilatildeo heteroidentidade que torna necessaacuterio o reconhecimento exterior de que se
trata de um grupo percebido como distinto em uma relaccedilatildeo entre ldquonoacutesrdquo e ldquoelesrdquo
No Decreto 4887 fica claro que os criteacuterios a serem reconhecidos pelo governo federal satildeo o de auto-atribuiccedilatildeo contrastando com a perspectiva antropoloacutegica interacionista relacional pois esta trabalha com o processo de construccedilatildeo da identidade onde a categoria do ldquonoacutesrdquo constroacutei-se na relaccedilatildeo com a categoria do ldquoelesrdquo natildeo existindo uma heacutetero identidade (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1422 [p 12])
Eacute possiacutevel perceber por meio de uma anaacutelise sistemaacutetica de todo o texto do
relatoacuterio que houve um uso instrumental e distorcido da teoria da identidade
107 Como observa Alessandro Portelli em seu livro ldquoEnsaios de Histoacuteria Oralrdquo os documentos satildeo
envoltos por uma ldquopresunccedilatildeo de verdade que uma certa historiografia atribui agraves fontes escritas consagrando-as com o nome de documentosrdquo Trata-se da historiografia do seacuteculo XIX que tomou o documento como uma realidade sem perceber no entanto que eles estatildeo tambeacutem permeados pela ideologia pelos sonhos e pela subjetividade de quem os escreve Esta corrente historiograacutefica teve forte influecircncia na atribuiccedilatildeo de superioridade das fontes escritas sobre as fontes orais o que se percebe claramente no acircmbito do direito e mais especificamente nos processos judiciais e administrativos (PORTELLI 201068)
125
contrastiva proposta pelo antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth Ao contraacuterio do que
afirmado no trecho acima foi a partir das contribuiccedilotildees deste autor que processos de
autoatribuiccedilatildeo passaram a ser considerados como centrais no estudo dos grupos
eacutetnicos bem como no modo de constituiccedilatildeo dos proacuteprios limites sociais do grupo com
relaccedilatildeo a outros grupos No caso das comunidades quilombolas segundo os
desdobramentos das anaacutelises desta tradiccedilatildeo teoacuterica o reconhecimento destes grupos
natildeo deve partir de ldquouma lista de traccedilos de natureza racial ou cultural originada da
interpretaccedilatildeo historiograacutefica sobre os quilombos da colocircnia ou do Impeacuteriordquo (ARRUTI
2006 p 39-40) Contraditoriamente eacute a partir de uma tal lista que os autores do
relatoacuterio parecem estabelecer os paracircmetros para embasar a pretensa ldquoobjetividade
etnograacuteficardquo que reivindicam
Esta contradiccedilatildeo fica evidente por exemplo no argumento desenvolvido a
respeito da existecircncia ou natildeo dos ldquosinais diacriacuteticos que deveriam os diferenciar dos
seus vizinhosrdquo e em natildeo os constatando concluem que fica ldquoevidente sim os sinais
diacriacuteticos que os igualam no seu modo de ser dos demais moradores da comunidade
Maracaju dos Gauacutechosrdquo (grifo meu) Esta utilizaccedilatildeo da ideia de fronteira entre ldquonoacutesrdquo e
os ldquoelesrdquo parece ter sido acionada ao longo do texto para justificar a opccedilatildeo pela
realizaccedilatildeo de um trabalho de campo ndash que consideram amplo neutro e mais
aprofundado ndash no qual estabeleceram contato efetivo de pesquisa com pessoas ldquoda
comunidade negra da comunidade de Maracaju dos Gauacutechos e da cidaderdquo108
Com relaccedilatildeo agrave ideia de que a ldquoauto-identidade que eacute definida por si mesmardquo
dependeria de uma ldquohetero-identidade que eacute definida pelos outrosrdquo109 argumentam
Compreende-se que a identidade eacute sempre contrastiva relacional e situacional focando essa fronteira entre o ldquonoacutesrdquo e os ldquooutrosrdquo se procurou dar voz ao entorno da auto denominada comunidade Negra moradores de origem eacutetnica italiana alematilde portuguesa ou entatildeo mineiros gauacutechos paulistas paraiacutebas pois a equipe de pesquisa entendeu que devia observar como os grupos se vecircem e satildeo vistos uns pelos outros (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1518 [p 108])
A despeito novamente de afirmarem que ldquoprivilegiaram a metodologia
participativa a qual prevecirc a incorporaccedilatildeo de saberes e perspectivas locais em todas
as etapas do estudordquo110 em muitos momentos do relatoacuterio a fala dos quilombolas satildeo
108 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1438 [p 28] 109 Idem p 1519 [p 109] 110 Ibidem p 1426 [p 16]
126
questionadas ao passo que agrave versatildeo dos proprietaacuterios vizinhos eacute atribuiacuteda
legitimidade considerando que esta sim poderia ser comprovada documentalmente
Essa adesatildeo ao discurso dos proprietaacuterios do entorno foi utilizada como argumento
comprovatoacuterio da natildeo existecircncia de segregaccedilatildeo racial por parte da ldquoSociedade Agro-
Pecuaacuteria Maracaju LTDArdquo que teria vendido os lotes indistintamente inclusive para
Manoel Ciriaco
Assim esta pretensa ausecircncia de discriminaccedilatildeo formal ganha destaque no
texto enquanto o sentimento de discriminaccedilatildeo vivenciado pela comunidade quilombola
eacute desqualificado Os autores afirmam por exemplo que ldquoa equipe de pesquisa
constatou atraveacutes das falas da famiacutelia Santos a existecircncia de um auto-isolamento
motivado pela pobreza e timidezrdquo111 O fato de ter ocorrido um casamento entre a
enteada de Adir Juliana (que natildeo tem viacutenculo de parentesco com o grupo e que
poderia ser considerada apenas como ldquomorenardquo na classificaccedilatildeo interna112) com um
dos descendentes dos italianos eacute considerado pelos autores como uma prova de que
natildeo haveria preconceito racial por parte dos ldquoitalianosrdquo Por outro lado identificam uma
fala ldquogeneralista e preconceituosardquo da parte de Zeacute Maria
Joseacute Maria Gonccedilalves relata que ldquoos italianos sempre quiseram comprar as nossas terras queriam afastar a gente daqui porque somos pretosrdquo Tal fala chamou a atenccedilatildeo da equipe de pesquisa pois desde o primeiro dia de pesquisa de campo se sabia que Juliana enteada do Adir Santos pertencente a auto denominada comunidade Negra Manoel Ciriaco dos santos eacute casada com Fabio Graciano filho de Paulo Um casamento entre negros e ldquoitalianosrdquo desabona a fala generalista e preconceituosa exposta por Joseacute Maria (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1473 [p 63])
Argumentam tambeacutem que puderam observar um preconceito por parte da
proacutepria comunidade Manoel Ciriaco em relaccedilatildeo aos seus vizinhos aos quais
denominariam como ldquoitalianosrdquo ldquoalematildeesrdquo ldquoratos brancosrdquo entre outros termos
Buscam atribuir assim uma equivalecircncia entre os dois lados desconsiderando a
percepccedilatildeo quilombola de uma desigualdade de poder e oportunidades entre brancos
e negros Os quilombolas afirmam neste sentido que sempre trabalharam para esses
proprietaacuterios em relaccedilotildees informais de trabalho como por meio de diaacuterias situaccedilotildees
111 Ibidem p 1520 [p 110] 112 Depois que a enteada de Adir se casou com o filho de um agricultor do Maracaju dos Gauacutechos
descendente de italianos rompeu com a comunidade inclusive tendo agredido verbalmente sua matildee e condenando a reivindicaccedilatildeo do grupo
127
nas quais eles lhes pagavam o quanto desejavam Aleacutem disso sentem-se alvo de
racismo em diversas situaccedilotildees ao longo de anos como jaacute apontamos nas falas
ressaltadas no primeiro capiacutetulo
No acircmbito desta descaracterizaccedilatildeo da comunidade produzida pelo
documento ndash que parece funcionar mais como um contra-laudo ao fundamentar-se na
ldquoheacutetero-identidaderdquo produzida pela visatildeo dos proprietaacuterios vizinhos ndash um dos aspectos
destacados diz respeito agrave suposta natildeo autenticidade da reivindicaccedilatildeo da identidade
quilombola tendo em vista que esta seria decorrente de um contato estreito com
agentes externos
Este processo de construccedilatildeo de identidade eacutetnica estaacute baseado em accedilotildees inicialmente de agentes esternos (sic) a auto denominada (sic) Comunidade Negra e que a partir destes contatos tem buscado em supostas interpretaccedilotildees de origens antepassado que teriam sido escravos (sic) bem como a criaccedilatildeo de uma memoacuteria de exclusatildeo por parte das sociedades onde viveram (Itambeacute do Serro Caiabu e agora Maracaju dos Gauacutechos) () (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1473
[p 63]) 113
Ao passo que neste relatoacuterio a inserccedilatildeo do Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura
(GTCM) no cenaacuterio poliacutetico de estiacutemulo agrave autodeclaraccedilatildeo e organizaccedilatildeo associativa
quilombola foi considerada como ilegiacutetima por ldquotrazer de forardquo a reivindicaccedilatildeo da
identidade no Relatoacuterio Antropoloacutegico da Comunidade Quilombola Aacutegua Morna
localizada em CuriuacutevaPR realizado pela antropoacuteloga Liliana Porto a importacircncia
deste trabalho do GTCM eacute destacada como uma ldquoguinada significativardquo para o
reconhecimento das comunidades quilombolas no contexto paranaense A
antropoacuteloga ressalva contudo que tal elaboraccedilatildeo identitaacuteria das comunidades soacute foi
possiacutevel tendo como base elementos preacute-existentes que foram entatildeo mobilizados
pelos grupos ldquoa partir de um contexto poliacutetico-legal novordquo (PORTO 2008 07)
Esta desvalorizaccedilatildeo por parte dos autores do relatoacuterio sobre a comunidade de
GuaiacuteraPR do que consideram ldquoelementos trazidos de forardquo implica em uma
essencializaccedilatildeo da cultura o que contrasta diretamente com a abordagem relacional
da etnicidade que afirmam adotar Dentro desta perspectiva o fato de os quilombolas
terem passado a participar posteriormente agrave certificaccedilatildeo pela Fundaccedilatildeo Cultural
Palmares de aulas de artesanato e de capoeira indicaria um esforccedilo natildeo autecircntico do
113 Transcriccedilatildeo igual agrave redaccedilatildeo no texto original inclusive com os erros de portuguecircs
128
grupo por praacuteticas que pudessem ldquolembrar haacutebitos de seus antepassadosrdquo114 No
entanto estes autores natildeo levam em conta que ldquoos discursos sobre o passado
apontam a maneira como no presente se lida com este passadordquo (PORTO SALLES
MARQUES 2013 p174) tendo em vista ainda uma certa de expectativa de futuro
Neste sentido segundo Joatildeo Aparecido quilombola que mora na comunidade
e que eacute filho de Manoel Ciriaco a capoeira jaacute era praticada por eles mas natildeo do
mesmo jeito que passaram a jogar com as aulas do Mestre Djalma Este professor foi
contratado pela prefeitura a partir de uma articulaccedilatildeo dos quilombolas Antes segundo
Joatildeo a praacutetica da capoeira era uma brincadeira ensinada pelos primos que moravam
em AssisSP que tinham mais experiecircncia Com as aulas do Mestre Djalma na
comunidade comeccedilaram a aprender de forma sistematizada com troca de cordatildeo115
realizada em Guaiacutera e com uma periodicidade que proporcionou o envolvimento todos
os jovens da comunidade Este enfoque em atividades para os jovens eacute algo sempre
reforccedilado por Adir como uma necessidade de trazecirc-los mais proacuteximos da histoacuteria do
grupo da cultura pois satildeo eles que iratildeo dar continuidade no futuro
A capoeira foi entatildeo mobilizada como um marcador da diferenccedila cultural do
grupo na condiccedilatildeo de siacutembolo de resistecircncia dos escravos ao sistema de opressatildeo e
tornou-se tambeacutem uma espeacutecie de ldquoritual poliacuteticordquo para demarcar fronteiras a partir da
exigecircncia de descontinuidade com os regionais116 Todas as vezes que a comunidade
recebe visita de escolas sobre as quais mencionamos no primeiro capiacutetulo eacute a roda
de capoeira a performance da cultura escolhida para falar sobre as origens do grupo
e sobre a continuidade de sua luta Neste sentido Adir compara a resistecircncia dos
negros do passado com o momento presente do grupo no qual continuam resistindo
aos processos de negaccedilatildeo de direitos impostos a partir da loacutegica do capitalismo em
que as exclusotildees social e racial se reforccedilam mutuamente Joatildeo Aparecido tambeacutem
comentou que escolheram o berimbau como siacutembolo da Associaccedilatildeo Comunidade
Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) porque a capoeira ajudou na histoacuteria
114 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1513 [p 103] 115 Momento no qual o aluno sobe de gradaccedilatildeo e recebe um novo cordatildeo que usa com o uniforme do
grupo de capoeira Para tanto no dia da troca ele tem que colocar em praacutetica o que aprendeu no entanto ldquotem que esquivar mas natildeo pode revidarrdquo 116 No caso analisado por Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho sobre a emergecircncia de identidades indiacutegenas no Nordeste o ritual poliacutetico mobilizado foi o ldquotoreacuterdquo protagonizado ldquosempre que eacute necessaacuterio demarcar as fronteiras entre lsquoiacutendiosrsquo e lsquobrancosrsquo Ele ldquopermite exibir a todos os atores presentes nessa situaccedilatildeo intereacutetnica (regionais indigenistas e os proacuteprios iacutendios) os sinais diacriacuteticos de uma indianidade (Oliveira 1988) peculiar aos iacutendios do Nordesterdquo (OLIVEIRA FILHO 1997 p 60)
129
dos quilombos e se relaciona diretamente com a religiosidade do grupo lembrando-
se de como o seu irmatildeo Zeacute Maria gostava de cantar as ladainhas de capoeira que
satildeo como os pontos do terreiro de Umbanda117
Na anaacutelise dos processos de autoidentificaccedilatildeo eacutetnica segundo Barth e sua
teoria da identidade contrastiva natildeo satildeo as diferenccedilas em si que importam mas como
em determinados contextos elas satildeo acionadas (BARTH 2011) como neste caso do
acionamento da capoeira como um siacutembolo central da comunidade Ademais o
compartilhamento por um grupo de uma mesma cultura e a consequente produccedilatildeo de
diferenccedilas culturais deve ser lido como consequecircncia de processos de interaccedilatildeo e
natildeo como causa primeira (VILLAR 2004 171) Na contramatildeo desta perspectiva os
autores do relatoacuterio antropoloacutegico pareciam estar agrave procura de traccedilos ldquooriginaisrdquo que
correspondessem a um modelo estereotiacutepico de quilombo Tal noccedilatildeo pode ser
remetida ao modo como a histoacuteria oficial se reporta agrave experiecircncia da formaccedilatildeo de
quilombos enquanto fenocircmeno social que ocorreu durante o periacuteodo escravista118
Em relaccedilatildeo agrave anaacutelise da presenccedila de ldquomemoacuterias sobre a escravidatildeordquo na
comunidade os autores do relatoacuterio afirmam que apesar de existirem referecircncias agrave
escravidatildeo natildeo existiriam ldquoreminiscecircncias de um quilombordquo119 Afirmam entatildeo que
ldquoa identidade como algo contrastivo se faz presente desde antes desse pedido de
reconhecimentordquo mas que ldquoa construccedilatildeo de uma identidade quilombola eacute algo
recenterdquo120 Deste modo o relatoacuterio eacute finalizado com a seguinte conclusatildeo
Por fim a equipe de pesquisa esclarece que o que se viu constatou e
verificou foram somente dois lotes rurais de nuacutemeros 186ordf (pertencentes por
heranccedila aos filhos de Seu Manoel C Santos) assim como os lotes rurais dos
seus vizinhos como constatado no mapa da Gleba nordm 4-A colocircnia ldquoCrdquo Serra
Maracajuacute natildeo havendo distinccedilatildeo entre eles portanto natildeo haacute qualquer
territorialidade quilombola possiacutevel na regiatildeo da comunidade de Maracajuacute dos
Gauacutechos Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do
INCRAPR p 1532 [p 122]
117 Por outro lado a religiosidade embora central como vimos no capiacutetulo anterior natildeo eacute mobilizada
pelo grupo como marcador puacuteblico de identidade o que pode estar ligado a uma estrateacutegia de evitar as criacuteticas geradas pela combinaccedilatildeo de preconceito racial e religioso bem como pode decorrer da opccedilatildeo de deixar a esfera do sagrado separada das dinacircmicas de mobilizaccedilatildeo identitaacuterias pelo seu proacuteprio valor especial e superior 118 Deste modo determinadas caracteriacutesticas da experiecircncia do quilombo com mais repercussatildeo histoacuterica o quilombo de Palmares tecircm sido colocadas como regras e condicionantes para o reconhecimento de outros grupos com histoacuterias e caracteriacutesticas diversas (MILANO 2011 31) 119 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1505 [p 95] 120 Idem p 1521 [p 111]
130
Esta insistecircncia em uma classificaccedilatildeo externa por parte dos autores do relatoacuterio
se desdobra em um mecanismo de controle sobre os grupos e suas formas de viver
na medida em que natildeo reconhece a possibilidade de autoidentificaccedilatildeo destes grupos
Deste modo
ldquose a situaccedilatildeo se desdobra em um mecanismo de controle sobre os grupos populaccedilotildees sobre suas formas de viver na medida pois ldquose a situaccedilatildeo presente eacute de pluralismo do corpo social se natildeo mais subsiste o poder de um grupo sobre os demais natildeo haacute soluccedilatildeo possiacutevel senatildeo que cada qual assuma para si as suas definiccedilotildees identitaacuteriasrdquo (DUPRAT 2014 p 60)
Natildeo eacute pertinente portanto fundamentar a negativa do acesso ao direito
territorial quilombola como faz o relatoacuterio com base no argumento de que haveria
uma manipulaccedilatildeo identitaacuteria por parte do grupo Este ponto de vista decorre de uma
perspectiva superada teoricamente na antropologia que parte de uma
ldquoessencializaccedilatildeo impliacutecita dos conteuacutedos socioculturais que informariam as
identidades eacutetnicasrdquo (SANTOS 1996 p 136)
Muitas perguntas podem ser levantadas com a anaacutelise deste documento Eacute
possiacutevel que a antropologia sirva a interesses antagocircnicos como de quilombolas e de
proprietaacuterios vizinhos Pode a antropologia ser vista como um saber teacutecnico e natildeo
poliacutetico Eacute possiacutevel reconhecer a diversidade sem transformar o Outro em uma
imagem paacutelida de noacutes mesmos Sem pretender esgotar o debate entendo que antes
de mais nada eacute necessaacuterio aceitar que haacute muito o que se avanccedilar nas poliacuteticas
puacuteblicas no Brasil para que natildeo seja a proacutepria imagem do Estado sobre a diversidade
a uacutenica possibilidade de reconhecimento admitida (HARTUNG 2009 p 11)
Para os quilombolas de GuaiacuteraPR as consequecircncias do primeiro relatoacuterio
foram muito graves como veremos a respeito do conflito desencadeado ndash que seraacute
abordado no toacutepico abaixo A necessidade de lidar com a negaccedilatildeo oficial de sua
identidade colocou-os diante de uma encruzilhada ou desistiam do processo em
tracircmite no INCRA de modo que a primeira versatildeo do relatoacuterio se tornaria a uacutenica
interpretaccedilatildeo oficial sobre a trajetoacuteria do grupo ndash mesmo que natildeo aprovada pelo
INCRA e pela comunidade ndash ou optariam por passar por um novo estudo que
recomeccedilaria todo o processo e poderia reacender os conflitos com os proprietaacuterios
vizinhos mas por outro lado tambeacutem seria uma chance de rever e responder aos
questionamentos colocados pela equipe da UNIOESTE e dar seguimento agrave
131
reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo territorial do grupo Decidiram entatildeo continuar a trilhar o
caminho do reconhecimento territorial
23 O CONFLITO COM OS PROPRIETAacuteRIOS VIZINHOS
O processo de produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo foi o eixo de
um conflito desencadeado entre a comunidade quilombola e os proprietaacuterios vizinhos
como analisaremos neste momento Quando finalizado este documento natildeo foi
aprovado pela comunidade que natildeo se sentiu nele representada nem tampouco pelo
INCRA que por questotildees de insuficiecircncias teacutecnicas o rejeitou No ano de 2012
ocorreu a produccedilatildeo de um segundo relatoacuterio como uma das respostas institucionais
do INCRA diante da grave situaccedilatildeo em que o grupo quilombola se encontrava e de
cuja responsabilidade tal oacutergatildeo natildeo poderia se furtar
As razotildees do INCRA para ter rejeitado o primeiro relatoacuterio podem ser
sintetizadas nos seguintes pontos conforme Informaccedilatildeo Teacutecnica produzida por um
antropoacutelogo do INCRA da Coordenaccedilatildeo Geral de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios
Quilombolas em Brasiacutelia (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do
INCRAPR p 1576-1579)
a) Argumentaccedilatildeo contraacuteria ao processo de construccedilatildeo identitaacuteria da
comunidade vista como uma tentativa de manipulaccedilatildeo jaacute que afirmam
natildeo existir nenhuma diferenciaccedilatildeo com os proprietaacuterios do entorno
b) Ausecircncia de reflexotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica da comunidade que daacute
sentido agrave construccedilatildeo da territorialidade bem como sobre os conflitos com
a comunidade envolvente o processo de perda territorial a organizaccedilatildeo
social da comunidade o modo como se relaciona com o territoacuterio e o meio
ambiente
c) Ausecircncia de uma proposta de delimitaccedilatildeo territorial para a comunidade
tendo em vista que os autores mantiveram a posiccedilatildeo de que natildeo existiria
um territoacuterio quilombola a ser indicado natildeo atendendo assim aos
objetivos deste tipo de estudo
132
d) Incompatibilidade do relatoacuterio com os termos da Instruccedilatildeo Normativa em
vigor na eacutepoca IN 492008 bem como com o convecircnio entre o INCRA e a
UNIOESTE
Eacute possiacutevel observar que a avaliaccedilatildeo do INCRA em relaccedilatildeo ao primeiro
relatoacuterio se aproxima da visatildeo da comunidade sobre a atuaccedilatildeo da primeira equipe
expressa na insatisfaccedilatildeo dos quilombolas por considerarem que natildeo houve uma
ldquoescutardquo de suas narrativas memoacuterias pontos de vistas sentimentos e projetos Este
descontentamento da comunidade foi denunciado pela Federaccedilatildeo das Comunidades
Quilombolas do Paranaacute (FECOQUI) agrave 6ordf Cacircmara de Coordenaccedilatildeo e Revisatildeo sobre
Povos Indiacutegenas e Comunidades Tradicionais do Ministeacuterio Puacuteblico Federal e tambeacutem
agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia (ABA) tendo o antropoacutelogo responsaacutevel pelo
primeiro relatoacuterio sido advertido por falta grave por esta uacuteltima instituiccedilatildeo A despeito
de o INCRA ter rejeitado o estudo e depois ter contratado uma nova equipe de
pesquisadores bem como de seus funcionaacuterios tambeacutem terem sido viacutetimas da reaccedilatildeo
dos proprietaacuterios vizinhos isto natildeo os isentou na avaliaccedilatildeo dos quilombolas da
responsabilidade pelos desdobramentos ocorridos Como afirmou Adir de forma
enfaacutetica ldquoquando veio o impacto do trabalho do INCRA nossa nos devorou
arrebentourdquo
A autodeclaraccedilatildeo deste grupo como quilombola e a reivindicaccedilatildeo de
ampliaccedilatildeo territorial implicou que arcassem com consequecircncias negativas
importantes como a evidenciaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo de conflitos com os grupos locais O
conflito com os proprietaacuterios vizinhos foi considerado pelo governo estadual como um
dos piores do estado do Paranaacute tendo em vista as frequentes ameaccedilas de violecircncia
fiacutesica e uma seacuterie de violecircncias simboacutelicas que atingiram a comunidade Em 2009
enquanto este primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo estava sendo produzido a
mobilizaccedilatildeo do grupo contraacuterio liderada pelo entatildeo presidente do Sindicato Rural
Patronal de Guaiacutera Silvanir Rosseti teve apoio da imprensa local e regional em seus
questionamentos sobre a identidade quilombola e a ampliaccedilatildeo do territoacuterio do grupo
Essa oposiccedilatildeo tatildeo intensa dos proprietaacuterios vizinhos intensificou-se ainda
mais quando tiveram acesso de modo irregular ao mapa preliminar ndash construiacutedo por
meio da orientaccedilatildeo dada pelos antropoacutelogos da primeira equipe aos quilombolas ndash
que supostamente representaria o territoacuterio reivindicado pela comunidade Acontece
133
que o modo como os antropoacutelogos orientaram o grupo sobre os criteacuterios para a
indicaccedilatildeo das aacutereas eacute questionado por Joaquim e Adir que ressaltam a dificuldade
sentida para a compreensatildeo a linguagem dos pesquisadores o que gerou uma falta
de fluidez na comunicaccedilatildeo entre eles Atualmente eles percebem que teriam sido
induzidos a indicar uma aacuterea maior do que pretendiam incluindo todas as
propriedades com as quais tinham tido viacutenculos mesmo que fossem apenas por meio
de trabalho121 Conjugando esta interpretaccedilatildeo com a que fazem em relaccedilatildeo ao
compromisso dos antropoacutelogos com os proprietaacuterios vizinhos a elaboraccedilatildeo de um
mapa com pretensotildees muito maiores do que era reivindicado pelo grupo teria servido
natildeo soacute para enfraquecer sua demanda territorial como para justificar a forte reaccedilatildeo
dos donos das aacutereas indicadas
Joaquim Esses outros antropoacutelogos sabe o que eles fizeram com a gente
Dandara Eles jogaram noacutes contra a parede Eles falou de onde eacute que noacutes
tinha viacutenculo com aquela terra aquela propriedade noacutes tinha que indicar Aiacute
noacutes falamos ldquomas naquela propriedade tem essa daqui oacute noacutes tem viacutenculo
essa daqui nem essa daqui noacutes natildeo temrdquo ldquoNatildeo tem que ir levando tudo
Vocecircs pode ir ateacute 10 km cecircs pode ateacute ir daqui em Guaiacuterardquo (fala dos
antropoacutelogos)
Adir Vocecirc que taacute com esse estudo eu tenho certeza que vocecirc vai conseguir vocecirc vai passar A antropologia do Professor Antocircnio que era o chefe laacute da equipe falar a verdade Um cara que fala vocecirc pode ver o cara fala e duratildeo Fala de uma maneira que natildeo eacute a nossa linguagem Eles natildeo podia fazer isso com noacutes que eles fez
Joaquim Eles vieram trecircs vezes aqui Dandara e eles falou ldquoou vocecircs daacute a resposta hoje ou se natildeo vocecircs vai de aacutegua baixordquo Noacutes tinha que falar eles falou assim ldquomas noacutes tambeacutem noacutes temos contrato que se vocecircs natildeo vai fazer a indicaccedilatildeo entatildeo noacutes mesmo fazrdquo Noacutes podia ter deixado eles fazer
A assimetria na relaccedilatildeo entre os antropoacutelogos e os quilombolas bem como a
dificuldade de diaacutelogo satildeo portanto questotildees centrais na maneira como o grupo
interpreta os fatos ocorridos Em contraste com esta situaccedilatildeo de pesquisa que
consideram malsucedida eu sou entatildeo colocada no diaacutelogo acima entre Adir e
Joaquim quando Adir afirma ldquovocecirc que taacute com esse estudo eu tenho certeza que
vocecirc vai conseguir vocecirc vai passarrdquo A comparaccedilatildeo entre a minha pesquisa e a
pesquisa do primeiro relatoacuterio natildeo eacute feita por Adir de um modo direto mas eacute possiacutevel
121 No acircmbito do procedimento de reconhecimento territorial o fato de terem trabalhado para os proprietaacuterios vizinhos natildeo eacute criteacuterio para ampliaccedilatildeo da aacuterea que jaacute possuem com base no artigo 2ordm do Decreto Federal 4887 de 2003
134
inferir que por ter sido construiacuteda uma relaccedilatildeo de confianccedila entre mim e os membros
do grupo ndash relaccedilatildeo esta que antecedia a proacutepria pesquisa e que remete a minha antiga
posiccedilatildeo como assessora do Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute ndash havia uma
expectativa positiva de que o resultado do meu trabalho iria trazer algum tipo de
contribuiccedilatildeo para a comunidade
Eacute a falta de confianccedila dos quilombolas em relaccedilatildeo ao trabalho da primeira
equipe de pesquisadores que no presente embasa esta percepccedilatildeo de que teriam
sido enganados pelas orientaccedilotildees dos antropoacutelogos quando da elaboraccedilatildeo do mapa
preliminar Uma desconfianccedila que foi se acentuando durante o processo de pesquisa
ateacute que fosse confirmada segundo eles pelo proacuteprio resultado do relatoacuterio final que
era contraacuterio agraves reivindicaccedilotildees da comunidade Com a colocaccedilatildeo de Joaquim no
diaacutelogo acima ndash ldquoNoacutes podia ter deixado eles fazerrdquo ndash percebe-se que ao se sentirem
incomodados com as orientaccedilotildees passadas pelos antropoacutelogos eles poderiam ter
tomado outra atitude ao inveacutes de naquele momento terem aceitado a pressatildeo dos
antropoacutelogos de que o mapa soacute poderia ser produzido daquela maneira
Joaquim me contou entatildeo como ldquoo INCRA deixou eles (os vizinhos)
roubarem o mapardquo jaacute que o oacutergatildeo deveria ao contraacuterio ter zelado por este
documento de importacircncia central para o processo tanto em um niacutevel administrativo
como para as dinacircmicas de relaccedilotildees locais em torno da questatildeo territorial Observa-
se na fala de Joaquim uma ambiguidade na forma como ele avalia a posiccedilatildeo do oacutergatildeo
federal que se de um lado estava atuando na regiatildeo com o objetivo de garantir o
direito do grupo de outro mostra-se imprudente ao contratar pesquisadores
inadequados para realizar o estudo e ainda acaba por perder o mapa preliminar
Joaquim Eacute Dandara eu jaacute desconfiei na hora sabe por quecirc A indicaccedilatildeo que noacutes fez era bem grande aiacute eles ponharam eu e a Claudia do INCRA o Adir natildeo tava aqui eu e a Claacuteudia o motorista e um outro que veio saber onde eacute que a gente tinha indicaccedilatildeo e noacutes andamos tudo em volta com a camionete do INCRA Aiacute quando chegou aqui o cara falou assim ldquoEh a indicaccedilatildeo eacute muito a aacuterea eacute muito granderdquo Ateacute o cara desconfiou da aacuterea aiacute eu falei ldquoquem fez noacutes dar essa indicaccedilatildeo Os antropoacutelogos Que eles falou que noacutes podia ir ateacute 20 30 km e noacutes foi indicandordquo E depois a turma do INCRA deixou eles roubarem o mapa a coacutepia do mapa Eu natildeo sei como eacute que eles fizeram eles tiraram de dentro da camioneta ali embaixo ali Aiacute eles passaram a divulgaccedilatildeo pra todo mundo Eles levaram no Sindicato Patronal levou pra casa de um cara que eu sei onde eacute que eacute laacute pra frente aiacute esconderam porque a poliacutecia podia ir atraacutes neacute Aiacute a poliacutecia natildeo sabia que um passou pro outro foi passando Aiacute aumentaram a aacuterea ponharam uma parte do municiacutepio de Terra Roxa Aiacute eles botaram os dois municiacutepios contra a gente E eu ainda falei com a Juliana assim ldquomas vocecircs tinha uma coisa em segredo eles que tava com essa coacutepia natildeo podia ter deixado as turma
135
roubarrdquo () Aiacute quando eles tinham tomado a chave da camioneta quando eles subiram laacute pra cima no meio da roccedila tava tudo limpo natildeo tinha plantaccedilatildeo nenhuma aiacute eles pegaram terra assim colocaram dentro do tanque da camioneta Eles (funcionaacuterios do INCRA) ficaram detido das oito horas da manhatilde ateacute as trecircs horas da tarde A Poliacutecia Federal que veio soltar eles aliacute E aiacute depois cercaram a camioneta cercaram eles duas vez dentro do Maracaju e natildeo deixaram eles descer aqui embaixo
Esta ocasiatildeo de forte tensatildeo social ocorrida em 30 de setembro de 2009 foi
o primeiro protesto realizado pelos proprietaacuterios vizinhos Os funcionaacuterios do INCRA
sofreram ameaccedilas ndash como a de que o carro da instituiccedilatildeo seria incendiado ndash e foram
impedidos de chegar agrave comunidade tendo sido mantidos como refeacutens por algumas
horas dentro de uma casa nas proximidades da comunidade122 A gravidade do
conflito ganhou repercussatildeo pela presenccedila das emissoras de televisatildeo Tarobaacute e
Record bem como a raacutedio de Guaiacutera
Adir () Quando foi trecircs horas da tarde aiacute a rede Record veio aqui em casa a raacutedio tudo aqui Aiacute disse ldquooacute Adir eu quero saber o que que taacute acontecendo se vocecirc pode dar uma entrevista pra falar dos seus vizinhos pra falar da sua convivecircncia com eles desse trabalho que taacute sendo feito do INCRA Aiacute que eu falei pra eles eu falei assim ldquoeu natildeo vou dar entrevista de nada o que eu vou falar com vocecircs eacute o seguinte esse trabalho natildeo eacute nosso eacute do INCRA esse levantamento que foi feito pra noacutes ser reconhecido aqui natildeo foi noacutes eacute o governo vocecircs tem que conversar com o governo e conversar com o pessoal do INCRA Noacutes tamo aqui haacute tantos anos e vamos continuar o mesmo eles tambeacutem vatildeo continuar noacutes natildeo queremos nada que eacute deles Se o INCRA taacute fazendo um trabalho que ateacute pra noacutes eacute uma surpresa porque noacutes natildeo entende o que taacute acontecendo natildeo queremos confusatildeo com ningueacutem guerra com ningueacutem E noacutes hoje noacutes estamos podendo falar da nossa cultura aquilo que a gente natildeo pocircde falar a gente ficou preso a vida inteira sem poder pronunciar o que que a gente eacute de verdaderdquo Aiacute chamei as crianccedilas todas e falei ldquovamos mostrar pra eles o que Vamos tocar pra eles vamos cantar vamos tocar vamos bater atabaque e eacute issordquo Aiacute chamei as crianccedilas noacutes toquemo cantamos e ldquoEacute isso se vocecircs quiser filmar vocecircs filma isso aqui Pelo menos vamos preservar a nossa cultura aquilo que a gente natildeo pocircde falar Agora essa questatildeo aiacute natildeo eacute nossa Eacute questatildeo do INCRA e vocecircs Do governo federal e do governo estadual natildeo eacute nossardquo
Quando Adir relata sua recusa em dar uma resposta para a emissora ele estaacute
indicando que a responsabilidade pelo trabalho que estava sendo conduzido natildeo era
dos quilombolas e sim do INCRA Pelo modo como ocorreu o contato com a primeira
equipe de pesquisadores os quilombolas acabam se sentindo viacutetimas e natildeo sujeitos
do processo Por outro lado a resposta de Adir reforccedila o aspecto positivo do processo
122 O Ministeacuterio Puacuteblico Federal de Umuarama ofereceu denuacutencia contra os proprietaacuterios que se ldquoopuseram agrave execuccedilatildeo do ato legalrdquo por parte do INCRA que realizaria na oportunidade levantamento agroambiental referente ao procedimento da Comunidade Quilombola A denuacutencia estaacute disponiacutevel em httpwwwprprmpfgovbrpdfs2013umuarama20-20quilombolas20-20denunciapdf Acesso em 241015
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de reconhecimento como forma de ter a voz do grupo reconhecida no espaccedilo puacuteblico
abrindo a possibilidade de falarem de sua cultura de pronunciarem sua identidade e
por isso conclui dizendo ldquovamos tocar vamos cantarrdquo Contudo se o processo de
regularizaccedilatildeo territorial poderia ter sido este momento de valorizaccedilatildeo da memoacuteria da
histoacuteria do grupo e de suas reivindicaccedilotildees ele natildeo alcanccedila o resultado esperado jaacute
que por meio da atuaccedilatildeo de agentes autorizados pelo Estado para produzirem o
relatoacuterio antropoloacutegico a legitimidade de suas falas lhe eacute novamente negada
Em um outro episoacutedio de conflito ocorrido em 20 de novembro de 2009 dia
da consciecircncia negra os quilombolas saiacuteam de ocircnibus em direccedilatildeo a Marechal
Cacircndido Rondon municiacutepio da regiatildeo para apresentaccedilatildeo do grupo de capoeira em
duas escolas estaduais No entanto em protesto os proprietaacuterios vizinhos fecharam
a estrada do bairro rural ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo com ameaccedilas de que iriam incendiar
o ocircnibus Apoacutes horas de negociaccedilatildeo o grupo de quilombolas conseguiu ultrapassar a
barreira de manifestantes Esta situaccedilatildeo de obstruccedilatildeo da estrada ocorreu em outras
ocasiotildees por exemplo com o impedimento de que cestas baacutesicas chegassem agrave
comunidade Houve portanto um processo de inviabilizaccedilatildeo de movimentos e
restriccedilatildeo de circulaccedilatildeo dos quilombolas que eram possiacuteveis antes do iniacutecio dos
estudos para o primeiro relatoacuterio
Um exemplo importante dessas restriccedilotildees ocorreu na articulaccedilatildeo por parte
dos vizinhos por meio do Sindicato Rural Patronal para natildeo mais contratarem
quilombolas para trabalharem em suas propriedades nas quais faziam diversos tipos
de funccedilotildees desde cortar rama carpir plantaccedilatildeo rancaccedilatildeo de mandioca entre outros
e recebiam por diaacuteria Segundo me relataram a situaccedilatildeo econocircmica da comunidade
se agravou pois este tipo de trabalho antes permitia uma complementaccedilatildeo
fundamental da fonte de renda das famiacutelias quilombolas Aleacutem disso os proprietaacuterios
vizinhos tambeacutem influenciaram os donos de comeacutercio para natildeo dar creacutedito para estas
famiacutelias Sem trabalho ou creacutedito dependeram de doaccedilatildeo de cestas baacutesicas por parte
do Estado uacutenico auxiacutelio direto dos oacutergatildeos puacuteblicos que destacam terem recebido
(outros tipos de auxiacutelio estatildeo ligados agrave mediaccedilatildeo de conflitos) Esta situaccedilatildeo de
dependecircncia eacute vista por Adir e Joaquim como algo ateacute vergonhoso pois consideram
digno conquistar as coisas com o proacuteprio trabalho mas para isso teriam que ter
oportunidades por meio de projetos dos oacutergatildeos puacuteblicos para geraccedilatildeo de renda na
comunidade
137
Adir Porque eacute o seguinte se tem editais tem projeto tem tudo e noacutes na situaccedilatildeo que noacutes se encontramos aqui eles (agentes do Estado) viram eles mesmo viram com os proacuteprios olhos e nos auxiliaram em nada nos apoiaram em nada soacute apoiaram com conversa e noacutes aqui precisando ateacute hoje eu fico preocupado com esses jovens fico preocupado com essas mulheres porque noacutes soacute vamos conseguir afirmar aqui com trabalho com geraccedilatildeo de renda O primeiro passo eacute a geraccedilatildeo de renda Aiacute noacutes consegue ter uma comunidade decente natildeo viver de cesta de baacutesica que isso eu natildeo quero
Joaquim E se fosse pra noacutes viver de cesta baacutesica noacutes jaacute tinha morrido de fome Eles fica cinco seis mecircs sem mandar
Adir A cesta baacutesica ela natildeo daacute noacutes assim poder pra noacutes crescer noacutes queremos viver do nosso proacuteprio suor do nosso proacuteprio trabalho
Joaquim Eacute que noacutes nunca vivemos de cesta baacutesica
Adir Pra noacutes conseguir comprar o que eacute nosso ter o prazer de ocecirc chegar e comprar tocirc trabalhando e tenho condiccedilotildees de fazer isso Viver de cesta baacutesica isso natildeo existe noacutes natildeo queremos isso noacutes queremos ter nosso proacuteprio sustento que noacutes sempre vivia trabalhamos nem que for sofrendo e tudo mas nosso sustento Natildeo viver eacute dependendo de cesta baacutesica dependendo de governo natildeo dependendo de noacutes mesmo eacute isso que eu quero escrever pra SEPPIR e pra Fundaccedilatildeo Palmares Que eacute muito bonito nos eventos que eu jaacute fui vaacuterios nossa jaacute perdi a conta de andar nesse Brasil No comeccedilo eu ia com esperanccedila e trazia aquela esperanccedila aquela coisa pra dentro da comunidade falava pra eles que era isso e aquilo outro que ia acontecer que ia acontecer
Assim como observamos no capiacutetulo anterior esta situaccedilatildeo de
vulnerabilidade desencadeada pelos conflitos em torno do primeiro relatoacuterio reforccedilou
o sentimento de sofrimento e humilhaccedilatildeo que estaacute presente na leitura que fazem de
sua trajetoacuteria coletiva Na fala de Adir abaixo em que avalia a poliacutetica puacuteblica para as
comunidades quilombolas ele aponta para a expectativa de que o contato com os
diversos oacutergatildeos puacuteblicos responsaacuteveis jaacute tivesse naquele momento repercutido de
forma positiva para a comunidade123
Adir Eacute e daiacute a gente Dandara trazia uma esperanccedila pra comunidade e aiacute depois eu comecei a trazer uma desesperanccedila pra dentro da comunidade Aiacute como que fica Um presidente da comunidade taacute indo atraacutes laacute o pessoal fica esperando e eu trazer o quecirc pra eles Comecei a natildeo trazer mais nada Comecei nem a falar nada mais pra eles porque eu ia e voltava falar o quecirc Trazer o quecirc Papel Papel Soacute Na praacutetica nada Aiacute eu comecei ateacute eu ter desesperanccedila Eu luto sim porque eu tenho um conhecimento hoje mas eu vou correr atraacutes daquilo que quando eu vejo que eacute certo eu tenho que lutar nem que tenha dificuldade burocracia cecirc sabe que isso existe
123 Uma das principais demandas do grupo eacute a garantia de uma dinacircmica interna de geraccedilatildeo de renda
que crie para os quilombolas autonomia de trabalho e que viabilize a permanecircncia das famiacutelias no territoacuterio
138
Esta posiccedilatildeo de mediador poliacutetico ocupada por Adir teve consequecircncias
graves durante os conflitos em decorrecircncia da pressatildeo dos vizinhos que de certo
modo foi nele personificada Sofreu vaacuterias ameaccedilas de morte e foi incluiacutedo no
Programa de Proteccedilatildeo aos Defensores dos Direitos Humanos da Secretaria de
Direitos da Presidecircncia da Repuacuteblica Uma das ameaccedilas que sofreu foi atraveacutes de um
trabalho de magia feito contra ele Foram encontrados nos fundos da aacuterea da
comunidade um pequeno caixatildeo uma galinha morta vela pinga areia e uma cruz
com o nome de Adir e a data em que seria morto 13012010 A relevacircncia desta
ameaccedila estaacute ligada a uma referecircncia expliacutecita agrave religiosidade afro-brasileira do grupo
vinculada agrave Umbanda Adir me contou como foi ateacute o lugar e jogou sal grosso em cima
do trabalho para se proteger O jornal local noticiou o ocorrido trazendo a fala de Adir
em resposta ldquoConhecemos essa arte termos irmatildeos que frequentaram a Mesa
Branca a pessoa que fez isso natildeo sabe com quem estaacute brincandordquo
Geralda irmatilde de Adir me explicou de modo indignado mesmo depois de anos
do ocorrido que ela e seu marido por frequentarem o centro de Umbanda foram
acusados pelos vizinhos de terem feito aquilo para gerar falaccedilatildeo Para ela foram os
proacuteprios vizinhos que fizeram o trabalho e os acusaram com o objetivo de criar uma
crise interna na famiacutelia Segundo Geralda os vizinhos tambeacutem frequentam terreiros
mas de modo velado jaacute que natildeo ldquovatildeo ali na regiatildeo porque natildeo querem que ningueacutem
saiba que eles mexem com issordquo Deste modo os vizinhos natildeo explicitariam o viacutenculo
com terreiros de Umbanda jaacute que tecircm acesso e influecircncia junto ao padre local tendo
inclusive acionado esta influecircncia contra os quilombolas para ldquotirar eles da Igrejardquo
139
FIGURA 18 Liacuteder da comunidade quilombola eacute ameaccedilado FONTE Jornal Paranazatildeo 11 de setembro de 2009
140
A acusaccedilatildeo contra Geralda e seu marido indica como abordamos no capiacutetulo
anterior a percepccedilatildeo dos vizinhos em relaccedilatildeo ao grupo de que eles seriam ldquonegros
feiticeiros ou macumbeirosrdquo atribuindo-lhes natildeo soacute uma inadequaccedilatildeo moral mas
tambeacutem uma representaccedilatildeo como possiacuteveis agressores (PORTO 2014 p 199) Por
um lado se haacute uma condenaccedilatildeo moral na interpretaccedilatildeo das religiotildees afro-brasileiras
parece haver por outro um reconhecimento de sua eficaacutecia pois aleacutem de Geralda
afirmar que eles tambeacutem acionam este circuito religioso de modo velado teriam se
utilizado de um trabalho para tentar agredir seus oponentes neste momento de
exacerbaccedilatildeo do conflito Eficaacutecia esta natildeo reconhecida no acircmbito de uma esfera
religiosa mas como uma praacutetica de ldquomagiardquo o que acaba por reforccedilar a atribuiccedilatildeo de
subalternidade que seria conferida a este tipo de praacutetica miacutestica (BRUMANA
MARTINEZ 1991 p 81) Esta ameaccedila contra Adir ganhou repercussatildeo no jornal local
como mais uma forma de intimidaccedilatildeo contra o liacuteder da comunidade
A tensatildeo entre brancos e negros antes latente transformou-se com a
eclosatildeo do conflito no que Adir denominou de ldquoapartheidrdquo Esta situaccedilatildeo ficou
evidente para ele principalmente na dificuldade de convivecircncia entre as crianccedilas e
adolescentes da comunidade e os filhos dos proprietaacuterios vizinhos que pegavam
juntos o ocircnibus para ir para a escola Jaqueline (19 anos) filha de Joaquim contou
como o preconceito que jaacute sofria na escola por sempre ter sido a uacutenica negra de sua
sala agravou-se durante o conflito Ela tinha que escutar os outros adolescentes
falando que sua comunidade iria roubar a terra dos pais deles No ocircnibus os filhos
dos proprietaacuterios vizinhos natildeo deixavam que as crianccedilas e adolescentes da
comunidade se sentassem juntos deles
Outro fato que marcou muito o grupo no final de 2009 foi a morte do irmatildeo
mais velho e liacuteder interno da comunidade Zeacute Maria que sofria de diabetes Nos
relatos sobre este periacuteodo os seus irmatildeos responsabilizam as ameaccedilas e o conflito
com os vizinhos os quais foram pressionando os quilombolas e teriam assim
contribuiacutedo para fragilizar a sauacutede de Zeacute Maria Ademais eles contam como enquanto
seu corpo estava sendo velado na comunidade indignaram-se ao ouvirem fogos de
artifiacutecios que entenderam como ato de comemoraccedilatildeo provocaccedilatildeo e total desrespeito
por parte dos vizinhos agrave situaccedilatildeo de perda da famiacutelia
Neste contexto de adversidade procuraram apoio junto a vaacuterios oacutergatildeos puacuteblicos
como a Poliacutecia Federal a Poliacutecia Civil a Poliacutecia Militar o Ministeacuterio Puacuteblico Federal
141
o Ministeacuterio Puacuteblico Estadual e os oacutergatildeos do Governo Federal que tratam da temaacutetica
quilombola o proacuteprio INCRA a Fundaccedilatildeo Cultural Palmares FCP) e a Secretaria de
Poliacuteticas de Promoccedilatildeo da Igualdade Racial da Presidecircncia da Repuacuteblica (SEPPIR)
Somente quando a questatildeo deixou de ficar restrita ao acircmbito regional do INCRA no
Paranaacute e houve uma intervenccedilatildeo direta de agentes do Estado representantes do
governo federal o conflito se acalmou
Joaquim () E noacutes natildeo tinha mais sossego Aiacute depois que veio as turma de Brasiacutelia neacute Adir aiacute que eles obedeceram Que essas turma de Brasiacutelia que botaram o ponto final Falou ldquocecircs natildeo cerca mais ningueacutem que vai laacute hoje na comunidade deles mais ningueacutem A ordem agora vem de Brasiacutelia natildeo eacute daqui de Guaiacutera mais natildeordquo Aiacute eles natildeo mexeram mais porque eles falou ldquoAgora noacutes vamos prender mesmordquo
O Ministeacuterio Puacuteblico Federal (MPF) em Umuarama propocircs em julho de 2012
uma Accedilatildeo Civil Puacuteblica contra o INCRA a Uniatildeo o Estado do Paranaacute e o municiacutepio
de Guaiacutera com objetivo de garantir direitos da comunidade quilombola em Guaiacutera124
Tal accedilatildeo teve como base o Inqueacuterito Civil Puacuteblico instaurado em 2008 no
MPFUmuarama que acompanhou a realizaccedilatildeo do estudo antropoloacutegico e os
desdobramentos conflituosos que foram desencadeados e que tiveram ampla
repercussatildeo nos meios de comunicaccedilatildeo da regiatildeo125 Assim depois de todo impacto
negativo do trabalho do INCRA com a comunidade os quilombolas se questionaram
se valia a pena dar continuidade ao procedimento de regularizaccedilatildeo territorial jaacute que
tinham arcado com muitos prejuiacutezos e humilhaccedilotildees e aleacutem disso o relatoacuterio
antropoloacutegico produzido era contraacuterio aos seus interesses O trabalho tinha sido
iniciado mas o INCRA segundo Joaquim natildeo teve estrutura para conduzi-lo de forma
adequada de modo que as lideranccedilas do grupo passaram a distinguir entatildeo o que
era o trabalho do INCRA e o que era o proacuteprio posicionamento dos quilombolas
124 ldquoNa accedilatildeo o MPF pede liminarmente que a Justiccedila Federal de Guaiacutera fixe um prazo maacuteximo de um ano para que o Incra conclua o procedimento administrativo de identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas pela Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos Pedem ainda que Uniatildeo Estado do Paranaacute e municiacutepio de Guaiacutera cumpram com o dever legal de inserir a comunidade em suas respectivas poliacuteticas puacuteblicasrdquo ldquoUmuarama pede que Incra conclua procedimento para garantir direitos de quilombola Notiacutecia disponiacutevel em httpwwwredesuldenoticiascombrhomeaspid=43708 Acesso em 240215 125 Sobre os conflitos em comunidades quilombolas abordados na imprensa estadual no Paranaacute o caso de Guaiacutera eacute um dos principais ldquonas notiacutecias a respeito desta comunidade destaca-se aleacutem da lideranccedila quilombola ter sido ameaccedilada por supostos rituais de feiticcedilaria o fato dos funcionaacuterios do INCRA terem sido feitos de refeacutens por cerca de 150 agricultores da regiatildeo durante a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo do Territoacuterio Quilombolardquo CRUZ Cassius Conjuntura quilombola no Paranaacute Disponiacutevel em httpsetnicowordpresscomcategoryquilombos Acesso em 240215
142
Neste sentido a persistecircncia na luta pelo direito territorial com a decisatildeo de
passarem pela elaboraccedilatildeo de um segundo relatoacuterio antropoloacutegico mesmo diante de
todas as condiccedilotildees adversas que estavam colocadas pelo primeiro parecer contraacuterio
parece demonstrar ldquoa existecircncia de um projeto de futuro suficientemente
compartilhadordquo (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 130) Com a produccedilatildeo de um
segundo relatoacuterio antropoloacutegico renovaram-se as esperanccedilas de que pudessem ter
um territoacuterio suficiente para a reproduccedilatildeo do grupo com a perspectiva de retorno de
familiares que saiacuteram dali e que juntos consigam construir um projeto comum
Ademais aleacutem deste aspecto territorial tal decisatildeo de dar continuidade ao
procedimento no INCRA tambeacutem se relaciona agrave afirmaccedilatildeo da legitimidade da
perspectiva do grupo sobre a sua proacutepria histoacuteria
Mas se antes do iniacutecio do trabalho deste oacutergatildeo federal na comunidade os
quilombolas desconheciam os processos estatais pelos quais iriam passar ateacute a
regularizaccedilatildeo do territoacuterio depois de todos os desdobramentos ocorridos estavam
muito mais informados e ldquocalejadosrdquo com relaccedilatildeo ao funcionamento deste tipo de
poliacutetica puacuteblica territorial Eacute a partir de um novo espaccedilo de experiecircncia que passaram
entatildeo a refletir sobre o que ocorreu desde a certificaccedilatildeo da comunidade pela
Fundaccedilatildeo Cultural Palmares em 2006 Tornaram-se assim mais seguros de suas
perspectivas sobre a postura tanto das equipes de pesquisa bem como dos
funcionaacuterios do INCRA e de outros oacutergatildeos federais responsaacuteveis pela temaacutetica A
necessidade de circular por novas esferas de atuaccedilatildeo e diaacutelogo se consolidou como
um novo campo de movimento no qual os membros do grupo interagem questionam
reivindicam e constituem aliados para a busca de seus objetivos
24 UM NOVO RELATOacuteRIO ANTROPOLOacuteGICO
A decisatildeo de continuar com o processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria do INCRA
passou pelo desejo de consolidar o reconhecimento puacuteblico da legitimidade da histoacuteria
e da luta do grupo questionadas pelo primeiro relatoacuterio Como apontado em conversa
com Adir e Joaquim eles natildeo queriam desistir do objetivo de ampliaccedilatildeo do territoacuterio
da comunidade tendo em vista a possibilidade de garantir o retorno dos parentes que
de laacute saiacuteram nas uacuteltimas deacutecadas Para manter este propoacutesito consideram que eacute
143
preciso ter ldquocoragem forccedila e feacute em Deusrdquo acionando o suporte de uma ordem de
moral e de justiccedila superior que lhes ampara
Adir Que o nosso pessoal aqui Dandara natildeo viveu soacute no municiacutepio de Guaiacutera Quando esse pessoal vieram de Minas ocupou os dois municiacutepios
Joaquim E trabalhava de diaacuteria pra todo mundo que era muita gente neacute entatildeo noacutes natildeo tinha terra pra trabalhar soacute pra gente Ia derrubando mato tocava trecircs anos e eles ia passando pra frente
Adir E hoje podia taacute todo mundo aqui Natildeo taacute porque de alguma forma contribuiacuteram (os vizinhos) pra que esse pessoal nosso saiacutesse daqui Ocuparam os espaccedilos e noacutes fiquemos sem nada Por isso que noacutes natildeo podemos deixar de lutar Noacutes tem que lutar mesmo Que nem eu falo pra eles ldquose um morrer a guerra natildeo pode parar tem que continuarrdquo E a gente quer mostrar dentro desse municiacutepio de Guaiacutera mostrar pra eles que noacutes tambeacutem temos ndash oportunidade natildeo temos ndash mas que temos coragem forccedila e feacute em Deus pra lutar e conseguir com nossos braccedilos nossas pernas conseguir mostrar pra eles
No entanto a decisatildeo de retomar o processo do INCRA natildeo foi faacutecil jaacute que
na percepccedilatildeo de Joaquim e Adir o oacutergatildeo os decepcionou quando recuou diante da
reaccedilatildeo dos proprietaacuterios e ldquolargou noacutes aqui abandonadordquo Joaquim ressalta como
deixou claro para a antropoacuteloga do INCRA Juliane que acompanhou o procedimento
da comunidade desde o comeccedilo que o oacutergatildeo tinha responsabilidade pelos
desdobramentos do conflito bem como pela situaccedilatildeo econocircmica precaacuteria em que
ficou a comunidade Todos esses acontecimentos faziam com que se sentissem
temeraacuterios com o reiniacutecio dos trabalhos com a reelaboraccedilatildeo de um novo relatoacuterio
antropoloacutegico
Joaquim E teve um ano que noacutes fiquemos nervoso eu falei com a Juliane mesmo do INCRA Eu falei ldquovocecircs natildeo teve peito pra arcar com o pessoal que noacutes natildeo sabe tambeacutem como eacute que eacute essa lei o direitordquo Porque vocecircs recuaram
Adir Recuaram de alguma forma Tambeacutem eacute muito novo Joaquim Eles abriram esse trabalho e depois largou noacutes aqui abandonado Noacutes tamo abandonado sem serviccedilo sem ningueacutem E vocecircs eacute difiacutecil entrar em comunicaccedilatildeo com a gente noacutes fiquemos aqui oacute foi muito tempo sem eles entrar em comunicaccedilatildeo com noacutes
Atualmente entendem a continuidade do procedimento como positiva jaacute que
a avaliaccedilatildeo que fazem da segunda equipe de pesquisadores eacute muito diferente da
primeira Um dos principais criteacuterios utilizados eacute a permanecircncia do antropoacutelogo com
144
eles na comunidade para presenciar o cotidiano e ldquoentender o que estaacute acontecendordquo
Neste mesmo sentido tambeacutem a minha pesquisa eacute avaliada
Adir () Eles (primeira equipe) estava escrevendo uma coisa de laacute natildeo aqui proacuteximo a noacutes Eacute legal que nem vocecirc taacute aqui agora vocecirc falou que vai vir pra ficar tantos dias depois vocecirc volta de novo pra ficar tantos dias depois vocecirc pode voltar de novo ficar tantos dia Aiacute vocecirc vai conviver com noacutes aqui durante esses dias tudo vocecirc vai ver o que vai acontecer o que taacute acontecendo vocecirc vai presenciar tudo Entatildeo que nem noacutes fala pro pessoal do INCRA pra esses antropoacutelogos pra fazer um relatoacuterio antropoloacutegico tem que conviver laacute dentro tem que viver laacute junto com noacutes tem que ver da nossa cultura da nossa alimentaccedilatildeo da nossa dificuldade da nossa luta de tudo isso tem que conviver com noacutes aqui dentro Natildeo adianta vir meia hora sentar com noacutes ali bater um papo pesquisar noacutes ali e voltar embora Presenciar dia a dia
Dandara Quando veio o Paulo (antropoacutelogo) agora pra esse segundo (relatoacuterio) eles ficaram aqui
Adir Ah o Paulo estava aqui presente todo dia com a gente
Joaquim Totalmente diferente
Adir Totalmente diferente E o Paulo foi buscar nossa histoacuteria laacute em Minas que era ateacute pra mim ter ido junto com o Cassius (historiador) aiacute deu um problema que eu natildeo pude ir mas o Cassius me chamou era pra mim taacute junto com eles laacute
A elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico teve o meacuterito segundo os
quilombolas de ter incluiacutedo a pesquisa realizada por Cassius Cruz historiador da
equipe junto agraves comunidades quilombolas da regiatildeo de proveniecircncia de Manoel
Ciriaco dos Santos em Minas Gerais Adir na eacutepoca foi convidado para que o
acompanhasse na viagem com o intuito de contribuir para a realizaccedilatildeo desta
pesquisa o que natildeo pode acontecer segundo Cassius em decorrecircncia de o contrato
do INCRA com a empresa Terra Ambiental natildeo disponibilizar recursos suficientes e
de Adir natildeo ter como realizaacute-la com recursos proacuteprios Caso a equipe responsaacutevel
optasse por deslocar recursos para financiar a ida da lideranccedila quilombola natildeo
haveria condiccedilotildees para o pagamento total das diaacuterias de trabalho de campo dos
pesquisadores Muitas contribuiccedilotildees poderiam ter sido geradas para o relatoacuterio
antropoloacutegico se priorizado pelo oacutergatildeo federal como ldquoprocessordquo (de pesquisa de
articulaccedilatildeo de fortalecimento comunitaacuterio) no acircmbito do qual seria muito relevante a
participaccedilatildeo de Adir nesta pesquisa em Minas Gerais No entanto esta possibilidade
natildeo se concretizou dada a incompatibilidade com o orccedilamento disponiacutevel na execuccedilatildeo
145
do relatoacuterio vieacutes pelo qual responde a uma certa dinacircmica administrativa que o
entende afinal de contas como ldquoprodutordquo contratado (FERNANDES 2005)
Mesmo sem a ida de um integrante da comunidade a pesquisa em Minas
Gerais foi fundamental para a argumentaccedilatildeo que o segundo relatoacuterio construiu
As pesquisas de campo realizadas em Minas Gerais possibilitaram localizar elementos comuns entre as narrativas da comunidade de Manoel Ciriaco e a Comunidade de Vila Nova (Serro-MG) aleacutem de constatar a presenccedila material de imagens recorrentemente explicitadas pela memoacuteria dos descendentes de Manoel Ciriaco para se referir agrave origem mineira exemplo disso eacute o fato de utilizarem provisoriamente de lapas de pedra como forma de habitaccedilatildeo e espaccedilo de trabalho (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 735 [p 32])
Neste sentido Adir comenta a importacircncia deste relatoacuterio por ter dado
subsiacutedio e legitimidade para a versatildeo do grupo sobre sua proacutepria histoacuteria muito
diferente da experiecircncia com o primeiro estudo
Adir () E eu faccedilo de tudo pra ser cumprido esse relatoacuterio antropoloacutegico noacutes vamos contribuir com tudo pra ser cumprido esse relatoacuterio que no final decirc o que decirc mas pelo menos o trabalho tem que ser feito Demorou pra noacutes porque quase que noacutes natildeo ia aceitar o relatoacuterio antropoloacutegico mais Porque tudo que a gente passou noacutes tivemos muita conversa com o pessoal do INCRA eu mais o Joaquim fomos pra Curitiba umas par de vez pra gente sentar laacute com o Nilton (Superindente do INCRA no Paranaacute) conversamos com o pessoal de Brasiacutelia porque noacutes natildeo ia aceitar mais o relatoacuterio antropoloacutegico noacutes fiquemos muito desgastado desgastado de mais
A pesquisa para o segundo relatoacuterio foi produzida durante o ano de 2012 por
uma equipe multidisciplinar coordenada pelo antropoacutelogo Paulo R Homem de Goacutees
que tinha ampla experiecircncia de trabalho e pesquisa com comunidades indiacutegenas Tal
equipe foi contratada pela Empresa Terra Ambiental que venceu a licitaccedilatildeo puacuteblica
(modelo de pregatildeo eletrocircnico) 126 para a produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos no
126 O modelo de convecircnio com universidades em comparaccedilatildeo com o modelo de ldquopregatildeo eletrocircnicordquo
adotado desde 2011 era melhor avaliado pelos antropoacutelogos por sua contribuiccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de um campo de debate antropoloacutegico sobre o tema dos quilombos nos espaccedilos acadecircmicos proporcionando um nuacutemero expressivo de trabalhos e grupos de pesquisa em cursos de antropologia todo o paiacutes (ARRUTI 2013) No entanto o modelo de convecircnio foi substituiacutedo pelo chamado ldquoPregatildeo Eletrocircnicordquo que se tornou a ferramenta de contrataccedilatildeo para os relatoacuterios antropoloacutegicos e produccedilatildeo de RTID No caso de Guaiacutera contudo a experiecircncia com a realizaccedilatildeo do pregatildeo apresentou melhores resultados do que com o convecircnio estabelecido com a UNIOESTE localizada na regiatildeo oeste do Paranaacute pois neste convecircnio natildeo havia em seu quadro docente um antropoacutelogo que dispusesse de experiecircncia sobre temas relacionados com identidade e territorialidade e que estivesse assim apto para coordenar o estudo em questatildeo
146
Paranaacute nos municiacutepios de Guaiacutera e Palmas Trata-se precisamente das duas
comunidades quilombolas que haviam passado pela produccedilatildeo de um primeiro
relatoacuterio antropoloacutegico fruto do convecircnio do INCRA com a UNIOESTE cujos
resultados foram recusados tanto pelo oacutergatildeo como pelas comunidades pesquisadas
O histoacuterico de conflitos em Guaiacutera gerou questionamentos quanto aos riscos
a que os pesquisadores envolvidos na elaboraccedilatildeo de um novo relatoacuterio antropoloacutegico
e os proacuteprios quilombolas poderiam estar expostos Assim foram pensadas
estrateacutegias para evitar novas situaccedilotildees de animosidade Para que aceitassem passar
por um novo momento de pesquisa os quilombolas exigiram que o INCRA garantisse
a seguranccedila dos membros da comunidade jaacute que se sentiram desprotegidos e
vulneraacuteveis no conflito desencadeado pelo primeiro relatoacuterio Uma das estrateacutegias foi
a realizaccedilatildeo de uma audiecircncia puacuteblica convocada pelo Ministeacuterio Puacuteblico Federal de
Guaiacutera na qual participaram os representantes quilombolas os agricultores do
Maracaju dos Gauacutechos da Poliacutecia Federal e Militar do Sindicato Patronal Rural de
Guaiacutera do INCRA da empresa Terra Ambiental da Casa Civil do Estado do Paranaacute
e da Federaccedilatildeo da Agricultura do Estado do Paranaacute De acordo com o segundo
relatoacuterio antropoloacutegico
O objetivo da reuniatildeo foi tornar puacuteblico o reiniacutecio do processo e garantir que fosse realizado de forma paciacutefica explicitando os procedimentos legais que envolvem a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo do qual o Relatoacuterio Antropoloacutegico ora apresentado constitui apenas a primeira etapa Avaliamos que natildeo obstante os intensos questionamentos realizados por parte dos agricultores na audiecircncia que durou cerca de 5 horas a mesma teve um resultado extremamente produtivo uma vez que foi possiacutevel agrave equipe teacutecnica realizar suas atividades ao longo dos meses subsequentes sem interferecircncia de agentes externos ou ameaccedila Destacamos apenas que houve dificuldade em dialogar com pessoas vizinhas agrave comunidade sobre o processo pois os conflitos geraram muita desconfianccedila e temor (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 760 [p 67])
Deste modo o segundo estudo natildeo poderia desconsiderar todo este contexto
preacutevio de relaccedilotildees externas e tambeacutem o proacuteprio conteuacutedo levantado pela primeira
pesquisa sobre a qual os autores do segundo relatoacuterio antropoloacutegico avaliam
A forma como o processo foi conduzido pelos pesquisadores da Unioeste foi desaprovada pelas lideranccedilas da comunidade que atribuem parte dos conflitos decorrentes desse primeiro processo de elaboraccedilatildeo do RTID agrave conduccedilatildeo da pesquisa antropoloacutegica A reabertura do processo e a contrataccedilatildeo de nova equipe multidisciplinar foi recebida com alegria pela comunidade poreacutem natildeo sem receio dado a experiecircncia anterior
147
(Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 701 [p 08])
A repercussatildeo do questionamento sobre a identidade do grupo pode ser
percebida tambeacutem na dissertaccedilatildeo elaborada em 2012 por Claacuteudia Hoffmann que
versa sobre a comunidade quilombola de Guaiacutera no acircmbito do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Sociedade Cultura e Fronteiras da UNIOESTE Mesmo a autora
fazendo criacuteticas ao primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo e agrave situaccedilatildeo de conflito que
se seguiu ela afirma ao longo do texto que optou por natildeo os denominar como
ldquoquilombolasrdquo porque ainda natildeo havia ocorrido a ldquodemarcaccedilatildeo de suas terrasrdquo
preferindo entatildeo referir-se a eles como ldquointegrantes da comunidade negrardquo
(HOFFMANN 2012 p 14-15) Questionou deste modo a autoidentificaccedilatildeo do grupo
como se esta soacute fosse legiacutetima em consequecircncia do reconhecimento territorial oficial
por parte do Estado Interessante observar no entanto que a autora na mesma
dissertaccedilatildeo natildeo hesitou em denominar a comunidade de Joatildeo Suraacute localizada no
municiacutepio de AdrianoacutepolisPR como ldquoComunidade Remanescente de Quilombo Joatildeo
Suraacuterdquo (HOFFMANN 2012 p 40) embora este grupo tambeacutem natildeo tenha sido titulado
como territoacuterio quilombola pelo INCRA Esta diferenccedila de posicionamento pode ser
decorrente de seu desconhecimento do tracircmite do procedimento da comunidade de
Joatildeo Suraacute no INCRA ou talvez ter surgido devido ao fato de este grupo se encaixar
no modelo de ldquoquilombo tiacutepicordquo bem mais do que o grupo de GuaiacuteraPR e natildeo ter tido
a sua identidade questionada oficialmente
Para lidar com os questionamentos levantados pelo primeiro relatoacuterio e suas
repercussotildees a pesquisa para elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico como
nos referimos acima buscou dar suporte agraves referecircncias da memoacuteria coletiva do grupo
em GuaiacuteraPR sobre a vida de seus antepassados em Minas Gerais e o processo de
migraccedilatildeo ateacute o Paranaacute A versatildeo final do relatoacuterio com cento e trinta e quatro
paacuteginas127 foi estruturada com as seguintes partes
(1) ldquoIntroduccedilatildeo e definiccedilatildeo dos conceitosrdquo fazem uma leitura densa sobre o
desenvolvimento da interpretaccedilatildeo teoacuterica sobre o conceito de quilombo reforccedilando a
importacircncia da ressemantizaccedilatildeo do termo a partir da introduccedilatildeo do artigo 68 do ADCT
na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 para abranger o novo contexto de emergecircncia
127 Interessante observar que ambos os relatoacuterios apresentam o mesmo nuacutemero de paacuteginas
148
identitaacuteria das comunidades quilombolas no presente Destacam tambeacutem a
importacircncia da incorporaccedilatildeo do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo trazido pelo Decreto Federal
48872003 e finalizam com uma anaacutelise criacutetica da efetivaccedilatildeo dos direitos territoriais
das comunidades quilombolas que tem ocorrido em uma velocidade muito aqueacutem da
necessaacuteria
(2) ldquoCaracterizaccedilatildeo do municiacutepiordquo apresentam o histoacuterico de ocupaccedilatildeo e
colonizaccedilatildeo da regiatildeo desde meados do seacuteculo XIX e o contexto de criaccedilatildeo do
municiacutepio de Guaiacutera a partir do empreendimento da empresa Matte Laranjeira no
local Destacam tambeacutem como nas deacutecadas de 1970 e 1980 houve uma inversatildeo na
proporccedilatildeo de habitantes das aacutereas rurais e urbanas do municiacutepio chegando a uma
proporccedilatildeo de 80 da populaccedilatildeo na aacuterea urbana no ano 2000 processo que teve forte
impacto na comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos
(3) ldquoHistoacuteria da comunidade quilombola Manoel Ciriacordquo abordam os dados
da pesquisa realizada em MG demonstrando os laccedilos de memoacuteria e indicativos de
possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco entre a comunidade quilombola de GuaiacuteraPR e ldquoas
comunidades quilombolas migrantes do Jequitinhonha ndash MGrdquo assim como uma
anaacutelise mais especiacutefica sobre a trajetoacuteria de migraccedilatildeo de seu Manoel Ciriaco
Destacam tambeacutem o fato de a migraccedilatildeo jaacute estar presente nas dinacircmicas das famiacutelias
negras na regiatildeo de origem do grupo Estes processos migratoacuterios ocorriam em uma
escala local de circulaccedilatildeo das famiacutelias que viviam em lapas (cavernas) de pedra e
mantinham sua autonomia com poucos recursos o que gerava uma significativa
mobilidade territorial Apontam como entre os seacuteculos XIX e XX havia uma
importante produccedilatildeo local de queijo cachaccedila milho carne e outros alimentos que
visava o abastecimento de Diamantina principal centro minerador da regiatildeo As
famiacutelias de ex-escravos aleacutem do trabalho com o garimpo mantinham uma produccedilatildeo
de modo autocircnomo para o autoconsumo e tambeacutem para este abastecimento externo
atraveacutes da atividade tropeira Nas deacutecadas de 1950 e 1960 muitas destas famiacutelias
foram compelidas a migrar por conta do processo de modernizaccedilatildeo e pressatildeo sobre
as terras camponesas na regiatildeo
(4) ldquoParentesco organizaccedilatildeo social e o tabu do lsquooutcestrsquordquo analisam como o
casamento preferencial a partir de uma loacutegica endogacircmica ndash tabu do lsquooutcestrsquo ou
seja do casamento fora do grupo ndash jaacute era uma caracteriacutestica presente desde MG e
se constituiu como importante dinacircmica para a manutenccedilatildeo e coesatildeo do grupo em
149
GuaiacuteraPR Os autores propotildeem entatildeo uma anaacutelise do processo de migraccedilatildeo como
mecanismo necessaacuterio para a manutenccedilatildeo das famiacutelias em contraste com a anaacutelise
anterior do primeiro relatoacuterio que entendia a migraccedilatildeo como elemento
descaracterizador da identidade quilombola do grupo Descrevem ainda os aspectos
da religiosidade e os procedimentos terapecircuticos utilizados pelos membros da
comunidade finalizando este capiacutetulo com uma anaacutelise do processo de
reconhecimento do direito quilombola e dos conflitos dele decorrentes
(5) ldquoA terra as plantas e a produccedilatildeordquo apresentam uma anaacutelise de aspectos
ambientais e agronocircmicos da comunidade
(6) ldquoProposta de delimitaccedilatildeo da comunidade remanescente de quilombo
Manoel Ciriaco dos Santos em que apresentam uma proposta de territoacuterio quilombola
como base nos dados da pesquisa realizada diversamente do primeiro relatoacuterio que
afirmava natildeo haver territoacuterio quilombola a ser indicado
(7) Referecircncias bibliograacuteficas e anexos
O caminho argumentativo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico estruturou-se
por meio da fundamentaccedilatildeo histoacuterica das ldquomemoacuterias mineirasrdquo do grupo quilombola
em GuaiacuteraPR Apontam assim para os ldquopotenciais elos de parentesco com
comunidades quilombolas de Minas Geraisrdquo bem como para os ldquodados histoacutericos
sobre origens e dispersotildees geograacuteficasrdquo das comunidades quilombolas da regiatildeo
mineira e suas ldquodinacircmicas locais de migraccedilatildeordquo A significativa presenccedila da
argumentaccedilatildeo histoacuterica neste relatoacuterio estaacute relacionada possivelmente ao contexto de
produccedilatildeo da pesquisa realizada na sequecircncia de um outro relatoacuterio antropoloacutegico que
rejeitava a legitimidade da identidade e da reivindicaccedilatildeo territorial do grupo
precisamente por conta da suposta impossibilidade de vinculaacute-los a uma
ancestralidade quilombola Assim os autores do segundo relatoacuterio buscam
demonstrar como o trabalho de campo realizado em MG proporcionou fontes ldquoque
corroboram e possibilitam aprofundar os elementos apontados pelas famiacutelias
quilombolas de Manoel Ciriaco sobre suas origens mineirasrdquo (Procedimento
Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 701-702 [p 08-09] 721
[p28])
Esta busca de comprovaccedilatildeo histoacuterica natildeo eacute como jaacute abordamos
anteriormente um requisito legal conforme a definiccedilatildeo atual dada pelo Decreto
Federal 4887 de 2003 que regulamentou o processo de titulaccedilatildeo de territoacuterios
150
quilombolas A opccedilatildeo do decreto em atribuir ao relatoacuterio antropoloacutegico ndash e natildeo a um
ldquorelatoacuterio histoacutericordquo ndash a responsabilidade de ser um dos estudos (o primeiro deles) que
subsidia o tracircmite de acesso a direitos territoriais aponta para um direcionamento que
perceba como o grupo elabora no presente suas narrativas sobre ldquoa resistecircncia agrave
opressatildeo histoacuterica sofridardquo a partir da ldquopresunccedilatildeo da ancestralidade negrardquo nos
termos do referido decreto o que natildeo depende de uma noccedilatildeo restrita de comprovaccedilatildeo
da ascendecircncia do grupo com negros escravizados no passado No entanto apesar
de formalmente este relatoacuterio ter caraacuteter antropoloacutegico as precauccedilotildees adotadas pelo
pesquisador em relaccedilatildeo a possiacuteveis contestaccedilotildees e contralaudos dentro do
procedimento administrativo no INCRA podem fazer com que haja um predomiacutenio de
argumentos de ordem histoacuterica os quais parecem ser mais persuasivos para os
diferentes atores implicados na rede que de dentro do Estado em um dado momento
de estabilizaccedilatildeo iraacute consolidar o territoacuterio do grupo (RIBEIRO CALABRIA 2013)
Dentre estes atores haacute um predomiacutenio da loacutegica juriacutedica a partir da qual o
relatoacuterio antropoloacutegico pode ser interpretado como prova pericial o que cria uma
expectativa da produccedilatildeo por parte da antropologia de um conhecimento cientiacutefico
objetivo (OrsquoDWYER 2009 p 177) Nesta relaccedilatildeo entre direito e antropologia o
conhecimento histoacuterico entendido numa chave positivista e factualista eacute convocado
a oferecer provas comprovatoacuterias que serviriam para atender as expectativas do
campo juriacutedico Opera-se desta maneira a partir de uma certa linguagem de
legalidade que estabelece linhas de interpretaccedilatildeo do passado e de clivagem do social
e do cultural gerando uma racionalizaccedilatildeo das memoacuterias da comunidade em um todo
coerente com base em significados e registros de comunicaccedilatildeo preacute-estabelecidos
Faz-se necessaacuterio para tanto o silenciamento do fluxo e da indeterminaccedilatildeo do
passado para que seja possiacutevel uma reduccedilatildeo taacutetica e palataacutevel aos instrumentos
juriacutedicos os quais parecem basear sua legitimidade em uma promessa pragmaacutetica de
criar equivalecircncia para a transaccedilatildeo entre interesses contraacuterios e incomensuraacuteveis
(como no caso de disputas por terras) a partir de um denominador comum Nisto em
parte reside sua hegemonia a despeito de que em si mesmos os criteacuterios juriacutedicos
natildeo satildeo garantidores de igualdade (COMAROFF COMAROFF 2011 p 145-151)
Para que fosse possiacutevel a realizaccedilatildeo da pesquisa e do trabalho de campo na
regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ndash fundamental para a estrutura narrativa
construiacuteda pelo relatoacuterio ndash algumas estrateacutegias foram adotadas A primeira foi a
151
divulgaccedilatildeo junto agraves organizaccedilotildees e instituiccedilotildees que executam trabalhos com as
comunidades quilombolas da regiatildeo de origem do grupo de uma mensagem
produzida pela comunidade em conjunto com os pesquisadores Esta mensagem
visou estabelecer contato com as comunidades quilombolas da regiatildeo e solicitou em
nome da lideranccedila do grupo em GuaiacuteraPR apoio para a localizaccedilatildeo dos parentes que
permaneceram em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Prezados Me chamo Adir Rodrigues dos Santos lideranccedila da comunidade quilombola Manoel Ciriaco localizada em Guaiacutera - PR Somos uma comunidade certificada pela Fundaccedilatildeo Palmares e estamos no processo de elaboraccedilatildeo do laudo antropoloacutegico para realizaccedilatildeo nasceram (sic) no municiacutepio de Santo Antonio do Itambeacute em Minas Gerais suas terras eram proacuteximas a um fazendeiro chamado Milton Gonccedilalves em Santo Antonio do Itambeacute No ano de 1981 o filho de seu Manoel Joatildeo Louriano dos Santos casado com Maria Conceiccedilatildeo das Dores e seu primo Aniacutesio Dioniacutesio de Paula (irmatildeo de Geraldo de Paula ambos filhos de Sebastiatildeo Vicente) vieram para Guaiacutera Paranaacute Manoel Ciriaco chegou em Guaiacutera em 1962 onde nascemos e vivemos ateacute hoje Fazendo pesquisa na internet encontramos no site httpwwwcpisporgbrcomunidadeshtmlbrasilmgmg_lista_comunidadeshtml as comunidades de Mata dos Crioulos Botafogo e Martins localizadas no municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute e as comunidades Ausente Bauacute Comunidade do Ocirc Ribeiratildeo dos Porcos e Rua Vila Nova no municiacutepio do Serro meu pai tinha memoacuteria desses dois municiacutepios Acreditamos que nessas comunidades haacute ancestrais nossos encontraacute-los contribuiria muito para nossa luta pelo reconhecimento e titulaccedilatildeo Caso vocecircs tenham maiores informaccedilotildees sobre essas comunidades relatoacuterios jaacute realizados ou qualquer pista que contribua aos nossos estudos pedimos que nos enviem (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 700 [p 07])
A articulaccedilatildeo entre os pesquisadores que elaboravam o relatoacuterio
antropoloacutegico e as comunidades quilombolas da regiatildeo mineira se deu a partir do
contato estabelecido com a equipe de assessoria juriacutedica quilombola que atua dentro
do curso de graduaccedilatildeo em direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Serro (PUC-
Serro) e que realiza haacute mais de cinco anos projetos de extensatildeo com estes grupos128
Este contato possibilitou o acesso de Cassius Cruz historiador da equipe aos
mediadores poliacuteticos das comunidades quilombolas da regiatildeo tornando possiacutevel a
realizaccedilatildeo de trabalho de campo em seis comunidades quilombolas nos municiacutepios
de Serro (ldquoAusentesrdquo ldquoBauacuterdquo ldquoVila Novardquo ldquoQueimadasrdquo e ldquoSanta Cruzrdquo) e de
128 Este campus da PUC estaacute localizado no municiacutepio de Serro que eacute vizinho a Santo Antocircnio do Itambeacute
e funciona como municiacutepio referecircncia por ter um porte maior com 20835 habitantes segundo o censo do IBGE de 2010 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316710ampsearch=minas-gerais|serro Acesso em 230915
152
Diamantina (ldquoMata dos Crioulosrdquo) nos periacuteodos de 05 a 13 de setembro e de 22 a 28
de outubro de 2012 (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do
INCRAPR p 721 [p 28])
Durante a pesquisa de campo foram levantadas possibilidades de viacutenculos de
parentesco entre a comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos e o casal
fundador da Comunidade Quilombola Vila Nova Os diagramas de parentesco dos
grupos mineiros bem como fotos e viacutedeos foram enviados para Guaiacutera para que fosse
possiacutevel a identificaccedilatildeo de viacutenculos de parentesco entre as comunidades
No final do mecircs de setembro apresentamos as fotografias viacutedeos e demais informaccedilotildees que conseguimos em Minas Gerais agrave comunidade de Manoel Ciriaco sendo este um momento chave da relaccedilatildeo estabelecida entre os pesquisadores e a comunidade pois se manifestaram muito felizes com os resultados apresentados e por termos conseguido encontrar e registrar informaccedilotildees que eles mesmos conheciam unicamente pela transmissatildeo oral (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 702-703 [p 09-10])
O segundo relatoacuterio argumenta ao longo de todo o capiacutetulo sobre a ldquoHistoacuteria
da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo que a memoacuteria coletiva
existente em Guaiacutera sobre sua regiatildeo de origem pocircde ser respaldada pela pesquisa
realizada em Minas Gerais a partir de elementos comuns ldquoseja com relaccedilatildeo aos
modos de produccedilatildeo habitaccedilatildeo religiosidade quer seja pela descriccedilatildeo de estrateacutegias
matrimoniais dos grupos familiaresrdquo (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 p 737 [p 44]) Uma das narrativas importantes que compotildee
a memoacuteria do grupo em Guaiacutera diz respeito ao uso provisoacuterio que seus antepassados
fizeram de lapas ou locas de pedra como moradia Como a pesquisa na regiatildeo mineira
pocircde demonstrar esta eacute uma praacutetica cultural mantida ateacute os dias de hoje em
comunidades quilombolas da regiatildeo de origem do grupo como registrado na atraveacutes
trazida a foto abaixo129 na Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos
(DiamantinaMG)
129 A importacircncia da evocaccedilatildeo desta imagem na construccedilatildeo do argumento do segundo relatoacuterio antropoloacutegico parece ser confirmada pela sua utilizaccedilatildeo tambeacutem na capa do documento
153
FIGURA 19 ldquolsquoLaparsquo utilizada ateacute os dias atuais como moradia quilombola na comunidade Mata dos CrioulosMGrdquo FONTE Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 726 [p 33]
Esta praacutetica parece estar relacionada segundo a anaacutelise do relatoacuterio agrave
situaccedilatildeo de precariedade em que viviam e agrave criatividade necessaacuteria para sobreviver a
partir do que a natureza lhes oferecia no periacuteodo escravagista e poacutes-escravagista Os
autores apontam assim como a utilizaccedilatildeo de lapas se insere em dinacircmicas de busca
por autonomia e liberdade em contraste com a experiecircncia de descendentes de
escravos que permaneceram agregados agraves fazendas formando comunidades
quilombolas que se caracterizam por uma baixa mobilidade A estrateacutegia de
mobilidade em um mesmo contexto regional associada a diferentes modos de
trabalho e ocupaccedilatildeo territorial tambeacutem conformaram comunidades quilombolas na
regiatildeo marcadas ldquoainda hoje por fluxos migratoacuterios internos e externos e uma rede
de parentesco que articula diversas dessas comunidadesrdquo (Procedimento
Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 724-725 [p 31 e 32])
A experiecircncia de mobilidade portanto teria significativa importacircncia na
trajetoacuteria de muitas famiacutelias negras que atualmente se reconhecem como quilombolas
na regiatildeo de Santo Antocircnio do Itambeacute e SerroMG Esta seria uma das caracteriacutesticas
154
marcantes da continuidade histoacuterica do grupo do Paranaacute com seus antepassados
dessa regiatildeo
A mobilidade espacial destes grupos jaacute tendia ser maior mesmo antes do iniacutecio do processo migratoacuterio que levaria famiacutelias a sair de Minas Gerais pois mantinham uma relaccedilatildeo mais tecircnue e por isso de mais autonomia frente ao contexto regional de arregimentaccedilatildeo de matildeo-de-obra uma vez que faziam das lapas suas moradias natildeo sendo assim dependentes das estruturas das fazendas (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 743 [p 50])
A continuidade histoacuterica estaria presente tambeacutem nessa busca de autonomia
nas relaccedilotildees de trabalho A pesquisa indicou a existecircncia de um padratildeo seguido por
geraccedilotildees e expresso na estrateacutegia atual dos membros da comunidade em Guaiacutera de
complementarem a renda obtida no proacuteprio territoacuterio com relaccedilotildees de trabalho
estruturadas fora da loacutegica patratildeo-empregado como diaristas arrendataacuterios ou
empreiteiros Esta opccedilatildeo garantiria a manutenccedilatildeo de autonomia ldquouma vez que natildeo
se tornam dependentes de patrotildees especiacuteficosrdquo (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 do INCRAPR p 745 [p 52])
Dentre as estrateacutegias identificadas pela pesquisa como aquelas que apontam
para a manutenccedilatildeo de referecircncias comuns com as comunidades quilombolas da
regiatildeo mineira estaacute segundo o relatoacuterio a continuidade da tendecircncia endogacircmica
que analisam atraveacutes de vaacuterios excertos genealoacutegicos apresentados no capiacutetulo
ldquoParentesco organizaccedilatildeo social e o tabu do lsquooutcestrsquordquo A importacircncia desta estrateacutegia
estaria na possibilidade de manutenccedilatildeo do sentimento de pertencimento a uma
origem comum que cria identidade e memoacuteria coletiva permitindo a continuidade das
dinacircmicas de organizaccedilatildeo social do grupo mesmo com a dispersatildeo territorial
Reforccedilada pelo contexto socialmente perifeacuterico e de preconceito racial no qual
o grupo se inseriu na regiatildeo de GuaiacuteraPR esta tendecircncia endogacircmica como
argumentam os autores eacute precedente e contribui para o fortalecimento de alianccedilas
intra-familiares enquanto heranccedila socioloacutegica que reforccedilou as fronteiras e a
capacidade de manutenccedilatildeo da coesatildeo social do grupo (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 do INCRAPR p 738 [p 45]) Deste modo esta capacidade
de manutenccedilatildeo de uma coletividade natildeo se baseia apenas na aacuterea que lograram
adquirir e que ocupam haacute sessenta anos mas tambeacutem decorre das relaccedilotildees de
parentesco e das formas proacuteprias de organizaccedilatildeo social (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 do INCRAPR p 736 [p 43])
155
As relaccedilotildees de parentesco atualmente estendem-se por uma rede que
transcende os limites territoriais desta comunidade Esta rede ampliada se expandiu
com os deslocamentos de famiacutelias que deixaram a comunidade em GuaiacuteraPR nas
uacuteltimas deacutecadas em decorrecircncia da diminuiccedilatildeo das aacutereas e das oportunidades de
trabalho na regiatildeo ligadas ao processo de mecanizaccedilatildeo da agricultura A estrutura do
segundo relatoacuterio aborda assim como aleacutem da importacircncia de uma territorialidade
especiacutefica construiacuteda em GuaiacuteraPR haacute uma visatildeo sobre os viacutenculos de
pertencimento ao grupo que se abre por esta rede de parentes (que estatildeo fora do
territoacuterio e que podem retornar com o processo de titulaccedilatildeo) o que gera uma
percepccedilatildeo de territorialidade mais ampla perpassada por referecircncias de memoacuteria
sobre a regiatildeo de origem do grupo no municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Neste sentido a literatura antropoloacutegica recente tem tematizado sobre a natildeo
exclusividade da relaccedilatildeo territorial enquanto criteacuterio de identificaccedilatildeo de grupos
quilombolas jaacute que ldquoo conceito de quilombo natildeo pode ser territorial apenas ou fixado
em um uacutenico lugar geograficamente definido historicamente lsquodocumentadorsquo e
arqueologicamente lsquoescavadorsquordquo (ALMEIDA 2011 p 45) A situaccedilatildeo de deslocamento
caracteriacutestica deste grupo de GuaiacuteraPR mas tambeacutem os outros casos de expulsatildeo e
de reassentamento demonstram como ldquomais do que uma exclusiva dependecircncia da
terra o quilombo faz da terra a metaacutefora que possibilita a continuidade do grupo ()rdquo
(LEITE FERNANDES 2006 p 11)
O segundo relatoacuterio corrobora esta leitura antropoloacutegica que natildeo se limita a
uma noccedilatildeo de territorialidade fixa para reconhecer direitos territoriais agraves comunidades
quilombolas Dessa forma a proposta de delimitaccedilatildeo territorial apresentada e
aprovada pela comunidade atraveacutes de discussatildeo em reuniatildeo especiacutefica indica
a) A recomposiccedilatildeo dos lotes adquiridos por Manoel Ciriaco dos Santos (aacuterea
de 102 alqueires paulistas dos quais 142 alq foi vendido e 45 estatildeo
arrendados atualmente) e por Geraldo dos Santos (51 alq paulistas
vendidos em 1993) a serem titulados enquanto territoacuterio quilombola
b) A aquisiccedilatildeo pelo INCRA de uma aacuterea complementar de aproximadamente
35 alqueires paulistas que eacute justificada devido ldquoagraves formas de relaccedilatildeo de
trabalho tradicionais da comunidade que diminuem com a mecanizaccedilatildeo
agriacutecola aos conflitos gerados pelo processo que inviabilizaram o acesso
156
a trabalhos na regiatildeo e ao consequente crescimento do ecircxodo de
membros da comunidade do territoacuteriordquo (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 do INCRAPR p 802 [p 109]) Outro motivo para
a aquisiccedilatildeo complementar eacute a possibilidade de retorno de em meacutedia vinte
e seis famiacutelias as quais atualmente estatildeo vivendo em condiccedilotildees precaacuterias
em diferentes cidades Este eacute um dado referente ao nuacutemero aproximado
de famiacutelias que deixaram o territoacuterio em Guaiacutera e que segundo as
lideranccedilas manteacutem viacutenculos com a comunidade e retornariam caso
houvesse possibilidade O nuacutemero de trinta e trecircs famiacutelias (somando as
sete famiacutelias residentes na comunidade na eacutepoca da elaboraccedilatildeo do
relatoacuterio mais as vintes e seis com previsatildeo de retorno) embasou o caacutelculo
desta aacuterea adicional tendo tambeacutem como referecircncia os criteacuterios
agronocircmicos para a estimativa da necessidade de acreacutescimo de aacuterea de
cultivo que possa viabilizar a manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo fiacutesica e econocircmica
da comunidade
De acordo com a avaliaccedilatildeo do INCRA o segundo relatoacuterio antropoloacutegico
cumpriu com seus objetivos e caracterizou a comunidade e o territoacuterio ao qual o grupo
tem direito a partir de dados etnograacuteficos e histoacutericos suficientes segundo a Instruccedilatildeo
Normativa 592007 atualmente em vigor Enquanto a aacuterea do territoacuterio quilombola que
seraacute titulada corresponde aos dois lotes acima referidos a aacuterea complementar seraacute
obtida por meio de desapropriaccedilatildeo por interesse social conforme previsto na Lei
41321962 ficando a comunidade com o usufruto atraveacutes de Contrato de Concessatildeo
de Direito Real de Uso (CCDRU) O tamanho da aacuterea adicional necessaacuteria apesar de
jaacute previamente indicado no relatoacuterio dependeraacute conforme aponta o parecer
conclusivo SR(09)F4Nordm 0012014 do INCRAPR130 do nuacutemero de famiacutelias
cadastradas pelo INCRA que permaneceratildeo no territoacuterio bem como da discussatildeo
sobre os tipos de produccedilatildeo agriacutecola que seratildeo por elas desenvolvidas
Atualmente haacute um importante viacutenculo com as aacutereas adquiridas por Manoel
Ciriaco e Geraldo dos Santos apoacutes deacutecadas de ocupaccedilatildeo que embasa uma
130 De acordo com a ementa do documento trata-se do ldquoParecer conclusivo do Serviccedilo de
Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolas do INCRAPR sobre o Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos com base na IN 572009rdquo (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 1062-1067)
157
reivindicaccedilatildeo especiacutefica pelo retorno do territoacuterio ao tamanho da aacuterea inicial a qual
somava quinze alqueires e da qual soacute mantiveram em torno de 50 Aleacutem desta aacuterea
de ocupaccedilatildeo efetiva a possibilidade de ampliaccedilatildeo deste territoacuterio com a compra pelo
INCRA de uma nova aacuterea ndash com a qual o grupo quilombola natildeo possui uma relaccedilatildeo
preacutevia ndash demonstra a especificidade deste caso e a necessidade portanto de que
houvesse um procedimento diferenciado por parte deste oacutergatildeo federal
A demanda por um procedimento diferenciado de regularizaccedilatildeo territorial no
caso de GuaiacuteraPR foi necessaacuteria tendo em vista que a experiecircncia de ldquoresistecircncia agrave
opressatildeo histoacuterica sofridardquo organizou-se por meio da realizaccedilatildeo de deslocamentos
Tais movimentos visavam a concretizaccedilatildeo da autonomia liberdade e melhores
condiccedilotildees de vida para estas famiacutelias dada a insuficiecircncia das aacutereas na regiatildeo de
origem do grupo em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG por meio do acesso a novos
territoacuterios Deste modo percebe-se que a possibilidade de conquista de territoacuterios estaacute
no acircmago deste processo de resistecircncia social e que se em outros casos de grupos
quilombolas a resistecircncia consiste na permanecircncia em um mesmo territoacuterio
tradicional neste caso ela se constituiu pela experiecircncia de deslocamentos
Deve-se levar em conta ainda que estes deslocamentos iniciados em 1956
por estas famiacutelias negras da aacuterea rural de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG em direccedilatildeo
ao municiacutepio de CaiabuSP implicavam em seacuterios riscos tanto no caminho como no
processo de fixaccedilatildeo em um novo lugar onde teriam que encontrar novas
oportunidades de inserccedilatildeo e de trabalho As referecircncias a existecircncia de mais famiacutelias
relacionadas ao nuacutecleo de parentes do casal Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues
apontam para o fato de que esta linha de migraccedilatildeo da regiatildeo de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG ateacute a regiatildeo de Presidente PrudenteSP consistia em um movimento mais
amplo como rede de apoio para a migraccedilatildeo de novas famiacutelias No acircmbito deste fluxo
de deslocamentos a busca por direitos da comunidade de GuaiacuteraPR eacute construiacuteda
atualmente a partir da trajetoacuteria de deslocamentos do casal Manoel e Ana mas natildeo
se restringe a este nuacutecleo familiar Eacute principalmente a partir desta rede preacutevia de apoio
que os desafios da migraccedilatildeo puderam ser por eles enfrentados Como mencionado
no primeiro capiacutetulo a referecircncia de Manoel na regiatildeo paulista era seu primo de
primeiro grau Raimundo Constantino que saiu com esposa e filhos de Santo Antocircnio
do Itambeacute em 1949 sete anos antes de Manoel Tais desafios do processo de
158
migraccedilatildeo satildeo ainda mais significativos tendo em vista a existecircncia de contextos que
podem ser hostis para a inserccedilatildeo da populaccedilatildeo negra
Importante para finalizar este capiacutetulo destacar que foi o processo
conturbado de regularizaccedilatildeo territorial e reconhecimento da legitimidade da
reivindicaccedilatildeo identitaacuteria da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos que impulsionou
a realizaccedilatildeo de duas viagens de retorno para a regiatildeo de origem do grupo as quais
iremos abordar no capiacutetulo seguinte Com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico a partir
da pesquisa realizada pelo historiador Cassius Cruz na regiatildeo do SerroMG Adir
enquanto lideranccedila da comunidade de Guaiacutera comeccedila a ter expectativas de conhecer
a regiatildeo de origem de sua famiacutelia buscar os parentes com quem perderam o contato
pesquisar mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria de seus antepassados A realizaccedilatildeo
desta pesquisa de mestrado mostrou-se como oportunidade de aprofundar tal
pesquisa a partir dos caminhos apontados pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico tendo
em vista que jaacute havia um primeiro levantamento de dados e contatos na regiatildeo de
origem do grupo
159
3 ldquoEacute COMO SE NOacuteS VOLTASSE A PAacuteGINA DA NOSSA VIDA DO COMECcedilOrdquo
31 A ldquoVIAGEM DA VOLTArdquo131
Se no primeiro capiacutetulo destacamos a relevacircncia das dinacircmicas de
movimento para a compreensatildeo da emergecircncia identitaacuteria quilombola em GuaiacuteraPR
eacute fundamental neste momento pontuar que a centralidade dos deslocamentos na
trajetoacuteria do grupo natildeo nos levou a recorrer a uma ideia de ldquomobilidaderdquo132 pois este
conceito poderia sugerir que haacute uma constacircncia ou uma facilidade em se realizar
deslocamentos por parte dos membros do grupo o que de fato natildeo ocorre Para que
se consiga visualizar como a trajetoacuteria do grupo eacute perpassada pelo movimento faz-se
necessaacuteria uma perspectiva de longa duraccedilatildeo considerando que no presente como
observei durante o trabalho de campo haacute uma possibilidade muito limitada de
deslocamentos em decorrecircncia das dificuldades financeiras Viajar para visitar os
parentes eacute sempre um plano mas dificilmente sobram recursos para concretizaacute-lo
A dificuldade de deslocamento comeccedila inclusive dentro do proacuteprio municiacutepio
pois os quilombolas natildeo tecircm acesso a transporte puacuteblico que chegue proacuteximo agrave
comunidade e ateacute 2012 contavam apenas com um carro utilitaacuterio antigo em uma
comunidade com em meacutedia sete famiacutelias Na eacutepoca em que eu atuei como assessora
juriacutedica no Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute pude contribuir para o
encaminhamento de um pedido realizado pela Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel
Ciriaco dos Santos (ACONEMA) junto agrave Poliacutecia Federal de Foz do Iguaccedilu133 visando
agrave doaccedilatildeo de um veiacuteculo para a associaccedilatildeo Tal pedido foi embasado na necessidade
da comunidade de dispor de meios para a realizaccedilatildeo das entregas de alimentos
abrangidas pelo contrato do Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos (PAA)134
131 Tiacutetulo homocircnimo ao trabalho de Oliveira Filho ldquoA Viagem da Volta reelaboraccedilatildeo cultural e horizonte
poliacutetico dos povos indiacutegenas do Nordesterdquo (OLIVEIRA FILHO 1994) 132 Este termo eacute utilizado no segundo relatoacuterio antropoloacutegico para destacar a importacircncia da presenccedila de deslocamentos na trajetoacuteria histoacuterica do grupo 133 As ldquoentidades sem fins lucrativosrdquo podem solicitar doaccedilotildees de mercadorias apreendidas pela Poliacutecia
Federal devendo constar na solicitaccedilatildeo entre outros requisitos formais a justificativa e a finalidade do pedido 134 Dentre as entidades que atualmente recebem a doaccedilatildeo de alimentos conforme o contrato que a
comunidade quilombola eacute responsaacutevel destaca-se como mencionado no primeiro capiacutetulo treze tekohas (aldeias avaacute-guaranis) de Guaiacutera e do municiacutepio vizinho Terra Roxa Esta parceria com os grupos indiacutegenas eacute fruto da articulaccedilatildeo direta entre Adir e os caciques
160
Com o recebimento da doaccedilatildeo de uma camionete ldquosilveradordquo com trecircs
lugares na frente e uma carroceria ampla e fechada a execuccedilatildeo do PAA na
comunidade foi viabilizada em termos concretos com condiccedilotildees para o transporte da
produccedilatildeo agriacutecola o que era uma demanda muito urgente para as famiacutelias
quilombolas Esta poliacutetica puacuteblica de seguranccedila alimentar se constituiu como uma
importante fonte de renda na comunidade nos uacuteltimos anos mesmo tendo em vista a
demora na realizaccedilatildeo dos pagamentos por parte do governo que natildeo lhes garante
uma renda mensal135 Neste contexto os programas de assistecircncia e previdecircncia
social como aposentadoria e Bolsa Famiacutelia136 proporcionam uma complementaccedilatildeo
econocircmica considerada pelos quilombolas como muito necessaacuteria Os quilombolas
realizam tambeacutem a comercializaccedilatildeo de seus produtos como verduras legumes
raiacutezes frutos temperos animais de pequeno porte e tambeacutem milho e soja
Atualmente trecircs pessoas trabalham fora da comunidade a esposa e a enteada de
Adir na lanchonete do posto de gasolina localizado na rodovia em frente agrave entrada
para o bairro rural Maracaju dos Gauacutechos e Luciano ndash casado com Cleusimar filha
de Zeacute Maria ndash que tambeacutem trabalha de auxiliar de limpeza no mesmo posto
O territoacuterio atualmente de 85 alqueires eacute considerado por eles como
insuficiente para as sete famiacutelias que tiram seu sustento da produccedilatildeo agriacutecola
Segundo Adir o ideal seria cinco alqueires por famiacutelia no miacutenimo Uma das principais
demandas somada agrave necessidade de ampliaccedilatildeo do territoacuterio eacute o acesso a poliacuteticas
puacuteblicas que possibilitem uma fonte de renda gerada na proacutepria comunidade
Pleiteiam assim a construccedilatildeo de um barracatildeo onde sonham com a instalaccedilatildeo por
exemplo de uma cozinha comunitaacuteria137 Deve-se levar em conta ainda que a
135 O limite anual do valor de repasse do Ministeacuterio do Desenvolvimento Social oacutergatildeo responsaacutevel pelo
PAA na modalidade de ldquoDoaccedilatildeo Simultacircneardquo ndash acessada pela comunidade quilombola ndash eacute de ateacute R$ 65 mil por ano por agricultor 136 O ldquoBolsa Famiacuteliardquo segundo a paacutegina virtual do Governo Federal ldquoeacute um programa de transferecircncia
direta de renda direcionado agraves famiacutelias em situaccedilatildeo de pobreza e extrema pobreza em todo o Paiacutes de modo que consigam superar a situaccedilatildeo de vulnerabilidade e pobrezardquo Disponiacutevel em httpwwwcaixagovbrprogramas-sociaisbolsa-familiaPaginas Acesso em 041115 137 A solicitaccedilatildeo da comunidade de que a prefeitura construa este barracatildeo foi questionada pela
administraccedilatildeo municipal em decorrecircncia de a aacuterea da comunidade consistir em uma propriedade privada e natildeo ter sido realizada ainda a titulaccedilatildeo quilombola conforme me relatou Adir No entanto de acordo com a Portaria Interministerial (Ministeacuterio do Planejamento Orccedilamento e Gestatildeo Ministeacuterio da Fazenda e Controladoria Geral da Uniatildeo) nordm 507 de 2011 artigo 39 sect2ordm inciso III aliacutenea ldquoardquo o municiacutepio tem respaldo para a construccedilatildeo de uma benfeitoria ldquopor interesse puacuteblico ou socialrdquo na comunidade que eacute certificada pela Fundaccedilatildeo Cultural Palmares e que estaacute em processo de regularizaccedilatildeo territorial pelo INCRA A referida portaria estaacute disponiacutevel em httpswwwconveniosgovbrportalarquivos1_Portaria_Interministerial_507_24_11_2011_e_alteracoes_Dezembro_de_2013pdf Acesso em 091015
161
situaccedilatildeo econocircmica da comunidade se agravou muito apoacutes o conflito com os vizinhos
em decorrecircncia do qual natildeo satildeo mais contratados para trabalharem nas propriedades
do entorno atividade que haacute muitos anos realizavam na regiatildeo
Com esta breve descriccedilatildeo das dificuldades de geraccedilatildeo de renda das famiacutelias
quilombolas eacute possiacutevel compreender as limitaccedilotildees que encontram para se
deslocarem mesmo que seja para visitas a parentes que moram proacuteximos De acordo
com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico produzido pela empresa Terra Ambiental
() satildeo no miacutenimo 43 indiviacuteduos que possuem relaccedilatildeo de parentesco direto com os atuais moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo Manoel Ciriaco dos Santos e vivem em cidades localizadas em um raio de no maacuteximo 200 quilocircmetros sendo que desses 35 vivem em um raio inferior a 100 quilocircmetros da comunidade Segue uma relaccedilatildeo dos municiacutepios e nuacutemero de indiviacuteduos cujos viacutenculos de parentesco foram identificados
(Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 751[p 58])
Dentro da rede ampliada de parentesco138 dos quilombolas de GuaiacuteraPR um
local muito significativo e mais afastado em relaccedilatildeo agrave comunidade eacute a regiatildeo de
Presidente PrudenteSP por onde as famiacutelias que saiacuteram de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG passaram tendo vivido no municiacutepio de CaiabuSP entre as deacutecadas de
19501960 antes de se fixarem em GuaiacuteraPR e para onde retornaram os irmatildeos mais
velhos Olegaacuterio (78) Jovelina (73) Joatildeo Loriano (71) e Eurides (65) O municiacutepio de
Presidente PrudenteSP fica a 448 km de Guaiacutera e o trajeto demanda um investimento
de em meacutedia duzentos reais para passagens rodoviaacuterias de ida e volta por pessoa
Se este trajeto eacute de acesso difiacutecil para os quilombolas de GuaiacuteraPR o que
falar entatildeo do anseio reforccedilado pelos questionamentos colocados pelo conturbado
processo de titulaccedilatildeo em tracircmite no INCRA de ir ateacute Minas Gerais para que
138 Quando nos referimos a parentesco natildeo estamos falando apenas do parentesco genealoacutegico mas
em um sentido mais amplo que inclui relaccedilotildees por exemplo de compadrio (ARANTES 1975)
Municiacutepio Nordm Indiviacuteduos
Terra Roxa- PR 22
Assis Chateaubriand- PR 6
Satildeo Jorge do Patrociacutenio - PR 4
Guaraniaccedilu ndash PR 3
Catanduvas- PR 3
Guaiacutera- PR 2
Eldorado ndash MS 2
Cascavel- PR 1
162
pudessem conhecer suas raiacutezes e reencontrar seus parentes mineiros Somando
apenas os valores das passagens rodoviaacuterias para poder ir e voltar de GuaiacuteraPR a
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG de ocircnibus percorrendo em meacutedia 3354 quilocircmetros por
terra (duas vezes o percurso de 1677 km139) o custo gira em torno atualmente de
setecentos reais por pessoa
Assim a contradiccedilatildeo apontada acima entre os deslocamentos que marcaram
a trajetoacuteria do grupo nos uacuteltimos sessenta anos e a condiccedilatildeo de difiacutecil mobilidade das
geraccedilotildees atuais tem uma chave de interpretaccedilatildeo comum a posiccedilatildeo socioeconocircmica
perifeacuterica do grupo A mesma condiccedilatildeo que os imobiliza por natildeo disporem atualmente
de recursos financeiros que permitam a realizaccedilatildeo de viagens eacute parte significativa
das causas que provocaram os movimentos de deslocamento das famiacutelias em busca
de melhores condiccedilotildees de vida no passado
Importante pontuar que se os deslocamentos que marcam a trajetoacuteria histoacuterica
da famiacutelia criaram por um lado uma situaccedilatildeo de inviabilidade do reencontro entre
parentes ndash jaacute que os que foram para GuaiacuteraPR perderam nas uacuteltimas deacutecadas
qualquer contato com os parentes que se mantiveram em MG ndash por outro lado tal
interrupccedilatildeo do contato natildeo significou uma ruptura de viacutenculos (GALIZONI 2002)140
Com base nos encontros proporcionados pelas duas viagens de retorno para Serro e
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG realizadas no acircmbito desta pesquisa em marccedilo e em
junho de 2015 foi possiacutevel perceber que houve uma atualizaccedilatildeo significativa dos laccedilos
e viacutenculos afetivos que estavam antes latentes
Natildeo soacute os viacutenculos foram mantidos mas como analisado pelo segundo
relatoacuterio antropoloacutegico houve um processo de permanecircncia de referecircncias culturais e
de memoacuterias comuns que continuaram mesmo agrave distacircncia e sem contatos
conectando os quilombolas de Guaiacutera a seus parentes em Minas Gerais Neste
sentido importante mencionar a contribuiccedilatildeo de Garcia Jr (1989) em sua pesquisa
com migrantes que saiacuteam da Paraiacuteba para o Sul na qual reflete sobre como tais
deslocamentos natildeo implicaram no abandono de suas formas de organizaccedilatildeo social
139 Este caacutelculo foi feito com base no trajeto que pode ser percorrido de ocircnibus conforme experiecircncia
da viagem realizada em marccedilo de 2015 de GuaiacuteraPR para UmuaramaPR de laacute para Presidente PrudenteSP ateacute Belo HorizonteMG Na capital mineira toma-se um ocircnibus para SerroMG e de onde
enfim chega-se em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG 140 Em seu estudo na regiatildeo do Alto Vale do Jequitinhonha muito proacutexima a regiatildeo aqui em questatildeo
Galizoni aponta como a migraccedilatildeo eacute um processo familiar e soacute muito raramente ocorre as pessoas que saiacuteram de sua regiatildeo de origem ldquorompem de vez com a famiacuteliardquo (GALIZONI 2002 p 569)
163
anteriores mas ao contraacuterio na sua manutenccedilatildeo com o objetivo de retorno para suas
aacutereas de origem no Nordeste141
No acircmbito deste processo de manutenccedilatildeo de viacutenculos ndash e do desejo de uma
reconexatildeo natildeo soacute simboacutelica e mnemocircnica mas tambeacutem fiacutesica com este lugar de
origem e com os parentes que laacute ficaram ndash a possibilidade de organizar a viagem de
volta que percorresse a trajetoacuteria de deslocamentos das famiacutelias surgiu das minhas
conversas com Adir durante o trabalho de campo em GuaiacuteraPR Ele havia
comentado comigo em vaacuterias ocasiotildees como gostaria de ter tido apoio por parte do
INCRA para acompanhar Cassius na pesquisa realizada em Minas Gerais durante a
elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico
Esta busca pelo contato com pessoas que compartilham a mesma
ldquocomunidade de lembranccedilardquo (HALBWACHS 2003) protagonizada por Adir aponta
para dois aspectos complementares do fenocircmeno eacutetnico a ldquoluta por reconhecimentordquo
e a ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo142 (ARRUTI 2006 p 44) No que tange agrave noccedilatildeo de
ldquoluta por reconhecimentordquo o que estaacute em questatildeo eacute a proacutepria autoidentificaccedilatildeo do
grupo como quilombola ldquopor meio da experenciaccedilatildeo comum de um desrespeito tiacutepico
e de sua traduccedilatildeo em uma identidade coletivardquo (ARRUTI 2006) As viagens de retorno
a Minas Gerais trouxeram agrave tona a compreensatildeo de que o caraacuteter coletivo de
desrespeito agraves famiacutelias que marca a reivindicaccedilatildeo do grupo em GuaiacuteraPR como
coletividade especiacutefica reflete-se na situaccedilatildeo de separaccedilatildeo e de dispersatildeo dos
parentes Trata-se de um sofrimento gerado pela impossibilidade de manutenccedilatildeo das
famiacutelias na regiatildeo de origem e de reproduccedilatildeo do modo de vida camponecircs enquanto
populaccedilatildeo negra que natildeo teve seu processo de cidadania garantido de forma plena
Esta ldquocomunidade de lembranccedilardquo abrange portanto uma noccedilatildeo mais ampla de
pertencimento por parte dos membros da comunidade quilombola de Guaiacutera no qual
141 Este tambeacutem eacute o caso do processo de mobilidade do povo indiacutegena Pankararu de Pernambuco
analisado por Arruti no qual grupos de famiacutelias transferiram seu local de morada por tempo indeterminado em especial para a cidade de Satildeo Paulo na favela Real Parque no bairro do Morumbi ldquoonde se desenha uma espeacutecie de reterritorializaccedilatildeo Pankararurdquo Neste caso a mediaccedilatildeo entre territoacuterio e identidade fruto da abstraccedilatildeo dos ldquodireitosrdquo gerada na modulaccedilatildeo com o Estado produz o sentido de um ldquoterritoacuterio imaterialrdquo como um espaccedilo poliacutetico e simboacutelico para os indiacutegenas Se o territoacuterio eacute acionado como referecircncia fundamental natildeo eacute percebido no entanto como moldura e limitaccedilatildeo de modo que pode se abrir ldquopara o vasto exterior da identidade Pankararu onde a dicotomia do ser natildeo ser tem um caraacuteter mais pendular que geomeacutetricordquo (ARRUTI 1996 p 166-159) 142 A noccedilatildeo de ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo eacute retomada a partir das discussotildees de Taylor e de ldquoluta por reconhecimentordquo a partir de Honneth (ARRUTI 2006)
164
estatildeo englobados o local de origem de Manoel Ciriaco e os demais locais de dispersatildeo
do grupo familiar nos processos de deslocamento ao longo das uacuteltimas deacutecadas
O comentaacuterio de Adir em uma conversa com as duas senhoras que
encontramos morando em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ndash D Regina (77) e D Zulmira
(73) cunhadas de Seu Joatildeo Loriano (71) filho de Manoel Ciriaco ndash eacute muito enfaacutetico
a respeito desta forma de compreensatildeo da histoacuteria familiar Tal conversa ocorreu no
final da primeira viagem realizada em marccedilo de 2015 durante a gravaccedilatildeo de um viacutedeo
no qual Adir conta para elas o que tinha ocorrido em nosso percurso e comenta sobre
o significado da viagem para ele e para a comunidade Manoel Ciriaco dos Santos
Esse lugar onde a gente mora hoje eacute uma comunidade reconhecida pela Fundaccedilatildeo Cultural dos Palmares Uma comunidade que hoje eu represento que natildeo eacute tatildeo grande porque as pessoas estatildeo espalhadas como se fosse aqui tambeacutem espalhados pra todo canto Por que no passado essas pessoas natildeo teve oportunidade de ficar junto e de viver junto e essa lembranccedila ficasse de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo mas todo mundo tivesse o seu espaccedilo Porque se a gente falar na eacutepoca da escravidatildeo noacutes somos de uma eacutepoca da escravidatildeo uma escravidatildeo passada onde a gente natildeo adquiriu nada nem o nosso nome E isso tudo passava na minha cabeccedila e eu lembrava e falava assim ldquoMeu Deusrdquo
O desejo dos quilombolas de GuaiacuteraPR de encontrarem seus parentes em
sua regiatildeo de origem e de poderem ldquovoltar a paacutegina da nossa vida do comeccedilordquo como
na expressatildeo utilizada por Adir que serve de tiacutetulo a este capiacutetulo inscreve-se em
uma dinacircmica dupla que abrange uma dimensatildeo poliacutetica vinculada ao processo de
regularizaccedilatildeo territorial da comunidade e um significado familiar e afetivo muito
intenso A mobilizaccedilatildeo de Adir em torno da realizaccedilatildeo desta viagem inicia-se pelo
anseio de subsidiar a consolidaccedilatildeo da imagem do grupo na esfera puacuteblica ndash o que
pode ser compreendido por meio da noccedilatildeo de ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo (ARRUTI
2006) ndash jaacute que tal imagem da comunidade foi abertamente questionada pelo primeiro
relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo durante o processo de regularizaccedilatildeo territorial pelo
INCRA ainda em tracircmite
Na leitura de meus interlocutores(as) sobre tais demandas externas de
legitimaccedilatildeo entendiam que se o segundo relatoacuterio antropoloacutegico havia demonstrado
a continuidade histoacuterica entre a comunidade de GuaiacuteraPR e as comunidades
quilombolas da regiatildeo mineira de um modo mais amplo apenas o retorno dos
proacuteprios quilombolas agrave regiatildeo ndash percorrendo a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia
ndash poderia proporcionar-lhes mais referecircncias sobre a histoacuteria de seus antepassados
165
assim como a retomada das relaccedilotildees com os parentes apoacutes anos sem contato Os
laccedilos da comunidade em GuaiacuteraPR com este passado ldquoprecisam ser produzidos hoje
atraveacutes da seleccedilatildeo e recriaccedilatildeo de elementos da memoacuteriardquo (ARRUTI 1997 p 23)
recriaccedilatildeo esta que passa pela ideia de ldquoorigemrdquo143 e de ldquoretornordquo
Em sua anaacutelise sobre o processo de emergecircncia identitaacuteria dos povos
indiacutegenas no Nordeste144 Oliveira Filho lanccedilou matildeo da metaacutefora da ldquoviagem da voltardquo
que eacute parte de uma poesia de Torquato Neto sobre a narrativa de um migrante
nordestino que deseja retornar agrave terra de origem ldquodesde que saiacute de casa trouxe a
viagem da volta gravada na minha matildeo enterrada no umbigo dentro e fora assim
comigo minha proacutepria condiccedilatildeordquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64) Com o uso desta
expressatildeo Oliveira Filho destaca as dimensotildees constitutivas da etnicidade no que
tange agrave trajetoacuteria histoacuterica do grupo social que natildeo anula mas ateacute mesmo reforccedila o
sentimento de referecircncia agrave origem (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64)
Os quilombolas de GuaiacuteraPR assim como os povos indiacutegenas no
Nordeste145 natildeo se encaixam nas representaccedilotildees difusas da identidade que
reivindicam Tendo em vista esta descontinuidade gerada em grande parte pela
condiccedilatildeo diaspoacuterica da trajetoacuteria coletiva de reterritorializaccedilatildeo destas famiacutelias
quilombolas a necessidade que sentiram de buscar referecircncias histoacutericas para
dialogar com uma demanda de ldquoorigemrdquo somada a um desejo interno ao grupo deram
para a expressatildeo da ldquoviagem da voltardquo um sentido natildeo soacute metafoacuterico de etnogecircnese
como tambeacutem um sentido literal de regresso No contexto conturbado do
procedimento de regularizaccedilatildeo do grupo em tracircmite no INCRA a volta agrave regiatildeo de
origem se tornou necessaacuteria para o reconhecimento de uma identidade negra singular
que os legitimasse como quilombolas Este processo de retorno se iniciou com a
143 Este reinvestimento nas memoacuterias estava tambeacutem referenciado na busca por ldquotraccedilos culturais que
sirvam como os ldquosinais externosrdquo reconhecidos pelos mediadores e o oacutergatildeo que tem a autoridade de nomeaccedilatildeordquo (ARRUTI 1997 p 23) A identificaccedilatildeo destes ldquosinais externosrdquo da etnicidade remontam ao acionamento da ideia de ldquoorigemrdquo que estaacute na base do conceito de ldquoremanescentesrdquo utilizado pela Constituiccedilatildeo Federal para reconhecer direitos territoriais aos ldquoremanescentes das comunidades de quilombosrdquo no artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) 144 O conceito de ldquoremanescenterdquo foi utilizado para se referir aos ldquoremanescentes indiacutegenasrdquo na regiatildeo
Nordeste ndash os quais passaram por um processo de retomada de tradiccedilotildees nas uacuteltimas deacutecadas e que satildeo percebidos como tendo pouca distintividade em relaccedilatildeo aos regionais (ARRUTI 1997) 145 Esta comparaccedilatildeo entre quilombolas e povos indiacutegenas no Nordeste estaacute relacionada agrave dificuldade
de ldquoprecisar os contextos sociohistoacutericos em que tais grupos se constituiacuteram e se consolidaram como ldquounidades discretasrdquo portadoras de um forte referencial eacutetnico e assim diferenciadas do contexto social mais amplordquo (BRASILEIRO SAMPAIO 2002 p 83)
166
elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico e se ampliou por meio das viagens
realizadas em marccedilo e junho de 2015 no acircmbito desta pesquisa de mestrado
Diante do exposto acima interessante ressaltar que estas viagens para Santo
Antocircnio do Itambeacute em 2015 foram precedidas por outras viagens de retorno que
segundo meus interlocutores(as) ocorreram na deacutecada de 1980 Eva filha de Geraldo
dos Santos que tambeacutem adquiriu um lote vizinho ao de Manoel relatou como era difiacutecil
juntar dinheiro para visitar os parentes em Minas e manter contato agrave distacircncia Contou-
me como sua matildee Antocircnia Domingues dos Santos que saiu de Minas Gerais para
morar em GuaiacuteraPR ficou mais de dezesseis anos sem ver a matildee dela Alexandrina
Moreira da Silva que permaneceu na regiatildeo mineira
Dandara E nesta eacutepoca mandava carta assim ou nem carta Eva Mandava nada natildeo sabia mais o endereccedilo deles natildeo sabia mais nada Dezesseis anos daiacute foi saber o endereccedilo Soacute uma vez depois que casou depois que ela veio aqui para o Paranaacute soacute essa vez ela foi na casa da matildee dela Dandara Ela contou como que foi Eva Ela falou que laacute era triste menina Laacute tava triste Falou que era tudo manual casinha tudo ruim as casinhas deles trabalho demais sofria demais era muito sofrido minha matildee falava que a terra era fraca lavoura natildeo saiacutea direito e quando ela falava pro pai e a matildee dela vir pra caacute (GuaiacuteraPR) meu vocirc falava que natildeo vinha pra caacute natildeo que ele natildeo ia largar a terra dele laacute natildeo Minha matildee falava ldquooh meu fio se ocecirc for laacute pro Paranaacute se ocecirc saber o tamanho das pranta que noacutes pranta o tamanho que fica a pranta aqui as pranta natildeo sai da terra baixinha assimrdquo ldquoNatildeo eu vou morrer aqui memo daqui eu natildeo saiordquo ele falou pra matildee A matildee falou que laacute era triste Dandara E ela viajou sozinha essa vez Eva Natildeo foi ela meu pai e meu cunhado o irmatildeo do Adir o Antocircnio Meu pai e o finado Antocircnio largou matildee laacute na casa da matildee dela Minha irmatilde tambeacutem foi irmatilde minha mais velha Iracema e foi a Cenira que era a caccedilula Cenira tinha acho que um ano e trecircs mecircs Daiacute meu pai largou matildee laacute e eles foi laacute na titia na Bahia Dandara Tem parente na Bahia tambeacutem Eva Natildeo eles foi laacute numa titia laacute neacute Dandara Quem que eacute titia Eva Assim eacute que benzia neacute titia matildee de santo noacutes falava titia Eles foi na casa dela pegou endereccedilo com a famiacutelia deles laacute Meu pai foi e meu cunhado o Antocircnio irmatildeo do Adir mais velho Dandara E seu pai jaacute tinha mais contato com a Umbanda
167
Eva Sim ele trabalhava tambeacutem em Umbanda O Antocircnio tambeacutem meu pai minha matildee tambeacutem trabalhava Tudo trabalhava na Umbanda
Em 1981 Antocircnia e seu marido Geraldo voltaram a Minas Gerais para
reverem seus parentes e foram acompanhados por Antocircnio filho de Manoel Ciriaco
Se em Guaiacutera passavam dificuldades quando se trata de Minas Gerais as memoacuterias
reforccedilam como a sobrevivecircncia era ainda mais complicada No entanto mesmo com
tamanha adversidade o avocirc de Eva Sebastiatildeo preferiu permanecer em Minas
Gerais reforccedilando a importacircncia do viacutenculo com seu lugar de origem No relato sobre
este retorno a Minas Gerais Eva destacou a viagem de Geraldo e Antocircnio que
aproveitaram a oportunidade e foram para a Bahia onde estaacute localizado o terreiro de
Umbanda em que Antocircnio fez sua iniciaccedilatildeo ritual
Nesta mesma viagem realizada em 1981 Antocircnio conseguiu encontrar seu
irmatildeo Joatildeo Loriano filho do primeiro casamento de seu pai que o havia deixado em
Minas aos cuidados da avoacute Izidora como mencionamos no primeiro capiacutetulo Segundo
nos contou Joatildeo Loriano146 Antocircnio comprou ateacute roupa para ele poder viajar pois ele
passava muita dificuldade na regiatildeo de origem de seu pai Quando chegou no Paranaacute
ele se considerou rico pois em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG soacute comiam coisa do
mato como tatu lagartixa e ateacute garrincha (passarinho bem pequeno) que eles
matavam e davam para os filhos comerem com purecirc de farinha Quando Joatildeo Loriano
encontrou o pai contou que sentiu tanta alegria que ateacute o pegou para danccedilar Entatildeo
o pai falou ldquosai pra laacute meu filhordquo mas Joatildeo se justificou dizendo que era de tanto amor
que sentia pelo pai que natildeo via haacute tantos anos Os demais irmatildeos contaram como o
pai tambeacutem estava feliz que fez uma festa para receber o filho
Depois que trouxe o irmatildeo Joatildeo Loriano Antocircnio voltou no ano seguinte para
Minas Gerais para buscar a mulher de Seu Joatildeo Maria das Dores e seus filhos que
passaram a morar em Guaiacutera no siacutetio de Manoel com os demais parentes Nesta
mesma viagem Antocircnio trouxe para o Paranaacute seu primo Aniacutesio filho de seu tio
paterno Sebastiatildeo Vicente que era irmatildeo de seu pai Em 1983 Antocircnio jaacute com a
experiecircncia adquirida nas viagens anteriores eacute quem leva Maria das Dores para
visitar sua famiacutelia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Quando retornam trazem com
146 Joatildeo Loriano atualmente mora em Presidente Prudente Esta fala foi registrada jaacute durante a viagem
passando por Presidente Prudente ateacute Minas Gerais em marccedilo de 2015
168
eles a esposa de seu primo Aniacutesio Ceciacutelia e seu filhos pois Aniacutesio morava em
GuaiacuteraPR desde 1982
No mesmo ano 1983 Antocircnio volta novamente agrave regiatildeo mineira acompanhado
agora de Joaquim com o intuito de reivindicarem a heranccedila e venderem a parte do
siacutetio de Izidora que cabia a seu pai Manoel e tambeacutem a heranccedila da matildee de Geraldo
Altina Segundo Joaquim relatou as parcelas hereditaacuterias seriam de respectivamente
onze e oito alqueires No entanto quando chegaram no siacutetio de Izidora relatam que
foram recebidos com desconfianccedila ldquoos homensrdquo (parentes) estavam armados e
falaram para eles que soacute passariam o documento da terra para Olegaacuterio o filho mais
velho de Manoel que havia morado laacute A regra local para transmissatildeo de heranccedila
parecia atribuir naquela eacutepoca apenas aos sujeitos que haviam morado no local o
direito de reivindica-la como no caso de Olegaacuterio o que natildeo se estendia aos seus
descendentes ou parentes colaterais como os irmatildeos Antocircnio e Joaquim
Por fim a uacuteltima visita realizada na deacutecada de 1980 ocorreu entre 1985 e 1986
quando Antocircnio acompanhou Ceciacutelia com os filhos de volta a Santo Antocircnio do Itambeacute
pois ela natildeo havia se adaptado agrave regiatildeo de GuaiacuteraPR e natildeo estava vivendo bem junto
a seu marido Aniacutesio segundo me contou Eva A famiacutelia de Ceciacutelia importante
destacar foi a uacutenica dentre os que se mudaram para o Paranaacute que voltou a viver em
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
A realizaccedilatildeo destas viagens em um periacuteodo de cinco anos aponta para como
na deacutecada de 1980 a condiccedilatildeo econocircmica da comunidade estava melhor147 As
viagens no entanto depois se interrompem por deacutecadas Com o falecimento de seu
Manoel a comunidade fica em uma situaccedilatildeo muito delicada financeiramente com as
diacutevidas deixadas por ele aleacutem da perda da referecircncia daquele que era o administrador
da economia familiar A mecanizaccedilatildeo da agricultura tambeacutem tem um impacto direto
sobre as dinacircmicas de trabalho da comunidade como jaacute destacado Atualmente
ressaltam como a necessidade de ldquopagar contasrdquo em contraste com um periacuteodo
anterior de maior autossuficiecircncia impactam diretamente sobre a renda familiar
32 O CAMINHO ATEacute MINAS GERAIS
147 Na eacutepoca produziam e comercializavam o algodatildeo plantado no proacuteprio siacutetio e em aacutereas arrendadas
possuiacuteam um mangueiratildeo de porco e Manoel adquirira um trator para ldquogradearrdquo (arar e sulcar) a terra
169
As anaacutelises de Oliveira Filho indicadas acima enfocam a relaccedilatildeo entre
pertencimento eacutetnico e territorialidade dando um peso central agrave dimensatildeo poliacutetica da
organizaccedilatildeo dos grupos sociais no acircmbito dos paracircmetros colocados pelo Estado e
do processo de territorializaccedilatildeo148 Se as reflexotildees deste autor nos ajudam a pensar
(a) o processo de emergecircncia identitaacuteria (b) a importacircncia atribuiacuteda ao viacutenculo com a
regiatildeo de origem e (c) a dinacircmica que a relaccedilatildeo com o Estado desempenhou nesta
organizaccedilatildeo poliacutetica do grupo a partir da reivindicaccedilatildeo territorial em GuaiacuteraPR
importante pontuar por outro lado que ndash com a realizaccedilatildeo das viagens de volta em
marccedilo e junho de 2015 da qual participaram cinco membros da famiacutelia149 ndash a ecircnfase
dada pelos quilombolas para a estruturaccedilatildeo do pertencimento identitaacuterio pareceu estar
muito mais centrada nas dinacircmicas do parentesco do que na noccedilatildeo de territorialidade
A relaccedilatildeo entre a pessoa e o grupo eacutetnico ndash que implica na sua possibilidade
de autorreconhecimento como quilombola ndash foi acionada por meio da mediaccedilatildeo das
relaccedilotildees de parentesco as quais saiacuteram fortalecidas neste percurso que conectou
parte significativa da rede expandida de famiacutelias Este enfoque no parentesco natildeo
minimiza no entanto a importacircncia da reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo territorial em
GuaiacuteraPR que estaacute baseada inclusive como um dos principais argumentos na
possibilidade do retorno de parentes que estatildeo atualmente fora do territoacuterio e que
pelo viacutenculo familiar podem se autorreconhecer como quilombolas
Esta possibilidade foi estendida a parentes que encontraram na primeira
viagem e que sempre viveram na regiatildeo mineira Este convite para viver no territoacuterio
em GuaiacuteraPR foi apresentado por exemplo a D Ana Raimunda (87) irmatilde de Manoel
Ciriaco que encontramos morando no SerroMG e a Seu Daniel (80) primo de
primeiro grau de Ana Rodrigues (esposa de Manoel) que mora em Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG Seu Daniel ficou feliz com o convite pois mora com a filha o genro e o
neto em condiccedilotildees muito precaacuterias mas precisaria de suporte para que pudesse
148 Com o conceito de ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho
afirma buscar se afastar da ideia de qualidade imanente consubstanciada na noccedilatildeo de territorialidade e deste modo critica as premissas de continuidade e de imemorialidade atribuiacutedas ao territoacuterio indiacutegena Destaca dentre os seus argumentos a frequecircncia com a qual os povos indiacutegenas passaram por processos de reterritorializaccedilatildeo no acircmbito do proacuteprio processo de colonizaccedilatildeo e defende que a avaliaccedilatildeo para a criaccedilatildeo de uma terra indiacutegena apresenta uma caracteriacutestica conjuntural (OLIVEIRA FILHO 1994ordf p 134) 149 Na primeira viagem para Santo Antocircnio do Itambeacute e SerroMG realizada em marccedilo de 2015 eu e
Cassius acompanhamos Adir e Geralda quilombolas de Guaiacutera aleacutem de Seu Joatildeo Loriano que mora atualmente em Presidente PrudenteSP Na segunda viagem em junho de 2015 eu e Cassius acompanhamos D Jovelina e D Maria das Dores que moram atualmente em Presidente PrudenteSP
170
realizar essa mudanccedila Pareceu-me que neste caso a possibilidade ficou no ar D
Ana como veremos no proacuteximo toacutepico em junho de 2015 foi morar com D Jovelina
em Presidente PrudenteSP a partir da viagem que fizemos para buscaacute-la em
SerroMG
Para que fosse possiacutevel realizar a primeira viagem em marccedilo de 2015 foi
fundamental o contato que eu jaacute possuiacutea com Cassius o historiador que desenvolveu
a pesquisa na regiatildeo durante a produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico Eu o
conheci quando trabalhava como assessora juriacutedica no Ministeacuterio Puacuteblico e ele
compunha o Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) equipe que realizou o
levantamento das comunidades quilombolas no Paranaacute no periacuteodo de 2005-2010
Atualmente Cassius estaacute cursando doutorado em Ciecircncias Sociais na UNICAMP e
pesquisa justamente o tema da mobilidade e das redes sociais de parentesco
quilombola Um dos processos que passou a analisar em sua pesquisa de doutorado
com a realizaccedilatildeo das viagens a Minas Gerais foi o da comunidade quilombola Manoel
Ciriaco dos Santos
Propus para Cassius que organizaacutessemos juntos esta viagem e buscaacutessemos
recursos com as respectivas universidades agraves quais estamos vinculados UFPR e
UNICAMP para financiar a nossa ida em marccedilo de 2015 bem como de mais trecircs
pessoas Adir e Geralda do grupo que mora em GuaiacuteraPR e Joatildeo Loriano que mora
atualmente em Presidente PrudenteSP A importacircncia da ida de Seu Joatildeo Loriano foi
defendida por Adir e Geralda tendo em vista que ele foi o uacutenico filho de Manoel Ciriaco
que ficou em MG ateacute 1981 ano em que se mudou para GuaiacuteraPR Em 1993 Joatildeo
Loriano Olegaacuterio e Eurides se mudaram de GuaiacuteraPR para Presidente PrudenteSP
onde a irmatilde Jovelina jaacute morava desde 1986 Deste modo quando pensamos nosso
trajeto ateacute MG a proposta de Adir e de Geralda que nunca tinham ido ateacute laacute foi que
pudeacutessemos passar por Presidente PrudenteSP para que eles conversassem com
estes irmatildeos mais velhos com o objetivo de buscar mais informaccedilotildees sobre as
memoacuterias mineiras e sobre a histoacuteria da famiacutelia para subsidiar a pesquisa na regiatildeo
Ademais propuseram que Joatildeo Loriano pudesse continuar o caminho ateacute MG
conosco e ser uma espeacutecie de guia para a nossa viagem
A uacuteltima vez que Adir tinha conseguido visitar os parentes em Presidente
PrudenteSP havia sido antes da comunidade de GuaiacuteraPR ser reconhecida como
quilombola haacute nove anos e Geralda natildeo ia a Presidente Prudente haacute vinte anos
171
Deste modo percebe-se que ateacute com os irmatildeos que estatildeo no estado de Satildeo Paulo o
grupo de Guaiacutera tem dificuldade de manter contato presencial mas manteacutem contatos
frequentes por meio de telefone celular Adir comentou que estava sendo muito
oportuna esta visita pois ainda natildeo tinha tido condiccedilotildees de explicar para seus irmatildeos
sobre o momento atual do tracircmite do procedimento do INCRA que em breve realizaraacute
o cadastramento das famiacutelias que compotildee a comunidade quilombola segundo
indicaccedilatildeo a ser feita pelo proacuteprio grupo A viagem tambeacutem proporcionou uma
retomada de memoacuterias e de trocas de experiecircncias que em outras circunstacircncias
poderiam natildeo ser acionadas
Outro ponto importante na organizaccedilatildeo da nossa viagem eacute que a primeira ida
de Cassius agraves comunidades quilombolas da regiatildeo de origem de Manoel Ciriaco em
2012 viabilizou o contato com os professores do curso de direito da PUC-Serro
(Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica) os quais atuam com estes grupos e se
disponibilizaram a nos dar o apoio logiacutestico durante a nossa estadia Fomos
convidados em contrapartida a fazer parte de um evento realizado na universidade
com o seguinte tema ldquoSeminaacuterio de Introduccedilatildeo aos Direitos Eacutetnicos direito e conflitos
em territoacuterios quilombolasrdquo Eu Cassius e Adir participamos como palestrantes em
mesas do evento sendo que os dois trataram especificamente da histoacuteria da
Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos
Neste subitem meu objetivo seraacute debater dados levantados a partir nesta
primeira viagem realizada entre os dias 28 de fevereiro a 13 de marccedilo de 2015 e no
subitem seguinte em relaccedilatildeo agrave segunda viagem derivada da primeira e realizada
entre os dias 05 e 08 de junho de 2015 A estrateacutegia por mim e por Cassius adotada
foi que os quilombolas fossem os protagonistas em todo o trajeto e que escolhessem
os caminhos a serem acionados tendo por base uma programaccedilatildeo preacutevia
estabelecida em parceria com nossos apoiadores da PUCSerro
321 A passagem por Presidente PrudenteSP e os irmatildeos mais velhos
No momento da chegada agrave rodoviaacuteria de Presidente PrudenteSP em um
saacutebado dia 28 de fevereiro Cassius perguntou para Adir como tinha sido a viagem de
GuaiacuteraPR ateacute ali e ele em resposta referiu-se agrave viagem de um modo mais amplo em
seu objetivo de chegar ateacute Minas Gerais
172
A viagem Cassius pra mim foi taacute sendo muito importante primeiro que eu vou rever todos os meus parentes quanto tempo que eu natildeo vejo mais os meus irmatildeos meus sobrinhos primos e segundo eacute aquela viagem para Minas Gerais que ela vai ser uma viagem muito importante para nossa vida principalmente para mim
A possibilidade de atualizaccedilatildeo das relaccedilotildees de parentesco era um dos
objetivos principais da viagem que estava dividida em duas etapas Presidente
PrudenteSP e a regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG A passagem por Presidente
PrudenteSP como mencionamos acima tinha como objetivo trocar experiecircncias
sobre as memoacuterias do tempo em que os irmatildeos mais velhos viveram em Minas Gerais
e convidar Seu Joatildeo Loriano para nos acompanhar pois ele foi o uacutenico irmatildeo que laacute
ficou morando ateacute os 37 anos Ao nosso convite seu Joatildeo respondeu ldquopode ficar
tranquilos que noacutes vamos rachar no mundo Falou comigo que eacute pra passear meu
filhordquo 150 A histoacuteria de Seu Joatildeo que foi sendo contada e detalhada durante a viagem
eacute central para compreender esta reconexatildeo da famiacutelia que estaacute no Paranaacute e no estado
de Satildeo Paulo com a regiatildeo de origem em Minas Gerais
Manoel Ciriaco antes de se casar com Ana Rodrigues era viuacutevo de Maria
Olinda com quem teve quatro filhos Luiza (que faleceu aos oito anos) Olegaacuterio
Jovelina e Joatildeo Loriano Maria Olinda foi criada pelo Padre Joviano um padre muito
estimado pela populaccedilatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG que o considera santo
Junto com ela mais trecircs irmatildes de criaccedilatildeo moravam na casa do padre ndash Cecilia
Geralda Estrelina e outra irmatilde de quem Seu Joatildeo natildeo se lembrou o nome Esta casa
ficava beirando o rio bem proacuteximo agrave Igreja Matriz Maria Olinda segundo nos contou
Seu Joatildeo e D Jovelina foi achada no mato pelo padre em um dia que ele ia a cavalo
rezar uma missa e quando ouviu um choro de bebecirc foi ver o que era A menina que
teria acabado de nascer havia sido deixada enrolada em uma coberta A pessoa que
a abandonara natildeo teria deixado pistas da trilha por onde passou
Quando Seu Joatildeo tinha um mecircs e sete dias sua matildee faleceu151 tendo ele
ficado aos cuidados de sua avoacute Izidora matildee de Manoel e de sua tia Ana Raimunda
150 Curioso notar que apesar da seriedade do propoacutesito da viagem ela eacute vista por Seu Joatildeo tambeacutem
como uma chance de diversatildeo atraveacutes do movimento o que se expressa na ideia de ldquopassearrdquo 151 Segundo Geralda Maria Olinda teria morrido por ter sido viacutetima de feiticcedilo Geralda contou que ela
falava demais e Maneacute a avisava para ter cuidado Um dia quando ela estava trabalhando serviram para ela aacutegua com uma folha Ela teria achado estranho mas tomou Depois passou um tempo descobriram por meio das entidades espirituais que era feiticcedilo mas jaacute natildeo tinha mais o que fazer para reverter o efeito ldquoEm Minas tem feiticeiro mesmordquo acrescentou Geralda
173
irmatilde de seu pai Seu Joatildeo ficou morando com avoacute Izidora quando Manoel saiu de
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG em direccedilatildeo ao estado de Satildeo Paulo em 1956 pois seu
pai natildeo teria tido coragem de o separar da avoacute Durante um certo periacuteodo Seu Joatildeo
comentou que eles tiveram contato com seu pai uma ou duas vezes por carta mas
quando foram mandar notiacutecia sobre o falecimento de Izidora natildeo sabiam mais seu
endereccedilo
Quando ocorreu o falecimento de sua avoacute Seu Joatildeo foi morar e trabalhar na
fazenda de Zinho Gonccedilalves e como ele frisou foi mais criado na fazenda do que em
casa Ele trabalhava com tropa levando cachaccedila e outros produtos pela regiatildeo Tinha
dia que ele falava para a esposa que natildeo ia levar marmita para ldquolargar o comecirc pra daacute
pros meus meninordquo Ele casou com 16 anos com D Maria das Dores que tinha a
mesma idade Segundo D Maria das Dores nos contou foi o fazendeiro que os ajudou
financeiramente para que pudessem casar e ldquoos vestiu dos peacutes agrave cabeccedilardquo
No Itambeacute Seu Joatildeo era conhecido como ldquoJoatildeo do Rosaacuteriordquo pois quando foi
fazer seu registro em Minas Gerais ndash como seu pai havia levado seu documento ndash ao
lhe perguntarem no cartoacuterio qual era seu sobrenome ele entatildeo respondeu ldquoAh potildee
Joatildeo do Rosaacuterio de qualquer jeitordquo Seu Joatildeo riu quando terminou de nos relatar esta
lembranccedila que fala de sua experiecircncia difiacutecil como rapaz que cresceu oacuterfatildeo da matildee
falecida e do pai do qual natildeo tinha notiacutecias Seu Joatildeo soacute saiu de Santo Antocircnio do
Itambeacute em 1981 quando tinha 37 anos como mencionamos acima Por toda essa
experiecircncia que Seu Joatildeo teve de anos de vida na regiatildeo a sua participaccedilatildeo na
viagem era de importacircncia central
Apesar de jaacute termos algum planejamento anterior boa parte das decisotildees
foram sendo tomadas ao longo do percurso A princiacutepio haviacuteamos pensado em passar
apenas o final de semana em Presidente PrudenteSP e embarcar jaacute na segunda-feira
para Minas Gerais No entanto Adir e Geralda optaram por estender a visita aos
irmatildeos e demais parentes e resolveram ir para SerroMG apenas na quinta-feira agrave
noite Isso tambeacutem porque Seu Joatildeo precisou de uns dias para se liberar e poder nos
acompanhar na viagem Eu e Cassius entatildeo decidimos ir antes na terccedila-feira agrave noite
para organizar junto aos professores da PUCSerro as questotildees relativas ao evento
que foi composto por duas mesas de palestras na sexta-feira agrave noite (0603) e no
saacutebado pela manhatilde (0703)
174
Para compreender a importacircncia atribuiacuteda por Geralda e Adir agrave estadia junto
aos irmatildeos mais velhos que moram em Presidente PrudenteSP deve-se destacar
que eacute a experiecircncia de ter participado do passado familiar em Minas Gerais que
parece ser um criteacuterio de distinccedilatildeo daqueles que satildeo tidos como capazes de fazer a
conexatildeo narrativa da histoacuteria atual do grupo com seu ldquomito de origemrdquo Trata-se ldquodos
depositaacuterios da histoacuteria mais idosos ldquotronco velhordquo lideranccedilas das parentelas
guardiotildees da histoacuteria da comunidaderdquo (MONBELLI BENTO 2006 p 24)152 Com o
processo de autoidentificaccedilatildeo como quilombolas e a reelaboraccedilatildeo da memoacuteria
coletiva os irmatildeos mais velhos ganham status como ldquoguardadores da memoacuteriardquo os
quais passaram a ldquodesempenhar um papel sem precedentes na vida do grupordquo
(ARRUTI 1997 p 23)
Aleacutem deste aspecto da pesquisa e levantamento das histoacuterias da famiacutelia Adir
e Geralda tinham como objetivo mais imediato rever os irmatildeos(atildes) cunhados(as)
sobrinhos(as) primos(as) que vivem atualmente na regiatildeo do municiacutepio paulista Joatildeo
Aparecido irmatildeo caccedilula de Adir e Geralda tambeacutem foi por mim e Cassius apoiado
financeiramente para que pudesse chegar ateacute Presidente PrudenteSP153 onde
atualmente residem sua ex-mulher Kelly e seus dois filhos Joatildeo Vitor (13) e Tauane
(16) A ex-mulher e os filhos de Joatildeo Aparecido moravam em GuaiacuteraPR ateacute 2011
quando Kelly perdeu seu emprego na escola municipal do Maracaju dos Gauacutechos
onde trabalhava com serviccedilo de limpeza e merenda Ela resolveu entatildeo morar em
Presidente PrudenteSP e ficar proacutexima de sua famiacutelia pois acreditava que teria mais
chances de conseguir um emprego jaacute que na comunidade a situaccedilatildeo de conflito com
os vizinhos aleacutem de gerar inseguranccedila para as famiacutelias fez com que as possibilidades
de trabalho diminuiacutessem Na eacutepoca Kelly chamou Joatildeo Aparecido para que a
acompanhasse na mudanccedila mas ele natildeo foi porque entendia que sua permanecircncia
no siacutetio em GuaiacuteraPR era importante para o projeto coletivo de comunidade que ele
conduz junto com os irmatildeos Adir e Joaquim Esta situaccedilatildeo entatildeo acabou gerando a
152 O par de categorias de parentesco ldquotronco velhordquo e ldquopontas de ramardquo presente na etnografia
realizada por Arruti junto aos Pankararu no estado de Pernambuco traduzem a distacircncia entre o grupo indiacutegena e seus antepassados considerados ldquoiacutendios purosrdquo sendo utilizadas para organizar as relaccedilotildees marcadas pela ideia de ldquomisturardquo de modo a criar um ldquofluxo diferencial de forccedila religiosa e legitimidaderdquo no sentido do ldquotronco velhordquo (ARRUTI 1996 p 64) 153 Soacute Joaquim dentre os irmatildeos que moram em GuaiacuteraPR natildeo foi para Presidente PrudenteSP pois algum deles tinha que ldquoficar cuidando de tudo no siacutetiordquo
175
separaccedilatildeo do casal Haacute dois anos Joatildeo Aparecido natildeo ia para Presidente PrudenteSP
e ficou este periacuteodo sem ver os filhos
O fato de dois filhos de Manoel Ciriaco chamarem-se Joatildeo ocorreu em razatildeo
de o pai ter dado ao seu filho caccedilula nascido em 1972 o nome de Joatildeo Aparecido
para lembrar-se do filho Joatildeo Loriano que havia ficado em Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG Segundo Adir nesta eacutepoca o pai natildeo tinha mais esperanccedila de encontraacute-
lo depois de dezesseis anos de separaccedilatildeo O reencontro para aliacutevio de Manoel
ocorreu nove anos depois do nascimento de Joatildeo Aparecido em 1981 quando Joatildeo
Loriano passou a viver com a esposa Maria das Dores e os seis filhos na terra do pai
em GuaiacuteraPR
FIGURA 20 O encontro entre os dois irmatildeos ldquoJoatildeordquo em Presidente PrudenteSP
Em Presidente PrudenteSP Cassius Adir Joatildeo Aparecido Geralda e eu
ficamos hospedados na casa de D Jovelina e Seu Davi Eles moram em um bairro
perifeacuterico do municiacutepio chamado ldquoAna Jacintardquo que fica a mais ou menos uma hora
de distacircncia do centro da cidade Seu Joatildeo Loriano e D Maria das Dores tambeacutem
moram no mesmo bairro assim como alguns filhos destes dois casais com suas
respectivas famiacutelias o que permite uma convivecircncia constante e uma rede de
176
solidariedade entre eles154 Destaca-se que duas das filhas155 de Seu Joatildeo ndash
Aparecida e Dulce ndash satildeo casadas com os filhos gecircmeos de sua irmatilde D Jovelina ndash
Damasio e Damasceno ndash exemplo da ocorrecircncia de casamento entre primos de
primeiro grau
Haviacuteamos chegado em Presidente PrudenteSP no saacutebado No dia seguinte
foi preparado um almoccedilo com churrasco que reuniu parte da famiacutelia que mora proacuteximo
do bairro ldquoAna Jacintardquo para comemorar a visita dos parentes de GuaiacuteraPR
FIGURA 21 Famiacutelia reunida em Presidente PrudenteSP na casa de D Jovelina
Neste almoccedilo celebrativo Cassius ensinou Adir a usar uma das trecircs cacircmeras
de viacutedeo que tiacutenhamos agrave disposiccedilatildeo Adir ficou muito animado em poder registrar seu
olhar sobre os momentos da viagem gravando conversas com os parentes paisagens
do caminho etc Durante todo o percurso boa parte das filmagens foram realizadas
por Adir que interpelava e entrevistava as pessoas conforme seus interesses e
154 Eacute possiacutevel perceber a presenccedila de caracteriacutesticas no cotidiano destas famiacutelias que remontam agrave sua
origem no meio rural e a uma trajetoacuteria que os distingue dos demais vizinhos mesmo morando em um bairro de uma grande cidade Por exemplo Seu Joatildeo Damasio e Damasceno filhos de Jovelina acertam com os proprietaacuterios de terrenos baldios do bairro a possibilidade de utilizarem a aacuterea para plantar garantindo em contrapartida a manutenccedilatildeo do terreno 155 Outra informaccedilatildeo relevante eacute que a filha mais velha de Seu Joatildeo Maria de Faacutetima dos Santos estaacute
haacute mais de quinze anos desaparecida e segundo nos informaram teria sumido em Campinas quando para laacute foi com o entatildeo marido Edison e perderam o contato Atualmente a famiacutelia tenta encontraacute-la
177
prioridades Este material tambeacutem eacute aqui analisado como fonte de pesquisa e registro
do trabalho de campo
Adir em mais de uma oportunidade durante a estadia em Presidente
PrudenteSP mostrou para seus parentes que eles fazem parte da luta quilombola da
comunidade em GuaiacuteraPR e reforccedilou como ele estava feliz em nesta viagem ir
buscar a raiz da histoacuteria da famiacutelia Em conversa na varanda da casa de D Jovelina
comentou sobre a trajetoacuteria do ldquopovo negrordquo desde o traacutefico de africanos ateacute a
experiecircncia do Quilombo dos Palmares Concluiu dizendo a seus primos
Vocecirc deve buscar neacute na internet hoje vocecirc consegue muita coisa os quilombos Quilombo de Palmares ver o tanto de negro que entrava no Brasil E o Cassius ele eacute professor pode explicar melhor do que eu e a Dandara tambeacutem que vocecircs estudam e eu natildeo estudo fico dentro da roccedila laacute Mas tudo o que das viagens dos encontros de tudo que eu jaacute vi na vida ateacute hoje estaacute guardado aqui Mais do que eu escrevi do que eu jaacute vi Aiacute que eu penso assim em buscar a histoacuteria do meu passado por isso que eu luto Que eu vou ateacute o fim Se eles natildeo me matar
Adir ressaltava assim a importacircncia de se mobilizarem para ldquomostrar pras
pessoas que noacutes somos negros e que tem que nos respeitarrdquo Identificava a presenccedila
de tal desrespeito por exemplo na falta de acesso ao estudo para a populaccedilatildeo negra
como no caso de Olegaacuterio Seu Joatildeo e D Maria das Dores que natildeo aprenderam a ler
e a escrever Ao mesmo tempo em que Adir afirmava seu intuito de ir ldquoateacute o fimrdquo com
esta busca era a proacutepria viagem que parecia estar lhe proporcionando um
fortalecimento de convicccedilotildees bem como da vontade de continuar a frente deste
processo de mobilizaccedilatildeo Eacute como se esta viagem ateacute Minas Gerais pudesse ser
comparada a uma peregrinaccedilatildeo na qual Adir estava a visitar os lugares ldquosagradosrdquo
da memoacuteria e da experiecircncia familiar e nesta jornada fosse descobrindo quem ele
mesmo eacute (TURNER 2008)
Outro encontro que ocorreu durante nossa estadia em Presidente
PrudenteSP foi com Olegaacuterio o filho mais velho de Manoel Atualmente a famiacutelia de
Olegaacuterio mora em um lote de oito alqueires que conquistaram haacute catorze anos no
ldquoAssentamento Palurdquo156 Este assentamento fica localizado na zona rural do municiacutepio
de Presidente BernardesSP no distrito de ldquoNova Paacutetriardquo proacuteximo a Presidente
PrudenteSP Olegaacuterio e Valdeniacutecio um de seus filhos que nos relatou esta histoacuteria
156 A ocupaccedilatildeo desta fazenda se deu pelo movimento ldquoBandeira Brancardquo que na eacutepoca tinha conflito
com o ldquoMovimento dos trabalhadores Rurais Sem Terrardquo (MST)
178
revezaram-se durante dois anos no periacuteodo de acampamento para conseguirem o
acesso agrave terra Os outros filhos de Olegaacuterio lhes ajudavam por exemplo com cestas
baacutesicas Segundo Valdeniacutecio quando Olegaacuterio e os filhos vieram para o estado de
Satildeo Paulo em 1993 seu pai continuou trabalhando com produccedilatildeo de farinha com a
qual jaacute lidava em GuaiacuteraPR No estado de Satildeo Paulo trabalhou com farinha mesmo
quando moravam na cidade mas era complicado segundo Valdeniacutecio por conta dos
vizinhos que se incomodavam com a fumaccedila Quando conseguiram o lote no
assentamento estruturaram a farinheira sendo que parte dela foi Olegaacuterio mesmo
que projetou Valdeniacutecio comentou que antes de mecanizar o processo de produccedilatildeo
era difiacutecil trabalhar com a farinha de mandioca Atualmente produzem em meacutedia
vinte sacos por dia
FIGURA 22 Valdeniacutecio explicando o funcionamento da farinheira
O caso de Olegaacuterio atualmente com setenta e sete anos eacute muito significativo
ao apontar para a busca ateacute agora bem-sucedida de se manterem na aacuterea rural e
reproduzirem um modo de vida autocircnomo dentro da tradiccedilatildeo de trabalho familiar
Valdeniacutecio nos mostrou o funcionamento da farinheira e explicou detalhadamente para
Joatildeo Aparecido e Adir os quais estavam muito interessados e admirados com a forma
de trabalho dos seus parentes Durante a conversa Valdeniacutecio se lembrou do tempo
que morava em GuaiacuteraPR e que laacute eles eram ldquomais de cento e poucos negros tudo
casa de coqueirordquo Frisou tambeacutem sua lembranccedila do preconceito racial que sofriam
no ldquoMaracajurdquo afirmando que quando eles passavam todos juntos os vizinhos
provocavam-lhes dizendo que formava uma ldquonuvem pretardquo e ia chover
179
Tivemos uma longa conversa com Olegaacuterio que saiu de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG com aproximadamente vinte anos de idade Ele nos contou que o siacutetio da
avoacute Izidora de dez alqueires fica em um lugar chamado ldquoQueimadasrdquo Na eacutepoca
nessa terra moravam as famiacutelias dos irmatildeos Manoel Ciriaco e Sebastiatildeo Vicente de
Paula Manoel trabalhava de ldquopuxar cana pra fazer rapadura cortava lenha
trabalhava na lavra tirando cristalrdquo Ele saiacutea para trabalhar longe e chegou a ir ateacute
Londrina no norte do Paranaacute em migraccedilatildeo sazonal Olegaacuterio contou que Manoel
quando saiacutea de Santo Antocircnio do Itambeacute para essas viagens a trabalho iaacute primeiro
ateacute Diamantina distante mais de cem quilocircmetros157 sendo que parte do percurso
eles caminhavam cortando o morro durante o dia todo Outra parte era feita no ldquopau
de ararardquo que eacute um tipo de caminhatildeo coberto de lona que transportava pessoas
Depois em Diamantina pegava o trem e continuava a viagem Quando a famiacutelia se
mudou para o estado de Satildeo Paulo e depois para o Paranaacute jaacute foram de ocircnibus
Olegaacuterio tambeacutem nos passou vaacuterias referecircncias de lugares e pessoas que estavam
relacionadas agrave famiacutelia na regiatildeo de origem e afirmou que em uma proacutexima
oportunidade ele tambeacutem gostaria de voltar para Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
A nossa passagem por Presidente PrudenteSP tambeacutem permitiu que fosse
gravado um viacutedeo de D Maria das Dores esposa de Seu Joatildeo Loriano mandando
uma mensagem para que se noacutes achaacutessemos os seus irmatildeos em Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG ldquoaqueles que tive vivordquo pudeacutessemos lhes mostrar o seu recado Quem
registrou a conversa com ela foi Adir
Adir E daiacute cumadi Maria o que a senhora manda falar noacutes encontrando os seus parentes em Minas Gerais
D Maria das Dores Oacute eu mando cumpadi Nadir muita lembranccedila um abraccedilatildeo pra cumpadi Erosino pra cumadi Regina pra cumadi Zulmira e com a famia E muitos anos de vida sauacutede pra eles quem tiver vivo
Adir E que mais de seus irmatildeos cumadi que a sra lembra
D Maria das Dores Quero recordaccedilatildeo e notiacutecia da Teresa cumadi Anita minha irmatilde Joaquim meu irmatildeo Geralda natildeo que essa taacute pra caacute e o menino que minha matildee criou eacute o Dudu
Adir Como eacute que era o nome de sua matildee cumadi
D Maria das Dores Luzia Eleoteacuteria da Silva
Adir E seu pai cumadi
157Em sua fala frisou a distacircncia em leacuteguas forma tradicional de mediccedilatildeo da regiatildeo
180
D Maria das Dores Bertolino Gino Domingo
Adir A sra lembra o lugar que a sra morava laacute e tudo
D Maria das Dores Santo Antocircnio do Itambeacute do Serro
Adir Era muito sofrido
D Maria das Dores Era sofrido nossa Senhora meu Deus A gente comia sem nada de gordura natildeo tinha nada de sal a gente fazia gordura desse bucho de boi eacute uma gordura muito ruim A fartura que tinha laacute era mandioca cana e cafeacute Minas Gerais E tambeacutem cheguei no Paranaacute o meu cunhado que Deus daacute bom lugar pra ele chegando no Paranaacute foi benccedila e alegria ()
Adir E eu tenho feacute em Deus cumadi junto com o marido da senhora que eacute meu irmatildeo o cumpadi Joatildeo a gente vai pisar naquele solo de Minas no mesmo lugar que a senhora morou quero que o cumpadi Joatildeo revecirc isso ai a gente vai filmar tudo isso eu tenho feacute em Deus que eu encontro ainda seus irmatildeos suas irmatildes todo esse pessoal que a senhora falou que taacute gravado aqui pra gente achar esse pessoal e a gente filmar tirar foto e trazer pra senhora Ver como eacute que taacute esse pessoal laacute
D Maria das Dores Ver como eacute que taacute laacute se taacute bom
Adir Saber notiacutecia que a gente perdeu notiacutecia de todo mundo
D Maria das Dores Perdemo notiacutecia Ana Raimunda tambeacutem
Adir Pois eacute perdemo tudo essa notiacutecia
Na fala de D Maria a anguacutestia da falta de notiacutecias se expressa na duacutevida de
natildeo saber quem ainda estaria vivo dentre os seus irmatildeos A possibilidade de superar
esta situaccedilatildeo eacute atribuiacuteda por ela a uma intercessatildeo divina pois concluiu a conversa
afirmando ldquoo negoacutecio eacute joelho no chatildeo jejum e oraccedilatildeordquo pois ldquoJesus vai na frenterdquo e eacute
quem pode abrir os caminhos que permitiratildeo este reencontro Como natildeo se
sensibilizar com o drama de uma separaccedilatildeo entre familiares que se estendeu por tanto
tempo por falta segundo eles mesmos afirmam de possibilidades de deslocamento e
manutenccedilatildeo do contato Agravequeles que saiacuteram da regiatildeo de origem eacute a quem caberia
o retorno pois para os que ficaram seria ainda mais difiacutecil saber como procuraacute-los
322 A chegada em SerroMG e a ida agrave Comunidade Quilombola Vila Nova
Geralda Adir e Seu Joatildeo fizeram o trajeto de Presidente PrudenteSP ateacute Belo
HorizonteMG de ocircnibus Na rodoviaacuteria de Belo Horizonte eu e Cassius combinamos
que o professor Ricardo Ferreira Ribeiro que atua nas aacutereas de antropologia e
sociologia no curso de direito da PUCSerro iria encontra-los e leva-los para Serro
aproveitando o trajeto que Ricardo jaacute faria para ir dar aula Conforme Adir destacou
181
foi muito importante terem conversado com o professor Ricardo durante a viagem ateacute
Serro um trajeto de 330 km que demora em meacutedia cinco horas de carro Neste
caminho como eacute possiacutevel recuperar por meio dos vaacuterios viacutedeos gravados por Adir o
professor Ricardo foi lhes mostrando os elementos do ambiente os rios contando e
tambeacutem ouvindo histoacuterias sobre a regiatildeo
Ele lhes contou por exemplo sobre a comemoraccedilatildeo em 2014 dos cento e
cinquenta anos da articulaccedilatildeo do movimento de revolta dos escravos desde Serro a
Diamantina que se reuniriam no intuito de acabar com a escravidatildeo No entanto
dentro do movimento teve um traidor que denunciou o esquema e a guarda acabou
prendendo as lideranccedilas da revolta Adir em resposta comentou ldquotem histoacuteria esse
Serro heinrdquo Quando laacute chegaram Adir e Geralda que nunca tinham estado ali
puderam se encantar com a arquitetura do municiacutepio caracteriacutestica das vilas
setecentistas mineiras o que lhes remetia ainda mais a este passado familiar e
regional ndash a partir do qual fundamentam a reivindicaccedilatildeo identitaacuteria como quilombolas
em GuaiacuteraPR158
Se no Serro tem histoacuteria ateacute da organizaccedilatildeo de uma revolta de escravos uma
forma de resistecircncia negra direta enquanto motim as memoacuterias familiares sobre a
vida nesta regiatildeo conforme apontou Geralda indicam uma resistecircncia cotidiana e
silenciosa enquanto processo de sobrevivecircncia (FERNANDES BUSTOLIN
TEIREIRA 2006 p134) A moradia em ldquolocardquo ou ldquolapardquo de pedra eacute um importante
siacutembolo dessa resistecircncia onde se abrigavam de modo precaacuterio nos locais oferecidos
pelo ambiente Geralda contou por exemplo que sua avoacute materna Maria Bernarda
sofreu muito pois foi abandonada pelo marido com cinco filhas mulheres dentre elas
Ana Rodrigues sua matildee A famiacutelia soacute de mulheres passou fome Ana contava para
Geralda que cansou de comer um tipo de feijatildeo do mato que elas natildeo sabiam mas
era veneno comeram e adoeceram
Ao chegarem no Serro159 iniciava para Geralda Adir e Joatildeo o processo de
busca pelos parentes Jaacute na primeira tentativa encontraram um neto de D Zulmira
158 O municiacutepio do Serro foi o primeiro municiacutepio brasileiro cujo patrimocircnio arquitetocircnico e urbaniacutestico
foi tombado pelo Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional (IPHAN) ainda em 1938 Disponiacutevel em httpwwwserromggovbrconheC3A7a-o-serrohtml Acesso em 161015 159 Serro com 20835 habitantes159 eacute um municiacutepio que fica distante 27 km de Santo Antocircnio do Itambeacute
que tem uma populaccedilatildeo de 4135 habitantes conforme o Censo do IBGE de 2010 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316710ampsearch=minas-gerais|serro
182
cunhada de Seu Joatildeo Loriano e irmatilde de D Maria das Dores Conforme Adir relatou
quando gravamos um viacutedeo dele contando como tinha sido a viagem para D Regina
e D Zulmira as irmatildes de D Maria das Dores que encontramos em Santo Antocircnio do
Itambeacute
Chegando no Serro eu queria andar eu soacute pensava em andar andar Via as pessoas eu mais cumpadi Joatildeo perguntava ldquoseraacute que eacute nosso parente Eacute nosso parenterdquo Eu mais cumpadi Joatildeo corria laacute e perguntava Ele ia na frente porque jaacute conhecia Minas Gerais 34 anos que saiu daqui E a gente ficava nessa eu quero encontrar um parente E ele falava ldquose noacutes encontrar dois encontramo o restordquo E dito e feito Primeira pessoa que noacutes se deparemo quando saiacute do local onde a gente tava num hotel em frente a um posto de gasolina tinha um barzinho Eu falei ldquoCumpadi Joatildeo eu quero tomar uma cachaccedila de Minas Geraisrdquo porque meu pai falava muito nessa cachaccedila e eu queria tomar uma cachaccedila () Comeccedilemo a encontrar uma pessoa que dizia que era parente de vocecircs aqui das senhoras E a gente ficou naquela esperanccedila noacutes tem que encontrar Ele falou ldquoNatildeo vou soacute domingo pra laacuterdquo E noacutes fiquemo naquela
Geralda me contou sobre como ocorreu este encontro pois eu e Cassius
tiacutenhamos ido no evento na PUC enquanto eles tinham ficado descansando no hotel
pois haviam chegado em SerroMG naquele dia sexta-feira 06 de marccedilo depois de
uma longa viagem Geralda ressaltou que o rapaz Julio ndash dono do bar que fica ao
lado do hotel onde estaacutevamos hospedados ndash comentou com eles que quando os viu
jaacute pressentiu que eram parentes Ficaram entatildeo sabendo que D Zulmira e D Regina
ndash irmatildes de D Maria das Dores de quem estavam agrave procura ndash ainda moravam em
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
No outro dia de manhatilde Geralda comentou comigo que natildeo tinha dormido
durante a noite porque ficou se lembrando de sua matildee e de seu pai das coisas que
eles contavam principalmente que andavam por todos aqueles morros carregando
suas coisas em cima da cabeccedila e que era muito sofrido Geralda completou
lamentando todo este tempo que eles almejaram sem poderem retornar pois ficavam
esperando juntar um dinheiro para poder vir caccedilar os parentes Lembrou-se tambeacutem
que Manoel queria ter mandado buscar sua irmatilde Ana Raimunda mas que nunca lhe
sobrava dinheiro
Fomos todos juntos entatildeo ao segundo dia do seminaacuterio na PUC A
participaccedilatildeo de Geralda Adir e Seu Joatildeo foi muito significativa A mesa do saacutebado de
Acesso em 141015 Santo Antocircnio do Itambeacute soacute se tornou um municiacutepio independente de Serro em 1963 sete anos depois que Manoel e demais famiacutelias saiacuteram de laacute
183
manhatilde se chamava ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos
geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova
(MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo Como palestrantes estavam o professor Ricardo
Cassius e duas lideranccedilas quilombolas Seu Adatildeo lideranccedila da Comunidade
Quilombola Vila Nova e Adir lideranccedila da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco
dos Santos No tiacutetulo da mesa percebe-se a conexatildeo como apontado pelo segundo
relatoacuterio antropoloacutegico da comunidade em GuaiacuteraPR entre a trajetoacuteria histoacuterica de
deslocamentos da comunidade em GuaiacuteraPR com os processos de migraccedilatildeo da
Comunidade Vila Nova pois na regiatildeo de origem do grupo esta jaacute era uma
caracteriacutestica marcante
Com base na pesquisa realizada para o segundo relatoacuterio antropoloacutegico
Cassius expocircs um panorama da trajetoacuteria de Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues desde
Minas Gerais ateacute o Paranaacute Ao ouvirem a fala de Cassius e verem as fotos de seus
parentes na apresentaccedilatildeo Adir Geralda e Seu Joatildeo que compunham a mesa natildeo
contiveram a emoccedilatildeo Para aleacutem de uma recuperaccedilatildeo histoacuterica da trajetoacuteria da famiacutelia
aquele momento tinha um valor simboacutelico muito marcante para eles pois estavam
sendo recebidos e acolhidos na regiatildeo de origem de sua famiacutelia em um momento de
reconhecimento e valorizaccedilatildeo dentro de uma universidade
Em sua fala Adir iniciou agradecendo a Deus aos Orixaacutes e a todos que
apoiaram a realizaccedilatildeo deste sonho de chegar na regiatildeo de origem de seu pai Contou
um pouco da histoacuteria de migraccedilatildeo e resistecircncia dos seus antepassados que saiacuteram
de Minas Gerais e foram buscar uma oportunidade de vida no estado de Satildeo Paulo e
depois no Paranaacute Refletiu sobre o processo de reconhecimento como quilombolas
das famiacutelias em GuaiacuteraPR os conflitos dele decorrentes e a persistecircncia da
comunidade em lutar pelo acesso agraves poliacuteticas puacuteblicas Concluiu dizendo ldquonossa luta
eacute em memoacuteria daqueles que jaacute foram e nossa luta eacute pela sobrevivecircnciardquo
184
FIGURA 23 Mesa ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova (MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo
A ideia de realizaccedilatildeo do seminaacuterio comeccedilou como forma de dar suporte agrave
nossa estadia na regiatildeo mineira para a qual eu e Cassius tambeacutem contribuiacutemos com
recursos pessoais e algum apoio das universidades agraves quais estaacutevamos vinculados
Por meio da articulaccedilatildeo com o professor do curso de direito da PUCSerro Matheus
de Mendonccedila Gonccedilalves Leite foi viabilizada parte da nossa alimentaccedilatildeo e
hospedagem aleacutem do auxiacutelio para deslocamento na regiatildeo Este evento tomou uma
proporccedilatildeo muito mais significativa do que o sentido pragmaacutetico que o motivou
inicialmente como mencionamos acima Nesta oportunidade tambeacutem ocorreu o
primeiro contato entre os quilombolas de Guaiacutera e da comunidade ldquoVila Novardquo que
fica localizada no distrito do municiacutepio de Serro chamado ldquoSatildeo Gonccedilalo do Rio das
Pedrasrdquo para onde nos deslocamos e permanecemos ateacute segunda-feira dia 09 de
marccedilo de 2015
Como mencionamos no capiacutetulo anterior foi com esta comunidade quilombola
que a pesquisa do segundo relatoacuterio antropoloacutegico indicou possiacuteveis relaccedilotildees de
parentesco A estadia junto agraves famiacutelias desta comunidade propiciou para Adir Seu
Joatildeo e Geralda uma experiecircncia de contato com um modo de vida especiacutefico que lhes
remeteu muito agraves histoacuterias de sua origem familiar Durante os trecircs dias em que laacute
ficamos Adir Geralda e Seu Joatildeo tentaram encontrar relaccedilotildees de parentesco atraveacutes
de nomes comuns da memoacuteria sobre os antepassados Muitos nomes de parentes
eram iguais o que gerou longa conversas ateacute nos darmos conta de que natildeo
185
estaacutevamos falando das mesmas pessoas Apenas no final da viagem com a nossa
estadia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG pudemos entender qual era a ligaccedilatildeo entre
estas famiacutelias Como veremos no proacuteximo subitem o viacutenculo de parentesco ocorre
por meio dos ascendentes da famiacutelia da esposa de Seu Joatildeo D Maria das Dores
pelo lado de sua matildee Luzia Eleoteacuteria da Silva
FIGURA 24 Da esquerda para a direita Seu Adatildeo D Necila (ambos de Vila Nova) Adir Geralda D Maria Geralda (Vila Nova) e Seu Joatildeo
O distrito de Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras fica a trinta quilocircmetros da sede
do municiacutepio de Serro com acesso por estrada de terra Estaacute situado no alto da Serra
do Espinhaccedilo a 1150 m de altitude e conta com vaacuterias cachoeiras que compotildeem uma
linda paisagem O distrito com em torno de mil e quinhentos habitantes surgiu no
iniacutecio do seacuteculo XVIII em decorrecircncia da intensificaccedilatildeo da exploraccedilatildeo de ouro na
regiatildeo do ldquoSerro Friordquo160 ndash hoje municiacutepio de Serro ndash e manteacutem ainda caracteriacutesticas
arquitetocircnicas do periacuteodo colonial A comunidade quilombola ldquoVila Novardquo localiza-se
na aacuterea urbana do distrito e laacute acessam os serviccedilos puacuteblicos disponiacuteveis como escola
posto de sauacutede telefonia aacutegua tratada energia eleacutetrica entre outros As casas das
famiacutelias quilombolas que compotildeem um mesmo grupo familiar ficam todas proacuteximas
Segundo seus relatos estas famiacutelias antes moravam no entorno do distrito sendo
oriundas da localidade de Aacutegua Santa proacuteximo ao Pico do Itambeacute onde atualmente
160 A antiga ldquoVila do Priacutencipe do Serro Friordquo foi sede de comarca uma das quatro primeiras da ldquoCapitania
das Minas Geraisrdquo Disponiacutevel em httpwwwserromggovbrconheC3A7a-o-serrohtml Acesso em 161015
186
se localiza o Parque Estadual do Pico do Itambeacute Mudaram-se para Satildeo Gonccedilalo
ainda na primeira metade do seacuteculo XX161 ldquoVila Novardquo eacute uma das cinco comunidades
quilombolas em Serro junto com as comunidades ldquoAusenterdquo e ldquoBauacuterdquo proacuteximas do
Distrito de Milho Verde e a ldquoComunidade do Oacuterdquo que se localiza neste distrito aleacutem
da comunidade de ldquoRibeiratildeo dos Porcosrdquo162 Eacute possiacutevel falar em um territoacuterio regional
cultural quilombola com forte presenccedila dessas comunidades nos municiacutepios no
entorno de Serro ateacute Diamantina onde uma meacutedia de trinta comunidades jaacute se
autorreconhecem como quilombolas163 A formaccedilatildeo destas comunidades estaacute
vinculada ao processo de exploraccedilatildeo de ouro e diamante com matildeo de obra escrava
sendo que os vastos espaccedilos territoriais desocupados permitiram na eacutepoca a
formaccedilatildeo de vaacuterios quilombos164
FIGURA 25 Em frente agrave casa de D Necila Na esquerda da foto ela e Adir estatildeo conversando e ao
lado dois parentes tocando violatildeo e sanfona
161 Conforme consta no segundo relatoacuterio antropoloacutegico da comunidade ldquoManoel Ciriacordquo Procedimento
Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 728-730 [p 35-37] 162 As cinco comunidades de Serro receberam a Certidatildeo de Auto-Reconhecimento da Fundaccedilatildeo
Cultural Palmares em 2012 Em MG ateacute fevereiro de 2015 duzentos e vinte e seis comunidades contavam com a certidatildeo e mais quarenta e trecircs aguardavam a finalizaccedilatildeo do procedimento A emissatildeo da certidatildeo eacute regulada pela Portaria nordm 98 de 2007 Dados disponiacuteveis em httpwwwpalmaresgovbrpage_id=88ampestado=MG httpwwwpalmaresgovbrwp-contentuploadscrqslista-das-crqs-processos-abertos-ate-23-02-2015pdf e Portaria disponiacutevel em httpwwwpalmaresgovbrwp-contentuploads201011legis21pdf Acesso em 161015 163 Levando em consideraccedilatildeo as comunidades nos seguintes municiacutepios Serro (5) Santo Antocircnio do
Itambeacute (3) Materlacircndia (6) Sabinoacutepolis (7) Senhora do Porto (1) Alvorada de Minas (1) Conceiccedilatildeo do Mato Dentro (3) Gouveia (1) e Diamantina (1) Os dados satildeo da Comissatildeo Proacute Iacutendio de Satildeo Paulo (CPISP) Disponiacutevel em httpwwwcpisporgbrcomunidadeshtmlbrasilmgmg_mapa_zoom2html Acesso em 161015 164 ldquoQuilombos de Minas Gerais no seacuteculo XXI - Norte e nordeste do Estadordquo Disponiacutevel em
httpwwwcedefesorgbrindexphpp=colunistas_detalheampid_pro=2 Acesso em 161015
187
FIGURA 26 Regiatildeo no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute identificado pelo traccedilado vermelho FONTE ndash Google Maps
188
A conexatildeo entre as famiacutelias quilombolas de Manoel Ciriaco e de Vila Nova
para aleacutem das relaccedilotildees de parentesco expressou-se inclusive no fato de Seu Joatildeo
conhecer muitas pessoas em comum com os quilombolas de Vila Nova Quando
morava no Itambeacute ele ia da fazenda de Zinho Gonccedilalves para quem trabalhava ateacute
Satildeo Gonccedilalo pois transportava para laacute cachaccedila que levava amarrada na cangaia do
burro Os moradores quilombolas da comunidade Vila Nova tambeacutem trabalharam para
o fazendeiro Zinho Gonccedilalves que era de uma famiacutelia abastada da regiatildeo com
propriedade em Santo Antocircnio do Itambeacute
Ao chegarmos na vila deixamos nossas coisas na casa de Jovelina que
funciona tambeacutem como ldquohospedagem familiarrdquo uma forma de receber os turistas que
visitam a localidade Nossa recepccedilatildeo pelos membros da comunidade quilombola ldquoVila
Novardquo no entanto natildeo foi como turistas mas como pesquisadores e quilombolas do
Paranaacute que estavam ali com o intuito de conhecer mais sobre a comunidade e
tambeacutem em busca de levantar possiacuteveis laccedilos de parentesco entre eles Jovelina
apesar de ser nossa anfitriatilde conviveu menos conosco por conta de seus afazeres
As tias maternas de Jovelina irmatildes de Margarida ndash D Necila e D Maria
Geralda ndash foram para mim e Geralda as nossas principais anfitriatildes Passamos horas
em conversas visitas a parentes passeios refeiccedilotildees rodas de muacutesica entrevistas e
viacutedeos Seu Joatildeo Adir e Cassius foram recepcionados por Seu Adatildeo e por seu irmatildeo
Jesu e juntos entre os homens fizeram tambeacutem os seus proacuteprios trajetos para
conhecer Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras
Foram muitas trocas de experiecircncias das quais destaco o interesse de
Geralda em aprender com aquelas senhoras bem como com demais moradores
quilombolas da comunidade sobre plantas medicinais oraccedilotildees e benzimentos
Geralda comentou durante uma de nossas conversas ldquoA gente que benze a gente
tem que ter remeacutedio e eu sei que ocecircs saberdquo Ela entatildeo me pediu para que eu
anotasse o nome das ervas medicinais e para o que elas serviam ndash suas formas
terapecircuticas de uso D Necila e D Maria Geralda foram se lembrando das plantas e
eu fui anotando e registrando com o gravador de voz a marcelica (ldquopra dar pra
crianccedilardquo) o marcelicatildeo (dor de barrigadiarreia) o quebra-pedra (rim) a badama (ldquobom
pro cabelordquolavar a cabeccedila) o quitoco (ajuda no periacuteodo de menstruaccedilatildeoldquobom pra
tudordquo tambeacutem eacute usado como tempero)
189
A carqueja o funcho o guineacute baiano o taquarinho do brejo a salsa parreira
o melatildeozinho de Satildeo Caetano entre diversas ervas foram assunto dos nossos
passeios pela comunidade e pelos quintais das casas quilombolas Conhecimentos
portanto que iam sendo compartilhados por meio de um monitoramento e de
engajamento ativos ao longo deste caminhar (INGOLD 2007 p 76) Seu Joatildeo ia
indicando os remeacutedios para Geralda e Adir que estavam sempre atentos buscando
reconhececirc-los e apontaacute-los pelo caminho Geralda comentou que em GuaiacuteraPR tem
remeacutedio que eacute difiacutecil de achar soacute no raizeiro Ela se lembrou que sua matildee havia levado
consigo desde Minas dentre outras sementes de quitoco para plantar e tinha mudas
no siacutetio em GuaiacuteraPR Junto com as pessoas em seus caminhos de migraccedilatildeo
portanto havia tambeacutem um circuito de sementes e plantas para seus quintais e
plantaccedilotildees que cultivariam em outras regiotildees Seu Joatildeo Adir e Geralda quando
retornaram desta viagem tambeacutem fizeram questatildeo de levar na bagagem sementes e
mudas que foram sendo separadas ao longo do percurso Guardadas como
lembranccedilas estabeleceriam novas conexotildees e continuidades entre eles e sua regiatildeo
de origem
Necessaacuterio frisar que Maria Geralda e Necila (ambas com mais de setenta
anos) Margarida (63) Adatildeo (em torno de 60) e Jesu (um pouco mais novo) nossos
principais interlocutores nesta comunidade satildeo filhos do casal Jovelina Calisto dos
Santos e Raimundo Gomes Ambos Jovelina e Raimundo satildeo primos de primeiro
grau filhos dos irmatildeos Ana Pedro da Silva e Clarindo Gomes Gouveia
respectivamente Os irmatildeos Ana e Clarindo por sua vez satildeo filhos do casal ancestral
ao qual se faz referecircncia na comunidade quilombola ldquoVila Novardquo Francisco Lucindo e
ldquoMatilirdquo ndash Matilde Balbina de Arauacutejo
Seu Joatildeo conheceu por exemplo Raimundo Gomes e seu irmatildeo Elias
Gomes conhecido por ldquotio Iliardquo sobre quem contam em ldquoVila Novardquo histoacuterias de que
foi escravo Nesta famiacutelia tambeacutem haacute vaacuterios casos de parentes que como na histoacuteria
de Manoel Ciriaco saiacuteram da regiatildeo em busca de oportunidades de trabalho no estado
de Satildeo Paulo sendo que nunca mais souberam notiacutecia sobre alguns deles Joseacute
Bernardo filho mais velho de Jovelina e Raimundo por exemplo perdeu contato com
a famiacutelia e soacute muitos anos depois os irmatildeos encontraram seus sobrinhos e souberam
que Joseacute jaacute era falecido como nos contou seu Adatildeo
190
Eu e Cassius ficamos muito satisfeitos em ver a alegria de Adir Geralda e Seu
Joatildeo nos dias que passamos em Satildeo Gonccedilalo Esta alegria parecia decorrente da
sensaccedilatildeo de estarem em um ambiente de iguais em contraste com os relatos sobre
as experiecircncias de discriminaccedilatildeo que sofrem no Maracaju dos Gauacutechos onde se
percebem separados dos demais Seu Joatildeo que natildeo pegava no violatildeo segundo ele
desde que saiu de Minas tocou com o pessoal da comunidade nos trecircs dias que laacute
permanecemos Adir estava muito empolgado com aquele lugar no qual ainda se
preservava tanto as tradiccedilotildees dos antepassados como o uso dos fornos de barro e
de pedra presente em vaacuterias das casas pelas quais passamos Mesmo com todo seu
desejo de chegar em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Adir sofreu para se despedir dos
novos amigos Geralda estava muito feliz em conversar com aquelas senhoras que
lhe remetiam ao melhor das mulheres de sua famiacutelia muita sabedoria conhecimentos
histoacuterias de luta e resistecircncia receptividade religiosidade entre outras qualidades
Estas histoacuterias eram como um mosaico de experiecircncias nas quais podiam projetar o
modo de vida de seus antepassados pois viveram em um mesmo territoacuterio cultural
regional e tiveram contato entre si D Necila e D Maria Geralda por exemplo
conheceram Maria Olinda matildee de Seu Joatildeo e Sebastiatildeo Vicente irmatildeo de Manoel
FIGURA 27 Geralda e D Necila na frente do forno de barro no quintal da casa de D Necila
191
323 Enfim em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Na noite de segunda-feira professor Matheus e Tiago foram nos buscar no
distrito de Satildeo Gonccedilalo para nos levarem a Santo Antocircnio do Itambeacute nossa uacuteltima
etapa da viagem Eles jaacute tinham nos informado que haviam combinado com o Instituto
Estadual de Florestas (IEF) que ficariacuteamos hospedados na sede do Parque Estadual
do Pico do Itambeacute Esta sede administrativa eacute uma grande casa colonial que fazia
parte da antiga Fazenda Satildeo Joatildeo adquirida pelo IEF Quando estaacutevamos chegando
na sede do Parque jaacute passava da meia noite Seu Joatildeo reconheceu entatildeo que
aquela era a mesma fazenda de Zinho Gonccedilalves para quem trabalhou muitos anos
Seu Joatildeo jaacute havia nos relatado que ele entregava cachaccedila em Satildeo Gonccedilalo
depois voltava para um lugar chamado Condado e tinha que carregar tambeacutem ateacute o
Itambeacute trabalhando para Zinho Ele levava a cachaccedila em pipa amarrada em cima do
lombo do burro e caminhava longas distacircncias puxando aquele peso sendo que de
trecircs em trecircs dias ele refazia todo o percurso Nos contou que um dia ele percebeu que
estava ldquotrabalhando como escravordquo pois o que recebia natildeo era suficiente nem para a
alimentaccedilatildeo de sua famiacutelia Depois que havia voltado do Itambeacute jantou primeiro e foi
falar para o patratildeo que natildeo ia trabalhar mais para ele Ao relato de Seu Joatildeo Adir
completou ldquoeacute o quilombo invadindo a casa granderdquo
Seu Joatildeo com seu conhecimento sobre a regiatildeo e com sua capacidade de
acionar uma rede social mais ampla de parentesco foi o nosso ldquodescobridor de
caminhordquo durante a primeira viagem a Minas Gerais o que se intensificou enquanto
estivemos em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ldquoDescobridor de caminhordquo eacute uma
expressatildeo cunhada pelo antropoacutelogo Tim Ingold cujas reflexotildees servem de base para
a nossa anaacutelise sobre a importacircncia do movimento para o modo de articulaccedilatildeo da
identidade quilombola do grupo Segundo o autor
Os lugares natildeo tecircm posiccedilatildeo e sim histoacuterias Unidos pelos itineraacuterios de seus habitantes os lugares existem natildeo no espaccedilo mas como noacutes em uma matriz de movimento Chamarei essa matriz de ldquoregiatildeordquo Eacute o conhecimento da regiatildeo e com isso a habilidade de uma pessoa situar-se na sua posiccedilatildeo atual dentro do contexto histoacuterico de jornadas efetuadas anteriormente ndash jornada para lugares de lugares e em volta de lugares ndash que distingue o nativo do forasteiro Assim descobrir-caminho consiste em mover-se de um lugar para outro em uma regiatildeo (INGOLD 2005 p 76)
192
A simples posse de um mapa portanto natildeo poderia substituir a presenccedila de
seu Joatildeo como um descobridor de caminhos com sua bagagem de experiecircncias e
com sua percepccedilatildeo do ambiente produzida ao longo dos anos em seus movimentos
que lhe permitiram realizar um mapeamento da regiatildeo a qual consiste em uma ldquorede
mais ampla de idas e vindasrdquo (INGOLD 2005 p 84) Seu Joatildeo foi assim o elo que
pocircde nos conectar e nos inserir nesta rede de lugares e parentes ao reconstituir um
circuito de relaccedilotildees sociais locais
No primeiro dia em Santo Antocircnio Itambeacute pela manhatilde depois que dormimos
a primeira noite na sede do parque terccedila-feira 10 de marccedilo saiacutemos pela estrada de
terra que liga a sede ao pequeno centro de Santo Antocircnio do Itambeacute No caminho
Adir comentou ldquoEacute como se noacutes voltasse a histoacuteria voltasse a paacutegina da nossa vida do
comeccedilo quando nosso pai andava por tudo Eu quero passar por todas as ruas local
onde ele passavardquo Novamente estava sendo reforccedilada a referecircncia ao caminhar
como forma de dar sentido ao modo de vida de seus antepassados naquele lugar ao
sacrifiacutecio que era andar por todos aqueles morros com as coisas que levavam em
cima da cabeccedila por leacuteguas e leacuteguas pois moravam em um siacutetio longe da vila do
Itambeacute Se os caminhos satildeo parte fundamental na construccedilatildeo da memoacuteria coletiva
quilombola na nossa experiecircncia da primeira viagem continuavam sendo referecircncia
central na percepccedilatildeo de Adir Geralda e Seu Joatildeo
Nesta estrada de chatildeo que percorriacuteamos logo avistamos acima uma primeira
casa Ali Seu Joatildeo se lembrou que antigamente morava um parente Quem nos
recebeu foi Zeacute Simatildeo que estava em frente da casa e tambeacutem nos avistou Seu Joatildeo
lhe perguntou se ele lembrava de Sebastiatildeo Vicente o tio dele irmatildeo de Manoel que
ficou morando nas terras da matildee Izidora Zeacute Simatildeo em resposta disse
Zeacute Simatildeo Entatildeo tem um moccedilo aqui que o senhor deve conhecer o Seu
Daniel
Seu Joatildeo Ele eacute filho de quem
Zeacute Simatildeo Ele eacute desse povo mesmo da mesma parentagem desse povo
mesmo de
Adir Sebastiatildeo Vicente
Zeacute Simatildeo Ele eacute filho de uma tal esqueci o nome da matildee dele filho de um
tal de Joatildeo Domingo
193
Seu Joatildeo Joatildeo Domingo Conheci demais Joatildeo Domingo era tio desse aqui
(vira-se para Adir e continua) esse aqui eacute meu irmatildeo da segunda mulher
Adir Irmatildeo de Maria Bernarda Ele taacute ai
Zeacute Simatildeo Taacute ai vou chamar ele
(Seu Daniel aparece na porta da casa um senhor negro de 80 anos de idade
cabelos brancos peacutes descalccedilos calccedila rasgada)
Seu Joatildeo Eacute o senhor mesmo que eu tocirc querendo ver E o senhor como eacute que
taacute O senhor lembra de mim (Estende a matildeo para cumprimentaacute-lo)
Seu Daniel Natildeo tocirc conhecendo natildeo
Seu Joatildeo Noacutes dois natildeo levava milho laacute pro senhor moer pra noacutes
Seu Daniel Onde Eu carregava milho pra Sebastiatildeo Dama
Seu Joatildeo Eu sou filho de Manoel Ciriaco sobrinho de Sebastiatildeo Paulo
Seu Daniel Sobrinho de Sebastiatildeo Paulo Natildeo tocirc lembrado mais
Seu Joatildeo O senhor natildeo lembra de Joatildeo natildeo
Seu Daniel Joatildeo
Seu Joatildeo Joatildeo que eles falavam Joatildeo de Izidora
Seu Daniel Joatildeo de Izidora Lembro Eacute o cecirc eacute o cecirc queacute eacute Joatildeo
Seu Joatildeo Eacute eu sou neto dela
Seu Daniel Oacute quanto tempo
Seu Joatildeo Taacute com trinta e quatro anos que eu saiacute daqui
Seu Daniel Ele eacute filho de Maneacute Paulo
Geralda Aiacute oacute o nome do meu pai aqui eacute Maneacute Paulo
Zeacute Simatildeo Vocecirc que eacute Joatildeo Joatildeo de Izidora
Seu Joatildeo soacute pocircde ser reconhecido na medida em que foi inserido na rede de
parentesco local Com a referecircncia ao seu nome de registro Joatildeo Loriano dos Santos
ningueacutem poderia identificaacute-lo Foi o que ocorreu quando durante a pesquisa para o
segundo relatoacuterio antropoloacutegico Cassius esteve em frente agrave casa das cunhadas de
seu Joatildeo D Regina e D Zulmira perguntando por parentes de Joatildeo Loriano dos
Santos e o casal que o recebeu (filha de Zulmira e seu marido) respondeu que natildeo
conhecia esta pessoa Manoel Ciriaco por sua vez era conhecido como ldquoManeacute Paulordquo
194
ou ldquoManeacute de Paulardquo ou ainda ldquoManeacute de Izidorardquo pois era filho de Joaquim de Paula e
Izidora Nesta forma de nominaccedilatildeo usa-se o nome da pessoa acompanhado de
expressatildeo que aponta a identificaccedilatildeo a partir de um antepassado ou cocircnjuge
Seu Daniel como descobrimos no comeccedilo da conversa eacute primo de primeiro
grau de Ana Rodrigues matildee de Adir e Geralda O pai dele Joatildeo Domingos era irmatildeo
de Maria Bernarda matildee de Ana Rodrigues Ficamos por volta de trecircs horas na casa
em que moram Seu Daniel sua filha seu genro e seu neto com meses de vida Seu
Daniel nos recebeu muito bem e estava muito feliz em rever Seu Joatildeo um velho
amigo e conhecer Adir e Geralda seus primos de segundo grau Conversamos
longamente com ele enquanto eu e Cassius adicionaacutevamos as informaccedilotildees na aacutervore
genealoacutegica da famiacutelia especialmente sobre dados a respeito da famiacutelia de sua tia
paterna Maria Bernarda sobre a qual ele guardava muitas memoacuterias
FIGURA 28 Adir gravando a conversa com Seu Daniel
3231 Encontro com D Zulmira D Regina e D Ana Raimunda
Quando saiacutemos da casa de seu Daniel fomos procurar junto com Zeacute Simatildeo
a casa de D Regina e D Zulmira cunhadas de Seu Joatildeo e irmatildes de D Maria das
Dores que havia enviado por noacutes uma mensagem em viacutedeo para ser mostrada a seus
irmatildeos ldquoos que tive vivordquo No caminho logo encontramos a filha de D Regina
Aparecida que seu Joatildeo reconheceu ao avistaacute-la na rua quando ela e outras
195
mulheres voltavam para casa da roccedila Aparecida muito feliz de reencontrar o tio nos
levou entatildeo direto para a casa de D Zulmira pois sua matildee D Regina estava longe
trabalhando na roccedila Primeiro Aparecida foi na frente e contou para a tia D Zulmira
que Seu Joatildeo o cunhado dela estava chegando e que a irmatilde D Maria das Dores natildeo
tinha vindo mas que deram notiacutecia que ela estava bem D Zulmira jaacute se emocionou
muito com a novidade e agradeceu a Deus a Jesus Cristo louvando a possibilidade
deste reencontro Abraccedilou Seu Joatildeo e depois ele Adir e Geralda foram logo lhe
dando notiacutecias dos familiares que tinham saiacutedo dali para o Paranaacute como Manoel e
Ana que jaacute tinham falecido Olegaacuterio e Jovelina que estatildeo vivos Ela tambeacutem foi
atualizando seu Joatildeo e contando sobre os parentes que continuaram morando na
regiatildeo
Mostramos entatildeo para D Zulmira o viacutedeo com a mensagem enviada por sua
irmatilde D Maria das Dores a qual mencionamos acima D Zulmira falou que natildeo
achava que veria eles mais
D Zulmira O meu Santiacutessimo Sacramento porquecirc que some assim Ai meu nosso Senhor Que benccedilatildeo de Jesus Deus Deus achou
Cassius Eacute sua irmatilde
D Zulmira Eacute minha irmatilde meu fio Ai meu Deus Eacute das mais nova Ela deve ter uns sessenta anos Ela taacute muito bonita Eacute ela mesmo
Adir Eacute ela
D Zulmira Como eacute que eu tocirc gente Que Deus Ocirc minha Nossa Senhora cecirc trouxe o meu povo Ocirc meu Pai Eterno o Senhor trouxe o meu povo pra mim conhecer ainda (se abaixa com as matildeos no rosto e comeccedila a chorar) Graccedilas a Deus Faz vinte anos ou vinte e cinco
Adir Eacute muita emoccedilatildeo
D Zulmira Eu perdi tantos irmatildeo
Adir Mas a senhora ainda vai ver ela Se Deus quiser a senhora vai ver
O nosso encontro com D Zulmira (73 anos) e depois com D Regina (78
anos) que logo chegou da roccedila foi uma experiecircncia uacutenica para todos os presentes
Segundo elas receber notiacutecias da irmatilde e rever o cunhado era a concretizaccedilatildeo de uma
intercessatildeo divina pela qual sempre rezavam buscando esperanccedilas para acreditar
que um dia este reencontro poderia acontecer Em seguida pedimos para que elas
196
mandassem uma mensagem que levariacuteamos de volta para D Maria das Dores Dona
Regina que estava mais calma comeccedilou mandando o seu recado
Hoje eu tocirc chegando da roccedila e tive a maior surpresa com a maior satisfaccedilatildeo cumadi Maria de ver o meu cumpadi Joatildeo mais a famiacutelia dele Eu tive muito prazer que eu vivia sempre na cabeccedila achando que nem vivo ocecircs era porque ocecircs tambeacutem natildeo dava nem notiacutecia pra mim E eu perdi o contato com ocecircs porque tomaram o endereccedilo e nunca mais me deram Entatildeo eu fiquei sem jeito de ligar pra vocecircs Agora ocecircs de laacute pra caacute tinha jeito que eacute Santo Antocircnio do Itambeacute Entatildeo cumadi Maria hoje eu tocirc no maior prazer na maior riqueza sou veia e pra mim fiquei nova de prazer de saber notiacutecia da minha irmatilde com a famiacutelia dela e meu cumpadi Joatildeo Cumadi Maria breve noacutes vamos encontra se Deus quiser Agora eu natildeo vou natildeo mas eu vou
Dona Zulmira depois tambeacutem deixou sua mensagem
Cumadi Maria eu minha fia graccedilas a Deus tive tanto prazer que eu vi a sua famiacutelia que chegou de laacute a moccedila e o rapaz o cumpadi Joatildeo o irmatildeo dele a irmatilde dele eu fiquei tatildeo emocionada de vecirc essa famiacutelia prazerosa que Jesus mandou pra noacutes nesse horaacuterio certo que chegou devia de ser meio dia Eu fiquei tatildeo emocionada que eu vou falar procecirc que eu natildeo tive ideia de dar pra eles nada a ideia que eu tive foi de chorar Fiquei tatildeo feliz tatildeo satisfeita tatildeo alegre porque sempre eu pensava assim ldquoEacute de vera a minha irmatilde foi embora essa eu natildeo vejo ela maisrdquo Mas Deus abenccediloou que trouxe eles em paz com vida e sauacutede e assim eacute de trazer a senhora tambeacutem E que breve se Deus quiser noacutes vamos encontrar E cecirc vecirc que depois que a senhora foi noacutes perdeu nossa matildee noacutes perdeu nosso pai noacutes perdeu meu irmatildeo Erosino a Benedita e a Margarida entatildeo cecirc sabe Eu fiquei assim pro rumo natildeo sube nem cumprimentar eles como eles merecia de tanta emoccedilatildeo que eu fiquei Mas eu fiava em Deus que eu esperava sempre que Deus ia abenccediloar que um dia que ocecircs tivesse a par ocecircs vinha caacute e noacutes encontrava Eu fiquei tatildeo feliz que soacute cecirc vendo Natildeo soube nem tratar eles como eles merecia E a companhia deles a moccedila mais o rapaz que tava com eles de fora que tambeacutem eacute outros irmatildeo tudo que eu fiquei toda feliz e tudo eu considerei por minha famiacutelia E Deus que te abenccediloa e algum dia noacutes encontra
A experiecircncia de ter um parente perdido era para elas muito angustiante
pois se a pessoa morre eacute porque ldquoDeus levardquo mas no caso de D Maria das Dores a
anguacutestia estava nesta duacutevida que se estendia por anos da ausecircncia de qualquer
notiacutecia Fazia dezenove anos que D Maria das Dores tinha ido pela uacuteltima vez para
Santo Antocircnio do Itambeacute A responsabilidade de fazer o movimento para o reencontro
como pode se depreender do comentaacuterio de D Regina ndash ldquoAgora ocecircs de laacute pra caacute
tinha jeito que eacute Santo Antocircnio do Itambeacuterdquo ndash afinal de contas eacute atribuiacuteda agravequeles que
migraram pois sabiam para onde voltar para encontrar os parentes diferente dos que
permaneceram na regiatildeo para quem seria muito mais difiacutecil tal busca
197
FIGURA 29 D Zulmira e D Regina mandam mensagens para a irmatilde D Maria das Dores
Com o pouco tempo que passamos com D Regina e D Zulmira criamos com
elas uma conexatildeo muito forte Eu e Cassius entatildeo nos comprometemos a ajudar a
levar a D Maria das Dores para reencontraacute-las assim que fosse possiacutevel Com D
Zulmira e D Regina tambeacutem conversamos sobre a aacutervore genealoacutegica com enfoque
nos antepassados e compreendemos entatildeo o viacutenculo de parentesco da famiacutelia de
Manoel Ciriaco com a comunidade quilombola ldquoVila Novardquo165
O viacutenculo de parentesco se daacute por meio de D Maria das Dores que eacute filha de
Luiza Eleoteacuteria da Silva e neta de Virgulino Martins Gomes Virgulino por sua vez era
irmatildeo de Clarindo Gomes e filho de Matili e Francisco Lucindo o casal ancestral
estruturante da comunidade quilombola ldquoVila Novardquo Clarindo Gomes era pai de
Raimundo Gomes e avocirc de seu Adatildeo D Necila D Maria Geralda e Jesu nossos
anfitriotildees em Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras Portanto Raimundo Gomes filho de
Clarindo eacute primo de primeiro grau de Luzia Eleoteacuteria filha de Virgulino e matildee de D
Maria das Dores
165Aleacutem da importacircncia das relaccedilotildees de parentesco destacadas ateacute aqui eacute necessaacuterio aprofundar a
pesquisa a respeito das relaccedilotildees de compadrio que parecem centrais tambeacutem neste caso para reforccedilar os viacutenculos de parentesco
198
Por meio de dois casamentos a famiacutelia de Luzia Eleoteacuteria da Silva se conecta
com a famiacutelia de Manoel Trata-se do casamento entre D Maria das Dores (filha de
Luzia) e Seu Joatildeo (filho de Manoel) e entre Zeacute (filho de Sebastiatildeo Vicente irmatildeo de
Manoel Ciriaco) e Benedita (irmatilde de D Maria das Dores) D Maria das Dores nos
falou tambeacutem da possibilidade de uma conexatildeo entre as famiacutelias na geraccedilatildeo
ascendente mais distante agrave qual tivemos referecircncias Ela achava que ldquoVovoacute Matilirdquo
sua bisavoacute era irmatilde de Joseacute Domingos pai de Maria Bernarda e avocirc de Ana
Rodrigues (esposa de Manoel) bisavocirc portanto de Adir e Geralda conforme Excerto
Genealoacutegico apresentado abaixo Em alaranjado destacam-se os trecircs membros da
famiacutelia D Jovelina D Maria das Dores e Seu Joatildeo os quais efetivamente retornaram
a Minas Gerais por meio destas duas viagens pois laacute jaacute haviam morado Em amarelo
destacam-se os parentes com quem eles se encontraram durante as duas viagens
199
FIGURA 30 Excerto Genealoacutegico 4
200
Segundo D Zulmira a famiacutelia de ldquovovoacute Matilirdquondash originaacuteria de Aacutegua Santa ndash era
muito pobre Este lugar atualmente estaacute abrangido pelo Parque Estadual do Pico do
Itambeacute uma unidade de conservaccedilatildeo de proteccedilatildeo integral em decorrecircncia da qual os
uacuteltimos moradores foram retirados da aacuterea e reassentados Esta localidade de acordo
com D Zulmira era ldquoterra de ningueacutemrdquo uma ldquoterra de heranccedilardquo onde passaram
muitas dificuldades e por isso de laacute saiacuteram Com tais explicaccedilotildees pudemos comeccedilar
a compreender a conexatildeo entre a famiacutelia de D Maria das Dores e a famiacutelia da
comunidade quilombola ldquoVila Novardquo que tambeacutem originaacuteria de Aacutegua Santa bem como
conhecer um pouco de sua histoacuteria de deslocamentos dentro de uma mesma
regiatildeo166
Depois que saiacutemos da casa de D Zulmira e D Regina naquele dia 10 de
marccedilo voltamos para a casa de Zeacute Simatildeo pois ele tinha dito que sabia o paradeiro
de D Ana Raimunda irmatilde de Manoel Ciriaco que ajudou a criar Seu Joatildeo junto com
a avoacute Izidora Contratamos uma van escolar para nos levar de Itambeacute ao Serro na
casa que Zeacute Simatildeo indicava como sendo de D Ana Raimunda Natildeo tiacutenhamos certeza
se era a mesma pessoa de quem estaacutevamos falando pois alguns como a proacutepria D
Zulmira achavam que ela jaacute tivesse morrido Mas Zeacute Simatildeo genro de Seu Daniel
que nos contou que tambeacutem foi criado por Ana Raimunda afirmou que tinha ido visitaacute-
la recentemente Quando chegamos em sua casa logo na primeira pergunta que Adir
fez jaacute tivemos a confirmaccedilatildeo ldquoAna Raimunda irmatilde de Sebastiatildeo de Paulardquo Ela
respondeu ldquoEacute eu mesmordquo
Ana Raimunda da Silva nasceu em 19 de fevereiro de 1925 e tem 87 anos
Viuacuteva seu companheiro Joseacute Teoacutefilo dos Reis faleceu em 31 de agosto de 2014
quando ambos estavam hospitalizados Depois da morte de Teoacutefilo e de sua
recuperaccedilatildeo D Ana continuou morando na mesma casa e ldquopor natildeo ter parentes que
moram proacuteximordquo passou a receber cuidados da vizinhanccedila contando com uma
cuidadora chamada ldquoFatinhardquo Passou a receber tambeacutem o auxiacutelio de ldquopensatildeo por
morterdquo ndash com o intermeacutedio de Josiane outra vizinha que lhe auxiliava com as questotildees
financeiras e prestava esclarecimentos ao Centro de Referecircncia Especializado de
Assistecircncia Social (CREAS) ndash segundo consta do relatoacuterio da assistente social que
Josiane e Fatinha fizeram questatildeo de nos mostrar
166 Questatildeo que como jaacute mencionamos foi apontada pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico a partir da pesquisa realizada por Cassius em 2012 a qual merece desdobramento em pesquisa posterior
201
Seu Joatildeo se apresentou ldquoE a senhora lembra de mim Joatildeo de Izidora que a
senhora criourdquo E jaacute foi logo falando que iria levaacute-la embora com ele para Presidente
PrudenteSP Geralda tambeacutem se apresentou como filha de ldquoManeacute de Paulardquo e
perguntou sobre quais filhos de Maneacute que D Ana ainda tinha lembranccedila D Ana se
lembrou primeiro da sobrinha Jovelina e entatildeo Geralda lhe deu o recado de sua irmatilde
ldquoEla disse que vai vir aqui pra buscar a senhorardquo D Jovelina e D Ana Raimunda
puderam conversar por telefone e ficaram muito felizes depois de cinquenta e nove
anos sem se falarem Jovelina estava desde que saiacutemos de Presidente PrudenteSP
esperando notiacutecias se tiacutenhamos conseguido encontrar sua tia que junto com a avoacute
Izidora cuidou dela de Joatildeo e de Olegaacuterio quando eram pequenos e ficaram sem a
matildee Maria Olinda que havia falecido
Noacutes ficamos horas conversando com ela sobre os parentes e ela nos contou
muitas histoacuterias D Ana Raimunda eacute irmatilde de Manoel Ciriaco apenas por parte de pai
ndash Joaquim Guilherme de Paula ndash assim como Sebastiatildeo Vicente de Paula filhos de
matildees diferentes informaccedilatildeo que Adir e Geralda desconheciam O uacutenico dos irmatildeos
que era filho de Izidora era Manoel Ciriaco Ana Raimunda contou que ela eacute filha de
Joaquim de Paula Guilherme com a sobrinha de Izidora Luiza Eufraacutesio da Silva
Quando Ana nasceu sua matildee Luiza tinha a intenccedilatildeo de em seguida matar o bebecirc
pois era fruto de uma gravidez indesejada D Ana contou entatildeo que Izidora mesmo
com a traiccedilatildeo do marido interveio para lhe salvar enrolando-a na saia Depois disso
sua matildee bioloacutegica Luiza foi embora e ela nunca mais a viu Izidora foi quem a criou
e em retribuiccedilatildeo D Ana cuidou dela ateacute sua morte
Uma hora no meio da conversa D Ana comentou com Fatinha ldquoVocecirc viu a
borboleta A borboleta aqui oacute todo mundordquo E D Ana entatildeo nos explicou sobre o
que estava falando
ldquoChegou uma borboleta aqui de tarde ela chegou ai na porta fez assim oacute (fez o gesto da borboleta voando com a matildeo) e sumiu Ai eu falei assim ldquoUai Fatinha a borboleta taacute chegando aqui na porta quarque coisa eacute alguma notiacutecia ela vai dar E laacute em casa no quarto tem uma direto laacuterdquo (risos)
A borboleta veio anunciando para D Ana a chegada dos sobrinhos Ela havia
recebido haacute algum tempo a notiacutecia por outros parentes da parte de seu irmatildeo
Sebastiatildeo Vicente de Paula que moram na regiatildeo de que seus sobrinhos Olegaacuterio e
Joatildeo jaacute haviam falecido Segundo ela a notiacutecia que eles lhe haviam dado visava
202
confirmar o domiacutenio que o filho de Sebastiatildeo Vicente Geraldo tem hoje sobre a terra
que foi de Izidora E D Ana nos contou que desde que recebeu a notiacutecia rezava
para alma de Joatildeo e Olegaacuterio todos os dias
FIGURA 31 Adir e Geralda com a tia Ana Raimunda
Ela natildeo podia imaginar que naquele dia Seu Joatildeo iria visitaacute-la trazendo
consigo mais dois sobrinhos para ela conhecer Geralda e Adir que nasceram no
Paranaacute E D Ana agradeceu ldquoGraccedilas a Deus Eacute Deus que trouxe ocecircs Todo mundordquo
D Ana explicou que natildeo poderia ir agora com eles embora de Serro pois ela ainda
precisava ficar por mais um tempo ali para poder resolver algumas questotildees
pendentes sobre a heranccedila de Teoacutefilo seu marido que faleceu Segundo nos contou
com tristeza os parentes que moram na regiatildeo natildeo visitam mais ela quase natildeo tecircm
contato Ressentiu-se de ficar muito sozinha pois estaacute debilitada e precisando de
cuidados Com a diabetes ela ficou com uma ferida que estava aberta no peacute e que a
impedia de caminhar sem apoio
Noacutes entatildeo combinamos que iriacuteamos manter contato para que ela pudesse ir
passar um tempo com eles no estado de Satildeo Paulo e no Paranaacute Voltando para a
sede do parque naquele 10 de marccedilo de 2015 conversaacutevamos sobre como aquele
tinha sido um dia que entrou para a histoacuteria da famiacutelia No mesmo dia haviacuteamos
encontrado as pessoas que eles mais almejavam as irmatildes de D Maria das Dores D
Zulmira e D Regina e a irmatilde de Manoel Ciriaco Ana Raimunda
203
3232 Padre Joviano o pai de criaccedilatildeo de Maria Olinda
No outro dia o quinto e uacuteltimo que ficamos na regiatildeo passamos na igreja
matriz de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Geralda reforccedilou vaacuterias vezes como estava
realizada por chegar naquele lugar sagrado pois nunca tinha imaginado que um dia
poderia ir na igreja que foi frequentada por seu pai e sua matildee onde eles tambeacutem se
casaram
FIGURA 32 Geralda faz uma reverecircncia em frente agrave Igreja Matriz de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
A ldquoIgreja Matriz de Santo Antocircniordquo eacute a uacutenica igreja catoacutelica do municiacutepio
Construiacuteda no seacuteculo XVIII se tornou paroacutequia no ano de 1868 Apesar do desgaste
da construccedilatildeo com o passar do tempo a imagem de Santo Antocircnio estaacute preservada
e fica em destaque do lado do altar As histoacuterias sobre a imagem do santo remontam
agrave eacutepoca de construccedilatildeo da igreja matriz Conta-se como a imagem eacute viva167 pois havia
167 ldquoOs santos constituem o exemplo mais claacutessico de objetos ndash objetos de barro ou madeira objetos
narrativos objetos sem mais ndash e de ldquofeitichesrdquo que se manifestam como atores que em cada um de seus avatares natildeo se comportam como intermediaacuterios ou como signos transparentes mas como
204
sido construiacuteda uma capela para abrigaacute-la em outro lugar mas a imagem aparecia no
local onde fica atualmente a igreja como um sinal do santo de que era ali o lugar onde
a igreja deveria ser construiacuteda
Esta era a igreja em que Padre Joviano atuava Como comentamos acima
Padre Joviano foi quem criou Maria Olinda matildee de Joatildeo Jovelina e Olegaacuterio Sobre
ele contaram como era muito caridoso e amoroso com todos e por isso eacute ainda hoje
muito estimado pelo povo do lugar que o considera santo168 Ele estaacute enterrado dentro
da igreja onde as pessoas acendem velas e fazem pedidos por sua intercessatildeo
Joviano Alves Diamantino nasceu em 08 de julho de 1874 e faleceu em 10 de maio
de 1965 com 91 anos Como D Maria Geralda e D Necila haviam nos contado ele
era proveniente do distrito de Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras tendo ido depois morar
em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Acima de seu tuacutemulo estaacute afixado em uma placa os seguintes dizeres ldquoComo
Pedro foi pedra fundamental dos ensinamentos de Cristo Padre Joviano foi o pilar da
feacute do povo desta terrardquo Natildeo por acaso a data de sua morte eacute celebrada no calendaacuterio
cultural do municiacutepio conforme consta na paacutegina virtual da prefeitura169 Em duas
casas que visitamos de pessoas que foram suas contemporacircneas no municiacutepio de
Santo Antocircnio do Itambeacute ndash de Seu Daniel e de D Regina ndash vimos a imagem do padre
em um porta-retrato afixado na parede
mediadores razoavelmente opacos () Os meus livros estatildeo cheios de exemplos de como as imagens sagradas (essas imagens tatildeo desprezadas por todos os iconoclastas) satildeo muito mais ativas do que parece a sua materialidade natildeo passa despercebida aos fieacuteis que a partir dela elaboram novos relatos a respeitordquo (CALAVIA SAEZ 2009 p 215) 168 Segundo o antropoacutelogo Calavia Saez os santos satildeo achados e domesticados por meio de um
processo de canonizaccedilatildeo da Igreja Catoacutelica mas natildeo satildeo instituiacutedos pela instituiccedilatildeo pois tem origem na margem como no caso dos cultos a mortos praticamente anocircnimos (CALAVIA SAEZ p 200) 169 Disponiacutevel em httpsantoantoniodoitambemggovbrcidadecalendario-de-eventos Acesso em
121015
205
FIGURA 33 Retrato de Padre Joviano na casa de Seu Daniel
Padre Joviano eacute portanto personagem destacado da histoacuteria local como
tambeacutem se evidencia no hino municipal
Estribilho ndash I Para alto para frente Com civismo amor e feacute Povo forte nobre gente Santo Antocircnio do Itambeacute II Das bandeiras heroacuteicas e rudes Tu herdastes os anseios e a feacute Guardiatildeo de lendaacuterias virtudes Junto a ti se levanta o Itambeacute III Foste em Minas o berccedilo do prelo Esta gloacuteria tu tens sem rival Com Geraldo Pacheco de Melo170 Desfraudando o pendatildeo liberal IV Joviano chamou-se o teu Santo Outro igual nunca mais tu teraacutes Seja sempre teu nome o teu canto Numa prece de amor e de paz (grifos nossos)171
Por ter criado Maria Olinda o padre ocupa a posiccedilatildeo de avocirc de Olegaacuterio
Jovelina e Joatildeo Seu Joatildeo nos contou que conviveu muito na casa do padre que
passava por laacute e o padre o chamava de ldquominha Maria Olindardquo ao se lembrar da filha
de criaccedilatildeo que jaacute era falecida Nos contou tambeacutem como o padre sempre lhe dava
algo para comer em um gesto de cuidado e consideraccedilatildeo Hoje a casa do padre eacute
uma moradia particular Na frente haacute uma placa talhada em madeira com a
identificaccedilatildeo ldquoSolar do Padrerdquo
170 Outro importante personagem da histoacuteria local foi ourives e jornalista tendo fundado o primeiro jornal
da regiatildeo ldquoLiberal do Serrordquo em 1828 Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiSanto_AntC3B4nio_do_ItambC3A9 Acesso em 1210015 171 Hino do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute Letra composta por Padre Celso de Carvalho e
melodia por Mozart Bicalho Disponiacutevel em httpsantoantoniodoitambemggovbrcidade Acesso em 121015
206
Na imagem abaixo esta relaccedilatildeo de parentesco fica simbolizada na disposiccedilatildeo
assumida por Geralda Seu Joatildeo e Adir ndash que estaacute com as matildeos no ombro da estaacutetua
de Padre Joviano ndash que parece apontar para a percepccedilatildeo de uma continuidade entre
passadopresente e mortosvivos como em outros momentos jaacute destaquei neste
trabalho
FIGURA 34 Adir Seu Joatildeo e Geralda junto agrave estaacutetua de Padre Joviano
3233 A famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente
Seu Joatildeo Adir e Geralda natildeo poderiam segundo eles ir embora sem antes
passarem na terra que foi de Izidora onde Manoel Ciriaco viveu ateacute sua saiacuteda da
regiatildeo Seu Joatildeo ateacute 1981 quando foi morar no siacutetio de seu pai em GuaiacuteraPR
tambeacutem viveu na terra que pertencia a sua avoacute Izidora Nela atualmente moram
parentes que pelas informaccedilotildees que tivemos teriam recebido autorizaccedilatildeo de Geraldo
ndash filho de Sebastiatildeo Vicente de Paula que era irmatildeo de Manoel e D Ana Raimunda ndash
que com a morte do pai ldquotomou conta de tudordquo nos termos D Ana Ela tambeacutem nos
207
contou que quando Manoel foi embora Sebastiatildeo Vicente ocupou toda a terra e natildeo
deixou nenhum espaccedilo para ela que passou a viver na cidade do Serro172
Seu Joatildeo jaacute muito contrariado com tudo que havia sido falado sobre as
ldquoarbitrariedadesrdquo173 do falecido Sebastiatildeo Vicente e agora de Geraldo preparou-se
para conversar com seu primo sobre como tinha ficado a questatildeo do documento da
terra Quando chegamos laacute o clima era hostil Geraldo foi muito incisivo em afirmar
que os filhos de Manoel Ciriaco natildeo teriam mais direito nenhum sobre aquela terra
pois toda a aacuterea tinha sido registrada como propriedade de seu pai Sebastiatildeo Vicente
jaacute que Manoel tinha ido embora dali e nunca mais voltado Como apontamos no
primeiro capiacutetulo a migraccedilatildeo consiste em uma estrateacutegia importante precisamente
para excluir da heranccedila membros da famiacutelia visando evitar o fracionamento da terra
a um ponto que inviabilize a reproduccedilatildeo camponesa (WOORTMANN 2009)
Por outro lado esta postura de Geraldo desconsiderava que Seu Joatildeo havia
morado nesta aacuterea ateacute 1981 e que os irmatildeos filhos do segundo casamento de Manoel
ndash Joaquim e Antocircnio ndash haviam ido ateacute laacute na deacutecada de 1980 quando Sebastiatildeo
Vicente ainda era vivo para vender a parcela hereditaacuteria que cabia a Manoel Ciriaco
Na eacutepoca conforme me contou Joaquim tinham sido recebidos tambeacutem com
hostilidade e a resposta do seu tio foi que ldquonatildeo negociava com molequerdquo e que
Olegaacuterio o filho mais velho de Manoel era quem teria que ir pessoalmente laacute para
que fosse feito qualquer acordo Esta fala de Sebastiatildeo Vicente mostra que soacute o
primogecircnito dentre os filhos de Manoel ndash que ademais nasceu e morou na aacuterea ndash
poderia reivindicar a parte do pai ao passo que Antocircnio ndash que saiu de MG com quatro
anos de idade ndash e Joaquim ndash que nasceu na regiatildeo de Presidente PrudenteSP no
municiacutepio de CaiabuSP ndash ambos filhos do segundo casamento natildeo seriam
172 Pelo que se pocircde observar ateacute o momento haacute uma possibilidade de que as mulheres segundo o
arranjo costumeiro natildeo fossem herdeiras pois no sistema tradicional camponecircs geralmente elas natildeo satildeo incluiacutedas na heranccedila sendo portanto recompensadas por meio do dote pago agrave famiacutelia do marido quando se casam Posteriormente a mulher eacute incluiacuteda na heranccedila do marido (SEYFERTH 1985) Para poder fazer esta afirmaccedilatildeo de modo mais consistente no entanto seraacute necessaacuterio um aprofundamento da pesquisa na regiatildeo Soacute desta forma seraacute possiacutevel compreender as regras locais sobre o direito de heranccedila 173 Os dados levantados indicam que este parece ser um caso de ldquoheranccedila indivisardquo ou ldquoheranccedila
impartiacutevelrdquo camponesa conforme o direito costumeiro tendo em vista que o modelo de heranccedila igualitaacuteria por todos os herdeiros previsto no direito civil natildeo corresponde agraves estrateacutegias acionadas no mundo rural brasileiro Neste modelo de ldquoheranccedila indivisardquo apenas um herdeiro fica com toda a propriedade familiar (SEYFERTH 1985) No caso em questatildeo a heranccedila fica para Sebastiatildeo Vicente ao passo que Manoel migra para o Paranaacute e Ana Raimunda natildeo herda nenhuma parcela
208
reconhecidos pelo tio neste sentido conforme apontariam as regras locais de direito
costumeiro
Deve-se levar em conta ainda que os acordos locais sobre os acertos de
heranccedila podem abranger estrateacutegias variadas conforme as condiccedilotildees de escassez de
terras bem como outros fatores importantes avaliados em um dado momento Aleacutem
desta possibilidade de variaccedilatildeo das proacuteprias regras conforme a situaccedilatildeo eacute possiacutevel
perceber neste caso especiacutefico da famiacutelia de Manoel que haacute uma variaccedilatildeo no modo
de interpretaccedilatildeo das regras a partir da perspectiva especiacutefica dos sujeitos que estatildeo
posicionados de modos diferentes na estrutura familiar Eacute possiacutevel tambeacutem que haja
uma combinaccedilatildeo da estrateacutegia interpretativa local com os argumentos da legislaccedilatildeo
civil nacional
No caso de Seu Joatildeo Adir e Geralda pude observar nas conversas sobre o
tema da heranccedila a presenccedila do entendimento de que os filhos de Manoel que
moraram na terra de sua avoacute Izidora teriam o direito de retorno e de reivindicaccedilatildeo de
uma parte da aacuterea mesmo depois de anos que saiacuteram da regiatildeo Galizoni em estudo
sobre a regiatildeo no Alto Vale do Jequitinhonha muito proacuteximo da aacuterea aqui em questatildeo
apontou como a entrada do herdeiro potencial com seu retorno apoacutes a migraccedilatildeo eacute
uma situaccedilatildeo conflituosa Isso porque se cria sobre a terra ldquocamadas de direitos que
convivem uns com os outros e se sobrepotildeemrdquo (GALIZONI 2002 571)
Idealmente todos os irmatildeos tecircm direitos iguais assim como todos os netos e bisnetos Acontece que no jogo de dados que se estabelece entre filhos (as) no interior da famiacutelia e as conjunturas externas dadas por migraccedilatildeo trabalho casamento processos de acumulaccedilatildeo e ambiente cria-se uma diferenciaccedilatildeo interna na famiacutelia que se refletiraacute nas diversificaccedilotildees de trajetoacuterias e destinos e seraacute fundamental para a construccedilatildeo do herdeiro e do migrante Essas diferenciaccedilotildees podem ocorrer tanto na mesma geraccedilatildeo ndash entre irmatildeos por exemplo ndash quanto entre geraccedilotildees no caso tios e sobrinhos A partilha da terra e a sua passagem entre geraccedilotildees ocorrem atraveacutes de um processo que se desenrola no interior da famiacutelia articulado com processos exteriores (GALIZONI 2002 571)
No jogo entre herdeiros a terra principal meio de produccedilatildeo e patrimocircnio dos
agricultores eacute valorizada como um recurso valioso de modo que as disputas entre
parentes pela heranccedila camponesa decorrem de sua escassez A interpretaccedilatildeo por
parte de Seu Joatildeo Adir e Geralda acima mencionada de que os filhos de Manoel
Ciriaco que viveram neste siacutetio em Santo Antocircnio do Itambeacute seriam ldquoherdeiros
potenciaisrdquo ndash entendendo a heranccedila como um viacutenculo simboacutelico que natildeo se dilui com
209
o tempo e que garante assim a possibilidade de retorno ou reivindicaccedilatildeo da parcela
hereditaacuteria ndash conjugou-se com a possibilidade discutida naquele momento de que
futuramente decidissem acionar judicialmente o direito agrave reparticcedilatildeo igualitaacuteria entre os
herdeiros previsto na legislaccedilatildeo
Os acircnimos entre Seu Joatildeo e Geraldo poderiam ter se exaltado mas a minha
presenccedila e a do professor Matheus que foi quem nos levou fizeram com que como
Seu Joatildeo comentou ele tivesse se contido de modo que preferiu se retirar a gerar
uma confusatildeo Mesmo sem conseguirem ver uma possibilidade de negociaccedilatildeo sobre
o direito que entendem possuir sobre aquela terra principalmente em referecircncia aos
trecircs irmatildeos mais velhos que laacute viveram para Geralda e Adir soacute o fato de terem ido
conhecer o siacutetio onde seu pai e sua avoacute Izidora moraram jaacute foi muito significativo
Se por um lado a postura de Seu Joatildeo reforccedila um conjunto de relaccedilotildees
comuns ao campesinato como questotildees de honra que estatildeo baseadas na valorizaccedilatildeo
do trabalho e do sofrimento que seu pai passou ali ndash o que sustenta a sua leitura da
atitude da famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente como um ato de expropriaccedilatildeo ndash por outro
lado a postura de Geraldo pode estar embasada em regras de direito costumeiro que
sustentam estrateacutegias sucessorais locais jaacute que como analisamos acima o modo de
lidar com a heranccedila na aacuterea rural natildeo eacute uma praacutetica fixa que obedeccedila a regras gerais
do direito civil (SEYFERTH 1985 p 09)
Ao mesmo tempo reivindicar essa aacuterea seria retirar aqueles que atualmente
constroem suas vidas a partir dela jaacute que se conseguissem retomaacute-la provavelmente
natildeo haveria intenccedilatildeo de as famiacutelias de Jovelina Joatildeo e Olegaacuterio passarem a viver ali
O que mais se apontou foi a intenccedilatildeo de que a parcela hereditaacuteria fosse vendida
visando garantir melhores condiccedilotildees financeiras na localidade onde vivem hoje
Presidente PrudenteSP Com a impossibilidade de negociaccedilatildeo com Geraldo no
entanto esta questatildeo ficou suspensa para refletirem posteriormente se iriam mesmo
tomar qualquer atitude para reaver a aacuterea
Por fim no que toca aos descendentes de Sebastiatildeo Vicente tambeacutem
visitamos a casa da ex-mulher de seu filho Aniacutezio Aniacutezio estaacute haacute muitos anos
morando no Paraguai depois de ter vivido com os parentes em GuaiacuteraPR e natildeo
manteacutem mais contato com seus filhos Juliana ndash filha de Aniacutesio e sua ex-mulher
Ceciacutelia que retornou a morar em Santo Antocircnio do Itambeacute com a matildee em meados da
deacutecada de 1980 depois de terem vivido um periacuteodo na regiatildeo de GuaiacuteraPR com seu
210
pai ndash entregou a Adir entatildeo uma carta para que ele fizesse chegar ateacute Aniacutezio na
qual estava escrito
Meus irmatildeos satildeo Marcelo Erlindo Vardeti Pedro Eva
Uomesan (incompreensiacutevel) e Carlos Quase todos tem
famiacutelias Meu nome eacute Juliana tenho oito filhos um moreu
em asidenti de carro com bicicleta U nome deles satildeo
Karina Wilka Tomaz Francineli Joatildeo Vitor Camila
Igridi e Julia Eu queria encontrar meu pai para ele me
achuda minha casa taacute quase caindo o nome dele eacute Anizio
Dionizio de Paula Quando eu sai de terra rocha eu era
muito pequena Eu agora capino para sobreviver e cuidar
da minha famiacutelia Tudo que eu quero eacute encontrar meu pai
Eu queria que ele me achudace natildeo tem ninguem que me
achuda aleacutem de Deus e Nossa Senhora174
Ceciacutelia e seus filhos foram a uacutenica famiacutelia que depois de terem se mudado para
a regiatildeo de Guaiacutera (na carta Juliana cita que morou em Terra Roxa municiacutepio
vizinho) retornaram para Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Este caso de retorno indica
como a modalidade de migraccedilatildeo se temporaacuteria ou definitiva soacute pode ser definida no
fim da vida das pessoas (GALIZONI 2002 p 569) Pelo que Juliana relata na carta e
pelas condiccedilotildees de moradia que vimos na casa de Ceciacutelia atualmente estatildeo
passando por muitas dificuldades financeiras e podem vir a ser uma das famiacutelias com
interesse em retornar para o siacutetio em GuaiacuteraPR a partir da regularizaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo
da aacuterea por meio do procedimento em tracircmite no INCRA
324 Novos movimentos
Depois de nossa estadia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG retornamos para
SerroMG de onde pegamos um ocircnibus para Belo HorizonteMG De laacute eu e Cassius
embarcamos de aviatildeo para CuritibaPR enquanto Adir e Geralda voltaram de aviatildeo
ateacute CascavelPR e de laacute puderam seguir de ocircnibus ateacute GuaiacuteraPR Seu Joatildeo por sua
vez foi de ocircnibus ateacute Presidente PrudenteSP Interessante destacar que em
Cascavel Adir e Geralda pernoitaram na casa de parentes e tambeacutem aproveitaram
para fazer uma visita e ldquocolocar a conversa em diardquo
174 Adotei o uso de um formato de letra que se aproxime da letra cursiva para fazer referecircncia agrave transcriccedilatildeo de textos escritos por meus interlocutores(as)
211
Com o impacto que a primeira viagem teve para Adir Geralda e Seu Joatildeo
bem como para mim e para Cassius a possibilidade de um retorno ndash visando a
conclusatildeo de algumas questotildees prementes que ficaram abertas com esta retomada
do contato ndash fez com que eu e Cassius jaacute iniciaacutessemos o planejamento de uma nova
viagem A intenccedilatildeo agora era que D Maria das Dores fosse ateacute Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG reencontrar suas irmatildes e que D Jovelina encontrasse sua tia D Ana
Raimunda em SerroMG e a trouxesse para morar com ela em Presidente
PrudenteSP Demorou quase trecircs meses ateacute que todo este processo fosse articulado
Em 05 de junho uma sexta-feira eu e Cassius desembarcamos de aviatildeo em Belo
HorizonteMG enquanto D Maria das Dores e D Jovelina viajavam juntas de ocircnibus
desde Presidente PrudenteSP Desta vez tanto D Ana Raimunda como D Zulmira
e D Regina estavam cientes da nossa chegada e nos aguardavam para aquele fim
de semana
Eu e Cassius resolvemos entatildeo alugar um carro em Belo Horizonte para que
pudeacutessemos ter mais autonomia nos deslocamentos entre Serro e Santo Antocircnio do
Itambeacute e tambeacutem para proporcionar mais conforto agraves duas senhoras D Maria das
Dores e D Jovelina que estavam conosco aleacutem da possibilidade de que D Ana
Raimunda tambeacutem retornasse no final da viagem Por outro lado a opccedilatildeo do aluguel
do carro fez com que nos programaacutessemos para ficar apenas o final de semana jaacute
que tiacutenhamos que devolvecirc-lo na segunda-feira dia 08 de junho Apesar de ter sido
uma viagem curta como veremos abaixo este final de semana proporcionou
segundo elas tudo o que D Maria das Dores e D Jovelina almejavam
3241 O reencontro das irmatildes
Quando chegamos na casa de D Zulmira com D Maria das Dores e D
Jovelina jaacute era de madrugada e elas ficaram sem dormir conversando muito felizes
de poderem se atualizar sobre as histoacuterias as experiecircncias de vida os sofrimentos e
as alegrias Aquele reencontro tatildeo esperado tinha se concretizado No outro dia de
manhatilde saacutebado 06 de junho foi que D Maria encontrou entatildeo D Regina que eacute
vizinha de sua irmatilde D Zulmira
Eu e D Zulmira fomos na padaria comprar patildeo para o cafeacute D Zulmira estava
tatildeo eufoacuterica por conta do reencontro com sua irmatilde que foi logo contando para o dono
212
da padaria Alex sobre a vinda de D Maria das Dores que natildeo via haacute muitos anos
Alex que era tambeacutem comentarista nas missas da Igreja de Santo Antocircnio ficou muito
feliz com a notiacutecia de D Zulmira Comentou entatildeo da possibilidade de conversar com
o padre para pedir que eu fizesse um testemunho na missa que ocorreria agraves 19h
contando esta histoacuteria do reencontro entre as irmatildes Este convite se justificava
tambeacutem pelo fato de que aquele dia 06 de junho era o primeiro dia dos festejos para
Santo Antocircnio cuja ldquodata augerdquo da festa seria no saacutebado seguinte dia 13 de junho o
dia do santo Esta sincronia da nossa chegada com o calendaacuterio sagrado daquele
lugar fez com que Alex atribuiacutesse agrave intercessatildeo de Santo Antocircnio aquele
acontecimento que era tatildeo esperado por D Zulmira e D Regina
Os eventos relacionados ao catolicismo como a Festa de Santo Antocircnio o
santo padroeiro do municiacutepio satildeo os grandes eventos da sociabilidade local na regiatildeo
do Vale do Jequitinhonha (PORTO 2007 p 156) Assim que chegou a notiacutecia de que
o padre tinha concordado com a ideia os parentes ficaram muito animados e felizes
principalmente as trecircs irmatildes que consideraram este fato uma importante forma de
reconhecimento e valorizaccedilatildeo local da histoacuteria da famiacutelia bem como uma confirmaccedilatildeo
do caraacuteter sagrado daquele reencontro
Conversei entatildeo com D Maria das Dores que mesmo sendo evangeacutelica
aceitou e ficou feliz com a possibilidade de dar seu testemunho mas fez questatildeo de
apontar que segundo seu ponto de vista natildeo se tratava de milagre do santo mas de
obra de Deus diretamente No primeiro capiacutetulo destaquei neste sentido a
importacircncia das relaccedilotildees de continuidade percebidas pelos meus interlocutores(as)
entre diferentes religiotildees para aleacutem das divergecircncias existentes Podemos nos
lembrar por exemplo da fala de Eva de que ldquoDeus eacute um soacuterdquo compreensatildeo novamente
reforccedilada pela decisatildeo de D Maria das Dores em participar do ritual catoacutelico
Combinamos entatildeo que eu faria uma pequena fala introdutoacuteria e passaria o
microfone para ela relatar sua chegada em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG depois de
muitos anos sem contato com a famiacutelia E assim fizemos Depois da comunhatildeo como
estava acertado Alex que estava fazendo os comentaacuterios da missa fez um gesto
sinalizando que era a hora de subirmos ateacute o altar D Maria das Dores depois de
minha pequena introduccedilatildeo contextualizando a pesquisa e o subsiacutedio que havia sido
dado para aquele reencontro agradeceu a Deus pela oportunidade de seu retorno
que era uma grande benccedilatildeo na sua vida e de seus familiares Contou um pouco de
213
sua trajetoacuteria e fez questatildeo de enfatizar que ela natildeo tinha saiacutedo de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG ldquopor orgulhordquo mas porque ldquotinha sido buscadardquo Afirmou que temos
sempre que glorificar a Deus por suas obras e concluiu sua fala de modo um tanto
tiacutemido mas com muita firmeza
No final da missa as trecircs irmatildes foram novamente ateacute o altar para
cumprimentar e agradecer ao padre tirar fotos e neste momento foram aplaudidas
por todos os presentes Apoacutes a missa houve uma confraternizaccedilatildeo em frente agrave Igreja
onde havia uma barraca na qual se podiam comprar comidas e bebidas iniciando as
festas juninas
FIGURA 35 As trecircs irmatildes na missa na Igreja de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
De alguma forma eu e Cassius fizemos parte daquilo que para elas era
consequecircncia de um milagre e segundo afirmaram vaacuterias vezes tiacutenhamos sido
enviados por Deus para trazer esta benccedilatildeo para a famiacutelia Interessante observar
neste sentido como o catolicismo eacute uma linguagem muito presente que sustenta o
modo de compreensatildeo das pessoas e lhes daacute um horizonte de futuro bem como uma
estabilidade no presente mesmo em situaccedilotildees de adversidade Ao falarem da morte
por exemplo usam a expressatildeo ldquoDeus levourdquo ao comentarem que moram sozinhos
214
ressalvam ldquomoro eu e Deusrdquo ao dizerem que natildeo podem contar com ningueacutem como
na carta de Juliana lembram-se da ajuda ldquode Deus e Nossa Senhorardquo Esta
concepccedilatildeo catoacutelica de mundo eacute tida como a forma legiacutetima de falar dos
acontecimentos e dizer que eacute um milagre natildeo traz necessariamente um sentido de
extraordinaacuterio pois tudo estaacute sobre o domiacutenio da justiccedila divina O sagrado portanto
faz parte do cotidiano e fornece a base dos valores fundamentais a serem seguidos
a partir da religiosidade cristatilde (PORTO 2007 p 157)
Nos dois dias que D Maria passou em Santo Antocircnio do Itambeacute ela pocircde
reencontrar vaacuterios sobrinhos e tambeacutem parentes que ainda natildeo conhecia pois a
maioria foi lhe ver na casa de suas irmatildes Ela foi muito bem recebida e acolhida por
todos que estavam em clima de festa A partir deste reencontro trocaram contatos no
intuito de que natildeo haja mais um lapso de convivecircncia e de comunicaccedilatildeo como ocorrido
anteriormente
FIGURA 36 D Maria sentada na cadeira ao lado de sua irmatilde D Zulmira (no canto esquerdo) sua
sobrinha com o marido e os filhos
215
Antes de partimos gravamos um viacutedeo com as trecircs irmatildes contando sobre
como tinha sido aquele reencontro D Maria das Dores entatildeo comentou
D Maria Que noacutes foi muito bem recebida E eu tenho trecircs irmatildeos em Belo Horizonte e ateacute isso eu jaacute consegui conversar hoje com uma soacute E amanhatilde eu espero que se Deus quiser ela taacute na rodoviaacuteria pra noacutes se ver Entatildeo eu fiquei muito feliz neacute porque a gente viu meu sobrinho tudo minha sobrinha tocirc muito alegre Gloacuteria a Deus por isso E eu vou falar verdade que eu fui muito bem recebida na casa da cumadi Zulmira minha irmatilde e na casa da cumadi Regina E graccedilas a Deus laacute eu vou levando muita alegria porque tocirc vendo que taacute tudo bem neacute tudo em ordem muita fartura muita alegria e muita uniatildeo Gloacuteria a Deus por isso
Por fim jaacute na rodoviaacuteria de Belo Horizonte mais um reencontro aconteceu
entre D Maria das Dores e suas duas irmatildes que moram na capital mineira Teresa e
Anita Elas haviam combinado por telefone enquanto estaacutevamos em Santo Antocircnio
do Itambeacute que na segunda-feira se encontrariam na rodoviaacuteria da capital O uacutenico
irmatildeo que D Maria natildeo viu foi Joaquim que tambeacutem mora em Belo Horizonte mas
natildeo pocircde encontraacute-la naquele dia Segundo D Maria das Dores ela ficou imaginando
a possibilidade de um novo retorno com mais tempo para um encontro entre todos
os irmatildeos em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
FIGURA 37 (Da esquerda para a direita) Teresa D Maria das Dores e Anita na rodoviaacuteria de Belo Horizonte
216
3242 D Jovelina e o convite para a tia Ana Raimunda
D Jovelina estava ansiosa pelo reencontro com a tia Ana Raimunda que natildeo
via haacute cinquenta e nove anos desde que saiu de laacute em 1956 quando tinha catorze
anos Nesta segunda viagem depois de termos pousado a primeira noite na casa de
D Zulmira em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG no saacutebado pela manhatilde eu e Cassius
levamos D Jovelina na casa de D Ana Raimunda que morava em Serro Quando
chegamos D Ana Raimunda nos aguardava tambeacutem ansiosa pois haviacuteamos dito que
chegariacuteamos na noite anterior o que natildeo havia sido possiacutevel O encontro entre as
duas foi de muita alegria
Dandara Bom dia pra senhora
D Ana Bom dia tudo bem
Dandara Tudo bom Graccedilas a Deus
D Jovelina Ei minha matildeezinha do ceacuteu sua benccedilatildeo
D Ana Oi minha fia tem anos que eu natildeo vejo pelo amor de Deus Que tempo Jaacute tem uns quarenta anos ou mais
D Jovelina Eu natildeo to acreditando meu Deus do Ceacuteu
D Ana Jaacute tem uns quarenta anos ou mais Hein
D Jovelina Acho que eacute sessenta anos
D Ana Sessenta anos Noacute pelo amor de Deus Sumiu
D Jovelina A senhora vai comigo agora dessa vez
D Ana Que dia que vocecirc vai
D Jovelina Segunda-feira
D Ana Graccedilas a Deus Eu tocirc arrumando Que eacute eu sozinha com Deus aqui oacuteh (junta as matildeos como em oraccedilatildeo)
D Jovelina Agora eu vou te levar pra laacute vou ponhar papinha na sua boca
D Ana Eu sei boba
D Jovelina Vou te dar banho vou te carregar ponha na cama pra dormir
D Ana (risos) Ograve minha companheira
D Jovelina O que eu puder fazer eu vou fazer
D Ana Se Deus quiser Vai dar um pouquinho de confusatildeo mas vai dar certo Eu gostei que vocecirc vai segunda que segunda vai daacute tempo de noacutes arrumar tudo Vamo entrar pra dentro
217
FIGURA 38 Reencontro de Ana Raimunda com Jovelina depois de 59 anos
D Ana Raimunda jaacute estava se preparando para ir para a casa de D Jovelina
em Presidente PrudenteSP e contou com a ajuda da sobrinha que passou com ela
o final de semana para organizar e levar o maacuteximo de coisas possiacuteveis Ela disse que
natildeo estava se mudando definitivamente pois ainda teria que voltar para Serro com o
intuito de vender a casa que era de seu falecido marido Teacuteofilo e ver questotildees
relacionadas agrave heranccedila entre ela e os dois filhos dele
D Ana estava muito feliz pois agora teria sempre companhia cuidados amor
de familiares e natildeo ficaria mais tatildeo sozinha e desamparada como se sentia ali Na
segunda-feira pela manhatilde conseguimos despachar as vaacuterias sacolas e bagagens de
D Ana pelo ocircnibus e seguimos de carro ateacute a rodoviaacuteria de Belo Horizonte D Ana
estava muito tranquila durante todo o percurso e assim foi ateacute chegar em Presidente
PrudenteSP acompanhada de D Jovelina e D Maria das Dores que seguiram
viagem juntas D Ana estaacute haacute cinco meses morando com D Jovelina e se sente muito
bem junto da famiacutelia como pude observar em agosto de 2015 quando fui visitaacute-la na
casa de D Jovelina
218
FIGURA 39 D Ana Raimunda com os parentes em Presidente PrudenteSP na casa da sobrinha Jovelina
Eacute possiacutevel perceber deste modo como estes reencontros apontaram para
dinacircmicas que operam entre relaccedilotildees de proximidade e de distacircncia em famiacutelias
como esta marcadas por situaccedilotildees de deslocamento natildeo haacute rupturas definitivas mas
potencialidades que podem dinamizar ou colocar as relaccedilotildees em letargia A facilidade
e a intensidade da retomada do contato por meio das viagens realizadas nas quais
foram refeitos partes dos caminhos de seus ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100)
confirmaram a forccedila do sentimento de viacutenculo com os parentes e de continuidade com
este passado comum
Da situaccedilatildeo de isolamento que se reportavam em relaccedilatildeo agrave experiecircncia do
grupo em GuaiacuteraPR antes do autorreconhecimento como quilombolas foi possiacutevel
chegar a um novo momento em que houve um acionamento significativo da ampla
rede social de parentesco Ademais estas relaccedilotildees de parentesco entre as famiacutelias
que se deslocaram para o estado de Satildeo Paulo e para o Paranaacute e as famiacutelias
quilombolas da regiatildeo de origem tende a operar como um iacutendice da ldquoquilombolidaderdquo
do grupo Eacute possiacutevel assim identificar trecircs momentos centrais de institucionalizaccedilatildeo
da alteridade da ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo
219
(a) no primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo natildeo foi reconhecido pelos
pesquisadores nenhum ldquograurdquo de alteridade
(b) no segundo relatoacuterio antropoloacutegico foi fundamentada a existecircncia de
alteridade em continuidade com o passado mineiro do grupo com base na pesquisa
realizada na regiatildeo de SerroMG e
(c) com as duas viagens de volta realizadas em marccedilo e junho de 2015 houve
por fim um significativo fortalecimento do sentimento de continuidade dos quilombolas
com sua origem comum bem como maiores subsiacutedios para sustentar a legitimidade
histoacuterica e a possibilidade de reivindicaccedilatildeo de direitos do grupo no presente
De algum modo como jaacute mencionamos foi esta demanda por coesatildeo e
coerecircncia das narrativas do grupo que impulsionou o retorno dos proacuteprios quilombolas
agrave regiatildeo de origem como um aprofundamento do processo de ldquoauto-organizaccedilatildeo em
termos poliacuteticosrdquo e concomitantemente de ldquoarticulaccedilatildeo dos antigos costumes e
formas de relacionamento social com as novas regras a que estatildeo submetidosrdquo
(ARRUTI 1997 23-24) Para aleacutem desta dimensatildeo pragmaacutetica houve uma
transformaccedilatildeo natildeo soacute na identidade quilombola com a multiplicaccedilatildeo dos espaccedilos
pelos quais eacute validada (ARRUTI 1996) mas tambeacutem na vida e nas trajetoacuterias dos
sujeitos envolvidos com estas experiecircncias de retorno
A realizaccedilatildeo destas duas viagens agrave Minas Gerais em marccedilo e junho de 2015
criou um entrelaccedilamento do movimento dos meus interlocutores(as) e do processo de
pesquisa que gerou esta dissertaccedilatildeo Este diaacutelogo aberto decorre da proximidade e
da relaccedilatildeo de confianccedila que jaacute possuiacuteamos criada por meio de um contato que se
estende desde 2011 Foi portanto a circulaccedilatildeo por espaccedilos institucionais a partir do
autorreconhecimento como quilombolas que os conectou com agentes do estado e
com pesquisadores como eu e Cassius que criou um contexto favoraacutevel para a
realizaccedilatildeo dessas viagens de volta
Neste percurso sinuoso da trajetoacuteria histoacuterica destas famiacutelias quilombolas
marcada por continuidades e descontinuidades busquei compreender o grupo ldquopor
meio dos fluxos que o atravessam e que o ligam a agentes e fenocircmenos distribuiacutedos
por diferentes locais escalas e temposrdquo (ARRUTI 2006 p 35) Foi possiacutevel perceber
deste modo como a histoacuteria da comunidade eacute construiacuteda como resultado de um
processo de negociaccedilatildeo Como jaacute mencionado a adoccedilatildeo da identidade implica na
proacutepria produccedilatildeo dessa realidade em uma relaccedilatildeo dialeacutetica entre o herdado e o
220
projetado (ARRUTI 1997 p 28) a partir da categoria geneacuterica de ldquoquilombolardquo cujo
caraacuteter juriacutedico-administrativo eacute o caminho pelo qual as coletividades organizadas
podem se auto-objetivar (ARRUTI 2006 44)
A ldquoplasticidade identitaacuteriardquo formadora desses grupos permite efetivamente que eles ldquoresgatemrdquo ldquorecuperemrdquo elementos substantivos de identidade que passam a integrar seus processos de emergecircncia mas como ldquomateacuterias-primasrdquo que precisam ser manufaturadas pelas forccedilas mobilizadas no seu interior na forma de desejos coletivos (ARRUTI 1997 p 28)
Este passado pensado em comum estaacute portanto sendo elaborado a partir
do momento presente (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 24) o que destaca o
lugar central que estas viagens a Minas Gerais passaram a ocupar em tal processo
de reelaboraccedilatildeo da memoacuteria Imagino ter sido suficientemente exposto ao longo
deste trabalho a centralidade para estas famiacutelias quilombolas do que podemos
compreender por meio da expressatildeo ldquodever de memoacuteriardquo entendido ldquocomo um ldquodireito
agrave reparaccedilatildeo em funccedilatildeo do esquecimento e guetificaccedilatildeo a que foram submetidas suas
histoacuterias ao longo do seacuteculo XXrdquo (MATTOS ABREU 2011 p 150) Com as viagens
realizadas em marccedilo e junho de 2015 este ldquodever de memoacuteriardquo se transformou em
algo acessiacutevel para os proacuteprios quilombolas de GuaiacuteraPR ao retraccedilarem o caminho
de seus ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100) Por meio destas viagens foi possiacutevel
compreender na praacutetica a necessidade de dessubstancializaccedilatildeo da identidade no
sentido de perceber como esta eacute construiacuteda pela tomada de consciecircncia sobre as
diferenccedilas e natildeo pelas diferenccedilas em si (SCHWARCZ 1999 p 296)
221
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Eu vou contar um pouco da minha histoacuteria pra vocecircs
Dandara e alguns mais importante com esse assunto Em
primeiro lugar o assunto eacute esse eu era companheiro de
minha matildee aos 4 anos e meio de idade eu completei 5 anos
na estrada muito sofrido ateacute que um senhor passou por ela
e chegou ateacute falar ldquodona a senhora vai matar esse menino
por favor natildeo faccedila isso natildeordquo Mais com todos sofrimentos ela
foi pelejando com a vida e noacutes continuamos mais tem aquele
ditado ldquoquem tem feacute em Deus vencerdquo Era muito difiacutecil porque
tudo era com o sofrimento ateacute para agente estudar tinha
que andar 4 km para ir e mais 4 km de voltar tinha que ir
a peacute as vez ateacute discalccedilo nem sapato noacutes natildeo tinha tempo de
frio com bluza uma calccedila todos dias sempre furava o fundo
era costurado toda vez tinha hora que natildeo tava nem
aceitando remendo mais natildeo tinha onde remendar mais
Quando a gente ganhava alguma peccedila de roupa agente
nem sabia o que fazia de tanta alegria Tinha que ir a aula
e voltar de pressa para poder ganhar uns troco ainda porque
meu pai era doente natildeo podia trabalhar que ele sentia um
bronquite forte e ficava muito canccedilado coitado ele viveu ateacute
43 anos com muito sofrimento e agente natildeo podia deixar
sem o remeacutedio porque agente tinha doacute que noacutes natildeo queria
ver ele naquele sofrimento era muito triste o estado que ele
ficou mais fazer o que todos noacutes tem que passar por isso A
gente comeccedilou a trabalhar muito cedo mais a gente soacute
ajudou os outros arrumar a vida deles e noacutes ficou Eu tive
uma chance no quartel eles queria que servisse mais por
motivo do falecimento do meu pai eu natildeo pude servi outra
chance eu tive tambeacutem foi no accedilougue para trabalhar natildeo
pude tambeacutem porque noacutes tinha lavoura de algodatildeo mais
natildeo dava muito porque era as meias tudo dividido pela
metade e assim noacutes continuamos Mais graccedila a Deus estamos
ai mais natildeo pode perder a esperanccedila cada um de noacutes temos
a nossa cruz para carregar ningueacutem passa por ela a num
ser a gente Hoje graccedilas meu Bom Deus eu tenho um lugar
para agente amparar uma motinha natildeo eacute nova mais da
para agente quebrar um galho temos roupas temos
alimentos para noacutes poder alimentar temos lugar para poder
plantar alguma coisa O que noacutes queremos eacute um apoio do
Governo Federal e temos que trabalhar reunidos com paz e
amor e concentrar naquilo que estamos fazendo Fazemos
um projeto para termos um sombrite para organizar melhor
a horta para sair uns bons lucros o sombrite ajuda e proteja
do sol e o tempo da geada Escrevido por Antocircnio Aparecido
dos Santos
222
Este texto trazido como epiacutegrafe destas consideraccedilotildees finais foi escrito por
Antocircnio Aparecido dos Santos marido de Geralda e entregue a mim enquanto estive
hospedada em sua casa na vila Eletrosul durante o trabalho de campo realizado em
GuaiacuteraPR Antocircnio conhecido pelo seu apelido Guaraacute eacute filho de Maria Madalena
Rocha dos Santos e Joseacute dos Santos175 casal que tambeacutem era proveniente de Santo
Antocircnio do ItambeacuteMG e viveram em GuaiacuteraPR ateacute falecerem O texto de Antocircnio eacute
aqui destacado por ser significativo para pensar a importacircncia de aspectos analisados
ao longo desta dissertaccedilatildeo sobre este grupo quilombola Desta histoacuteria que Antocircnio
nos conta a mim e ldquoalguns mais importante com esse assuntordquo gostaria de analisar
alguns elementos
Antocircnio deixa expliacutecito logo no iniacutecio de sua narrativa sua expectativa de que
ela pudesse chegar ateacute pessoas que tenham interesse e atuaccedilatildeo com a temaacutetica
quilombola de modo que haja publicidade para suas memoacuterias para sua trajetoacuteria de
luta e feacute bem como para seus anseios de que haja uma melhor condiccedilatildeo de vida para
as famiacutelias Articula suas reflexotildees assim de modo a destacar elementos desta
memoacuteria que satildeo definidos por ele como significativos a partir do momento presente
de sua vida e da sua percepccedilatildeo sobre a trajetoacuteria coletiva do grupo quilombola
Ele ressalta em primeiro lugar como completou cinco anos ldquona estradardquo Filho
uacutenico era o companheiro de sua matildee jaacute que seu pai estava doente Ao acompanhaacute-
la em suas tarefas diaacuterias ele narra como ainda muito novo tinha que enfrentar
extensos trajetos de caminhada Para estudar novamente a experiecircncia do sofrimento
trazido por este caminhar mas acrescenta ldquoquem tem feacute em Deus vencerdquo e assim
sugere a importacircncia que atribui agrave religiosidade para a superaccedilatildeo das adversidades
da vida e da cruz que cada um tem que carregar Como vimos no primeiro capiacutetulo
este modo de elaborar a experiecircncia do sofrimento na interface com a feacute constroacutei um
saber sobre o mundo Saber pautado pela religiosidade cristatilde que vista pela lente de
um catolicismo negro eacute permeada pela religiosidade umbandista da qual Antocircnio eacute
adepto junto com sua esposa Geralda
Quando ainda crianccedilas voltavam da escola depois de oito quilocircmetros de
caminhada percorrida Antocircnio conta como tinham ainda que enfrentar uma jornada
de trabalho na roccedila que no caso dele era ainda mais necessaacuterio pelo fato de que ele
175 Joseacute dos Santos era irmatildeo de Geraldo do Santos que adquiriu um dos lotes da aacuterea original da
famiacutelia em GuaiacuteraPR
223
e a matildee tinham que cuidar de seu pai adoentado O trabalho que os membros da
comunidade realizaram desde muito novos para sobreviver contribuiu segundo ele
ldquoparra arrumar a vida delesrdquo se referindo agrave melhoria da situaccedilatildeo econocircmica dos
proprietaacuterios vizinhos e em contraste ldquonoacutes ficourdquo mostrando que natildeo foi possiacutevel
reverter os benefiacutecios deste trabalho para as proacuteprias famiacutelias da comunidade Este
contexto de interaccedilatildeo com os proprietaacuterios vizinhos a experiecircncia de ldquotrabalhar para
os outrosrdquo permeia a histoacuteria do grupo e eacute interpretada pelos quilombolas como uma
reproduccedilatildeo da situaccedilatildeo de preconceito e exclusatildeo ndash um dos fatores que motivou o
movimento de saiacuteda das famiacutelias de Minas Gerais Se o deslocamento era uma
estrateacutegia de busca por autonomia e liberdade visando a superaccedilatildeo dos processos
de exclusatildeo nos quais estavam inseridos o processo de fixaccedilatildeo em um novo contexto
acaba por reproduzir as relaccedilotildees de dominaccedilatildeo
Antocircnio faz referecircncias entatildeo a oportunidades de profissionalizaccedilatildeo que teve
quando jovem fora da aacuterea rural e complementa explicando os motivos pelos quais
natildeo foi possiacutevel investir nestas carreiras A alternativa de inserccedilatildeo no mercado de
trabalho urbano natildeo se consolida como um caminho de fato viaacutevel de modo que a
estruturaccedilatildeo de sua vida continua passando pelo trabalho na aacuterea rural mesmo
quando vai residir em uma vila da periferia de GuaiacuteraPR E novamente reforccedila a
importacircncia da feacute da esperanccedila e da gratidatildeo a Deus na melhoria de suas condiccedilotildees
de vida pois atualmente ele e sua esposa tecircm moradia proacutepria um meio de transporte
(motinha) roupas alimentos Aleacutem disso a permanecircncia da famiacutelia no territoacuterio em
GuaiacuteraPR permite a reproduccedilatildeo do trabalho familiar um certo niacutevel de autonomia
alimentar um modo de vida especiacutefico
Este ldquolugar para poder plantar alguma coisardquo ao qual Antocircnio se refere foi
deixado por seus pais e parentes mais velhos que empreenderam este processo de
chegada e conquista do territoacuterio em Guaiacutera Assim apesar de sempre ter sido
considerada uma aacuterea insuficiente para o nuacutemero de famiacutelias que nela viviam era a
garantia que poderiam deixar para seus filhos e descendentes ndash um lugar para morar
para plantar trabalhar e viverem unidos Por isso Manoel deixou como conselho que
seus filhos nunca vendessem este patrimocircnio familiar que ele lhes deixaria como
heranccedila Como Joatildeo Aparecido filho de Manoel me contou durante uma entrevista
Manoel sofreu muito para poder comprar esse ldquopedacinho de terrardquo pois quando
chegou em GuaiacuteraPE era soacute mato ldquoele natildeo tinha nem comida nem roupa nem nadardquo
224
Ficou anos trabalhando roccedilando aacutereas derrubando a mata e plantando milho e feijatildeo
para conseguir pagar parcelado o valor da terra Segundo Joatildeo ele colhia o milho
debulhava e levava para vender ateacute GuaiacuteraPR ndash caminhava carregando aquele peso
nas costas pelas picadas estreitas por dentro do mato e gastava o dia inteiro para ir
e voltar Todo este sofrimento de Manoel dos pais de Antocircnio e demais familiares
cria assim um compromisso moral dos seus descendentes de seguirem o exemplo
deixado e tambeacutem lutarem sempre lsquotrabalhando na honestidaderdquo
Assim em contraste com o ldquotrabalho para os outrosrdquo que remete na narrativa
de Antocircnio agrave experiecircncia de exploraccedilatildeo e estagnaccedilatildeo ele ressalta ao final de seu
texto o que vislumbra para o futuro o projeto coletivo de autonomia por meio da
geraccedilatildeo de renda para as famiacutelias no proacuteprio territoacuterio com o ldquoapoio do Governo
Federalrdquo para que possam ldquotrabalhar reunidos com paz e amor e concentrar naquilo
que estamos fazendordquo Um lugar portanto que antes mais nada sustenta a
possibilidade de uma vivecircncia coletiva
De um modo mais amplo como vimos um dos aspectos centrais do projeto de
futuro da comunidade eacute a possibilidade natildeo soacute de as famiacutelias que laacute vivem atualmente
permanecerem neste territoacuterio como tambeacutem garantir o aumento do nuacutemero de
famiacutelias da comunidade Esta ampliaccedilatildeo que esperam seja garantida com a conclusatildeo
do procedimento de regularizaccedilatildeo territorial do INCRA proporcionaraacute o aumento do
nuacutemero de famiacutelias da comunidade a partir do retorno de parentes que estatildeo sofrendo
em vaacuterias cidades os quais assim eacute esperado teratildeo condiccedilotildees entatildeo para geraccedilatildeo
de renda no proacuteprio territoacuterio com o acesso a poliacuteticas puacuteblicas necessaacuterias
Satildeo as dinacircmicas de parentesco que justificam a ampliaccedilatildeo do territoacuterio visto
como referecircncia mas natildeo como limite para o pertencimento identitaacuterio o qual se abre
para uma rede expandida de famiacutelias que se encontram espalhadas por todo o canto
como comentado por Adir em depoimento durante a primeira viagem para Minas
Gerais apresentado no terceiro capiacutetulo Este caso nos permite assim relativizar a
ideia de territorialidade como qualidade imanente e percebecirc-la a partir de uma busca
pela conquista de locais em que fosse possiacutevel a reproduccedilatildeo do modo de vida
especiacutefico ndash por meio de movimentos de deslocamento que desenham uma linha de
continuidade em uma longa trajetoacuteria Movimentos que satildeo eles mesmos iacutendices da
resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida e do desrespeito coletivo ao qual se sentem
submetidos
225
A relaccedilatildeo naturalizada entre identidade e territorialidade como apontamos
tem sido pressuposta pela poliacutetica puacuteblica de regularizaccedilatildeo territorial das
comunidades quilombolas no Brasil Trata-se de uma projeccedilatildeo da ideia de
enraizamento que necessita ser revisada e contextualizada historicamente ndash como
nos aponta este caso especiacutefico da experiecircncia quilombola em GuaiacuteraPR ndash para que
natildeo atue como fator limitador da possibilidade de reconhecimento de direitos a grupos
que natildeo se encaixem no padratildeo estabelecido como modelo Neste sentido a
percepccedilatildeo de continuidade natildeo necessariamente se enquadra nas expectativas da
poliacutetica de reconhecimento que tendem a desconsiderar a complexidade desta
conexatildeo com o passado enquanto dinacircmica de ldquorecuperaccedilatildeo do processo histoacuterico
vivido por tal grupordquo bem como de ldquorefabricaccedilatildeo constante de sua unidade e diferenccedila
em face de outros grupos com os quais esteve em interaccedilatildeordquo (OLIVEIRA FILHO
1994a p123) ndash presente mesmo em casos de comunidades que incluem em suas
trajetoacuterias a experiecircncia do deslocamento entre territoacuterios
O retorno agrave regiatildeo de origem foi impulsionado como vimos a partir do
processo conturbado de reconhecimento do grupo como quilombolas que gerou a
produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos no acircmbito do procedimento que ainda
tramita no INCRA Este regresso no entanto como apontei na introduccedilatildeo natildeo faz
desta linha de movimento um ciacuterculo que se fecha mas uma dinacircmica em espiral que
se abre para novos movimentos em busca de um futuro norteado pelo pertencimento
a um passado comum e pelos valores compartilhados por esta identidade coletiva Tal
abertura para novos movimentos se fez presente de um modo muito significativo na
mudanccedila de D Ana Raimunda com 87 anos de idade que deixou sua casa em Serro
e se mudou para Presidente PrudenteSP onde atualmente mora com sua sobrinha
Jovelina
A defesa de um deslocamento conceitual da ideia de quilombo tido como
sobrevivecircncia para a ressemantizaccedilatildeo do termo tendo em vista os sujeitos que se
reconhecem como quilombolas no presente (ALMEIDA 2002 p 64) pode ser ainda
ampliada com base nesta experiecircncia de pesquisa Refiro-me assim a um
deslocamento conceitual que inclua tambeacutem o reconhecimento dos proacuteprios
movimentos e deslocamentos dos grupos quilombolas como processo que natildeo retira
a legitimidade de suas reivindicaccedilotildees identitaacuterias e territoriais Este reconhecimento
tem suporte historiograacutefico nas pesquisas que apontam para a intensa movimentaccedilatildeo
226
da populaccedilatildeo negra no contexto do poacutes-aboliccedilatildeo (LIMA 2000) movimento que tinha
como sentido a saiacuteda de aacutereas de colonizaccedilatildeo histoacuterica como a regiatildeo de Minas
Gerais para aacutereas de colonizaccedilatildeo recente como eacute a regiatildeo de GuaiacuteraPR no caso
em questatildeo
Minha interaccedilatildeo com estas famiacutelias quilombolas eacute fruto da circulaccedilatildeo da
comunidade representada por suas lideranccedilas em espaccedilos institucionais aos quais
passaram a acessar com o autorreconhecimento como quilombolas e a inserccedilatildeo no
movimento poliacutetico estadual em articulaccedilatildeo com demais comunidades Enquanto
relaccedilatildeo estabelecida com o grupo primeiro em uma posiccedilatildeo de agente do Estado
como assessora no Ministeacuterio Puacuteblico do Paranaacute depois como mestranda em
antropologia tive que lidar com esta posiccedilatildeo ambiacutegua que explicita meu duplo
pertencimento acadecircmico que transita entre o direito e antropologia
Acredito que com a convivecircncia cotidiana e a possibilidade de
aprofundamento dos viacutenculos a relaccedilatildeo que antes era de intermediadora de suas
demandas dentro do oacutergatildeo ministerial passou a ser a posiccedilatildeo de algueacutem com quem
pudessem compartilhar suas histoacuterias experiecircncias e sonhos dentro dos quais me vi
imersa Esta imersatildeo possibilitou que pudeacutessemos trilhar juntos o caminho de volta
ateacute Minas Gerais e sem perceber de iniacutecio eu estava tambeacutem sendo levada por esta
linha de movimento dos seus antepassados ndash que se tornou norteadora das
estrateacutegias de pesquisa e da redaccedilatildeo deste trabalho bem como o objeto de reflexatildeo
central fruto da relaccedilatildeo entre pesquisador e sujeitos de pesquisa
Ao concluirmos a segunda viagem de volta em junho de 2015 eu estava
entatildeo inserida em suas leituras permeadas pela compreensatildeo sagrada dos
acontecimentos vivenciados Os modos de compreensatildeo dos meus interlocutores(as)
apontavam para uma leitura de que a relaccedilatildeo entre noacutes assim como entre eles e
Cassius tinham sido acionadas por meio de oraccedilotildees e preces que nos colocaram
como instrumentos na concretizaccedilatildeo destes reencontros Natildeo pude conter a emoccedilatildeo
quando por exemplo D Zulmira agradecia ldquoocirc minha Nossa Senhora ocecirc trouxe o
meu povo Ocirc meu Pai Eterno o Senhor trouxe o meu povo pra mim conhecer aindardquo
quando da nossa chegada em sua casa naquela terccedila-feira 10 de marccedilo de 2015 O
desafio colocado pela escrita antropoloacutegica ndash de construccedilatildeo de uma objetividade
perspectiva parcial e situada ndash deste modo natildeo deve ser orientado pela noccedilatildeo de
crenccedila mas pela reflexatildeo sobre como estas pessoas constroem o mundo com base
227
na articulaccedilatildeo destes conceitos Trata-se afinal de um saber sobre o mundo
(GOLDMAN 2003 p 461)
Outro desafio foi o de encontrar uma certa estabilidade que seria produzida
no registro da experiecircncia na forma de texto no que tange a processos percebidos
pelos meus interlocutores(as) como accedilatildeo e transformaccedilatildeo no mundo vivido Busquei
criar uma reflexatildeo analiacutetica a partir destas experiecircncias que foram perpassadas por
emoccedilotildees intensas e que me faziam refletir sobre a trajetoacuteria dos meus proacuteprios
antepassados como meus avoacutes paternos que tambeacutem saiacuteram do estado de Minas
Gerais em direccedilatildeo ao norte do Paranaacute na deacutecada de 1940 em busca de melhores
condiccedilotildees de vida Nossos caminhos haviam se entrelaccedilado e como diria Ingold a
partir dali um noacute havia sido criado unindo nossas trajetoacuterias (INGOLD 2011 p 148)
o que espero possa se desdobrar na continuidade desta pesquisa com a intenccedilatildeo de
aprofundar a reflexatildeo sobre muitos pontos que demandam maior investimento de
anaacutelise
Como indagaccedilatildeo final proposta por este trabalho fica a questatildeo de ateacute que
ponto a autoidentificaccedilatildeo e a reconfiguraccedilatildeo do conceito de quilombo estatildeo
consolidadas para os atores que lidam com os procedimentos estatais sobre esta
temaacutetica Eacute necessaacuterio neste processo que se reconheccedila a historicidade e a
diversidade de trajetoacuterias que constitui tais grupos sociais suas dinacircmicas e agecircncias
de modo que se possa garantir direitos sem que se parta de uma fundamentaccedilatildeo
cristalizada decorrente da ideia de territorialidade fixa ou mesmo de imobilidade
Quando pensamos no conceito de ldquotradicionalrdquo natildeo devemos deste modo buscar
uma continuidade direta e substancializadora da identidade (como na perspectiva
produzida pelo primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo) mas um tipo de relaccedilatildeo especial
com este passado coletivo que permite a manutenccedilatildeo da organizaccedilatildeo social que estaacute
ela mesma sempre em transformaccedilatildeo (como analisado pelo segundo relatoacuterio)
No caso da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos estamos
falando da diferenccedila entre por um lado partir da ideia de uma origem a ser
comprovada enquanto requisito para o reconhecimento da identidade quilombola e a
compreensatildeo por outro de como essa origem eacute acionada como importante elemento
identitaacuterio ndash pelos proacuteprios atores sociais enquanto ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo
(HALBWACHS 2003 p 94) ndash na forma pela qual se relacionam e se reinventam
como trajetoacuteria compartilhada Este viacutenculo com a origem se expressa na fala de Adir
228
ndash ao comentar sobre a nossa viagem e agradecer a recepccedilatildeo que recebemos de D
Regina e D Zulmira ndash com a qual encerro essas reflexotildees
Eu quero aqui agradecer em nome de toda a comunidade Manoel Ciriaco dos Santos que a senhora conheceu que noacutes demos o nome dessa comunidade em memoacuteria dele em Guaiacutera Paranaacute Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos onde a gente comeccedilou Meu sonho era buscar a histoacuteria da famiacutelia () E enquanto eu natildeo conseguir a histoacuteria da nossa famiacutelia que somos famiacutelia mas eu quero buscar desde o passado ateacute o presente eu natildeo vou descansar Se um dia eu morrer vou morrer feliz mas conhecer a nossa histoacuteria a histoacuteria de todos noacutes () Essa passagem taacute sendo experiecircncia pra mim porque como um filho de mineiro um filho dessa terra de pisar aqui nessa terra Que a minha vontade era andar descalccedilo soacute andar andar andar O que eu pensava era soacute andar
229
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DANDARA DOS SANTOS DAMAS RIBEIRO
COMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS SANTOS IDENTIDADE E
FAMIacuteLIAS NEGRAS EM MOVIMENTO
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia Social Setor de Ciecircncias Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paranaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Antropologia Social
Orientadora Prof Dra Liliana de Mendonccedila Porto
CURITIBA
2015
uNivgRSiCAoe feoeR A t d o Pa r a n a
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA SETOR DE CIEcircNCIAS HUMANASPROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ANTROPOLOGIA RUA GENERAL CARNEIRO 460 6o ANDAR CEP 80060-150 - CURITIBA-PR Telefone (41) 3360-5272
PARECER DA BANCA EXAMINADORA
Os membros da Banca Examinadora designada pelo Colegiado do
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia da Universidade Federal do Paranaacute
(PPGA) para realizar a arguiccedilatildeo da Dissertaccedilatildeo de Mestrado de Dandara dos Santos
Damas Ribeiro intitulada ldquoCOMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS
SANTOS IDENTIDADE E FAMIacuteLIAS NEGRAS EM MOVIMENTOrdquo apoacutes terem
inquirido a aluna e realizado a avaliaccedilatildeo do trabalho satildeo de parecer pela
s u a j^ ^ ^Ccedil s f^ completando-se assim todos os requisitos previstos nas normas
desta Instituiccedilatildeo para a obtenccedilatildeo do Grau de Mestre em Antropologia Social
Consideraccedilotildees adicionais da Banca Examinadora
K CAtilde-~ ikjOu
ampJSraquo V3 51X ^V CUacuteUumlSS^sSi bull
Curitiba 23 de novembro de 2015
Profa Dra Liliana de Mendonccedila Porto Orientadora r
Prof Dr Andreacute Dumaifjs Guedes 1o Examinador
laacuteampgyCjProf Dr Ricardo Cid Fernandes
2a Examinador
Dedico este trabalho ao meu pai Antocircnio e agrave minha matildee Elisabete O apoio a
paciecircncia a generosidade e o amor que recebi de vocecircs foram o oxigecircnio para este
mergulho bem como para o recomeccedilo que se anuncia
AGRADECIMENTOS
Entendo essa pesquisa como uma primeira tentativa de organizaccedilatildeo de um
rico material de campo como a possibilidade de aprofundamento do viacutenculo que jaacute
possuiacutea e que pretendo manter com as famiacutelias quilombolas de GuaiacuteraPR e espero
o iniacutecio de uma longa caminhada de dedicaccedilatildeo agrave Antropologia Agradeccedilo muitiacutessimo
pela receptividade para a realizaccedilatildeo da pesquisa em todos os lugares que percorri
durante o trabalho de campo GuaiacuteraPR Presidente PrudenteSP Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG e SerroMG Agraves famiacutelias da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos
Santos o meu agradecimento pela hospitalidade confianccedila atenccedilatildeo e aprendizados
Sou grata a Deus por nossos caminhos terem confluiacutedo para a oportunidade deste
conviacutevio que foi repleto de experiecircncias incomensuraacuteveis
Agradeccedilo pela possibilidade de mergulho na Antropologia um novo caminho
que comecei a trilhar na minha graduaccedilatildeo no curso de Direito da UFPR Esta
curiosidade se ampliou com a oportunidade de trabalhar no Ministeacuterio Puacuteblico do
Paranaacute que me proporcionou o contato com vaacuterias comunidades quilombolas no
estado oportunidade pela qual agradeccedilo ao procurador de justiccedila e amigo Dr Marcos
Fowler Percebo como finalizo essa pesquisa com a convicccedilatildeo de que o que eu
precisava mesmo era de uma experiecircncia de trabalho de campo que fizesse do
conviacutevio a base para uma proposta de conhecimento que busca a horizontalidade o
diaacutelogo e a sensibilidade ndash o que gera uma transformaccedilatildeo dentro e fora de noacutes Natildeo
poderia ter realizado esta pesquisa sem o apoio da minha famiacutelia que diante das
inseguranccedilas e desafios do caminho confortaram-me com a inestimaacutevel sensaccedilatildeo e
certeza de ser amada incondicionalmente Pela simplicidade e grandiosidade deste
amor sem preacute-condiccedilotildees sou grata eternamente em especial aos meus avoacutes Doca
e Ruy Joatildeo aos meus pais Antocircnio e Elisabete agraves minhas irmatildes Tatiara Naiara e
Janaina ao meu cunhado Marcelo e agrave minha sobrinha Olga Agrave Naiara um
agradecimento todo especial pelas contribuiccedilotildees no processo de revisatildeo deste texto
em sua versatildeo final com seu amparo atenccedilatildeo e amor Aos meus avoacutes Joaquim e
Maria Julia em memoacuteria agradeccedilo e os homenageio lembrando de suas trajetoacuterias
como migrantes os quais assim como meus interlocutores(as) tambeacutem saiacuteram de
Minas Gerais em direccedilatildeo ao norte do Paranaacute em busca de melhores condiccedilotildees de
vida Durante o periacuteodo do trabalho de campo em Santo Antocircnio do Itambeacute e
SerroMG lembrei-me dos dois e no coraccedilatildeo os senti tatildeo proacuteximos
Se de longe recebi o incentivo dos meus familiares de perto agradeccedilo e
honro o conforto da presenccedila de meu companheiro de jornada Jean Luis com seu
apoio cotidiano confianccedila carinho atenccedilatildeo amor e magia Agrave grande famiacutelia que nos
tornamos junto com os amigos Simone e Julio Ceacutesar Angeacutelica e Gustavo com suas
crianccedilas abenccediloadas Brisa Mareacute Otto e Joatildeo eu agradeccedilo por terem preenchido
meu cotidiano de amor alegria e uniatildeo Aos meus colegas de mestrado agradeccedilo
pela convivecircncia proacutespera Em especial agrave Gabi ao ldquoTucanordquo e agrave Karina dos quais
recebi toda a ajuda necessaacuteria para o ingresso no programa de poacutes-graduaccedilatildeo em
Antropologia da UFPR Agradeccedilo tambeacutem o incentivo ao longo de todo o curso e a
confianccedila que depositaram em mim Com vocecircs compartilho memoacuterias muito
especiais de um periacuteodo uacutenico de minha vida Ao meu querido amigo Leonardo Bora
minha gratidatildeo e alegria por poder contar com sua generosidade na revisatildeo do texto
Agrave minha orientadora Profa Dra Liliana de Mendonccedila Porto agradeccedilo pelo
acompanhamento gentil e consistente pela delicadeza sensibilidade e estiacutemulos
contiacutenuos em nossas conversas por seu exemplo de antropoacuteloga e de pessoa que
seratildeo sempre referecircncias para mim A todos os professores e teacutecnicos do Curso de
Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia da Universidade Federal do Paranaacute agradeccedilo pela
dedicaccedilatildeo e pelos ensinamentos compartilhados Em especial aos Professores Dr
Ricardo Cid Fernandes e Dr Joatildeo Rickli pelas contribuiccedilotildees e sugestotildees ao trabalho
na banca de qualificaccedilatildeo
Ao pesquisador Cassius Cruz sou muito grata pela oportunidade da parceria
de pesquisa na realizaccedilatildeo das viagens a Minas Gerais Tambeacutem ao professor Dr
Matheus de Mendonccedila Gonccedilalves Leite e ao pesquisador Tiago Geisler ambos da
PUCSerro agradeccedilo pelo apoio e solicitude com que nos receberam no municiacutepio do
SerroMG Sem a disponibilidade de vocecircs nossa pesquisa na regiatildeo teria sido muito
difiacutecil ou mesmo inviaacutevel O significado dessa experiecircncia na minha vida e na de meus
interlocutores(as) transcende em muito as reflexotildees desta dissertaccedilatildeo
Preciso me encontrar
ldquoDeixe-me ir
Preciso andar
Vou por aiacute a procurar
Rir pra natildeo chorarrdquo
Cartola
Agraves vezes me chamam de negro
Agraves vezes me chamam de negro
Pensando que vatildeo me humilhar
Mas o que eles natildeo sabem
Eacute que soacute me faz relembrar
Que eu venho daquela raccedila
Que lutou pra se libertar
Que eu venho daquela raccedila
Que lutou pra se libertar
Que criou o maculelecirc
E acredita no candombleacute
E que tem o sorriso no rosto
Oi a ginga no corpo e o samba no peacute
O que eacute que tem
E que tem o sorriso no rosto
Oi a ginga no corpo e o samba no peacute
(Ladainha de Capoeira)
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo baseada na etnografia realizada junto agrave ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo localizada em GuaiacuteraPR problematiza a vinculaccedilatildeo direta entre a legitimidade da reivindicaccedilatildeo territorial das comunidades quilombolas e a ideia de territorialidade fixa que tem sido presumida pela poliacutetica de garantia de direitos territoriais quilombolas no Brasil Esta pesquisa indicou como a construccedilatildeo da identidade quilombola eacute perpassada pelos processos de deslocamentos constitutivos da trajetoacuteria das famiacutelias que vivem atualmente em GuaiacuteraPR mas satildeo provenientes de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG A reivindicaccedilatildeo da identidade quilombola eacute elaborada pelos meus interlocutores(as) com base na origem e na ancestralidade comuns com antepassados negros que foram escravizados nesta regiatildeo de Minas Gerais a partir da qual ocorre a saiacuteda das famiacutelias em busca de melhores condiccedilotildees de vida passando pelo estado de Satildeo Paulo ateacute a mudanccedila para GuaiacuteraPR onde adquirem aacuterea proacutepria Nas narrativas dos membros da comunidade percebe-se como o movimento natildeo dissolve mas ao contraacuterio sustenta o pertencimento coletivo Este caso exemplifica como a ideia de territorialidade fixa desconsidera experiecircncias de ldquoresistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo ndash criteacuterio trazido pelo Decreto Federal 48872003 ao regulamentar o processo de titulaccedilatildeo quilombola ndash constituiacutedas por meio de estrateacutegias de deslocamento e natildeo pela permanecircncia em um mesmo territoacuterio de ocupaccedilatildeo tradicional Estas dinacircmicas de movimento foram em um primeiro momento do processo de regularizaccedilatildeo territorial que ainda tramita no Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (INCRA) entendidas como um elemento de descaracterizaccedilatildeo da legitimidade da reivindicaccedilatildeo do grupo pelo primeiro relatoacuterio antropoloacutegico produzido sobre a comunidade Com a natildeo aprovaccedilatildeo deste estudo por parte do INCRA um novo relatoacuterio foi contratado tendo este investido no argumento de que haacute uma continuidade entre as dinacircmicas socioculturais do grupo de GuaiacuteraPR e as comunidades quilombolas de sua regiatildeo origem a partir de pesquisa realizada no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio ItambeacuteMG Esta pesquisa realizada pelo segundo relatoacuterio criou o interesse por parte da comunidade de que eles mesmos pudessem visitar a regiatildeo Tais viagens de retorno foram realizadas no acircmbito desta dissertaccedilatildeo para buscarmos mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica das famiacutelias o que gerou um entrelaccedilamento entre a minha pesquisa e a trajetoacuteria do grupo O (re)encontro entre parentes perdidos e a possibilidade de acesso agraves histoacuterias dos antepassados proporcionados por estas viagens sugerem que a busca pela reconstituiccedilatildeo de histoacuterias e viacutenculos com a regiatildeo de origem por parte dos quilombolas de GuaiacuteraPR natildeo se restringe ao acircmbito instrumental e administrativo mas tem tambeacutem uma importante dimensatildeo afetiva A articulaccedilatildeo destas dimensotildees aponta para o anseio dos quilombolas pelo reconhecimento da legitimidade de sua versatildeo sobre sua histoacuteria do valor de sua origem e trajetoacuteria bem como do direito de se construiacuterem como sujeitos e como coletividade especiacutefica
Palavras-chave comunidade quilombola relatoacuterios antropoloacutegicos movimento memoacuteria
ABSTRACT
The present thesis based on ethnography with the Quilombola Community Manoel Ciriaco dos Santos a black community located in Guaiacutera Paranaacute State (PR) Brazil questions the direct link between the legitimacy of the territorial claims of quilombola communities and the fixed territoriality idea that has been assumed by the quilombola land rights guarantee policy in Brazil This research indicated how the construction of a quilombola identity includes process of movement that are present in the trajectory of displacements of a group of families who although originally from Santo Antocircnio do Itambeacute in Minas Gerais State live nowadays in GuaiacuteraPR Their claim over a quilombola identity is elaborated on the bases of a common origin and ancestrality of black enslaved ancestors from the Center-Northeast region of Minas Gerais which unfolds in a journey for better life conditions leaving the place crossing Satildeo Paulo State and finally arriving at GuaiacuteraPR where they acquired their own land In the narratives of community members it is noticeable that the movement does not dissolve but rather sustains the collective pertaining This case exemplifies how the fixed territoriality idea disregards experiences of resistance to historical oppression- feature brought by the Federal Decree 48872003 that regulates the process of quilombola titling - that are based on shifting strategies and not by staying in one traditionally occupied territory These movement dynamics were regarded in the first instance of the land regularization process which is still pending in the National Institute of Colonization and Agrarian Reform (INCRA) as a distortion element of the legitimacy of the groups identity claim by the first anthropological report on the community With the rejection of this study by the INCRA a new report was hired From research held in the surrounding area of the municipality of Santo Antocircnio do ItambeacuteMG the repory argument that there is a continuity between the socio-cultural dynamics of the Guaira group and the quilombola communities of their region of origin This research by the second anthropological report has created the interest from the community that they themselves could visit the region Such return trips were undertaken in this thesis to seek more information on the historical trajectory of these families which generated an entanglement between my research and the trajectory of the group The re-gathering among long unseen relatives and the possibility of access to the stories of ancestors provided by these trips suggest that the search for the reconstitution of stories and links with the region of origin by the quilombolas of GuaiacuteraPR is not restricted by mere instrumental or administrative aim but also it has an important affective dimension The articulation of these dimensions points to the quilombolarsquos desire for recognition of the legitimacy of the communityrsquos version of their own history of the value of their origin and trajectory of their right to shape themselves as subjects and as an specific collectivity
Key-words quilombola community anthropological reports movement memory
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Guaiacutera na divisa com o Paraguai e o estado
Mato Grosso do Sul32
FIGURA 2 Presenccedila de tekohas guaranis e da comunidade quilombola Manoel
Ciriaco dos Santos em Guaiacutera e Terra Roxa34
FIGURA 3 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute39
FIGURA 4 Excerto Genealoacutegico 143
FIGURA 5 Excerto Genealoacutegico 2 44
FIGURA 6 Excerto Genealoacutegico 348
FIGURA 7 ndash Documentos de identidade de Manoel Ciriaco dos Santos nascido em
16031920 e Ana Rodrigues nascida em 26071930 ambos no municiacutepio de Santo
Antocircnio do ItambeacuteMG (Comarca de Serro)50
FIGURA 8 Foto do acervo da famiacutelia53
FIGURA 9 Fluxo migratoacuterio54
FIGURA 10 Divisatildeo setorial da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos
Santos57
FIGURA 11 Cartaz sobre a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia65
FIGURA 12 Geralda com imagem de preto-velho que compotildeem o seu altar79
FIGURA 13 Carteirinha de Geralda do Conselho Mediuacutenico do Brasil80
FIGURA 14 Altina importante benzedeira na memoacuteria comunitaacuteria81
FIGURA 15 Geralda e Antocircnio (Guaraacute) em frente ao altar apoacutes a realizaccedilatildeo da
ldquoGirardquo85
FIGURA 16 Capelinha para Nossa Sordf Aparecida presenteada por D Ana92
FIGURA 17 Geraldo em 1972 quando foi pagar sua promessa em AparecidaSP93
FIGURA 18 Liacuteder da comunidade quilombola eacute ameaccedilado139
FIGURA 19 ldquolsquoLaparsquo utilizada ateacute os dias atuais como moradia quilombola na
comunidade Mata dos CrioulosMGrdquo153
FIGURA 20 O encontro entre os dois irmatildeos ldquoJoatildeordquo em Presidente PrudenteSP175
FIGURA 21 Famiacutelia reunida em Presidente PrudenteSP na casa de D Jovelina176
FIGURA 22 Valdeniacutecio explicando o funcionamento da farinheira178
FIGURA 23 Mesa ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos
geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova
(MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo184
FIGURA 24 Seu Adatildeo D Necila (ambos de Vila Nova) Adir Geralda D Maria
Geralda (Vila Nova) e Seu Joatildeo185
FIGURA 25 Em frente agrave casa de D Necila Na esquerda da foto ela e Adir estatildeo
conversando e ao lado dois parentes tocando violatildeo e sanfona186
FIGURA 26 Regiatildeo no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute identificado
pelo traccedilado vermelho187
FIGURA 27 Geralda e D Necila na frente do forno de barro no quintal da casa de D
Necila190
FIGURA 28 Adir gravando a conversa com Seu Daniel194
FIGURA 29 D Zulmira e D Regina mandam mensagens para a irmatilde D Maria das
Dores197
FIGURA 30 Excerto Genealoacutegico 4199
FIGURA 31 Adir e Geralda com a tia Ana Raimunda202
FIGURA 32 Geralda faz uma reverecircncia em frente agrave Igreja Matriz203
FIGURA 33 Retrato de Padre Joviano na casa de Seu Daniel205
FIGURA 34 Adir Seu Joatildeo e Geralda junto agrave estaacutetua de Padre Joviano206
FIGURA 35 As trecircs irmatildes na missa na Igreja de Santo Antocircnio do Itambeacute213
FIGURA 36 D Maria sentada na cadeira ao lado de sua irmatilde D Zulmira sua
sobrinha com o marido e os filhos214
FIGURA 37 Teresa D Maria das Dores e Anita na rodoviaacuteria de Belo
Horizonte215
FIGURA 38 Reencontro de Ana Raimunda com Jovelina depois de 59 anos217
FIGURA 39 D Ana Raimunda com os parentes em Presidente PrudenteSP na casa
da sobrinha Jovelina218
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO12
i ndash Estrutura dos Capiacutetulos19
ii ndash Notas sobre a pesquisa26
1 IDENTIDADE EM MOVIMENTO 31
11 SANTO ANTOcircNIO DO ITAMBEacuteMG E GUAIacuteRAPR DOIS PONTOS DE UMA
LINHA 31
12 A MEMOacuteRIA DOS CAMINHOS E OS CAMINHOS DA MEMOacuteRIA59
13 O CONTINUUM DA RELIGIOSIDADE74
2 IDENTIDADE QUILOMBOLA E RELATOacuteRIOS ANTROPOLOacuteGICOS96
21 O AUTORRECONHECIMENTO COMO QUILOMBOLAS109
22 O PRIMEIRO RELATOacuteRIO ldquoANTI-ANTROPOLOacuteGICOrdquo116
23 O CONFLITO COM OS PROPRIETAacuteRIOS VIZINHOS131
24 UM NOVO RELATOacuteRIO ANTROPOLOacuteGICO142
3 ldquoEacute COMO SE NOacuteS VOLTASSE A PAacuteGINA DA NOSSA VIDA DO COMECcedilOrdquo159
31 A ldquoVIAGEM DA VOLTArdquo159
32 O CAMINHO ATEacute MINAS GERAIS 168
321 A passagem por Presidente PrudenteSP e os irmatildeos mais velhos171
322 A chegada em SerroMG e a ida agrave Comunidade Quilombola Vila Nova180
323 Enfim em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG191
3231 Encontro com D Zulmira D Regina e D Ana Raimunda194
3232 Padre Joviano o pai de criaccedilatildeo de Maria Olinda203
3233 A famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente206
324 Novos movimentos210
3241 O reencontro das irmatildes211
3242 D Jovelina e o convite para a tia Ana Raimunda216
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS221
12
INTRODUCcedilAtildeO
As narrativas das famiacutelias negras a respeito do periacuteodo posterior agrave aboliccedilatildeo
formal da escravidatildeo no Brasil em 1888 tecircm vindo agrave tona nas uacuteltimas trecircs deacutecadas
por meio da emergecircncia da reivindicaccedilatildeo identitaacuteria das ldquocomunidades quilombolasrdquo
Este florescimento de narrativas foi estimulado pela inserccedilatildeo do direito agrave propriedade
coletiva dos territoacuterios sociais tradicionalmente ocupados conforme previsto na
Constituiccedilatildeo Federal (CF) de 1988 no artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees
Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) que versa ldquoaos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras eacute reconhecida a
propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivosrdquo Com este
ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo1 (OLIVEIRA FILHO 1998) e a consequente
reelaboraccedilatildeo da relaccedilatildeo com o passado como novos sujeitos poliacuteticos tem ocorrido
a ldquorecuperaccedilatildeo e reenquadramento da memoacuteria ateacute entatildeo recalcadardquo (ARRUTI 2006
p 28)
O ldquoprocesso de nominaccedilatildeordquo dos ldquoremanescentes das comunidades dos
quilombosrdquo na CF instituiu assim uma categoria juriacutedica e administrativa para
identificar sujeitos de direitos coletivos como objeto de accedilatildeo do Estado (ARRUTI
2006 p 45) No entanto o artigo constitucional permaneceu sem aplicaccedilatildeo ateacute 1995
(tricentenaacuterio da morte de Zumbi) sendo que soacute foi complementado por uma
regulamentaccedilatildeo que previa a criaccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica com condiccedilotildees miacutenimas
para realizar a titulaccedilatildeo territorial das comunidades quilombolas em 2003 Trata-se
do Decreto Federal 4887 que revogou o Decreto Federal anterior 3912 de 2001 Para
esta regularizaccedilatildeo territorial eacute exigida a elaboraccedilatildeo de um relatoacuterio antropoloacutegico ndash
que figura como a primeira peccedila teacutecnica produzida no acircmbito do processo de titulaccedilatildeo
quilombola ndash responsabilidade do Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio por meio
1 Segundo o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo consiste no
processo por meio do qual os grupos sociais (no caso da discussatildeo especiacutefica do autor o foco satildeo povos indiacutegenas mas este mesmo raciociacutenio pode ser estendido para as comunidades quilombolas) tornam-se coletividades organizadas enquanto objeto poliacutetico-administrativo de modo que formulam uma identidade proacutepria estabelecem mecanismos de decisatildeo e de representaccedilatildeo e reestruturam as suas formas culturais Assim ldquoas afinidades culturais ou linguiacutesticas bem como os viacutenculos afetivos e histoacutericos porventura existentes entre os membros dessa unidade poliacutetico-administrativa (arbitraacuteria e circunstancial) seratildeo retrabalhados pelos proacuteprios sujeitos em um contexto histoacuterico determinado e contrastados com caracteriacutesticas atribuiacutedas aos membros de outras unidades deflagrando um processo de reorganizaccedilatildeo sociocultural de amplas proporccedilotildeesrdquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 56)
13
do Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (INCRA) atraveacutes de suas
superintendecircncias estaduais2
Esta dissertaccedilatildeo busca analisar o processo de reconstituiccedilatildeo das memoacuterias e
da histoacuteria coletiva fruto da emergecircncia identitaacuteria da comunidade negra
autodenominada ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo localizada em
Guaiacutera no estado do Paranaacute (PR) Esta comunidade desde 2008 haacute sete anos
iniciou o processo de titulaccedilatildeo de seu territoacuterio junto agrave Superintendecircncia do INCRA no
Paranaacute Este procedimento administrativo que tramita com o nordm 542000010752008-
46 foi marcado pelo desencadeamento de conflitos e incompreensotildees resultando na
produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos em decorrecircncia da anulaccedilatildeo do primeiro
A trajetoacuteria de reconhecimento desta comunidade apresentou desafios especiacuteficos
tendo em vista que sua histoacuteria destoa do imaginaacuterio redutivo e preacute-concebido
comumente atribuiacutedo agraves comunidades quilombolas3 que parte de uma ideia de
fixaccedilatildeo territorial e de uma relaccedilatildeo ancestral e contiacutenua com um mesmo territoacuterio
tradicionalmente ocupado Este grupo quilombola no Paranaacute constroacutei sua identidade
coletiva como iremos analisar ao longo deste trabalho a partir de processos de
deslocamentos geograacuteficos no qual GuaiacuteraPR eacute o ponto de chegada para algumas
famiacutelias e ponto de passagem para outras
O municiacutepio de Guaiacutera estaacute na regiatildeo de fronteira internacional entre o Brasil
e o Paraguai definida pelos contornos do Rio Paranaacute no extremo oeste do estado
Nesta regiatildeo tais famiacutelias chegaram como gostam de narrar no comeccedilo da deacutecada
de 60 a partir de um movimento iniciado no estado de Minas Gerais (MG) passando
2 Esta atribuiccedilatildeo de titulaccedilatildeo dos territoacuterios quilombolas nas Superintendecircncias Regionais do INCRA
eacute executada pelo ldquoServiccedilo de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolasrdquo que integra a ldquoDivisatildeo de Ordenamento da Estrutura Fundiaacuteriardquo Disponiacutevel em httpwwwincragovbrincra-nos-estados Acesso em 291015 3 Um exemplo da forte presenccedila desta loacutegica reducionista no campo juriacutedico eacute o voto do entatildeo Ministro
do Supremo Tribunal Federal (STF) Cezar Peluso que foi o relator em 18 de abril de 2012 da Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade 3239 proposta pelo Partido Democratas questionando a constitucionalidade do Decreto Federal 4887 de 2003 O voto do Ministro Relator que abriu o julgamento baseou-se na acepccedilatildeo histoacuterica de quilombo para interpretar o sentido e a abrangecircncia da aplicaccedilatildeo do artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias Caso o julgamento venha a confirmar este mesmo entendimento do Ministro Peluso haveraacute um enorme retrocesso na poliacutetica quilombola com a retirada do Decreto 4887 de 2003 do ordenamento juriacutedico e com a necessidade de que tal direito seja regulamentado por lei a ser aprovada pelo Congresso Nacional no qual a bancada ruralista eacute muito expressiva Endereccedilo eletrocircnico do viacutedeo da sessatildeo de julgamento httpwwwyoutubecomwatchv=ZV94XhbFV6s Acesso em 08012015 Para uma anaacutelise do voto do ministro ver artigo que desenvolvi neste sentido (RIBEIRO 2015)
14
pela regiatildeo oeste do estado de Satildeo Paulo (SP) no municiacutepio de Caiabu4 ndash distante
quarenta quilocircmetros de Presidente Prudente5 que eacute o municiacutepio polo da regiatildeo ndash
onde chegaram em 1956 As narrativas quilombolas destacam que Manoel trabalhou
com a famiacutelia em CaiabuSP na colheita de algodatildeo e amendoim ateacute que ele e mais
alguns parentes resolvem se mudar com o objetivo de comprar terras no extremo
oeste do Paranaacute na regiatildeo dos municiacutepios de Guaiacutera e Terra Roxa
Em Minas6 viviam no municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute considerado o
local de origem do grupo localizado proacuteximo ao iniacutecio da regiatildeo conhecida como ldquoVale
do Jequitinhonhardquo Satildeo as memoacuterias dos mais velhos sobre esta regiatildeo de origem que
constituem a base da histoacuteria deste grupo conforme eacute mobilizada pelas famiacutelias que
vivem atualmente em Guaiacutera e cujos membros importante destacar jaacute nasceram no
estado de Satildeo Paulo ou no Paranaacute ou seja depois do iniacutecio do processo de
descolamento das famiacutelias
Nas narrativas sobre o passado mineiro da comunidade haacute referecircncias a
ancestrais que foram escravizados no garimpo e em fazendas da regiatildeo cujo
povoamento ainda no seacuteculo XVIII surgiu com a exploraccedilatildeo de ouro vinculada agrave
expansatildeo bandeirante paulista com forte presenccedila da escravidatildeo africana (PORTO
2007 p 66) No entanto as memoacuterias da escravidatildeo deste grupo natildeo estatildeo
circunscritas em suas narrativas ao tempo da escravidatildeo jaacute que haacute uma extensatildeo
temporal que expressa uma percepccedilatildeo de continuidade desta experiecircncia por meio
da situaccedilatildeo de viver como escravo (MELLO 2012 p 214)
4 O municiacutepio de CaiabuSP antes distrito de Regente Feijoacute foi criado pela Lei Estadual nordm 2456 de
1953 Nesta localidade desde 1935 com o iniacutecio do povoamento havia plantaccedilotildees de algodatildeo e outras culturas na qual a famiacutelia de Manoel se inseriu a partir de 1956 De acordo com Censo do IBGE realizado em 2010 o municiacutepio tem uma populaccedilatildeo de 4072 habitantes Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=350890ampsearch=||infogrE1ficos-informaE7F5es-completas Acesso em 041115 5 De acordo com Censo do IBGE realizado em 2010 o municiacutepio de Presidente PrudenteSP tem uma
populaccedilatildeo de 207610 habitantes Seu povoamento foi iniciado ainda no seacuteculo XIX a partir dos deslocamentos de mineiros para a regiatildeo que com o esgotamento das minas de ouro estavam ldquoem busca de terras boas para a lavourardquo Foi elevado agrave categoria de municiacutepio pela Lei nordm 1798 de 1921 desmembrado do municiacutepio de Campos Novos e Conceiccedilatildeo de Monte Alegre Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrpainelhistoricophplang=ampcodmun=354140ampsearch=sao-paulo|presidente-prudente|infograficos-historico Acesso em 041115 Presidente PrudenteSP exerce assim influecircncia sobre os municiacutepios menores do entorno Iremos destacar ao longo do trabalho a passagem das famiacutelias provenientes de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG pelo estado de Satildeo Paulo por meio da referecircncia agrave ldquoregiatildeo de Presidente Prudenterdquo pois natildeo tive acesso a muitas referecircncias especiacuteficas em relaccedilatildeo agrave forma e ao histoacuterico de ocupaccedilatildeo das famiacutelias nesta regiatildeo embora se indique que Manoel viveu em CaiabuSP 6 Uso a grafia em itaacutelico para a sinalizaccedilatildeo de expressotildees nativas e aspas duplas para as falas dos meus interlocutores e citaccedilotildees bibliograacuteficas
15
Nestes deslocamentos de Minas Gerais ao Paranaacute o movimento destas
famiacutelias negras foi traccedilado em direccedilatildeo primeiro agrave regiatildeo de Presidente PrudenteSP
onde se estabeleceram por alguns anos trabalhando na aacuterea rural em terras
arrendadas No comeccedilo da deacutecada de 60 vislumbraram entatildeo a possibilidade de
adquirirem aacutereas proacuteprias nos loteamentos rurais na regiatildeo de GuaiacuteraPR em contato
com pessoas que trabalhavam como ldquocorretoresrdquo e buscavam pessoas interessadas
no estado de Satildeo Paulo Novamente resolvem se deslocar agora em direccedilatildeo ao
extremo oeste paranaense onde adquirirem aacuterea no loteamento rural de iniciativa da
Sociedade Agropecuaacuteria Industrial e Comercial Maracaju LTDA que tinha sede em
Caxias do Sul Este loteamento eacute atualmente denominado como bairro rural ldquoMaracaju
dos Gauacutechosrdquo distante vinte quilocircmetros do centro comercial do municiacutepio de
GuaiacuteraPR
Estes deslocamentos constitutivos da experiecircncia do grupo satildeo articulados
por meio da atribuiccedilatildeo de uma dimensatildeo moral em relaccedilatildeo ao desrespeito coletivo ao
qual percebem terem sido submetidos e que constitui um aspecto central da
elaboraccedilatildeo de sua identidade coletiva A identificaccedilatildeo deste desrespeito7 ndash percebido
na situaccedilatildeo de precariedade de condiccedilotildees de vida e no preconceito racial sofrido por
estas famiacutelias negras enquanto fator determinante para tais movimentos com o alto
custo emocional gerado pela separaccedilatildeo entre parentes ndash veio agrave tona com o processo
de reconhecimento do grupo como quilombolas Como procuraremos apontar eacute a
trajetoacuteria coletiva de movimento e a relaccedilatildeo com esta origem mineira que constitui a
fonte de pertencimento identitaacuterio que estrutura o processo de etnogecircnese no caso do
quilombo de GuaiacuteraPR8
No entanto esta trajetoacuteria natildeo foi tida como legiacutetima em muitas situaccedilotildees de
contato do grupo com agentes externos inclusive no acircmbito do procedimento de
regularizaccedilatildeo territorial que tramita no INCRA Em contraste com este modo de
elaboraccedilatildeo da identidade que eacute reivindicada a partir da trajetoacuteria de movimento a
interpretaccedilatildeo corrente com base na previsatildeo normativa tem tomado a territorialidade
7 Ao que Arruti denomina ldquoprocesso de identificaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 46) 8 A relaccedilatildeo entre trajetoacuteria e origem segundo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho pode ser compreendida
como dinacircmica constitutiva da etnicidade pois esta supotildee necessariamente uma trajetoacuteria histoacuterica ldquodeterminada por muacuteltiplos fatoresrdquo e uma origem enquanto experiecircncia primaacuteria ldquotraduzida em saberes e narrativas aos quais vem a se acoplarrdquo Deste modo ldquoo que seria proacuteprio das identidades eacutetnicas eacute que nelas a atualizaccedilatildeo histoacuterica natildeo anula o sentimento de referecircncia agrave origem mas ateacute mesmo o reforccedila Eacute da resoluccedilatildeo simboacutelica e coletiva dessa contradiccedilatildeo que decorre a forccedila poliacutetica e emocional da etnicidaderdquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64)
16
como epicentro da identidade bem como da mobilizaccedilatildeo por direitos no processo de
reconhecimento puacuteblico dos grupos quilombolas no Brasil Tendo como referecircncia a
previsatildeo constitucional do artigo 68 do ADCT referida acima tem sido pressuposta
uma equivalecircncia entre a ancestralidadecontinuidade da ocupaccedilatildeo do territoacuterio
tradicional e a legitimidade da emergecircncia eacutetnica
A relaccedilatildeo entre ldquoterritoacuteriordquo e ldquoidentidaderdquo tambeacutem tem sido enfocada no debate
atual mais amplo sobre as comunidades tradicionais o que se daacute por meio da
construccedilatildeo de ldquouma articulaccedilatildeo especiacutefica entre certas dimensotildees lsquoespaciaisrsquo e outras
lsquoculturaisrsquordquo Poreacutem eacute necessaacuterio pensar as praacuteticas espaciais desses grupos sociais
sem pressupor ndash como parece mais palataacutevel e administraacutevel pela loacutegica estatal ndash que
eles estejam ldquoa priori (ou a posteriori) destinados ou lsquocondenadosrsquo a se enraizar num
pedaccedilo de solo qualquerrdquo (GUEDES 2013b p 53-56) Portanto
Faz-se necessaacuterio entatildeo contextualizar historicamente as ideias de ldquoterritoacuteriordquo e ldquoidentidaderdquo bem como destacar a contingecircncia da associaccedilatildeo existente entre elas em razatildeo da crescente popularidade de certas narrativas que certamente imbuiacutedas de propoacutesitos criacuteticos e poliacuteticos simpaacuteticos agrave causa das comunidades tradicionais inadvertidamente naturalizam o ldquoenraizamentordquo de tais grupos (GUEDES 2013b p 54)
A naturalizaccedilatildeo do enraizamento dos grupos quilombolas consiste em uma
ldquoidealizaccedilatildeo da situaccedilatildeo ldquopreacute-desterritorializaccedilatildeordquo esta uacuteltima implicitamente
sugerindo uma estabilidade ldquoterritorializadardquo destes grupos na terra que no contexto
brasileiro eacute antes a exceccedilatildeo do que a regrardquo (GUEDES 2013b p 55) Tal
interpretaccedilatildeo desconsidera no caso da formaccedilatildeo de grupos quilombolas o histoacuterico
de intensa movimentaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra nas deacutecadas poacutes-aboliccedilatildeo em busca
de terras para sua reproduccedilatildeo como campesinato autocircnomo Deste modo o
deslocamento de famiacutelias negras para aacutereas de colonizaccedilatildeo recente ndash como
GuaiacuteraPR ndash aparece como estrateacutegia de garantia de liberdade sempre ameaccediladas
pelo padratildeo de relaccedilotildees entre brancos e negros em regiotildees com um histoacuterico antigo
e consolidado de escravidatildeo (LIMA 2000) ndash caso de Minas Gerais Sem essa
consideraccedilatildeo mais ampla e complexa restringe-se a possibilidade de abarcar a
pluralidade de formas e contextos nos quais ocorreram a constituiccedilatildeo de territoacuterios
negros e as articulaccedilotildees identitaacuterias quilombolas no Brasil
A ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo por exemplo leva o
nome do patriarca da famiacutelia que liderou o processo de saiacuteda de Minas Gerais
17
chegada e consolidaccedilatildeo do grupo no Paranaacute Esta histoacuteria de deslocamentos implicou
em dificuldades natildeo soacute para a manutenccedilatildeo do contato entre parentes que se
dispersaram como tambeacutem para a reproduccedilatildeo intergeracional da memoacuteria coletiva
Um dos principais desafios dos membros da comunidade passava pela necessidade
de reelaboraccedilatildeo da memoacuteria coletiva que precisava ser reinterpretada agrave luz da
autoidentificaccedilatildeo como quilombolas O aumento do ciacuterculo de interaccedilatildeo do grupo com
agentes externos e a consequente influecircncia que este processo passou a ter em sua
autoimagem tornava necessaacuteria a construccedilatildeo de um novo lugar de legitimidade para
a sua histoacuteria na medida em que esta se transformava em ldquoprinciacutepio de justificaccedilatildeo
das demandas do presenterdquo (MELLO 2012 p 20) A construccedilatildeo de uma imagem de
si como quilombolas fez surgir entatildeo a necessidade de organizar ldquouma memoacuteria
linear e coerente sobre suas lsquoorigensrsquordquo (ARRUTI 2001 p 243) o que antes natildeo
aparecia como uma questatildeo a ser elaborada de forma sistemaacutetica por essas famiacutelias
No entanto a resposta a esta demanda esbarrou na ausecircncia dos parentes mais
velhos que viveram em Minas pois jaacute haviam falecido ou saiacutedo de GuaiacuteraPR
Esta necessidade de acessar a memoacuteria atraveacutes dos mais velhos e assim
subsidiar as suas narrativas em acircmbito oficial reconhecida pelos(as) proacuteprios(as)
quilombolas intensificou-se diante do questionamento levantado pelo primeiro
relatoacuterio antropoloacutegico9 publicado em 2010 e produzido no acircmbito do procedimento
do INCRA A trajetoacuteria de movimento do grupo foi em um primeiro momento lida
como obstaacuteculo para o reconhecimento puacuteblico de sua autoidentificaccedilatildeo Com o
transcorrer do processo de reconhecimento cada vez mais a busca pela nossa
histoacuteria e o desejo de retomar o contato com os parentes que permaneceram em MG
passam a ser um objetivo principalmente da lideranccedila do grupo Adir e tambeacutem uma
demanda de legitimaccedilatildeo identitaacuteria no contexto mais amplo Isso porque as memoacuterias
do grupo sobre a regiatildeo de origem e os processos de deslocamento que constituiacuteram
sua trajetoacuteria no seacuteculo XX mesmo que acessadas de modo indireto pelos que vivem
9 Como mencionado acima foram realizados dois relatoacuterios antropoloacutegicos no acircmbito do Procedimento
Administrativo (PA) 542000010752008-46 de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos que tramita na Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute instaurado em 24 de abril de 2008 O primeiro relatoacuterio realizado levantou questionamentos ao negar a legitimidade da autoidentificaccedilatildeo do grupo como quilombola e de sua trajetoacuteria histoacuterica especiacutefica tendo em vista a natildeo ancestralidade de ocupaccedilatildeo do territoacuterio e a inexistecircncia de registros de escravidatildeo negra na regiatildeo de GuaiacuteraPR Este primeiro relatoacuterio foi anulado pelo INCRA bem como foi rejeitado pelos quilombolas Estas questotildees referentes agrave produccedilatildeo dos relatoacuterios seratildeo aprofundadas no capiacutetulo 2
18
hoje na comunidade em Guaiacutera constituiacuteam o eixo da reivindicaccedilatildeo de uma
identidade quilombola
Tendo em vista a natildeo aprovaccedilatildeo do primeiro relatoacuterio eacute soacute a partir do
segundo estudo publicado em 2012 que a identidade quilombola do grupo seraacute
reconhecida e sustentada teoacuterica e etnograficamente Com este estudo a anaacutelise natildeo
seraacute mais baseada em interpretaccedilotildees substancializadas por meio de estereoacutetipos e
substratos culturais Neste debate travado dentro do procedimento administrativo do
INCRA a especificidade da experiecircncia histoacuterica da trajetoacuteria de movimento destas
famiacutelias negras foi uma questatildeo central para ambos os relatoacuterios antropoloacutegicos No
entanto as anaacutelises foram opostas o primeiro entendeu que a identidade do grupo
quilombola natildeo era legiacutetima e estava sendo forjada enquanto o segundo afirmou que
o processo de migraccedilatildeo consistia em mecanismo de resistecircncia agrave experiecircncia de
opressatildeo histoacuterica sofrida
A reivindicaccedilatildeo territorial do grupo no acircmbito deste procedimento
administrativo eacute a ampliaccedilatildeo do que restou da aacuterea que adquiriram em GuaiacuteraPR
por meio de anos de trabalho 85 alqueires onde vivem atualmente em meacutedia vinte
e cinco pessoas (sete famiacutelias)10 A conquista desta aacuterea possibilitou a manutenccedilatildeo
da coesatildeo e da identidade dos grupos familiares que haviam se deslocado de Minas
Gerais Importante ressaltar neste sentido que o acesso agrave terra eacute um instrumento
fundamental para a reproduccedilatildeo fiacutesica econocircmica social e cultural do grupo de modo
que seja viaacutevel a manutenccedilatildeo de uma forma de vida especiacutefica Apesar de poucos
moradores efetivos atualmente na aacuterea a reinvindicaccedilatildeo pela ampliaccedilatildeo territorial eacute
estimada a partir da amplitude de moradores potenciais pois contempla
principalmente a expectativa de retorno de familiares que moraram em GuaiacuteraPR
mas que em algum momento tiveram que se deslocar novamente
Tomando o tema do movimento como eixo desta dissertaccedilatildeo a histoacuteria do
grupo quilombola Manoel Ciriaco dos Santos seraacute pensada atraveacutes de uma linha que
desenha o caminhar constitutivo da identidade do grupo (INGOLD 2007) Esta linha
os conecta segundo suas narrativas apontam desde Minas Gerais no tempo da
escravidatildeo ateacute Guaiacutera no presente e segue se ramificando no movimento das
famiacutelias que continuaram se deslocando A opccedilatildeo deste recorte temaacutetico eacute fruto de
10 Este nuacutemero variou durante o periacuteodo de trabalho de campo apontando para a continuidade das dinacircmicas de movimento
19
uma sistematizaccedilatildeo que se demonstrou coerente com base na etnografia realizada e
que retrata uma escolha de anaacutelise como autora mas que principalmente emerge
no processo dialoacutegico com os sujeitos de pesquisa
i ndash Estrutura dos capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo ldquoIdentidade em movimentordquo busco analisar como os
processos de deslocamento vivenciados por essas famiacutelias no sentido MG↦SP↦PR
satildeo por elas articulados em termos de dinacircmicas constitutivas da resistecircncia
quilombola uma vez que as experiecircncias de fixaccedilatildeo remetem sobretudo agrave exclusatildeo
social e a relaccedilotildees de preconceito racial Busco refletir sobre como os membros do
grupo de Guaiacutera sentem-se fortemente vinculados e unidos por meio das memoacuterias
construiacutedas sobre a origem mineira e sobre a trajetoacuteria de deslocamentos O sentido
de unidade criado por estas famiacutelias eacute tambeacutem consequecircncia de sua inserccedilatildeo em
Guaiacutera em um contexto considerado por eles como adverso tendo em vista que o
municiacutepio foi colonizado por descendentes de europeus a partir de um vieacutes
modernizador sendo atualmente marcado pelos interesses do agronegoacutecio
Situaccedilotildees de discriminaccedilatildeo racial satildeo constantemente relatadas pelos quilombolas na
interaccedilatildeo com os italianos e alematildees proprietaacuterios vizinhos no bairro rural onde se
localiza a comunidade
O acionamento da identidade quilombola os faz reforccedilar a importacircncia das
narrativas de memoacuteria sobre a regiatildeo de origem do grupo em Minas Gerais o
municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute bem como sobre a chegada das famiacutelias em
GuaiacuteraPR Satildeo memoacuterias elaboradas a partir de um sentimento de continuidade
expresso na ecircnfase atribuiacuteda agraves dificuldades de sobrevivecircncia e agrave busca pela
superaccedilatildeo do sofrimento Esta experiecircncia de estigmatizaccedilatildeo social e racial passa a
ser positivada internamente atraveacutes do autorreconhecimento como quilombolas o
qual cria uma ruptura com a experiecircncia de silenciamento anterior A inserccedilatildeo no
movimento quilombola fez com que o grupo se colocasse em uma nova rede de
relaccedilotildees com agentes externos Adir na posiccedilatildeo de presidente da Associaccedilatildeo
Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) passou a realizar
viagens para encontros e debates sobre a temaacutetica quilombola o que o construiu
como lideranccedila e abriu espaccedilo para o pronunciamento puacuteblico sobre a proacutepria histoacuteria
20
e identidade A possibilidade destas viagens como a que foi realizada por Adir para
Brasiacutelia no Distrito Federal em novembro de 2014 na qual o acompanhei coloca-os
novamente em movimento agora de circulaccedilatildeo em acircmbito poliacutetico
A religiosidade do grupo tambeacutem seraacute abordada no primeiro capiacutetulo na
medida em que eacute permeada por dinacircmicas de movimento (a) deslocamentos
concretos como as viagens religiosas de pagamentos de promessas a saiacuteda de
Manoel Ciriaco de Minas Gerais depois de ter sido viacutetima de agressatildeo maacutegica e a
saiacuteda do filho de Manoel Ciriaco Antocircnio do siacutetio em GuaiacuteraPR para ir morar na
cidade por conta do preconceito religioso que sofriam no bairro rural ldquoMaracaju dos
Gauacutechosrdquo e (b) movimentos natildeo concretos como praacuteticas de devoccedilatildeo cotidianas que
os colocam em relaccedilatildeo com santos Orixaacutes entidades espiacuteritos almas abrindo
assim a possibilidade de se deslocarem entre mundos conectando tempos espaccedilos
linguagens possibilitando curas e orientaccedilotildees etc Aleacutem disso a religiosidade aponta
para dinacircmicas de continuidade marcadas pelas imbricaccedilotildees entre um catolicismo
negro e experiecircncias proacuteprias do universo da umbanda Nas narrativas sobre este
tema tambeacutem eacute possiacutevel perceber a convergecircncia entre as dimensotildees religiosa racial
e social considerando que as praacuteticas das religiotildees afro-brasileiras satildeo natildeo soacute
desvalorizadas mas socialmente condenadas Esta dimensatildeo cultural religiosa ndash que
os conecta com sua origem mineira ndash tende a natildeo ser enfatizada publicamente pelos
membros da comunidade como um sinal diacriacutetico opccedilatildeo que parece permeada pelo
receio de que isso possa ser usado para reforccedilar um lugar de marginalidade e
estigmatizaccedilatildeo para o grupo
No segundo capiacutetulo ldquoIdentidade quilombola e relatoacuterios antropoloacutegicosrdquo
analiso o novo voacutertice de movimento presente na trajetoacuteria coletiva do grupo que se
consolidou a partir de sua inserccedilatildeo no acircmbito poliacutetico como sujeito de direitos coletivo
o autorreconhecimento como quilombolas A inserccedilatildeo no campo de reivindicaccedilatildeo
como quilombolas colocou-os novamente nos termos de Adir diante de uma longa
caminhada Muitos percalccedilos foram enfrentados no processo de regularizaccedilatildeo
quilombola pelo INCRA ainda em tracircmite tendo em vista os questionamentos
levantados pelo primeiro relatoacuterio antropoloacutegico produzido em 2010 Eacute muito faacutecil
iniciar uma conversa de horas com Adir e Joaquim presidente e vice da ACONEMA
a respeito de suas criacuteticas e decepccedilotildees em relaccedilatildeo aos conflitos gerados a partir do
iniacutecio das atividades do INCRA junto agrave comunidade Apesar dos descontentamentos
21
e frustraccedilotildees continuam a alimentar a esperanccedila de uma resoluccedilatildeo futura que lhes
garanta a regularizaccedilatildeo territorial
A pesquisa para elaboraccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico ainda em
2009 havia sido liderada pelo professor da Universidade Estadual do Oeste do
Paranaacute (UNIOSTE) Antocircnio Pimentel Pontes Filho o qual questionou a legitimidade
das narrativas quilombolas tomando-as como oportunistas11 O fato de o grupo natildeo
ter uma relaccedilatildeo ancestral com o territoacuterio atual natildeo apresentar informaccedilotildees
consideradas consistentes sobre a existecircncia de ancestrais escravizados e natildeo se
adequar ao modelo de quilombo tiacutepico foi considerado como criteacuterio para negar a
legitimidade da identidade quilombola de modo que foram entendidos ldquoapenasrdquo como
um grupo de trabalhadores rurais negros O primeiro relatoacuterio ndash apoacutes pedidos de
alteraccedilotildees solicitados pelo INCRA mas desconsiderados pelo antropoacutelogo
responsaacutevel ndash foi rejeitado tanto pelos quilombolas quanto pelo INCRA O
desencadeamento de conflitos com os gauacutechos proprietaacuterios vizinhos agrave comunidade
quilombola a situaccedilatildeo de isolamento e a perda de relaccedilotildees de trabalho que
mantinham nas propriedades do entorno foram algumas das consequecircncias geradas
pelo iniacutecio do trabalho do INCRA com o grupo a partir da atuaccedilatildeo da primeira equipe
de pesquisadores
Um segundo relatoacuterio foi entatildeo realizado por uma nova equipe em 2012 a
partir da contrataccedilatildeo pelo INCRA via sistema de licitaccedilatildeo puacuteblica (pregatildeo eletrocircnico)
da empresa Terra Ambiental Com a possibilidade de reelaboraccedilatildeo da pesquisa
antropoloacutegica o historiador da segunda equipe de pesquisadores Cassius Cruz
deslocou-se ateacute Minas Gerais a fim de pesquisar sobre as comunidades quilombolas
da regiatildeo de origem do grupo A partir da memoacuteria coletiva indicada pelo grupo em
Guaiacutera12 muitos pontos em comum com as narrativas dos quilombolas da regiatildeo
mineira foram identificados as referecircncias a personagens histoacutericos comuns a
memoacuteria da estrateacutegia de habitaccedilatildeo em lapas de pedra (tipo de moradia construiacuteda
dentro de cavernascasa de pedra) a mobilidade espacial como processo de
formaccedilatildeo de algumas das comunidades quilombolas mineiras a tendecircncia
11 Este mesmo antropoacutelogo em 2014 foi contratado pelos produtores rurais da regiatildeo para fazer um contralaudo em contestaccedilatildeo ao relatoacuterio antropoloacutegico da FUNAI para a demarcaccedilatildeo de uma terra indiacutegena Avaacute-Guarani em GuaiacuteraPR 12 Conforme me esclareceu Cassius Cruz nenhum quilombola pocircde acompanha-lo nesta oportunidade para a realizaccedilatildeo da pesquisa em Minas Gerais em decorrecircncia de falta de recursos previstos no contrato com o INCRA
22
endogacircmica dos casamentos bem como possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco entre a
Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos e a Comunidade Quilombola Vila
Nova localizada no municiacutepio de SerroMG O segundo relatoacuterio fundamentou-se
entatildeo na capacidade de manutenccedilatildeo da organizaccedilatildeo social do grupo em continuidade
com sua regiatildeo de origem que entre outros fatores geram o sentimento de
pertencimento comum e identificaccedilatildeo como quilombolas Com a aprovaccedilatildeo do 2ordm
relatoacuterio o reconhecimento da legitimidade da identidade do grupo finalmente ganhou
mais forccedila
Por fim esta possibilidade de buscar mais conhecimento sobre a histoacuteria dos
antepassados articulada por meio da pesquisa produzida pelo segundo relatoacuterio
antropoloacutegico impulsionou aos quilombolas de Guaiacutera e a mim junto com Cassius
Cruz ndash que foi por noacutes convidado para essa empreitada ndash a ir ateacute Minas Gerais com
o objetivo de seguir o caminho de volta da trajetoacuteria de deslocamentos dos
antepassados do grupo A pesquisa por noacutes realizada em Minas Gerais eacute o tema
central do terceiro capiacutetulo denominado ldquoEacute como se noacutes voltasse a paacutegina da nossa
vida do comeccedilordquo Foram duas viagens ateacute a regiatildeo mineira realizadas em marccedilo e
em junho de 2015 A pesquisa acabou entatildeo tornando-se uma etnografia nocircmade e
entrelaccedilando-se com a histoacuteria do grupo A linha de movimento deste grupo ateacute
Guaiacutera somada a sua inserccedilatildeo no movimento quilombola gerou assim um impulso
de reaproximaccedilatildeo no qual tambeacutem nos inserimos que pode ser interpretado na chave
tripla de (a) saiacuteda (b) afirmaccedilatildeo identitaacuteria e (c) retorno Esta linha no entanto natildeo
deve ser entendida como se fechando em um movimento circular mas se constituindo
como uma espiral jaacute que natildeo eacute possiacutevel retornar mais ao mesmo lugar de onde se
saiu tendo em vista que este lugar para o qual se quer voltar jaacute se transformou bem
como os sujeitos envolvidos
Assim o esforccedilo de pesquisa natildeo esteve focado na anaacutelise do grupo
quilombola como totalidade autocontida pois buscou compreender os fluxos e
relaccedilotildees que perpassam esta trajetoacuteria de movimento conectando pessoas e
experiecircncias espalhadas por diferentes locais (ARRUTI 2006 p 35) O trabalho de
campo ritual central na antropologia e parte constitutiva do arqueacutetipo do etnoacutegrafo
ganhou dessa forma contornos especiais Permitiu uma abordagem realizada com
23
os sujeitos de pesquisa a partir de sua historicidade13 de modo que a continuidade
dos movimentos empreendidos pelos quilombolas parece demonstrar a presenccedila de
dinacircmicas de distanciamentos e aproximaccedilotildees com a potencialidade de atualizaccedilatildeo
dos viacutenculos e relaccedilotildees mesmo apoacutes muito tempo de interrupccedilatildeo
Para que a viagem ateacute Minas Gerais pudesse atender os propoacutesitos dos
quilombolas de GuaiacuteraPR inclusive de fortalecimento identitaacuterio os irmatildeos Adir (46)
e Geralda (53) filhos de Manoel Ciriaco e tambeacutem lideranccedilas locais sugeriram que
antes de irmos ateacute Santo Antocircnio do ItambeacuteMG deveriacuteamos passar por Presidente
PrudenteSP Este municiacutepio faz parte da regiatildeo para onde desde a deacutecada de 1980
retornaram os seus irmatildeos mais velhos que jaacute haviam morado com seus pais no
municiacutepio proacuteximo em CaiabuSP Com a inclusatildeo de Presidente PrudenteSP em
nosso roteiro de viagem ateacute Minas Gerais iriam assim retraccedilar o caminho de seus
ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100) atraveacutes de seu trajeto de deslocamento
realizado nas deacutecadas de 19501960 agora no sentido inverso de GuaiacuteraPR ateacute
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Em Presidente PrudenteSP moram atualmente os quatro irmatildeos mais
velhos Olegaacuterio (78) Jovelina (73) Joatildeo Loriano (71) e Eurides (65) que nasceram
em Minas Gerais e acompanharam seu pai na trajetoacuteria de deslocamento ateacute
GuaiacuteraPR e depois nas deacutecadas de 19801990 estabeleceram-se no estado de Satildeo
Paulo regiatildeo na qual jaacute haviam morado entre a deacutecada de 19501960 antes
chegarem no estado do Paranaacute Dentre os irmatildeos Joatildeo Loriano seria a pessoa mais
indicada para nos acompanhar ateacute Minas Gerais conforme me explicaram Adir e
Geralda
Joatildeo Loriano nascido em 1944 foi o uacutenico filho que Manoel Ciriaco havia
deixado em Minas Gerais quando de laacute saiu em 1956 histoacuteria que conheceremos
mais a fundo no terceiro capiacutetulo O menino ficou aos cuidados de sua avoacute Izidora
(matildee de Manoel) que foi quem o criou desde quando tinha um mecircs e sete dias de
vida pois a matildee da crianccedila Maria Olinda primeira esposa de Manoel havia falecido
na sequecircncia de seu nascimento Manoel segundo relatam natildeo teria tido coragem
de levar o menino junto com ele para natildeo o separar de sua avoacute Izidora Em 1981
quando Joatildeo Loriano jaacute tinha 37 anos seu irmatildeo Antocircnio foi ateacute Santo Antocircnio do
13 ldquoAssim a etnografia histoacuterica converge com a chamada microhistoacuteria justamente ao adotar como
procedimento acompanhar o fio de um destino particular e com ele a multiplicidade de espaccedilos de tempos e de relaccedilotildees em que se inscreverdquo (ARRUTI 2006 p 36)
24
ItambeacuteMG e conseguiu lhe achar convidando-o para ir com ele embora para o
Paranaacute Antocircnio entatildeo levou Joatildeo e sua famiacutelia esposa e filhos para GuaiacuteraPR
regiatildeo em que viveram ateacute 1992 quando decidem residir em Presidente PrudenteSP
Sendo Joatildeo o filho de Manoel que mais tempo viveu em MG ele seria afinal de
contas a pessoa que poderia ter mais facilidade para caccedilar os parentes que
permaneceram na regiatildeo mineira e com os quais perderam contato nas uacuteltimas
deacutecadas Seu Joatildeo quando por noacutes interpelado aceitou o convite para nos
acompanhar na viagem com muito entusiasmo depois de trinta e quatro anos que de
laacute havia saiacutedo sem nunca mais ter conseguido retornar
A intensidade das emoccedilotildees despertadas pelos encontros entre parentes que
jaacute natildeo se sabiam mais vivos ou que ainda natildeo se conheciam contagiou a todos
durante nossa estadia em Santo Antocircnio do Itambeacute e no municiacutepio vizinho SerroMG
Isso permitiu conversas e entrevistas que soacute poderiam ter sido geradas neste
entrelaccedilamento de lugares tempos e pessoas instaurando um regime de
temporalidade especial no qual o presente o passado e o futuro destas famiacutelias
ganhavam novos sentidos ndash concomitantemente As circunstacircncias nas quais estes
depoimentos foram produzidos e colhidos permitiam que a cacircmera de viacutedeo ligada a
maior parte do tempo ou mesmo o gravador de voz natildeo causassem estranhamento
agraves pessoas ndash quando tudo o que se passava estava contido em um momento uacutenico
que deveria ser registrado ndash nestes encontros que marcaram a histoacuteria de vida dessas
pessoas bem como a minha e a de Cassius
De alguma forma o futuro da comunidade quilombola em GuaiacuteraPR era o
retorno a Santo Antocircnio do ItambeacuteMG a esse passado depois de deacutecadas de
interrupccedilatildeo do contato efetivo Este anseio pelo retorno agrave origem que remete a uma
certa busca pela ldquocomprovaccedilatildeordquo do viacutenculo da comunidade com sua ancestralidade
mineira partiu da proacutepria comunidade no bojo de um processo controverso de
regularizaccedilatildeo territorial mas natildeo de uma demanda ou de uma opccedilatildeo teoacuterica da minha
pesquisa Deve-se levar em conta que a autoidentificaccedilatildeo de grupos como
quilombolas natildeo demanda a demonstraccedilatildeo de viacutenculos genealoacutegicos com ancestrais
escravizados como veremos com calma no segundo capiacutetulo Este modo de
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compreensatildeo construiria um sentido de origem histoacuterica muito limitado que natildeo estaacute
refletido na regulamentaccedilatildeo do Decreto Federal 48872003 em vigor14
A primeira viagem de quinze dias em marccedilo de 2015 oportunizou que os
quilombolas se tornassem pesquisadores e agentes da construccedilatildeo da sua proacutepria
narrativa histoacuterica Enfim o passado pocircde ocupar o importante papel que jaacute lhe era
conferido como quando os quilombolas de Guaiacutera reforccedilam a continuidade e natildeo a
ruptura em suas construccedilotildees discursivas mesmo que tal continuidade fosse
constituiacuteda por meio de dinacircmicas de movimento e mudanccedila Haacute linearidade portanto
mas natildeo aquela da linha reta
Com as oportunidades promovidas pelas viagens novos caminhos se
abriram A irmatilde de Manoel Ciriaco Ana Raimunda que encontramos morando no
municiacutepio de SerroMG aos cuidados de vizinhos decidiu que queria morar perto da
famiacutelia a convite de sua sobrinha filha de Manoel Ciriaco Jovelina que mora
atualmente em Presidente PrudenteSP Esta decisatildeo de Dona Ana Raimunda
mesmo aos oitenta e sete anos eacute significativa para apontar que o movimento das
famiacutelias natildeo implicou em rompimentos definitivos dos viacutenculos como eacute comum na
regiatildeo mineira do ldquoAlto Vale do Jequitinhonhardquo (GALIZONI 2002)15 mesmo cinquenta
e nove anos depois que Manoel saiu de Minas com parte de sua famiacutelia
Eu e Cassius fomos entatildeo em junho trecircs meses depois da primeira viagem
a Minas Gerais em uma raacutepida aventura de quatro dias Nosso objetivo foi
acompanhar D Jovelina (73) para que buscasse sua tia Ana Raimunda no SerroMG
e D Maria das Dores (70) ndash esposa de Seu Joatildeo Loriano que saiu de Santo Antocircnio
do ItambeacuteMG para acompanha-lo em 1982 ndash para rever suas duas irmatildes ndash D
Zulmira (73) e D Regina (77) ndash que tambeacutem encontramos e fizemos contato na
primeira viagem em marccedilo de 2015 A elas eu e Cassius haviacuteamos prometido que
ajudariacuteamos a organizar estes reencontros Por fim realizei mais uma uacuteltima viagem
de campo para Presidente PrudenteSP em agosto de 2015 para entrevistar D Ana
Raimunda depois de dois meses que jaacute estava morando com sua sobrinha D
Jovelina
14 Segundo seu artigo 2o ldquoconsideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos para os
fins deste Decreto os grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo 15 Regiatildeo muito proacutexima a Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
26
ii ndash Notas sobre a pesquisa
Importante neste momento finalizada a siacutentese dos temas principais dos
capiacutetulos desta dissertaccedilatildeo refletir sobre como foi a minha entrada em campo as
condiccedilotildees e as escolhas da pesquisa O meu contato com o grupo se iniciou pelo
nuacutecleo de famiacutelias em Guaiacutera trecircs anos antes da presente pesquisa realizada entre
2014 e 2015 Nos anos de 2011 e 2012 atuei como assessora juriacutedica em um setor
especializado em direitos humanos do Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute
(MPPR) em decorrecircncia da minha formaccedilatildeo como bacharel em direito Tal setor tinha
como parte de suas atividades a articulaccedilatildeo com as comunidades quilombolas do
estado visando mediar as suas demandas por acesso a direitos junto aos oacutergatildeos
puacuteblicos Tornando-me uma referecircncia enquanto pessoa que trabalha dentro do
Estado junto ao grupo busquei com a pesquisa de mestrado um reposicionamento
em campo saindo da figura de agente estatal que traz a resposta para construir
relaccedilotildees de horizontalidade no conviacutevio cotidiano
Para mim o reposicionamento tambeacutem tinha uma dimensatildeo pessoal jaacute que
eu ainda vivo essa experiecircncia de transiccedilatildeo profissional entre o direito e a
antropologia Um novo caminho que em muito tem enriquecido e desafiado a minha
formaccedilatildeo inicial a qual tambeacutem influenciou na direccedilatildeo dos meus interesses de
pesquisa Tal interesse aparece por exemplo na anaacutelise do processo de
regularizaccedilatildeo territorial quilombola em suas relaccedilotildees com o universo juriacutedico
problematizado especialmente no capiacutetulo 2 Interessante observar neste sentido
que se a identidade do grupo natildeo eacute produzida a partir do Estado por outro lado ela
teraacute que ser modulada com o Estado no processo de reconhecimento enquanto
sujeito poliacutetico e cultural especiacutefico (MARCUS 1991)
Sobre o tema do processo no INCRA as entrevistas selecionadas foram na
maioria realizadas com os homens mais envolvidos com a poliacutetica e a representaccedilatildeo
puacuteblica do grupo A predominacircncia da voz masculina no segundo capiacutetulo natildeo reflete
no entanto a caracteriacutestica da pesquisa em geral Em todos os lugares que a pesquisa
percorreu seja em GuaiacuteraPR Presidente PrudenteSP e Santo Antocircnio do Itambeacute ou
SerroMG enquanto pesquisadora mulher minha inserccedilatildeo se deu pelo universo
feminino o que me possibilitou uma reflexividade muacutetua com essas mulheres
27
quilombolas Por elas fui recebida de modo muito hospitaleiro e natildeo demorei a criar
viacutenculos
Ao fazer da subjetividade um meio de conhecimento a antropologia evidencia
como os ldquodadosrdquo estatildeo prenhes de representaccedilotildees e satildeo a proacutepria anaacutelise
construiacutedos no corte possiacutevel do etnoacutegrafo A reflexatildeo etnograacutefica constroacutei portanto
aquilo que descreve bem como constroacutei o modo de relacionamento que produz o
conhecimento pois natildeo haacute um real que jaacute estaacute laacute no campo O tema e os recortes do
trabalho se delinearam como resultado da construccedilatildeo da proacutepria etnografia por isso
soacute puderam ser definidos no final da pesquisa o que prova que sair a campo vale a
pena (CALAVIA SAEZ 2001 597-599) Essas experiecircncias etnograacuteficas satildeo antes
de tudo experiecircncias de vida perpassadas por relaccedilotildees de afetividade e mediadas
pela compreensatildeo de que a expressatildeo da identidade ganha contornos especiacuteficos
conforme os contextos com os quais o grupo interage (MELLO 2012 p 117)
Em Guaiacutera realizei trabalho de campo por periacuteodos equivalentes em dois locais
(siacutetio e Vila Eletrosul) somando quarenta dias No periacuteodo em que estive no ldquosiacutetiordquo
(como eles mesmos denominam o local onde fica a ldquocomunidaderdquo16) foi importante eu
ter sido hospedada na casa de Joaquim e Eva e natildeo na casa de Adir presidente da
associaccedilatildeo pois isso me possibilitou expandir e aprofundar o contato com outras
pessoas aleacutem da lideranccedila com quem jaacute tinha mais proximidade desde a eacutepoca da
minha atuaccedilatildeo no Ministeacuterio Puacuteblico Eva minha anfitriatilde e suas duas filhas moccedilas
Jaqueline (20) e Janaina (14) foram as minhas principais referecircncias de conviacutevio
Quando natildeo estive no siacutetio fiquei hospedada na casa do casal Geralda e
Guaraacute (apelido de Antocircnio) em uma vila localizada na periferia de Guaiacutera
denominada Vila Eletrosul A casa de Geralda tem um importante papel para seus
irmatildeos que moram no siacutetio quando eles precisam resolver questotildees na cidade Deste
modo minha estadia na Vila Eletrosul me permitiu visualizar as dinacircmicas de
interaccedilatildeo entre urbano e rural o contexto perifeacuterico do municiacutepio de Guaiacutera aleacutem de
me aprofundar na religiosidade umbandista jaacute que Geralda e Guaraacute satildeo os dois
membros do grupo que efetivamente participam de um terreiro de Umbanda
localizado no municiacutepio vizinho Terra Roxa Ademais Geralda eacute benzedeira e
16 Deve-se levar em conta a criacutetica em relaccedilatildeo ao fato de que o termo aciona ldquoum estereoacutetipo de comunidade relativamente igualitaacuteria harmocircnica coesa solidaacuteria com projetos poliacuteticos comuns (em siacutentese uma visatildeo romacircntica ndash e pode-se dizer cristatilde ndash de comunidade)rdquo (PORTO 2012 41) Atualmente este termo se tornou um conceito ecircmico
28
mobiliza uma forte rede de reciprocidade com seus vizinhos sendo um referencial
local de sabedoria conselhos e cura
Joaquim (55) Geralda (52) Adir (45) e Joatildeo Aparecido (42) satildeo irmatildeos filhos
de Manoel Ciriaco dos Santos e sua segunda esposa Ana Rodrigues dos Santos o
casal fundador da comunidade em Guaiacutera hoje jaacute falecidos Estes quatro irmatildeos tecircm
um importante papel na manutenccedilatildeo do grupo quilombola atualmente satildeo os dentre
os herdeiros do ldquoVelho Maneacuterdquo os que permaneceram na propriedade que foi
comprada por ele (e no caso de Geralda moradora da periferia do mesmo municiacutepio
que permanece com viacutenculos cotidianos com a famiacutelia) Destes quatro irmatildeos os trecircs
homens moram no siacutetio e tocam a produccedilatildeo da horta e outros plantios aleacutem da criaccedilatildeo
de pequenos animais estando diretamente engajados no projeto de manutenccedilatildeo da
comunidade quilombola com a geraccedilatildeo de renda no proacuteprio territoacuterio e com o
processo de titulaccedilatildeo no INCRA Outro nuacutecleo familiar que permanece na comunidade
satildeo os trecircs filhos (com seus cocircnjuges e filhos) e a viuacuteva de Joseacute Maria (irmatildeo mais
velho de Joaquim Geralda Adir e Joatildeo Aparecido) que faleceu em 2009 durante os
conflitos da comunidade com os vizinhos gauacutechos Mais duas famiacutelias durante o
periacuteodo que estive fazendo trabalho de campo na comunidade eram de agregados
ao nuacutecleo familiar por meio do casamento entre Adir e Solange Jaqueline ndash enteada
de Adir que mora com seus trecircs filhos pequenos ndash e D Luzia sogra de Adir com o
marido e um de seus netos
Joatildeo Aparecido o irmatildeo caccedilula por exemplo preferiu se separar da esposa
que se mudou para Presidente PrudenteSP Kelly com os dois filhos do casal em
busca de trabalho do que ir com ela e deixar a comunidade Sobre esta possibilidade
Joatildeo Aparecido comentou o seguinte
Esta luta aqui natildeo daacute pra deixar o Adir e o Joaquim Essa luta que noacutes viemos hoje abandonar assim tambeacutem natildeo daacute neacute Dandara Falei ldquodeixar eles Natildeo natildeo vira natildeo noacutes comeccedilamos noacutes temos que ir ateacute o final e meu pai sofreu muito pra comprar esse pedacinho de chatildeo aquirdquo Aiacute eu falei assim ldquocomeccedila a sair um sair o outro daqui uns dias aiacute acabou a comunidaderdquo
Estes quatro irmatildeos filhos de Manoel Ciriaco ndash que continuaram morando na
comunidade em GuaiacuteraPR ndash mantecircm contato por telefone celular aleacutem de algumas
visitas esparsas com seus quatro irmatildeos mais velhos que moram em Presidente
PrudenteSP como citado acima Laacute eles tecircm mais uma irmatilde tambeacutem filha de Manoel
e Ana Eurides (64) e aleacutem dos trecircs irmatildeos que satildeo filhos do primeiro casamento de
29
Manoel Ciriaco dos Santos com Maria Olinda Olegaacuterio (79) Jovelina (74) e Joatildeo
Loriano (71) Os quatro irmatildeos que moram no municiacutepio paulista satildeo nascidos em
Minas Gerais Santo Antocircnio do Itambeacute antes de seu pai decidir sair de sua terra natal
e iniciar uma trajetoacuteria de deslocamentos
Para aleacutem do trabalho de campo em Guaiacutera o processo de mapeamento
desta rede de parentesco realizado por meio de duas viagens a Minas Gerais foi fruto
da minha parceria de pesquisa com Cassius Cruz Ele doutorando em ciecircncias sociais
na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) ndash aleacutem de ter participado da
produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico publicado em 2012 ndash neste momento
pesquisa em sua tese o tema da mobilidade e das redes sociais de parentesco
quilombola Com a confluecircncia dos temas de pesquisa e o seu compromisso pessoal
de se aprofundar no estudo por ele realizado anteriormente em Minas Gerais sobre a
Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos Cassius se interessou em somar
esforccedilos para viabilizar que os proacuteprios quilombolas pudessem ir em busca de seus
parentes e assim realizar o objetivo do grupo de compreender melhor a trajetoacuteria de
seus antepassados
O fato no entanto das viagens para Minas Gerais soacute terem se concretizado
em marccedilo e junho de 2015 apoacutes a minha banca de qualificaccedilatildeo fez com que natildeo
fosse possiacutevel o aprofundamento necessaacuterio diante da riqueza do material de
pesquisa coletado e da intensidade das experiecircncias que este trabalho de campo me
proporcionou o que tambeacutem demanda uma maturaccedilatildeo para a posterior reflexatildeo
atraveacutes da escrita Assim de um uacuteltimo capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo acredito que este
material possa vir a se transformar no iniacutecio de uma nova pesquisa que poderaacute ser
desdobrada posteriormente e que me permitiraacute a atenccedilatildeo e o cuidado que esta
experiecircncia de trabalho de campo merece
Enfim a escrita desta dissertaccedilatildeo colocou-me diante do desafio de lidar com
o intervalo entre a pesquisa etnograacutefica e o texto antropoloacutegico o que confirma a
dimensatildeo parcial da anaacutelise e o caraacuteter inesgotaacutevel da experiecircncia Importante
ressaltar neste sentido a desconstruccedilatildeo de um lugar de objetividade na teoria
antropoloacutegica para reconhecer o texto como uma anaacutelise perspectiva relacional e
contextual17 A partir da experiecircncia deste grupo quilombola busco analisar nas
17 A criacutetica de Geertz por exemplo direciona-se a certas estrateacutegias de escrita em que o antropoacutelogo
natildeo se coloca no texto ndash ao construiacute-lo como se sua experiecircncia pudesse ser transposta em uma ldquojanela de cristalrdquo revelando supostamente o mundo laacute fora como ele ldquorealmente eacuterdquo Tal estrateacutegia buscaria
30
paacuteginas que seguem como a construccedilatildeo de um ldquonoacutes quilombolasrdquo neste caso
especiacutefico aponta para dinacircmicas de movimento que natildeo dissolvem mas ao
contraacuterio sustentam o pertencimento coletivo
credibilidade em relaccedilatildeo a questionamentos fundados em paracircmetros objetivistas pautados em criteacuterios das ciecircncias exatas mas para Geertz a antropologia estaria muito mais proacutexima dos ldquodiscursos literaacuteriosrdquo do que dos ldquocientiacuteficosrdquo (GEERTZ 2009)
31
1 IDENTIDADE EM MOVIMENTO
11 SANTO ANTOcircNIO DO ITAMBEacute E GUAIacuteRA DOIS PONTOS DE UMA LINHA
O percurso de deslocamento das famiacutelias negras em questatildeo pode ser
pensado como uma linha que conecta Santo Antocircnio do ItambeacuteMG agrave GuaiacuteraPR
distantes aproximadamente mil e seiscentos quilocircmetros O conceito de ldquolinhardquo aqui
trazido tem inspiraccedilatildeo nas contribuiccedilotildees do antropoacutelogo britacircnico Tim Ingold como
seraacute melhor abordado no item 12 O que eacute importante retermos por enquanto eacute que
a ideia de linha aqui natildeo remete a uma reta mas a uma trajetoacuteria de movimento que
tem uma dinacircmica e um traccedilado especiacuteficos
Em seu livro Lines a brief history o autor se propotildee a realizar uma
ldquoantropologia comparativa da linhardquo e delinear um campo de reflexatildeo que aglutina
aspectos das atividades humanas cotidianas como falar gesticular e caminhar ndash
subsumidos pela caracteriacutestica comum de geraccedilatildeo de linhas (INGOLD 2007) A partir
do caminhar o deslocamento constitui uma linha que pode ser tanto aquela que
descobre o seu percurso enquanto o caminho eacute percorrido ndash ou seja uma jornada que
natildeo tem um comeccedilo ou um fim oacutebvios ndash em contraste com um outro tipo de linha a
linha reta ndash que faz a conexatildeo entre pontos e que estaacute fragmentada em destinaccedilotildees
sucessivas preacute-determinadas como uma sequecircncia de compromissos
assemelhando-se a um mapa de rota onde se vecirc tudo de uma vez (2007 p 72-103)
No caso do grupo em questatildeo a trajetoacuteria de deslocamento estaacute muito mais proacutexima
da primeira caracterizaccedilatildeo de linha como jornada na qual o movimento se desenvolve
como processo de descoberta e de interaccedilatildeo como no caminho de Minas Gerais ateacute
o Paranaacute passando antes pelo estado de Satildeo Paulo
Eacute em GuaiacuteraPR que parte de um grupo maior de parentes ndash composto por
unidades familiares que estatildeo espalhadas por todo canto ndash passou a se reconhecer
como quilombola e a refletir sobre sua proacutepria trajetoacuteria histoacuterica Alguns dados
estatiacutesticos nos ajudam a compreender o perfil atual de GuaiacuteraPR e a histoacuteria da
inserccedilatildeo do grupo quilombola neste municiacutepio De acordo com o uacuteltimo censo de 2010
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) Guaiacutera tem uma populaccedilatildeo
32
de 30704 pessoas18 Do total 28206 habitantes estatildeo na aacuterea urbana ou seja 92
da populaccedilatildeo e apenas 2498 8 na aacuterea rural (IPARDES 2013 p10) Em termos
raciais19 apenas 269 (828 pessoas) da populaccedilatildeo se declarou como ldquopretardquo
3658 (11233 pessoas) como ldquopardardquo 166 (512 pessoas) como ldquoindiacutegenardquo e
217 (669 pessoas) como ldquoamarelardquo A predominacircncia da populaccedilatildeo que se declarou
ldquobrancardquo que representa quase 57 do total (17462 pessoas) aponta para a poliacutetica
de colonizaccedilatildeo e povoamento ocorrido no iniacutecio do seacuteculo XX marcado pelo estiacutemulo
agrave vinda de colonos da regiatildeo sul principalmente descendentes de italianos e alematildees
FIGURA 1 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Guaiacutera na divisa com o Paraguai e o Mato Grosso do Sul FONTE Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 718 [p 25]
A expansatildeo dos colonos e das colonizadoras gauacutechas em direccedilatildeo agrave Guaiacutera
ocorreu a partir da deacutecada de 1930 ndash viabilizada como poliacutetica de Estado ndash sob o
slogan de ldquoMarcha para o Oesterdquo Este estiacutemulo estatal veio com o entatildeo Presidente
da Repuacuteblica Getuacutelio Vargas que tomou como base a ideia de ldquovazio demograacuteficordquo e
a referecircncia ao ldquoespiacuterito do bandeiranterdquo Tal poliacutetica tinha como um de seus objetivos
a nacionalizaccedilatildeo da chamada ldquofronteira guaranirdquo (regiatildeo fronteiriccedila entre Brasil
Paraguai e Argentina) que estava ainda dominada pelos interesses estrangeiros por
18 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em
httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=410880ampsearch=parana|guaira Acesso em 140115 19 Dados sobre Populaccedilatildeo Censitaacuteria - Cor Raccedila disponiacuteveis em httpwwwipardesprgovbrimpindexphp Acesso em 140115 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpcidadesibgegovbrxtrastemasphplang=ampcodmun=410880ampidtema=91ampsearch=parana|guaira|censo-demografico-2010-resultados-da-amostra-religiao- Acesso em 20022015
33
meio do sistema de exploraccedilatildeo da erva-mate desenvolvido na regiatildeo entre o final do
seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX20
Esta poliacutetica de colonizaccedilatildeo significou o avanccedilo sobre o territoacuterio da
populaccedilatildeo nativa da etnia Guarani que jaacute tinha sido submetida desde o seacuteculo XVI
agraves reduccedilotildees jesuiacuteticas21 ao processo de miscigenaccedilatildeo e ao trabalho escravo nas
obrages O povoamento da regiatildeo no seacuteculo XX reforccedilou assim o processo de
desterritorializaccedilatildeo desta populaccedilatildeo cujos desdobramentos se refletem nos conflitos
entre os proprietaacuterios do municiacutepio e o povo indiacutegena autodenominado ldquoAvaacute-guaranirdquo22
que vieram agrave tona no iniacutecio do seacuteculo XXI Nos uacuteltimos anos houve um processo de
forte mobilizaccedilatildeo e retorno desta populaccedilatildeo agrave Guaiacutera e ao municiacutepio vizinho Terra
Roxa com o objetivo de reivindicar a demarcaccedilatildeo de um territoacuterio guarani na regiatildeo
Como eacute possiacutevel observar no censo de 2010 ao qual fizemos referecircncia
acima 166 da populaccedilatildeo guairense (512 pessoas) se declarou ldquoindiacutegenardquo o que
aponta para este processo de reorganizaccedilatildeo das famiacutelias ldquoavaacute-guaranirdquo Desde o final
dos anos 1980 tais famiacutelias passam a ldquose reagrupar e organizar novamente em
aldeamentos os tekoha em busca de reconstituir o espaccedilo onde eacute possiacutevel viver
segundo o modo de ser guaranirdquo (OLIVEIRA 2014 p 167)23
20 As obrages foram um sistema de exploraccedilatildeo da erva-mate e madeira tiacutepico da regiatildeo entatildeo
dominada por interesses hispano-platinos que utilizou o trabalho escravo da populaccedilatildeo nativa guarani Tais empreendimentos se beneficiavam do isolamento estrateacutegico da regiatildeo o que evitava a possibilidade de questionamento da violecircncia na qual se dava o modo de exploraccedilatildeo do trabalho Neste contexto a Companhia Mate Laranjeira exercia importante papel econocircmico e eacute considerada como a fundadora do distrito de Guaiacutera em 1902 que se torna sua sede Neste distrito a empresa construiu um porto por meio do qual escoava os sacos de erva-mate e as toras de madeira extraiacutedas (WACHOWICZ 1987 p 52 141) 21 O histoacuterico de colonizaccedilatildeo do municiacutepio de Guaiacutera remonta ao seacuteculo XVI quando a regiatildeo do antigo
ldquoGuairaacuterdquo jaacute era alvo do interesse dos colonizadores Entre 1608 e 1767 foram fundadas na regiatildeo mais de uma dezena de reduccedilotildees jesuiacuteticas sendo uma das mais importantes a ldquoCiudad Real del Guayraacuterdquo criada em 1554 Em 1600 ldquoas autoridades administrativas espanholas sediadas em Assunccedilatildeo acham por bem transformar a Ciudad Real em sede da Proviacutencia de Guairaacute () Eacute atraveacutes da Proviacutencia del Guairaacute e pela atividade missioneira dos jesuiacutetas que a Coroa espanhola amplia a sua presenccedila e o seu campo de atuaccedilatildeo no atual Oeste paranaenserdquo (COLODEL 2008 p 38) Nesta localidade atualmente estaacute localizado o municiacutepio de Terra Roxa vizinho ao municiacutepio de Guaiacutera 22 A estimativa atual da lideranccedila Guarani cacique Ilson Soares conforme me relatou eacute que em torno
de mil guaranis residem na regiatildeo de Guaiacutera e Terra Roxa 23 ldquoDesta forma no final dos anos 1990 intensifica-se o processo de judicializaccedilatildeo das ocupaccedilotildees
indiacutegenas inicialmente com accedilotildees movidas pela Itaipu seguida de inuacutemeros pleitos movidos por particulares que passam a reivindicar a posse das aacutereas indiacutegenas as quais possuem tiacutetulos registrados nos cartoacuterios municipais A intervenccedilatildeo intensa do Ministeacuterio Puacuteblico Federal para a promoccedilatildeo dos direitos coletivos dos iacutendios acaba por repercutir em decisotildees judiciais favoraacuteveis agrave permanecircncia dos aldeamentos indiacutegenas em algumas aacutereas Aleacutem disso as sentenccedilas determinaram agrave Uniatildeo e agrave FUNAI que promovessem os estudos necessaacuterios para identificaccedilatildeo e delimitaccedilatildeo das terras de ocupaccedilatildeo tradicional Avaacute-Guarani na regiatildeo deflagrando processos que ainda se encontram em tracircmite no acircmbito da Fundaccedilatildeordquo rdquo (OLIVEIRA 2014 p 167)
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FIGURA 2 Presenccedila de tekohas guaranis e da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos em Guaiacutera e Terra Roxa FONTE Projeto de pesquisa ldquoA questatildeo indiacutegena no oeste do Paranaacute e a reconstruccedilatildeo do territoacuterio Avaacute-Guaranirdquo24 (2014) (Grifos meus)
24 O Projeto eacute apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico (CNPQ) e desenvolvido no curso de Direito da PUC-PR O mapa foi elaborado com base nos dados do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) Violaccedilotildees dos direitos humanos e territoriais dos Guarani no Oeste do Paranaacute (1946-1988) Subsiacutedios para a Comissatildeo Nacional da Verdade Ver httpbdtrabalhoindigenistaorgbrdocumentoviolaC3A7C3B5es-dos-direitos-humanos-e-territoriais-dos-guarani-no-oeste-do-paranC3A1-1946-1988-sub Acesso em 07 de janeiro de 2015
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No mapa apresentado estatildeo identificadas as localizaccedilotildees das tekoha
existentes nos municiacutepios de Guaiacutera e Terra Roxa bem como a presenccedila da
Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos destacada no canto esquerdo
inferior do mapa No atual contexto de reivindicaccedilatildeo territorial tanto por indiacutegenas
como por quilombolas em Guaiacutera os proprietaacuterios rurais da regiatildeo tecircm se articulado
e promovido fortes reaccedilotildees em forma de protestos e de articulaccedilotildees poliacuteticas para se
oporem a essas reivindicaccedilotildees Deve-se ter em conta para compreender esta
mobilizaccedilatildeo dos proprietaacuterios rurais25 que ldquoa demarcaccedilatildeo de territoacuterios e o
reconhecimento de identidades tradicionais satildeo uma forma de resistecircncia mais eficaz
e imediata agraves lsquoagroestrateacutegiasrsquo do que outras modalidades de luta e reivindicaccedilatildeo
fundiaacuteriasrdquo (GUEDES 2013b p 43)
A forccedila destes atores organizados localmente tambeacutem por meio do Sindicato
Rural patronal deve-se ao perfil econocircmico do municiacutepio estruturado na produccedilatildeo de
ldquocommoditiesrdquo para exportaccedilatildeo A topografia plana e a boas condiccedilotildees de fertilidade
do solo possibilitaram o forte desenvolvimento do agronegoacutecio na regiatildeo com o
processo de mecanizaccedilatildeo da agricultura26 Deste modo a regiatildeo oeste do Paranaacute
apresenta atualmente intensa atividade do agronegoacutecio o que fez com que o preccedilo
da terra aumentasse muito nos uacuteltimos anos um alqueire na regiatildeo jaacute estaacute valendo
em meacutedia cem mil reais Esta valorizaccedilatildeo do preccedilo da terra eacute percebida de forma
expressiva pelos membros da comunidade quilombola Em 2003 depois de dez anos
que os trecircs irmatildeos mais velhos Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano saiacuteram da
comunidade para morar em Presidente PrudenteSP quando resolveram vender 15
alqueires da aacuterea adquirida por seu pai conseguiram o valor equivalente a dezoito mil
reais por alqueire Conforme relato do filho caccedilula do segundo casamento de Manoel
Joatildeo Aparecido em seis meses o preccedilo do alqueire jaacute tinha subido para o equivalente
a cinquenta mil reais de modo que seus irmatildeos demonstram arrependimento por
terem vendido a aacuterea que lhes cabia da heranccedila por um valor tatildeo baixo
Segundo dados do IBGE referentes agrave produccedilatildeo agriacutecola municipal de Guaiacutera
em 2013 as trecircs principais culturas foram o milho (182470 toneladas) depois a soja
25 Esta articulaccedilatildeo dos proprietaacuterios rurais tem ocorrido em Guaiacutera e no estado do Mato Grosso do
Sul por exemplo por meio da ldquoOrganizaccedilatildeo Nacional de Garantia do Direito de Propriedaderdquo 26 Conforme informaccedilotildees trazidas pelo antropoacutelogo da FUNAI Diogo Oliveira no I Congresso ldquoA questatildeo indiacutegena no Oeste do Paranaacute e a Reconstruccedilatildeo do Territoacuterio Guaranirdquo realizado em novembro de 2014 em Foz do Iguaccedilu 80 das terras de Guaiacutera em extensatildeo (natildeo em nuacutemero) pertencem a grandes proprietaacuterios rurais e em 90 das terras agricultaacuteveis planta-se milho e soja
36
(110425 toneladas) e por uacuteltimo o trigo (990 toneladas)27 Por outro lado diante deste
cenaacuterio adverso agrave efetivaccedilatildeo de direitos territoriais Avaacutes-Guarani e quilombolas tecircm
se fortalecido de modo articulado por meio do contato gerado entre as lideranccedilas no
acircmbito do Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos (PAA) 28 com visitas frequentes dos
quilombolas nas aldeias indiacutegenas para a realizaccedilatildeo das entregas de alimentos Neste
cenaacuterio tais grupos sociais tentam colocar na agenda puacuteblica dominada pelos
interesses hegemocircnicos do agronegoacutecio importantes debates e disputas a partir de
outras loacutegicas de uso e de relaccedilatildeo com a terra29
O contexto de Guaiacutera eacute visto como adverso pelos quilombolas ao reforccedilar um
discurso regional predominante que vecirc o agronegoacutecio como expressatildeo do
desenvolvimentordquo e da ldquoevoluccedilatildeordquo e que desloca por conseguinte indiacutegenas e
quilombolas para o passado por meio do que pode ser qualificado como um
ldquorebaixamento diacrocircnico do outrordquo estabelecendo uma sinoniacutemia entre diferenccedila e
distacircncia temporal (FABIAN 2013) Vaacuterias vezes comentaram que na regiatildeo Sul do
Brasil existe muito mais discriminaccedilatildeo contra negros do que na regiatildeo de onde satildeo
provenientes jaacute que laacute a expressividade da populaccedilatildeo negra eacute muito maior Esta
perspectiva por eles articulada pode ser entendida em relaccedilatildeo ao processo de
consolidaccedilatildeo da imagem de um Paranaacute eminentemente europeu pelas diversas
esferas do poder e da sociedade paranaense que tende a negar o reconhecimento
27 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=410880ampsearch=parana|guaira Acesso em 20022015 Outra comunidade quilombola que enfrenta um contexto de grande impacto do agronegoacutecio no Paranaacute (centro-sul) eacute a Comunidade Paiol de Telha (HARTUNG 2004) 28 O PAA consiste em um programa do Ministeacuterio do Desenvolvimento Social (MDS) criado em 2003 a partir do Programa Fome Zero Por meio desta poliacutetica puacuteblica oacutergatildeos estatais puderam adquirir com dispensa de licitaccedilatildeo produtos da agricultura familiar e doaacute-los para grupos em situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar No caso de Guaiacutera os quilombolas por meio de contrato com a Secretaria de Trabalho e Economia Solidaacuteria (SETS) atuam como produtores dos alimentos e entregam essas doaccedilotildees diretamente agraves aldeias indiacutegenas de Guaiacutera e Terra Roxa 29 Este estreito contato parece ser decorrente do ldquoefeito provaacutevel de certos mecanismos histoacutericos
comuns de repressatildeo controle e territorializaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 32) Ademais tanto no caso dos indiacutegenas da etnia Guarani como no caso dos quilombolas de Guaiacutera a presenccedila do histoacuterico de deslocamentos na trajetoacuteria destes grupos aparece como argumento mobilizado pelos articuladores do movimento contraacuterio agrave demarcaccedilatildeo territorial enquanto elemento deslegitimador das reivindicaccedilotildees destas comunidades No caso dos Guaranis a partir da deacutecada de 70 com a mecanizaccedilatildeo da agricultura sua matildeo-de-obra passou a ser desprezada e aquelas famiacutelias que resistiram ao processo de colonizaccedilatildeo foram se estabelecendo apenas nas margens do Rio Paranaacute pela pressatildeo e esbulho territorial que sofreram A maior parte foram afugentadas para o leste paraguaio sob grande violecircncia dos oacutergatildeos do Estado processo no qual o Estado ditatorial brasileiro participou ativamente Trata-se portanto de um processo de migraccedilatildeo forccedilada que ocorreu nas uacuteltimas deacutecadas e que contrasta com a dinacircmica de deslocamentos proacuteprios da etnia ligados a perspectivas e significados cosmoloacutegicos (CARVALHO 2013)
37
agraves demais alteridades e grupos eacutetnicos no estado Neste sentido afirma a antropoacuteloga
Mirian Hartung
A invisibilidade tornou-se um dos aspectos mais relevantes da identidade social dos afrodescendentes no sul do Brasil O projeto de colonizaccedilatildeo com europeus implantado entre meados do seacuteculo XIX e o XX foi a sua contraface Em um seacuteculo foram concedidos aos colonos europeus todas as primazias sobre as terras os capitais as oportunidades de trabalho e o crescimento econocircmico Este modelo seletivo e excludente orientou as poliacuteticas puacuteblicas as accedilotildees particulares e a voz dos cientistas (2004 p 7)
Em relaccedilatildeo aos desdobramentos deste modelo de colonizaccedilatildeo regional por
descentes de europeus implantado em Guaiacutera a partir da deacutecada de 1930 Joaquim
(55 anos) tambeacutem filho de Manoel Ciriaco do segundo casamento eacute pessimista no
tocante agraves mudanccedilas em curso no mundo rural O que seus vizinhos enxergam como
progresso segundo ele me relatou eacute a produccedilatildeo de transgecircnicos na base de
veneno30 o uso de sementes esteacutereis fabricadas em laboratoacuterio que implicam no
pagamento de lsquordquoroyaltiesrdquo para as empresas multinacionais Muitas plantas agriacutecolas
satildeo resistentes ao veneno que acaba por sua vez com o mato natildeo havendo
necessidade capinar Assim natildeo tem mais emprego nas plantaccedilotildees Eacute a maacutequina que
planta a semente uma por uma Denunciou entatildeo o fato de que quando os vizinhos
passam o veneno (e eles acompanham estes ciclos praticamente todos juntos) soacute
com o cheiro do veneno as folhas das plantas que estatildeo na aacuterea do grupo quilombola
tambeacutem se enrolam em consequecircncia
Estes satildeo exemplos entre outros que Joaquim citou como modificaccedilotildees
alarmantes de modo que os mais jovens ressente-se natildeo chegam sequer a
conhecer como era antes quando a regiatildeo de Guaiacutera era tomada pela mata fechada
e a produccedilatildeo era manual familiar pautada em uma loacutegica de valorizaccedilatildeo do trabalho
na terra do alimento da solidariedade Ao olhar para o passado Joaquim apontou
que na eacutepoca que Seu Manoel comprou aquela terra no iniacutecio da deacutecada de 1960 o
preccedilo era muito barato e aleacutem disso pagava-se como podia ao longo dos anos Na
eacutepoca Manoel natildeo teria comprado uma aacuterea maior porque natildeo teriam como tocar
aquele tanto de terra o que indica que a loacutegica do grupo era de ocupaccedilatildeo efetiva da
30 A imagem de Guaiacutera estaacute muito associada ao contrabando de produtos do Paraguai Um dos
produtos que satildeo contrabandeados e afetam diretamente a comunidade quilombola satildeo os defensivos agriacutecolas comercializados no Paraguai e proibidos no Brasil para uso em plantaccedilotildees como no caso do MPK 40 que foi a mim denunciado pelos quilombolas e por mais dois servidores puacuteblicos que trabalham no municiacutepio
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aacuterea para produccedilatildeo familiar Em relaccedilatildeo ao futuro Joaquim afirmou que soacute Deus para
colocar um limite nesta ambiccedilatildeo nas alteraccedilotildees feitas na Sua criaccedilatildeo
No contexto das dificuldades que enfrentam no municiacutepio ainda mais
significativa eacute a relevacircncia atribuiacuteda pelos quilombolas agrave memoacuteria coletiva e aos laccedilos
sociais e histoacutericos principalmente no que se refere aos mais velhos que tentam
direcionar os mais novos neste mesmo sentido Este sentimento de um pertencimento
comum embasa a autoidentificaccedilatildeo e a mobilizaccedilatildeo do grupo pelo reconhecimento
como quilombolas A emergecircncia desta identidade estaacute inserida em um contexto de
relaccedilotildees de tensatildeo antes velada e que aponta para dinacircmicas de fronteira entre
brancos e negros no bairro rural ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo onde residem31
A reproduccedilatildeo da coesatildeo do grupo estaacute presente na leitura que fazem dos
processos de deslocamento que natildeo passa pela ideia de ruptura como mencionamos
na introduccedilatildeo Pelo contraacuterio desenha-se a partir da continuidade do movimento
como mecanismo de reproduccedilatildeo do grupo o que reforccedila os viacutenculos com o local de
proveniecircncia (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64) A regiatildeo do municiacutepio de Santo Antocircnio
do Itambeacute sobre a qual traremos abaixo uma breve apresentaccedilatildeo eacute o lugar de
sustentaccedilatildeo do ldquomito de origemrdquo do grupo e remonta agrave vivecircncia dos mais velhos que
laacute residiram
Apesar de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG estar abrangido pela divisatildeo
institucional da ldquomesorregiatildeo metropolitana de Belo Horizonterdquo o municiacutepio estaacute muito
mais proacuteximo em termos sociais e culturais da ldquomesorregiatildeo do Vale do
Jequitinhonhardquo situada no nordeste do estado No que tange agraves bacias hidrograacuteficas
o municiacutepio localiza-se entre a bacia do Alto Jequitinhonha e a bacia do Rio Doce e
como sugerem os moradores da regiatildeo ldquoeacute o comeccedilo do Valerdquo
31 Segundo Barth ldquoos elementos da cultura presente em um grupo eacutetnico natildeo surgem por conseguinte
do conjunto particular que constituiu a cultura do grupo em um periacuteodo anterior embora o grupo tenha uma existecircncia organizacional contiacutenua com fronteiras (criteacuterios de pertenccedila) que apesar das modificaccedilotildees nunca deixaram de delimitar uma unidade contiacutenuardquo (BARTH 2011 p 227) Tais reflexotildees deste autor continuam sendo segundo Joseacute Mauriacutecio Arruti ldquoas melhores orientaccedilotildees para a anaacutelise de grupos autodefinidos com base na origem ou em atributos de formaccedilatildeordquo e embasam a noccedilatildeo de etnicidade na reflexatildeo antropoloacutegica contemporacircnea (ARRUTI 2006 p 39)
39
FIGURA 3 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute FONTE Autora (2015)
Atualmente o municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG possui 4121
habitantes conforme estimativa do IBGE para 201432 Segundo o Censo de 2010
1230 pessoas moravam na zona urbana o equivalente a 2984 e mais de 70 da
populaccedilatildeo continua habitando a zona rural um total de 2905 pessoas Em termos
raciais em Santo Antocircnio do Itambeacute apenas 863 da populaccedilatildeo (357 pessoas) se
declarou como ldquobrancardquo Jaacute a autoidentificaccedilatildeo como sendo da cor ldquopretardquo somou
1947 (805 pessoas) e ldquopardardquo 6972 (2883 pessoas) A diferenccedila no que tange
ao percentual de brancos e negros com relaccedilatildeo agrave GuaiacuteraPR33 eacute significativa jaacute que laacute
a populaccedilatildeo que se declarou branca eacute a maioria 57 em contraste com os apenas
863 de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Dito isto voltemos agraves narrativas quilombolas que destacam principalmente a
capacidade de resistecircncia dos antepassados em condiccedilotildees adversas de muito
sofrimento vivenciadas na regiatildeo mineira Em Guaiacutera me contaram sobre os relatos
32 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316020 Acesso em 22062015 33 Praticamente todos os dados que seratildeo apresentados para a comparaccedilatildeo entre as duas regiotildees satildeo
fortemente contrastantes
40
que ouviram dos pais avoacutes tios irmatildeos mais velhos sobre experiecircncias de fome
trabalho aacuterduo e precariedade das moradias que tinham que ser feitas dentro de lapas
ou locas de pedra (cavernas) Por outro lado Minas eacute valorizada por sua cultura local
narrada pelas histoacuterias sobre os antepassados
Importante levar em conta que na narrativa sobre o passado certos traccedilos se
esvanecem e outros satildeo reforccedilados conforme o momento presente daqueles que
compotildeem uma mesma ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo (HALBWACHS 2003 p 94) O
relato de Jovelina filha mulher mais velha de Manoel Ciriaco atualmente com 73
anos que morou em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ateacute seus quinze anos e atualmente
reside em Presidente PrudenteSP34 destaca a fome como uma memoacuteria central nos
tempos de sua infacircncia
Dandara Dona Jo a senhora repete entatildeo pra gente o que comentou laacute das memoacuterias do pessoal mais antigo de Minas
D Jovelina Laacute no siacutetio do meu pai tinha tinha natildeo que deve ter ateacute hoje que aquilo ali natildeo foi tampado aquele valo Aliacute era cerca pros bois natildeo passar pra roccedila pra comer a roccedila Ali tinha aqueles buracatildeo os boi chegava laacute e olhava assim via aquele buraco laacute e saiacutea E se ele quebrasse a perna ali dentro aiacute entatildeo o dono dele dava pra aquelas pessoas repartir Aiacute a gente pegava e ia laacute buscar e eles repartiam tudo pra aquelas pessoas e a nossa turma ia alegre pra casa porque tava tudo morrendo de fome Ai entatildeo ia naquele lugar onde aquele boi tentou cair ali aiacute escavava mais pra baixo ainda E tinha uns ainda que tinham minha voacute sempre falava que tinha ateacute corrente no peacute que aquele ali que natildeo trabalhasse era preguiccediloso ia ser amarrado laacute no tronco da aacutervore laacute E laacute ficava
Eacute possiacutevel observar que quando Dona Jovelina fala de sua infacircncia relembra
as histoacuterias contadas pela avoacute Izidora sobre o tempo da escravidatildeo35 Interessante
refletir que na forma como a narradora conta esta lembranccedila natildeo aparece um corte
temporal entre o periacuteodo em que a famiacutelia se alimentava da carne do boi que caiacutea no
valo utilizado como cerca entre as propriedades e a eacutepoca em que as pessoas
trabalhavam acorrentadas e eram castigadas no tronco da aacutervore como a avoacute sempre
falava Haacute deste modo uma continuidade sugestiva na narrativa que faz um
34 Esta entrevista ocorreu durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo de 2015
quando passamos por Presidente PrudenteSP justamente para conversar com os irmatildeos mais velhos Jovelina Olegaacuterio e Joatildeo Loriano sobre suas lembranccedilas da vida em Santo Antocircnio do Itambeacute 35 Com os pais provavelmente ocupados em atividades laborais os avoacutes conforme problematizado por
Connerton ocupam uma posiccedilatildeo central no processo de transmissatildeo de conhecimentos sobre o passado diretamente agrave geraccedilatildeo mais nova (CONNERTON 1999 p 43-44) No caso de Jovelina ela ficou sem a matildee que faleceu quando ela tinha dois anos de idade tendo sido cuidada por sua avoacute Izidora e sua tia Ana Raimunda junto com seu pai Manoel Ciriaco
41
entrecruzamento de temporalidades em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da escravidatildeo
apontando para uma forte conexatildeo entre periacuteodos cronoloacutegicos experiecircncias e
vivecircncias ateacute o momento de sua infacircncia na deacutecada de 1940 (MELLO 2012 p 170)
D Jovelina lembrou-se tambeacutem de que quando crianccedila ela e seu irmatildeo Joatildeo ainda
muito pequenos recorriam agrave alternativa de encontrar no rio utilizando uma bateia
algum ouro que entregavam para a tia Ana Raimunda para fazer um pouco de dinheiro
e comprar algo para a famiacutelia36
D Maria das Dores esposa de Seu Joatildeo (filho de Manoel Ciriaco do primeiro
casamento) que atualmente tambeacutem mora em Presidente PrudenteSP37 comentou
sobre seu sofrimento em Minas Gerais38
Cassius A sra falou que comeccedilou a trabalhar desde pequena laacute em Santo Antocircnio
D Maria Desde pequenininha lavando mandioca no rio de manhatilde cedo com frio eacute eu sofri muito Depois cresci trabalhando pras casas dos outros Eu nunca tive vida forgada Eu criei meus filhos tudo sofrendo O menino que natildeo foi sofrido foi esse aiacute que nasceu no Paranaacute mas os outros laacute de Minas tudo () Nem roupa pra vestir a gente natildeo tinha chinelo pra pocircr no peacute era uma vida cruel A gente natildeo comia nem um arroz nem nada Nem oacuteleo pra pocircr na comida natildeo tinha
Dandara A terra era fraca neacute
D Maria Terra natildeo ia nada soacute o que eu plantava laacute era soacute cafeacute cana e mandioca soacute a fartura que vocecirc via laacute era isso eacute natildeo tinha nada natildeo
A baixa qualidade da terra e a escassez de aacutereas para plantio podem ter
impulsionado a estrateacutegia de Manoel Ciriaco de sair rumo a regiatildeo de Satildeo Paulo e
depois norte do Paranaacute acompanhado de demais parentes o que era uma praacutetica
recorrente nesta regiatildeo mineira De acordo com Flaacutevia Galizoni a regiatildeo nordeste de
Minas Gerais tem uma caracteriacutestica proacutepria em relaccedilatildeo ao modo de aquisiccedilatildeo do
direito agrave terra que se daacute principalmente por heranccedila Este eacute o caso da famiacutelia de
36 Esta forma de garimpo eacute muito comum entre mulheres e crianccedilas (GUEDES 2013a p 126) Em sua
etnografia no norte de Goiaacutes Guedes destaca como o garimpo eacute visto como uma alternativa precisamente a situaccedilotildees entendidas como cativeiro eou escravidatildeo Segundo o autor ldquotratamos aqui da continuidade ndash ou para ser mais preciso da eterna expectativa pelo retorno ou volta ndash de uma escravidatildeo cuja aboliccedilatildeo lsquoformalrsquo por vezes eacute tratada como objeto de escaacuternio natildeo passando de uma iniciativa hipoacutecrita dos ricosrdquo Garimpeiros e quilombolas ldquocompartilham assim interstiacutecios e margens e sempre estiveram a se fundir e confundir uns com os outrosrdquo (GUEDES 2013a p 118-119) 37 Esta entrevista tambeacutem realizada durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo
de 2015 38 Esta entrevista tambeacutem ocorreu durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo de
2015
42
Manoel cuja herdeira era sua matildee Izidora pois o siacutetio havia sido comprado pelo pai
dela como me relata Jovelina
As pessoas foram morrendo e deixando pros filhos agora aqueles filhos que morriam ficava pros outros netos deles e era assim ia ficando () Era tudo negro que tinha por aiacute Quando um tava meio apurado de serviccedilo ia laacute ah fulano vocecirc vai trabalhar pra mim que eu te pagordquo () Entatildeo chamava ia aquela turma de gente ali ajudava quando era o outro dia ia laacute na casa do outro trabalhar pro outro pagar aquele dia Que eles trabalhavam natildeo era pra receber dinheiro porque natildeo tinha Entatildeo trabalhava o dia trocado Hoje vocecirc vinha aqui e ajudava eu a fazer aquele serviccedilo aiacute amanhatilde eu ia e te ajudava tambeacutem era trocado
A terra eacute um patrimocircnio familiar transmitida pela heranccedila no acircmbito de uma
ordem moral camponesa que natildeo a restringe ao valor de mercadoria mas que a
concebe a partir de valoraccedilotildees eacuteticas Aquele que se torna dono o faz mediante o
trabalho que eacute ademais um trabalho familiar no qual as relaccedilotildees de reciprocidade
satildeo centrais (WOORTMANN 1990) em um modelo relacional que fica niacutetido na fala
de Dona Jovelina Nesta dinacircmica a migraccedilatildeo39 eacute um dos elementos importantes para
manter a terra em um tamanho necessaacuterio para as futuras geraccedilotildees jaacute que seu
fracionamento extremo pode ldquoinviabilizar a continuidade da famiacutelia como grupo de
agricultores independentesrdquo
A terra eacute o principal meio de produccedilatildeo e patrimocircnio dos agricultores mas em decorrecircncia da pressatildeo demograacutefica e da exaustatildeo do ambiente torna-se ao longo do tempo um limite para a sua reproduccedilatildeo social Quando o nuacutemero de membros excede a capacidade de suporte da terra surge o imperativo de se decidir no interior da famiacutelia como seraacute resolvida essa questatildeo e nesse contexto a heranccedila constitui um ponto nodal para compreender as estrateacutegias de permanecircncia dos agricultores familiares na terra (GALIZONI2007 p 564)
Para que parte da famiacutelia fique na terra como herdeiros torna-se imperativo
que outra saia enquanto excedente familiar no que tange o uso da terra A migraccedilatildeo
ocorre como processo familiar pois acontece em grupo a partir de estrateacutegias de
contatos nos locais de destino com o objetivo de reconstruir as unidades familiares
No caso em questatildeo Manoel antes de sair definitivamente praticava a migraccedilatildeo
39 Importante ressaltar a criacutetica ao conceito de migraccedilatildeo jaacute que esta concepccedilatildeo esta permeada
frequentemente por uma visatildeo de que o ldquomovimento natildeo teria um valor em si mesmo constituindo-se basicamente como a passagem entre dois pontosrdquo Assim o deslocamento eacute visto como acontecimento excepcional e a sedentariedade como regra Deste modo o movimento e natildeo a permanecircncia eacute o que tem que ser explicado (GUEDES 2013a p 31-36)
43
sazonal movimento recorrente nesta regiatildeo no periacuteodo da seca quando saiacutea para
trabalhar como peatildeo mundo afora Um dos seus destinos de trabalho era a regiatildeo de
Londrina norte do Paranaacute para onde se deslocava de trem Foi atraveacutes desta
experiecircncia preacutevia que traccedilou a estrateacutegia de saiacuteda definitiva com demais parentes
para a regiatildeo de Presidente PrudenteSP onde morou no municiacutepio de CaiabuSP Eacute
importante salientar que nesta regiatildeo paulista Manoel Ciriaco e demais parentes
puderam contar com o suporte da famiacutelia de seu primo de primeiro grau Raimundo
Constantino ndash filho de sua tia materna Joana ndash que laacute jaacute se encontrava Raimundo
que havia saiacutedo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG com esposa e filhos em 1949 jaacute
havia falecido quando Manoel chegou em CaiabuSP
Na eacutepoca em que Manoel deixou sua regiatildeo de origem ele jaacute havia ficado
viuacutevo de Maria Olinda sua primeira esposa com quem teve quatro filhos Luiza ndash que
faleceu aos 8 anos de idade ndash Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano
FIGURA 4 Excerto Genealoacutegico 1
Como afirmei anteriormente quando Maria Olinda faleceu Joatildeo Loriano tinha
apenas um mecircs de vida tendo sido criado pela avoacute Izidora e pela irmatilde de seu pai
Ana Raimunda Depois Manoel casou-se com Ana Rodrigues com quem teve mais
quatro filhos ainda em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Eurides Sebastiana (falecida)
Antocircnio (falecido) e Joseacute Maria (falecido) Os outros filhos deste casal jaacute nasceram
no processo de deslocamentos da famiacutelia ndash dos quais apenas Paulo faleceu quando
tinha 15 anos ndash e os quatro irmatildeos mais novos satildeo os que atualmente continuam
morando em GuaiacuteraPR e atuam de forma direta no projeto de estruturaccedilatildeo da
comunidade quilombola Joaquim Geralda Adir e Joatildeo Aparecido
44
FIGURA 5 Excerto Genealoacutegico 2
45
Para compreender o contexto da saiacuteda dessas famiacutelias em 1956 deve-se ter
em conta que a deacutecada de 1950 eacute o periacuteodo de decliacutenio da produccedilatildeo camponesa na
regiatildeo mineira em decorrecircncia da abertura de estradas bem como do
desenvolvimento e da urbanizaccedilatildeo do entorno De 1950 a 1970 a regiatildeo do ldquoVale do
Jequitinhonhardquo40 vivenciou um importante marco histoacuterico de integraccedilatildeo na economia
nacional por meio da possibilidade de acesso a produtos industrializados o que como
consequecircncia provocou a desvalorizaccedilatildeo dos produtos regionais Este periacuteodo eacute
marcado pela expansatildeo do capitalismo e pela expropriaccedilatildeo do campesinato com o
aumento significativo do deslocamento da populaccedilatildeo local (PORTO 2007 p 79)
A produccedilatildeo e o comeacutercio de alimentos e artigos artesanais eram justamente
o trabalho realizado pelas famiacutelias negras em questatildeo principalmente na lavoura de
cana-de-accediluacutecar com a qual se fazia a cachaccedila o melado e a rapadura e no
transporte destes produtos em lombo de burro para sua comercializaccedilatildeo aleacutem da
lavoura de cafeacute do trabalho no garimpo de ouro e da agricultura de subsistecircncia
Deste modo a saiacuteda dos camponeses decorre da pressatildeo das ldquoformas empresariais
e capitalistasrdquo em direccedilatildeo agrave regiatildeo ldquoos primeiros continuamente deslocados pela
marcha dos segundosrdquo (GUEDES 2013b p 53) Dentre tais empreendimentos
destaca-se a produccedilatildeo em moldes capitalistas de eucalipto de gado e de cafeacute Deste
modo eacute possiacutevel perceber como a memoacuteria e a experiecircncia do grupo quilombola vai
tomar como um marco os efeitos do histoacuterico de modernizaccedilatildeo regional e do decliacutenio
da produccedilatildeo camponesa no acircmbito de um processo mais amplo de pressatildeo
migratoacuteria (PORTO 2007 p 60) Olegaacuterio (77 anos) filho de Manoel Ciriaco que saiu
de MG com o pai contou que ele e seus parentes foram de Santo Antocircnio do Itambeacute
ateacute Diamantina no pau de arara caminhatildeo coberto de lona e de Diamantina ao estado
de Satildeo Paulo de ocircnibus
Recuando um pouco mais na histoacuteria no que tange ao comeccedilo do seacuteculo XX
os estudos historiograacuteficos demonstram como a migraccedilatildeo jaacute aparecia como uma
estrateacutegia importante para a populaccedilatildeo negra que vivia em regiotildees de colonizaccedilatildeo
antiga como eacute o caso de Minas Gerais Estes estudos tecircm analisado como os negros
40 Esta divisatildeo regional que a partir da deacutecada de 1960 cria de uma forma unificada o ldquoVale do
Jequitinhonhardquo eacute fruto de uma articulaccedilatildeo da esfera poliacutetica que tomou como criteacuterio a carecircncia e a pobreza enquanto argumentos dos poliacuteticos regionais para acessar recursos para uma aacuterea definida como ldquobolsatildeo da pobrezardquo O ldquoprogressordquo por meio desenvolvimento capitalista seraacute entatildeo apresentado como o caminho de redenccedilatildeo para a populaccedilatildeo localrdquo (PORTO 2007 p 61)
46
libertos e seus descendentes traccedilaram estrateacutegias para buscar caminhos de
autonomia e de subsistecircncia tendo em vista as dinacircmicas de disponibilidade de terra
e trabalho no poacutes-aboliccedilatildeo (1888) Esta populaccedilatildeo tinha que lidar com a permanecircncia
das categorizaccedilotildees sociais como a de ldquoex-senhores libertos e homens nascidos
livresrdquo enquanto uma das principais limitaccedilotildees para sua capacidade de negociaccedilatildeo
nas regiotildees de colonizaccedilatildeo mais antigas (MATTOS RIOS 2004 p 180) Eacute sabido
que o fim do regime escravocrata natildeo concretizou a presunccedilatildeo legal de igualdade e
cidadania para esta populaccedilatildeo que ficou sujeita agrave manutenccedilatildeo das hierarquias locais
jaacute que ser negro ainda era visto em alguma medida como sinoniacutemia de ter sido
escravo Eacute necessaacuterio neste sentido refletir sobre o projeto dos libertos no periacuteodo
do poacutes-aboliccedilatildeo ldquosua lsquovisatildeorsquo do que seria liberdade os significados deste conceito
para a populaccedilatildeo que iria finalmente vivenciaacute-la ()rdquo Uma das expressotildees destes
projetos foi a ldquomobilidade espacialrdquo a partir do direito que passaram a ter sobre os
proacuteprios corpos de ir e vir livremente (MATTOS RIOS 2004 p 171-178)
Muitas eram as dificuldades enfrentadas pelos negros nas regiotildees onde a
escravidatildeo tinha sido significativa como a localidade de Santo Antocircnio do Itambeacute que
faz parte do ldquoCaminho dos Diamantesrdquo e da ldquoEstrada Realrdquo vinculada agrave colonizaccedilatildeo
mineradora A movimentaccedilatildeo geograacutefica dos ldquonatildeo-brancos livresrdquo para aacutereas de
colonizaccedilatildeo mais recente como eacute o caso de Guaiacutera na regiatildeo noroeste do Paranaacute
onde poderiam se organizar como ldquocampesinato reconstituiacutedordquo foi uma opccedilatildeo muito
utilizada Carlos Lima denominou este processo de ldquopequena diaacutesporardquo apontando
para a ldquoforte tendecircncia emigratoacuteriardquo que partia ldquodas aacutereas centrais onde haviam sido
gerados para localidades onde o acesso agrave terra fosse mais plausiacutevelrdquo (LIMA 2000 p
109)41 Deste modo destaca em suas pesquisas sobre o poacutes-aboliccedilatildeo a inserccedilatildeo de
libertos em processos de povoamento e a tendecircncia ao deslocamento de seus
descendentes de aacutereas de colonizaccedilatildeo antiga para regiotildees mais novas ndash como no
caso em questatildeo da regiatildeo de DiamantinaMG ateacute GuaiacuteraPR O autor observou na
documentaccedilatildeo um alto grau de natildeo brancos livres no estado do Paranaacute no seacuteculo
XIX e em relaccedilatildeo inversa um nuacutemero relativamente baixo de natildeo-brancos livres nas
aacutereas de escravidatildeo mais antiga (LIMA 2000)
41 No entanto nem todos os deslocamentos eram bem-sucedidos e como aponta o estudo das historiadoras Hebe Mattos e Ana Maria Rios tambeacutem implicaram em certos casos em ldquohistoacuterias de privaccedilotildees extremas e desestruturaccedilatildeo da vida familiarrdquo (MATTOS RIOS 2004 p 171)
47
Com esta estrateacutegia de movimento o grupo familiar proveniente de MG
conseguiu adquirir terras em GuaiacuteraPR depois de quase uma deacutecada em que
moraram e trabalharam principalmente na colheita de algodatildeo e de amendoim na
regiatildeo de Presidente PrudenteSP em aacutereas arrendadas no municiacutepio de CaiabuSP
A partir do contato com Seu Olindo que era corretor foram para o Paranaacute porque
tinham interesse de comprar terras principalmente porque lhes falaram que a terra laacute
era muito boa Em Guaiacutera estabeleceram-se no iniacutecio da deacutecada de 1960 e adquiriram
quatro pequenos lotes rurais todos proacuteximos os quais demoraram anos para quitar
atraveacutes de muito trabalho modo de pagamento inaceitaacutevel nos padrotildees atuais Com
o estabelecimento de Manoel e de sua esposa Ana Rodrigues com demais parentes
em Guaiacutera outras famiacutelias tambeacutem foram se deslocando para laacute tanto provenientes
do estado de Satildeo Paulo como da regiatildeo mineira Destacam-se nas narrativas sobre
a chegada em uma aacuterea que estava comeccedilando a ser colonizada as dificuldades que
enfrentaram acampando embaixo de lona no meio do mato de onde passaram a
retirar toda a sua sobrevivecircncia por meio da caccedila e da coleta aleacutem da derrubada da
mata para limpar o terreno e para iniciar o plantio agriacutecola
Os quatro homens chefes de famiacutelia que se tornaram proprietaacuterios no Paranaacute
tinham viacutenculos de parentesco entre si e com o casal ancestral Joseacute e Joana
ascendentes mais antigos sobre o qual o grupo tinha referecircncias (antes da pesquisa
realizada em Minas Gerais) inclusive de terem trabalhado como escravos em Minas
Gerais Assim aleacutem de Manoel Ciriaco e Geraldo Domingos dos Santos os quais
adquiriram respectivamente dez e cinco alqueires contiacuteguos da Sociedade
Agropecuaacuteria Comercial e Industrial Maracaju LTDA (lotes 186 e 186-A 187 e 187-A)
tambeacutem adquiriram lotes o ldquotio Raimundatildeordquo que era tio de Ana Rodrigues e Joatildeo
Ferreira cunhado de Ana Nestes siacutetios moravam mais parentes aleacutem daqueles que
tambeacutem residiam em propriedades da regiatildeo e tocavam arrendado No caso de
Raimundo e Joatildeo Ferreira natildeo tive acesso a informaccedilotildees sobre a histoacuteria de aquisiccedilatildeo
e perda dessas aacutereas Imagino que este silenciamento seja decorrente dos conflitos
territoriais que antecederam esta pesquisa com a grupo conforme abordaremos no
segundo capiacutetulo Apesar disso membros da comunidade comentam saudosos sobre
a relevacircncia da dinacircmica de tracircnsito dos parentes entre estas aacutereas periacuteodo no qual
havia em torno de oitenta pessoas da famiacutelia morando na regiatildeo de Guaiacutera e de Terra
RoxaPR
48
FIGURA 6 Excerto Genealoacutegico 3
49
As aacutereas do ldquotio Raimundatildeordquo e de Joatildeo Ferreira atualmente natildeo constam no
processo de reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo do territoacuterio que tramita no INCRA A natildeo
indicaccedilatildeo dessas duas aacutereas parece ter sido uma estrateacutegia da comunidade na
produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico Esta estrateacutegia como pude
compreender estaacute relacionada aos conflitos gerados pela produccedilatildeo do primeiro
relatoacuterio sobre a comunidade Assim os quilombolas entenderam que era mais
seguro neste segundo relatoacuterio natildeo indicar as duas aacutereas que natildeo satildeo contiacuteguas ao
territoacuterio atual o que poderia reestabelecer a animosidade entre a comunidade e os
proprietaacuterios vizinhos Atualmente o procedimento do INCRA utiliza como base
territorial as aacutereas indicadas pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico que foram
adquiridas por Manoel Ciriaco e Geraldo dos Santos as quais somavam 15 alqueires
contiacuteguos dos quais soacute restam atualmente 85 alqueires O relatoacuterio indica tambeacutem a
aquisiccedilatildeo de uma aacuterea complementar para que possa haver meios de reproduccedilatildeo
social cultural e econocircmica das famiacutelias que atualmente permanecem na
comunidade42
Em 1992 Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano ndash filhos de Manoel Ciriaco do
primeiro casamento ndash migram de GuaiacuteraPR com suas famiacutelias As famiacutelias de
Olegaacuterio e Joatildeo Loriano foram para a TarabaiSP proacuteximo a Presidente PrudenteSP
e Jovelina foi com a famiacutelia para ColiacutederMS O ldquoVelho Maneacuterdquo havia falecido em 1989
Em 1993 Geraldo dos Santos primo de Manoel que havia comprado lote limiacutetrofe ao
seu vende seus cinco alqueires e migra com sua famiacutelia para Satildeo Jorge do
PatrociacutenioPR municiacutepio proacuteximo onde adquiriu aacuterea maior mas de menor qualidade
pois a terra mais arenosa Eva me contou o motivo de seu pai Geraldo ter preferido
sair de Guaiacutera em 1993 e vender seus cinco alqueires
Dandara Eu queria perguntar tambeacutem para a Sra sobre a saiacuteda do seu pai daqui ele foi muito pressionado pra sair pra vender
Eva Ele quis sair Dandara ele natildeo quis ficar aqui mais pouca terra muito pouco com raiva tambeacutem quando os vizinhos ia limpar a estrada rancava tudo as coisas que ele plantava na beira da estrada ele ficava muito nervoso Ele pegou e natildeo quis viver aqui mais natildeo foi embora caccedilou um outro lugar pra ele morar que um lugar que era tudo gente pobre natildeo queria morar perto
42 Esta aacuterea natildeo necessita de acordo com o procedimento ser limiacutetrofe agrave comunidade e seraacute adquirida
atraveacutes do instrumento de desapropriaccedilatildeo por interesse social pelo INCRA Aleacutem das famiacutelias que atualmente moram na comunidade haacute a previsatildeo de que vaacuterias dentre as que migraram de GuaiacuteraPR poderatildeo caso haja esta ampliaccedilatildeo do territoacuterio retornar e se juntar ao grupo Esta previsatildeo de retorno eacute utilizada para calcular o tamanho da aacuterea adicional conforme abordo no segundo capiacutetulo
50
de gente rica (risos) Daiacute ele pegou e foi embora e chegou laacute e falou que era tudo pobre tambeacutem Soacute que sofreu muito tambeacutem laacute hein
Foram muitas as dificuldades que superaram conforme narram para
permanecerem em uma regiatildeo na qual se sentem discriminados racial e socialmente
Dentro deste processo histoacuterico de deslocamento e estruturaccedilatildeo das famiacutelias no
Paranaacute o casal Manoel Ciriaco dos Santos e Ana Rodrigues dos Santos ocupa o lugar
de casal fundador e aglutinador das relaccedilotildees de parentesco da comunidade
quilombola organizada a partir de GuaiacuteraPR mas que abrange famiacutelias que estatildeo
fora do territoacuterio Esta estruturaccedilatildeo das famiacutelias na regiatildeo de GuaiacuteraPR tambeacutem
portanto foi passageira para alguns nuacutecleos familiares e mais prolongada para outros
Atualmente as famiacutelias que continuaram no territoacuterio em GuaiacuteraPR lutam para
garantirem o direito de laacute permanecerem e para que seja ampliada a aacuterea da
comunidade a qual foi sendo reduzida ao longo das uacuteltimas deacutecadas com o processo
de mecanizaccedilatildeo da agricultura da perda dos meios de trabalho da valorizaccedilatildeo
comercial da terra na regiatildeo e da saiacuteda dos ldquoparentesrdquo
Manoel e Ana o casal que estrutura o modo de elaboraccedilatildeo da narrativa
histoacuterica e da reivindicaccedilatildeo de direitos pela comunidade atualmente eram primos de
segundo grau jaacute que Joana avoacute de Ana Rodrigues era irmatilde de Izidora matildee de
Manoel
FIGURA 7 Documentos de identidade de Manoel nascido em 16031920 e Ana nascida em 26071930 ambos no municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG (Comarca de Serro)
51
Sobre as dificuldades vivenciadas quando as famiacutelias se estabeleceram em
GuaiacuteraPR e do aperto que viveram Eva filha de Geraldo Domingos dos Santos
destacou
Eva Nossa Senhora Noacutes passou um aperto aqui Aqui o que noacutes passemo aqui Eu acho mesmo o que noacutes comia era peixinho assado no fogo A muieacute que morava assim vizinha aqui quando ela colhia milho e levava milho na casa dela pra moer fazer fubaacute que noacutes comia polenta com radiche do mato serraia nem a gordura pra comer natildeo tinha Tinha dia que noacutes natildeo tinha um gratildeo de accediluacutecar Quando eles trabalhava assim que colhia as coisa pra vender daiacute jaacute comprava aproveitava que o dinheirinho era pouco mesmo depois o dinheiro natildeo dava entatildeo jaacute aproveitava e comprava de uma vez Comprava meio saco de accediluacutecar aiacute entrava pura abeia dentro de casa pura abeia (risos) Quando acabava daiacute meu pai socava poacute no pilatildeo pra noacutes fazer cafeacute de manhatilde cedo Eu falei assim ldquoeacute minha fia hoje natildeo ensina mais nada disso vocecircs nem conhece o que que eacute issordquo
Nos termos de Geralda filha de Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues que saiu
dos siacutetios haacute muitos anos e atualmente mora na periferia de Guaiacutera (Vila Eletrosul)43
eles sempre trabalharam para enriquecer os coroneacuteis mas para os negros natildeo
sobrava nada A histoacuteria de seu marido Antocircnio conhecido por Guaraacute44 segundo ela
eacute um exemplo disso ldquopara mim o meu marido foi igual escravo para sofrer o que ele
sofreu As crianccedilas hoje tecircm liberdade Noacutes natildeo noacutes tinha que trabalhar e ningueacutem
tinha doacute E se fosse negro mais aindardquo A experiecircncia da escravidatildeo natildeo fica restrita
portanto a um passado longiacutenquo pois se perpetuou para aleacutem de sua instituiccedilatildeo
oficial por meio da reproduccedilatildeo de um sistema baseado na exploraccedilatildeo continuada e
na discriminaccedilatildeo racial Haacute uma perspectiva bem proacutexima na comunidade quilombola
Aacutegua Morna no estado do Paranaacute registrada no relatoacuterio antropoloacutegico da
comunidade
() Natildeo vinculam a escravidatildeo somente ao periacuteodo preacute-aboliccedilatildeo mas a percebem em tempo muito mais recente Ela estaacute relacionada ao trabalho para os ldquode forardquo e agrave experiecircncia da negritude que os colocaria constantemente em uma situaccedilatildeo de poder desprivilegiada () Nas falas dos moradores locais a escravidatildeo se confunde com a discriminaccedilatildeo relacionada ao racismo e agrave pobreza Muito mais que uma oposiccedilatildeo entre o tempo da escravidatildeo e o tempo da liberdade com uma delimitaccedilatildeo clara entre ambos
43 Outra importante caracteriacutestica sobre a caracterizaccedilatildeo negativa de Guaiacutera eacute que mesmo sendo um
municiacutepio de porte pequeno apresenta um dos maiores iacutendices de homiciacutedio do paiacutes (WAISELFISZ 2013) A Vila Eletrosul eacute tida como um dos bairros mais perigosos de Guaiacutera com vaacuterios casos de
homiciacutedios e apreensotildees Localizada nas proximidades do Rio Paranaacute eacute por laacute que entra parte da droga e do contrabando jaacute que por meio deste desvio evita-se a entrada principal saindo de Salto del Guairaacute no Paraguai para Guaiacutera onde se concentra a fiscalizaccedilatildeo 44 Irei utilizar o apelido de Guaraacute para o distinguir de ldquofinado Antocircniordquo irmatildeo de Geralda
52
dada pela assinatura da Lei Aacuteurea em Aacutegua Morna encontramos a escravidatildeo simultaneamente percebida como una e como tripartida haacute a experiecircncia dos antepassados trazida principalmente atraveacutes do relato de Benedita e da qual a caminhada ndash e a accedilatildeo da Princesa Isabel ndash os libertou haacute a opressatildeo mais recente dos antigos jaacute no proacuteprio territoacuterio mas sujeitos agrave desigualdade que marca as relaccedilotildees com os ldquobrancosricosrdquo e por fim a vivecircncia da discriminaccedilatildeo e exploraccedilatildeo no trabalho que permanece na atualidade em que escravidatildeo se aproxima de racismo (PORTO 2008 p 71-72)
A lembranccedila da ausecircncia de acesso a recursos baacutesicos estaacute sempre presente
nas falas da Geralda
Geralda Noacutes tocava um banhado de um homi laacute e eu de a peacute pra leva comida pro Zeacute Maria e aiacute ele falou que tinha dia que ele olhava ateacute na terra pra comer de tanta fome que natildeo comia nada de manhatilde que natildeo tinha nada pra comer Aiacute eu chegava correndo minha matildee pegava um pedacinho de carne eu pegava na matildeo e iacutea correndo leva a marmita comigo longe Ele falava que natildeo tava aguentando mais de fome Ixi minha filha noacutes cheguemo pra aqui ele amarrava roupa de cipoacute num tinha roupa menina () Aiacute a minha sogra ela falava assim quando ele corria da minha sogra ela falava ldquoparece que ocecirc taacute que nem o capeta correndo da cruzrdquo correndo que natildeo tinha roupa Era tudo amarrado de cipoacute
Uma vez quando Geralda estava esquentando fogo quando era moccedila
ocorreu um acidente
Geralda Ah a gente era pobre meu pai comprava aquele paninho bem fininho que a gente falava ldquocarne secardquo aiacute sobrou o resto que minha matildee fez o colchatildeo pegou e mandou meu irmatildeo fazer uma calccedila pra mim Eles ainda ficaram tirando sarro que a calccedila pantalona aiacute as minhas irmatildes tavam ralando uma mandioca pra fazer farinha pra passar Satildeo Joatildeo e eu fiquei esquentando fogo quando eu vi o fogo pegou na minha perna aiacute a minha irmatilde correu e pegou um balde drsquoaacutegua e jogou
Haacute tambeacutem uma outra histoacuteria a da fogueira do dia de Satildeo Joatildeo que me foi
contada por Adir logo que nos encontramos na minha primeira ida a campo ainda na
rodoviaacuteria em sua famiacutelia haacute pessoas como seu irmatildeo Zeacute Maria que jaacute eacute falecido e
tambeacutem tios e tias que eram capazes de andar descalccedilos em cima da brasa da
fogueira de Satildeo Joatildeo Para isso acrescentou Adir eacute preciso ter feacute Assim se a
fogueira aparece nas narrativas de uma situaccedilatildeo de extrema falta de recursos ela
tambeacutem retorna nas memoacuterias de uma famiacutelia que tem tanta feacute que permite que
ocorram milagres como caminhar na brasa ardente sem se queimar
Ao mesmo tempo em que destacam as agruras de um passado difiacutecil um
tempo em que o frio entrava pelas frestas das casas feitas de coqueiro tambeacutem
53
aparece em seus relatos no entanto o sentimento de que havia muito mais uniatildeo no
grupo de parentes A comemoraccedilatildeo do dia de Satildeo Joatildeo por exemplo envolvia o
preparo coletivo da farinha de mandioca e do beiju45 Tambeacutem do manuseio da
mandioca se retirava o polvilho que era utilizado para o preparo de biscoitos46 No
siacutetio em Guaiacutera ressaltam que se hoje moram apenas vinte e tantas pessoas
somavam na deacutecada de 1970 mais de 80 parentes
O iniacutecio da fixaccedilatildeo do grupo em Guaiacutera eacute ressaltado em todas as falas dos
adultos como um tempo de trabalho duro para homens e mulheres Infacircncia difiacutecil
onde produziam quase tudo que consumiam natildeo tinham nem um cobertor nem um
chinelo roupa era produto de luxo Viviam da agricultura de subsistecircncia produccedilatildeo e
criaccedilatildeo de animais para comercializaccedilatildeo arrendamento de terras para derrubada e
plantio atividades que ampliavam o espaccedilo de trabalho para aleacutem das aacutereas
adquiridas Por outro lado destacam a uniatildeo e a solidariedade entre parentes O lote
de Manoel Ciriaco era o ponto de referecircncia para os demais entre os quais havia uma
forte sociabilidade relaccedilotildees de ajuda muacutetua e momentos de diversatildeo do grupo ao
som de vaacuterios instrumentos produzidos por eles mesmos
FIGURA 8 Foto do acervo da famiacutelia tirada na cidade em um ldquoestuacutediordquo (da direita para a esquerda) Seu Davi (esposo de Jovelina) sanfoneiro da famiacutelia com um casal de vizinhos e a esposa de seu primo Maria Madalena com seu filho Antocircnio (marido de Geralda)
45 O beiju eacute ldquouma espeacutecie de patildeo de mandiocardquo Para descriccedilatildeo do modo de preparo tradicional ver a
dissertaccedilatildeo de Andreacuteia Cambuy (CAMBUY 2011 103-105) 46 Estes satildeo alimentos que remetem ao jeito de viver do passado e que satildeo feitos agraves vezes Eles me
foram apresentados pelo meu interesse nas preparaccedilotildees tradicionais mas atualmente envolvem a compra dos ingredientes jaacute prontos do mercado As peccedilas da antiga farinheira estatildeo ainda guardadas mas atualmente natildeo possuem um espaccedilo fiacutesico onde possam reativaacute-la como desejam
54
O grupo de parentes em Guaiacutera engajou-se tambeacutem no plantio e
beneficiamento de hortelatilde (oacuteleo) produccedilatildeo de milho mandioca algodatildeo arroz e o
trabalho como diaristas para os vizinhos-empregadores Tais leques de atividades
contribuiacuteram para um certo grau de autonomia para os membros da comunidade
Poreacutem contam como houve uma grande mudanccedila local com o processo de
mecanizaccedilatildeo da agricultura de modo que os proprietaacuterios vizinhos passaram a natildeo
se interessar pelo arrendamento jaacute que toda a aacuterea de suas propriedades poderia ser
explorada A reduccedilatildeo da aacuterea de trabalho disponiacutevel implicou em grande dificuldade
para a manutenccedilatildeo das famiacutelias que passaram a se deslocar novamente a partir da
deacutecada de 1990
FIGURA 9 Fluxo Migratoacuterio47 FONTE A autora (2015)
Em 1989 ocorre tambeacutem o falecimento de Manoel Ciriaco que era uma
lideranccedila na articulaccedilatildeo das famiacutelias provenientes de Minas Gerais na regiatildeo de
GuaiacuteraPR Ele desempenhava ainda a sua autoridade paterna na condiccedilatildeo de
proprietaacuterio legal da aacuterea de sua famiacutelia (SEYFERTH 1985) coordenando o trabalho
47 A representaccedilatildeo cartograacutefica atraveacutes de linhas de migraccedilatildeo tem um objetivo didaacutetico neste momento
do texto Como veremos no proacuteximo subitem as discussotildees do antropoacutelogo Tim Ingold (2007) problematizam este tipo de representaccedilatildeo do deslocamento atraveacutes da linha reta A representaccedilatildeo com base no autor estaria muito mais proacutexima de um emaranhado de linhas representando o processo do movimento por meio do qual se descobre o proacuteprio caminho
55
familiar e centralizando o contato com pessoas externas Com sua morte deixou
diacutevidas para os filhos que ficaram em uma situaccedilatildeo econocircmica difiacutecil aleacutem de terem
perdido este papel de referecircncia exercido pelo pai48
Este processo de saiacuteda dos parentes de Guaiacutera eacute lembrado como um
momento muito difiacutecil e marcante por aqueles que ficaram Segundo Joaquim noacutes
fiquemo aqui abandonado Atualmente soacute restou destes quatro lotes 85 alqueires do
lote de Manoel Ciriaco sendo que os demais foram vendidos Satildeo vaacuterios os destinos
apontados em relaccedilatildeo aos parentes que migraram na deacutecada de 1990 De Guaiacutera
parentes foram para Salto del Guayra (Paraguai) Satildeo Jorge do PatrociacutenioPR
AssisPR para a regiatildeo Presidente PrudenteSP e uma famiacutelia retornou para Santo
Antocircnio do ItambeacuteMG De volta para regiatildeo de Presidente PrudenteSP onde jaacute
haviam morado na deacutecada de 1960 foram os irmatildeos mais velhos filhos do primeiro
casamento de Manoel Ciriaco com Maria Olinda ndash Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano
ndash aleacutem de Eurides filha de Manoel com Ana Rodrigues
O siacutetio onde residem atualmente fica distante 20 km da sede do municiacutepio de
Guaiacutera e mais proacuteximo da divisa com o municiacutepio vizinho Terra Roxa Segundo me
contaram a permanecircncia ali soacute foi possiacutevel porque resistiram agraves pressotildees dos
proprietaacuterios vizinhos os quais satildeo na maioria gauacutechos descendentes de imigrantes
italianos e alematildees que queriam comprar suas terras e retiraacute-los do bairro rural O
nuacutemero de moradores variou no periacuteodo que estive em campo e a perspectiva do
grupo eacute que aumente com a possibilidade de retorno dos parentes em decorrecircncia da
possiacutevel ampliaccedilatildeo do territoacuterio prevista no processo de titulaccedilatildeo quilombola pelo
INCRA (Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria)49
Segundo Geralda haacute uma divisatildeo natildeo verbalizada entre um ldquoMaracaju dos
Pretosrdquo e um ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo nome pelo qual eacute conhecido o bairro rural onde
vivem A convivecircncia (ou a falta dela) com os gauacutechos eacute um elemento importante para
compreender a manutenccedilatildeo das fronteiras do grupo a partir de uma perspectiva
48 Desde sua morte e de sua esposa Ana Rodrigues em 1994 o inventaacuterio da propriedade ainda natildeo
foi realizado havendo a observaccedilatildeo por parte dos herdeiros inclusive dos que natildeo moram mais no siacutetio em GuaiacuteraPR de um acordo interno para a organizaccedilatildeo do uso da terra entre eles Importante ressaltar que a natildeo realizaccedilatildeo do inventaacuterio eacute uma estrateacutegia importante na organizaccedilatildeo camponesa para evitar a fragmentaccedilatildeo do lote original (SEYFERTH 1985) 49 A questatildeo de quem pode requerer o direito a morar no territoacuterio a partir de relaccedilotildees de pertencimento comeccedila a ser trabalhada pelas lideranccedilas do grupo jaacute que a fase de cadastramento das famiacutelias pelo INCRA eacute a proacutexima etapa do procedimento apoacutes a publicaccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) prevista para 2015
56
poliacutetica e relacional de grupos eacutetnicos50 As relaccedilotildees com seus vizinhos foram
estabelecidas majoritariamente pela mediaccedilatildeo de relaccedilotildees de trabalho informais
Antes do conflito desencadeado com o processo no INCRA mantinham relaccedilotildees
proacuteximas apesar de os quilombolas sempre terem percebido as manifestaccedilotildees de
preconceito racial
Geralda Eu natildeo gosto do Maracaju natildeo gosto daquelas turma Menina porque o que noacutes viveu ali Vocecirc chega na igreja noacutes natildeo vai na Igreja que eacute pra rezar Natildeo eacute pra pessoa pensar olhar laacute no padre Eles ficava olhando se vocecirc tava bem vestido se vocecirc tava limpo Hum negro Negro pra eles natildeo presta Eles fazia amizade com noacutes assim de frente mas eles nenhum gostava de noacutes a gente via na cara a gente natildeo eacute besta Noacutes convivia desde pequeno junto com eles ali Eu natildeo tenho saudade natildeo () Porque eu gosto de morar no lugar que eacute humilde neacute que a gente sente bem Vocecirc mora no lugar pro resto da vida se vocecirc morrer ali vocecirc se sente bem Aqui eacute assim (Vila Eletrosul) tem gente metido mas aqui tem gente legal E a amizade que eu tenho aqui dentro dessa Eletrosul Aqui tem muita coisa mas tanta amizade que eu tenho aqui com crianccedila com gente velho com gente novo eacute rapaz eacute moccedila eacute tudo Laacute no Maracaju natildeo eu natildeo tinha amizade Noacutes ia no baile vocecirc taacute pensando que os rapaz de laacute danccedilava com noacutes Eu posso conta procecirc que eu natildeo dancei com um rapaz laacute dentro do Maracaju Nenhum Eles natildeo danccedilava com noacutes que era preto Aiacute vocecirc vai viver num lugar desse e vocecirc vai ficar feliz
O mapa abaixo mostra a porccedilatildeo de terra da comunidade cercada pelas
propriedades vizinhas De acordo com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico produzido na
comunidade (TERRA AMBIENTAL 2013) pode-se dividir a aacuterea atual em quatro
setores O setor 1 e o setor 2 na parte superior do mapa em verde claro
correspondem agrave aacuterea onde se concentram as casas dos moradores o accedilude a
criaccedilatildeo de pequenos animais e a plantaccedilatildeo de verduras para consumo e comeacutercio
Os setores 3 e 4 satildeo de plantaccedilotildees dos proacuteprios quilombolas de mandioca milho
aveia soja entre outros Depois do setor 4 haacute um pequeno pedaccedilo de 15 alqueires
que foi vendido para o vizinho Jacomine em 1992 (quando da saiacuteda dos trecircs irmatildeos
mais velhos que foram para Presidente PrudenteSP) e por fim a aacuterea de reserva
legal da propriedade
50 O enfoque nas fronteiras nos mecanismos necessaacuterios para criaacute-las e mantecirc-las e na diferenciaccedilatildeo estrutural dos grupos em interaccedilatildeo tornam-se elementos centrais para as anaacutelises que tomam a autoatribuiccedilatildeo como traccedilo fundamental da etnicidade conforme reflexatildeo proposta por Barth acerca do modo de constituiccedilatildeo dos limites sociais dos grupos eacutetnicos (BARTH 2011)
57
FIGURA 10 ldquoDivisatildeo setorial da Comunidade Quilombola Manoel Ciriacordquo FONTE Terra Ambiental Relatoacuterio Antropoloacutegico Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos Guaiacutera ndash PR (p88)
58
Se o grupo familiar saiu de Minas Gerais ateacute o Paranaacute visando a reinserccedilatildeo
social em melhores condiccedilotildees de vida e fugindo do racismo e da marginalizaccedilatildeo
percebe-se que as estruturas de opressatildeo se reproduziram novamente Nestas cinco
deacutecadas em que estatildeo vivendo no Paranaacute natildeo houve a criaccedilatildeo de laccedilos de
parentesco com os vizinhos e a tendecircncia endogacircmica deste grupo familiar que jaacute
ocorria em Minas Gerais acentuou-se Geralda por exemplo eacute casada com Antocircnio
cujo pai Joseacute dos Santos eacute seu primo de 2ordm grau O casamento entre parentes
aparece entatildeo como fator constitutivo da manutenccedilatildeo da coesatildeo do grupo e do
territoacuterio tendo em vista o histoacuterico de deslocamentos (MELLO 2012 p 24) No
entanto para aleacutem de caracteriacutestica proacutepria da organizaccedilatildeo social o racismo e a
discriminaccedilatildeo do entorno reforccedilaram a fronteira do casamento entre brancos e negros
A partir de 2005 com a possibilidade de reivindicarem a identidade
quilombola o estigma do racismo que enfrentaram e ainda enfrentam pocircde ser
recolocado como uma afirmaccedilatildeo positiva de ser negro e uma releitura da proacutepria
trajetoacuteria do grupo Neste sentido
O ato de aquilombar-se ou seja de organizar-se contra qualquer atitude ou sistema opressivo passa a ser portanto nos dias atuais a chama reacesa para na condiccedilatildeo contemporacircnea dar sentido estimular fortalecer a luta contra a discriminaccedilatildeo e seus efeitos Vem agora iluminar parte do passado aquele que salta aos olhos pela enfaacutetica referecircncia contida nas estatiacutesticas onde os negros satildeo maioria dos socialmente excluiacutedos Quilombo vem a ser portanto o mote principal para se discutir parte da cidadania negada (LEITE 2000 p 349)
Tal categoria natildeo correspondia a como os proacuteprios grupos se
autodenominavam de modo que essa identidade quilombola passa a ser politicamente
construiacuteda com base na mobilizaccedilatildeo de elementos histoacutericos e culturais preacute-
existentes em cada caso especiacutefico Ao inveacutes de querer estabelecer portanto uma
ldquouma lista de traccedilos de natureza racial ou cultural originada da interpretaccedilatildeo
historiograacutefica sobre os quilombos da colocircnia ou do Impeacuteriordquo (ARRUTI 2006 p 39-
40)51 deve-se buscar perceber quem satildeo os grupos que se mobilizam a partir desta
51 Tais criteacuterios riacutegidos baseados em estereoacutetipos satildeo defendidos pelos que se opotildeem aos direitos destes grupos sociais e tecircm a despeito do reconhecimento legal do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo uma repercussatildeo significativa no imaginaacuterio geral impactando nas expectativas colocadas em relaccedilatildeo por exemplo ao teor dos relatoacuterios antropoloacutegicos
59
identidade tomando como base o criteacuterio de autoidentificaccedilatildeo como reconhecido pelo
ordenamento juriacutedico brasileiro52
Com a inserccedilatildeo do artigo 68 no Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais
Transitoacuterias no acircmbito da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 a literatura antropoloacutegica
sobre quilombos vem destacando a diversidade de estrateacutegias e saiacutedas produzidas
pelos grupos sociais que passaram a se mobilizar politicamente e a se reconhecerem
a partir da ldquometaacutefora do quilombordquo (OrsquoDWYER 2011 p 120) Esta diversidade de
experiecircncias sociais dos quilombos implica na necessidade de ressemantizar o
conceito histoacuterico e compreender processos especiacuteficos como o caso da Comunidade
Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos
Nesta experiecircncia social a identidade quilombola eacute pensada a partir de uma
origem comum que se desdobra por meio do movimento de deslocamento do grupo
em uma trajetoacuteria de resistecircncia Para o reconhecimento de trajetoacuterias histoacutericas
coletivas como esta como aponta o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho eacute
muito importante o processo de amadurecimento teoacuterico que sai da abordagem da
ldquoantropologia das perdasrdquo para anaacutelises dos processos de emergecircncia eacutetnica jaacute que
ldquoo que seria proacuteprio das identidades eacutetnicas eacute que nelas a atualizaccedilatildeo histoacuterica natildeo
anula o sentimento de referecircncia agrave origem mas ateacute mesmo o reforccedilardquo (OLIVEIRA
FILHO 1998 p 64) Assim eacute necessaacuterio olhar para o processo que gerou a
territorialidade reconhecendo a historicidade a dinamicidade bem como a variedade
de estrateacutegias dos grupos quilombolas
12 A MEMOacuteRIA DOS CAMINHOS E OS CAMINHOS DA MEMOacuteRIA
ldquoA histoacuteria de nosso bisavocirc escravo chamado negro Joseacute Joatildeo Paulo
casado com a negra Maria Joana O lugar que eles moravam no
Estado de Minas Gerais era a cidade de Santo Antocircnio Itambeacute do
Serro aonde eles eram escravizados pelo sinhocirc na eacutepoca da
escravidatildeo Eles eram escravizados no garimpo tirano ouro e pedras
preciosas Ele e sua esposa naquela eacutepoca trabalhavam junto no
52 O criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo atualmente estaacute consagrado em acircmbito internacional e nacional por uma seacuterie de dispositivos normativos Neste sentido destaca-se a convenccedilatildeo 169 da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho sobre Povos Indiacutegenas e Tribais que estabelece em seu artigo 1ordm ldquoA consciecircncia de sua identidade indiacutegena ou tribal deveraacute ser considerada como criteacuterio fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposiccedilotildees da presente Convenccedilatildeordquo Esta convenccedilatildeo foi ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo nordm 143 de 2062002 e entrou em vigor em 2003 No que tange agrave questatildeo especificamente quilombola o Decreto Federal 4887 de 2003 em seu artigo 2ordm sect 1ordm estabelece que ldquoPara os fins deste Decreto a caracterizaccedilatildeo dos remanescentes das comunidades dos quilombos seraacute atestada mediante autodefiniccedilatildeo da proacutepria comunidaderdquo
60
garimpo e tiveram filhos e filhas Seus filhos eram negra Maria
Eduarda negra Dolarina Domingos dos Santos negra Jorgina
Domingos dos Santos negro Joaquim Domingos dos Santos negro
Sebastiatildeo Dama Domingos dos Santos e negro Raimundo Domingos
dos Santos Eles criavam seus filhos com restos que seu sinhocirc dava e
agraves vezes ficavam ateacute sem comer para render mais porque a comida
era pouca ateacute aacutegua era retirada da mina eles tinham que beber aacutegua
suja para poder ateacute cozinhar Aiacute se um negro chegasse perto dessa
mina eles era amarrado e chicotiado e ficavam preso numa das parte
da senzala e ficavam muitos dias ateacute sem comer e doentes por causa
das chicotiadas Seu lugar de descanso eram chamados de lapa
chamado de caverna ou casa de pedra Ali se abrigavam em muitos
para poder aquecer do frio porque natildeo tinham roupa nem sapatos
andavam descalccedilos e assim criavam os seus filhos como meu avocirc
Joaquim Paulo dos Santos que se casou com Maria Zidora dos
Santos que tiveram seus filhos chamados Manoel Ciriaco dos Santos
Sebastiatildeo Vicente dos Santos Ana Raimunda dos Santos Na eacutepoca
que eles se casaram eles natildeo eram mais escravos jaacute eram alforriados
e trabalhavam para os senhores do retiro nos garimpo e na lavoura de
cana e cafeacute A cana para poder fazer a cachaccedila a rapadura e o
melado Eles vivia disso mais trabalhava mais natildeo tinha valor o seu
serviccedilo e moravam tambeacutem na lapa (casa de pedra) que nem foram
criados nos seus costumes porque natildeo era valorizado e ali criavam
seus trecircs filhos junto no trabalho da lavoura e alimentavam Aiacute casou
um dos seus filhos o que era meu pai Manoel Ciriaco dos Santos que
casou com Maria Olina do primeiro casamento que teve quatro filhos
com sua primeira esposa Os filhos Jovelina Ciriaco dos Santos Luiza
Ciriaco dos Santos Olegario da Silva e Joatildeo Loriano dos Santos E aiacute
foi trabalhar para poder criar seus quatro filhos no Estado de Minas
Gerais em Santo Antonio do Itambeacute do Serro O meu pai trabalhava
no retiro dos fazendeiros com carpi lavoura de mandioca retirando
carvatildeo no garimpo do ouro Transportava cachaccedila o queijo rapadura
carne secada no sol farinha de mandioca milho O transporte era feito
na cangaia no lombo de burro que era o trabalho que meu pai fazia
Era pra quem trabalhava que ele chamava de seus fulanos que eram
os fazendeiros para sustentar a sua primeira famiacutelia Com o passar do
tempo o meu pai perdeu a minha irmatilde que faleceu com 8 anos laacute em
Minas Gerais Ela se chamava Luiza Ciriaco dos Santos Meu pai ficou
viuacutevo ai ele ficou sozinho para poder cuidar dos filhos aiacute resolveu
casar de novo com a minha matildee Ana Rodrigues dos Santos aiacute tiveram
quatro filhos laacute no Estado de Minas Gerais Eurides dos Santos
Sebastiana Feliciana dos Santos Antocircnio Gregoacuterio dos Santos e Joseacute
Maria Gonccedilalves Aiacute eu sai dali com minha matildee e meu pai e meus
irmatildeos eu tinha seis meses de vida Aiacute naquela eacutepoca meu pai deixou
o meu irmatildeo com sete anos o Joatildeo Loriano dos Santos Aiacute nos fomos
para o Estado de Satildeo Paulo na cidade de Caiabuacute perto de Presidente
Prudente no ano de 1956 municiacutepio de Martinoacutepolis Meus pais
tiveram mais dois filhos Joaquim dos Santos e Geralda dos Santos Laacute
meu pai trabalhava torrando farinha para meu tio aiacute ele foi pra uma
fazenda arrendocirc uma terra de fazendeiro aiacute prantocirc amendoim
algodatildeo feijatildeo aiacute depois de oito anos noacutes saiacutemos de laacute e vinhemos
para o Paranaacute em 1964 na cidade de Guairaacute no Patrimocircnio do
Maracaju dos Gauacutechos aonde noacuteis residimos ateacute hoje Mais na
chegada aqui era tudo mato aiacute eu meu pai e meus irmatildeos mais velhos
ajudamos meu pai a caccedilar e derrubar a mata Fizemos uma barraca de
lona e acampamos no meio do mato Aiacute com o tempo fizemos um
rancho com taubinha de cedro e cercado de coqueiro e no chatildeo
61
passava argila misturada com esterco de vaca Noacuteis dormia no chatildeo e
minha matildee cozinhava no fogatildeo de barro mais mesmo assim noacutes
passava necessidade tinha dia que noacutes natildeo tinha nem o angu para
comer nem feijatildeo Caccedilava caccedila do mato pescava assava e comia
porque a gordura noacuteis natildeo tinha Minha matildee lavava nossa roupa No
lugar do sabatildeo porque natildeo tinha usava cinza de madeira e lavava na
mina Aiacute com o tempo noacuteis fomo roccedilando fomo preparando a terra e
aiacute saiu a lavoura que noacuteis comecemos a plantar Com o tempo tivemos
mais trecircs irmatildeos Paulo dos Santos Adir Rodrigo dos Santos e Joatildeo
Aparecido dos Santos Com o tempo o meu irmatildeo Paulo ele era
deficiente mental aiacute veio a falecer com 15 anos Aiacute depois faleceu
Manoel Ciriaco dos Santos com 69 anos Aiacute depois faleceu Antocircnio
Gregoacuterio dos Santos faleceu com 35 anos depois faleceu Sebastiana
Feliciana dos Santos depois faleceu Ana Rodrigues dos Santos aiacute
depois que meus pais e meus irmatildeos faleceram ficamos soacute nois os
filhos Continuamos lidando com a terra mais com muita dificuldade
Passamos fome e humilhaccedilatildeo pelos grande fazendeiro porque na
eacutepoca que meu pai faleceu deixou muita diacutevida por causa da lavoura
aiacute comeccedilamos a trabaiaacute por dia para poder sustentar nossas famiacutelia e
assim mesmo tinha muita dificuldade para pode pagar as contas Por
causa disso noacutes nunca pudemos ir pra frente soacute ficamos pra trais aqui
nesse lugar passamos a trabaiaacute mais por dia pros outros nas lavoura
de mandioca para pequeno e grande agricultor para podecirc pagar as
nossas contas e mesmo assim natildeo conseguimos porque se pagasse
as contas ficava sem comer Trabalhamos no rancadatildeo de mandioca
para poder se alimentar Com muita dificuldade trabalhamos dias
mecircs anos e ateacute hoje continuamos no mesmo serviccedilo sem futuro pra
noacutes e nossos filhos Isto eacute um pouco da nossa histoacuteria da nossa
comunidade e o contador da histoacuteria eacute o negro Joseacute Maria Gonccedilalves
filho do Manoel Ciriaco dos Santosrdquo (Joeacute Maria Gonccedilalves) (GRUPO
DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA 2010 p 149-151)
A fala apresentada acima eacute central para este trabalho por ser a primeira
narrativa do grupo para agentes do Estado que foi registrada53 O finado Zeacute Maria eacute o
narrador perante os membros do Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM)54 e resume
a trajetoacuteria histoacuterica da comunidade Ele era na eacutepoca o mais velho dentre os irmatildeos
que permaneceram no siacutetio em GuaiacuteraPR depois da saiacuteda da maior parte das
famiacutelias a partir da deacutecada de 1990 Com este decreacutescimo de famiacutelias e com a morte
dos mais velhos que vieram de Minas (tendo como referecircncia principal os pais Manoel
Ciriaco falecido em 1989 e Ana Rodrigues em 1994) os adultos que ficaram na
comunidade se tornaram os portadores das lembranccedilas daqueles que vivenciaram
esta histoacuteria familiar de movimento Zeacute Maria por exemplo saiu de Minas Gerais com
53 Este relato foi gravado em 15 de janeiro de 2007 Disponiacutevel em httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=69 Acesso em 30042014 54 Grupo Intersecretarial criado pelo governo do estado do Paranaacute em 2005 para realizar levantamento de comunidades quilombolas no estado Foi extinto em 2010
62
apenas seis meses de vida Dentre os irmatildeos mais novos que satildeo os que
permanecem em Guaiacutera atualmente Joaquim (55) e Geralda (53) nasceram no estado
de Satildeo Paulo proacuteximo a Presidente Prudente ndash no municiacutepio de CaiabuSP ndash
enquanto Adir (46) e Joatildeo Aparecido (43) nasceram no Pararaacute em Guaiacutera55
Na narrativa acima observa-se que a organizaccedilatildeo dos fatos se daacute de modo
cronoloacutegico e tem iniacutecio com o marco fundamental dos seus bisavocircs casal ancestral
que foi escravizado em Santo Antocircnio Itambeacute do SerroMG Suas lembranccedilas falam
da situaccedilatildeo de pobreza e sofrimento dos antepassados associada a elementos como
o trabalho escravo no garimpo a moradia na senzala a submissatildeo agrave violecircncia fiacutesica
a fome a falta de acesso a roupa e recursos baacutesicos O nascimento de seu pai
Manoel Ciriaco dos Santos em 1920 eacute um acontecimento destacado eacute ele o
personagem central do processo de deslocamento do grupo para o Paranaacute Durante
toda a narrativa destaca os viacutenculos de parentesco nascimentos casamentos e
mortes em uma percepccedilatildeo do tempo baseada na sequecircncia de geraccedilotildees Zeacute Maria
reforccedila que mesmo com o fim da escravidatildeo seus avoacutes continuaram a trabalhar para
os senhores no garimpo e na lavoura de cana e cafeacute tendo se mantido a
desvalorizaccedilatildeo de seu trabalho e a dificuldade de sobrevivecircncia da famiacutelia Indica que
a alforria natildeo trouxe portanto uma mudanccedila significativa para as suas condiccedilotildees de
vida e as relaccedilotildees de trabalho O movimento em etapas eacute iniciado pelas famiacutelias ateacute
chegarem em Guaiacutera onde conquistam novas aacutereas de terra atraveacutes do trabalho duro
em uma histoacuteria de ldquoluta e humilhaccedilatildeordquo O narrador finaliza sua histoacuteria demonstrando
os motivos pelos quais os membros da comunidade natildeo tecircm perspectivas de futuro
pois tal reconfiguraccedilatildeo acaba novamente reproduzindo a opressatildeo
Esta narrativa como todo ato de recordaccedilatildeo deve ser entendida como uma
interpretaccedilatildeo e natildeo como recordaccedilatildeo literal Trata-se da ldquoconstruccedilatildeo de um
lsquoesquemarsquo de uma codificaccedilatildeo que nos permite discernir e por isso recordarrdquo
(CONNERTON 1999 p 30) A autoidentificaccedilatildeo final do narrador como negro bem
como sua insistecircncia em destacar tal caracteriacutestica em relaccedilatildeo aos parentes parece
55 No plano narrativo uma situaccedilatildeo rememorada natildeo seraacute contada a partir de um narrador onisciente
que daacute um testemunho autecircntico e estaacute ldquoacima do desenvolvimento dos fatos mas a partir de um narrador parcial e imerso em seu interiorrdquo permeado portanto pela rede de relaccedilotildees em que se insere o narrador Eacute o processo de visatildeo decorrente do caraacuteter parcial do ponto de vista em sua subjetividade e natildeo os fatos que satildeo vistos o que eacute mais relevante na anaacutelise das narrativas de memoacuterias o que aponta para as condiccedilotildees sociais de sua produccedilatildeo bem como suas articulaccedilotildees com o momento presente (PORTELLI 1996 p 64)
63
apontar a percepccedilatildeo do lugar que cabe ao negro nos contextos descritos O aspecto
da resistecircncia do grupo natildeo eacute lido pelo narrador como confronto aberto em relaccedilatildeo agrave
ordem instituiacuteda Resistir eacute de certa forma persistir na reproduccedilatildeo da ldquocampesinidade
como ordem moralrdquo (WOORTMANN 1990) na luta contiacutenua por estar na terra
condiccedilatildeo de sua existecircncia material afetiva e simboacutelica o que aponta para uma
amaacutelgama entre resistecircncia racial e resistecircncia camponesa (RUBERT SILVA 2009)
Na histoacuteria desta famiacutelia portanto o foco do deslocamento natildeo era o urbano
como comum na deacutecada de 1960 mas a possibilidade de reinserccedilatildeo do grupo por
meio da reproduccedilatildeo do trabalho rural Este anseio do grupo pode ser inserido como
desdobramentos de um panorama histoacuterico mais amplo no qual a resistecircncia dos ex-
escravos passou pela consolidaccedilatildeo de uma alternativa camponesa que
() possibilite a autonomia produtiva direcionada tanto para o autoconsumo quanto para diversos circuitos do mercado Essa autonomia produtiva soacute eacute possiacutevel por sua vez mediante a consolidaccedilatildeo de um espaccedilo em que instacircncias de socializaccedilatildeo que no caso satildeo fundamentadas em uma gramaacutetica do parentesco operam a passagem por parte de escravos e ex-escravos da condiccedilatildeo de coisa agrave condiccedilatildeo de pessoa (RUBERT SILVA 2009 p 267)
A busca pela reproduccedilatildeo camponesa destas famiacutelias negras implicou entatildeo
na decisatildeo de saiacuterem de sua regiatildeo origem com o alto custo emocional e econocircmico
que tal escolha gera O antropoacutelogo Klaas Woortmann com importante contribuiccedilatildeo
para os estudos do campesinato demonstrou como a migraccedilatildeo eacute uma praacutetica de
reproduccedilatildeo dos camponeses enquanto condiccedilatildeo para a permanecircncia de parte da
famiacutelia na aacuterea rural Isso porque a migraccedilatildeo definitiva tem como um dos principais
motivos minimizar ou impedir o fracionamento da terra pela heranccedila56 tendo em vista
o processo histoacuterico de reduccedilatildeo da aacuterea do campesinato pelo avanccedilo capitalista
Outro mecanismo para preservar o patrimocircnio familiar eacute o ldquopadratildeo de preferecircncias
matrimoniaisrdquo pelo casamento endogacircmico (WOORTMANN 2009 p 229-230)
praacutetica que era comum nestas famiacutelias negras desde Minas e que se mantiveram no
processo de migraccedilatildeo A definiccedilatildeo de quem dentro da famiacutelia se tornaraacute migrante
passa por praacuteticas como a valorizaccedilatildeo da primogenitura que define a condiccedilatildeo de
ldquoherdeiro preferencialrdquo No caso de Manoel Ciriaco ao passo que Manoel migrou o
irmatildeo mais velho Sebastiatildeo Vicente tornou-se herdeiro da terra da famiacutelia
56 Assim tambeacutem demonstrou o estudo de Galizoni sobre a regiatildeo especiacutefica do Alto Jequitinhonha (MG) como citado na Introduccedilatildeo (GALIZONI 2002)
64
Devem migrar todos os filhos de determinada famiacutelia menos o herdeiro Para
os membros de um conjunto de irmatildeos haacute portanto como que duas temporalidades
a continuidade para uns e a descontinuidade para outros Para que uns continuem
sitiantes outros devem deixar de secirc-lo (WOORTMANN 2009 p 233) A migraccedilatildeo
ocorre por meio da rede de parentesco os que migram de uma mesma localidade
tendem a buscar um destino comum Laacute iratildeo constituir redes onde se replica o
casamento entre primos e forma-se um sistema de apoio para novos migrantes
(WOORTMANN 2009 p 234) Conforme expliacutecito no cartaz que seraacute apresentado
abaixo exposto no barracatildeo da comunidade o movimento destas famiacutelias negras eacute
compreendido na memoacuteria do grupo como parte fundamental do processo de
emergecircncia eacutetnica
O iniacutecio da trajetoacuteria de deslocamento da comunidade eacute identificado no
cartaz57 abaixo em referecircncia ao traacutefico de africanos para serem comercializados
como escravos no Brasil mais especificamente no estado de Minas Gerais O paiacutes de
origem na Aacutefrica de onde imaginam serem provavelmente descendentes eacute Angola
mas natildeo haacute informaccedilotildees sobre este passado mais remoto A relaccedilatildeo com a regiatildeo de
origem africana surgiu a partir da identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas fiacutesicas comuns a
alguns membros da comunidade Segundo Adir lideranccedila quilombola em Guaiacutera
Nosso pessoal natildeo veio de um lugar soacute da Aacutefrica porque tem uns que satildeo alto e magro canela fina que o senhor do engenho usava mais no serviccedilo da roccedila Outros que satildeo mais baixo e forte satildeo mais lento usava mais no trabalho em casa As mulheres mais fortes mais baixa mais troncuda eacute que serviria para dar de mamar para as crianccedilas do senhor de engenho
57 O cartaz foi elaborado pelos membros da comunidade junto com uma teacutecnica da EMATER com quem tecircm forte proximidade quando da inauguraccedilatildeo em 2008 do Telecentro (sala com computadores com acesso a internet) instalado na comunidade pela empresa ELETROSUL Nesta oportunidade foi feita uma festa no barracatildeo da comunidade para receber as pessoas da regiatildeo (inclusive Adir destacou que os vizinhos do Maracaju estiveram presentes pois ainda natildeo havia ocorrido o conflito desencadeado pela elaboraccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico no acircmbito do procedimento do INCRA) Para divulgar a histoacuteria da comunidade nesta oportunidade resolveram entatildeo fazer um cartaz em que contassem os momentos principais da sua trajetoacuteria marcada pelo deslocamento Atualmente o cartaz fica exposto no barracatildeo da comunidade ndash espaccedilo onde fazem reuniotildees ocorrem as aulas de educaccedilatildeo de jovens e adultos jogam capoeira recebem visitas de escolas e agentes diversos
65
FIGURA 11 Cartaz sobre a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia
66
Em Minas Gerais onde os antepassados dessas famiacutelias criaram raiacutezes
ldquocomeccedila a saga da famiacutelia dos Remanescentes dos Quilombos com a histoacuteria do
patriarca Manoel Ciriaco dos Santos A famiacutelia morava em uma lsquolaparsquo de pedra A vida
era feita de fome e muito trabalhordquo como legendado no cartaz A palavra saga aponta
para o caraacuteter heroico que eacute atribuiacutedo a esta histoacuteria dos antepassados pois de Minas
Gerais tiveram que sair rumo ao desconhecido com bebecircs crianccedilas idosos com
poucos recursos para a viagem enfrentando inuacutemeras dificuldades e desafios para
buscarem oportunidades no estado de Satildeo Paulo Foi a ldquomudanccedila de vida rumo a Satildeo
Paulo com destino a Caiabu O trabalho colheita de algodatildeo e amendoimrdquo Por fim
o terceiro momento descrito no cartaz eacute marcado pelo deslocamento em direccedilatildeo ao
Paranaacute e eacute identificado como sendo a ldquoconquista da liberdade Manoel Ciriaco compra
terras em Guaiacutera no Estado do Paranaacute em 1962 A famiacutelia do patriarca chega ao
patrimocircnio do Maracaju dos Gauacutechos em suas terras no ano de 1964rdquo A liberdade
real significa entatildeo a autonomia e a possibilidade de reproduccedilatildeo do grupo viabilizada
pela conquista de um pedaccedilo de terra em Guaiacutera um ldquoterritoacuterio quilombolardquo a partir
do qual novas conquistas seratildeo alcanccediladas pela comunidade
Ao comparar a fala de Zeacute Maria com a trajetoacuteria descrita no cartaz eacute possiacutevel
perceber que ele na articulaccedilatildeo de suas memoacuterias ainda natildeo apontava o caminho
do reconhecimento como quilombolas enquanto uma possibilidade de alteraccedilatildeo do
percurso histoacuterico de exclusatildeo que narra jaacute que conclui sua fala apontando para a
falta de perspectiva de futuro para ele e seus parentes No caso do cartaz ao
contraacuterio a perspectiva de futuro aparece com a conquista do territoacuterio e
posteriormente com o conhecimento de uma seacuterie de direitos dos quais se
consideram detentores e em busca dos quais passam a se organizar em torno da
identidade quilombola Isto mostra como a memoacuteria eacute dinacircmica enquanto fruto do
trabalho coletivo realizado com base no ldquorepertoacuterio de narrativas de uma comunidade
afetivardquo Tal repertoacuterio estaacute ldquoem permanente relaccedilatildeo com o oral apresentando-se
sempre como versatildeo aberta permanentemente reconstruiacuteda pelas trocas sociais e
constantemente reestabelecida pela repeticcedilatildeo e pela negociaccedilatildeo de versotildeesrdquo
(ARRUTI1996 p 32-33)
Considerando que a fala de Zeacute Maria foi registrada nos primeiros contatos dos
representantes do grupo com agentes externos em janeiro de 2007 eacute interessante
observar que o eixo narrativo do deslocamento do sofrimento e da discriminaccedilatildeo
67
provavelmente natildeo foi elaborado com a intenccedilatildeo de adequar a histoacuteria do grupo como
uma resposta agrave demanda pela construccedilatildeo identitaacuteria enquanto quilombolas pois esta
questatildeo natildeo aparece em sua reflexatildeo Por outro lado em termos de sistematizaccedilatildeo
histoacuterica da trajetoacuteria do grupo que lhe foi demandada naquele momento os
elementos que estruturaram o seu relato continuaratildeo a subsidiar este processo de
construccedilatildeo identitaacuteria quilombola da comunidade em GuaiacuteraPR
O cartaz por sua vez elaborado pelos membros da comunidade junto com
uma teacutecnica da EMATER com quem consideram ter uma relaccedilatildeo de bastante
confianccedila e proximidade tambeacutem tinha o intuito de contar visualmente a histoacuteria da
comunidade Isto ocorreu em 2008 apoacutes a autoidentificaccedilatildeo do grupo como
quilombolas de modo que eacute possiacutevel observar como o cartaz aponta para a afirmaccedilatildeo
desta identidade como o comeccedilo de um novo ciclo na histoacuteria dessas famiacutelias desde
seus antepassados Se no seacuteculo XIX foram escravizados em Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG e laacute resistiram ateacute a deacutecada de 50 do seacuteculo XX com os deslocamentos e
a reorganizaccedilatildeo do grupo em Guaiacutera novas perspectivas de futuro se apresentam
pelo caminho da identidade quilombola no iniacutecio do seacuteculo XXI Deste modo ldquoa
identidade contrastiva constituiacuteda sob a eacutegide do estigmardquo seraacute invertida como uma
afirmaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a si mesmos (RUBERT SILVA 2009 p 252-258)
A elaboraccedilatildeo da identidade quilombola conforme eacute possiacutevel perceber na fala
de Adir passa a ser construiacuteda a partir da temaacutetica da resistecircncia frente a contextos
contiacutenuos de adversidade desde nossos antepassados da luta e da busca pela
efetivaccedilatildeo dos nossos direitos A categoria de autoidentificaccedilatildeo como ldquoquilombolasrdquo
seraacute mobilizada portanto a partir de elementos preacute-existentes da histoacuteria e da
memoacuteria do grupo Esta fala foi realizada para um puacuteblico de alunos de uma escola
da regiatildeo que visitaram a comunidade na semana da comemoraccedilatildeo da aboliccedilatildeo da
escravatura (13 de maio) em 20 de maio de 201458
Adir () Vou contar pra vocecircs as nossas dificuldades a nossa luta no dia a dia a nossa trajetoacuteria desde os nossos antepassados na Aacutefrica trajetoacuteria da Aacutefrica em navio negreiro de laacute pra caacute e tambeacutem da onde o nosso pessoal foi
58 Esta foi uma de muitas visitas que recebem (segundo Adir recebem mais de mil pessoas durante o
ano todo enfatizando a intensidade dos agendamentos) quando satildeo procurados principalmente por professores da regiatildeo que querem levar os alunos para conhecer a histoacuteria dos quilombolas Aleacutem do 13 de maio as visitas ocorrem com maior frequecircncia proacuteximo ao dia 20 de novembro dia da consciecircncia negra A professora que acompanhou este grupo especiacutefico em 20 de maio de 2014 contou ao final da apresentaccedilatildeo de Adir como jaacute incorporou a visita agrave comunidade como uma proposta de levar todo ano seus alunos para conhecer o ldquoquilombo de Guaiacuterardquo
68
centralizado no estado em Minas Gerais onde o trabalho desde o trabalho escravo e depois o trabalho nas mesmas fazendas garimpo de ouro cana-de-accediluacutecar cafeacute Entatildeo todo aquele trabalho que eles faziam em Minas Gerais desde os mais velhos que sofreram na eacutepoca da escravidatildeo Eu sei que o local onde eles morava laacute era um local de difiacutecil acesso em loca de pedra muito difiacutecil o trabalho deles o sofrimento fome sem identidade sem nenhum tipo de direito e isso fez com que eles saiacutessem de laacute e procuramos um local melhor procurando sobreviver melhor e aconteceu que hoje noacutes estamos aqui Eles fizeram a trajetoacuteria de Minas ateacute o Estado de Satildeo Paulo e do estado de Satildeo Paulo nessa regiatildeo aqui em Guaiacutera Eacute uma regiatildeo de muito preconceito o local onde a gente taacute centralizado aqui Me lembro que na idade de vocecircs que a gente estudava no coleacutegio a gente era chamado de macaco de filho do capeta natildeo tinham respeito com a gente jaacute dizia que por causa da cor da pele jaacute significava tudo pra eles a separaccedilatildeo de negro e de branco Entatildeo noacutes sobrevivemos a tudo isso o maior preconceito e mesmo assim noacutes trabalhamos pra eles Depois que a gente cresceu os nossos mais velhos dependiam do trabalho porque quando nosso pai chegou era tudo o mato natildeo tinha nada a sobrevivecircncia era tirar o sustento tambeacutem da mata aproveitar ao maacuteximo possiacutevel pra sobrevivecircncia e poder criar a famiacutelia Aqui noacutes aprendemos a nossa religiatildeo aqui noacutes aprendemos a trabalhar e respeitar as pessoas aqui noacutes aprendemos a sobreviver de forma difiacutecil de forma sofrida E por isso a gente taacute aqui hoje mesmo com esse sofrimento todo toda a pressatildeo opressatildeo de latifundiaacuterio opressatildeo que queria tomar as nossas terras opressatildeo de toda forma E noacutes a nossa resistecircncia pra noacutes taacute aqui ateacute hoje aqui nessa luta sem sonho sem poder sem direito E noacutes a partir de 2005 e 2006 foi aonde que a gente criou essa esperanccedila de que a gente podia conhecer os nossos direitos lutar se organizar construir uma associaccedilatildeo e aonde a gente aprendeu e ainda estamos aprendendo muitas coisas para noacutes requerer nossos direitos Natildeo digo soacute direito da terra mas direito tambeacutem das poliacuteticas puacuteblicas direito de conviver com a naccedilatildeo direito de sobreviver com dignidade e que as pessoas possam nos respeitar E de vocecirc olhar pra um negro e dizer que esse negro natildeo deve andar no meio da sociedade natildeo possa ter as suas poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode ter nada de garantia nem sobrevivecircncia Mas a nossa mentalidade hoje a gente pensa diferente de antes Antes a gente ficava calado a gente natildeo falava numa religiatildeo a gente natildeo falava na nossa culinaacuteria e a gente natildeo podia falar em nada tudo que a gente aprendeu e aprendia isso era guardado soacute na mente E hoje natildeo hoje a gente possa pronunciar que a gente vecirc o direito que tecircm E natildeo soacute por causa do direito porque eu acho que nem precisaria a gente ficar correndo atraacutes de algum direito Se eacute que o negro trabalhou nesse paiacutes de forma injusta e quantos derramaram o seu sangue nesse solo brasileiro pra construir esse paiacutes que natildeo precisava a gente taacute aiacute nessa correria pra recorrer aos nossos direitos recorrer a algumas coisas e ateacute mesmo agrave nossa sobrevivecircncia
Nesta construccedilatildeo identitaacuteria raccedila eacute um conceito ecircmico fundamental no
cotidiano das pessoas que influenciou de modo determinante os significados
atribuiacutedos agrave identidade quilombola neste grupo (MELLO 2012 p 50) A importacircncia
da noccedilatildeo de raccedila no contexto local remete ao processo de ldquooutrificaccedilatildeordquo a que a
populaccedilatildeo negra foi submetida no Brasil conforme analisado por Rita Segato ldquoser
negro significa exibir traccedilos que lembram e remetem agrave derrota histoacuterica dos povos
africanos perante os exeacutercitos coloniais e sua posterior escravizaccedilatildeordquo Enquanto
ldquoalteridade histoacutericardquo a experiecircncia de ldquoser outro no contexto da naccedilatildeo e da regiatildeordquo
69
(SEGATO 2005) eacute ainda mais sentida pelos membros do grupo em sua inserccedilatildeo na
regiatildeo Sul do Brasil onde a segregaccedilatildeo racial remonta ao projeto estatal de
branqueamento da populaccedilatildeo no iniacutecio do seacuteculo XX Mas se antes natildeo se sabiam
ldquoquilombolasrdquo e ficavam calados como aponta Adir passaram entatildeo a se pronunciar
a partir do processo de autoidentificaccedilatildeo identitaacuteria que toma os deslocamentos como
marcos de uma histoacuteria de resistecircncia contiacutenua
Assim o ldquocaminhar quilombolardquo que orienta as narrativas locais no acircmbito do
processo de emergecircncia do grupo como sujeito poliacutetico tema deste capiacutetulo
questiona o cerne dos estereoacutetipos constituintes dos discursos colonial e poacutes-colonial
sobre a construccedilatildeo da alteridade nos termos de sua ldquodependecircncia em relaccedilatildeo ao
conceito de lsquofixidezrsquo Fixidez implica repeticcedilatildeo rigidez e uma ordem imutaacutevelrdquo como
observou o autor indiano Homi Bhabha (BHABHA 1998 p 70-104) Este discurso de
fixidez tem grande reverberaccedilatildeo dentre os agentes do Estado que satildeo aqueles que
instituem categorias para identificaccedilatildeo de sujeitos de direitos coletivos que passam
desta forma a ser objeto da accedilatildeo estatal o que Arruti entende por ldquoprocesso de
nominaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 45-46)
Tomando por base tal ideia de ldquofixidezrdquo a ldquopoliacutetica das identidadesrdquo tende a
captar e reduzir as expressotildees de ldquoidentidades poliacuteticasrdquo que foram engendradas
como resposta dos grupos sociais ao processo hegemocircnico e verticalizante de
produccedilatildeo de ldquoalteridades histoacutericasrdquo A autoidentificaccedilatildeo dos grupos de saiacuteda estaacute
sobredeterminada pela ldquopoliacutetica das identidadesrdquo que eacute institucionalizada legal e
administrativamente em torno da perspectiva de enraizamento territorial o que pode
implicar na perda da profundidade histoacuterica da complexidade de origem da riqueza e
da densidade ldquodas outredades localmente modeladasrdquo (SEGATO 2005) como no
caso de uma comunidade quilombola que se constroacutei a partir do movimento e natildeo na
relaccedilatildeo ancestral com um mesmo territoacuterio Identidade quilombola esta reivindicada
vale destacar pelo grupo que saiu da regiatildeo de origem
A partir destas narrativas e reflexotildees dos quilombolas em Guaiacutera os debates
do antropoacutelogo britacircnico Tim Ingold em seu livro Lines a brief history ganharam
relevacircncia para as anaacutelises desta dissertaccedilatildeo O autor traz exemplos de cosmologias
de grupos para os quais o movimento consiste em um modo de ser Este eacute o caso do
povo Inuit habitantes da regiatildeo do Aacutertico para os quais o ato de viajar define quem o
viajante eacute Neste sentido o viajante e a linha de seu movimento sua trilha satildeo o
70
mesmo Outro exemplo eacute do povo Walbiri estudado por Roy Wagner para os quais a
vida de uma pessoa eacute a soma de seus caminhos e a inscriccedilatildeo de seus movimentos
algo que pode ser traccedilado atraveacutes do chatildeo (INGOLD 2007 p 75-79)
Por mais efecircmeras que sejam essas trilhas permanecem na memoacuteria pois o
trajeto eacute mais do que a distacircncia de um ponto ao outro Implica em atividades
permanentes de interaccedilatildeo e de monitoramento perceptivo do ambiente visando a
sustentaccedilatildeo daquele que o percorre (INGOLD 2007 p 76) Observando uma estreita
ligaccedilatildeo entre locomoccedilatildeo e percepccedilatildeo Ingold define movimento como
(hellip) Not a casting about the hard surfaces of a word in which everything is already laid out but an issuing along with things in the very process of their generation not the trans-port (carrying across) of completed being but the pro-duction (bringing forth) of perpetual becoming (INGOLD 2011 p 12)
A partir dessa compreensatildeo de movimento Ingold elabora sua perspectiva do
habitar que perpassa a imersatildeo dos seres nas correntes do mundo da vida atraveacutes
da atenccedilatildeo e do engajamento com o ambiente em um movimento ao longo de um
caminho no qual as vidas satildeo vividas os talentos desenvolvidos as observaccedilotildees satildeo
feitas e as compreensotildees crescem Observaccedilatildeo implica movimento todos os seres
observadores satildeo animais e todos os animais satildeo moacuteveis O caminho deste modo eacute
a condiccedilatildeo primeira de ser ou melhor de se tornar jaacute que ldquowayfaring is the
fundamental mode by which living beings inhabit the earthrdquo (INGOLD 2011 p 09-12)
O autor reforccedila a prioridade dos processos contiacutenuos sobre a forma final na constante
coproduccedilatildeo do ambiente e de seus habitantes humanos e natildeo humanos Questiona
assim as premissas de uma antropologia sincrocircnica jaacute que esta desconsidera a
historicidade dos grupos sociais em suas trajetoacuterias A questatildeo poreacutem eacute mais ampla
pois tambeacutem eacute possiacutevel abordar a histoacuteria atraveacutes de lugares e eventos circunscritos
A ecircnfase seria em Ingold principalmente em dinacircmicas e processos os quais natildeo se
fixam em momentos ou locais especiacuteficos A anaacutelise de tais movimentos portanto
demandaraacute em sua abordagem uma perspectiva necessariamente diacrocircnica
Ingold dialoga com outras propostas teoacutericas da antropologia que buscam
superar o paradigma da fixidez em prol de anaacutelises que trabalhem com a fluidez59 O
59 Esta anaacutelise proposta por Ingold estaacute conectada com a influecircncia trazida para as discussotildees
contemporacircneas da Antropologia por meio do livro Mil Platocircs dos filoacutesofos franceses Deleuze e Guattari cuja primeira ediccedilatildeo eacute de 1980 Com o enfoque analiacutetico na complexidade na heterogeneidade na coexistecircncia nos processos os autores apontam para a importacircncia das
71
autor entende que a vida se desenvolve natildeo dentro dos lugares mas atraveacutes em
torno e a partir deles para outros lugares ao longo dos caminhos em trajetoacuterias de
movimento A ideia do que se pode tentar traduzir como ldquoviagem a peacuterdquo (wayfaring) eacute
utilizada entatildeo para descrever a experiecircncia corporal deste movimento
perambulatoacuterio pois eacute como ldquocaminhantesrdquo que os humanos habitam a terra O autor
prefere entatildeo conceituar as pessoas como ldquohabitantesrdquo e natildeo como ldquolocaisrdquo pois
seria equivocado supor que estas pessoas estivessem confinadas dentro de um lugar
particular ou que sua experiecircncia ficasse circunscrita pelo restrito horizonte de uma
vida vivida apenas ali Trata-se ao contraacuterio da ligaccedilatildeo entre lugares que ocorre por
meio das trilhas deixadas Onde as pessoas se encontram neste caminhar as trilhas
se entrelaccedilam formando um noacute O lugar portanto eacute como um noacute mais ou menos
denso de acordo com a quantidade de linhas de vida entrelaccediladas (INGOLD 2011
p 148)
Dentro deste modo de anaacutelise o siacutetio onde vivem os quilombolas de
GuaiacuteraPR pode ser entendido como um noacute de trilhas entrelaccediladas cuja origem
descreve uma linha de conexatildeo com o noacute originaacuterio Santo Antocircnio do ItambeacuteMG60 e
um outro noacute tambeacutem relevante na regiatildeo de Presidente PrudenteSP Natildeo uma
territorialidade fechada e circunscrita em Guaiacutera mas uma base territorial que
diferentes linhas que compotildeem uma multiplicidade Apesar de sua relevacircncia e profundidade teoacuterica iremos apenas mencionar que no que tange aos processos de territorializaccedilatildeo tema que se relaciona diretamente com a anaacutelise desta dissertaccedilatildeo a partir da ecircnfase no movimento haveraacute sempre um potencial de desterritorializaccedilatildeo e de reterritorializaccedilatildeo conforme as respostas agenciadas diante de elementos cuja interferecircncia gera novos contextos de modo que as configuraccedilotildees nunca satildeo fechadas Por outro lado ponderam que o aparelho do Estado enquanto ldquoo logos o filoacutesofo-rei a transcendecircncia da Ideia a interioridade do conceito a repuacuteblica dos espiacuteritos o tribunal da razatildeo os funcionaacuterios do pensamento o homem legislador e sujeitordquo natildeo compreende em sua atuaccedilatildeo de sobrecodificaccedilatildeo este tipo de dinacircmica presente por exemplo em praacuteticas como a do nomadismo (DELEUZE GUATTARI 2000 [1997] p 35) Neste sentido importante mencionar que a proacutepria descriccedilatildeo do funcionamento do rizoma modelo epistemoloacutegico nesta teoria filosoacutefica aponta para dinacircmicas de territorializaccedilatildeo e desterritorializaccedilatildeo e reterritorializaccedilatildeo Por um lado as linhas de segmentaridade que compotildeem o rizoma iratildeo estratificaacute-lo de modo a territorializaacute-lo e organizaacute-lo mas por outro o rizoma tambeacutem eacute composto por linhas de desterritorializaccedilatildeo linhas de fuga as quais podem reencontrar ldquoorganizaccedilotildees que reestratificam o conjuntordquo Resumidamente podemos entender o rizoma a partir da seguinte citaccedilatildeo ldquooposto a uma estrutura que se define por um conjunto de pontos e posiccedilotildees por correlaccedilotildees binaacuterias entre estes pontos e relaccedilotildees biuniacutevocas entre estas posiccedilotildeesrdquo O rizoma eacute feito somente de linhas ldquolinhas de segmentaridade de estratificaccedilatildeo como dimensotildees mas tambeacutem linha de fuga ou de desterritorializaccedilatildeo como dimensatildeo maacutexima segundo a qual em seguindo-a a multiplicidade se metamorfoseia mudando de naturezardquo (DELEUZE GUATTARI 2000 p 31) 60 Antes das viagens realizadas para Santo Antocircnio do Itambeacute e Serro em Minas Gerais no final da
pesquisa em marccedilo e junho de 2015 estas conexotildees permaneciam no plano da memoacuteria posteriormente o viacutenculo estaacute sendo reconstruiacutedo com os parentes que foram (re)encontrados
72
possibilitou a reproduccedilatildeo de uma comunidade61 que se entende aberta em uma
articulaccedilatildeo entre identidade parentesco e origem comum Importante destacar que
um elemento importante na construccedilatildeo desta identidade tambeacutem passa pela
possibilidade de movimento que surge atraveacutes de viagens que se tornaram frequentes
na vida da lideranccedila do grupo Adir em contato com agentes externos em encontros
reuniotildees audiecircncias etc Para seguir nas trilhas abertas pelos habitantes da
comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos natildeo se pode portanto
desconsiderar a importacircncia dessas relaccedilotildees externas inclusive para ldquoproduzir natildeo soacute
o a imagem do grupo mas o proacuteprio grupordquo
Nesta produccedilatildeo o exerciacutecio de representaccedilatildeo das ldquolideranccedilas peregrinasrdquo
em seu papel de porta-voz eacute fundamental ao ldquose fazerem conhecer por autoridades
extra-locaisrdquo atraveacutes do circuito das viagens e do paulatino domiacutenio da loacutegica de
mediaccedilatildeo (ARRUTI 1996 p 57) A busca por reconhecimento contatos acesso a
direitos projetos de futuro atraveacutes das lideranccedilas em constantes viagens podem ser
entendidas portanto como ldquoverdadeiras romarias poliacuteticasrdquo (OLIVEIRA FILHO 1998
p 65) Pude acompanhar uma dessas viagens da lideranccedila do grupo Adir para a
participaccedilatildeo como delegado representando o estado do Paranaacute na Conferecircncia
Nacional de Educaccedilatildeo (CONAE)62 em novembro de 2014 que ocorreu em
BrasiacuteliaDF Durante o evento Adir me falou em uma entrevista sobre sua experiecircncia
com viagens para diversos encontros que destaca como um dos pontos mais
61 Se em relaccedilatildeo aos parentes que estatildeo fora a comunidade quilombola natildeo pode ser vista como
unidade fechada em relaccedilatildeo aos que estatildeo morando no territoacuterio vale ressaltar isso tambeacutem natildeo se sustenta O papel de lideranccedila de Adir apesar de natildeo haver candidato disposto agrave substituiacute-lo mesmo depois de sete anos na presidecircncia da ACONEMA colocaria segundo outros parentes me falaram seu nuacutecleo familiar numa posiccedilatildeo privilegiada Por outro lado Adir entende que sua atuaccedilatildeo como lideranccedila as constantes viagens para outras cidades ou mesmos os deslocamentos entre a comunidade e a sede do municiacutepio em Guaiacutera (distante vinte quilocircmetros do siacutetio) prejudica seu trabalho como agricultor e a possibilidade de dedicaccedilatildeo agrave sua ldquovida particularrdquo o que os outros parentes natildeo reconheceriam Haacute tambeacutem fissuras internas em relaccedilatildeo ao modo adequado de gerir a associaccedilatildeo e de lidar com os projetos e programas do governo que a comunidade acessa o que fica restrito a conversas indiretas e natildeo eacute explicitado em contextos mais amplos tendo em vista que mais do que um grupo poliacutetico trata-se de relaccedilotildees de convivecircncias diaacuterias de uma comunidade estruturada nos viacutenculos de parentesco Haacute tambeacutem visotildees dissonantes de projetos de futuro entre as geraccedilotildees sendo que os jovens satildeo criticados pelos mais velhos por natildeo valorizarem as ldquofacilidadesrdquo que eles teriam se comparado com a infacircncia e juventude de precariedade material que os adultos viveram Os jovens satildeo vistos como seduzidos por padrotildees de consumo por exemplo e distantes de Deus Apesar da relevacircncia das dinacircmicas internas natildeo me aprofundarei neste tema No entanto se enfatizo a dimensatildeo do grupo em distinccedilatildeo ao contexto local natildeo desconsidero essas fissuras internas e a criacutetica necessaacuteria a uma idealizaccedilatildeo do conceito de comunidade como unidade harmocircnica 62 Adir foi delegado com direito a voz e voto na Conferecircncia por indicaccedilatildeo estadual enquanto representante ldquodos movimentos de afirmaccedilatildeo da diversidaderdquo Dentro deste conceito estavam abarcados os seguintes movimentos ldquoLGBT movimento feminista movimento negro representaccedilatildeo quilombola representaccedilatildeo social dos povos indiacutegenasrdquo conforme regulamento da conferecircncia
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positivos em relaccedilatildeo agrave inserccedilatildeo da comunidade no movimento quilombola O grupo
passou a ter contato com os oacutergatildeos puacuteblicos estaduais de modo que ele chegou a
fazer treze viagens em um mesmo ano para Curitiba capital do Paranaacute distante mais
de setecentos quilocircmetros de Guaiacutera
Tais viagens como reforccedilou Adir o transformaram profundamente e o
construiacuteram enquanto lideranccedila Nesta viagem para Brasiacutelia em novembro de 2014
jaacute era a quarta vez que Adir estava na capital nacional Segundo ele a primeira vez
que laacute esteve foi a viagem mais marcante pois as lideranccedilas quilombolas foram
recebidas no dia 20 de novembro o ldquoDia da Consciecircncia Negrardquo pelo entatildeo
presidente da repuacuteblica Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que estava comeccedilando a abrir a
porta para as comunidades quilombolas no governo federal Adir relata como por
meio desta participaccedilatildeo em encontros eventos reuniotildees foi aos poucos perdendo a
timidez que considera caracteriacutestica dos membros do grupo quando em contato com
pessoas de fora
Adir Comecei a se soltar um pouco mas na hora que eu falava eu tremia porque totalmente uma realidade diferente da que noacutes veve a nossa vida ali foi uma vida inteira soacute ali entre noacutes mesmos No mais as pessoas ali da cidade que a gente as vezes no comeccedilo a gente nem ia soacute vivia entre noacutes aiacute depois ter o conhecimento na cidade mas a vida pacata mesmo aquela vidinha laacute escondida Ai de repente acontece o reconhecimento da nossa comunidade aiacute eu comeccedilo a sair em busca de objetivo melhoria em vaacuterias aacutereas poliacuteticas puacuteblicas Ai comecei a conhecer pessoas de dentro do estado comecei a conhecer pessoas fora do estado e hoje eu tenho contato no RS SC MS BA um monte contato com outras comunidades quilombolas e aldeia indiacutegena
A caracteriacutestica de movimento como algo que empodera as lideranccedilas
tambeacutem estaacute presente na anaacutelise de Yara Alves em seu artigo Como etnografar um
mundo em que tudo gira gera e mexe sobre a comunidade quilombola de Pinheiro
no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais A relaccedilatildeo entre ldquoandanccedilasrdquo e ldquosabedoriardquo
eacute acionada pelos membros do grupo no contexto de sua inserccedilatildeo no movimento
quilombola a partir das experiecircncias das viagens a eventos realizadas pelas
lideranccedilas ao representarem a associaccedilatildeo63 (ALVES 2015 p 85) Deste modo as
63 A centralidade do movimento abrange tambeacutem outras formas e escalas de socialidade do grupo As
ldquosaiacutedas para trabalharrdquo que os conectam com a regiatildeo do interior de Satildeo Paulo municiacutepio de Barreirinha eacute um dos elementos que compotildeem movimentos muacuteltiplos ldquoencarados de maneiras diversas e altamente valorizados - um motor existencial muito mais do que um recurso econocircmicordquo
(ALVES 2015)
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viagens feitas pelas lideranccedilas poliacuteticas adquirem uma dimensatildeo fundamental no
processo de emergecircncia eacutetnica dos grupos sociais
No caso da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos portanto a
possibilidade de deslocamento constituiu a experiecircncia dos antepassados enquanto
estrateacutegia de conquista de condiccedilotildees melhores de vida para as famiacutelias e continua se
desdobrando na ativa atuaccedilatildeo da lideranccedila do grupo em viagens fora de Guaiacutera Eacute a
partir do processo de elaboraccedilatildeo identitaacuteria que ocorre a passagem de uma
experiecircncia de silenciamento para a possibilidade de se pronunciarem sobre a proacutepria
identidade e buscarem novos caminhos de reproduccedilatildeo social do grupo
13 O CONTINUUM DA RELIGIOSIDADE
A importacircncia das dinacircmicas de movimento para a Comunidade Quilombola
Manoel Ciriaco dos Santos que buscamos demonstrar ateacute aqui tambeacutem estaacute
presente na dimensatildeo da religiosidade dos membros do grupo tema que iremos tratar
neste subitem Na minha uacuteltima viagem a campo para Presidente PrudenteSP
realizada no iniacutecio de agosto de 2015 pude perceber como as relaccedilotildees entre
movimento e religiosidade estavam presentes na histoacuteria do grupo de um modo
marcante na proacutepria motivaccedilatildeo da saiacuteda de Manoel Ciriaco de Minas O intuito desta
viagem de campo foi visitar D Ana Raimunda irmatilde de Manoel Ciriaco que haviacuteamos
encontrado em marccedilo morando em SerroMG e que em junho ajudamos a trazecirc-la
de mudanccedila para morar com a sobrinha D Jovelina em Presidente PrudenteSP
Nas outras duas viagens anteriores em que estive com D Ana em marccedilo e
em junho de 2015 natildeo havia tido oportunidade de conversar com ela sobre os motivos
que impulsionaram a saiacuteda de seu irmatildeo Manoel Ciriaco de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG em 1956 quando foi embora e nunca mais voltou Imaginando que ela
iria me falar das dificuldades de sobrevivecircncia de toda a famiacutelia na terra que era
heranccedila da matildee deles Izidora sou surpreendida com sua resposta ela conta que o
que desencadeou a saiacuteda de Manoel foi que ele ficou muito doente e assim que
melhorou resolveu ir embora O movimento inicial de deslocamento do grupo familiar
segundo me contou tinha sido impulsionado por causas maacutegico-religiosas
D Ana Raimunda Ele ficou doente depois a cabeccedila esquentou e saiu de laacute que laacute era bom e era ruim ficou doente demais doenccedila quase matou ele laacute mas Deus ajudou que
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Dandara Mas era coisa feita pra ele
D Ana Raimunda Era ele oh (fez sinal com as matildeos)
Dandara Tinha tambeacutem desentendimento entre os parentes
D Ana Raimunda Tinha cascou fora foi bom ter vindo embora se natildeo ia mais de pressa neacute Entatildeo eles vieram e a gente ficou laacute rezando se apegando com Deus pra eles Demorou dar notiacutecia nossa ela (Izidora matildee de D Ana e Manoel) ficava chorando dia e noite eu falei natildeo chora natildeo que eles daacute notiacutecia e como deu neacute deu notiacutecia que tava bem graccedilas a Deus
Se ateacute agora analisamos os fatores sociais e econocircmicos que contribuiacuteram
para a decisatildeo de deslocamento destas famiacutelias neste momento da conversa com D
Ana vieram agrave tona informaccedilotildees sobre como dentro deste quadro social mais amplo
as tensotildees sociais internas foram decisivas e atuaram para o impulso de saiacuteda
Importante observar neste sentido que natildeo haacute uma reaccedilatildeo mecacircnica ao
desenvolvimento regional mas sim uma combinaccedilatildeo de fatores externos e internos
ao grupo familiar
A fala de D Ana aponta para uma acusaccedilatildeo de que Manoel teria sido alvo de
uma agressatildeo maacutegica com consequecircncias muito seacuterias pois quase o levou agrave morte
e que quando ele se recuperou dos efeitos deste enfeiticcedilamento64 deu na cabeccedila de
vir embora As dimensotildees maacutegico-religiosas nesta visatildeo de mundo especiacutefica
portanto podem gerar deslocamentos concretos
Neste momento do texto apresento alguns exemplos sinteacuteticos65 do modo
como a religiosidade implica em movimento concretos na trajetoacuteria de vida dessas
pessoas e tambeacutem estaacute permeada por movimentos natildeo concretos em seu cotidiano
Estes movimentos sutis se apresentam por exemplo no acircmbito das relaccedilotildees que satildeo
estabelecidas entre o humano e o divino como quando acionam a capacidade de se
64 Importante considerar que a histoacuteria sobre a morte de Manoel em GuaiacuteraPR tambeacutem eacute narrada como
resultado de um feiticcedilo Geralda me contou que foi uma pessoa bem proacutexima da famiacutelia que tinha muita inveja de Manoel porque eles tinham progredido ele era respeitado e querido na cidade Relatou que Manoel estava trabalhando na roccedila e foram buscar uma aacutegua para ele a seu pedido Soacute que o pessoal que estava na roccedila comeccedilou a achar estranho que estava demorando demais para voltarem e parecia ateacute que tinham ido furar o poccedilo D Ana falou com Manoel que ela estava esganado por aacutegua e por quecirc natildeo esperava chegar em casa A pessoa que fez o feiticcedilo entatildeo pegou um sapo raspou o couro dele e pocircs na aacutegua Daiacute Manoel bebeu mas os outros natildeo quiseram porque tinham cisma Com o passar do tempo ele comeccedilou a se sentir mal natildeo conseguia comer porque sentia gosto de areia a pressatildeo subia foi piorando sofreu muito ateacute que morreu Ressalta-se que estas natildeo foram as uacutenicas histoacuterias sobre feiticcedilo que me foram relatadas durante o trabalho de campo no entanto natildeo irei me deter neste assunto pois isso geraria uma dispersatildeo no texto 65 Natildeo eacute possiacutevel levando em conta o enfoque analiacutetico da dissertaccedilatildeo abordar as questotildees relativas
agrave religiosidade do grupo com a profundidade necessaacuteria em apenas um subitem Por isso iremos analisar sobre a religiosidade apenas alguns aspectos que satildeo relevantes para o conjunto do argumento do texto no que tange ao tema do movimento
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deslocar entre mundos e conectar subjetividades temporalidades e espacialidades
distintas Os mortos os espiacuteritos as entidades os santos em suas diversas formas
de manifestaccedilatildeo satildeo agentes importantes e presentes no dia-a-dia dos quilombolas
As formas como suas praacuteticas de devoccedilatildeo satildeo interpretadas pelos vizinhos
consideradas como preconceituosas pelos quilombolas eacute tambeacutem uma dimensatildeo
importante Este preconceito que combina dimensotildees raciais e religiosas como
iremos analisar impulsionou a saiacuteda de Antocircnio filho de Manoel Ciriaco que realizava
trabalhos mediuacutenicos na comunidade Ele teve que ir morar na periferia de Guaiacutera
pois sua praacutetica espiritual como curador e meacutedium natildeo era aceita no bairro rural
ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo
A religiosidade importante destacar eacute uma esfera significativa de reproduccedilatildeo
da memoacuteria comunitaacuteria e do viacutenculo que o grupo manteacutem com a regiatildeo de origem
Aleacutem de narrativa (cognitiva) como analisamos no subitem anterior a memoacuteria eacute
tambeacutem performativa e corporal O reencenamento do passado na conduta presente
constitui uma ldquomnemocircnica do corpordquo66 muito caracteriacutestica nas culturas orais67
conforme analisado no livro Como as sociedades recordam do antropoacutelogo Paul
Connerton (CONNERTON 1999 p 86) Um dos aspectos interessantes desta
mnemocircnica corporal quilombola foi indicado por Geralda que trabalha como meacutedium
em um terreiro de Umbanda haacute mais de sete anos a experiecircncia da incorporaccedilatildeo de
entidades como os pretos-velhos permite a reativaccedilatildeo de memoacuterias dos espiacuteritos de
escravos
Tais espiacuteritos satildeo investidos de eficaacutecia e de autoridade para fornecer
conselhos de cura para os vivos quando incorporados nos meacutediuns Estas entidades
espirituais se apresentam no terreiro de Umbanda para lidar com todos os tipos de
problemas pessoais da clientela que frequenta o terreiro Enquanto ldquoculto de
possessatildeordquo a Umbanda eacute composta por um panteatildeo que integra ldquoalgumas entidades
do candombleacute aleacutem de novos estereoacutetipos como iacutendios preto-velhos tropeiros
66 Para aleacutem das histoacuterias narrativas nos interessam tambeacutem o processo de permanecircncia social
enfocado atraveacutes da noccedilatildeo de ldquomemoacuteria-haacutebitordquo enquanto capacidade de reproduzir determinada accedilatildeo que dentro da dimensatildeo social eacute ldquoingrediente essencial para o desempenho bem-sucedido dos coacutedigos e normasrdquo Haacute outras formas de lembrar por exemplo por meio de ldquoatos de transferecircncia que tornam possiacutevel recordar em conjuntordquo Trata-se de ldquotipos particulares de repeticcedilatildeordquo que ocorrem no acircmbito da ldquomemoacuteria comunalrdquo como vivenciado nas cerimocircnias comemorativas e nas praacuteticas corporais (CONNERTON 1999 p 44) 67 Em contraste com a cultura escrita caracterizada pela ldquopraacutetica de inscriccedilatildeordquo por meio da qual a
memoacuteria se reproduz atraveacutes dos ldquodispositivos de armazenamento e recuperaccedilatildeo de informaccedilatildeordquo (CONNERTON 1999 p 84-87)
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baianosrdquo Com profunda influecircncia do Espiritismo e do Catolicismo popular e derivada
em boa parte do Candombleacute a Umbanda deu cobertura para uma seacuterie de ldquopraacuteticas
miacutesticas populares altamente estigmatizadasrdquo Eacute a proacutepria marginalidade desses
espiacuteritos no que tange aos valores estabelecidos pelo sistema social hegemocircnico a
fonte da forccedila e da capacidade que possuem para resolver as afliccedilotildees humanas
(BRUMANA MARTIacuteNEZ 1991 p 64-86)
A manifestaccedilatildeo dos pretos-velhos ou as pretas-velha espiacuteritos de velhos(as)
escravos(as) traz agrave tona temas da memoacuteria coletiva brasileira e da ideologia religiosa
que resiste agraves hierarquias alienantes do colonialismo e do capitalismo (MATORY
2007 p 405) A representaccedilatildeo sobre estes espiacuteritos enquanto importante siacutembolo da
identidade nacional abrange desde a submissatildeo resignada agrave resistecircncia heroica do
escravo (HALE 1997 p 393)
These spirits constitute sign vehicles through which Umbandistas interpret and explore themes of racism national identity domination suffering and redemption within a moral framework broadly informed by the values and motifs of popular Catholicism At the same time pretos velhos work a reciprocal semiotic movement through them these cultural discourses and collective memories constitute bodily experience by way of spirit possession and spirit performance (HALE 1997 p 393)
Eacute por meio dessa experiecircncia corporal vivenciada por Geralda
quinzenalmente como meacutedium na ldquoAssociaccedilatildeo Espiacuterita Reino de Baluaecircrdquo que ela faz
a associaccedilatildeo dos pretos-velhos com sua trajetoacuteria pessoal e familiar Enquanto
quilombolas agricultores ela compara o desgaste fiacutesico que tiveram em decorrecircncia
dessas atividades rurais com a experiecircncia dos pretos(as) velhos(as) quando viveram
na terra e trabalharam como escravos(as) Esta memoacuteria corporal se manifesta na
forma de incorporaccedilatildeo do meacutedium quando ldquoo controle social do corpo natildeo eacute
simplesmente abolido no transe mas substituiacutedo por outro controle o dos estereoacutetipos
corporais da incorporaccedilatildeo de cada entidade miacutesticardquo (BRUMANA MARTINEZ 1991
p 84) A maioria destas entidades exibem sinais caracteriacutesticos de idade e debilidade
fiacutesica caminham debruccediladas sobre suas bengalas com rigidez articular movimentos
trabalhados e pausados Ao incorporarem no meacutedium portanto apresentam um
ldquodesempenho corporalrdquo que passa por uma certa codificaccedilatildeo estereotiacutepica que as
identificam entre si e as distinguem das demais entidades atraveacutes de atributos
materiais como o cachimbo e o vinho doce podendo usar chapeacuteu de palha e lenccedilos
(BRUMANA MARTINEZ 1991 p 240)
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Podemos pensar nas entidades da Umbanda enquanto mediadores entre
temas culturais mais abrangentes e a experiecircncia corporal Ademais aleacutem desta
codificaccedilatildeo a performance da possessatildeo espiritual vai ocorrer tambeacutem a partir de
uma ldquogramaacutetica da accedilatildeo socialrdquo a partir do contexto do proacuteprio meacutedium (HALE 1997
P 393) Assim os pretos-velhos podem ser analisados como veiacuteculos atraveacutes dos
quais
Umbandistas speak to and embody Brazilian dramas of race and power () Their bodies are worn-out from hard labor torture hunger and accident This is understood most of the time the physical signs stand as a mute reproach for the suffering inflicted by the allegedly benevolent system of Brazilian slavery (HALE 1997 p 395 397)
Geralda entende que eacute a partir dessa experiecircncia comum que ela ganha forccedila
como meacutedium para trabalhar com os(as) pretos-velhos(as) Segundo ela me contou
sobre as histoacuterias dessas entidades eles(as) cantavam para aliviar a dor de tanto que
apanhavam amarrados com a matildeo para traacutes e com os cantos louvavam a Nossa
Senhora Aparecida para que os ajudassem E completou ldquoera soacute no chicote ficavam
presos comendo aquele angu os restos quando a princesa Isabel libertou os
negros eles louvaram a Deusrdquo Ela se lembrou tambeacutem de como ouvia seus pais
contarem sobre os parentes que tinham trabalhado como escravos em Minas Gerais
e da avoacute Maria Bernarda que chorava e falava que eles natildeo tinham liberdade
O acionamento dos espiacuteritos dos antepassados dos negros representado de
um modo abrangente por estas entidades espirituais deste modo faz com que se
tornem mediadores da elaboraccedilatildeo identitaacuteria o que reforccedila a forccedila poliacutetica da
memoacuteria revivida nos rituais da Umbanda Este paralelismo construiacutedo na fala de
Geralda sobre a experiecircncia de trabalho racismo pobreza escravidatildeo em relaccedilatildeo agraves
entidades dos pretos-velhos foi se explicitando ao longo do trabalho etnograacutefico
Segundo ela como trabalhou muito catando algodatildeo sabe bem o que eacute o trabalho
duro e o porquecirc de os pretos-velhos serem encurvados pois era de tanto trabalhar na
roccedila no sol quente Eacute por causa da lembranccedila deste corpo torturado sujeito a um
sofrimento ilegiacutetimo que quando o preto-velho sai do corpo do meacutedium e
desincorpora eles te mata ocecirc de tatildeo sofrido que eles eram
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FIGURA 12 Geralda com imagem de preto-velho que compotildee o seu altar
Esta memoacuteria do sofrimento ilegiacutetimo do tempo da escravidatildeo se desdobra
em uma infeliz continuidade que se estende ao tempo presente Neste sentido haacute
uma reflexatildeo feita pelos quilombolas sobre como a pobreza assim como o racismo
institui uma realidade contraacuteria agrave vontade divina jaacute que foi Deus que nos deu esta cor
e todos somos irmatildeos perante a Ele Nesse sentido a cunhada de Geralda casada
com seu irmatildeo Joaquim Eva que eacute a principal referecircncia da praacutetica do catolicismo na
comunidade de Guaiacutera comenta sobre como passou a ter orgulho de sua cor
Eva Eu tenho o maior orgulho que eu sou preta eu natildeo tenho problema que eu sou preta natildeo Deus me deu esta cor e eu natildeo ligo natildeo () De primeiro eu tinha vergonha que eu era preta eu natildeo ligo que eu sou preta natildeo Deus fez eu assim eu tenho que ficar assim vou fazer o quecirc Natildeo tem como a pessoa mudar mais Eacute a vontade de Deus assim a cor da pessoa com sauacutede
A ideia de que haveria uma maior sacralidade dos negros eacute recorrente neste
grupo quilombola Liliana Porto encontrou uma concepccedilatildeo proacutexima nas suas
pesquisas no Vale do Jequitinhonha e aponta que ldquosatildeo os negros e pobres os
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legiacutetimos representantes do divinordquo (PORTO 2007 p 143) Estas duas experiecircncias
de subalternidade a pobreza e o racismo muito presentes na histoacuteria do grupo
quilombola em Guaiacutera satildeo vistas por eles como recompensadas por Deus por outro
lado atraveacutes da presenccedila de dons mediuacutenicos e espirituais em vaacuterios membros da
famiacutelia como meacutediuns benzedores e adivinho Desde os meus primeiros contatos
com a comunidade ainda em 2011 quando eu era assessora do Ministeacuterio Puacuteblico
Geralda jaacute se identificara como umbandista e nos mostrou sua carteirinha do Conselho
Mediuacutenico do Brasil (CEBRAS)
FIGURA 13 Carteirinha de Geralda do Conselho Mediuacutenico do Brasil
As histoacuterias da manifestaccedilatildeo da mediunidade e dons de benzimento cura e
adivinhaccedilatildeo satildeo muito valorizadas internamente como um dom Seria como uma
missatildeo recebida do plano superior que coloca em movimento o acesso agraves fontes do
sagrado democratizando-o e provocando uma ldquorotinizaccedilatildeo dos milagresrdquo (BRUMANA
MARTINEZ 1991 p 23-25) A histoacuteria do finado Zeacute Maria eacute muito interessante
neste sentido Como me contou Geralda quando ele nasceu ele veio dentro de uma
espeacutecie de capa um envoltoacuterio que era um iacutendice reconhecido pelos adultos de sua
capacidade de adivinhaccedilatildeo um dom que ele jaacute veio trazendo porque Deus deu a ele
A parteira (Maria Inaacutecia das Dores matildee de Antocircnio e sogra de Geralda) que conhecia
o significado desta peculiaridade perguntou para D Ana matildee de Zeacute Maria se ela
81
queria guardar a capa mas a matildee disse que natildeo e esta foi enterrada Se tivesse sido
guardada quando ele completasse sete anos poderia ser confirmado seu dom
adivinhatoacuterio atraveacutes do seguinte desafio pegariam a roupa que ele usou quando
nasceu e colocariam no meio de outras Se ele adivinhasse qual era a que tinha usado
na ocasiatildeo de seu nascimento o seu dom estaria confirmado Mesmo este processo
natildeo tendo sido feito Geralda reforccedilou como ele era sabido e natildeo falava nada errado
ou seja o dom estaacute presente independente de um processo ritual de confirmaccedilatildeo
Haacute entre os membros do grupo a referecircncia mais forte dos seguintes
benzedoresbenzedeiras que jaacute faleceram e vieram de Minas Gerais morar em Guaiacutera
Ana Rodrigues (esposa de Manoel Ciriaco) Altina (tia de Ana Rodrigues irmatilde de sua
matildee Maria Bernarda) Maria Madalena (nora de Altina e sogra de Geralda) Geraldo
(filho de Altina e pai de Eva) Sobre Geralda sua matildee Ana Rodrigues benzeu muita
gente no ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo e depois falavam que a gente natildeo prestava
FIGURA 14 Altina importante benzedeira na memoacuteria comunitaacuteria68
68 Ela faleceu com 108 anos e segundo acreditam essa era sua idade miacutenima jaacute que ela foi registrada
em Minas Gerais e antigamente se demorava para fazer o registro da crianccedila
82
Segundo Geralda nascida em 1962 e criada em Guaiacutera no siacutetio os meus pais
criaram noacutes assim iam buscar remeacutedio na casa dos benzedor o que destaca o
aspecto maacutegico das concepccedilotildees de sauacutede e doenccedila na comunidade Os remeacutedios
eram predominantemente caseiros produzidos a partir da proacutepria mata como as
garrafadas os chaacutes o uso terapecircutico de uma diversidade de plantas medicinais A
restauraccedilatildeo da sauacutede neste contexto eacute permeada por uma concepccedilatildeo ampla que
natildeo se restringe a males com origens fiacutesicas mas perpassam uma seacuterie de ameaccedilas
miacutesticas como o mau-olhado o quebrante ateacute a feiticcedilaria que soacute podem ser revertidos
por meio de benzeccedilotildees simpatias curas recebidas espiritualmente ou no caso do
feiticcedilo com accedilotildees de defesa que anulem seus efeitos69 Um contexto semelhante eacute
analisado por Porto a partir da etnografia realizada proacuteximo da regiatildeo de origem do
grupo no Alto Jequitinhonha
No universo acima delineado a percepccedilatildeo do processo sauacutede e doenccedila eacute bastante complexa envolvendo uma seacuterie de avaliaccedilotildees em torno de questotildees religiosas maacutegicas e orgacircnicas e natildeo sendo evidente a separaccedilatildeo entre estas esferas () natildeo se baseia em uma distinccedilatildeo clara entre natural e sobrenatural Mesmo a distinccedilatildeo entre ldquodoenccedila de meacutedicordquo e ldquodoenccedila de curadorrdquo hoje existente me parece muito mais o resultado de um processo de especializaccedilatildeo dos serviccedilos de cura e a classificaccedilatildeo natildeo eacute necessariamente excludente (PORTO 2005)
Geralda ressaltou vaacuterias vezes em conversas comigo e tambeacutem pude
observar na minha estadia em sua casa a quantidade de pessoas que ela benze
neste caso ldquosozinhardquo aleacutem do benzimento que ela faz como meacutedium no terreiro Haacute
para ela um sentido de obrigaccedilatildeo como benzedeira em atender a todos que lhe
pedem ajuda Desde pequena relatou jaacute pediam para que ela benzesse mas ela natildeo
queria e fugia Quando comeccedilou a trabalhar na Umbanda a demanda de benzimento
69 Atualmente satildeo muito mais dependentes da aquisiccedilatildeo de remeacutedios e alguns frequentam meacutedicos
regularmente tanto no postinho do Maracaju onde haacute uma tarde disponibilizada na semana exclusivamente para os quilombolas Haacute tambeacutem casos que dependem dos deslocamentos promovidos pelo municiacutepio principalmente a Cascavel para tratamentos especializados agendados pelo SUS (principalmente Joaquim que tem problema na perna Eva e Geralda que tecircm problemas nos olhos) Adir e Joaquim fazem questatildeo de frisar que natildeo tomam remeacutedio de farmaacutecia e Nilza viuacuteva de Zeacute Maria me relatou que foi pouquiacutessimas vezes no meacutedico durante toda a sua vida Se por um lado a medicina busca se impor como discurso hegemocircnico por outro os especialistas populares de cura natildeo desaparecem bem como haacute manifestaccedilotildees de resistecircncia de algumas pessoas da comunidade em aderir a ida aos meacutedicos ou o uso de remeacutedios como tratamento (PORTO 2013a p 73)
83
aumentou bastante e as entidades lhe orientaram no sentido de que ela tinha que
benzer sem restriccedilatildeo para que pudesse ter a felicidade em sua vida70
Em relaccedilatildeo aos dons mediuacutenicos entre os membros da comunidade de
Guaiacutera satildeo mais citados os irmatildeos de Geralda ldquofinado Antocircniordquo ldquofinado Zeacute Mariardquo e
Joaquim Geralda e seu marido Antocircnio conhecido como Guaraacute Os pais de Geralda
seu Manoel e dona Ana segundo ela comentou jaacute frequentavam centro de umbanda
desde Minas Gerais mas natildeo trabalhavam O finado Antocircnio assassinado no comeccedilo
da deacutecada de 90 eacute a principal referecircncia de trabalhos mediuacutenicos tendo manifestado
seus dons desde crianccedila enquanto ldquouma capacidade inata para encontrar e incorporar
espiacuteritosrdquo sem necessidade de iniciaccedilatildeo para tanto (SANSI 2009 p 141)
Segundo Sansi as religiotildees afro-brasileiras incorporam a histoacuteria em suas
praacuteticas rituais atraveacutes da relaccedilatildeo dialeacutetica entre a iniciaccedilatildeo pela reproduccedilatildeo das
dinacircmicas da tradiccedilatildeo e o dom expresso na capacidade dos meacutediuns de
incorporarem novos espiacuteritos (SANSI 2009) A presenccedila de manifestaccedilotildees de
mediunidade entre os membros da comunidade quilombola em questatildeo abrange
essas duas possibilidades pois em alguns casos ela parte de um dom de
mediunidade que a pessoa jaacute trouxe desde a infacircncia e desenvolveu de modo
autocircnomo como no caso de Antocircnio e em outros casos esta capacidade de
incorporaccedilatildeo mediuacutenica dependeu de um processo de iniciaccedilatildeo na Umbanda como
na histoacuteria de Geralda
Esta matriz de religiosidade afro-brasileira71 natildeo eacute portanto dependente
unicamente da relaccedilatildeo com terreiros de Umbanda mas tambeacutem eacute resultado de uma
experiecircncia histoacuterica e cultural proacutepria da trajetoacuteria familiar Nesta trajetoacuteria familiar o
que poderia ser compreendido em outros contextos como catolicismo e umbanda
enquanto esferas distintas manifestam-se em um mesmo continuum de dinamicidade
70 Quando as pessoas vatildeo em sua casa pedir benzimento geralmente mulheres moccedilas e crianccedilas ela
pega o nome completo acende uma vela para o anjo da guarda daquela pessoa e pede para que os orixaacutes intercedam por ela Entatildeo benze com um ramo de arruda o que pode se repetir por trecircs dias consecutivos caso necessaacuterio Geralda entende que a proacutepria pessoa deve trazer a vela para que o pedido seja feito em sua intenccedilatildeo mas muitas vezes as pessoas natildeo trazem e ela se sente sobrecarregada pois acaba oferecendo a vela com seus proacuteprios e escassos recursos Natildeo haacute nestes casos uma reciprocidade pela ajuda realizada o que fere a proacutepria dinacircmica de oferecimento e recompensa que permeia a relaccedilatildeo com o sagrado em sua visatildeo 71 Segundo GOLDMAN uma definiccedilatildeo inicial sobre as ldquoreligiotildees afro-brasileirasrdquo aponta para ldquoum
conjunto algo heteroacuteclito mas certamente articulado de praacuteticas e concepccedilotildees religiosas cujas bases foram trazidas pelos escravos africanos e que ao longo da sua histoacuteria incorporaram em maior ou menor grau elementos das cosmologias e praacuteticas indiacutegenas assim como do catolicismo popular e do espiritismo de origem europeiardquo (2009 p 106)
84
Nas histoacuterias sobre o finado Antocircnio seus irmatildeos contam como ele comeccedilou a se
desenvolver mediunicamente em casa sozinho e passou a realizar trabalhos em uma
casinha de coqueiro e tambeacutem dentro da mata do siacutetio com o apoio dos demais
irmatildeos que tambeacutem tinham o dom Geralda e Guaraacute lembraram que ele trabalhava
com baiano (baiano Juvenal) caboclo exu penacho boiadeiro Zeacute Pilintra preto-
velho pomba-gira e outros
Por motivo do preconceito religioso que sofreram da parte dos vizinhos que
os acusavam de macumbeiros feiticeiros coisa do capeta entre outros Antocircnio
resolveu se mudar do siacutetio deixar o conviacutevio cotidiano com sua famiacutelia para poder
trabalhar como curador e cumprir sua missatildeo primeiro em Terra Roxa e depois se
fixou na Vila Guarani periferia de Guaiacutera Joatildeo Aparecido o irmatildeo caccedilula me contou
sobre este processo
Joatildeo Soacute que eu sei que na vila Guarani Dandara oacuteia ele recebia muita gente Aqui nessa regiatildeo ele tirava em primeiro lugar ele que atingia mais gente nessa regiatildeo aqui Dandara Mais ateacute que esse terreiro hoje que a Geralda vai Joatildeo Mais porque ela (a matildee de santo D Penha) natildeo tinha aquilo ali antigamente O dela era bem mais pequeno Soacute que ela natildeo recebia o tanto de gente que meu irmatildeo recebia natildeo Ele recebia muita gente por dia Tinha dia que a gente chegava laacute e ele falava assim ldquooh eu tocirc ateacute agora natildeo almocei tomei um cafezinho aacutegua soacuterdquo Era gente do Mato Grosso Paraguai Cascavel toda regiatildeo Dandara vinha Esses dias atraacutes o Joaquim recebeu um cara aqui o cara vinha a procura dele Aiacute o Joaquim falou com ele ldquoOh infelizmente o meu irmatildeo faleceurdquo O cara saiu daqui de cabeccedila baixa Entatildeo tem muita gente ainda que natildeo sabe e sempre na cidade eles pergunta noacutes o que aconteceu que meu irmatildeo natildeo recebe mais ningueacutem aiacute noacutes falamos ldquonatildeo ele faleceurdquo Eu tenho tudinho guardado na lembranccedila tudinho tem o local laacute em cima na mata onde ele fazia os trabalhos dele Entatildeo tenho ateacute hoje e foi uma desde pequeno que a gente vem nessa religiatildeo da Umbanda soacute que a gente assim Dandara natildeo vecirc assim tem gente que vecirc a Umbanda como se fosse assim ah a religiatildeo do democircnio outros natildeo vecirc como uma boa coisa mas a gente vecirc assim que vocecirc mesmo vocecirc pode assistir laacute natildeo sei se vocecirc pocircde assistir um trabalho Natildeo eacute coisa do outro mundo Que tem muitos que vecirc aquilo ali e meu deus do ceacuteu eacute coisa que que vai acabar com tudo Natildeo eacute Sempre a gente fala mesmo assim pra jogar pedra eacute faacutecil mas vocecirc tem que ver primeiro as coisas pra depois vocecirc estar criticando Porque essa religiatildeo a gente foi muito criticado por causa disso ai mesmo Quando ele (Antocircnio) trabalhava aqui teve uma eacutepoca que a gente teve que trabalhar escondido porque os pessoal natildeo podia saber que natildeo eles ia falava ldquoaqueles ali tatildeo mexendo tudo eles satildeo macumbeiro eles satildeo feiticeirordquo Soacute que a gente natildeo trabalhava pro mal porque foi um dom que ele recebeu neacute mas eles via aquilo ali e nossa Aiacute ele falava assim ldquoNatildeo eu sou obrigado a trabalhar escondido pra ningueacutem ficar sabendordquo
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Geralda eacute a irmatilde que daacute continuidade como meacutedium para os trabalhos de seu
irmatildeo Antocircnio atualmente Um siacutembolo desta vinculaccedilatildeo de forccedila e missatildeo eacute uma
guia (colar) com as sete linhas da Umbanda que ela recebeu de Antocircnio e que natildeo
tira do pescoccedilo haacute mais de vinte anos Geralda me disse que vai fazer um terreiro
ainda que isso eacute um desejo que ela vai realizar Ela (52 anos) e seu marido que
tambeacutem se chama Antocircnio (49 anos) frequentam a Associaccedilatildeo Espiacuterita Reino de
Baluaecirc72 localizada no Municiacutepio de Terra RoxaPR (vizinho agrave Guaiacutera)73
FIGURA 15 Geralda e Antocircnio (Guaraacute) em frente ao altar apoacutes a realizaccedilatildeo da ldquogirardquo
72 Disponiacutevel em wwwreinodebaluaecombr Acesso em 20082014 73 As ldquogirasrdquo nome dado ao ritual central da Umbanda aberto para que as pessoas se consultem
diretamente com as entidades (principalmente preto-velho caboclo e vaacuterias formas de Exu) ocorrem aos saacutebados duas vezes no mecircs Geralda eacute meacutedium de incorporaccedilatildeo e Guaraacute estaacute girando ainda ou seja estaacute sendo preparado para que possa incorporar Enquanto isso ele daacute suporte agrave muacutesica por meio do pandeiro ou tambor que satildeo muito importantes nas chamadas que satildeo feitas para que as
entidades baixem no terreiro
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Geralda fala do desenvolvimento de sua mediunidade como um mandato
espiritual pois se fosse por ela natildeo queria ter desenvolvido este trabalho o qual
implica em muitas obrigaccedilotildees e restriccedilotildees pois jaacute estava cansada pelo tanto que
trabalhara na roccedila em serviccedilo pesado a vida inteira Antes de comeccedilar a trabalhar
ela jaacute frequentava o terreiro para buscar atendimento e ficava na assistecircncia de onde
as pessoas que natildeo fazem parte do corpo de trabalho da casa observam a sessatildeo e
satildeo beneficiadas por ela Chegou um tempo em que ela comeccedilou a sentir muita
fraqueza colocava a panela no fogo e tinha que deitar Quando foi consultar no terreiro
para ver o que era a Matildee de Santo que eacute o cargo mais alto da hierarquia da Umbanda
(eacute quem tem e manteacutem o terreiro) lhe disse que teria que trabalhar como meacutedium
caso contraacuterio ela soacute iria piorar e ldquodava seis meses tava morta porque tinha que ter
algueacutem pra substituirrdquo O diagnoacutestico da doenccedila portanto como eacute muito comum nas
histoacuterias dos meacutediuns indicou a interferecircncia de um espirito no sentido da
necessidade do desenvolvimento da mediunidade da pessoa com seu consequente
ingresso na Umbanda (BRUMANA MARTIacuteNEZ 1991 p 64)
Geralda e seu marido Antocircnio (Guaraacute) fazem pedidos e oferecem retribuiccedilotildees
agraves entidades recorrentemente em um quarto de sua casa que aliaacutes era o quarto que
eu dormia quando fiquei hospedada com eles Quando eu ia me deitar geralmente
esperava a vela apagar o cigarro acabar e eles retiravam as oferendas para que eu
pudesse me deitar Essa experiecircncia me provocava sensaccedilotildees diferentes e
impactantes quando eu pensava que aquele quarto estava povoado por relaccedilotildees e
seres invisiacuteveis Esse processo de comunicaccedilatildeo entre pessoas e entidades e qual
entidade estava sendo acionada em determinado dia natildeo me era relatado apenas
algumas informaccedilotildees eram mencionadas mas sempre encobertas por um ar de
misteacuterio enquanto conhecimento iniciaacutetico Importante eacute perceber apesar de eu natildeo
poder me aprofundar neste tema agora que a Umbanda nesta dinacircmica de interaccedilatildeo
recupera a reciprocidade como valor de modo que o dar-e-receber atua ldquocomo um
princiacutepio moral fundamental que une todos os homens entre si e toda a humanidade
viva com uma humanidade morta este mundo com o outro e os homens com os
Orixaacutesrdquo (BRUMANA MARTINEZ 1991 p 25)
Geralda questionou em conversas comigo o porquecirc de algumas pessoas
terem inveja dela no terreiro como uma outra meacutedium com quem teve um seacuterio
desentendimento Na avaliaccedilatildeo de Geralda uma mulher branca de classe meacutedia que
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tem um carro e sabe dirigir tem muito mais reconhecimento na sociedade do que ela
que sendo ldquopreta e pobrerdquo em seus proacuteprios termos sabe que ocupa na classificaccedilatildeo
social hegemocircnica o lugar menos privilegiado No entanto por outro lado Geralda
reconhece que possui uma forccedila que esta sua mesma origem lhe confere uma forccedila
que eacute miacutestica podemos dizer e que estaacute ligada agrave feacute e agrave proteccedilatildeo que recebe dos seus
Orixaacutes74 o que tambeacutem eacute valorizado pelo Pai de Santo do terreiro que ela frequenta
Pude perceber que o reconhecimento em relaccedilatildeo ao papel de Geralda que lhe
eacute conferido pelos seus vizinhos da ldquoEletrosulrdquo enquanto benzedeira meacutedium de um
terreiro com sabedoria e capacidade de orientaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo valorizado no acircmbito
de sua proacutepria famiacutelia Se Adir eacute quem tem o manejo como mediador com os agentes
externos para realizar as articulaccedilotildees poliacuteticas ela desde o comeccedilo da minha
estadia estava me dizendo nas entrelinhas que era quem possuiacutea o manejo como
mediadora junto aos espiacuteritos e agraves forccedilas miacutesticas Ela eacute quem domina atualmente a
esfera da religiosidade afro-brasileira a qual embora seja em algumas situaccedilotildees
acionada como um siacutembolo para a afirmaccedilatildeo da identidade negra e quilombola do
grupo natildeo aparece de modo tatildeo expliacutecito como por exemplo a capoeira praacutetica que
tambeacutem remete a esta ldquomnemocircnica do corpordquo (CONNERTON 999 p 86)
Deve-se levar em conta que o tema da religiosidade afro-brasileira eacute ainda
muito delicado pois vinculado a um forte preconceito racialreligioso presente na
sociedade brasileira Jaacute a capoeira eacute um marcador negro muito menos polecircmico e cuja
performance da roda se consolidou como modo de apresentaccedilatildeo da comunidade
quilombola nas visitas feitas pelas escolas Este natildeo acionamento da Umbanda como
elemento diacriacutetico enquanto quilombolas remete ao fato de esta religiatildeo que
apresenta aspectos de influecircncia africana e que remete agrave experiecircncia negra no Brasil
eacute tambeacutem um motivo de estigmatizaccedilatildeo para o grupo como explicitado na fala acima
de Joatildeo sobre a saiacuteda de Antocircnio do siacutetio pelas acusaccedilotildees que recebia tendo que
desenvolver seu trabalho como meacutedium na periferia de Guaiacutera
Neste sentido interessante refletir sobre a dinacircmica que se estabeleceu no
Brasil entre religiosidade magia e preconceito racial jaacute que ldquoa visatildeo construiacuteda do
negro e de sua religiatildeo os vincula a caracteriacutesticas natildeo soacute desvalorizadas mas
74 Ela estaacute sempre dizendo que se natildeo fossem os seus Orixaacutes lhe ajudando ela natildeo sabe como
conseguiria dar conta de todas as suas atribuiccedilotildees cotidianas jaacute que tem a sauacutede fraca desde pequena o que se agravou de tanto trabalhar aleacutem de um problema especiacutefico nos olhos
88
tambeacutem socialmente condenadasrdquo75 Construiu-se assim um sistema classificatoacuterio
elaborado a partir da perspectiva dicotocircmica entre bem e mal no qual as religiotildees
cristatildes figuram no polo do bem e enquanto modelo branco satildeo vistas precisamente
como religiotildees Jaacute as religiotildees afro-brasileiras aparecem no polo oposto entendidas
ao contraacuterio como feiticcedilaria ou ldquomacumbariardquo ou seja em alusatildeo ao mal (PORTO
2014187-190) Deste modo este viacutenculo entre preconceito racial e preconceito
religioso somado agrave ldquocondenaccedilatildeo moral da magiardquo a partir da identificaccedilatildeo feita com
ldquoo uso da magia maleacutefica ndash feiticcedilaria ou lsquomagia negrarsquordquo remonta a processos histoacutericos
do periacuteodo colonial Eacute ainda no Brasil colocircnia que se consolida o medo do feiticcedilo no
Brasil direcionado por meio de acusaccedilotildees feitas pelos sujeitos legitimados do sistema
dominante branco e catoacutelico aos natildeo brancos indiacutegenas e negros ou seja aos que
constituiacuteam as alteridades deste modelo (PORTO 2014 191) A imagem do negro
portanto eacute elaborada pela elite a partir de estereoacutetipos negativos que se reforccedilam e
que constroem seu lugar marginal na sociedade Evidencia-se assim a importacircncia
do preconceito para a manutenccedilatildeo da ordem vigente por atribuir argumentos que
legitimariam a exclusatildeo e exploraccedilatildeo desta camada da populaccedilatildeo
O caso do grupo quilombola em questatildeo eacute relevante notar articula estas
referecircncias de religiotildees de matriz afro-brasileiras com expressotildees do catolicismo
popular ou mesmo com o que podemos chamar de ldquocatolicismo negrordquo Esta
articulaccedilatildeo eacute muito presente na religiosidade de Eva quilombola de 50 anos que eacute
detentora de vasta memoacuteria da histoacuteria do grupo76 Ela mora no siacutetio desde seus dois
anos de idade quando seus pais Geraldo e Antocircnia migraram de Satildeo Paulo para o
Paranaacute junto com as demais famiacutelias Eacute casada com Joaquim filho de Manoel Ciriaco
com quem possui certo grau de parentesco consanguiacuteneo (primos de terceiro grau)
Sua devoccedilatildeo eacute reconhecida pelas demais pessoas simbolicamente no fato de ela
cumprir seu ritual cotidiano de rezar o terccedilo de joelhos todos os dias agrave noite depois
de jaacute ter rezado de manhatilde vinte ave-marias (por isso os dois joelhos dela estatildeo
75 A reafirmaccedilatildeo do preconceito teve papel fundamental no momento em que foi abolida a escravidatildeo
no paiacutes sendo que a religiosidade negra eacute um dos pilares que o sustenta Como se pode observar na associaccedilatildeo estrateacutegica realizada por meio da criminalizaccedilatildeo de praacuteticas das religiotildees afro-brasileiras no Coacutedigo Penal de 1890 Interessante notar neste sentido que apesar de os elementos maacutegico-religiosos marcarem toda a religiosidade nacional sua identificaccedilatildeo ficou restrita aos sujeitos natildeo brancos (PORTO 2014 200-201) 76 Lembrando inclusive o ano em que os fatos preteacuteritos aconteceram data de aniversaacuterio de muitos
parentes Eva conversa tranquilamente sobre a genealogia da famiacutelia sabendo contaacute-la a partir da histoacuteria de fixaccedilatildeo do grupo no Paranaacute
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marcados com uma espeacutecie de calo como lembrou sua filha Jaqueline enquanto
conversaacutevamos sobre este assunto)77
Ademais ela frequenta com seu marido Joaquim (55) e suas duas filhas
Jaqueline (20) e Janaina (14) as missas em Guaiacutera apenas uma vez por mecircs apesar
de que gostaria de poder ir mais frequentemente Isso se torna difiacutecil devido ao
dispecircndio com o combustiacutevel necessaacuterio para percorrer o trecho entre o bairro rural
Maracaju dos Gauacutechos e a sede do Municiacutepio distante 20 km Por muitas vezes natildeo
poder se deslocar ela utiliza aleacutem do raacutedio a televisatildeo que transmite missas e
terccedilos78 Antes do conflito ocorrido entre o grupo e os proprietaacuterios vizinhos79 o qual
foi desencadeado pelo processo administrativo de regularizaccedilatildeo quilombola eles
frequentavam a igreja do ldquoMaracajurdquo o que se tornou insustentaacutevel para o grupo Eva
me explicou como ldquoficava sem jeito de ir para a igrejardquo
Dandara Como que foi essa saiacuteda Eva Isso aiacute porque as turma ficou com raiva de noacuteis por causa do negoacutecio do INCRA aiacute cara feia pra noacutes sei laacute eu ficava sem jeito pra ir na Igreja neacute as turma falava assim ldquoah pode ir eles natildeo pode toca ocecircs da igreja a igreja eacute puacuteblica a igreja eacute pra todo mundordquo ningueacutem pode tocar a gente da igreja mas a pessoa fica com vergonha de ir neacute porque eles natildeo conversa com a pessoa nem nada como eacute que a gente vai na igreja Dandara E o padre assim vocecirc sentiu alguma coisa da parte do padre Eva Ah o padre acho que puxava mais pras turma ele veio uma vez na comunidade aqui ele rezou a missa nem conversou muito com noacutes conversou pouco e quando noacutes puxou no assunto aqui das turma ele escapou fora foi embora e natildeo vortocirc mais Dandara A Sra imagina de ter uma igreja aqui Eva Meu sonho menina eacute ter uma Igreja aqui eu falo pro Adir direto eacute meu sonho que tivesse uma igreja perto direto eu tava na igreja
77 Tambeacutem ouve diariamente pelo raacutedio o programa ldquoExperiecircncia de Deusrdquo apresentado pelo Padre
Reginaldo Manzotti enquanto organiza a cozinha em seu ritmo hoje mais lento devido a seu problema de visatildeo Este programa tem uma hora de duraccedilatildeo e conta com a participaccedilatildeo de ouvintes leitura biacuteblica que Eva acompanha com sua biacuteblia em matildeos aleacutem da realizaccedilatildeo de novena 78 Eva contou que na sexta-feira santa como ela natildeo pocircde ir na ldquoprocissatildeo do Senhor Mortordquo ela
benzeu pela tv um ramo de aacutervore Esta procissatildeo antigamente era acompanhada por muitas pessoas do grupo e ldquouma renca de gente aqui da comunidade ia a peacute ateacute Terra Roxardquo municiacutepio vizinho agrave Guaiacutera cuja sede fica mais proacutexima ao siacutetio Os meios de comunicaccedilatildeo de massa portanto satildeo utilizados como em outras comunidades tradicionais com presenccedila de catoacutelicos para que se possa ter acesso a ritos religiosos e praacuteticas em certa medida maacutegicas como a benzeccedilatildeo de aacutegua 79 O tema do conflito ocorrido em 2009 e 2010 com os proprietaacuterios vizinhos seraacute abordado no proacuteximo
capiacutetulo
90
Apesar de natildeo poder mais frequentar a igreja com a frequecircncia que gostaria
isso natildeo diminui a vivecircncia cotidiana que ela tem de sua feacute Por outro lado as pessoas
do Maracaju dos Gauacutechos que estatildeo indo na igreja na visatildeo de Eva natildeo tecircm uma
atitude cristatilde Isso porque mesmo dentro da missa satildeo movidos por sentimentos de
discriminaccedilatildeo e de orgulho o que acabou fazendo com que os membros da
comunidade natildeo se sentissem mais confortaacuteveis para continuar frequentando tal
igreja
Em relaccedilatildeo ao preconceito racial que ateacute hoje sofrem no ldquoMaracaju dos
Gauacutechos ele se estende inclusive a Nossa Senhora Aparecida santa negra de quem
a comunidade eacute devota Neste sentido Joaquim me contou uma histoacuteria sobre uma
senhora que havia se mudado para bairro rural e que tinha feito uma promessa para
Nossa Senhora Aparecida Ela foi de ocircnibus com a famiacutelia agrave Basiacutelica em AparecidaSP
e de laacute trouxe uma imagem e tinha o desejo de colocaacute-la na igreja do Maracaju Mas
como a maioria dos moradores satildeo descendentes de imigrantes europeus com
atitudes consideradas racistas pelos quilombolas eles natildeo aceitaram a santa
alegando que ela era a ldquoNossa Senhora dos Morcegosrdquo em referecircncia a ser uma santa
negra Joaquim concluiu afirmando que se eles tinham raiva da santa que natildeo lhes
poderia fazer nenhum mal ele imaginava entatildeo o quanto tinham raiva das pessoas
da comunidade Mas ele acrescentou que posteriormente houve outra pessoa que
fez uma promessa e que entatildeo eles acabaram tendo que aceitar colocar a santa na
igreja do Maracaju Nossa Senhora Aparecida eacute natildeo somente negra mas tambeacutem a
padroeira do Brasil A devoccedilatildeo a ela eacute muito grande em todo o paiacutes (sendo um
exemplo a relevacircncia das romarias a Aparecida do Norte inclusive entre os membros
do grupo) A recusa agrave santa negra eacute sentida de uma forma particular pela comunidade
mas a resistecircncia dos vizinhos europeus natildeo pode se sustentar embora natildeo tenha
sido vencida por um membro da comunidade mas por uma pessoa natildeo identificada
Importante neste momento pontuar que uma anaacutelise aprofundada das
concepccedilotildees e praacuteticas religiosas da comunidade demandaria um capiacutetulo inteiro desta
dissertaccedilatildeo No entanto objetivo analisar neste subitem alguns aspectos dentro
deste universo religioso que sobressaem atraveacutes das dinacircmicas de movimento
(concretas e natildeo-concretas) e de comunicaccedilatildeo entre expressotildees religiosas Durante
o trabalho de campo fui me tornando mais atenta para situaccedilotildees e narrativas que
apontavam como as percepccedilotildees quilombolas sobre diferentes praacuteticas religiosas natildeo
91
eram descontiacutenuas ou antagocircnicas mas permeadas por diaacutelogos permanentes e
proacuteximos o que eacute comum observar em contextos de religiosidade popular80 O
movimento tambeacutem permeia a accedilatildeo religiosa dos membros da comunidade por meio
da praxe dedicada agrave circulaccedilatildeo entre pessoas e santos (permeada por promessas)
bem como em relaccedilatildeo agraves entidades da umbanda (por meio de pedidos oferendas e
obrigaccedilotildees) Esta dimensatildeo relacional vai tecendo uma socialidade comum entre
sujeitos que embora hieraacuterquica natildeo eacute irrevogaacutevel Em contraposiccedilatildeo a dinacircmica
estabelecida entre Deus e fiel eacute constituiacuteda pela distacircncia equivalente agrave relaccedilatildeo entre
sujeito e objeto (CALAVIA SAEZ 2009 p 204-205) As viagens rituais para o
pagamento de promessas para o santuaacuterio de Nossa Senhora Aparecida localizado
no municiacutepio de AparecidaSP tambeacutem apontam para a importacircncia do movimento no
contato com o sagrado como nas experiecircncias de peregrinaccedilatildeo e romaria (TURNER
2008 p 155-214)
Haacute muitas histoacuterias no grupo de promessas feitas a Nossa Senhora Aparecida
que foram atendidas Uma delas a primeira que Eva me contou foi feita por sua sogra
Ana Rodrigues esposa de Manoel Ciriaco Interessante notar que quando Eva foi me
contar como a promessa veio a se cumprir ou seja quando Joaquim enfim conseguiu
parar de beber o contexto passou a trazer elementos e entidades da Umbanda
demonstrando a continuidade a que nos referimos acima D Ana pediu agrave santa que
seu filho Joaquim marido de Eva parasse com o viacutecio com bebidas alcoacuteolicas
Mandou entatildeo fazer uma capelinha para a imagem da santa e quando Eva e Joaquim
se casaram ela lhes deu de presente A cura de Joaquim do viacutecio no entanto veio
de um modo inesperado e assustador Tudo aconteceu quando Joaquim tinha parado
de fazer suas obrigaccedilotildees com os Orixaacutes pois costumava ascender vela e defumar a
casa Um dia ele incorporou ldquoSeu Tranca Ruardquo (Exu) que chegou e falou para Eva
que iria jogar seu ldquopeacute-de-calccedilardquo81 embaixo de quatro rodas Neste momento a
entidade estava se referindo ao fato de que ela iria provocar um acidente com o seu
cavalo (o meacutedium) ou seja Joaquim E o que a entidade falou acabou acontecendo
80 Segundo a criacutetica do antropoacutelogo Calavia Saez ldquoa religiatildeo popular eacute a religiatildeo normal natildeo uma
versatildeo empobrecida de algo que se manifesta alhures com maior eficiecircncia ndash algo que boa parte dos estudos sobre religiatildeo subalterna manifesta agrave revelia do paradigma em que se desenvolvemrdquo (CALAVIA SAEZ 2009 p 201) 81 Essa expressatildeo ldquopeacute-de-calccedilardquo eacute utilizada no terreiro de Umbanda para se referir aos homens como me explicou Geralda Depois que eu assisti uma gira no seu terreiro e me consultei com a Preta-Velha que ela tinha incorporado Geralda me esclareceu a duacutevida sobre o significado dessa expressatildeo que a entidade tinha falado para mim
92
Eva me contou que um dia quando Joaquim estava becircbado ele e seu irmatildeo Adir
estavam lidando com o trator quando Joaquim caiu e o trator acabou passando em
cima da perna dele Ele soacute natildeo perdeu a perna neste acidente porque estava com
uma calccedila jeans nova que resistiu e protegeu a perna que ficou pendurada Eva
sonhou com Nossa Senhora Aparecida que lhe disse que natildeo seria necessaacuterio
amputar a perna dele Joaquim ficou vaacuterios dias no hospital e depois por meses em
recuperaccedilatildeo em casa Soacute assim com o susto provocado pelo acidente com o trator
que Joaquim parou de beber e a promessa da sua matildee foi entatildeo atendida
FIGURA 16 Capelinha para Nossa Sordf Aparecida presenteada por D Ana
Pode-se observar portanto que haacute uma comunicaccedilatildeo total entre estes seres
no universo maacutegico-religioso do grupo em uma histoacuteria em que a entidade da
Umbanda um Exu aparece como mediadora para o cumprimento de uma promessa
feita para Nossa Senhora Aparecida o que aponta um marcador de identidade
significativo em contraponto com um ldquooutro catolicismordquo dos vizinhos
O pai de Eva Geraldo tambeacutem foi um dos beneficiados com as graccedilas de
uma promessa atendida por Nossa Senhora Aparecida em mais uma relaccedilatildeo pessoal
bem-sucedida entre santos e fieacuteis Segundo Eva me contou ele pediu agrave santa para
que fosse capaz de aprender a ler e a escrever e que conseguisse comprar um pedaccedilo
93
de terra Aleacutem de ter aprendido o que pediu esse pedaccedilo de terra conquistado foram
os cinco alqueires que ele comprou no Maracaju dos Gauacutechos Deste modo esta
promessa aparece como um mito de origem da comunidade que fortalece a devoccedilatildeo
a Nossa Senhora Aparecida jaacute confirmada por outras promessas atendidas que me
foram narradas
FIGURA 17 Geraldo em 1972 quando foi pagar sua promessa em AparecidaSP
Eva me contou tambeacutem sobre quando ela e Joaquim foram em romaria a
Basiacutelica de Nossa Senhora Aparecida em AparecidaSP82 para pagar a promessa que
ele tambeacutem tinha feito para que ele conseguisse parar de beber Ela percebeu
sensaccedilotildees fiacutesicas diferentes ao chegar laacute o que reforccedila o sentimento de que se estaacute
diante de um local sagrado o corpo fica leve e a pessoa natildeo tem pensamentos
82 O Santuaacuterio Nacional eacute o ldquomaior santuaacuterio mariano do mundordquo construiacutedo em 1955 ldquoPreocupados
em providenciar o jantar para o poderoso Conde de Assumar de passagem pela Vila de Guaratinguetaacute trecircs pescadores retiraram com suas redes do Rio Paraiacuteba do Sul uma imagem de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo A imagem ficou abrigada durante anos na casa de um dos pescadores ateacute que em 1745 foi construiacuteda uma capela no Morro dos Coqueirosrdquo Disponiacutevel em httpaparecidaspgovbrhistoria-da-cidade Acesso em 01092014
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Contou que era preciso pagar trecircs reais para subir ateacute o local onde fica a imagem da
santa que foi encontrada no rio onde tambeacutem ficam expostas as correntes dos
escravos Eva assim como Joaquim entende que eacute possiacutevel circular entre as religiotildees
e que se deve respeitar a todas Faz tempo que ela natildeo vai no terreiro de Umbanda
mas jaacute frequentou e sabe contar em quais dias satildeo realizadas as festas das entidades
como Preto Velho Cosme e Damiatildeo e Zeacute Pilintra Em sua casa possui uma imagem
de Satildeo Cosme e Damiatildeo os santos gecircmeos sincretizados com os orixaacutes ibejis
divindade gecircmea na mitologia yorubaacute (PRANDI 2001366-377)
Quando fui ao terreiro de Umbanda com a Geralda como estava ficando na
casa de Eva e Joaquim no siacutetio conversamos sobre este assunto quando voltei
Joaquim entatildeo contou-me sobre uma mulher de Terra Roxa municiacutepio vizinho que
antes de plantar oferecia as ervas para cada santo e entatildeo a muda dava ldquoTudo tem
um misteacuteriordquo e aquelas pessoas que tecircm matildeo boa sabem disso portanto quando vai
fazer o plantio do milho por exemplo eacute importante ter feacute para ter uma boa colheita Eacute
necessaacuterio ter matildeo boa tambeacutem para fazer o patildeo crescer para fazer vinagre de
mamona e para fazer sabatildeo83 reforccedilando como a intenccedilatildeo da pessoa que prepara
interfere no resultado obtido Eva tambeacutem eacute conhecedora da preparaccedilatildeo de
garrafadas que satildeo remeacutedios caseiros ensinados pelos antigos Mesmo entre aqueles
que natildeo frequentam atualmente terreiro de Umbanda percebe-se como a
religiosidade eacute maacutegica e eacute permeada por ritos de proteccedilatildeo relacionados com um
ldquocatolicismo negrordquo brasileiro
Ao olhar para o futuro Eva fala de uma mudanccedila que ocorreraacute na percepccedilatildeo
sobre as religiotildees pois segundo me contou no Apocalipse o fim do mundo estaacute
anunciado que todas as religiotildees seratildeo uma soacute jaacute que Deus eacute um soacute Este Deus uacutenico
aponta como sua a concepccedilatildeo de religiatildeo tem por base o cristianismo
Eva Eu Dandara natildeo desfaccedilo de nenhum tem gente que natildeo gosta assim de esprito assim os evangeacutelico tem gente que natildeo gosta Eu natildeo pra mim tudo eacute um soacute Tem gente que fala ldquoah eu natildeo gosto de crenterdquo Eu natildeo eu natildeo falo Porque quando no fim do mundo ateacute o pastor falou isso a igreja vai ser tudo uma soacute vai unir todo mundo junto Deus natildeo separou ningueacutem neacute Deus eacute um soacute Tem gente que natildeo acredita Eu natildeo eu natildeo desfaccedilo de nenhuma eu gosto tudo igual
83 Nesse sentido interessante que na pesquisa realizada por Cambuy na comunidade quilombola Joatildeo
Suraacute em AdrianoacutepolisPR o sabatildeo eacute tido como um preparo que eacute louco de reineiro pois entre todos eacute o mais faacutecil de reinar ou seja natildeo daacute certo se a pessoa que fizer ldquonatildeo tiver o coraccedilatildeo bomrdquo ou se for alvo de olho gordo sendo necessaacuterio para o sucesso do sabatildeo que seja feito em um contexto harmocircnico (CAMBUY 2011 250-252)
95
No entanto quando um pastor que agraves vezes realizava cultos na comunidade
(que mesmo com a forte presenccedila de praacuteticas afro-brasileiras natildeo tem dificuldade de
dialogar com os crentes) quis batizaacute-la ela contou que se negou ldquoAh eu natildeo batizo
na religiatildeo nisso aiacute natildeo Ele queria que eu batizasse na lei de crente mas eu natildeo jaacute
sou batizada desde pequena vou batizar outro batismo pra quecirc rdquo Haacute portanto uma
perspectiva da religiatildeo como abrangente natildeo havendo neste caso contradiccedilatildeo entre
denominaccedilotildees e frequecircncias a espaccedilos diversos No entanto haacute tambeacutem a
necessidade de uma escolha oficial que no caso de Eva se daacute pela religiatildeo catoacutelica
A religiosidade do grupo aponta assim para uma perspectiva proacutepria de um
universo negro que natildeo estabelece fronteiras claras entre as religiotildees mas uma
interdependecircncia constante Como tentamos demonstrar ao longo deste subitem
estas experiecircncias falam de dinacircmicas de movimento natildeo soacute no diaacutelogo entre esferas
religiosas mas de movimentos concretos como nas viagens realizadas para
pagamentos de promessas movimentos estabelecidos na relaccedilatildeo entre devoto e
santo entre meacutedium e entidades espirituais Estas praacuteticas falam de uma memoacuteria
corporal performaacutetica e ritual que constitui parte essencial da relaccedilatildeo que
estabelecem com o passado e da forma de atualizaacute-lo no presente Religiosidade que
marca a relaccedilatildeo entre negritude opressatildeo e santidade significativa nos discursos de
grupos quilombolas sobre sua relaccedilatildeo com o sagrado (PORTO 2007)
96
2 IDENTIDADE QUILOMBOLA E RELATOacuteRIOS ANTROPOLOacuteGICOS
Quando os funcionaacuterios do governo do Paranaacute chegaram ateacute as famiacutelias em
questatildeo em GuaiacuteraPR e lhes apresentaram a possibilidade de reivindicaccedilatildeo da
identidade quilombola nunca tinham ouvido falar neste termo ou sequer imaginavam
que poderiam reivindicar algum direito de um Estado que segundo afirmam nunca
lhes enxergou ou lhes protegeu pelo contraacuterio Esta situaccedilatildeo inesperada causou
muita duacutevida e inseguranccedila sobre acionar ou natildeo a autodeclaraccedilatildeo como quilombolas
tendo em vista os riscos e as consequecircncias da opccedilatildeo por este caminho Quando
optaram por trilhaacute-lo entraram aos poucos em mais uma trajetoacuteria de movimento
agora de inserccedilatildeo e circulaccedilatildeo em novas esferas sociais tanto concretas quanto
simboacutelicas
Passaram entatildeo a ter que lidar com uma linguagem estatal e burocraacutetica que
desconheciam com uma organizaccedilatildeo em termos poliacuteticos por meio de uma
associaccedilatildeo juriacutedica ndash que os integrou formalmente como sujeito coletivo ndash e neste
processo Adir como lideranccedila da comunidade desde entatildeo foi convidado a realizar
vaacuterias viagens como representante quilombola tanto no Paranaacute como em outros
estados Com a pauta de reivindicaccedilatildeo territorial foi desencadeada uma redefiniccedilatildeo
das relaccedilotildees locais vindo agrave tona de forma impactante processos de tensatildeo antes
latentes na convivecircncia com os proprietaacuterios vizinhos Por outro lado houve tambeacutem
uma ampliaccedilatildeo significativa de relaccedilotildees para aleacutem das dinacircmicas locais ndash um aspecto
considerado pelos quilombolas como muito positivo ndash pois a inserccedilatildeo no movimento
quilombola os colocou em contato com outras comunidades e inclusive proporcionou
uma retomada de viacutenculos dentro da proacutepria famiacutelia reconectando-os com sua regiatildeo
de origem em Minas Gerais por meio da realizaccedilatildeo das viagens de volta que seratildeo
abordadas no terceiro capiacutetulo
No entanto a peculiaridade de um grupo marcado por dinacircmicas de
movimento e que se reconhece como quilombola a partir de um viacutenculo com uma
regiatildeo de origem na qual natildeo mais habitam ndash pois de laacute saiacuteram em trajetoacuterias seguidas
de deslocamentos como vimos no capiacutetulo anterior ndash colocou um grande desafio e
quase um empecilho para o tracircmite do processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria do grupo
junto ao oacutergatildeo responsaacutevel o Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria
97
(INCRA) O caso da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos como
veremos nos permite o aprofundamento de uma reflexatildeo muito importante sobre ateacute
que ponto o reconhecimento da diversidade sociocultural estaacute de fato presente nos
processos e procedimentos administrativos bem como na compreensatildeo dos agentes
que atuam em nome do Estado nesta temaacutetica Sobre esta delicada questatildeo a
antropoacuteloga Miriam Chagas argumenta que
() a sociedade moderna admitiria uma uacutenica foacutermula minimizada de reconhecimento das diferenccedilas ou seja a mera conversatildeo da igualdade em identidade Essa consideraccedilatildeo aponta para uma questatildeo de difiacutecil tratamento pois o proacuteprio conceito de identidade ndash tambeacutem cultural ndash seria fruto da configuraccedilatildeo ideonormativa do sistema de valores da sociedade moderna (CHAGAS 2001 p 232)
Deve-se levar em conta que antes da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 o
ordenamento juriacutedico nacional negava a diversidade cultural da populaccedilatildeo brasileira
procurando homogeneizaacute-la A partir da consolidaccedilatildeo em 1988 de ldquodireitos eacutetnicosrdquo
enquanto garantias constitucionais iniciou-se um novo momento de reconhecimento
formal e consolidaccedilatildeo do acesso a tais direitos Os agentes do Estado daiacute em diante
ao classificarem em legislaccedilotildees categorias como ldquoquilombolasrdquo ldquoindiacutegenasrdquo ldquopovos e
comunidades tradicionaisrdquo precisam considerar que natildeo estatildeo apenas a nomear e a
reconhecer tais grupos mas tambeacutem estatildeo produzindo alteridades Marcadas ldquopela
qualidade de lsquoprimitivorsquo lsquotradicionalrsquo e correlatosrdquo estas categorias criam e
caracterizam o que nomeiam ao oporem um quadro classificatoacuterio de definiccedilatildeo e
redefiniccedilatildeo da alteridade com desdobramentos na emergecircncia de novos sujeitos
poliacuteticos organizados (ARRUTI 2006 51-53) Eacute a partir da sobrecodificaccedilatildeo e
normatizaccedilatildeo estatal portanto que tais grupos estaratildeo categorizados e seu
reconhecimento territorial seraacute regulado em procedimentos administrativos atraveacutes de
regulamentaccedilatildeo infraconstitucional
Estes sujeitos coletivos se mobilizam em unidades sociais a partir de um
pertencimento comum que funda uma identidade coletiva em processos de
autodefiniccedilatildeo referenciados nas categorias juridicamente reconhecidas Esta
mobilizaccedilatildeo poliacutetica que se desenrola principalmente em torno da luta pela garantia
dos territoacuterios ocupados tradicionalmente tambeacutem gera efeitos por meio de pressotildees
de movimentos sociais articulados ao tensionar o centro de poder do Estado Neste
processo estes grupos sociais vatildeo atribuindo seus proacuteprios sentidos aos conceitos
98
geneacutericos de reconhecimento como ldquoquilombolasrdquo os quais satildeo acionados em uma
vasta gama de situaccedilotildees para expressar diversos significados
Uma multiplicidade de metaacuteforas eacute portanto atribuiacuteda aos signos eacutetnicos no
processo social da etnicidade pelos grupos sociais que reivindicam ldquodireitos de uma
cidadania diferenciada ao Estado brasileirordquo (OrsquoDWYER 2009 p 175) Este processo
de reivindicaccedilatildeo vai gerando uma maximizaccedilatildeo da alteridade ndash por meio da
diferenciaccedilatildeo de sentidos ndash mesmo no acircmbito instituiacutedo de padronizaccedilatildeo estatal Esta
maximizaccedilatildeo eacute necessaacuteria porque ldquoas unidades de descriccedilatildeo das populaccedilotildees
submetidas respondem ao custo de uma brutal reduccedilatildeo de sua alteridade agraves
necessidades de produccedilatildeo de unidades geneacutericas de intervenccedilatildeo e controle socialrdquo
(ARRUTI 1997 p 20) Haacute que se refletir sobre ateacute que ponto
() quilombo expressa a dimensatildeo poliacutetica da identidade negra no Brasil ou ele eacute uma nova reduccedilatildeo brutal da alteridade dos diferentes grupos que sob este prisma teriam que se adequar a um conceito geneacuterico para novos propoacutesitos de intervenccedilatildeo e controle social (LEITE 2000 p 343)
De forma anaacuteloga ao que ocorreu com os povos indiacutegenas com o
estabelecimento de um certo padratildeo de ldquoindianidaderdquo ndash imposto pelo oacutergatildeo estatal e
que acaba sendo assumido como padratildeo de comportamento dos grupos em questatildeo
ndash podemos observar a existecircncia tambeacutem de um modelo de ldquoquilombolidaderdquo com
uma determinada forma de compreender quem satildeo os ldquoquilombolasrdquo a partir da qual
se estabelece procedimentos padronizados para lidar com esta diversidade (ARRUTI
1997 p 41) Esta necessidade de limitar a complexidade social para definir de modo
impositivo quem seriam os destinataacuterios do direito territorial reconhecido
constitucionalmente mostra marcas de um colonialismo interno que em muito ainda
manteacutem ldquouma praacutetica de dominaccedilatildeo intimamente ligada agrave ideologia da concentraccedilatildeo
fundiaacuteria como sinocircnimo de progresso numa economia agroexportadorardquo (ALMEIDA
2011 p 07-13)
No caso do direito territorial das comunidades quilombolas o primeiro marco
normativo foi estabelecido na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 mas natildeo em seu corpo
permanente e sim no Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) pelo
artigo 68 ldquoaos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras eacute reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-
99
lhes os tiacutetulos respectivosrdquo84 A partir de 2003 com o Decreto Federal 4887 assinado
no primeiro ano de mandato do entatildeo Presidente Lula a questatildeo quilombola ganha
forccedila e passa por uma estruturaccedilatildeo paulatina no Governo Federal A competecircncia
para titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas eacute atribuiacuteda ao INCRA no acircmbito do Ministeacuterio
do Desenvolvimento Agraacuterio o qual passa a incidir diretamente na questatildeo fundiaacuteria
das comunidades quilombolas em todo o Brasil
O conceito de quilombo imposto arbitrariamente no periacuteodo colonial enquanto
tipo penal para reprimir escravos fugidos85 demandou novos procedimentos
interpretativos ao se tornar uma categoria para reconhecimento de sujeitos de direitos
no presente Deve haver assim um deslocamento conceitual sobre as ideias de
quilombo como sobrevivecircncia e reminiscecircncia para que se possa compreender o que
satildeo as comunidades que se reconhecem como quilombolas hoje e como construiacuteram
sua autonomia historicamente (ALMEIDA 2011 p 64) Para tal reconfiguraccedilatildeo
conceitual a perspectiva antropoloacutegica tem contribuiccedilatildeo fundamental e se contrapocircs
por exemplo agraves limitaccedilotildees trazidas pelo Decreto Federal 3912 de 2001 obra do
governo do entatildeo presidente Fernando Henrique Cardoso
Nesta regulamentaccedilatildeo em forma de decreto do artigo 68 do ADCT realizada
em 2001 natildeo se reconhecia a autoatribuiccedilatildeo identitaacuteria pelos proacuteprios grupos sociais
Ao partir de um criteacuterio de heteroidentidade o decreto reproduzia a recusa da titulaccedilatildeo
definitiva das comunidades quilombolas sendo que durante a vigecircncia deste
instrumento no periacuteodo de dois anos nenhuma titulaccedilatildeo foi realizada Foram
estabelecidas condiccedilotildees restritivas como
(a) a manutenccedilatildeo da competecircncia da Fundaccedilatildeo Cultural Palmares (FCP) para
titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas o que limitava o direito territorial unicamente agrave
dimensatildeo cultural Esta atribuiccedilatildeo de competecircncia a FCP impossibilitava a efetivaccedilatildeo
da desapropriaccedilatildeo fundiaacuteria necessaacuteria
84 Esta parte da Constituiccedilatildeo na qual foi inserido o artigo 68 o ADCT consiste em um ato para regulaccedilatildeo da transiccedilatildeo entre regimes constitucionais o que revela a dificuldade em pautar esta temaacutetica que natildeo constou no corpo do texto principal da Constituiccedilatildeo No entanto segundo os juristas que se utilizam do modo de interpretaccedilatildeo sistemaacutetica da Constituiccedilatildeo este fato natildeo minimiza a eficaacutecia da norma enquanto garantidora de um direito fundamental Sobre o debate doutrinaacuterio e jurisprudencial acerca da temaacutetica ver SOUZA 2013 85 O Conselho Ultramarino Portuguecircs de 1740 definia quilombo como ldquotoda habitaccedilatildeo de negros fugidos que passem de cinco em parte desprovida ainda que natildeo tenham ranchos levantados ou se achem pilotildees nelesrdquo (LEITE 2000 p 336)
100
(b) a aplicaccedilatildeo do direito apenas para o caso das terras que jaacute estavam
ocupadas por quilombos em 1888 data da aboliccedilatildeo da escravidatildeo e que
continuassem ocupadas por ldquoremanescentesrdquo em 1988 quando da promulgaccedilatildeo da
Constituiccedilatildeo Federal Trata-se no entanto de duas datas arbitraacuterias do calendaacuterio do
Estado que por si soacute natildeo produziram ldquoa instituiccedilatildeo de um novo estado de coisas na
sociedaderdquo e que somadas estabeleceram um requisito temporal arbitraacuterio
colocando a necessidade de comprovaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo por cem anos para a
aquisiccedilatildeo do direito (MILANO 2011 p 97)
Em um contexto em que eacute o Estado no exerciacutecio de um poder tutelar que
define se um grupo eacute ou natildeo quilombola dentro desta perspectiva da heteroidentidade
estabelecida no decreto federal de 2001 a interlocuccedilatildeo do fazer antropoloacutegico dentro
do procedimento administrativo de titulaccedilatildeo seria direcionada para a produccedilatildeo de
laudos que teriam uma funccedilatildeo dupla de investigaccedilatildeo primeiro do da legitimidade do
reconhecimento eacutetnico da identidade reivindicada pelo grupo para entatildeo analisar o
reconhecimento territorial
Um novo cenaacuterio vem agrave tona com a ratificaccedilatildeo da Convenccedilatildeo 169 sobre Povos
Indiacutegenas e Tribais da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) por meio do
Decreto Legislativo nordm 143 de 200286 de modo que passa a ser incorporado no
ordenamento juriacutedico nacional o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo na identificaccedilatildeo de grupos
eacutetnicos Este criteacuterio foi previsto entatildeo no Decreto Federal 4887 de 2003 ndash tendo
revogado o decreto anterior 3912 de 2001 ndash o qual estaacute atualmente em vigor e
regulamenta os procedimentos para a titulaccedilatildeo territorial quilombola de
responsabilidade do INCRA
Com o Decreto 4883 de 2003 ndash que precedeu o Decreto 4887 tambeacutem de
2003 ndash a competecircncia para titulaccedilatildeo quilombola havia sido transferida da Fundaccedilatildeo
Cultural Palmares (FCP) para o INCRA Esta mudanccedila teve uma repercussatildeo positiva
pois este oacutergatildeo federal eacute o que possui atribuiccedilatildeo para ordenaccedilatildeo da estrutura fundiaacuteria
nacional podendo realizar assim desapropriaccedilotildees com o intuito de efetivar as
titulaccedilotildees quilombolas Entretanto o INCRA natildeo possuiacutea estrutura institucional para
lidar com demandas de caraacuteter eacutetnico ndash em contraste com a Fundaccedilatildeo Cultural
86 Aleacutem do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo a ratificaccedilatildeo da Convenccedilatildeo 169 trouxe outras inovaccedilotildees significativas para o ordenamento juriacutedico nacional sobre as quais natildeo iremos nos aprofundar neste trabalho Sobre este tema ver MILANO 2011
101
Palmares (FCP) e a Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI) oacutergatildeos federais que jaacute
contavam com ampla experiecircncia de trabalho com demandas eacutetnicas
Com uma nova conjuntura estabelecida pela incorporaccedilatildeo do criteacuterio de
autoatribuiccedilatildeo nos processos de regularizaccedilatildeo territorial os laudos antropoloacutegicos
deixam de exercer a funccedilatildeo de ldquoreconhecimento eacutetnico-territorialrdquo para assumir a
funccedilatildeo apenas de ldquoreconhecimento territorialrdquo (ARRUTI 2006 p 27-32) pois o
reconhecimento eacutetnico passou a ser definido pela autoidentificaccedilatildeo dos proacuteprios
grupos sociais A questatildeo deixa de ser a quem se aplica o direito para quais satildeo os
grupos que dirigem suas reivindicaccedilotildees a estes direitos ou ainda quem satildeo os sujeitos
que orientam suas accedilotildees a partir do sentimento de pertencer a um grupo especiacutefico
quilombola O criteacuterio de autoidentificaccedilatildeo estaacute de acordo com a perspectiva
antropoloacutegico de que os grupos eacutetnicos satildeo entidades autodefinidas e de que ldquoas
etnicidades demandam uma visatildeo construiacuteda de dentro e elas natildeo tecircm relaccedilotildees
imperativas com qualquer criteacuterio objetivordquo (OrsquoDWYER 2011 p 113)87
Eacute por meio dos processos de emergecircncia de novas identidades sociais que o
passado e as narrativas histoacutericas da memoacuteria coletiva vatildeo ser articulados de modo
ldquopoliacutetica e socialmente operacionaisrdquo no sentido de subsidiar as reivindicaccedilotildees
identitaacuterias (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 22) Assim como natildeo haacute criteacuterios
objetivos para a definiccedilatildeo da etnicidade natildeo haacute tambeacutem um passado pronto que
vecircm agrave tona Ademais eacute por meio destes novos contextos de interaccedilatildeo que as
diferenccedilas culturais seratildeo percebidas pelos proacuteprios sujeitos como socialmente
significativas (BARTH 2011)
Neste cenaacuterio de reconhecimento de direitos eacutetnicos a interlocuccedilatildeo do saber
antropoloacutegico com o juriacutedico tem se potencializado mas natildeo sem ambivalecircncias A
participaccedilatildeo de antropoacutelogos como peritos em procedimentos de reconhecimento
territorial tem sido fundamental para a realizaccedilatildeo de ldquoestudo in loco dos processos
pelos quais emergem os grupos negrosrdquo (LEITE FERNANDES 2006 p 09-10) A
antropologia tem contribuiacutedo portanto com seu acuacutemulo teoacuterico que passa a ser
colocado a serviccedilo das instituiccedilotildees puacuteblicas o que torna necessaacuteria por conseguinte
a ldquobusca por paracircmetros de avaliaccedilatildeo e execuccedilatildeo para a antropologia e antropoacutelogosrdquo
em um novo acircmbito de profissionalizaccedilatildeo
87 Este eacute um aspecto central discutido pela tradiccedilatildeo teoacuterica da antropologia cuja referecircncia fundamental
eacute o antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth com seu texto Grupos eacutetnicos e suas fronteiras publicado inicialmente em 1969 (BARTH 2011)
102
Para a elaboraccedilatildeo de tais paracircmetros eacute preciso que haja ampla discussatildeo
divulgaccedilatildeo e debate acerca dos trabalhos de periacutecia criando assim um espaccedilo de
reflexatildeo criacutetica dentro da disciplina antropoloacutegica capaz de responder a tais demandas
geradas na interface entre o saber juriacutedico e antropoloacutegico visando que ldquoo campo se
consolide e este instrumento (o relatoacuterio antropoloacutegico) seja cada vez mais eficaz no
contexto e objetivos a que se propotildeerdquo (LEITE FERNANDES 2006 p 09-10) Este eacute
o principal objetivo deste segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo no qual pretendo analisar
comparativamente os dois relatoacuterios antropoloacutegicos produzidos sobre a ldquoComunidade
Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo
Ambos os relatoacuterios foram produzidos no acircmbito do Procedimento
Administrativo (PA) 542000010752008-46 de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria que tramita na
Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute instaurado em 24 de abril de 2008 O primeiro
relatoacuterio foi produzido por meio do convecircnio do INCRA com a Universidade Estadual
do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE) tendo a versatildeo final sido encaminhada a este oacutergatildeo
federal em 29 de outubro de 2010 Os argumentos levantados iam de encontro agraves
premissas da autoatribuiccedilatildeo questionando assim a legitimidade da reivindicaccedilatildeo
identitaacuteria e territorial da comunidade Este relatoacuterio foi recusado pelo INCRA com
base em vaacuterios argumentos dentre os quais destaco o fato de os autores terem
apresentado ldquobaixa qualidade teacutecnica e antropoloacutegicardquo e natildeo terem cumprido ldquocom os
termos do convecircnio e da IN 492008rdquo 88
Este primeiro relatoacuterio que seraacute a partir de agora denominado de ldquorelatoacuterio
anti-antropoloacutegicordquo nesta dissertaccedilatildeo foi posteriormente retirado do procedimento de
regularizaccedilatildeo territorial do grupo passando a constar apenas no procedimento
referente agrave finalizaccedilatildeo e tomada de contas do convecircnio com a UNIOESTE
(Procedimento Administrativo nordm 542000023842008-33) Dentre os argumentos
levantados questionando a legitimidade da reivindicaccedilatildeo da comunidade destaca-se
o entendimento de que natildeo havia ancestralidade de ocupaccedilatildeo de um mesmo territoacuterio
e que aquele natildeo era um territoacuterio quilombola tendo em vista por exemplo a
inexistecircncia de registros histoacutericos de escravidatildeo negra na regiatildeo de GuaiacuteraPR
Em decorrecircncia do trabalho do INCRA com a comunidade houve o
desencadeamento de um seacuterio conflito causado pela mobilizaccedilatildeo dos proprietaacuterios
88 Instruccedilatildeo Normativa que regia o procedimento de titulaccedilatildeo quilombola no INCRA na eacutepoca da
produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico
103
vizinhos contraacuterios agraves reivindicaccedilotildees quilombolas sendo que a lideranccedila do grupo foi
ameaccedilada de morte vaacuterias vezes em um clima de forte tensatildeo e animosidade Em
resposta a esta situaccedilatildeo de inseguranccedila e agrave recusa do primeiro relatoacuterio o INCRA
contratou um segundo relatoacuterio antropoloacutegico que foi produzido pela empresa Terra
Ambiental Esta empresa foi a vencedora do pregatildeo eletrocircnico realizado pela
Coordenaccedilatildeo Geral de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolas (DFQ) da sede do
INCRA em Brasiacutelia tendo em vista a urgecircncia deste processo de regularizaccedilatildeo
territorial em GuaiacuteraPR A versatildeo final do segundo relatoacuterio foi encaminhada em 15
de julho de 2013 E avaliado em sua consonacircncia com a instruccedilatildeo normativa em vigor
572009 o relatoacuterio antropoloacutegico foi aprovado e incorporado ao Relatoacuterio Teacutecnico de
Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID)89 da comunidade
A pesquisa para produccedilatildeo de um novo relatoacuterio antropoloacutegico teve que lidar
com as questotildees provocadas pelo primeiro estudo e sua recusa em reconhecer a
autoidentificaccedilatildeo do grupo como quilombolas Como resposta a equipe de
pesquisadores contratados pela empresa Terra Ambiental realizou um levantamento
acerca das memoacuterias coletivas do grupo sobre sua origem mineira deslocando o
historiador Cassius Cruz ateacute a regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG de onde as
famiacutelias satildeo provenientes Atraveacutes deste levantamento de informaccedilotildees em Minas
Gerais foi possiacutevel apontar os viacutenculos e as referecircncias comuns de memoacuteria entre a
comunidade de Guaiacutera e comunidades quilombolas desta regiatildeo mineira bem como
levantar possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco com a Comunidade Quilombola Vila Nova
localizada em SerroMG especificamente
89 O RTID eacute um conjunto de peccedilas teacutecnicas que eacute produzido pelo INCRA no acircmbito do procedimento administrativo para regularizaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas O relatoacuterio antropoloacutegico eacute a primeira peccedila teacutecnica do RTID (o qual eacute composto por outros estudos) e tem como objetivo ldquocaracterizarrdquo a comunidade quilombola e o territoacuterio reivindicado conforme a Instruccedilatildeo Normativa 57 de 2009 que regulamenta o procedimento De um modo mais geral sobre as etapas que compotildeem o processo de titulaccedilatildeo tem-se que ldquoa primeira parte dos trabalhos do Incra consiste na elaboraccedilatildeo de um estudo da aacuterea destinado agrave confecccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) do territoacuterio Uma segunda etapa eacute a de recepccedilatildeo anaacutelise e julgamento de eventuais contestaccedilotildees Aprovado em definitivo esse relatoacuterio o Incra publica uma portaria de reconhecimento que declara os limites do territoacuterio quilombola A fase seguinte do processo administrativo corresponde agrave regularizaccedilatildeo fundiaacuteria com desintrusatildeo de ocupantes natildeo quilombolas mediante desapropriaccedilatildeo eou pagamento de indenizaccedilatildeo e demarcaccedilatildeo do territoacuterio O processo culmina com a concessatildeo do tiacutetulo de propriedade agrave comunidaderdquo Disponiacutevel em httpwwwincragovbrestrutura-fundiariaquilombolas Acesso em 180915
104
Para entender a complexidade da produccedilatildeo destes dois relatoacuterios eacute
importante levar em conta que a produccedilatildeo de tal tipo de documento no acircmbito de um
procedimento do INCRA consiste em uma forma especiacutefica de pesquisa
antropoloacutegica Trata-se de um processo dirigido de interaccedilatildeo entre o antropoacutelogo e os
sujeitos de pesquisa a partir de paracircmetros legais e administrativos O territoacuterio a ser
delimitado como proposta final do estudo seraacute neste contexto resultado de uma
fabricaccedilatildeo mediada por atores que interagem em uma rede configurada tambeacutem como
um forte campo de disputas Em jogo estatildeo natildeo soacute as tensotildees entre estes campos
de conhecimento mas tambeacutem entre interesses antagocircnicos sobre a questatildeo eacutetnica
e territorial principalmente no que tange agrave resistecircncia dos setores conservadores da
sociedade em relaccedilatildeo agraves possibilidades de alteraccedilatildeo e democratizaccedilatildeo da estrutura
agraacuteria nacional
Um dos efeitos em relaccedilatildeo a essa disputa que cria entraves para a efetivaccedilatildeo
de titulaccedilotildees de territoacuterios quilombolas foi o aumento na burocratizaccedilatildeo dos
procedimentos exigidos pelo INCRA por meio da alteraccedilatildeo das instruccedilotildees normativas
(IN) que regem este processo ateacute a atual IN 57 de 2009 Ainda em 2008 a Associaccedilatildeo
Brasileira de Antropologia (ABA) se posicionou sobre o debate acerca da reforma da
IN 20 anterior agrave mais exigente IN 5790 por meio da ldquoCarta de Porto Segurordquo criticando
o estabelecimento de um roteiro com itens descritivos a serem seguidos pelo
antropoacutelogo responsaacutevel pela realizaccedilatildeo de relatoacuterios de identificaccedilatildeo territorial
() Diferentemente de outras periacutecias teacutecnicas o relatoacuterio antropoloacutegico natildeo trabalha sob o suposto de uma verdade absoluta e externa aos atores mas desempenha o papel de apreender e interpretar o ponto de vista nativo sobre sua histoacuteria sociedade e ambiente de forma a traduzi-lo nas linguagens externas a ele Como corolaacuterio deste papel principal a Antropologia tambeacutem tem o papel de relativizar e enriquecer tais saberes e linguagens do Estado ao confrontaacute-lo com concepccedilotildees e conceitos que lhe satildeo externos A recusa de qualquer destes objetivos deve ser assumida pelas agecircncias de Estado como fruto de decisatildeo poliacutetica expliacutecita e natildeo transferida para o exerciacutecio antropoloacutegico por meio de constrangimentos legais ou normativos Diante destas consideraccedilotildees repudiamos a pretensatildeo do Estado Brasileiro em interferir sobre o saber e o fazer antropoloacutegicos tendo em vista interesses
90 Segundo Arruti as alteraccedilotildees da Instruccedilatildeo Normativa 202005 para a 572009 foram decorrentes da
mediaccedilatildeo do Governo Federal frente agrave pressatildeo poliacutetica que os opositores ao tema provocaram com a proposta de Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3239 encaminhada pelo partido Democratas ao Supremo Tribunal Federal Esta ADIn questiona o Decreto 48872003 que regulamenta o procedimento de titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas Arruti afirma que ldquo() o governo federal assumiu o ocircnus de incorporar o contraditoacuterio imposto pela oposiccedilatildeo ao tema na forma de uma nova proposta de reformulaccedilatildeo da Instruccedilatildeo Normativa interna ao Incra abrindo um novo campo de disputas que agora o opotildee ele mesmo ao movimento quilombolardquo (ARRUTI 2009 p 120)
105
conjunturais e externos ao legiacutetimo debate puacuteblico em torno dos objetivos que formalmente sustentam o diaacutelogo entre antropoacutelogos e agecircncias de Estado91
O contato do campo juriacutedico com os antropoacutelogos ndash tanto na esfera
administrativa como na judicial ndash nas quais o relatoacuterio antropoloacutegico pode ser
interpretado como prova pericial ndash cria uma expectativa por parte dos operadores do
direito da produccedilatildeo de um conhecimento cientiacutefico objetivo pensado a partir de fatos
como elementos externos e preacute-existentes bem como a partir da dicotomia entre
representaccedilatildeo e realidade (OrsquoDWYER 2009 p 177) Esta aproximaccedilatildeo entre campos
de conhecimento tem sido permeada portanto de desentendimentos muacutetuos
Haacute o poder e a autoridade do juiz de dizer de quem eacute ou natildeo eacute o direito quem pode ou natildeo pode quem vai ou natildeo vai ter direito agrave condiccedilatildeo pleiteada ou neste exemplo agrave terra reivindicada O mesmo natildeo pode ser esperado do antropoacutelogo embora sua voz seja importante na decisatildeo do juiz () Haacute muitas vezes durante esse processo uma dificuldade de entendimento sobre o lugar efetivo do antropoacutelogo Entatildeo lhe recaem responsabilidades que parecem criar uma confusatildeo entre saberes poderes e responsabilidades a ponto de ser atribuiacutedo ao antropoacutelogo um lugar de juiz isto eacute o papel de julgar e definir quem seraacute beneficiado (LEITE 2004 67)
Os criteacuterios juriacutedicos natildeo deveriam desta forma desconsiderar os paracircmetros
de execuccedilatildeo e de avaliaccedilatildeo da proacutepria antropologia jaacute que eacute a esta tradiccedilatildeo teoacuterica
que se estaacute recorrendo em funccedilatildeo de seu campo interpretativo para subsidiar a
compreensatildeo das dinacircmicas sociais em questatildeo A relevacircncia do meacutetodo etnograacutefico
para a antropologia coloca em questatildeo as dificuldades impostas em contextos de
pesquisa em que a temporalidade do processo natildeo eacute a mesma da etnografia para
estudos acadecircmicos Eacute importante que este meacutetodo de pesquisa possa ser
incorporado nos procedimentos desta poliacutetica de reconhecimento em condiccedilotildees de
efetivo respeito agrave alteridade Nesse sentido para que a etnografia possa se realizar a
partir do criteacuterio da produccedilatildeo de um conhecimento dialoacutegico e operar como um
instrumento adequado antropologicamente seria necessaacuterio que a poliacutetica de
reconhecimento do Estado incorporasse outros saberes e linguagens capazes de
enriquecer e problematizar a questatildeo da diversidade cultural
Ademais se por um lado o direito cria um filtro para lidar com a antropologia
a antropologia por outro eacute ela mesma um filtro Importante destacar que o problema
91 ldquoCarta de Porto Seguro sobre as posturas estatais diante das consultas formais aos antropoacutelogosrdquo
Disponiacutevel em httpwwwabantorgbrconteudoANAISCD_Virtual_26_RBAcartadeportoseguropdf Acesso em 180915
106
do poder e do silenciamento na produccedilatildeo de textos antropoloacutegicos estaacute teoricamente
elaborado desde a deacutecada de 1970 com a virada poacutes-moderna O etnoacutegrafo natildeo pode
mais escapar imune dessa ldquocrise teoacuterico-poliacuteticardquo Necessaacuterio retomar desta maneira
a criacutetica aos modos de escrita antropoloacutegica que instauram regimes de verdade em
relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo do nativo a partir de padrotildees de disciplinamento e controle
que escamoteiam a presenccedila do antropoacutelogo como autor e que podem reforccedilar uma
ldquounidade cognoscenterdquo92 em relaccedilotildees de poder sobre os grupos estudados
(CARVALHO 2002 p 06)
Ao passo que este debate sobre a representaccedilatildeo etnograacutefica estaacute colocado
para a antropologia em situaccedilotildees de diaacutelogo com esferas como o direito que trabalha
com a busca de provas a partir da elaboraccedilatildeo de periacutecias torna-se muito mais
complexo (mas natildeo menos necessaacuterio) problematizar o lugar do antropoacutelogo na
relaccedilatildeo de pesquisa e na forma de escrita Nesta intersecccedilatildeo de aacutereas de saber o
que vem agrave tona muitas vezes em primeiro plano eacute a possibilidade pragmaacutetica dos
antropoacutelogos participarem dos processos de garantia de direitos para os grupos aos
quais tecircm dedicado longa tradiccedilatildeo de estudos e neste processo debates importantes
da antropologia podem acabar negligenciados em prol de estrateacutegias de persuasatildeo
argumentativa dos relatoacuterios antropoloacutegicos
Neste contexto de traduccedilotildees e incompreensotildees eacute necessaacuterio reafirmar
conforme pautado pelo documento produzido pela Associaccedilatildeo Brasileira de
Antropologia (ABA) ndash a Carta de Ponta das Canas93 ndash que agrave antropologia cabe a
produccedilatildeo de inteligibilidade e natildeo de julgamentos a construccedilatildeo de interpretaccedilotildees e
natildeo de ldquoverdadesrdquo natildeo tendo o relatoacuterio antropoloacutegico um caraacuteter de atestado (ABA
2001) A diferenccedila deste tipo de trabalho com relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo acadecircmica estaria
em uma certa economia a que o antropoacutelogo deve responder restringindo na medida
do possiacutevel a riqueza etnograacutefica aos limites da demanda Essa tensatildeo entre
antropologia e direito no entanto natildeo deve ser eliminada pois isso soacute ocorreria por
meio da submissatildeo de um saber ao outro Assim recomenda-se que o antropoacutelogo
92 O antropoacutelogo Joseacute Jorge de Carvalho problematiza o fato de que a comunidade antropoloacutegica eacute
avassaladoramente branca e que se de um lado a antropologia estaacute interessada na diversidade nativa natildeo conseguiu ainda superar a homogeneidade social racial e de classe dos proacuteprios antropoacutelogos profissionais (CARVALHO 2002 p 08) 93 Documento produzido na ldquoOficina sobre Laudos Antropoloacutegicosrdquo realizada pela Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia (ABA) e organizada pelo Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Ver ABA Laudos Antropoloacutegicos - Carta de Ponta das Canas Textos e Debates n 9 Florianoacutepolis NUERUFSC 2001
107
seja minucioso e sistemaacutetico na explicitaccedilatildeo das razotildees que o levaram agrave apresentaccedilatildeo
das informaccedilotildees selecionadas tendo em vista os objetivos especiacuteficos deste tipo de
documento (ABA 2001 p 04- 05)
Eacute sabido que diferentes situaccedilotildees etnograacuteficas iratildeo gerar diferentes respostas
dos grupos sociais em termos da possibilidade de estabelecimento de relaccedilotildees de
confianccedila compreensibilidade e diaacutelogo (OLIVEIRA FILHO 2003 141-180) Para
aleacutem do caraacuteter juriacutedico que assume o relatoacuterio antropoloacutegico haacute uma importante
dimensatildeo de valorizaccedilatildeo da memoacuteria da legitimidade e dos conhecimentos dos
grupos que passam por tal tipo de estudo o que iraacute depender do posicionamento eacutetico
dos profissionais envolvidos e das relaccedilotildees estabelecidas com seus interlocutores
Com um relatoacuterio antropoloacutegico que possa embasar teoricamente esta experiecircncia
histoacuterica e coletiva especiacutefica abre-se a possibilidade inclusive de uma confrontaccedilatildeo
de historicidades tendo em vista que a histoacuteria oficial em sua linearidade
uniformizadora natildeo incorpora esta diversidade de experiecircncias histoacutericas (CHAGAS
2005 p 75)
Neste capiacutetulo busco analisar de que forma o processo de reconhecimento
da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos ndash por meio da atuaccedilatildeo de diferentes atores
externos e especialmente no que tange agrave produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos
ndash foi percebido pelos membros do grupo quilombola e ao mesmo tempo em um certo
sentido produziu o proacuteprio grupo94 em um acircmbito institucional Assim como afirmou
Homi Bhabha importante teoacuterico dos estudos poacutes-coloniais eacute preciso reconhecer a
forccedila da escrita e de seu discurso retoacuterico ldquocomo matriz produtiva que define o lsquosocialrsquo
A textualidade natildeo eacute simplesmente uma expressatildeo ideoloacutegica de segunda ordem ou
um sintoma verbal de um sujeito poliacutetico preacute-dadordquo (BHABHA 1988 p 48) Assim
deve-se ter em vista o potencial transformador contido no processo que se pretende
de ldquoreconhecimentordquo e que muitas vezes incorre no equiacutevoco de buscar uma
identidade e um territoacuterio preacute-existentes
94 Se no primeiro relatoacuterio os autores afirmaram que natildeo se tratava de um grupo quilombola mas sim
de famiacutelias negras de trabalhadores rurais no segundo relatoacuterio reconheceu-se a autoindentificaccedilatildeo como grupo quilombola e fundamentou-se sua reivindicaccedilatildeo identitaacuteria a partir das referecircncias sobre a regiatildeo de origem do grupo Com base na pesquisa feita pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico impulsionou-se o retorno de quilombolas para Minas Gerais em busca de seus parentes e de mais informaccedilotildees sobre seus antepassados Isto demonstra como os processos de escrita sobre o grupo repercutiram em sua proacutepria dinacircmica interna de modo significativo tendo em vista que a memoacuteria coletiva estava passando por uma adequaccedilatildeo a este tipo de avaliaccedilatildeo externa
108
O que natildeo pode ser deixado de lado eacute o caraacuteter criativo e transformador deste processo que tende a ser obscurecido quando se supotildee que o ldquoterritoacuteriordquo remete necessariamente a sentidos e usos do espaccedilo preexistentes a ele A proacutepria noccedilatildeo de ldquoreconhecimentordquo tende a favorecer tal interpretaccedilatildeo sugerindo que o que estaacute em jogo eacute apenas a ldquoformalizaccedilatildeordquo ou ldquolegalizaccedilatildeordquo de um estado de coisas jaacute existente Ainda que fosse esse o caso eacute preciso destacar tambeacutem que tal ldquoformalizaccedilatildeordquo ou ldquolegalizaccedilatildeordquo implica em substanciais mudanccedilas na dinacircmica vital e social dos grupos envolvidos Sem qualquer pretensatildeo agrave exaustividade poderiacuteamos a esse respeito evocar apenas a intensificaccedilatildeo da presenccedila dos ldquomediadoresrdquo (lideranccedilas de movimentos sociais e sindicatos universitaacuterios pesquisadores funcionaacuterios do Estado e de ONGs) na vida cotidiana destas pessoas No contexto da luta poliacutetica elas satildeo obrigadas a se ver agraves voltas com dinacircmicas que se por um lado satildeo positivamente avaliadas como indicadores da ldquopolitizaccedilatildeordquo ou ldquoresistecircnciardquo da ldquocomunidaderdquo por outro satildeo por elas mesmas contrapostas ao ldquosossegordquo ou ldquotranquilidaderdquo que usufruiacuteam nos momentos em que podiam manter uma maior autonomia perante as exigecircncias e pressotildees do mundo ldquourbanordquo eou ldquoletradordquo Note-se que nesse uacuteltimo caso estamos nos referindo tanto aos ldquoinimigosrdquo destes grupos como aos seus aliados as ameaccedilas oriundas dos primeiros muitas vezes tornando imperativo o estabelecimento e consolidaccedilatildeo de relacionamentos com os segundos ndash frequentemente a partir de formas praacuteticas e linguagens que satildeo mais familiares a estes mediadores do que agravequeles que por eles ldquomediadosrdquo Que as dificuldades decorrentes desses relacionamentos sejam desconsideradas em prol das vantagens deles originadas soacute confirma o que pretendemos argumentar aqui para o bem ou para o mal natildeo se vive impunemente a luta poliacutetica e as alianccedilas vinculadas a ela as marcas decorrentes de tal processo frequentemente se convertendo em marcos na histoacuteria e memoacuteria dos grupos que optaram por ndash ou foram compelidos a ndash ldquose engajarrdquo (GUEDES 2013b p 56-57)
Entre inimigos e aliados o grupo quilombola Manoel Ciriaco dos Santos natildeo
viveu impunemente a sua opccedilatildeo pelo engajamento poliacutetico Parece que a primeira
impressatildeo de que o reconhecimento como quilombolas poderia representar um risco
como veremos abaixo veio a se confirmar para eles com os desdobramentos
conflituosos que se seguiram agrave presenccedila do INCRA na comunidade (a partir da
atuaccedilatildeo da equipe que realizou o primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo) resultando na
perda de empregos nas propriedades vizinhas no isolamento das famiacutelias e na
necessidade de receberem cestas baacutesicas por falta de meios de sobrevivecircncia Com
o segundo relatoacuterio antropoloacutegico uma nova perspectiva se apresentou atraveacutes da
busca por informaccedilotildees que demonstrassem o viacutenculo da comunidade em Guaiacutera com
sua regiatildeo de origem em Minas Gerais Essa pesquisa trouxe repercussotildees
significativas natildeo soacute no acircmbito do procedimento do INCRA pois ganhou dimensotildees
profundas em termos emocionais simboacutelicos e poliacuteticos para o grupo Eacute a partir dos
questionamentos levantados pelo primeiro relatoacuterio e desta conflituosidade do
processo de reconhecimento que os quilombolas em GuaiacuteraPR impulsionam-se
para a busca de maiores informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica de seus
109
antepassados e reacionam os viacutenculos com a regiatildeo de origem bem como com seus
parentes em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG como analisaremos no uacuteltimo capiacutetulo
21 O AUTORRECONHECIMENTO COMO QUILOMBOLAS
O autorreconhecimento como quilombolas remete ao contato que as famiacutelias
tiveram com agentes do Estado que lhes apresentaram esta via de direitos no ano de
2005 a partir da visita de Clemilda Santiago Neto professora de histoacuteria e militante
do movimento negro que na eacutepoca trabalhava na Secretaria de Educaccedilatildeo do Estado
do Paranaacute (SEED) e no Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) O chamado ldquoGT
Cloacutevis Mourardquo foi criado por iniciativa do governo estadual95 tendo atuado entre os
anos de 2005 e 2010 enquanto uma equipe intersecretarial com o objetivo de realizar
um ldquoLevantamento Baacutesico de Comunidades Negras do Paranaacuterdquo96 o qual teve
importacircncia fundamental no estiacutemulo agrave certificaccedilatildeo de grupos quilombolas no estado
Poreacutem como iremos analisar o contato com agentes estatais no caso da comunidade
quilombola em questatildeo desde o primeiro momento envolveu tensotildees e foi marcado
pela desconfianccedila por parte dos quilombolas
Os grupos sociais que foram identificados no levantamento do governo do
estado tendo em vista o objetivo de ldquodescobrir o Paranaacute Negrordquo poderiam ser
classificados segundo os membros do GTCM em trecircs categorias Remanescente de
Quilombo Negros Tradicionais ou Comunidade Negra (LEWANDOWISKI 2009 p
42 50) Tais comunidades foram vistas pelo GTCM como ldquohistoricamente e ateacute agora
invisibilizadas eou suprimidas pelas diversas esferas do poder e da sociedade civilrdquo
e para superar tal situaccedilatildeo o levantamento visava ldquoatingir objetivos mais imediatos
tornaacute-las alvo de poliacuteticas puacuteblicas que estatildeo sendo disponibilizadas a outras
comunidades e segmentos sociais em accedilatildeo de inclusatildeo socialrdquo97
O resultado da pesquisa apontava em 2010 quando o grupo de trabalho foi
extinto para um quadro de trinta e seis comunidades quilombolas certificadas pela
95 Resoluccedilatildeo conjunta nordm 012005 que inclui a Secretaria do Estado da Educaccedilatildeo Assuntos Estrateacutegicos Cultura Comunicaccedilatildeo Social e Meio Ambiente 96 O relatoacuterio final elaborado pelo GTCM estaacute disponiacutevel em httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=69 Acesso em 30042014 97 Texto de apresentaccedilatildeo que consta no site institucional do GTCM Disponiacutevel em
httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=16 Acesso em 170215
110
Fundaccedilatildeo Cultural Palmares (FCP) vinte ldquocomunidades negras tradicionaisrdquo ainda
natildeo certificadas e 32 (trinta e dois) indicativos da existecircncia de outras comunidades
no estado do Paranaacute (GRUPO DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA 2010 17-21)
Atualmente a Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute possui 37 procedimentos de
regularizaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas abertos Deste total dez estatildeo em andamento
e cinco estatildeo em processo de elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e
Delimitaccedilatildeo (RTID) dentre os quais o da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos
Santos98
Durante o governo estadual de Roberto Requiatildeo (PMDB2003-2010) levando
em consideraccedilatildeo o alinhamento com o governo federal de Luis Inaacutecio Lula da Silva
(PT2003-2010) foi gerado portanto um momento propiacutecio para pautar a agenda
puacuteblica com as questotildees relativas agraves minorias eacutetnicas com base em leis e decretos
que inovaram no tratamento destas questotildees99 Buscou-se assim sensibilizar os
administradores em relaccedilatildeo agraves demandas das comunidades quilombolas e dar apoio
para que os proacuteprios segmentos pudessem acionar com a mediaccedilatildeo do GTCM as
diversas secretarias de estado bem como os oacutergatildeos federais
Quando a comunidade se auto-reconhecia como remanescente de quilombo o grupo de trabalho prestava uma assessoria para organizaccedilatildeo das associaccedilotildees de moradores condiccedilatildeo fundamental para abertura dos processos junto ao Incra na construccedilatildeo dos estatutos e na eleiccedilatildeo de uma diretoria Quando escolhidas as novas lideranccedilas comunitaacuterias passavam a ter contato intenso com a equipe do GT A orientaccedilatildeo era para que diante de qualquer duacutevida ou problema o GT pudesse ser acionado para resolver (LEWANDOWSKI 2009 p 51)
Em relaccedilatildeo agrave chegada de Clemilda ndash uma das principais protagonistas do
processo de levantamento das comunidades pelo GTCM ndash e a como ocorreu o
reconhecimento do grupo em GuaiacuteraPR Eva (50) esposa de Joaquim (55) (portanto
98 As outras comunidades em processo de elaboraccedilatildeo do RTID satildeo Adelaide Maria Trindade Batista em Palmas Varzeatildeo em Doutor Ulysses Serra do Apon em Castro e Mamatildes em Cerro Azul Notiacutecia disponiacutevel em httpwwwincragovbrnoticiasmesa-de-acompanhamento-da-politica-de-regularizacao-quilombola-e-instalada-no-parana Acesso em 24022015 99 Dentre as principais normatizaccedilotildees estatildeo a Lei 106392003 (que inclui ldquono curriacuteculo oficial da Rede
de Ensino a obrigatoriedade da temaacutetica Histoacuteria e Cultura Afro-Brasileira) o Decreto Federal 48872003 (que regulamenta o processo de titulaccedilatildeo ldquodas terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos) e o Decreto Federal 60402007 (que ldquoinstitui a Poliacutetica Nacional de Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionaisrdquo) dentre outras regulamentaccedilotildees federais neste sentido
111
nora de Manoel Ciriaco) contou-me sobre como ficaram surpresos com a visita de
uma funcionaacuteria puacuteblica interessada na histoacuteria do grupo
Dandara Como seraacute que ela ficou sabendo de vocecircs mesmo
D Eva Porque eu estudava aqui na escola com a Lucia daiacute ela tambeacutem trabaiava no negoacutecio que a Clemilda trabaia laacute Daiacute entatildeo ela falou que aqui ni Guaiacutera tinha ela achava que era descendente de escravo era remanescente de quilombo Daiacute ela mandou vim aqui daiacute a Clemilda veio Ela veio primeiro falar daiacute depois a Clemilda veio Acho que ela (Lucia) veio aqui se era dois mil ih fazia tempo nem lembrava disso mais Daiacute foi a Clemilda chegou aqui Ningueacutem acreditava E o Zeacute Maria falava assim ldquonatildeo eles vatildeo roubar de noacutesrdquo Eacute (risos) ldquoNoacutes nunca foi conhecido nesse lugar Noacutes nunca foi reconhecido nesse lugar aqui Noacutes sempre desprezado aqui Como eacute que domingo ainda Ah natildeo acredito ah natildeo acreditordquo (risos) Pegou a muletinha dele e foi embora pra casa Natildeo quis nada de jeito nenhum
Dandara E antes da Clemilda vocecircs natildeo imaginavam que teriam direito
D Eva Natildeo noacutes natildeo imaginava natildeo que noacutes natildeo sabia de nada eacute natildeo falava nem nada disso aiacute
As pessoas da comunidade natildeo soacute ficaram surpresas com a chegada de
Clemilda como tambeacutem desconfiaram de suas intenccedilotildees ainda mais porque ela
chegou em um dia de domingo Me contaram como desconfiaram ateacute se ela era do
governo principalmente o ldquofinado Zeacute Mariardquo que na eacutepoca era a referecircncia e a
lideranccedila da famiacutelia sendo o filho mais velho dentre os que permaneceram na
comunidade Ele resistiu muito ateacute concordar em assinar os papeacuteis que solicitariam o
reconhecimento da comunidade como quilombola Joaquim destacou como a postura
do irmatildeo foi enfaacutetica e estava legitimada na sua posiccedilatildeo de autoridade
Joaquim Ai uma hora ele falou com ela ldquoeacute eu fico muito emocionado noacutes aqui nesse fim de mundo e vocecircs que eacute pessoal do governo veio procurar a gente que nunca aconteceu issordquo Ele falou pra ela (risos) Aiacute a hora que ela caccedilou ele falou ldquoMelhor ficar que eu vou embora agora que o que meu pai deixou pra noacutes eacute mixaria e eu natildeo quero perder e ningueacutem me faz eu assinarrdquo
A fala de Joaquim em referecircncia ao comentaacuterio de Zeacute Maria indica uma
sensaccedilatildeo de invisibilidade e abandono por parte do Estado para com estas famiacutelias
o que eacute reforccedilado na leitura dos membros do grupo pela condiccedilatildeo histoacuterica de
exclusatildeo e opressatildeo do negro no Brasil Se esta percepccedilatildeo poderia ter sido alterada
com o processo de reconhecimento do grupo como quilombola percebe-se no
entanto que o Estado entendido como figura abstrata dissociada de seus agentes
112
especiacuteficos ndash com os quais em alguns casos eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees de
confianccedila e amizade ndash continua apresentando posicionamentos duacutebios e natildeo dignos
de confianccedila O Estado de alguma forma segundo Adir se isentaria diante do fato
de que os quilombolas tecircm ainda que correr atraacutes de direitos que deveriam lhes ser
garantidos prontamente tendo em vista a histoacuteria de opressatildeo a que vem sendo
submetidos Para conquistar algum direito com muita luta e paciecircncia sentem-se
refeacutens dos labirintos burocraacuteticos e hieraacuterquicos de procedimentos instruccedilotildees
normativas leis e barganhas poliacuteticas
Joaquim Eva e Adir me relataram como foi conturbado este contato inicial
com agentes do Estado Zeacute Maria pediu inclusive para que Adir solicitasse agrave Clemilda
o seu crachaacute comprovando que ela era funcionaacuteria puacuteblica Esta desconfianccedila em
assinar os papeacuteis que solicitariam o reconhecimento da comunidade como quilombola
parece decorrente do risco de expropriaccedilatildeo por eles percebido bem como aponta
para a dificuldade de domiacutenio do mundo documental pelos membros do grupo100 Fala
tambeacutem sobre o processo de exclusatildeo e sobre como o grupo o percebe jaacute que se
estar invisiacutevel era algo que confirmava a situaccedilatildeo perifeacuterica em que viviam por outro
lado a visibilidade tambeacutem eacute percebida como um risco101 No entanto Zeacute Maria foi
depois convencido e assinou o documento que subsidiou a elaboraccedilatildeo da ldquoCertidatildeo
de Auto-Reconhecimentordquo expedida em 02 de outubro de 2006 Em 2007 o grupo
funda com auxiacutelio do GTCM a Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos
Santos (ACONEMA)
Antes disso eles desconheciam que esta identidade era reconhecida e
guarnecida pelo Estado bem como desconheciam as nominaccedilotildees de ldquoquilombolasrdquo
ou ldquoremanescente de quilombosrdquo agraves quais iratildeo paulatinamente conferir significado
com base na releitura de sua proacutepria histoacuteria Neste sentido
A noccedilatildeo de ldquoremanescenterdquo como algo que jaacute natildeo existe ou em processo de desaparecimento e tambeacutem a de ldquoquilombordquo como unidade fechada igualitaacuteria e coesa tornou-se extremamente restritiva Mas foi principalmente porque a expressatildeo natildeo correspondia agrave autodenominaccedilatildeo destes mesmos
100 No caso da Comunidade Quilombola Aacutegua Morna localizada em CuriuacutevaPR por exemplo o relatoacuterio antropoloacutegico relata como eles foram enganados por parente proacuteximo que pediu que assinassem documento que foi posteriormente utilizado para a expropriaccedilatildeo de uma aacuterea do grupo (PORTO 2012 p 61-62) 101 O fato tambeacutem de se tratar de um grupo com niacutevel baixo de acesso agrave educaccedilatildeo formal reforccedila esta dificuldade em lidar com a documentaccedilatildeo principalmente concernente agrave terra Este quadro estaacute sendo modificado na geraccedilatildeo de jovens hoje os quais tecircm condiccedilotildees de terminar o ensino meacutedio e ateacute o ensino superior comeccedila a ser acessado
113
grupos e por tratar-se de uma identidade ainda a ser politicamente construiacuteda que suscitou tantos questionamentos De saiacuteda exigiu-se nada mais que um esforccedilo interpretativo do processo como um todo por parte dos intelectuais e militantes bem como das proacuteprias comunidades envolventes e sem o qual seria impossiacutevel a aplicabilidade juriacutedica do artigo (LEITE 2000 p 341)
A experiecircncia que meus interlocurores(as) possuiacuteam de uma ldquotrajetoacuteria
histoacuterica proacutepriardquo vinculada agrave ldquoresistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo conceitos da
definiccedilatildeo de quilombo trazida pelo Decreto 44872003 (que regulamenta o processo
de titulaccedilatildeo quilombola) ficava restrita enquanto objeto de introspecccedilatildeo interna ao
grupo Isto porque tal afirmaccedilatildeo segundo eles seria percebida como motivo de
escaacuternio e de discriminaccedilatildeo por parte das outras pessoas da regiatildeo102 Eacute atraveacutes de
uma rede de mediadores como o GTCM organizaccedilotildees governamentais natildeo
governamentais e movimento negro que o ldquoprocesso de reconhecimentordquo eacute
estimulado no Paranaacute e neste caso especiacutefico
Na fala dos irmatildeos Adir e Joaquim atualmente presidente e vice-presidente
da Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) aparece
este sentimento de que se comentassem sobre sua histoacuteria antes do processo de
reconhecimento como quilombolas ningueacutem iria acreditar neles e seriam alvo de
ridicularizaccedilatildeo
Dandara Mas essa histoacuteria da origem do Manoel Ciriaco laacute de Minas que tinha descendecircncia de ex-escravos isso tudo era todo mundo que conhecia ou era soacute alguns que sabiam dessa histoacuteria
Adir Vocecirc fala a populaccedilatildeo
Dandara Natildeo vocecircs da famiacutelia mesmo
Adir Noacutes jaacute sabia
Joaquim E muitos aqui sabia tambeacutem que meu pai falava neacute com os italiano aqui que eles Mas eles natildeo ligava
Adir Mas era coisa que nem eles mais falava assim ldquoque vatildeo buscar nada de histoacuteria deles nada atraacutes nadardquo Chegaram contaram o que eles passaram quando chegaram aqui que teve dificuldade que vieram de um lugar laacute onde teve escravo isso e aquilo outro Mas quem que ia ligar nisso Nem noacutes mesmos Noacutes aprendemos com nossos pais nossos avoacutes nossa matildee sim nossa histoacuteria que noacutes natildeo podia pronunciar pra ningueacutem Ia falar pra quem Dizer pra quem isso aiacute E quando surge isso nos pega tambeacutem de surpresa E ai vocecirc vai falar o quecirc Vai divulgar o quecirc Quem que vai acreditar em vocecirc Natildeo eacute difiacutecil E eacute isso aiacute
102 Sobre o tema da introspecccedilatildeo acerca da identidade ver o caso do grupo indiacutegena Caxixoacute de Minas Gerais (SANTOS OLIVEIRA 2003 p 22)
114
Nesta fala de Adir e Joaquim eacute relevante notar a diferenccedila entre o que eacute
entendido como um silenciamento sobre o passado em contraste com um processo
de esquecimento (PORTO 2013b p 175) Eacute a partir do momento em que se encontra
uma possibilidade de escuta que a memoacuteria passa a ser pronunciada publicamente
Ateacute entatildeo estava contida como algo indiziacutevel pois soacute fazia sentido enquanto processo
de transmissatildeo de memoacuteria interno agrave famiacutelia (POLLAK 1989 p 09) Haacute uma
polarizaccedilatildeo portanto entre um passado de silenciamento e um presente de
pronunciamento que aparece como um princiacutepio de operaccedilatildeo na forma como
percebem a relaccedilatildeo deles com o contexto mais amplo no qual se inserem Poderem
ser ouvidos como narradores legiacutetimos de sua proacutepria histoacuteria por meio deste novo
contexto de reconhecimento pelo Estado eacute um ganho que transcende as questotildees
juriacutedicas e poliacuteticas na medida em que representa para eles uma valorizaccedilatildeo e um
reconhecimento da necessidade de reparaccedilatildeo da opressatildeo sofrida
Esta fala tambeacutem aponta para a expectativa que a comunidade tinha frente agrave
produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio de que sua histoacuteria seria registrada e reconhecida aleacutem
de significar um marco para a possibilidade de conquista de direitos que os
empoderaria diante do contexto local adverso Como veremos adiante foram muitas
as dificuldades que tiveram para lidar com o fato de sua identidade ter sido negada
oficialmente por um antropoacutelogo bem como com os conflitos gerados a partir dos
desdobramentos do procedimento que tramita no INCRA103
O registro da histoacuteria comum dos membros da comunidade deu um novo
status agrave memoacuteria coletiva e agravequeles que satildeo vistos internamente como os guardiotildees
destas histoacuterias Os elementos preacute-existentes da memoacuteria passam a ser mobilizados
de formas especiacuteficas tendo em vista que eacute o Estado quem estabelece os criteacuterios
normativos que funcionaratildeo como modelos a partir do qual a populaccedilatildeo passa a se
pensar em termos de identidade objetivada conceitualmente o que se faraacute por meio
de mediaccedilotildees e modulaccedilotildees (MARCUS 1991)104
103 Este impasse vivido pelo grupo aponta para a ldquodificuldade de identificar os sujeitos do direito e suas
complexas demandasrdquo bem como ldquoas tensotildees entre as conceituaccedilotildees histoacuterica antropoloacutegica e juriacutedica de quilombordquo (LEITE FERNANDES 2006 p 12) sobre as quais no entanto natildeo iremos nos aprofundar neste trabalho 104 Interessante observar o deslocamento semacircntico no que tange estas modulaccedilotildees do Estado que foi ocorrendo ldquorealizado tanto por agentes estatais quanto por membros do movimento social e representantes do meio acadecircmico - em que os remanescentes de comunidades de quilombos passam a ser definidos como comunidades remanescentes de quilombos e no momento seguinte
115
O claacutessico estudo de Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva demonstra como
apesar da aparecircncia de experiecircncia individual a memoacuteria soacute eacute possiacutevel por meio das
relaccedilotildees sociais de interaccedilatildeo enquanto fenocircmeno coletivo Assim a duraccedilatildeo de uma
memoacuteria estaria limitada agrave duraccedilatildeo do grupo no acircmbito do qual tais lembranccedilas foram
geradas e enquanto fenocircmeno construiacutedo coletivamente tambeacutem estaacute sujeita a
transformaccedilotildees Dentro destas dinacircmicas o autor ressalta a existecircncia de pontos de
referecircncias comuns que formam um nuacutecleo resistente relativamente invariaacutevel um fio
condutor de acontecimentos-chaves (HALBWACHS 2003 p 35)
No caso do quilombo de Guaiacutera enquanto ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo
(HALBWACHS 2003) que gera o sentimento de pertencimento de identificaccedilatildeo e
aglutinaccedilatildeo entre seus membros este fio condutor passa pelo compartilhamento da
memoacuteria das dinacircmicas de movimento e fixaccedilatildeo das famiacutelias Este movimento inicia-
se a partir do que podemos chamar de um ldquolugar formador de memoacuteriardquo (POLLAK
1992 p 203) a regiatildeo de origem do grupo Mesmo fora do espaccedilo-tempo da vida da
comunidade no Paranaacute esta referecircncia eacute fundamental para a identidade do grupo a
partir da qual se contextualiza a memoacuteria herdada dos antepassados em continuidade
com a construccedilatildeo da autoimagem do grupo no presente A origem mineira assume
entatildeo uma dimensatildeo miacutetica pois seu significado eacute ampliado e formalizado de modo
simboacutelico como autorrepresentaccedilatildeo partilhada pelo grupo (PORTELLI 1998 p 120)
A memoacuteria coletiva do grupo quilombola como vimos no primeiro capiacutetulo foi
reorganizada discursivamente a partir do autorreconhecimento identitaacuterio de modo
que pudessem se tornar testemunhas contra o ldquoesquecimento compulsivordquo da sua
proacutepria trajetoacuteria histoacuterica (CONNERTON 1999 p 17) A organizaccedilatildeo poliacutetica do
grupo como quilombolas foi fundamental para a preservaccedilatildeo do que podemos chamar
de ldquomemoacuterias subterracircneasrdquo as quais satildeo majoritariamente reproduzidas pela
oralidade e ldquocomo parte integrante das culturas minoritaacuterias e dominadas se opotildeem
agrave lsquoMemoacuteria Oficialrsquo no caso a memoacuteria nacionalrdquo (POLLAK 1989 p 05)
A percepccedilatildeo de um passado comum em relaccedilatildeo ao qual se destacam as
histoacuterias contadas pelos mais velhos sobre o sofrimento que viveram em Minas
Gerais com a memoacuteria de ascendentes que foram escravizados integra-se agrave busca
por uma nova possibilidade de reproduccedilatildeo do grupo por meio dos deslocamentos a
comunidades quilombolas apontando para a modificaccedilatildeo conceitual ocorrida ()rdquo (PORTO KAISS COFREacute 2012 p 41)
116
percepccedilatildeo da distintividade cultural enquanto grupo negro rural viacutetima de preconceito
racial e religioso em GuaiacuteraPR bem como a perspectiva da reelaboraccedilatildeo de um
futuro comum com acesso a direitos historicamente negados mobilizam dentre outros
fatores este processo de etnogecircnese
22 O PRIMEIRO RELATOacuteRIO ldquoANTI-ANTROPOLOacuteGICOrdquo
Quatro anos depois do iniacutecio do processo de contato com agentes externos e
do autorreconhecimento da comunidade como quilombola em 2009 e 2010 foi
realizado o primeiro relatoacuterio de cunho antropoloacutegico dentro do procedimento de
titulaccedilatildeo territorial da comunidade quilombola em Guaiacutera de responsabilidade do
INCRA105 O posicionamento dos autores defendido no documento no entanto negou
que esta comunidade em GuaiacuteraPR seria um grupo quilombola entendendo que se
tratava de uma famiacutelia negra de trabalhadores rurais e que o grupo estava construindo
recentemente esta identidade de modo vinculado com o interesse de garantia de
direitos concluindo que
ldquoO que se percebeu por intermeacutedio da pesquisa eacute que a identidade quilombola eacute algo novo entre as pessoas e que ainda esta (sic) em processo de formaccedilatildeo natildeo estando presente no pensamento coletivo eacute como se os membros da auto denominada (sic) comunidade Negra estivessem aprendendo a ser quilombolasrdquo (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1521 [p 111])
Como jaacute citado o primeiro relatoacuterio foi fruto de um convecircnio entre o INCRA e
a UNIOESTE Conforme a legislaccedilatildeo quando natildeo dispuser de profissional em seu
quadro para a realizaccedilatildeo do relatoacuterio antropoloacutegico o INCRA poderaacute realizar
contrataccedilotildees Junto com Antocircnio Pimentel Pontes Filho antropoacutelogo responsaacutevel pela
equipe tambeacutem participaram da pesquisa mais um mestre em antropologia Roberto
Biscoli e duas auxiliares de pesquisa graduandas da UNIOESTE106 A uacuteltima versatildeo
do relatoacuterio apresentada pelo antropoacutelogo responsaacutevel ndash depois dos pedidos de
105 Percebe-se como o desdobramento do procedimento no INCRA demonstra como este oacutergatildeo natildeo
tinha ainda uma compreensatildeo amadurecida sobre como lidar com as questotildees antropoloacutegicas tendo deixado que o primeiro relatoacuterio fosse concluiacutedo com suas graves consequecircncias para o grupo quilombola para apenas depois de sua finalizaccedilatildeo o avaliar como insuficiente tecnicamente e o retirar do procedimento de titulaccedilatildeo da comunidade 106 Neste convecircnio com a UNIOESTE foi produzido mais um relatoacuterio antropoloacutegico de responsabilidade do mesmo antropoacutelogo na Comunidade Quilombola Maria Adelaide Trindade Batista localizada no Municiacutepio de PalmasPR o qual tambeacutem natildeo foi aprovado
117
adequaccedilatildeo solicitados pelo INCRA os quais foram em grande parte desconsiderados
ndash era composta de centro e trinta e quatro paacuteginas organizadas nas seguintes partes
sobre as quais destacamos alguns pontos principais
(1) Introduccedilatildeo os autores do relatoacuterio trazem um debate sobre o conceito de
quilombo e se posicionam no sentido de que o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo
natildeo eacute compatiacutevel com a perspectiva relacional de etnicidade a qual
entenderia os grupos eacutetnicos como constituiacutedos em relaccedilatildeo por meio das
fronteiras O relatoacuterio afirma que esta abordagem pressupotildee que deva
haver o reconhecimento tambeacutem pelos ldquooutrosrdquo de que o grupo que se
autoidentifica apresenta uma identidade diferenciada em um processo de
ldquohetero-identidaderdquo Eacute segundo esta perspectiva reconhecida por eles
mesmos como incompatiacutevel com o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo que estatildeo
embasadas suas anaacutelises no relatoacuterio Trazem tambeacutem uma seacuterie de
informaccedilotildees sobre o processo de elaboraccedilatildeo da pesquisa elencando ao
longo de quinze paacuteginas cada uma das entrevistas realizadas bem como
demais atividades da equipe desde ofiacutecios e-mails visitas destacando
inclusive os contatos externos aos membros do grupo que foram
realizados Comentam sobre o conflito desencadeado durante a pesquisa
mas se isentam de qualquer responsabilidade em relaccedilatildeo aos
acontecimentos
(2) ldquoA auto denominada (sic) comunidade negra Manoel Ciriaco dos Santosrdquo
pelo proacuteprio tiacutetulo atribuiacutedo ao segundo capiacutetulo do relatoacuterio recusam a
denominaccedilatildeo de ldquoquilombolasrdquo e parecem estar denunciando em uma
negaccedilatildeo dupla o processo de autorreconhecimento da comunidade como
ilegiacutetimo Apresentam uma anaacutelise sobre os membros da comunidade
como se este pertencimento estivesse restrito agraves pessoas que estatildeo
indicadas no estatuto da Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco
dos Santos (ACONEMA) Trazem tambeacutem uma descriccedilatildeo das famiacutelias
que moravam na aacuterea na eacutepoca
(3) ldquoGuaiacutera ndash Paranaacute descriccedilatildeo sobre a regiatildeordquo retomam o processo histoacuterico
de colonizaccedilatildeo da regiatildeo Depois analisam o histoacuterico de constituiccedilatildeo do
que chamam ldquoComunidade de Maracaju dos Gauacutechosrdquo atribuindo ao
bairro rural tambeacutem um sentido de grupo e de relaccedilotildees de pertencimento
118
em equiparaccedilatildeo com a autodenominaccedilatildeo como comunidade por parte dos
quilombolas Afirmam que as aacutereas adquiridas pela ldquofamiacutelia Santosrdquo natildeo
constituem um territoacuterio quilombola preacute-existente e que o levantamento
realizado pelo Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) careceu de
ldquocriteacuterios antropoloacutegicosrdquo
(4) ldquoTrajetoacuteria histoacuterica da auto denominada (sic) comunidade negra Manoel
Ciriaco dos Santosrdquo analisam os relatos dos membros da comunidade
sobre sua trajetoacuteria histoacuterica de fixaccedilatildeo em GuaiacuteraPR mas o fazem de
modo a desvalorizar a memoacuteria e as informaccedilotildees trazidas que satildeo
entendidas pelos autores como insuficientes ou improcedentes ao serem
por exemplo cotejadas com dados repassados pelos vizinhos Afirmam
que natildeo houve segregaccedilatildeo racial na constituiccedilatildeo do bairro rural e que natildeo
existiria preconceito por parte dos vizinhos acusando ao contraacuterio os
membros da comunidade de serem preconceituosos em relaccedilatildeo aos
ldquoitalianosrdquo
(5) ldquoCaracterizaccedilatildeo atual da auto denominada (sic) comunidade negra Manoel
Ciriaco dos Santos sua organizaccedilatildeo espacial e socialrdquo apresentam uma
descriccedilatildeo da comunidade destacando as poliacuteticas puacuteblicas e os cursos a
que passaram a ter acesso bem como as atividades de cultivo e criaccedilatildeo
de animais Afirmam haver um sentimento de propriedade e de posse
particular por parte dos membros da comunidade que natildeo se organizaria
por dinacircmicas propriamente comunitaacuterias Concluem que os moradores da
comunidade natildeo se diferenciam em suas praacuteticas de seus vizinhos
Trazem informaccedilotildees geneacutericas sobre ldquopapeacuteis sociaisrdquo entre os seus
membros e tambeacutem sobre religiatildeo
(6) ldquoRe-construccedilatildeo (sic) de uma memoacuteria e de uma identidade socioculturalrdquo
defendem a perspectiva de que deve ser alcanccedilada uma objetividade
etnograacutefica e afirmam neste sentido que o processo de construccedilatildeo da
identidade eacutetnica do grupo seria recente e giraria em torno de uma
finalidade poliacutetica a partir do contato do grupo com agentes externos com
o objetivo de criar uma distinccedilatildeo ldquonoacutesrdquo e ldquoelesrdquo Os autores afirmam que tal
identidade estaacute baseada em suposiccedilotildees de uma origem e de
antepassados que teriam sido escravos Defendem que se haacute preconceito
119
no acircmbito da relaccedilatildeo com os vizinhos eacute um preconceito muacutetuo e concluem
dizendo que a ldquoauto denominada comunidade negrardquo (sic) natildeo apresenta
os sinais diacriacuteticos que ldquodeveriamrdquo os diferenciar
(7) ldquoResultado da periacuteciardquo por fim asseveram que apesar de terem partido da
categoria do autorreconhecimento entendem que natildeo haacute territoacuterio
quilombola a ser indicado pois a equipe de pesquisa ldquoconstatourdquo que eles
seriam apenas herdeiros de uma propriedade e que portanto ldquopossuem
relaccedilotildees comuns ao mundo ruralrdquo natildeo havendo um territoacuterio quilombola
preacute-existente
(8) Bibliografia e anexos
Para analisar os argumentos apresentados por este relatoacuterio ldquoanti-
antropoloacutegicordquo eacute importante primeiramente trazer algumas reflexotildees dos quilombolas
em relaccedilatildeo agrave forma como foram conduzidos os trabalhos pela primeira equipe de
pesquisadores
Joaquim Os antropoacutelogos que eles arrumaram Dandara eu falei assim ldquovocecircs tinha que arrumar uns antropoacutelogo que sabia fazer antropologia Os antropoacutelogos natildeo ficavam com noacutes aqui Era duas horas trecircs horas por dia soacute vinha e voltava raacutepido noacutes desconfiou dos antropoacutelogo Aiacute noacutes tava laacute dentro de Guaiacutera e eles trataram com o Adir que era pra noacutes encontrar que eles ia pegar coacutepia do certificado da comunidade Noacutes taacute esperando e ldquonoacutes tamo chegando tamo chegandordquo e natildeo chegava Aiacute tinha esse advogado que eacute vizinho nosso aqui que mora laacute em Guaiacutera Daqui a pouco ele vem e vem os dois antropoacutelogos de laacute pra caacute no escritoacuterio dele e noacutes tava em frente a prefeitura que eacute pertinho Aiacute eles chegaram ldquoeacute mas noacutes natildeo pode ficar aqui que a turma taacute de zoacuteio em noacutes que natildeo sei que laacuterdquo Pegou a coacutepia da nossa matildeo e despediu de noacutes ldquoNoacutes tem que vazar emborardquo ldquoentatildeo taacute bomrdquo Mas a gente natildeo eacute tanto besta neacute aiacute noacutes pensamos ldquosabe de uma coisa vou dar uma volta na rua aqui pra ver se eles foram embora mesmordquo Noacutes damo a volta na rua eles laacute no advogado e tinha ido embora Aiacute tudo que eles falavam no raacutedio o advogado tava sabendo que era representando os agricultor neacute Ele tava sabendo tudinho Mas quem taacute passando informaccedilatildeo eacute os antropoacutelogos Menina noacutes teve raiva laacute em Toledo na Universidade eles chamaram pra noacutes pra ter uma reuniatildeo () Quando esse antropoacutelogo comeccedilou a falar eu falei com eles assim ldquovocecircs pensa que noacutes eacute tatildeo besta Tatildeo besta natildeo eacute noacutes eacute da roccedila natildeo temo estudo natildeo temo a linguagem que vocecircs fala mas vocecirc lembra aquele dia que vocecircs tava em Guaiacutera Vocecircs dando noacute em noacutes falando que ia embora se vocecircs tava laacute junto com o advogado e tudo ele taacute sabendo o que vocecircs tava fazendordquo E eu falei ldquoa antropologia de vocecircs eacute fraca Eu natildeo entendo de antropologia a antropologia de vocecircs eacute fracardquo Eu falei ldquovocecircs fica sabendordquo - e tava gravando e filmando ndash ldquovocecircs tatildeo fazendo antropologia de cem quilocircmetros de distacircncia cem quilocircmetrordquo Aiacute o reitor da universidade abanou a cabeccedila Aiacute eu falei ldquovocecircs natildeo fizeram nada vocecircs natildeo fizeram nada nadardquo
120
Percebe-se que a criacutetica que Joaquim faz inicia-se com uma
responsabilizaccedilatildeo do INCRA pois foram eles que ldquoarrumaramrdquo estes antropoacutelogos
para fazer o estudo Interessante observar neste sentido que Antocircnio Pimentel
Pontes Filho o pesquisador responsaacutevel pelo estudo natildeo tinha experiecircncia com
grupos etnicamente diferenciados sendo que suas pesquisas de graduaccedilatildeo e
mestrado giravam em torno de questotildees relacionadas agrave antropologia da religiatildeo com
foco na organizaccedilatildeo da Igreja Catoacutelica O INCRA com uma gestatildeo burocratizada e
impessoal apesar de ter tido acesso a versotildees preliminares do relatoacuterio que iam
abertamente de encontro ao criteacuterio da autoatribuiccedilatildeo natildeo evitou contudo que um
relatoacuterio final - depois considerado pelo proacuteprio INCRA como de ldquobaixa qualidaderdquo ndash
fosse incorporado ao procedimento da comunidade Apenas depois da natildeo aprovaccedilatildeo
da versatildeo final pelo INCRA encaminharam-se as medidas administrativas para
finalizar o convecircnio com a UNIOESTE por meio de um procedimento separado ainda
em tracircmite no qual passou a constar o primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo
(Procedimento Administrativo 542000023842008-33) retirado do procedimento de
regularizaccedilatildeo do territoacuterio da comunidade (Procedimento Administrativo
542000010752008-46)
A partir da fala de Joaquim citada acima eacute possiacutevel tambeacutem entender qual o
lugar que a relaccedilatildeo com os antropoacutelogos passa a ocupar no discurso dos quilombolas
sistematizada na indicaccedilatildeo de trecircs momentos centrais O primeiro momento diz
respeito agrave constataccedilatildeo da falta de contato da equipe de pesquisa com o grupo jaacute que
natildeo estavam presentes na comunidade durante um periacuteodo de tempo considerado
satisfatoacuterio pelos quilombolas A permanecircncia em campo eacute tida portanto como um
criteacuterio determinante para a antropologia inclusive na visatildeo das lideranccedilas
quilombolas O segundo momento central apresentado por Joaquim diz respeito agrave
percepccedilatildeo de que haveria um viacutenculo dos pesquisadores com os proprietaacuterios
vizinhos o que lhes causou revolta dada a mobilizaccedilatildeo agressiva desencadeada
contrariamente ao trabalho do INCRA na localidade Assim a leitura que Joaquim faz
em relaccedilatildeo ao resultado do relatoacuterio passa pela percepccedilatildeo de um compromisso direto
dos antropoacutelogos com os proprietaacuterios vizinhos O terceiro momento eacute quando
Joaquim destaca a possibilidade de uma reaccedilatildeo bem-sucedida do grupo em uma
reuniatildeo realizada na UNIOESTE Nesta oportunidade eles verbalizaram
publicamente esta insatisfaccedilatildeo com o trabalho produzido e questionaram os
121
antropoacutelogos diretamente sobre o que consideraram ser uma ldquoantropologia de cem
quilocircmetros de distacircnciardquo destacando a importacircncia que datildeo agrave relaccedilatildeo de proximidade
e confianccedila que natildeo se estabeleceu em nenhum momento com esta primeira equipe
A dificuldade de comunicaccedilatildeo foi outro ponto destacado por Joaquim o que
se configura em um problema muito seacuterio e limitador em uma pesquisa antropoloacutegica
ainda mais quando se trata de um estudo sobre a reivindicaccedilatildeo territorial do grupo
Adir E depois laacute em Cascavel dizer pra noacutes assim ldquopelo que noacutes pesquisamos vocecircs durante esse tempo vocecircs eacute uma comunidade igual agrave comunidade de Maracaju natildeo tem diferenccedila nenhuma Vocecircs natildeo satildeo quilombolardquo ()
Joaquim O que os outros plantava noacutes plantava tambeacutem Eu falei assim ldquoOh noacutes planta pimenta noacutes planta taioba noacutes planta inhame Vocecirc viu os italianos se eles tecircm inhame plantado tem taioba tanta coisa se eles temrdquo aiacute ele diz que eacute tarde
Adir Eu mostrei pra eles o que noacutes cultivava eu falei ldquooacute a nossa histoacuteria professor Antocircnio vocecirc pode prestar atenccedilatildeo da nossa histoacuteria Noacutes nossos antepassados vieram da Aacutefrica trazido pra um solo brasileiro trabalharam como escravo cara
Joaquim Eles falaram isso laacute em Cascavel soacute que em Toledo eles mudaram
Adir ldquoAjudar a construir esse paiacutes soacute isso jaacute chega natildeo precisa de mais nada Soacute a nossa cor jaacute nos identifica noacutes mesmo a nossa escravidatildeo no passado Seraacute que pra vocecirc que eacute um professor um doutor vem falar issordquo
O depoimento acima sintetiza a concepccedilatildeo de que o fato de serem da cor
negra jaacute demonstra a descendecircncia de africanos escravizados Esta compreensatildeo
identificada no plano eacutetnico-racial correlaciona parentesco com traccedilos fenotiacutepicos e
expressa ldquoas propriedades primordiais elegidas para a construccedilatildeo de uma memoacuteria
das lsquoorigensrsquo remetida agrave experiecircncia comum do cativeirordquo (RUBERT SILVA 2009 p
269) A fala aponta tambeacutem para a percepccedilatildeo dos sujeitos quilombolas em relaccedilatildeo agrave
valorizaccedilatildeo das diferenccedilas entre eles e os proprietaacuterios vizinhos sendo que os sinais
diacriacuteticos destacados por Joaquim se referem aos tipos de alimentos cultivados pelo
grupo quilombola As diferenccedilas se expressam aleacutem disso no lugar social dos
quilombolas em contraste com o lugar dos antropoacutelogos de um lado a experiecircncia
histoacuterica de opressatildeo a autoidentificaccedilatildeo que comeccedila pela cor da pele a afirmaccedilatildeo
de uma cultura proacutepria e distinta e de uma relaccedilatildeo especiacutefica com uma base territorial
de outro pesquisadores de uma elite (branca) ldquoum doutorrdquo que mesmo antropoacutelogo
desconsiderou a percepccedilatildeo do grupo sobre sua proacutepria histoacuteria quando deveria ter
pelo menos buscado compreendecirc-la
122
O fato de as famiacutelias que se autodefinem como quilombolas natildeo terem um
viacutenculo ancestral com aquele territoacuterio por serem provenientes de outra regiatildeo bem
como o fato de serem donos da aacuterea que ocupam em GuaiacuteraPR foi interpretado pelo
primeiro relatoacuterio como um fator de descaracterizaccedilatildeo de sua ldquoquilombolidaderdquo A
conquista do acesso formal agrave terra por estas famiacutelias superando todo um contexto de
exclusatildeo territorial da populaccedilatildeo negra foi entendida como um criteacuterio para negar o
reconhecimento do direito de ampliaccedilatildeo deste territoacuterio considerado como condiccedilatildeo
fundamental pelos quilombolas para viabilizar a sobrevivecircncia do grupo Este tipo de
compreensatildeo por parte dos autores do relatoacuterio evidencia uma certa expectativa de
que a condiccedilatildeo de estar agrave margem do sistema formal de propriedade seria um iacutendice
da legitimidade da reivindicaccedilatildeo de direitos territoriais quilombolas
As propriedades adquiridas na comunidade de Maracajuacute dos Gauacutechos pela famiacutelia Santos por meio de Seu Manuel natildeo caracterizam um territoacuterio preacute-existente nem se justifica o pedido pelos membros desta comunidade ou de sua representante coletiva ACONEMA de uma expansatildeo territorial (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1466 [p 56])
Tal perspectiva que parte da ideia de um territoacuterio ancestralmente ocupado
desconsidera o fato de que ldquopor sua mesma estrutura e mobilidade os quilombos natildeo
permitiram uma continuidade da ocupaccedilatildeo da terra e sobretudo natildeo deixaram restos
arqueoloacutegicos ou provas documentaisrdquo (MALIGUETTI 2000 p 102) (traduccedilatildeo minha)
Eacute muito difiacutecil encontrar provas factuais da existecircncia de quilombos histoacutericos e
praticamente impossiacutevel provar que o lugar e a terra onde as comunidades
quilombolas vivem hoje sejam os mesmos em que originariamente se formaram Este
tipo de comprovaccedilatildeo faacutetica natildeo eacute exigido pelo Decreto 48872003 que regulamenta o
procedimento de titulaccedilatildeo atualmente em vigor Em seu artigo 2ordm considera como
ldquoremanescentes das comunidades dos quilombosrdquo os grupos eacutetnico-raciais ldquosegundo
criteacuterios de auto-atribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria dotados de relaccedilotildees
territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra relacionada com a
resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo Em relaccedilatildeo agrave territorialidade afirma no sect2ordm
do mesmo artigo que ldquosatildeo terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos as utilizadas para a garantia de sua reproduccedilatildeo fiacutesica social econocircmica e
culturalrdquo
123
Natildeo haacute na legislaccedilatildeo portanto a imposiccedilatildeo de uma noccedilatildeo de verdadeiro ou
falso a partir da ideia de prova histoacuterica em relaccedilatildeo agraves narrativas daqueles que se
autodefinem como quilombolas No entanto a utilizaccedilatildeo de argumentos de ordem
histoacuterica se torna o padratildeo de persuasatildeo discursiva de modo mais amplo na
produccedilatildeo de relatoacuterios antropoloacutegicos sobre grupos quilombolas adotando loacutegicas e
linguagem proacuteprias agraves instacircncias do Estado pautadas em criteacuterios de verdade para
ganhar eficaacutecia
() os laudos sobre remanescentes de quilombos satildeo produzidos quase invariavelmente ndash com maior ou menor competecircncia clareza e elaboraccedilatildeo por parte dos seus autores ndash lanccedilando matildeo de argumentos histoacutericos Assim ao ser expulsa pela porta a histoacuteria retorna pela janela numa versatildeo ingecircnua e positivista quando natildeo simplesmente hipoteacutetica (ARRUTI 2005 p 24)
A postura analiacutetica defendida pelo primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo
aponta para a supremacia de instacircncias externas de legitimaccedilatildeo e a desconsideraccedilatildeo
do ponto de vista da comunidade o que se expressa por exemplo na busca por
comprovaccedilotildees histoacutericas Deste modo emprestam ldquoagraves identidades sociais substacircncia
e permanecircnciardquo buscando no passado uma continuidade linear com as dinacircmicas do
presente e assim desconsideram as ldquocategorias e praacuteticas nativas da construccedilatildeo
simboacutelica do grupo e de sua atualizaccedilatildeo por meio de accedilotildees sociaisrdquo (OLIVEIRA
FILHO SANTOS 2003 p 116-131) que satildeo o vetor da elaboraccedilatildeo de laudos periciais
antropoloacutegicos Ignorando o processo contiacutenuo de produccedilatildeo de fronteiras sociais o
relatoacuterio em um tom de autoridade afirma que se ldquoconstatourdquo
() com relaccedilatildeo agrave presunccedilatildeo de ancestralidade da Famiacutelia Santos primeiro natildeo haacute nenhuma memoacuteria sobre escravismo na regiatildeo em que vivem hoje segundo que eles mesmos natildeo descrevem essa ancestralidade como sendo do local onde estatildeo pois se dizem filhos de mineiros (e por exemplo o mineirismo a mineiridade satildeo demonstrados pela culinaacuteria que praticam pelo que cultivam em suas hortas dentre outros aspectos (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1528 [p 118])
Este tom objetivista perpassa todo o relatoacuterio e se amplifica no uso de
expressotildees como ldquocomprovaccedilatildeo documentalrdquo ldquoinformaccedilatildeo confirmadardquo
ldquocomprovaccedilatildeo por meio de pesquisa histoacutericardquo assim como o uso dos verbos como
ldquoconstatou-serdquo e ldquoverificou-serdquo entre outras construccedilotildees discursivas este mesmo
padratildeo Aleacutem disso ao longo do texto os autores expressam de maneira reiterada as
124
suas desconfianccedilas em relaccedilatildeo agrave legitimidade das fontes orais107 Estas posturas
estatildeo todas articuladas em uma certa visatildeo do que seria o criteacuterio antropoloacutegico de
pesquisa enquanto conhecimento teacutecnico e cientiacutefico e o papel do antropoacutelogo como
ldquopesquisador-censorrdquo em sua abordagem essencialista da identidade eacutetnica (MELLO
2012 p 44) como fica evidenciado neste trecho do relatoacuterio
Como apontam diversos autores e estudos antropoloacutegicos a antropologia se baseia nas etnografias feitas e estas natildeo satildeo apenas subjetividade dos autores eou um amontoado de dados mas sim uma compreensatildeo objetiva com argumento de objetividade etnograacutefica sobre um problema social posto para estudo Assim natildeo se incorre em um jogo de versotildees sobre um fato eou mera disputa de opiniotildees (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1511 [p 101])
Dentro desta visatildeo de uma pretensa ldquoobjetividade etnograacuteficardquo os autores do
relatoacuterio entendem que tecircm como atribuiccedilatildeo averiguar a existecircncia ou natildeo de uma
comunidade quilombola Apesar de afirmarem reconhecer e operar a partir do conceito
de autoidentificaccedilatildeo que estaacute previsto na legislaccedilatildeo nacional natildeo a incorporam como
premissa teoacuterica e etnograacutefica No iniacutecio do relatoacuterio haacute uma tentativa de justificar a
natildeo adesatildeo completa ao criteacuterio da autodefiniccedilatildeo com o argumento de que este seria
insuficiente para definir a identidade do grupo devendo ser complementado por uma
noccedilatildeo heteroidentidade que torna necessaacuterio o reconhecimento exterior de que se
trata de um grupo percebido como distinto em uma relaccedilatildeo entre ldquonoacutesrdquo e ldquoelesrdquo
No Decreto 4887 fica claro que os criteacuterios a serem reconhecidos pelo governo federal satildeo o de auto-atribuiccedilatildeo contrastando com a perspectiva antropoloacutegica interacionista relacional pois esta trabalha com o processo de construccedilatildeo da identidade onde a categoria do ldquonoacutesrdquo constroacutei-se na relaccedilatildeo com a categoria do ldquoelesrdquo natildeo existindo uma heacutetero identidade (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1422 [p 12])
Eacute possiacutevel perceber por meio de uma anaacutelise sistemaacutetica de todo o texto do
relatoacuterio que houve um uso instrumental e distorcido da teoria da identidade
107 Como observa Alessandro Portelli em seu livro ldquoEnsaios de Histoacuteria Oralrdquo os documentos satildeo
envoltos por uma ldquopresunccedilatildeo de verdade que uma certa historiografia atribui agraves fontes escritas consagrando-as com o nome de documentosrdquo Trata-se da historiografia do seacuteculo XIX que tomou o documento como uma realidade sem perceber no entanto que eles estatildeo tambeacutem permeados pela ideologia pelos sonhos e pela subjetividade de quem os escreve Esta corrente historiograacutefica teve forte influecircncia na atribuiccedilatildeo de superioridade das fontes escritas sobre as fontes orais o que se percebe claramente no acircmbito do direito e mais especificamente nos processos judiciais e administrativos (PORTELLI 201068)
125
contrastiva proposta pelo antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth Ao contraacuterio do que
afirmado no trecho acima foi a partir das contribuiccedilotildees deste autor que processos de
autoatribuiccedilatildeo passaram a ser considerados como centrais no estudo dos grupos
eacutetnicos bem como no modo de constituiccedilatildeo dos proacuteprios limites sociais do grupo com
relaccedilatildeo a outros grupos No caso das comunidades quilombolas segundo os
desdobramentos das anaacutelises desta tradiccedilatildeo teoacuterica o reconhecimento destes grupos
natildeo deve partir de ldquouma lista de traccedilos de natureza racial ou cultural originada da
interpretaccedilatildeo historiograacutefica sobre os quilombos da colocircnia ou do Impeacuteriordquo (ARRUTI
2006 p 39-40) Contraditoriamente eacute a partir de uma tal lista que os autores do
relatoacuterio parecem estabelecer os paracircmetros para embasar a pretensa ldquoobjetividade
etnograacuteficardquo que reivindicam
Esta contradiccedilatildeo fica evidente por exemplo no argumento desenvolvido a
respeito da existecircncia ou natildeo dos ldquosinais diacriacuteticos que deveriam os diferenciar dos
seus vizinhosrdquo e em natildeo os constatando concluem que fica ldquoevidente sim os sinais
diacriacuteticos que os igualam no seu modo de ser dos demais moradores da comunidade
Maracaju dos Gauacutechosrdquo (grifo meu) Esta utilizaccedilatildeo da ideia de fronteira entre ldquonoacutesrdquo e
os ldquoelesrdquo parece ter sido acionada ao longo do texto para justificar a opccedilatildeo pela
realizaccedilatildeo de um trabalho de campo ndash que consideram amplo neutro e mais
aprofundado ndash no qual estabeleceram contato efetivo de pesquisa com pessoas ldquoda
comunidade negra da comunidade de Maracaju dos Gauacutechos e da cidaderdquo108
Com relaccedilatildeo agrave ideia de que a ldquoauto-identidade que eacute definida por si mesmardquo
dependeria de uma ldquohetero-identidade que eacute definida pelos outrosrdquo109 argumentam
Compreende-se que a identidade eacute sempre contrastiva relacional e situacional focando essa fronteira entre o ldquonoacutesrdquo e os ldquooutrosrdquo se procurou dar voz ao entorno da auto denominada comunidade Negra moradores de origem eacutetnica italiana alematilde portuguesa ou entatildeo mineiros gauacutechos paulistas paraiacutebas pois a equipe de pesquisa entendeu que devia observar como os grupos se vecircem e satildeo vistos uns pelos outros (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1518 [p 108])
A despeito novamente de afirmarem que ldquoprivilegiaram a metodologia
participativa a qual prevecirc a incorporaccedilatildeo de saberes e perspectivas locais em todas
as etapas do estudordquo110 em muitos momentos do relatoacuterio a fala dos quilombolas satildeo
108 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1438 [p 28] 109 Idem p 1519 [p 109] 110 Ibidem p 1426 [p 16]
126
questionadas ao passo que agrave versatildeo dos proprietaacuterios vizinhos eacute atribuiacuteda
legitimidade considerando que esta sim poderia ser comprovada documentalmente
Essa adesatildeo ao discurso dos proprietaacuterios do entorno foi utilizada como argumento
comprovatoacuterio da natildeo existecircncia de segregaccedilatildeo racial por parte da ldquoSociedade Agro-
Pecuaacuteria Maracaju LTDArdquo que teria vendido os lotes indistintamente inclusive para
Manoel Ciriaco
Assim esta pretensa ausecircncia de discriminaccedilatildeo formal ganha destaque no
texto enquanto o sentimento de discriminaccedilatildeo vivenciado pela comunidade quilombola
eacute desqualificado Os autores afirmam por exemplo que ldquoa equipe de pesquisa
constatou atraveacutes das falas da famiacutelia Santos a existecircncia de um auto-isolamento
motivado pela pobreza e timidezrdquo111 O fato de ter ocorrido um casamento entre a
enteada de Adir Juliana (que natildeo tem viacutenculo de parentesco com o grupo e que
poderia ser considerada apenas como ldquomorenardquo na classificaccedilatildeo interna112) com um
dos descendentes dos italianos eacute considerado pelos autores como uma prova de que
natildeo haveria preconceito racial por parte dos ldquoitalianosrdquo Por outro lado identificam uma
fala ldquogeneralista e preconceituosardquo da parte de Zeacute Maria
Joseacute Maria Gonccedilalves relata que ldquoos italianos sempre quiseram comprar as nossas terras queriam afastar a gente daqui porque somos pretosrdquo Tal fala chamou a atenccedilatildeo da equipe de pesquisa pois desde o primeiro dia de pesquisa de campo se sabia que Juliana enteada do Adir Santos pertencente a auto denominada comunidade Negra Manoel Ciriaco dos santos eacute casada com Fabio Graciano filho de Paulo Um casamento entre negros e ldquoitalianosrdquo desabona a fala generalista e preconceituosa exposta por Joseacute Maria (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1473 [p 63])
Argumentam tambeacutem que puderam observar um preconceito por parte da
proacutepria comunidade Manoel Ciriaco em relaccedilatildeo aos seus vizinhos aos quais
denominariam como ldquoitalianosrdquo ldquoalematildeesrdquo ldquoratos brancosrdquo entre outros termos
Buscam atribuir assim uma equivalecircncia entre os dois lados desconsiderando a
percepccedilatildeo quilombola de uma desigualdade de poder e oportunidades entre brancos
e negros Os quilombolas afirmam neste sentido que sempre trabalharam para esses
proprietaacuterios em relaccedilotildees informais de trabalho como por meio de diaacuterias situaccedilotildees
111 Ibidem p 1520 [p 110] 112 Depois que a enteada de Adir se casou com o filho de um agricultor do Maracaju dos Gauacutechos
descendente de italianos rompeu com a comunidade inclusive tendo agredido verbalmente sua matildee e condenando a reivindicaccedilatildeo do grupo
127
nas quais eles lhes pagavam o quanto desejavam Aleacutem disso sentem-se alvo de
racismo em diversas situaccedilotildees ao longo de anos como jaacute apontamos nas falas
ressaltadas no primeiro capiacutetulo
No acircmbito desta descaracterizaccedilatildeo da comunidade produzida pelo
documento ndash que parece funcionar mais como um contra-laudo ao fundamentar-se na
ldquoheacutetero-identidaderdquo produzida pela visatildeo dos proprietaacuterios vizinhos ndash um dos aspectos
destacados diz respeito agrave suposta natildeo autenticidade da reivindicaccedilatildeo da identidade
quilombola tendo em vista que esta seria decorrente de um contato estreito com
agentes externos
Este processo de construccedilatildeo de identidade eacutetnica estaacute baseado em accedilotildees inicialmente de agentes esternos (sic) a auto denominada (sic) Comunidade Negra e que a partir destes contatos tem buscado em supostas interpretaccedilotildees de origens antepassado que teriam sido escravos (sic) bem como a criaccedilatildeo de uma memoacuteria de exclusatildeo por parte das sociedades onde viveram (Itambeacute do Serro Caiabu e agora Maracaju dos Gauacutechos) () (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1473
[p 63]) 113
Ao passo que neste relatoacuterio a inserccedilatildeo do Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura
(GTCM) no cenaacuterio poliacutetico de estiacutemulo agrave autodeclaraccedilatildeo e organizaccedilatildeo associativa
quilombola foi considerada como ilegiacutetima por ldquotrazer de forardquo a reivindicaccedilatildeo da
identidade no Relatoacuterio Antropoloacutegico da Comunidade Quilombola Aacutegua Morna
localizada em CuriuacutevaPR realizado pela antropoacuteloga Liliana Porto a importacircncia
deste trabalho do GTCM eacute destacada como uma ldquoguinada significativardquo para o
reconhecimento das comunidades quilombolas no contexto paranaense A
antropoacuteloga ressalva contudo que tal elaboraccedilatildeo identitaacuteria das comunidades soacute foi
possiacutevel tendo como base elementos preacute-existentes que foram entatildeo mobilizados
pelos grupos ldquoa partir de um contexto poliacutetico-legal novordquo (PORTO 2008 07)
Esta desvalorizaccedilatildeo por parte dos autores do relatoacuterio sobre a comunidade de
GuaiacuteraPR do que consideram ldquoelementos trazidos de forardquo implica em uma
essencializaccedilatildeo da cultura o que contrasta diretamente com a abordagem relacional
da etnicidade que afirmam adotar Dentro desta perspectiva o fato de os quilombolas
terem passado a participar posteriormente agrave certificaccedilatildeo pela Fundaccedilatildeo Cultural
Palmares de aulas de artesanato e de capoeira indicaria um esforccedilo natildeo autecircntico do
113 Transcriccedilatildeo igual agrave redaccedilatildeo no texto original inclusive com os erros de portuguecircs
128
grupo por praacuteticas que pudessem ldquolembrar haacutebitos de seus antepassadosrdquo114 No
entanto estes autores natildeo levam em conta que ldquoos discursos sobre o passado
apontam a maneira como no presente se lida com este passadordquo (PORTO SALLES
MARQUES 2013 p174) tendo em vista ainda uma certa de expectativa de futuro
Neste sentido segundo Joatildeo Aparecido quilombola que mora na comunidade
e que eacute filho de Manoel Ciriaco a capoeira jaacute era praticada por eles mas natildeo do
mesmo jeito que passaram a jogar com as aulas do Mestre Djalma Este professor foi
contratado pela prefeitura a partir de uma articulaccedilatildeo dos quilombolas Antes segundo
Joatildeo a praacutetica da capoeira era uma brincadeira ensinada pelos primos que moravam
em AssisSP que tinham mais experiecircncia Com as aulas do Mestre Djalma na
comunidade comeccedilaram a aprender de forma sistematizada com troca de cordatildeo115
realizada em Guaiacutera e com uma periodicidade que proporcionou o envolvimento todos
os jovens da comunidade Este enfoque em atividades para os jovens eacute algo sempre
reforccedilado por Adir como uma necessidade de trazecirc-los mais proacuteximos da histoacuteria do
grupo da cultura pois satildeo eles que iratildeo dar continuidade no futuro
A capoeira foi entatildeo mobilizada como um marcador da diferenccedila cultural do
grupo na condiccedilatildeo de siacutembolo de resistecircncia dos escravos ao sistema de opressatildeo e
tornou-se tambeacutem uma espeacutecie de ldquoritual poliacuteticordquo para demarcar fronteiras a partir da
exigecircncia de descontinuidade com os regionais116 Todas as vezes que a comunidade
recebe visita de escolas sobre as quais mencionamos no primeiro capiacutetulo eacute a roda
de capoeira a performance da cultura escolhida para falar sobre as origens do grupo
e sobre a continuidade de sua luta Neste sentido Adir compara a resistecircncia dos
negros do passado com o momento presente do grupo no qual continuam resistindo
aos processos de negaccedilatildeo de direitos impostos a partir da loacutegica do capitalismo em
que as exclusotildees social e racial se reforccedilam mutuamente Joatildeo Aparecido tambeacutem
comentou que escolheram o berimbau como siacutembolo da Associaccedilatildeo Comunidade
Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) porque a capoeira ajudou na histoacuteria
114 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1513 [p 103] 115 Momento no qual o aluno sobe de gradaccedilatildeo e recebe um novo cordatildeo que usa com o uniforme do
grupo de capoeira Para tanto no dia da troca ele tem que colocar em praacutetica o que aprendeu no entanto ldquotem que esquivar mas natildeo pode revidarrdquo 116 No caso analisado por Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho sobre a emergecircncia de identidades indiacutegenas no Nordeste o ritual poliacutetico mobilizado foi o ldquotoreacuterdquo protagonizado ldquosempre que eacute necessaacuterio demarcar as fronteiras entre lsquoiacutendiosrsquo e lsquobrancosrsquo Ele ldquopermite exibir a todos os atores presentes nessa situaccedilatildeo intereacutetnica (regionais indigenistas e os proacuteprios iacutendios) os sinais diacriacuteticos de uma indianidade (Oliveira 1988) peculiar aos iacutendios do Nordesterdquo (OLIVEIRA FILHO 1997 p 60)
129
dos quilombos e se relaciona diretamente com a religiosidade do grupo lembrando-
se de como o seu irmatildeo Zeacute Maria gostava de cantar as ladainhas de capoeira que
satildeo como os pontos do terreiro de Umbanda117
Na anaacutelise dos processos de autoidentificaccedilatildeo eacutetnica segundo Barth e sua
teoria da identidade contrastiva natildeo satildeo as diferenccedilas em si que importam mas como
em determinados contextos elas satildeo acionadas (BARTH 2011) como neste caso do
acionamento da capoeira como um siacutembolo central da comunidade Ademais o
compartilhamento por um grupo de uma mesma cultura e a consequente produccedilatildeo de
diferenccedilas culturais deve ser lido como consequecircncia de processos de interaccedilatildeo e
natildeo como causa primeira (VILLAR 2004 171) Na contramatildeo desta perspectiva os
autores do relatoacuterio antropoloacutegico pareciam estar agrave procura de traccedilos ldquooriginaisrdquo que
correspondessem a um modelo estereotiacutepico de quilombo Tal noccedilatildeo pode ser
remetida ao modo como a histoacuteria oficial se reporta agrave experiecircncia da formaccedilatildeo de
quilombos enquanto fenocircmeno social que ocorreu durante o periacuteodo escravista118
Em relaccedilatildeo agrave anaacutelise da presenccedila de ldquomemoacuterias sobre a escravidatildeordquo na
comunidade os autores do relatoacuterio afirmam que apesar de existirem referecircncias agrave
escravidatildeo natildeo existiriam ldquoreminiscecircncias de um quilombordquo119 Afirmam entatildeo que
ldquoa identidade como algo contrastivo se faz presente desde antes desse pedido de
reconhecimentordquo mas que ldquoa construccedilatildeo de uma identidade quilombola eacute algo
recenterdquo120 Deste modo o relatoacuterio eacute finalizado com a seguinte conclusatildeo
Por fim a equipe de pesquisa esclarece que o que se viu constatou e
verificou foram somente dois lotes rurais de nuacutemeros 186ordf (pertencentes por
heranccedila aos filhos de Seu Manoel C Santos) assim como os lotes rurais dos
seus vizinhos como constatado no mapa da Gleba nordm 4-A colocircnia ldquoCrdquo Serra
Maracajuacute natildeo havendo distinccedilatildeo entre eles portanto natildeo haacute qualquer
territorialidade quilombola possiacutevel na regiatildeo da comunidade de Maracajuacute dos
Gauacutechos Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do
INCRAPR p 1532 [p 122]
117 Por outro lado a religiosidade embora central como vimos no capiacutetulo anterior natildeo eacute mobilizada
pelo grupo como marcador puacuteblico de identidade o que pode estar ligado a uma estrateacutegia de evitar as criacuteticas geradas pela combinaccedilatildeo de preconceito racial e religioso bem como pode decorrer da opccedilatildeo de deixar a esfera do sagrado separada das dinacircmicas de mobilizaccedilatildeo identitaacuterias pelo seu proacuteprio valor especial e superior 118 Deste modo determinadas caracteriacutesticas da experiecircncia do quilombo com mais repercussatildeo histoacuterica o quilombo de Palmares tecircm sido colocadas como regras e condicionantes para o reconhecimento de outros grupos com histoacuterias e caracteriacutesticas diversas (MILANO 2011 31) 119 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1505 [p 95] 120 Idem p 1521 [p 111]
130
Esta insistecircncia em uma classificaccedilatildeo externa por parte dos autores do relatoacuterio
se desdobra em um mecanismo de controle sobre os grupos e suas formas de viver
na medida em que natildeo reconhece a possibilidade de autoidentificaccedilatildeo destes grupos
Deste modo
ldquose a situaccedilatildeo se desdobra em um mecanismo de controle sobre os grupos populaccedilotildees sobre suas formas de viver na medida pois ldquose a situaccedilatildeo presente eacute de pluralismo do corpo social se natildeo mais subsiste o poder de um grupo sobre os demais natildeo haacute soluccedilatildeo possiacutevel senatildeo que cada qual assuma para si as suas definiccedilotildees identitaacuteriasrdquo (DUPRAT 2014 p 60)
Natildeo eacute pertinente portanto fundamentar a negativa do acesso ao direito
territorial quilombola como faz o relatoacuterio com base no argumento de que haveria
uma manipulaccedilatildeo identitaacuteria por parte do grupo Este ponto de vista decorre de uma
perspectiva superada teoricamente na antropologia que parte de uma
ldquoessencializaccedilatildeo impliacutecita dos conteuacutedos socioculturais que informariam as
identidades eacutetnicasrdquo (SANTOS 1996 p 136)
Muitas perguntas podem ser levantadas com a anaacutelise deste documento Eacute
possiacutevel que a antropologia sirva a interesses antagocircnicos como de quilombolas e de
proprietaacuterios vizinhos Pode a antropologia ser vista como um saber teacutecnico e natildeo
poliacutetico Eacute possiacutevel reconhecer a diversidade sem transformar o Outro em uma
imagem paacutelida de noacutes mesmos Sem pretender esgotar o debate entendo que antes
de mais nada eacute necessaacuterio aceitar que haacute muito o que se avanccedilar nas poliacuteticas
puacuteblicas no Brasil para que natildeo seja a proacutepria imagem do Estado sobre a diversidade
a uacutenica possibilidade de reconhecimento admitida (HARTUNG 2009 p 11)
Para os quilombolas de GuaiacuteraPR as consequecircncias do primeiro relatoacuterio
foram muito graves como veremos a respeito do conflito desencadeado ndash que seraacute
abordado no toacutepico abaixo A necessidade de lidar com a negaccedilatildeo oficial de sua
identidade colocou-os diante de uma encruzilhada ou desistiam do processo em
tracircmite no INCRA de modo que a primeira versatildeo do relatoacuterio se tornaria a uacutenica
interpretaccedilatildeo oficial sobre a trajetoacuteria do grupo ndash mesmo que natildeo aprovada pelo
INCRA e pela comunidade ndash ou optariam por passar por um novo estudo que
recomeccedilaria todo o processo e poderia reacender os conflitos com os proprietaacuterios
vizinhos mas por outro lado tambeacutem seria uma chance de rever e responder aos
questionamentos colocados pela equipe da UNIOESTE e dar seguimento agrave
131
reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo territorial do grupo Decidiram entatildeo continuar a trilhar o
caminho do reconhecimento territorial
23 O CONFLITO COM OS PROPRIETAacuteRIOS VIZINHOS
O processo de produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo foi o eixo de
um conflito desencadeado entre a comunidade quilombola e os proprietaacuterios vizinhos
como analisaremos neste momento Quando finalizado este documento natildeo foi
aprovado pela comunidade que natildeo se sentiu nele representada nem tampouco pelo
INCRA que por questotildees de insuficiecircncias teacutecnicas o rejeitou No ano de 2012
ocorreu a produccedilatildeo de um segundo relatoacuterio como uma das respostas institucionais
do INCRA diante da grave situaccedilatildeo em que o grupo quilombola se encontrava e de
cuja responsabilidade tal oacutergatildeo natildeo poderia se furtar
As razotildees do INCRA para ter rejeitado o primeiro relatoacuterio podem ser
sintetizadas nos seguintes pontos conforme Informaccedilatildeo Teacutecnica produzida por um
antropoacutelogo do INCRA da Coordenaccedilatildeo Geral de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios
Quilombolas em Brasiacutelia (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do
INCRAPR p 1576-1579)
a) Argumentaccedilatildeo contraacuteria ao processo de construccedilatildeo identitaacuteria da
comunidade vista como uma tentativa de manipulaccedilatildeo jaacute que afirmam
natildeo existir nenhuma diferenciaccedilatildeo com os proprietaacuterios do entorno
b) Ausecircncia de reflexotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica da comunidade que daacute
sentido agrave construccedilatildeo da territorialidade bem como sobre os conflitos com
a comunidade envolvente o processo de perda territorial a organizaccedilatildeo
social da comunidade o modo como se relaciona com o territoacuterio e o meio
ambiente
c) Ausecircncia de uma proposta de delimitaccedilatildeo territorial para a comunidade
tendo em vista que os autores mantiveram a posiccedilatildeo de que natildeo existiria
um territoacuterio quilombola a ser indicado natildeo atendendo assim aos
objetivos deste tipo de estudo
132
d) Incompatibilidade do relatoacuterio com os termos da Instruccedilatildeo Normativa em
vigor na eacutepoca IN 492008 bem como com o convecircnio entre o INCRA e a
UNIOESTE
Eacute possiacutevel observar que a avaliaccedilatildeo do INCRA em relaccedilatildeo ao primeiro
relatoacuterio se aproxima da visatildeo da comunidade sobre a atuaccedilatildeo da primeira equipe
expressa na insatisfaccedilatildeo dos quilombolas por considerarem que natildeo houve uma
ldquoescutardquo de suas narrativas memoacuterias pontos de vistas sentimentos e projetos Este
descontentamento da comunidade foi denunciado pela Federaccedilatildeo das Comunidades
Quilombolas do Paranaacute (FECOQUI) agrave 6ordf Cacircmara de Coordenaccedilatildeo e Revisatildeo sobre
Povos Indiacutegenas e Comunidades Tradicionais do Ministeacuterio Puacuteblico Federal e tambeacutem
agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia (ABA) tendo o antropoacutelogo responsaacutevel pelo
primeiro relatoacuterio sido advertido por falta grave por esta uacuteltima instituiccedilatildeo A despeito
de o INCRA ter rejeitado o estudo e depois ter contratado uma nova equipe de
pesquisadores bem como de seus funcionaacuterios tambeacutem terem sido viacutetimas da reaccedilatildeo
dos proprietaacuterios vizinhos isto natildeo os isentou na avaliaccedilatildeo dos quilombolas da
responsabilidade pelos desdobramentos ocorridos Como afirmou Adir de forma
enfaacutetica ldquoquando veio o impacto do trabalho do INCRA nossa nos devorou
arrebentourdquo
A autodeclaraccedilatildeo deste grupo como quilombola e a reivindicaccedilatildeo de
ampliaccedilatildeo territorial implicou que arcassem com consequecircncias negativas
importantes como a evidenciaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo de conflitos com os grupos locais O
conflito com os proprietaacuterios vizinhos foi considerado pelo governo estadual como um
dos piores do estado do Paranaacute tendo em vista as frequentes ameaccedilas de violecircncia
fiacutesica e uma seacuterie de violecircncias simboacutelicas que atingiram a comunidade Em 2009
enquanto este primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo estava sendo produzido a
mobilizaccedilatildeo do grupo contraacuterio liderada pelo entatildeo presidente do Sindicato Rural
Patronal de Guaiacutera Silvanir Rosseti teve apoio da imprensa local e regional em seus
questionamentos sobre a identidade quilombola e a ampliaccedilatildeo do territoacuterio do grupo
Essa oposiccedilatildeo tatildeo intensa dos proprietaacuterios vizinhos intensificou-se ainda
mais quando tiveram acesso de modo irregular ao mapa preliminar ndash construiacutedo por
meio da orientaccedilatildeo dada pelos antropoacutelogos da primeira equipe aos quilombolas ndash
que supostamente representaria o territoacuterio reivindicado pela comunidade Acontece
133
que o modo como os antropoacutelogos orientaram o grupo sobre os criteacuterios para a
indicaccedilatildeo das aacutereas eacute questionado por Joaquim e Adir que ressaltam a dificuldade
sentida para a compreensatildeo a linguagem dos pesquisadores o que gerou uma falta
de fluidez na comunicaccedilatildeo entre eles Atualmente eles percebem que teriam sido
induzidos a indicar uma aacuterea maior do que pretendiam incluindo todas as
propriedades com as quais tinham tido viacutenculos mesmo que fossem apenas por meio
de trabalho121 Conjugando esta interpretaccedilatildeo com a que fazem em relaccedilatildeo ao
compromisso dos antropoacutelogos com os proprietaacuterios vizinhos a elaboraccedilatildeo de um
mapa com pretensotildees muito maiores do que era reivindicado pelo grupo teria servido
natildeo soacute para enfraquecer sua demanda territorial como para justificar a forte reaccedilatildeo
dos donos das aacutereas indicadas
Joaquim Esses outros antropoacutelogos sabe o que eles fizeram com a gente
Dandara Eles jogaram noacutes contra a parede Eles falou de onde eacute que noacutes
tinha viacutenculo com aquela terra aquela propriedade noacutes tinha que indicar Aiacute
noacutes falamos ldquomas naquela propriedade tem essa daqui oacute noacutes tem viacutenculo
essa daqui nem essa daqui noacutes natildeo temrdquo ldquoNatildeo tem que ir levando tudo
Vocecircs pode ir ateacute 10 km cecircs pode ateacute ir daqui em Guaiacuterardquo (fala dos
antropoacutelogos)
Adir Vocecirc que taacute com esse estudo eu tenho certeza que vocecirc vai conseguir vocecirc vai passar A antropologia do Professor Antocircnio que era o chefe laacute da equipe falar a verdade Um cara que fala vocecirc pode ver o cara fala e duratildeo Fala de uma maneira que natildeo eacute a nossa linguagem Eles natildeo podia fazer isso com noacutes que eles fez
Joaquim Eles vieram trecircs vezes aqui Dandara e eles falou ldquoou vocecircs daacute a resposta hoje ou se natildeo vocecircs vai de aacutegua baixordquo Noacutes tinha que falar eles falou assim ldquomas noacutes tambeacutem noacutes temos contrato que se vocecircs natildeo vai fazer a indicaccedilatildeo entatildeo noacutes mesmo fazrdquo Noacutes podia ter deixado eles fazer
A assimetria na relaccedilatildeo entre os antropoacutelogos e os quilombolas bem como a
dificuldade de diaacutelogo satildeo portanto questotildees centrais na maneira como o grupo
interpreta os fatos ocorridos Em contraste com esta situaccedilatildeo de pesquisa que
consideram malsucedida eu sou entatildeo colocada no diaacutelogo acima entre Adir e
Joaquim quando Adir afirma ldquovocecirc que taacute com esse estudo eu tenho certeza que
vocecirc vai conseguir vocecirc vai passarrdquo A comparaccedilatildeo entre a minha pesquisa e a
pesquisa do primeiro relatoacuterio natildeo eacute feita por Adir de um modo direto mas eacute possiacutevel
121 No acircmbito do procedimento de reconhecimento territorial o fato de terem trabalhado para os proprietaacuterios vizinhos natildeo eacute criteacuterio para ampliaccedilatildeo da aacuterea que jaacute possuem com base no artigo 2ordm do Decreto Federal 4887 de 2003
134
inferir que por ter sido construiacuteda uma relaccedilatildeo de confianccedila entre mim e os membros
do grupo ndash relaccedilatildeo esta que antecedia a proacutepria pesquisa e que remete a minha antiga
posiccedilatildeo como assessora do Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute ndash havia uma
expectativa positiva de que o resultado do meu trabalho iria trazer algum tipo de
contribuiccedilatildeo para a comunidade
Eacute a falta de confianccedila dos quilombolas em relaccedilatildeo ao trabalho da primeira
equipe de pesquisadores que no presente embasa esta percepccedilatildeo de que teriam
sido enganados pelas orientaccedilotildees dos antropoacutelogos quando da elaboraccedilatildeo do mapa
preliminar Uma desconfianccedila que foi se acentuando durante o processo de pesquisa
ateacute que fosse confirmada segundo eles pelo proacuteprio resultado do relatoacuterio final que
era contraacuterio agraves reivindicaccedilotildees da comunidade Com a colocaccedilatildeo de Joaquim no
diaacutelogo acima ndash ldquoNoacutes podia ter deixado eles fazerrdquo ndash percebe-se que ao se sentirem
incomodados com as orientaccedilotildees passadas pelos antropoacutelogos eles poderiam ter
tomado outra atitude ao inveacutes de naquele momento terem aceitado a pressatildeo dos
antropoacutelogos de que o mapa soacute poderia ser produzido daquela maneira
Joaquim me contou entatildeo como ldquoo INCRA deixou eles (os vizinhos)
roubarem o mapardquo jaacute que o oacutergatildeo deveria ao contraacuterio ter zelado por este
documento de importacircncia central para o processo tanto em um niacutevel administrativo
como para as dinacircmicas de relaccedilotildees locais em torno da questatildeo territorial Observa-
se na fala de Joaquim uma ambiguidade na forma como ele avalia a posiccedilatildeo do oacutergatildeo
federal que se de um lado estava atuando na regiatildeo com o objetivo de garantir o
direito do grupo de outro mostra-se imprudente ao contratar pesquisadores
inadequados para realizar o estudo e ainda acaba por perder o mapa preliminar
Joaquim Eacute Dandara eu jaacute desconfiei na hora sabe por quecirc A indicaccedilatildeo que noacutes fez era bem grande aiacute eles ponharam eu e a Claudia do INCRA o Adir natildeo tava aqui eu e a Claacuteudia o motorista e um outro que veio saber onde eacute que a gente tinha indicaccedilatildeo e noacutes andamos tudo em volta com a camionete do INCRA Aiacute quando chegou aqui o cara falou assim ldquoEh a indicaccedilatildeo eacute muito a aacuterea eacute muito granderdquo Ateacute o cara desconfiou da aacuterea aiacute eu falei ldquoquem fez noacutes dar essa indicaccedilatildeo Os antropoacutelogos Que eles falou que noacutes podia ir ateacute 20 30 km e noacutes foi indicandordquo E depois a turma do INCRA deixou eles roubarem o mapa a coacutepia do mapa Eu natildeo sei como eacute que eles fizeram eles tiraram de dentro da camioneta ali embaixo ali Aiacute eles passaram a divulgaccedilatildeo pra todo mundo Eles levaram no Sindicato Patronal levou pra casa de um cara que eu sei onde eacute que eacute laacute pra frente aiacute esconderam porque a poliacutecia podia ir atraacutes neacute Aiacute a poliacutecia natildeo sabia que um passou pro outro foi passando Aiacute aumentaram a aacuterea ponharam uma parte do municiacutepio de Terra Roxa Aiacute eles botaram os dois municiacutepios contra a gente E eu ainda falei com a Juliana assim ldquomas vocecircs tinha uma coisa em segredo eles que tava com essa coacutepia natildeo podia ter deixado as turma
135
roubarrdquo () Aiacute quando eles tinham tomado a chave da camioneta quando eles subiram laacute pra cima no meio da roccedila tava tudo limpo natildeo tinha plantaccedilatildeo nenhuma aiacute eles pegaram terra assim colocaram dentro do tanque da camioneta Eles (funcionaacuterios do INCRA) ficaram detido das oito horas da manhatilde ateacute as trecircs horas da tarde A Poliacutecia Federal que veio soltar eles aliacute E aiacute depois cercaram a camioneta cercaram eles duas vez dentro do Maracaju e natildeo deixaram eles descer aqui embaixo
Esta ocasiatildeo de forte tensatildeo social ocorrida em 30 de setembro de 2009 foi
o primeiro protesto realizado pelos proprietaacuterios vizinhos Os funcionaacuterios do INCRA
sofreram ameaccedilas ndash como a de que o carro da instituiccedilatildeo seria incendiado ndash e foram
impedidos de chegar agrave comunidade tendo sido mantidos como refeacutens por algumas
horas dentro de uma casa nas proximidades da comunidade122 A gravidade do
conflito ganhou repercussatildeo pela presenccedila das emissoras de televisatildeo Tarobaacute e
Record bem como a raacutedio de Guaiacutera
Adir () Quando foi trecircs horas da tarde aiacute a rede Record veio aqui em casa a raacutedio tudo aqui Aiacute disse ldquooacute Adir eu quero saber o que que taacute acontecendo se vocecirc pode dar uma entrevista pra falar dos seus vizinhos pra falar da sua convivecircncia com eles desse trabalho que taacute sendo feito do INCRA Aiacute que eu falei pra eles eu falei assim ldquoeu natildeo vou dar entrevista de nada o que eu vou falar com vocecircs eacute o seguinte esse trabalho natildeo eacute nosso eacute do INCRA esse levantamento que foi feito pra noacutes ser reconhecido aqui natildeo foi noacutes eacute o governo vocecircs tem que conversar com o governo e conversar com o pessoal do INCRA Noacutes tamo aqui haacute tantos anos e vamos continuar o mesmo eles tambeacutem vatildeo continuar noacutes natildeo queremos nada que eacute deles Se o INCRA taacute fazendo um trabalho que ateacute pra noacutes eacute uma surpresa porque noacutes natildeo entende o que taacute acontecendo natildeo queremos confusatildeo com ningueacutem guerra com ningueacutem E noacutes hoje noacutes estamos podendo falar da nossa cultura aquilo que a gente natildeo pocircde falar a gente ficou preso a vida inteira sem poder pronunciar o que que a gente eacute de verdaderdquo Aiacute chamei as crianccedilas todas e falei ldquovamos mostrar pra eles o que Vamos tocar pra eles vamos cantar vamos tocar vamos bater atabaque e eacute issordquo Aiacute chamei as crianccedilas noacutes toquemo cantamos e ldquoEacute isso se vocecircs quiser filmar vocecircs filma isso aqui Pelo menos vamos preservar a nossa cultura aquilo que a gente natildeo pocircde falar Agora essa questatildeo aiacute natildeo eacute nossa Eacute questatildeo do INCRA e vocecircs Do governo federal e do governo estadual natildeo eacute nossardquo
Quando Adir relata sua recusa em dar uma resposta para a emissora ele estaacute
indicando que a responsabilidade pelo trabalho que estava sendo conduzido natildeo era
dos quilombolas e sim do INCRA Pelo modo como ocorreu o contato com a primeira
equipe de pesquisadores os quilombolas acabam se sentindo viacutetimas e natildeo sujeitos
do processo Por outro lado a resposta de Adir reforccedila o aspecto positivo do processo
122 O Ministeacuterio Puacuteblico Federal de Umuarama ofereceu denuacutencia contra os proprietaacuterios que se ldquoopuseram agrave execuccedilatildeo do ato legalrdquo por parte do INCRA que realizaria na oportunidade levantamento agroambiental referente ao procedimento da Comunidade Quilombola A denuacutencia estaacute disponiacutevel em httpwwwprprmpfgovbrpdfs2013umuarama20-20quilombolas20-20denunciapdf Acesso em 241015
136
de reconhecimento como forma de ter a voz do grupo reconhecida no espaccedilo puacuteblico
abrindo a possibilidade de falarem de sua cultura de pronunciarem sua identidade e
por isso conclui dizendo ldquovamos tocar vamos cantarrdquo Contudo se o processo de
regularizaccedilatildeo territorial poderia ter sido este momento de valorizaccedilatildeo da memoacuteria da
histoacuteria do grupo e de suas reivindicaccedilotildees ele natildeo alcanccedila o resultado esperado jaacute
que por meio da atuaccedilatildeo de agentes autorizados pelo Estado para produzirem o
relatoacuterio antropoloacutegico a legitimidade de suas falas lhe eacute novamente negada
Em um outro episoacutedio de conflito ocorrido em 20 de novembro de 2009 dia
da consciecircncia negra os quilombolas saiacuteam de ocircnibus em direccedilatildeo a Marechal
Cacircndido Rondon municiacutepio da regiatildeo para apresentaccedilatildeo do grupo de capoeira em
duas escolas estaduais No entanto em protesto os proprietaacuterios vizinhos fecharam
a estrada do bairro rural ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo com ameaccedilas de que iriam incendiar
o ocircnibus Apoacutes horas de negociaccedilatildeo o grupo de quilombolas conseguiu ultrapassar a
barreira de manifestantes Esta situaccedilatildeo de obstruccedilatildeo da estrada ocorreu em outras
ocasiotildees por exemplo com o impedimento de que cestas baacutesicas chegassem agrave
comunidade Houve portanto um processo de inviabilizaccedilatildeo de movimentos e
restriccedilatildeo de circulaccedilatildeo dos quilombolas que eram possiacuteveis antes do iniacutecio dos
estudos para o primeiro relatoacuterio
Um exemplo importante dessas restriccedilotildees ocorreu na articulaccedilatildeo por parte
dos vizinhos por meio do Sindicato Rural Patronal para natildeo mais contratarem
quilombolas para trabalharem em suas propriedades nas quais faziam diversos tipos
de funccedilotildees desde cortar rama carpir plantaccedilatildeo rancaccedilatildeo de mandioca entre outros
e recebiam por diaacuteria Segundo me relataram a situaccedilatildeo econocircmica da comunidade
se agravou pois este tipo de trabalho antes permitia uma complementaccedilatildeo
fundamental da fonte de renda das famiacutelias quilombolas Aleacutem disso os proprietaacuterios
vizinhos tambeacutem influenciaram os donos de comeacutercio para natildeo dar creacutedito para estas
famiacutelias Sem trabalho ou creacutedito dependeram de doaccedilatildeo de cestas baacutesicas por parte
do Estado uacutenico auxiacutelio direto dos oacutergatildeos puacuteblicos que destacam terem recebido
(outros tipos de auxiacutelio estatildeo ligados agrave mediaccedilatildeo de conflitos) Esta situaccedilatildeo de
dependecircncia eacute vista por Adir e Joaquim como algo ateacute vergonhoso pois consideram
digno conquistar as coisas com o proacuteprio trabalho mas para isso teriam que ter
oportunidades por meio de projetos dos oacutergatildeos puacuteblicos para geraccedilatildeo de renda na
comunidade
137
Adir Porque eacute o seguinte se tem editais tem projeto tem tudo e noacutes na situaccedilatildeo que noacutes se encontramos aqui eles (agentes do Estado) viram eles mesmo viram com os proacuteprios olhos e nos auxiliaram em nada nos apoiaram em nada soacute apoiaram com conversa e noacutes aqui precisando ateacute hoje eu fico preocupado com esses jovens fico preocupado com essas mulheres porque noacutes soacute vamos conseguir afirmar aqui com trabalho com geraccedilatildeo de renda O primeiro passo eacute a geraccedilatildeo de renda Aiacute noacutes consegue ter uma comunidade decente natildeo viver de cesta de baacutesica que isso eu natildeo quero
Joaquim E se fosse pra noacutes viver de cesta baacutesica noacutes jaacute tinha morrido de fome Eles fica cinco seis mecircs sem mandar
Adir A cesta baacutesica ela natildeo daacute noacutes assim poder pra noacutes crescer noacutes queremos viver do nosso proacuteprio suor do nosso proacuteprio trabalho
Joaquim Eacute que noacutes nunca vivemos de cesta baacutesica
Adir Pra noacutes conseguir comprar o que eacute nosso ter o prazer de ocecirc chegar e comprar tocirc trabalhando e tenho condiccedilotildees de fazer isso Viver de cesta baacutesica isso natildeo existe noacutes natildeo queremos isso noacutes queremos ter nosso proacuteprio sustento que noacutes sempre vivia trabalhamos nem que for sofrendo e tudo mas nosso sustento Natildeo viver eacute dependendo de cesta baacutesica dependendo de governo natildeo dependendo de noacutes mesmo eacute isso que eu quero escrever pra SEPPIR e pra Fundaccedilatildeo Palmares Que eacute muito bonito nos eventos que eu jaacute fui vaacuterios nossa jaacute perdi a conta de andar nesse Brasil No comeccedilo eu ia com esperanccedila e trazia aquela esperanccedila aquela coisa pra dentro da comunidade falava pra eles que era isso e aquilo outro que ia acontecer que ia acontecer
Assim como observamos no capiacutetulo anterior esta situaccedilatildeo de
vulnerabilidade desencadeada pelos conflitos em torno do primeiro relatoacuterio reforccedilou
o sentimento de sofrimento e humilhaccedilatildeo que estaacute presente na leitura que fazem de
sua trajetoacuteria coletiva Na fala de Adir abaixo em que avalia a poliacutetica puacuteblica para as
comunidades quilombolas ele aponta para a expectativa de que o contato com os
diversos oacutergatildeos puacuteblicos responsaacuteveis jaacute tivesse naquele momento repercutido de
forma positiva para a comunidade123
Adir Eacute e daiacute a gente Dandara trazia uma esperanccedila pra comunidade e aiacute depois eu comecei a trazer uma desesperanccedila pra dentro da comunidade Aiacute como que fica Um presidente da comunidade taacute indo atraacutes laacute o pessoal fica esperando e eu trazer o quecirc pra eles Comecei a natildeo trazer mais nada Comecei nem a falar nada mais pra eles porque eu ia e voltava falar o quecirc Trazer o quecirc Papel Papel Soacute Na praacutetica nada Aiacute eu comecei ateacute eu ter desesperanccedila Eu luto sim porque eu tenho um conhecimento hoje mas eu vou correr atraacutes daquilo que quando eu vejo que eacute certo eu tenho que lutar nem que tenha dificuldade burocracia cecirc sabe que isso existe
123 Uma das principais demandas do grupo eacute a garantia de uma dinacircmica interna de geraccedilatildeo de renda
que crie para os quilombolas autonomia de trabalho e que viabilize a permanecircncia das famiacutelias no territoacuterio
138
Esta posiccedilatildeo de mediador poliacutetico ocupada por Adir teve consequecircncias
graves durante os conflitos em decorrecircncia da pressatildeo dos vizinhos que de certo
modo foi nele personificada Sofreu vaacuterias ameaccedilas de morte e foi incluiacutedo no
Programa de Proteccedilatildeo aos Defensores dos Direitos Humanos da Secretaria de
Direitos da Presidecircncia da Repuacuteblica Uma das ameaccedilas que sofreu foi atraveacutes de um
trabalho de magia feito contra ele Foram encontrados nos fundos da aacuterea da
comunidade um pequeno caixatildeo uma galinha morta vela pinga areia e uma cruz
com o nome de Adir e a data em que seria morto 13012010 A relevacircncia desta
ameaccedila estaacute ligada a uma referecircncia expliacutecita agrave religiosidade afro-brasileira do grupo
vinculada agrave Umbanda Adir me contou como foi ateacute o lugar e jogou sal grosso em cima
do trabalho para se proteger O jornal local noticiou o ocorrido trazendo a fala de Adir
em resposta ldquoConhecemos essa arte termos irmatildeos que frequentaram a Mesa
Branca a pessoa que fez isso natildeo sabe com quem estaacute brincandordquo
Geralda irmatilde de Adir me explicou de modo indignado mesmo depois de anos
do ocorrido que ela e seu marido por frequentarem o centro de Umbanda foram
acusados pelos vizinhos de terem feito aquilo para gerar falaccedilatildeo Para ela foram os
proacuteprios vizinhos que fizeram o trabalho e os acusaram com o objetivo de criar uma
crise interna na famiacutelia Segundo Geralda os vizinhos tambeacutem frequentam terreiros
mas de modo velado jaacute que natildeo ldquovatildeo ali na regiatildeo porque natildeo querem que ningueacutem
saiba que eles mexem com issordquo Deste modo os vizinhos natildeo explicitariam o viacutenculo
com terreiros de Umbanda jaacute que tecircm acesso e influecircncia junto ao padre local tendo
inclusive acionado esta influecircncia contra os quilombolas para ldquotirar eles da Igrejardquo
139
FIGURA 18 Liacuteder da comunidade quilombola eacute ameaccedilado FONTE Jornal Paranazatildeo 11 de setembro de 2009
140
A acusaccedilatildeo contra Geralda e seu marido indica como abordamos no capiacutetulo
anterior a percepccedilatildeo dos vizinhos em relaccedilatildeo ao grupo de que eles seriam ldquonegros
feiticeiros ou macumbeirosrdquo atribuindo-lhes natildeo soacute uma inadequaccedilatildeo moral mas
tambeacutem uma representaccedilatildeo como possiacuteveis agressores (PORTO 2014 p 199) Por
um lado se haacute uma condenaccedilatildeo moral na interpretaccedilatildeo das religiotildees afro-brasileiras
parece haver por outro um reconhecimento de sua eficaacutecia pois aleacutem de Geralda
afirmar que eles tambeacutem acionam este circuito religioso de modo velado teriam se
utilizado de um trabalho para tentar agredir seus oponentes neste momento de
exacerbaccedilatildeo do conflito Eficaacutecia esta natildeo reconhecida no acircmbito de uma esfera
religiosa mas como uma praacutetica de ldquomagiardquo o que acaba por reforccedilar a atribuiccedilatildeo de
subalternidade que seria conferida a este tipo de praacutetica miacutestica (BRUMANA
MARTINEZ 1991 p 81) Esta ameaccedila contra Adir ganhou repercussatildeo no jornal local
como mais uma forma de intimidaccedilatildeo contra o liacuteder da comunidade
A tensatildeo entre brancos e negros antes latente transformou-se com a
eclosatildeo do conflito no que Adir denominou de ldquoapartheidrdquo Esta situaccedilatildeo ficou
evidente para ele principalmente na dificuldade de convivecircncia entre as crianccedilas e
adolescentes da comunidade e os filhos dos proprietaacuterios vizinhos que pegavam
juntos o ocircnibus para ir para a escola Jaqueline (19 anos) filha de Joaquim contou
como o preconceito que jaacute sofria na escola por sempre ter sido a uacutenica negra de sua
sala agravou-se durante o conflito Ela tinha que escutar os outros adolescentes
falando que sua comunidade iria roubar a terra dos pais deles No ocircnibus os filhos
dos proprietaacuterios vizinhos natildeo deixavam que as crianccedilas e adolescentes da
comunidade se sentassem juntos deles
Outro fato que marcou muito o grupo no final de 2009 foi a morte do irmatildeo
mais velho e liacuteder interno da comunidade Zeacute Maria que sofria de diabetes Nos
relatos sobre este periacuteodo os seus irmatildeos responsabilizam as ameaccedilas e o conflito
com os vizinhos os quais foram pressionando os quilombolas e teriam assim
contribuiacutedo para fragilizar a sauacutede de Zeacute Maria Ademais eles contam como enquanto
seu corpo estava sendo velado na comunidade indignaram-se ao ouvirem fogos de
artifiacutecios que entenderam como ato de comemoraccedilatildeo provocaccedilatildeo e total desrespeito
por parte dos vizinhos agrave situaccedilatildeo de perda da famiacutelia
Neste contexto de adversidade procuraram apoio junto a vaacuterios oacutergatildeos puacuteblicos
como a Poliacutecia Federal a Poliacutecia Civil a Poliacutecia Militar o Ministeacuterio Puacuteblico Federal
141
o Ministeacuterio Puacuteblico Estadual e os oacutergatildeos do Governo Federal que tratam da temaacutetica
quilombola o proacuteprio INCRA a Fundaccedilatildeo Cultural Palmares FCP) e a Secretaria de
Poliacuteticas de Promoccedilatildeo da Igualdade Racial da Presidecircncia da Repuacuteblica (SEPPIR)
Somente quando a questatildeo deixou de ficar restrita ao acircmbito regional do INCRA no
Paranaacute e houve uma intervenccedilatildeo direta de agentes do Estado representantes do
governo federal o conflito se acalmou
Joaquim () E noacutes natildeo tinha mais sossego Aiacute depois que veio as turma de Brasiacutelia neacute Adir aiacute que eles obedeceram Que essas turma de Brasiacutelia que botaram o ponto final Falou ldquocecircs natildeo cerca mais ningueacutem que vai laacute hoje na comunidade deles mais ningueacutem A ordem agora vem de Brasiacutelia natildeo eacute daqui de Guaiacutera mais natildeordquo Aiacute eles natildeo mexeram mais porque eles falou ldquoAgora noacutes vamos prender mesmordquo
O Ministeacuterio Puacuteblico Federal (MPF) em Umuarama propocircs em julho de 2012
uma Accedilatildeo Civil Puacuteblica contra o INCRA a Uniatildeo o Estado do Paranaacute e o municiacutepio
de Guaiacutera com objetivo de garantir direitos da comunidade quilombola em Guaiacutera124
Tal accedilatildeo teve como base o Inqueacuterito Civil Puacuteblico instaurado em 2008 no
MPFUmuarama que acompanhou a realizaccedilatildeo do estudo antropoloacutegico e os
desdobramentos conflituosos que foram desencadeados e que tiveram ampla
repercussatildeo nos meios de comunicaccedilatildeo da regiatildeo125 Assim depois de todo impacto
negativo do trabalho do INCRA com a comunidade os quilombolas se questionaram
se valia a pena dar continuidade ao procedimento de regularizaccedilatildeo territorial jaacute que
tinham arcado com muitos prejuiacutezos e humilhaccedilotildees e aleacutem disso o relatoacuterio
antropoloacutegico produzido era contraacuterio aos seus interesses O trabalho tinha sido
iniciado mas o INCRA segundo Joaquim natildeo teve estrutura para conduzi-lo de forma
adequada de modo que as lideranccedilas do grupo passaram a distinguir entatildeo o que
era o trabalho do INCRA e o que era o proacuteprio posicionamento dos quilombolas
124 ldquoNa accedilatildeo o MPF pede liminarmente que a Justiccedila Federal de Guaiacutera fixe um prazo maacuteximo de um ano para que o Incra conclua o procedimento administrativo de identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas pela Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos Pedem ainda que Uniatildeo Estado do Paranaacute e municiacutepio de Guaiacutera cumpram com o dever legal de inserir a comunidade em suas respectivas poliacuteticas puacuteblicasrdquo ldquoUmuarama pede que Incra conclua procedimento para garantir direitos de quilombola Notiacutecia disponiacutevel em httpwwwredesuldenoticiascombrhomeaspid=43708 Acesso em 240215 125 Sobre os conflitos em comunidades quilombolas abordados na imprensa estadual no Paranaacute o caso de Guaiacutera eacute um dos principais ldquonas notiacutecias a respeito desta comunidade destaca-se aleacutem da lideranccedila quilombola ter sido ameaccedilada por supostos rituais de feiticcedilaria o fato dos funcionaacuterios do INCRA terem sido feitos de refeacutens por cerca de 150 agricultores da regiatildeo durante a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo do Territoacuterio Quilombolardquo CRUZ Cassius Conjuntura quilombola no Paranaacute Disponiacutevel em httpsetnicowordpresscomcategoryquilombos Acesso em 240215
142
Neste sentido a persistecircncia na luta pelo direito territorial com a decisatildeo de
passarem pela elaboraccedilatildeo de um segundo relatoacuterio antropoloacutegico mesmo diante de
todas as condiccedilotildees adversas que estavam colocadas pelo primeiro parecer contraacuterio
parece demonstrar ldquoa existecircncia de um projeto de futuro suficientemente
compartilhadordquo (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 130) Com a produccedilatildeo de um
segundo relatoacuterio antropoloacutegico renovaram-se as esperanccedilas de que pudessem ter
um territoacuterio suficiente para a reproduccedilatildeo do grupo com a perspectiva de retorno de
familiares que saiacuteram dali e que juntos consigam construir um projeto comum
Ademais aleacutem deste aspecto territorial tal decisatildeo de dar continuidade ao
procedimento no INCRA tambeacutem se relaciona agrave afirmaccedilatildeo da legitimidade da
perspectiva do grupo sobre a sua proacutepria histoacuteria
Mas se antes do iniacutecio do trabalho deste oacutergatildeo federal na comunidade os
quilombolas desconheciam os processos estatais pelos quais iriam passar ateacute a
regularizaccedilatildeo do territoacuterio depois de todos os desdobramentos ocorridos estavam
muito mais informados e ldquocalejadosrdquo com relaccedilatildeo ao funcionamento deste tipo de
poliacutetica puacuteblica territorial Eacute a partir de um novo espaccedilo de experiecircncia que passaram
entatildeo a refletir sobre o que ocorreu desde a certificaccedilatildeo da comunidade pela
Fundaccedilatildeo Cultural Palmares em 2006 Tornaram-se assim mais seguros de suas
perspectivas sobre a postura tanto das equipes de pesquisa bem como dos
funcionaacuterios do INCRA e de outros oacutergatildeos federais responsaacuteveis pela temaacutetica A
necessidade de circular por novas esferas de atuaccedilatildeo e diaacutelogo se consolidou como
um novo campo de movimento no qual os membros do grupo interagem questionam
reivindicam e constituem aliados para a busca de seus objetivos
24 UM NOVO RELATOacuteRIO ANTROPOLOacuteGICO
A decisatildeo de continuar com o processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria do INCRA
passou pelo desejo de consolidar o reconhecimento puacuteblico da legitimidade da histoacuteria
e da luta do grupo questionadas pelo primeiro relatoacuterio Como apontado em conversa
com Adir e Joaquim eles natildeo queriam desistir do objetivo de ampliaccedilatildeo do territoacuterio
da comunidade tendo em vista a possibilidade de garantir o retorno dos parentes que
de laacute saiacuteram nas uacuteltimas deacutecadas Para manter este propoacutesito consideram que eacute
143
preciso ter ldquocoragem forccedila e feacute em Deusrdquo acionando o suporte de uma ordem de
moral e de justiccedila superior que lhes ampara
Adir Que o nosso pessoal aqui Dandara natildeo viveu soacute no municiacutepio de Guaiacutera Quando esse pessoal vieram de Minas ocupou os dois municiacutepios
Joaquim E trabalhava de diaacuteria pra todo mundo que era muita gente neacute entatildeo noacutes natildeo tinha terra pra trabalhar soacute pra gente Ia derrubando mato tocava trecircs anos e eles ia passando pra frente
Adir E hoje podia taacute todo mundo aqui Natildeo taacute porque de alguma forma contribuiacuteram (os vizinhos) pra que esse pessoal nosso saiacutesse daqui Ocuparam os espaccedilos e noacutes fiquemos sem nada Por isso que noacutes natildeo podemos deixar de lutar Noacutes tem que lutar mesmo Que nem eu falo pra eles ldquose um morrer a guerra natildeo pode parar tem que continuarrdquo E a gente quer mostrar dentro desse municiacutepio de Guaiacutera mostrar pra eles que noacutes tambeacutem temos ndash oportunidade natildeo temos ndash mas que temos coragem forccedila e feacute em Deus pra lutar e conseguir com nossos braccedilos nossas pernas conseguir mostrar pra eles
No entanto a decisatildeo de retomar o processo do INCRA natildeo foi faacutecil jaacute que
na percepccedilatildeo de Joaquim e Adir o oacutergatildeo os decepcionou quando recuou diante da
reaccedilatildeo dos proprietaacuterios e ldquolargou noacutes aqui abandonadordquo Joaquim ressalta como
deixou claro para a antropoacuteloga do INCRA Juliane que acompanhou o procedimento
da comunidade desde o comeccedilo que o oacutergatildeo tinha responsabilidade pelos
desdobramentos do conflito bem como pela situaccedilatildeo econocircmica precaacuteria em que
ficou a comunidade Todos esses acontecimentos faziam com que se sentissem
temeraacuterios com o reiniacutecio dos trabalhos com a reelaboraccedilatildeo de um novo relatoacuterio
antropoloacutegico
Joaquim E teve um ano que noacutes fiquemos nervoso eu falei com a Juliane mesmo do INCRA Eu falei ldquovocecircs natildeo teve peito pra arcar com o pessoal que noacutes natildeo sabe tambeacutem como eacute que eacute essa lei o direitordquo Porque vocecircs recuaram
Adir Recuaram de alguma forma Tambeacutem eacute muito novo Joaquim Eles abriram esse trabalho e depois largou noacutes aqui abandonado Noacutes tamo abandonado sem serviccedilo sem ningueacutem E vocecircs eacute difiacutecil entrar em comunicaccedilatildeo com a gente noacutes fiquemos aqui oacute foi muito tempo sem eles entrar em comunicaccedilatildeo com noacutes
Atualmente entendem a continuidade do procedimento como positiva jaacute que
a avaliaccedilatildeo que fazem da segunda equipe de pesquisadores eacute muito diferente da
primeira Um dos principais criteacuterios utilizados eacute a permanecircncia do antropoacutelogo com
144
eles na comunidade para presenciar o cotidiano e ldquoentender o que estaacute acontecendordquo
Neste mesmo sentido tambeacutem a minha pesquisa eacute avaliada
Adir () Eles (primeira equipe) estava escrevendo uma coisa de laacute natildeo aqui proacuteximo a noacutes Eacute legal que nem vocecirc taacute aqui agora vocecirc falou que vai vir pra ficar tantos dias depois vocecirc volta de novo pra ficar tantos dias depois vocecirc pode voltar de novo ficar tantos dia Aiacute vocecirc vai conviver com noacutes aqui durante esses dias tudo vocecirc vai ver o que vai acontecer o que taacute acontecendo vocecirc vai presenciar tudo Entatildeo que nem noacutes fala pro pessoal do INCRA pra esses antropoacutelogos pra fazer um relatoacuterio antropoloacutegico tem que conviver laacute dentro tem que viver laacute junto com noacutes tem que ver da nossa cultura da nossa alimentaccedilatildeo da nossa dificuldade da nossa luta de tudo isso tem que conviver com noacutes aqui dentro Natildeo adianta vir meia hora sentar com noacutes ali bater um papo pesquisar noacutes ali e voltar embora Presenciar dia a dia
Dandara Quando veio o Paulo (antropoacutelogo) agora pra esse segundo (relatoacuterio) eles ficaram aqui
Adir Ah o Paulo estava aqui presente todo dia com a gente
Joaquim Totalmente diferente
Adir Totalmente diferente E o Paulo foi buscar nossa histoacuteria laacute em Minas que era ateacute pra mim ter ido junto com o Cassius (historiador) aiacute deu um problema que eu natildeo pude ir mas o Cassius me chamou era pra mim taacute junto com eles laacute
A elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico teve o meacuterito segundo os
quilombolas de ter incluiacutedo a pesquisa realizada por Cassius Cruz historiador da
equipe junto agraves comunidades quilombolas da regiatildeo de proveniecircncia de Manoel
Ciriaco dos Santos em Minas Gerais Adir na eacutepoca foi convidado para que o
acompanhasse na viagem com o intuito de contribuir para a realizaccedilatildeo desta
pesquisa o que natildeo pode acontecer segundo Cassius em decorrecircncia de o contrato
do INCRA com a empresa Terra Ambiental natildeo disponibilizar recursos suficientes e
de Adir natildeo ter como realizaacute-la com recursos proacuteprios Caso a equipe responsaacutevel
optasse por deslocar recursos para financiar a ida da lideranccedila quilombola natildeo
haveria condiccedilotildees para o pagamento total das diaacuterias de trabalho de campo dos
pesquisadores Muitas contribuiccedilotildees poderiam ter sido geradas para o relatoacuterio
antropoloacutegico se priorizado pelo oacutergatildeo federal como ldquoprocessordquo (de pesquisa de
articulaccedilatildeo de fortalecimento comunitaacuterio) no acircmbito do qual seria muito relevante a
participaccedilatildeo de Adir nesta pesquisa em Minas Gerais No entanto esta possibilidade
natildeo se concretizou dada a incompatibilidade com o orccedilamento disponiacutevel na execuccedilatildeo
145
do relatoacuterio vieacutes pelo qual responde a uma certa dinacircmica administrativa que o
entende afinal de contas como ldquoprodutordquo contratado (FERNANDES 2005)
Mesmo sem a ida de um integrante da comunidade a pesquisa em Minas
Gerais foi fundamental para a argumentaccedilatildeo que o segundo relatoacuterio construiu
As pesquisas de campo realizadas em Minas Gerais possibilitaram localizar elementos comuns entre as narrativas da comunidade de Manoel Ciriaco e a Comunidade de Vila Nova (Serro-MG) aleacutem de constatar a presenccedila material de imagens recorrentemente explicitadas pela memoacuteria dos descendentes de Manoel Ciriaco para se referir agrave origem mineira exemplo disso eacute o fato de utilizarem provisoriamente de lapas de pedra como forma de habitaccedilatildeo e espaccedilo de trabalho (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 735 [p 32])
Neste sentido Adir comenta a importacircncia deste relatoacuterio por ter dado
subsiacutedio e legitimidade para a versatildeo do grupo sobre sua proacutepria histoacuteria muito
diferente da experiecircncia com o primeiro estudo
Adir () E eu faccedilo de tudo pra ser cumprido esse relatoacuterio antropoloacutegico noacutes vamos contribuir com tudo pra ser cumprido esse relatoacuterio que no final decirc o que decirc mas pelo menos o trabalho tem que ser feito Demorou pra noacutes porque quase que noacutes natildeo ia aceitar o relatoacuterio antropoloacutegico mais Porque tudo que a gente passou noacutes tivemos muita conversa com o pessoal do INCRA eu mais o Joaquim fomos pra Curitiba umas par de vez pra gente sentar laacute com o Nilton (Superindente do INCRA no Paranaacute) conversamos com o pessoal de Brasiacutelia porque noacutes natildeo ia aceitar mais o relatoacuterio antropoloacutegico noacutes fiquemos muito desgastado desgastado de mais
A pesquisa para o segundo relatoacuterio foi produzida durante o ano de 2012 por
uma equipe multidisciplinar coordenada pelo antropoacutelogo Paulo R Homem de Goacutees
que tinha ampla experiecircncia de trabalho e pesquisa com comunidades indiacutegenas Tal
equipe foi contratada pela Empresa Terra Ambiental que venceu a licitaccedilatildeo puacuteblica
(modelo de pregatildeo eletrocircnico) 126 para a produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos no
126 O modelo de convecircnio com universidades em comparaccedilatildeo com o modelo de ldquopregatildeo eletrocircnicordquo
adotado desde 2011 era melhor avaliado pelos antropoacutelogos por sua contribuiccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de um campo de debate antropoloacutegico sobre o tema dos quilombos nos espaccedilos acadecircmicos proporcionando um nuacutemero expressivo de trabalhos e grupos de pesquisa em cursos de antropologia todo o paiacutes (ARRUTI 2013) No entanto o modelo de convecircnio foi substituiacutedo pelo chamado ldquoPregatildeo Eletrocircnicordquo que se tornou a ferramenta de contrataccedilatildeo para os relatoacuterios antropoloacutegicos e produccedilatildeo de RTID No caso de Guaiacutera contudo a experiecircncia com a realizaccedilatildeo do pregatildeo apresentou melhores resultados do que com o convecircnio estabelecido com a UNIOESTE localizada na regiatildeo oeste do Paranaacute pois neste convecircnio natildeo havia em seu quadro docente um antropoacutelogo que dispusesse de experiecircncia sobre temas relacionados com identidade e territorialidade e que estivesse assim apto para coordenar o estudo em questatildeo
146
Paranaacute nos municiacutepios de Guaiacutera e Palmas Trata-se precisamente das duas
comunidades quilombolas que haviam passado pela produccedilatildeo de um primeiro
relatoacuterio antropoloacutegico fruto do convecircnio do INCRA com a UNIOESTE cujos
resultados foram recusados tanto pelo oacutergatildeo como pelas comunidades pesquisadas
O histoacuterico de conflitos em Guaiacutera gerou questionamentos quanto aos riscos
a que os pesquisadores envolvidos na elaboraccedilatildeo de um novo relatoacuterio antropoloacutegico
e os proacuteprios quilombolas poderiam estar expostos Assim foram pensadas
estrateacutegias para evitar novas situaccedilotildees de animosidade Para que aceitassem passar
por um novo momento de pesquisa os quilombolas exigiram que o INCRA garantisse
a seguranccedila dos membros da comunidade jaacute que se sentiram desprotegidos e
vulneraacuteveis no conflito desencadeado pelo primeiro relatoacuterio Uma das estrateacutegias foi
a realizaccedilatildeo de uma audiecircncia puacuteblica convocada pelo Ministeacuterio Puacuteblico Federal de
Guaiacutera na qual participaram os representantes quilombolas os agricultores do
Maracaju dos Gauacutechos da Poliacutecia Federal e Militar do Sindicato Patronal Rural de
Guaiacutera do INCRA da empresa Terra Ambiental da Casa Civil do Estado do Paranaacute
e da Federaccedilatildeo da Agricultura do Estado do Paranaacute De acordo com o segundo
relatoacuterio antropoloacutegico
O objetivo da reuniatildeo foi tornar puacuteblico o reiniacutecio do processo e garantir que fosse realizado de forma paciacutefica explicitando os procedimentos legais que envolvem a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo do qual o Relatoacuterio Antropoloacutegico ora apresentado constitui apenas a primeira etapa Avaliamos que natildeo obstante os intensos questionamentos realizados por parte dos agricultores na audiecircncia que durou cerca de 5 horas a mesma teve um resultado extremamente produtivo uma vez que foi possiacutevel agrave equipe teacutecnica realizar suas atividades ao longo dos meses subsequentes sem interferecircncia de agentes externos ou ameaccedila Destacamos apenas que houve dificuldade em dialogar com pessoas vizinhas agrave comunidade sobre o processo pois os conflitos geraram muita desconfianccedila e temor (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 760 [p 67])
Deste modo o segundo estudo natildeo poderia desconsiderar todo este contexto
preacutevio de relaccedilotildees externas e tambeacutem o proacuteprio conteuacutedo levantado pela primeira
pesquisa sobre a qual os autores do segundo relatoacuterio antropoloacutegico avaliam
A forma como o processo foi conduzido pelos pesquisadores da Unioeste foi desaprovada pelas lideranccedilas da comunidade que atribuem parte dos conflitos decorrentes desse primeiro processo de elaboraccedilatildeo do RTID agrave conduccedilatildeo da pesquisa antropoloacutegica A reabertura do processo e a contrataccedilatildeo de nova equipe multidisciplinar foi recebida com alegria pela comunidade poreacutem natildeo sem receio dado a experiecircncia anterior
147
(Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 701 [p 08])
A repercussatildeo do questionamento sobre a identidade do grupo pode ser
percebida tambeacutem na dissertaccedilatildeo elaborada em 2012 por Claacuteudia Hoffmann que
versa sobre a comunidade quilombola de Guaiacutera no acircmbito do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Sociedade Cultura e Fronteiras da UNIOESTE Mesmo a autora
fazendo criacuteticas ao primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo e agrave situaccedilatildeo de conflito que
se seguiu ela afirma ao longo do texto que optou por natildeo os denominar como
ldquoquilombolasrdquo porque ainda natildeo havia ocorrido a ldquodemarcaccedilatildeo de suas terrasrdquo
preferindo entatildeo referir-se a eles como ldquointegrantes da comunidade negrardquo
(HOFFMANN 2012 p 14-15) Questionou deste modo a autoidentificaccedilatildeo do grupo
como se esta soacute fosse legiacutetima em consequecircncia do reconhecimento territorial oficial
por parte do Estado Interessante observar no entanto que a autora na mesma
dissertaccedilatildeo natildeo hesitou em denominar a comunidade de Joatildeo Suraacute localizada no
municiacutepio de AdrianoacutepolisPR como ldquoComunidade Remanescente de Quilombo Joatildeo
Suraacuterdquo (HOFFMANN 2012 p 40) embora este grupo tambeacutem natildeo tenha sido titulado
como territoacuterio quilombola pelo INCRA Esta diferenccedila de posicionamento pode ser
decorrente de seu desconhecimento do tracircmite do procedimento da comunidade de
Joatildeo Suraacute no INCRA ou talvez ter surgido devido ao fato de este grupo se encaixar
no modelo de ldquoquilombo tiacutepicordquo bem mais do que o grupo de GuaiacuteraPR e natildeo ter tido
a sua identidade questionada oficialmente
Para lidar com os questionamentos levantados pelo primeiro relatoacuterio e suas
repercussotildees a pesquisa para elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico como
nos referimos acima buscou dar suporte agraves referecircncias da memoacuteria coletiva do grupo
em GuaiacuteraPR sobre a vida de seus antepassados em Minas Gerais e o processo de
migraccedilatildeo ateacute o Paranaacute A versatildeo final do relatoacuterio com cento e trinta e quatro
paacuteginas127 foi estruturada com as seguintes partes
(1) ldquoIntroduccedilatildeo e definiccedilatildeo dos conceitosrdquo fazem uma leitura densa sobre o
desenvolvimento da interpretaccedilatildeo teoacuterica sobre o conceito de quilombo reforccedilando a
importacircncia da ressemantizaccedilatildeo do termo a partir da introduccedilatildeo do artigo 68 do ADCT
na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 para abranger o novo contexto de emergecircncia
127 Interessante observar que ambos os relatoacuterios apresentam o mesmo nuacutemero de paacuteginas
148
identitaacuteria das comunidades quilombolas no presente Destacam tambeacutem a
importacircncia da incorporaccedilatildeo do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo trazido pelo Decreto Federal
48872003 e finalizam com uma anaacutelise criacutetica da efetivaccedilatildeo dos direitos territoriais
das comunidades quilombolas que tem ocorrido em uma velocidade muito aqueacutem da
necessaacuteria
(2) ldquoCaracterizaccedilatildeo do municiacutepiordquo apresentam o histoacuterico de ocupaccedilatildeo e
colonizaccedilatildeo da regiatildeo desde meados do seacuteculo XIX e o contexto de criaccedilatildeo do
municiacutepio de Guaiacutera a partir do empreendimento da empresa Matte Laranjeira no
local Destacam tambeacutem como nas deacutecadas de 1970 e 1980 houve uma inversatildeo na
proporccedilatildeo de habitantes das aacutereas rurais e urbanas do municiacutepio chegando a uma
proporccedilatildeo de 80 da populaccedilatildeo na aacuterea urbana no ano 2000 processo que teve forte
impacto na comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos
(3) ldquoHistoacuteria da comunidade quilombola Manoel Ciriacordquo abordam os dados
da pesquisa realizada em MG demonstrando os laccedilos de memoacuteria e indicativos de
possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco entre a comunidade quilombola de GuaiacuteraPR e ldquoas
comunidades quilombolas migrantes do Jequitinhonha ndash MGrdquo assim como uma
anaacutelise mais especiacutefica sobre a trajetoacuteria de migraccedilatildeo de seu Manoel Ciriaco
Destacam tambeacutem o fato de a migraccedilatildeo jaacute estar presente nas dinacircmicas das famiacutelias
negras na regiatildeo de origem do grupo Estes processos migratoacuterios ocorriam em uma
escala local de circulaccedilatildeo das famiacutelias que viviam em lapas (cavernas) de pedra e
mantinham sua autonomia com poucos recursos o que gerava uma significativa
mobilidade territorial Apontam como entre os seacuteculos XIX e XX havia uma
importante produccedilatildeo local de queijo cachaccedila milho carne e outros alimentos que
visava o abastecimento de Diamantina principal centro minerador da regiatildeo As
famiacutelias de ex-escravos aleacutem do trabalho com o garimpo mantinham uma produccedilatildeo
de modo autocircnomo para o autoconsumo e tambeacutem para este abastecimento externo
atraveacutes da atividade tropeira Nas deacutecadas de 1950 e 1960 muitas destas famiacutelias
foram compelidas a migrar por conta do processo de modernizaccedilatildeo e pressatildeo sobre
as terras camponesas na regiatildeo
(4) ldquoParentesco organizaccedilatildeo social e o tabu do lsquooutcestrsquordquo analisam como o
casamento preferencial a partir de uma loacutegica endogacircmica ndash tabu do lsquooutcestrsquo ou
seja do casamento fora do grupo ndash jaacute era uma caracteriacutestica presente desde MG e
se constituiu como importante dinacircmica para a manutenccedilatildeo e coesatildeo do grupo em
149
GuaiacuteraPR Os autores propotildeem entatildeo uma anaacutelise do processo de migraccedilatildeo como
mecanismo necessaacuterio para a manutenccedilatildeo das famiacutelias em contraste com a anaacutelise
anterior do primeiro relatoacuterio que entendia a migraccedilatildeo como elemento
descaracterizador da identidade quilombola do grupo Descrevem ainda os aspectos
da religiosidade e os procedimentos terapecircuticos utilizados pelos membros da
comunidade finalizando este capiacutetulo com uma anaacutelise do processo de
reconhecimento do direito quilombola e dos conflitos dele decorrentes
(5) ldquoA terra as plantas e a produccedilatildeordquo apresentam uma anaacutelise de aspectos
ambientais e agronocircmicos da comunidade
(6) ldquoProposta de delimitaccedilatildeo da comunidade remanescente de quilombo
Manoel Ciriaco dos Santos em que apresentam uma proposta de territoacuterio quilombola
como base nos dados da pesquisa realizada diversamente do primeiro relatoacuterio que
afirmava natildeo haver territoacuterio quilombola a ser indicado
(7) Referecircncias bibliograacuteficas e anexos
O caminho argumentativo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico estruturou-se
por meio da fundamentaccedilatildeo histoacuterica das ldquomemoacuterias mineirasrdquo do grupo quilombola
em GuaiacuteraPR Apontam assim para os ldquopotenciais elos de parentesco com
comunidades quilombolas de Minas Geraisrdquo bem como para os ldquodados histoacutericos
sobre origens e dispersotildees geograacuteficasrdquo das comunidades quilombolas da regiatildeo
mineira e suas ldquodinacircmicas locais de migraccedilatildeordquo A significativa presenccedila da
argumentaccedilatildeo histoacuterica neste relatoacuterio estaacute relacionada possivelmente ao contexto de
produccedilatildeo da pesquisa realizada na sequecircncia de um outro relatoacuterio antropoloacutegico que
rejeitava a legitimidade da identidade e da reivindicaccedilatildeo territorial do grupo
precisamente por conta da suposta impossibilidade de vinculaacute-los a uma
ancestralidade quilombola Assim os autores do segundo relatoacuterio buscam
demonstrar como o trabalho de campo realizado em MG proporcionou fontes ldquoque
corroboram e possibilitam aprofundar os elementos apontados pelas famiacutelias
quilombolas de Manoel Ciriaco sobre suas origens mineirasrdquo (Procedimento
Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 701-702 [p 08-09] 721
[p28])
Esta busca de comprovaccedilatildeo histoacuterica natildeo eacute como jaacute abordamos
anteriormente um requisito legal conforme a definiccedilatildeo atual dada pelo Decreto
Federal 4887 de 2003 que regulamentou o processo de titulaccedilatildeo de territoacuterios
150
quilombolas A opccedilatildeo do decreto em atribuir ao relatoacuterio antropoloacutegico ndash e natildeo a um
ldquorelatoacuterio histoacutericordquo ndash a responsabilidade de ser um dos estudos (o primeiro deles) que
subsidia o tracircmite de acesso a direitos territoriais aponta para um direcionamento que
perceba como o grupo elabora no presente suas narrativas sobre ldquoa resistecircncia agrave
opressatildeo histoacuterica sofridardquo a partir da ldquopresunccedilatildeo da ancestralidade negrardquo nos
termos do referido decreto o que natildeo depende de uma noccedilatildeo restrita de comprovaccedilatildeo
da ascendecircncia do grupo com negros escravizados no passado No entanto apesar
de formalmente este relatoacuterio ter caraacuteter antropoloacutegico as precauccedilotildees adotadas pelo
pesquisador em relaccedilatildeo a possiacuteveis contestaccedilotildees e contralaudos dentro do
procedimento administrativo no INCRA podem fazer com que haja um predomiacutenio de
argumentos de ordem histoacuterica os quais parecem ser mais persuasivos para os
diferentes atores implicados na rede que de dentro do Estado em um dado momento
de estabilizaccedilatildeo iraacute consolidar o territoacuterio do grupo (RIBEIRO CALABRIA 2013)
Dentre estes atores haacute um predomiacutenio da loacutegica juriacutedica a partir da qual o
relatoacuterio antropoloacutegico pode ser interpretado como prova pericial o que cria uma
expectativa da produccedilatildeo por parte da antropologia de um conhecimento cientiacutefico
objetivo (OrsquoDWYER 2009 p 177) Nesta relaccedilatildeo entre direito e antropologia o
conhecimento histoacuterico entendido numa chave positivista e factualista eacute convocado
a oferecer provas comprovatoacuterias que serviriam para atender as expectativas do
campo juriacutedico Opera-se desta maneira a partir de uma certa linguagem de
legalidade que estabelece linhas de interpretaccedilatildeo do passado e de clivagem do social
e do cultural gerando uma racionalizaccedilatildeo das memoacuterias da comunidade em um todo
coerente com base em significados e registros de comunicaccedilatildeo preacute-estabelecidos
Faz-se necessaacuterio para tanto o silenciamento do fluxo e da indeterminaccedilatildeo do
passado para que seja possiacutevel uma reduccedilatildeo taacutetica e palataacutevel aos instrumentos
juriacutedicos os quais parecem basear sua legitimidade em uma promessa pragmaacutetica de
criar equivalecircncia para a transaccedilatildeo entre interesses contraacuterios e incomensuraacuteveis
(como no caso de disputas por terras) a partir de um denominador comum Nisto em
parte reside sua hegemonia a despeito de que em si mesmos os criteacuterios juriacutedicos
natildeo satildeo garantidores de igualdade (COMAROFF COMAROFF 2011 p 145-151)
Para que fosse possiacutevel a realizaccedilatildeo da pesquisa e do trabalho de campo na
regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ndash fundamental para a estrutura narrativa
construiacuteda pelo relatoacuterio ndash algumas estrateacutegias foram adotadas A primeira foi a
151
divulgaccedilatildeo junto agraves organizaccedilotildees e instituiccedilotildees que executam trabalhos com as
comunidades quilombolas da regiatildeo de origem do grupo de uma mensagem
produzida pela comunidade em conjunto com os pesquisadores Esta mensagem
visou estabelecer contato com as comunidades quilombolas da regiatildeo e solicitou em
nome da lideranccedila do grupo em GuaiacuteraPR apoio para a localizaccedilatildeo dos parentes que
permaneceram em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Prezados Me chamo Adir Rodrigues dos Santos lideranccedila da comunidade quilombola Manoel Ciriaco localizada em Guaiacutera - PR Somos uma comunidade certificada pela Fundaccedilatildeo Palmares e estamos no processo de elaboraccedilatildeo do laudo antropoloacutegico para realizaccedilatildeo nasceram (sic) no municiacutepio de Santo Antonio do Itambeacute em Minas Gerais suas terras eram proacuteximas a um fazendeiro chamado Milton Gonccedilalves em Santo Antonio do Itambeacute No ano de 1981 o filho de seu Manoel Joatildeo Louriano dos Santos casado com Maria Conceiccedilatildeo das Dores e seu primo Aniacutesio Dioniacutesio de Paula (irmatildeo de Geraldo de Paula ambos filhos de Sebastiatildeo Vicente) vieram para Guaiacutera Paranaacute Manoel Ciriaco chegou em Guaiacutera em 1962 onde nascemos e vivemos ateacute hoje Fazendo pesquisa na internet encontramos no site httpwwwcpisporgbrcomunidadeshtmlbrasilmgmg_lista_comunidadeshtml as comunidades de Mata dos Crioulos Botafogo e Martins localizadas no municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute e as comunidades Ausente Bauacute Comunidade do Ocirc Ribeiratildeo dos Porcos e Rua Vila Nova no municiacutepio do Serro meu pai tinha memoacuteria desses dois municiacutepios Acreditamos que nessas comunidades haacute ancestrais nossos encontraacute-los contribuiria muito para nossa luta pelo reconhecimento e titulaccedilatildeo Caso vocecircs tenham maiores informaccedilotildees sobre essas comunidades relatoacuterios jaacute realizados ou qualquer pista que contribua aos nossos estudos pedimos que nos enviem (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 700 [p 07])
A articulaccedilatildeo entre os pesquisadores que elaboravam o relatoacuterio
antropoloacutegico e as comunidades quilombolas da regiatildeo mineira se deu a partir do
contato estabelecido com a equipe de assessoria juriacutedica quilombola que atua dentro
do curso de graduaccedilatildeo em direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Serro (PUC-
Serro) e que realiza haacute mais de cinco anos projetos de extensatildeo com estes grupos128
Este contato possibilitou o acesso de Cassius Cruz historiador da equipe aos
mediadores poliacuteticos das comunidades quilombolas da regiatildeo tornando possiacutevel a
realizaccedilatildeo de trabalho de campo em seis comunidades quilombolas nos municiacutepios
de Serro (ldquoAusentesrdquo ldquoBauacuterdquo ldquoVila Novardquo ldquoQueimadasrdquo e ldquoSanta Cruzrdquo) e de
128 Este campus da PUC estaacute localizado no municiacutepio de Serro que eacute vizinho a Santo Antocircnio do Itambeacute
e funciona como municiacutepio referecircncia por ter um porte maior com 20835 habitantes segundo o censo do IBGE de 2010 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316710ampsearch=minas-gerais|serro Acesso em 230915
152
Diamantina (ldquoMata dos Crioulosrdquo) nos periacuteodos de 05 a 13 de setembro e de 22 a 28
de outubro de 2012 (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do
INCRAPR p 721 [p 28])
Durante a pesquisa de campo foram levantadas possibilidades de viacutenculos de
parentesco entre a comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos e o casal
fundador da Comunidade Quilombola Vila Nova Os diagramas de parentesco dos
grupos mineiros bem como fotos e viacutedeos foram enviados para Guaiacutera para que fosse
possiacutevel a identificaccedilatildeo de viacutenculos de parentesco entre as comunidades
No final do mecircs de setembro apresentamos as fotografias viacutedeos e demais informaccedilotildees que conseguimos em Minas Gerais agrave comunidade de Manoel Ciriaco sendo este um momento chave da relaccedilatildeo estabelecida entre os pesquisadores e a comunidade pois se manifestaram muito felizes com os resultados apresentados e por termos conseguido encontrar e registrar informaccedilotildees que eles mesmos conheciam unicamente pela transmissatildeo oral (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 702-703 [p 09-10])
O segundo relatoacuterio argumenta ao longo de todo o capiacutetulo sobre a ldquoHistoacuteria
da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo que a memoacuteria coletiva
existente em Guaiacutera sobre sua regiatildeo de origem pocircde ser respaldada pela pesquisa
realizada em Minas Gerais a partir de elementos comuns ldquoseja com relaccedilatildeo aos
modos de produccedilatildeo habitaccedilatildeo religiosidade quer seja pela descriccedilatildeo de estrateacutegias
matrimoniais dos grupos familiaresrdquo (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 p 737 [p 44]) Uma das narrativas importantes que compotildee
a memoacuteria do grupo em Guaiacutera diz respeito ao uso provisoacuterio que seus antepassados
fizeram de lapas ou locas de pedra como moradia Como a pesquisa na regiatildeo mineira
pocircde demonstrar esta eacute uma praacutetica cultural mantida ateacute os dias de hoje em
comunidades quilombolas da regiatildeo de origem do grupo como registrado na atraveacutes
trazida a foto abaixo129 na Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos
(DiamantinaMG)
129 A importacircncia da evocaccedilatildeo desta imagem na construccedilatildeo do argumento do segundo relatoacuterio antropoloacutegico parece ser confirmada pela sua utilizaccedilatildeo tambeacutem na capa do documento
153
FIGURA 19 ldquolsquoLaparsquo utilizada ateacute os dias atuais como moradia quilombola na comunidade Mata dos CrioulosMGrdquo FONTE Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 726 [p 33]
Esta praacutetica parece estar relacionada segundo a anaacutelise do relatoacuterio agrave
situaccedilatildeo de precariedade em que viviam e agrave criatividade necessaacuteria para sobreviver a
partir do que a natureza lhes oferecia no periacuteodo escravagista e poacutes-escravagista Os
autores apontam assim como a utilizaccedilatildeo de lapas se insere em dinacircmicas de busca
por autonomia e liberdade em contraste com a experiecircncia de descendentes de
escravos que permaneceram agregados agraves fazendas formando comunidades
quilombolas que se caracterizam por uma baixa mobilidade A estrateacutegia de
mobilidade em um mesmo contexto regional associada a diferentes modos de
trabalho e ocupaccedilatildeo territorial tambeacutem conformaram comunidades quilombolas na
regiatildeo marcadas ldquoainda hoje por fluxos migratoacuterios internos e externos e uma rede
de parentesco que articula diversas dessas comunidadesrdquo (Procedimento
Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 724-725 [p 31 e 32])
A experiecircncia de mobilidade portanto teria significativa importacircncia na
trajetoacuteria de muitas famiacutelias negras que atualmente se reconhecem como quilombolas
na regiatildeo de Santo Antocircnio do Itambeacute e SerroMG Esta seria uma das caracteriacutesticas
154
marcantes da continuidade histoacuterica do grupo do Paranaacute com seus antepassados
dessa regiatildeo
A mobilidade espacial destes grupos jaacute tendia ser maior mesmo antes do iniacutecio do processo migratoacuterio que levaria famiacutelias a sair de Minas Gerais pois mantinham uma relaccedilatildeo mais tecircnue e por isso de mais autonomia frente ao contexto regional de arregimentaccedilatildeo de matildeo-de-obra uma vez que faziam das lapas suas moradias natildeo sendo assim dependentes das estruturas das fazendas (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 743 [p 50])
A continuidade histoacuterica estaria presente tambeacutem nessa busca de autonomia
nas relaccedilotildees de trabalho A pesquisa indicou a existecircncia de um padratildeo seguido por
geraccedilotildees e expresso na estrateacutegia atual dos membros da comunidade em Guaiacutera de
complementarem a renda obtida no proacuteprio territoacuterio com relaccedilotildees de trabalho
estruturadas fora da loacutegica patratildeo-empregado como diaristas arrendataacuterios ou
empreiteiros Esta opccedilatildeo garantiria a manutenccedilatildeo de autonomia ldquouma vez que natildeo
se tornam dependentes de patrotildees especiacuteficosrdquo (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 do INCRAPR p 745 [p 52])
Dentre as estrateacutegias identificadas pela pesquisa como aquelas que apontam
para a manutenccedilatildeo de referecircncias comuns com as comunidades quilombolas da
regiatildeo mineira estaacute segundo o relatoacuterio a continuidade da tendecircncia endogacircmica
que analisam atraveacutes de vaacuterios excertos genealoacutegicos apresentados no capiacutetulo
ldquoParentesco organizaccedilatildeo social e o tabu do lsquooutcestrsquordquo A importacircncia desta estrateacutegia
estaria na possibilidade de manutenccedilatildeo do sentimento de pertencimento a uma
origem comum que cria identidade e memoacuteria coletiva permitindo a continuidade das
dinacircmicas de organizaccedilatildeo social do grupo mesmo com a dispersatildeo territorial
Reforccedilada pelo contexto socialmente perifeacuterico e de preconceito racial no qual
o grupo se inseriu na regiatildeo de GuaiacuteraPR esta tendecircncia endogacircmica como
argumentam os autores eacute precedente e contribui para o fortalecimento de alianccedilas
intra-familiares enquanto heranccedila socioloacutegica que reforccedilou as fronteiras e a
capacidade de manutenccedilatildeo da coesatildeo social do grupo (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 do INCRAPR p 738 [p 45]) Deste modo esta capacidade
de manutenccedilatildeo de uma coletividade natildeo se baseia apenas na aacuterea que lograram
adquirir e que ocupam haacute sessenta anos mas tambeacutem decorre das relaccedilotildees de
parentesco e das formas proacuteprias de organizaccedilatildeo social (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 do INCRAPR p 736 [p 43])
155
As relaccedilotildees de parentesco atualmente estendem-se por uma rede que
transcende os limites territoriais desta comunidade Esta rede ampliada se expandiu
com os deslocamentos de famiacutelias que deixaram a comunidade em GuaiacuteraPR nas
uacuteltimas deacutecadas em decorrecircncia da diminuiccedilatildeo das aacutereas e das oportunidades de
trabalho na regiatildeo ligadas ao processo de mecanizaccedilatildeo da agricultura A estrutura do
segundo relatoacuterio aborda assim como aleacutem da importacircncia de uma territorialidade
especiacutefica construiacuteda em GuaiacuteraPR haacute uma visatildeo sobre os viacutenculos de
pertencimento ao grupo que se abre por esta rede de parentes (que estatildeo fora do
territoacuterio e que podem retornar com o processo de titulaccedilatildeo) o que gera uma
percepccedilatildeo de territorialidade mais ampla perpassada por referecircncias de memoacuteria
sobre a regiatildeo de origem do grupo no municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Neste sentido a literatura antropoloacutegica recente tem tematizado sobre a natildeo
exclusividade da relaccedilatildeo territorial enquanto criteacuterio de identificaccedilatildeo de grupos
quilombolas jaacute que ldquoo conceito de quilombo natildeo pode ser territorial apenas ou fixado
em um uacutenico lugar geograficamente definido historicamente lsquodocumentadorsquo e
arqueologicamente lsquoescavadorsquordquo (ALMEIDA 2011 p 45) A situaccedilatildeo de deslocamento
caracteriacutestica deste grupo de GuaiacuteraPR mas tambeacutem os outros casos de expulsatildeo e
de reassentamento demonstram como ldquomais do que uma exclusiva dependecircncia da
terra o quilombo faz da terra a metaacutefora que possibilita a continuidade do grupo ()rdquo
(LEITE FERNANDES 2006 p 11)
O segundo relatoacuterio corrobora esta leitura antropoloacutegica que natildeo se limita a
uma noccedilatildeo de territorialidade fixa para reconhecer direitos territoriais agraves comunidades
quilombolas Dessa forma a proposta de delimitaccedilatildeo territorial apresentada e
aprovada pela comunidade atraveacutes de discussatildeo em reuniatildeo especiacutefica indica
a) A recomposiccedilatildeo dos lotes adquiridos por Manoel Ciriaco dos Santos (aacuterea
de 102 alqueires paulistas dos quais 142 alq foi vendido e 45 estatildeo
arrendados atualmente) e por Geraldo dos Santos (51 alq paulistas
vendidos em 1993) a serem titulados enquanto territoacuterio quilombola
b) A aquisiccedilatildeo pelo INCRA de uma aacuterea complementar de aproximadamente
35 alqueires paulistas que eacute justificada devido ldquoagraves formas de relaccedilatildeo de
trabalho tradicionais da comunidade que diminuem com a mecanizaccedilatildeo
agriacutecola aos conflitos gerados pelo processo que inviabilizaram o acesso
156
a trabalhos na regiatildeo e ao consequente crescimento do ecircxodo de
membros da comunidade do territoacuteriordquo (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 do INCRAPR p 802 [p 109]) Outro motivo para
a aquisiccedilatildeo complementar eacute a possibilidade de retorno de em meacutedia vinte
e seis famiacutelias as quais atualmente estatildeo vivendo em condiccedilotildees precaacuterias
em diferentes cidades Este eacute um dado referente ao nuacutemero aproximado
de famiacutelias que deixaram o territoacuterio em Guaiacutera e que segundo as
lideranccedilas manteacutem viacutenculos com a comunidade e retornariam caso
houvesse possibilidade O nuacutemero de trinta e trecircs famiacutelias (somando as
sete famiacutelias residentes na comunidade na eacutepoca da elaboraccedilatildeo do
relatoacuterio mais as vintes e seis com previsatildeo de retorno) embasou o caacutelculo
desta aacuterea adicional tendo tambeacutem como referecircncia os criteacuterios
agronocircmicos para a estimativa da necessidade de acreacutescimo de aacuterea de
cultivo que possa viabilizar a manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo fiacutesica e econocircmica
da comunidade
De acordo com a avaliaccedilatildeo do INCRA o segundo relatoacuterio antropoloacutegico
cumpriu com seus objetivos e caracterizou a comunidade e o territoacuterio ao qual o grupo
tem direito a partir de dados etnograacuteficos e histoacutericos suficientes segundo a Instruccedilatildeo
Normativa 592007 atualmente em vigor Enquanto a aacuterea do territoacuterio quilombola que
seraacute titulada corresponde aos dois lotes acima referidos a aacuterea complementar seraacute
obtida por meio de desapropriaccedilatildeo por interesse social conforme previsto na Lei
41321962 ficando a comunidade com o usufruto atraveacutes de Contrato de Concessatildeo
de Direito Real de Uso (CCDRU) O tamanho da aacuterea adicional necessaacuteria apesar de
jaacute previamente indicado no relatoacuterio dependeraacute conforme aponta o parecer
conclusivo SR(09)F4Nordm 0012014 do INCRAPR130 do nuacutemero de famiacutelias
cadastradas pelo INCRA que permaneceratildeo no territoacuterio bem como da discussatildeo
sobre os tipos de produccedilatildeo agriacutecola que seratildeo por elas desenvolvidas
Atualmente haacute um importante viacutenculo com as aacutereas adquiridas por Manoel
Ciriaco e Geraldo dos Santos apoacutes deacutecadas de ocupaccedilatildeo que embasa uma
130 De acordo com a ementa do documento trata-se do ldquoParecer conclusivo do Serviccedilo de
Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolas do INCRAPR sobre o Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos com base na IN 572009rdquo (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 1062-1067)
157
reivindicaccedilatildeo especiacutefica pelo retorno do territoacuterio ao tamanho da aacuterea inicial a qual
somava quinze alqueires e da qual soacute mantiveram em torno de 50 Aleacutem desta aacuterea
de ocupaccedilatildeo efetiva a possibilidade de ampliaccedilatildeo deste territoacuterio com a compra pelo
INCRA de uma nova aacuterea ndash com a qual o grupo quilombola natildeo possui uma relaccedilatildeo
preacutevia ndash demonstra a especificidade deste caso e a necessidade portanto de que
houvesse um procedimento diferenciado por parte deste oacutergatildeo federal
A demanda por um procedimento diferenciado de regularizaccedilatildeo territorial no
caso de GuaiacuteraPR foi necessaacuteria tendo em vista que a experiecircncia de ldquoresistecircncia agrave
opressatildeo histoacuterica sofridardquo organizou-se por meio da realizaccedilatildeo de deslocamentos
Tais movimentos visavam a concretizaccedilatildeo da autonomia liberdade e melhores
condiccedilotildees de vida para estas famiacutelias dada a insuficiecircncia das aacutereas na regiatildeo de
origem do grupo em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG por meio do acesso a novos
territoacuterios Deste modo percebe-se que a possibilidade de conquista de territoacuterios estaacute
no acircmago deste processo de resistecircncia social e que se em outros casos de grupos
quilombolas a resistecircncia consiste na permanecircncia em um mesmo territoacuterio
tradicional neste caso ela se constituiu pela experiecircncia de deslocamentos
Deve-se levar em conta ainda que estes deslocamentos iniciados em 1956
por estas famiacutelias negras da aacuterea rural de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG em direccedilatildeo
ao municiacutepio de CaiabuSP implicavam em seacuterios riscos tanto no caminho como no
processo de fixaccedilatildeo em um novo lugar onde teriam que encontrar novas
oportunidades de inserccedilatildeo e de trabalho As referecircncias a existecircncia de mais famiacutelias
relacionadas ao nuacutecleo de parentes do casal Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues
apontam para o fato de que esta linha de migraccedilatildeo da regiatildeo de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG ateacute a regiatildeo de Presidente PrudenteSP consistia em um movimento mais
amplo como rede de apoio para a migraccedilatildeo de novas famiacutelias No acircmbito deste fluxo
de deslocamentos a busca por direitos da comunidade de GuaiacuteraPR eacute construiacuteda
atualmente a partir da trajetoacuteria de deslocamentos do casal Manoel e Ana mas natildeo
se restringe a este nuacutecleo familiar Eacute principalmente a partir desta rede preacutevia de apoio
que os desafios da migraccedilatildeo puderam ser por eles enfrentados Como mencionado
no primeiro capiacutetulo a referecircncia de Manoel na regiatildeo paulista era seu primo de
primeiro grau Raimundo Constantino que saiu com esposa e filhos de Santo Antocircnio
do Itambeacute em 1949 sete anos antes de Manoel Tais desafios do processo de
158
migraccedilatildeo satildeo ainda mais significativos tendo em vista a existecircncia de contextos que
podem ser hostis para a inserccedilatildeo da populaccedilatildeo negra
Importante para finalizar este capiacutetulo destacar que foi o processo
conturbado de regularizaccedilatildeo territorial e reconhecimento da legitimidade da
reivindicaccedilatildeo identitaacuteria da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos que impulsionou
a realizaccedilatildeo de duas viagens de retorno para a regiatildeo de origem do grupo as quais
iremos abordar no capiacutetulo seguinte Com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico a partir
da pesquisa realizada pelo historiador Cassius Cruz na regiatildeo do SerroMG Adir
enquanto lideranccedila da comunidade de Guaiacutera comeccedila a ter expectativas de conhecer
a regiatildeo de origem de sua famiacutelia buscar os parentes com quem perderam o contato
pesquisar mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria de seus antepassados A realizaccedilatildeo
desta pesquisa de mestrado mostrou-se como oportunidade de aprofundar tal
pesquisa a partir dos caminhos apontados pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico tendo
em vista que jaacute havia um primeiro levantamento de dados e contatos na regiatildeo de
origem do grupo
159
3 ldquoEacute COMO SE NOacuteS VOLTASSE A PAacuteGINA DA NOSSA VIDA DO COMECcedilOrdquo
31 A ldquoVIAGEM DA VOLTArdquo131
Se no primeiro capiacutetulo destacamos a relevacircncia das dinacircmicas de
movimento para a compreensatildeo da emergecircncia identitaacuteria quilombola em GuaiacuteraPR
eacute fundamental neste momento pontuar que a centralidade dos deslocamentos na
trajetoacuteria do grupo natildeo nos levou a recorrer a uma ideia de ldquomobilidaderdquo132 pois este
conceito poderia sugerir que haacute uma constacircncia ou uma facilidade em se realizar
deslocamentos por parte dos membros do grupo o que de fato natildeo ocorre Para que
se consiga visualizar como a trajetoacuteria do grupo eacute perpassada pelo movimento faz-se
necessaacuteria uma perspectiva de longa duraccedilatildeo considerando que no presente como
observei durante o trabalho de campo haacute uma possibilidade muito limitada de
deslocamentos em decorrecircncia das dificuldades financeiras Viajar para visitar os
parentes eacute sempre um plano mas dificilmente sobram recursos para concretizaacute-lo
A dificuldade de deslocamento comeccedila inclusive dentro do proacuteprio municiacutepio
pois os quilombolas natildeo tecircm acesso a transporte puacuteblico que chegue proacuteximo agrave
comunidade e ateacute 2012 contavam apenas com um carro utilitaacuterio antigo em uma
comunidade com em meacutedia sete famiacutelias Na eacutepoca em que eu atuei como assessora
juriacutedica no Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute pude contribuir para o
encaminhamento de um pedido realizado pela Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel
Ciriaco dos Santos (ACONEMA) junto agrave Poliacutecia Federal de Foz do Iguaccedilu133 visando
agrave doaccedilatildeo de um veiacuteculo para a associaccedilatildeo Tal pedido foi embasado na necessidade
da comunidade de dispor de meios para a realizaccedilatildeo das entregas de alimentos
abrangidas pelo contrato do Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos (PAA)134
131 Tiacutetulo homocircnimo ao trabalho de Oliveira Filho ldquoA Viagem da Volta reelaboraccedilatildeo cultural e horizonte
poliacutetico dos povos indiacutegenas do Nordesterdquo (OLIVEIRA FILHO 1994) 132 Este termo eacute utilizado no segundo relatoacuterio antropoloacutegico para destacar a importacircncia da presenccedila de deslocamentos na trajetoacuteria histoacuterica do grupo 133 As ldquoentidades sem fins lucrativosrdquo podem solicitar doaccedilotildees de mercadorias apreendidas pela Poliacutecia
Federal devendo constar na solicitaccedilatildeo entre outros requisitos formais a justificativa e a finalidade do pedido 134 Dentre as entidades que atualmente recebem a doaccedilatildeo de alimentos conforme o contrato que a
comunidade quilombola eacute responsaacutevel destaca-se como mencionado no primeiro capiacutetulo treze tekohas (aldeias avaacute-guaranis) de Guaiacutera e do municiacutepio vizinho Terra Roxa Esta parceria com os grupos indiacutegenas eacute fruto da articulaccedilatildeo direta entre Adir e os caciques
160
Com o recebimento da doaccedilatildeo de uma camionete ldquosilveradordquo com trecircs
lugares na frente e uma carroceria ampla e fechada a execuccedilatildeo do PAA na
comunidade foi viabilizada em termos concretos com condiccedilotildees para o transporte da
produccedilatildeo agriacutecola o que era uma demanda muito urgente para as famiacutelias
quilombolas Esta poliacutetica puacuteblica de seguranccedila alimentar se constituiu como uma
importante fonte de renda na comunidade nos uacuteltimos anos mesmo tendo em vista a
demora na realizaccedilatildeo dos pagamentos por parte do governo que natildeo lhes garante
uma renda mensal135 Neste contexto os programas de assistecircncia e previdecircncia
social como aposentadoria e Bolsa Famiacutelia136 proporcionam uma complementaccedilatildeo
econocircmica considerada pelos quilombolas como muito necessaacuteria Os quilombolas
realizam tambeacutem a comercializaccedilatildeo de seus produtos como verduras legumes
raiacutezes frutos temperos animais de pequeno porte e tambeacutem milho e soja
Atualmente trecircs pessoas trabalham fora da comunidade a esposa e a enteada de
Adir na lanchonete do posto de gasolina localizado na rodovia em frente agrave entrada
para o bairro rural Maracaju dos Gauacutechos e Luciano ndash casado com Cleusimar filha
de Zeacute Maria ndash que tambeacutem trabalha de auxiliar de limpeza no mesmo posto
O territoacuterio atualmente de 85 alqueires eacute considerado por eles como
insuficiente para as sete famiacutelias que tiram seu sustento da produccedilatildeo agriacutecola
Segundo Adir o ideal seria cinco alqueires por famiacutelia no miacutenimo Uma das principais
demandas somada agrave necessidade de ampliaccedilatildeo do territoacuterio eacute o acesso a poliacuteticas
puacuteblicas que possibilitem uma fonte de renda gerada na proacutepria comunidade
Pleiteiam assim a construccedilatildeo de um barracatildeo onde sonham com a instalaccedilatildeo por
exemplo de uma cozinha comunitaacuteria137 Deve-se levar em conta ainda que a
135 O limite anual do valor de repasse do Ministeacuterio do Desenvolvimento Social oacutergatildeo responsaacutevel pelo
PAA na modalidade de ldquoDoaccedilatildeo Simultacircneardquo ndash acessada pela comunidade quilombola ndash eacute de ateacute R$ 65 mil por ano por agricultor 136 O ldquoBolsa Famiacuteliardquo segundo a paacutegina virtual do Governo Federal ldquoeacute um programa de transferecircncia
direta de renda direcionado agraves famiacutelias em situaccedilatildeo de pobreza e extrema pobreza em todo o Paiacutes de modo que consigam superar a situaccedilatildeo de vulnerabilidade e pobrezardquo Disponiacutevel em httpwwwcaixagovbrprogramas-sociaisbolsa-familiaPaginas Acesso em 041115 137 A solicitaccedilatildeo da comunidade de que a prefeitura construa este barracatildeo foi questionada pela
administraccedilatildeo municipal em decorrecircncia de a aacuterea da comunidade consistir em uma propriedade privada e natildeo ter sido realizada ainda a titulaccedilatildeo quilombola conforme me relatou Adir No entanto de acordo com a Portaria Interministerial (Ministeacuterio do Planejamento Orccedilamento e Gestatildeo Ministeacuterio da Fazenda e Controladoria Geral da Uniatildeo) nordm 507 de 2011 artigo 39 sect2ordm inciso III aliacutenea ldquoardquo o municiacutepio tem respaldo para a construccedilatildeo de uma benfeitoria ldquopor interesse puacuteblico ou socialrdquo na comunidade que eacute certificada pela Fundaccedilatildeo Cultural Palmares e que estaacute em processo de regularizaccedilatildeo territorial pelo INCRA A referida portaria estaacute disponiacutevel em httpswwwconveniosgovbrportalarquivos1_Portaria_Interministerial_507_24_11_2011_e_alteracoes_Dezembro_de_2013pdf Acesso em 091015
161
situaccedilatildeo econocircmica da comunidade se agravou muito apoacutes o conflito com os vizinhos
em decorrecircncia do qual natildeo satildeo mais contratados para trabalharem nas propriedades
do entorno atividade que haacute muitos anos realizavam na regiatildeo
Com esta breve descriccedilatildeo das dificuldades de geraccedilatildeo de renda das famiacutelias
quilombolas eacute possiacutevel compreender as limitaccedilotildees que encontram para se
deslocarem mesmo que seja para visitas a parentes que moram proacuteximos De acordo
com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico produzido pela empresa Terra Ambiental
() satildeo no miacutenimo 43 indiviacuteduos que possuem relaccedilatildeo de parentesco direto com os atuais moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo Manoel Ciriaco dos Santos e vivem em cidades localizadas em um raio de no maacuteximo 200 quilocircmetros sendo que desses 35 vivem em um raio inferior a 100 quilocircmetros da comunidade Segue uma relaccedilatildeo dos municiacutepios e nuacutemero de indiviacuteduos cujos viacutenculos de parentesco foram identificados
(Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 751[p 58])
Dentro da rede ampliada de parentesco138 dos quilombolas de GuaiacuteraPR um
local muito significativo e mais afastado em relaccedilatildeo agrave comunidade eacute a regiatildeo de
Presidente PrudenteSP por onde as famiacutelias que saiacuteram de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG passaram tendo vivido no municiacutepio de CaiabuSP entre as deacutecadas de
19501960 antes de se fixarem em GuaiacuteraPR e para onde retornaram os irmatildeos mais
velhos Olegaacuterio (78) Jovelina (73) Joatildeo Loriano (71) e Eurides (65) O municiacutepio de
Presidente PrudenteSP fica a 448 km de Guaiacutera e o trajeto demanda um investimento
de em meacutedia duzentos reais para passagens rodoviaacuterias de ida e volta por pessoa
Se este trajeto eacute de acesso difiacutecil para os quilombolas de GuaiacuteraPR o que
falar entatildeo do anseio reforccedilado pelos questionamentos colocados pelo conturbado
processo de titulaccedilatildeo em tracircmite no INCRA de ir ateacute Minas Gerais para que
138 Quando nos referimos a parentesco natildeo estamos falando apenas do parentesco genealoacutegico mas
em um sentido mais amplo que inclui relaccedilotildees por exemplo de compadrio (ARANTES 1975)
Municiacutepio Nordm Indiviacuteduos
Terra Roxa- PR 22
Assis Chateaubriand- PR 6
Satildeo Jorge do Patrociacutenio - PR 4
Guaraniaccedilu ndash PR 3
Catanduvas- PR 3
Guaiacutera- PR 2
Eldorado ndash MS 2
Cascavel- PR 1
162
pudessem conhecer suas raiacutezes e reencontrar seus parentes mineiros Somando
apenas os valores das passagens rodoviaacuterias para poder ir e voltar de GuaiacuteraPR a
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG de ocircnibus percorrendo em meacutedia 3354 quilocircmetros por
terra (duas vezes o percurso de 1677 km139) o custo gira em torno atualmente de
setecentos reais por pessoa
Assim a contradiccedilatildeo apontada acima entre os deslocamentos que marcaram
a trajetoacuteria do grupo nos uacuteltimos sessenta anos e a condiccedilatildeo de difiacutecil mobilidade das
geraccedilotildees atuais tem uma chave de interpretaccedilatildeo comum a posiccedilatildeo socioeconocircmica
perifeacuterica do grupo A mesma condiccedilatildeo que os imobiliza por natildeo disporem atualmente
de recursos financeiros que permitam a realizaccedilatildeo de viagens eacute parte significativa
das causas que provocaram os movimentos de deslocamento das famiacutelias em busca
de melhores condiccedilotildees de vida no passado
Importante pontuar que se os deslocamentos que marcam a trajetoacuteria histoacuterica
da famiacutelia criaram por um lado uma situaccedilatildeo de inviabilidade do reencontro entre
parentes ndash jaacute que os que foram para GuaiacuteraPR perderam nas uacuteltimas deacutecadas
qualquer contato com os parentes que se mantiveram em MG ndash por outro lado tal
interrupccedilatildeo do contato natildeo significou uma ruptura de viacutenculos (GALIZONI 2002)140
Com base nos encontros proporcionados pelas duas viagens de retorno para Serro e
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG realizadas no acircmbito desta pesquisa em marccedilo e em
junho de 2015 foi possiacutevel perceber que houve uma atualizaccedilatildeo significativa dos laccedilos
e viacutenculos afetivos que estavam antes latentes
Natildeo soacute os viacutenculos foram mantidos mas como analisado pelo segundo
relatoacuterio antropoloacutegico houve um processo de permanecircncia de referecircncias culturais e
de memoacuterias comuns que continuaram mesmo agrave distacircncia e sem contatos
conectando os quilombolas de Guaiacutera a seus parentes em Minas Gerais Neste
sentido importante mencionar a contribuiccedilatildeo de Garcia Jr (1989) em sua pesquisa
com migrantes que saiacuteam da Paraiacuteba para o Sul na qual reflete sobre como tais
deslocamentos natildeo implicaram no abandono de suas formas de organizaccedilatildeo social
139 Este caacutelculo foi feito com base no trajeto que pode ser percorrido de ocircnibus conforme experiecircncia
da viagem realizada em marccedilo de 2015 de GuaiacuteraPR para UmuaramaPR de laacute para Presidente PrudenteSP ateacute Belo HorizonteMG Na capital mineira toma-se um ocircnibus para SerroMG e de onde
enfim chega-se em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG 140 Em seu estudo na regiatildeo do Alto Vale do Jequitinhonha muito proacutexima a regiatildeo aqui em questatildeo
Galizoni aponta como a migraccedilatildeo eacute um processo familiar e soacute muito raramente ocorre as pessoas que saiacuteram de sua regiatildeo de origem ldquorompem de vez com a famiacuteliardquo (GALIZONI 2002 p 569)
163
anteriores mas ao contraacuterio na sua manutenccedilatildeo com o objetivo de retorno para suas
aacutereas de origem no Nordeste141
No acircmbito deste processo de manutenccedilatildeo de viacutenculos ndash e do desejo de uma
reconexatildeo natildeo soacute simboacutelica e mnemocircnica mas tambeacutem fiacutesica com este lugar de
origem e com os parentes que laacute ficaram ndash a possibilidade de organizar a viagem de
volta que percorresse a trajetoacuteria de deslocamentos das famiacutelias surgiu das minhas
conversas com Adir durante o trabalho de campo em GuaiacuteraPR Ele havia
comentado comigo em vaacuterias ocasiotildees como gostaria de ter tido apoio por parte do
INCRA para acompanhar Cassius na pesquisa realizada em Minas Gerais durante a
elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico
Esta busca pelo contato com pessoas que compartilham a mesma
ldquocomunidade de lembranccedilardquo (HALBWACHS 2003) protagonizada por Adir aponta
para dois aspectos complementares do fenocircmeno eacutetnico a ldquoluta por reconhecimentordquo
e a ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo142 (ARRUTI 2006 p 44) No que tange agrave noccedilatildeo de
ldquoluta por reconhecimentordquo o que estaacute em questatildeo eacute a proacutepria autoidentificaccedilatildeo do
grupo como quilombola ldquopor meio da experenciaccedilatildeo comum de um desrespeito tiacutepico
e de sua traduccedilatildeo em uma identidade coletivardquo (ARRUTI 2006) As viagens de retorno
a Minas Gerais trouxeram agrave tona a compreensatildeo de que o caraacuteter coletivo de
desrespeito agraves famiacutelias que marca a reivindicaccedilatildeo do grupo em GuaiacuteraPR como
coletividade especiacutefica reflete-se na situaccedilatildeo de separaccedilatildeo e de dispersatildeo dos
parentes Trata-se de um sofrimento gerado pela impossibilidade de manutenccedilatildeo das
famiacutelias na regiatildeo de origem e de reproduccedilatildeo do modo de vida camponecircs enquanto
populaccedilatildeo negra que natildeo teve seu processo de cidadania garantido de forma plena
Esta ldquocomunidade de lembranccedilardquo abrange portanto uma noccedilatildeo mais ampla de
pertencimento por parte dos membros da comunidade quilombola de Guaiacutera no qual
141 Este tambeacutem eacute o caso do processo de mobilidade do povo indiacutegena Pankararu de Pernambuco
analisado por Arruti no qual grupos de famiacutelias transferiram seu local de morada por tempo indeterminado em especial para a cidade de Satildeo Paulo na favela Real Parque no bairro do Morumbi ldquoonde se desenha uma espeacutecie de reterritorializaccedilatildeo Pankararurdquo Neste caso a mediaccedilatildeo entre territoacuterio e identidade fruto da abstraccedilatildeo dos ldquodireitosrdquo gerada na modulaccedilatildeo com o Estado produz o sentido de um ldquoterritoacuterio imaterialrdquo como um espaccedilo poliacutetico e simboacutelico para os indiacutegenas Se o territoacuterio eacute acionado como referecircncia fundamental natildeo eacute percebido no entanto como moldura e limitaccedilatildeo de modo que pode se abrir ldquopara o vasto exterior da identidade Pankararu onde a dicotomia do ser natildeo ser tem um caraacuteter mais pendular que geomeacutetricordquo (ARRUTI 1996 p 166-159) 142 A noccedilatildeo de ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo eacute retomada a partir das discussotildees de Taylor e de ldquoluta por reconhecimentordquo a partir de Honneth (ARRUTI 2006)
164
estatildeo englobados o local de origem de Manoel Ciriaco e os demais locais de dispersatildeo
do grupo familiar nos processos de deslocamento ao longo das uacuteltimas deacutecadas
O comentaacuterio de Adir em uma conversa com as duas senhoras que
encontramos morando em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ndash D Regina (77) e D Zulmira
(73) cunhadas de Seu Joatildeo Loriano (71) filho de Manoel Ciriaco ndash eacute muito enfaacutetico
a respeito desta forma de compreensatildeo da histoacuteria familiar Tal conversa ocorreu no
final da primeira viagem realizada em marccedilo de 2015 durante a gravaccedilatildeo de um viacutedeo
no qual Adir conta para elas o que tinha ocorrido em nosso percurso e comenta sobre
o significado da viagem para ele e para a comunidade Manoel Ciriaco dos Santos
Esse lugar onde a gente mora hoje eacute uma comunidade reconhecida pela Fundaccedilatildeo Cultural dos Palmares Uma comunidade que hoje eu represento que natildeo eacute tatildeo grande porque as pessoas estatildeo espalhadas como se fosse aqui tambeacutem espalhados pra todo canto Por que no passado essas pessoas natildeo teve oportunidade de ficar junto e de viver junto e essa lembranccedila ficasse de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo mas todo mundo tivesse o seu espaccedilo Porque se a gente falar na eacutepoca da escravidatildeo noacutes somos de uma eacutepoca da escravidatildeo uma escravidatildeo passada onde a gente natildeo adquiriu nada nem o nosso nome E isso tudo passava na minha cabeccedila e eu lembrava e falava assim ldquoMeu Deusrdquo
O desejo dos quilombolas de GuaiacuteraPR de encontrarem seus parentes em
sua regiatildeo de origem e de poderem ldquovoltar a paacutegina da nossa vida do comeccedilordquo como
na expressatildeo utilizada por Adir que serve de tiacutetulo a este capiacutetulo inscreve-se em
uma dinacircmica dupla que abrange uma dimensatildeo poliacutetica vinculada ao processo de
regularizaccedilatildeo territorial da comunidade e um significado familiar e afetivo muito
intenso A mobilizaccedilatildeo de Adir em torno da realizaccedilatildeo desta viagem inicia-se pelo
anseio de subsidiar a consolidaccedilatildeo da imagem do grupo na esfera puacuteblica ndash o que
pode ser compreendido por meio da noccedilatildeo de ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo (ARRUTI
2006) ndash jaacute que tal imagem da comunidade foi abertamente questionada pelo primeiro
relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo durante o processo de regularizaccedilatildeo territorial pelo
INCRA ainda em tracircmite
Na leitura de meus interlocutores(as) sobre tais demandas externas de
legitimaccedilatildeo entendiam que se o segundo relatoacuterio antropoloacutegico havia demonstrado
a continuidade histoacuterica entre a comunidade de GuaiacuteraPR e as comunidades
quilombolas da regiatildeo mineira de um modo mais amplo apenas o retorno dos
proacuteprios quilombolas agrave regiatildeo ndash percorrendo a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia
ndash poderia proporcionar-lhes mais referecircncias sobre a histoacuteria de seus antepassados
165
assim como a retomada das relaccedilotildees com os parentes apoacutes anos sem contato Os
laccedilos da comunidade em GuaiacuteraPR com este passado ldquoprecisam ser produzidos hoje
atraveacutes da seleccedilatildeo e recriaccedilatildeo de elementos da memoacuteriardquo (ARRUTI 1997 p 23)
recriaccedilatildeo esta que passa pela ideia de ldquoorigemrdquo143 e de ldquoretornordquo
Em sua anaacutelise sobre o processo de emergecircncia identitaacuteria dos povos
indiacutegenas no Nordeste144 Oliveira Filho lanccedilou matildeo da metaacutefora da ldquoviagem da voltardquo
que eacute parte de uma poesia de Torquato Neto sobre a narrativa de um migrante
nordestino que deseja retornar agrave terra de origem ldquodesde que saiacute de casa trouxe a
viagem da volta gravada na minha matildeo enterrada no umbigo dentro e fora assim
comigo minha proacutepria condiccedilatildeordquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64) Com o uso desta
expressatildeo Oliveira Filho destaca as dimensotildees constitutivas da etnicidade no que
tange agrave trajetoacuteria histoacuterica do grupo social que natildeo anula mas ateacute mesmo reforccedila o
sentimento de referecircncia agrave origem (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64)
Os quilombolas de GuaiacuteraPR assim como os povos indiacutegenas no
Nordeste145 natildeo se encaixam nas representaccedilotildees difusas da identidade que
reivindicam Tendo em vista esta descontinuidade gerada em grande parte pela
condiccedilatildeo diaspoacuterica da trajetoacuteria coletiva de reterritorializaccedilatildeo destas famiacutelias
quilombolas a necessidade que sentiram de buscar referecircncias histoacutericas para
dialogar com uma demanda de ldquoorigemrdquo somada a um desejo interno ao grupo deram
para a expressatildeo da ldquoviagem da voltardquo um sentido natildeo soacute metafoacuterico de etnogecircnese
como tambeacutem um sentido literal de regresso No contexto conturbado do
procedimento de regularizaccedilatildeo do grupo em tracircmite no INCRA a volta agrave regiatildeo de
origem se tornou necessaacuteria para o reconhecimento de uma identidade negra singular
que os legitimasse como quilombolas Este processo de retorno se iniciou com a
143 Este reinvestimento nas memoacuterias estava tambeacutem referenciado na busca por ldquotraccedilos culturais que
sirvam como os ldquosinais externosrdquo reconhecidos pelos mediadores e o oacutergatildeo que tem a autoridade de nomeaccedilatildeordquo (ARRUTI 1997 p 23) A identificaccedilatildeo destes ldquosinais externosrdquo da etnicidade remontam ao acionamento da ideia de ldquoorigemrdquo que estaacute na base do conceito de ldquoremanescentesrdquo utilizado pela Constituiccedilatildeo Federal para reconhecer direitos territoriais aos ldquoremanescentes das comunidades de quilombosrdquo no artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) 144 O conceito de ldquoremanescenterdquo foi utilizado para se referir aos ldquoremanescentes indiacutegenasrdquo na regiatildeo
Nordeste ndash os quais passaram por um processo de retomada de tradiccedilotildees nas uacuteltimas deacutecadas e que satildeo percebidos como tendo pouca distintividade em relaccedilatildeo aos regionais (ARRUTI 1997) 145 Esta comparaccedilatildeo entre quilombolas e povos indiacutegenas no Nordeste estaacute relacionada agrave dificuldade
de ldquoprecisar os contextos sociohistoacutericos em que tais grupos se constituiacuteram e se consolidaram como ldquounidades discretasrdquo portadoras de um forte referencial eacutetnico e assim diferenciadas do contexto social mais amplordquo (BRASILEIRO SAMPAIO 2002 p 83)
166
elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico e se ampliou por meio das viagens
realizadas em marccedilo e junho de 2015 no acircmbito desta pesquisa de mestrado
Diante do exposto acima interessante ressaltar que estas viagens para Santo
Antocircnio do Itambeacute em 2015 foram precedidas por outras viagens de retorno que
segundo meus interlocutores(as) ocorreram na deacutecada de 1980 Eva filha de Geraldo
dos Santos que tambeacutem adquiriu um lote vizinho ao de Manoel relatou como era difiacutecil
juntar dinheiro para visitar os parentes em Minas e manter contato agrave distacircncia Contou-
me como sua matildee Antocircnia Domingues dos Santos que saiu de Minas Gerais para
morar em GuaiacuteraPR ficou mais de dezesseis anos sem ver a matildee dela Alexandrina
Moreira da Silva que permaneceu na regiatildeo mineira
Dandara E nesta eacutepoca mandava carta assim ou nem carta Eva Mandava nada natildeo sabia mais o endereccedilo deles natildeo sabia mais nada Dezesseis anos daiacute foi saber o endereccedilo Soacute uma vez depois que casou depois que ela veio aqui para o Paranaacute soacute essa vez ela foi na casa da matildee dela Dandara Ela contou como que foi Eva Ela falou que laacute era triste menina Laacute tava triste Falou que era tudo manual casinha tudo ruim as casinhas deles trabalho demais sofria demais era muito sofrido minha matildee falava que a terra era fraca lavoura natildeo saiacutea direito e quando ela falava pro pai e a matildee dela vir pra caacute (GuaiacuteraPR) meu vocirc falava que natildeo vinha pra caacute natildeo que ele natildeo ia largar a terra dele laacute natildeo Minha matildee falava ldquooh meu fio se ocecirc for laacute pro Paranaacute se ocecirc saber o tamanho das pranta que noacutes pranta o tamanho que fica a pranta aqui as pranta natildeo sai da terra baixinha assimrdquo ldquoNatildeo eu vou morrer aqui memo daqui eu natildeo saiordquo ele falou pra matildee A matildee falou que laacute era triste Dandara E ela viajou sozinha essa vez Eva Natildeo foi ela meu pai e meu cunhado o irmatildeo do Adir o Antocircnio Meu pai e o finado Antocircnio largou matildee laacute na casa da matildee dela Minha irmatilde tambeacutem foi irmatilde minha mais velha Iracema e foi a Cenira que era a caccedilula Cenira tinha acho que um ano e trecircs mecircs Daiacute meu pai largou matildee laacute e eles foi laacute na titia na Bahia Dandara Tem parente na Bahia tambeacutem Eva Natildeo eles foi laacute numa titia laacute neacute Dandara Quem que eacute titia Eva Assim eacute que benzia neacute titia matildee de santo noacutes falava titia Eles foi na casa dela pegou endereccedilo com a famiacutelia deles laacute Meu pai foi e meu cunhado o Antocircnio irmatildeo do Adir mais velho Dandara E seu pai jaacute tinha mais contato com a Umbanda
167
Eva Sim ele trabalhava tambeacutem em Umbanda O Antocircnio tambeacutem meu pai minha matildee tambeacutem trabalhava Tudo trabalhava na Umbanda
Em 1981 Antocircnia e seu marido Geraldo voltaram a Minas Gerais para
reverem seus parentes e foram acompanhados por Antocircnio filho de Manoel Ciriaco
Se em Guaiacutera passavam dificuldades quando se trata de Minas Gerais as memoacuterias
reforccedilam como a sobrevivecircncia era ainda mais complicada No entanto mesmo com
tamanha adversidade o avocirc de Eva Sebastiatildeo preferiu permanecer em Minas
Gerais reforccedilando a importacircncia do viacutenculo com seu lugar de origem No relato sobre
este retorno a Minas Gerais Eva destacou a viagem de Geraldo e Antocircnio que
aproveitaram a oportunidade e foram para a Bahia onde estaacute localizado o terreiro de
Umbanda em que Antocircnio fez sua iniciaccedilatildeo ritual
Nesta mesma viagem realizada em 1981 Antocircnio conseguiu encontrar seu
irmatildeo Joatildeo Loriano filho do primeiro casamento de seu pai que o havia deixado em
Minas aos cuidados da avoacute Izidora como mencionamos no primeiro capiacutetulo Segundo
nos contou Joatildeo Loriano146 Antocircnio comprou ateacute roupa para ele poder viajar pois ele
passava muita dificuldade na regiatildeo de origem de seu pai Quando chegou no Paranaacute
ele se considerou rico pois em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG soacute comiam coisa do
mato como tatu lagartixa e ateacute garrincha (passarinho bem pequeno) que eles
matavam e davam para os filhos comerem com purecirc de farinha Quando Joatildeo Loriano
encontrou o pai contou que sentiu tanta alegria que ateacute o pegou para danccedilar Entatildeo
o pai falou ldquosai pra laacute meu filhordquo mas Joatildeo se justificou dizendo que era de tanto amor
que sentia pelo pai que natildeo via haacute tantos anos Os demais irmatildeos contaram como o
pai tambeacutem estava feliz que fez uma festa para receber o filho
Depois que trouxe o irmatildeo Joatildeo Loriano Antocircnio voltou no ano seguinte para
Minas Gerais para buscar a mulher de Seu Joatildeo Maria das Dores e seus filhos que
passaram a morar em Guaiacutera no siacutetio de Manoel com os demais parentes Nesta
mesma viagem Antocircnio trouxe para o Paranaacute seu primo Aniacutesio filho de seu tio
paterno Sebastiatildeo Vicente que era irmatildeo de seu pai Em 1983 Antocircnio jaacute com a
experiecircncia adquirida nas viagens anteriores eacute quem leva Maria das Dores para
visitar sua famiacutelia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Quando retornam trazem com
146 Joatildeo Loriano atualmente mora em Presidente Prudente Esta fala foi registrada jaacute durante a viagem
passando por Presidente Prudente ateacute Minas Gerais em marccedilo de 2015
168
eles a esposa de seu primo Aniacutesio Ceciacutelia e seu filhos pois Aniacutesio morava em
GuaiacuteraPR desde 1982
No mesmo ano 1983 Antocircnio volta novamente agrave regiatildeo mineira acompanhado
agora de Joaquim com o intuito de reivindicarem a heranccedila e venderem a parte do
siacutetio de Izidora que cabia a seu pai Manoel e tambeacutem a heranccedila da matildee de Geraldo
Altina Segundo Joaquim relatou as parcelas hereditaacuterias seriam de respectivamente
onze e oito alqueires No entanto quando chegaram no siacutetio de Izidora relatam que
foram recebidos com desconfianccedila ldquoos homensrdquo (parentes) estavam armados e
falaram para eles que soacute passariam o documento da terra para Olegaacuterio o filho mais
velho de Manoel que havia morado laacute A regra local para transmissatildeo de heranccedila
parecia atribuir naquela eacutepoca apenas aos sujeitos que haviam morado no local o
direito de reivindica-la como no caso de Olegaacuterio o que natildeo se estendia aos seus
descendentes ou parentes colaterais como os irmatildeos Antocircnio e Joaquim
Por fim a uacuteltima visita realizada na deacutecada de 1980 ocorreu entre 1985 e 1986
quando Antocircnio acompanhou Ceciacutelia com os filhos de volta a Santo Antocircnio do Itambeacute
pois ela natildeo havia se adaptado agrave regiatildeo de GuaiacuteraPR e natildeo estava vivendo bem junto
a seu marido Aniacutesio segundo me contou Eva A famiacutelia de Ceciacutelia importante
destacar foi a uacutenica dentre os que se mudaram para o Paranaacute que voltou a viver em
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
A realizaccedilatildeo destas viagens em um periacuteodo de cinco anos aponta para como
na deacutecada de 1980 a condiccedilatildeo econocircmica da comunidade estava melhor147 As
viagens no entanto depois se interrompem por deacutecadas Com o falecimento de seu
Manoel a comunidade fica em uma situaccedilatildeo muito delicada financeiramente com as
diacutevidas deixadas por ele aleacutem da perda da referecircncia daquele que era o administrador
da economia familiar A mecanizaccedilatildeo da agricultura tambeacutem tem um impacto direto
sobre as dinacircmicas de trabalho da comunidade como jaacute destacado Atualmente
ressaltam como a necessidade de ldquopagar contasrdquo em contraste com um periacuteodo
anterior de maior autossuficiecircncia impactam diretamente sobre a renda familiar
32 O CAMINHO ATEacute MINAS GERAIS
147 Na eacutepoca produziam e comercializavam o algodatildeo plantado no proacuteprio siacutetio e em aacutereas arrendadas
possuiacuteam um mangueiratildeo de porco e Manoel adquirira um trator para ldquogradearrdquo (arar e sulcar) a terra
169
As anaacutelises de Oliveira Filho indicadas acima enfocam a relaccedilatildeo entre
pertencimento eacutetnico e territorialidade dando um peso central agrave dimensatildeo poliacutetica da
organizaccedilatildeo dos grupos sociais no acircmbito dos paracircmetros colocados pelo Estado e
do processo de territorializaccedilatildeo148 Se as reflexotildees deste autor nos ajudam a pensar
(a) o processo de emergecircncia identitaacuteria (b) a importacircncia atribuiacuteda ao viacutenculo com a
regiatildeo de origem e (c) a dinacircmica que a relaccedilatildeo com o Estado desempenhou nesta
organizaccedilatildeo poliacutetica do grupo a partir da reivindicaccedilatildeo territorial em GuaiacuteraPR
importante pontuar por outro lado que ndash com a realizaccedilatildeo das viagens de volta em
marccedilo e junho de 2015 da qual participaram cinco membros da famiacutelia149 ndash a ecircnfase
dada pelos quilombolas para a estruturaccedilatildeo do pertencimento identitaacuterio pareceu estar
muito mais centrada nas dinacircmicas do parentesco do que na noccedilatildeo de territorialidade
A relaccedilatildeo entre a pessoa e o grupo eacutetnico ndash que implica na sua possibilidade
de autorreconhecimento como quilombola ndash foi acionada por meio da mediaccedilatildeo das
relaccedilotildees de parentesco as quais saiacuteram fortalecidas neste percurso que conectou
parte significativa da rede expandida de famiacutelias Este enfoque no parentesco natildeo
minimiza no entanto a importacircncia da reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo territorial em
GuaiacuteraPR que estaacute baseada inclusive como um dos principais argumentos na
possibilidade do retorno de parentes que estatildeo atualmente fora do territoacuterio e que
pelo viacutenculo familiar podem se autorreconhecer como quilombolas
Esta possibilidade foi estendida a parentes que encontraram na primeira
viagem e que sempre viveram na regiatildeo mineira Este convite para viver no territoacuterio
em GuaiacuteraPR foi apresentado por exemplo a D Ana Raimunda (87) irmatilde de Manoel
Ciriaco que encontramos morando no SerroMG e a Seu Daniel (80) primo de
primeiro grau de Ana Rodrigues (esposa de Manoel) que mora em Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG Seu Daniel ficou feliz com o convite pois mora com a filha o genro e o
neto em condiccedilotildees muito precaacuterias mas precisaria de suporte para que pudesse
148 Com o conceito de ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho
afirma buscar se afastar da ideia de qualidade imanente consubstanciada na noccedilatildeo de territorialidade e deste modo critica as premissas de continuidade e de imemorialidade atribuiacutedas ao territoacuterio indiacutegena Destaca dentre os seus argumentos a frequecircncia com a qual os povos indiacutegenas passaram por processos de reterritorializaccedilatildeo no acircmbito do proacuteprio processo de colonizaccedilatildeo e defende que a avaliaccedilatildeo para a criaccedilatildeo de uma terra indiacutegena apresenta uma caracteriacutestica conjuntural (OLIVEIRA FILHO 1994ordf p 134) 149 Na primeira viagem para Santo Antocircnio do Itambeacute e SerroMG realizada em marccedilo de 2015 eu e
Cassius acompanhamos Adir e Geralda quilombolas de Guaiacutera aleacutem de Seu Joatildeo Loriano que mora atualmente em Presidente PrudenteSP Na segunda viagem em junho de 2015 eu e Cassius acompanhamos D Jovelina e D Maria das Dores que moram atualmente em Presidente PrudenteSP
170
realizar essa mudanccedila Pareceu-me que neste caso a possibilidade ficou no ar D
Ana como veremos no proacuteximo toacutepico em junho de 2015 foi morar com D Jovelina
em Presidente PrudenteSP a partir da viagem que fizemos para buscaacute-la em
SerroMG
Para que fosse possiacutevel realizar a primeira viagem em marccedilo de 2015 foi
fundamental o contato que eu jaacute possuiacutea com Cassius o historiador que desenvolveu
a pesquisa na regiatildeo durante a produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico Eu o
conheci quando trabalhava como assessora juriacutedica no Ministeacuterio Puacuteblico e ele
compunha o Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) equipe que realizou o
levantamento das comunidades quilombolas no Paranaacute no periacuteodo de 2005-2010
Atualmente Cassius estaacute cursando doutorado em Ciecircncias Sociais na UNICAMP e
pesquisa justamente o tema da mobilidade e das redes sociais de parentesco
quilombola Um dos processos que passou a analisar em sua pesquisa de doutorado
com a realizaccedilatildeo das viagens a Minas Gerais foi o da comunidade quilombola Manoel
Ciriaco dos Santos
Propus para Cassius que organizaacutessemos juntos esta viagem e buscaacutessemos
recursos com as respectivas universidades agraves quais estamos vinculados UFPR e
UNICAMP para financiar a nossa ida em marccedilo de 2015 bem como de mais trecircs
pessoas Adir e Geralda do grupo que mora em GuaiacuteraPR e Joatildeo Loriano que mora
atualmente em Presidente PrudenteSP A importacircncia da ida de Seu Joatildeo Loriano foi
defendida por Adir e Geralda tendo em vista que ele foi o uacutenico filho de Manoel Ciriaco
que ficou em MG ateacute 1981 ano em que se mudou para GuaiacuteraPR Em 1993 Joatildeo
Loriano Olegaacuterio e Eurides se mudaram de GuaiacuteraPR para Presidente PrudenteSP
onde a irmatilde Jovelina jaacute morava desde 1986 Deste modo quando pensamos nosso
trajeto ateacute MG a proposta de Adir e de Geralda que nunca tinham ido ateacute laacute foi que
pudeacutessemos passar por Presidente PrudenteSP para que eles conversassem com
estes irmatildeos mais velhos com o objetivo de buscar mais informaccedilotildees sobre as
memoacuterias mineiras e sobre a histoacuteria da famiacutelia para subsidiar a pesquisa na regiatildeo
Ademais propuseram que Joatildeo Loriano pudesse continuar o caminho ateacute MG
conosco e ser uma espeacutecie de guia para a nossa viagem
A uacuteltima vez que Adir tinha conseguido visitar os parentes em Presidente
PrudenteSP havia sido antes da comunidade de GuaiacuteraPR ser reconhecida como
quilombola haacute nove anos e Geralda natildeo ia a Presidente Prudente haacute vinte anos
171
Deste modo percebe-se que ateacute com os irmatildeos que estatildeo no estado de Satildeo Paulo o
grupo de Guaiacutera tem dificuldade de manter contato presencial mas manteacutem contatos
frequentes por meio de telefone celular Adir comentou que estava sendo muito
oportuna esta visita pois ainda natildeo tinha tido condiccedilotildees de explicar para seus irmatildeos
sobre o momento atual do tracircmite do procedimento do INCRA que em breve realizaraacute
o cadastramento das famiacutelias que compotildee a comunidade quilombola segundo
indicaccedilatildeo a ser feita pelo proacuteprio grupo A viagem tambeacutem proporcionou uma
retomada de memoacuterias e de trocas de experiecircncias que em outras circunstacircncias
poderiam natildeo ser acionadas
Outro ponto importante na organizaccedilatildeo da nossa viagem eacute que a primeira ida
de Cassius agraves comunidades quilombolas da regiatildeo de origem de Manoel Ciriaco em
2012 viabilizou o contato com os professores do curso de direito da PUC-Serro
(Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica) os quais atuam com estes grupos e se
disponibilizaram a nos dar o apoio logiacutestico durante a nossa estadia Fomos
convidados em contrapartida a fazer parte de um evento realizado na universidade
com o seguinte tema ldquoSeminaacuterio de Introduccedilatildeo aos Direitos Eacutetnicos direito e conflitos
em territoacuterios quilombolasrdquo Eu Cassius e Adir participamos como palestrantes em
mesas do evento sendo que os dois trataram especificamente da histoacuteria da
Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos
Neste subitem meu objetivo seraacute debater dados levantados a partir nesta
primeira viagem realizada entre os dias 28 de fevereiro a 13 de marccedilo de 2015 e no
subitem seguinte em relaccedilatildeo agrave segunda viagem derivada da primeira e realizada
entre os dias 05 e 08 de junho de 2015 A estrateacutegia por mim e por Cassius adotada
foi que os quilombolas fossem os protagonistas em todo o trajeto e que escolhessem
os caminhos a serem acionados tendo por base uma programaccedilatildeo preacutevia
estabelecida em parceria com nossos apoiadores da PUCSerro
321 A passagem por Presidente PrudenteSP e os irmatildeos mais velhos
No momento da chegada agrave rodoviaacuteria de Presidente PrudenteSP em um
saacutebado dia 28 de fevereiro Cassius perguntou para Adir como tinha sido a viagem de
GuaiacuteraPR ateacute ali e ele em resposta referiu-se agrave viagem de um modo mais amplo em
seu objetivo de chegar ateacute Minas Gerais
172
A viagem Cassius pra mim foi taacute sendo muito importante primeiro que eu vou rever todos os meus parentes quanto tempo que eu natildeo vejo mais os meus irmatildeos meus sobrinhos primos e segundo eacute aquela viagem para Minas Gerais que ela vai ser uma viagem muito importante para nossa vida principalmente para mim
A possibilidade de atualizaccedilatildeo das relaccedilotildees de parentesco era um dos
objetivos principais da viagem que estava dividida em duas etapas Presidente
PrudenteSP e a regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG A passagem por Presidente
PrudenteSP como mencionamos acima tinha como objetivo trocar experiecircncias
sobre as memoacuterias do tempo em que os irmatildeos mais velhos viveram em Minas Gerais
e convidar Seu Joatildeo Loriano para nos acompanhar pois ele foi o uacutenico irmatildeo que laacute
ficou morando ateacute os 37 anos Ao nosso convite seu Joatildeo respondeu ldquopode ficar
tranquilos que noacutes vamos rachar no mundo Falou comigo que eacute pra passear meu
filhordquo 150 A histoacuteria de Seu Joatildeo que foi sendo contada e detalhada durante a viagem
eacute central para compreender esta reconexatildeo da famiacutelia que estaacute no Paranaacute e no estado
de Satildeo Paulo com a regiatildeo de origem em Minas Gerais
Manoel Ciriaco antes de se casar com Ana Rodrigues era viuacutevo de Maria
Olinda com quem teve quatro filhos Luiza (que faleceu aos oito anos) Olegaacuterio
Jovelina e Joatildeo Loriano Maria Olinda foi criada pelo Padre Joviano um padre muito
estimado pela populaccedilatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG que o considera santo
Junto com ela mais trecircs irmatildes de criaccedilatildeo moravam na casa do padre ndash Cecilia
Geralda Estrelina e outra irmatilde de quem Seu Joatildeo natildeo se lembrou o nome Esta casa
ficava beirando o rio bem proacuteximo agrave Igreja Matriz Maria Olinda segundo nos contou
Seu Joatildeo e D Jovelina foi achada no mato pelo padre em um dia que ele ia a cavalo
rezar uma missa e quando ouviu um choro de bebecirc foi ver o que era A menina que
teria acabado de nascer havia sido deixada enrolada em uma coberta A pessoa que
a abandonara natildeo teria deixado pistas da trilha por onde passou
Quando Seu Joatildeo tinha um mecircs e sete dias sua matildee faleceu151 tendo ele
ficado aos cuidados de sua avoacute Izidora matildee de Manoel e de sua tia Ana Raimunda
150 Curioso notar que apesar da seriedade do propoacutesito da viagem ela eacute vista por Seu Joatildeo tambeacutem
como uma chance de diversatildeo atraveacutes do movimento o que se expressa na ideia de ldquopassearrdquo 151 Segundo Geralda Maria Olinda teria morrido por ter sido viacutetima de feiticcedilo Geralda contou que ela
falava demais e Maneacute a avisava para ter cuidado Um dia quando ela estava trabalhando serviram para ela aacutegua com uma folha Ela teria achado estranho mas tomou Depois passou um tempo descobriram por meio das entidades espirituais que era feiticcedilo mas jaacute natildeo tinha mais o que fazer para reverter o efeito ldquoEm Minas tem feiticeiro mesmordquo acrescentou Geralda
173
irmatilde de seu pai Seu Joatildeo ficou morando com avoacute Izidora quando Manoel saiu de
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG em direccedilatildeo ao estado de Satildeo Paulo em 1956 pois seu
pai natildeo teria tido coragem de o separar da avoacute Durante um certo periacuteodo Seu Joatildeo
comentou que eles tiveram contato com seu pai uma ou duas vezes por carta mas
quando foram mandar notiacutecia sobre o falecimento de Izidora natildeo sabiam mais seu
endereccedilo
Quando ocorreu o falecimento de sua avoacute Seu Joatildeo foi morar e trabalhar na
fazenda de Zinho Gonccedilalves e como ele frisou foi mais criado na fazenda do que em
casa Ele trabalhava com tropa levando cachaccedila e outros produtos pela regiatildeo Tinha
dia que ele falava para a esposa que natildeo ia levar marmita para ldquolargar o comecirc pra daacute
pros meus meninordquo Ele casou com 16 anos com D Maria das Dores que tinha a
mesma idade Segundo D Maria das Dores nos contou foi o fazendeiro que os ajudou
financeiramente para que pudessem casar e ldquoos vestiu dos peacutes agrave cabeccedilardquo
No Itambeacute Seu Joatildeo era conhecido como ldquoJoatildeo do Rosaacuteriordquo pois quando foi
fazer seu registro em Minas Gerais ndash como seu pai havia levado seu documento ndash ao
lhe perguntarem no cartoacuterio qual era seu sobrenome ele entatildeo respondeu ldquoAh potildee
Joatildeo do Rosaacuterio de qualquer jeitordquo Seu Joatildeo riu quando terminou de nos relatar esta
lembranccedila que fala de sua experiecircncia difiacutecil como rapaz que cresceu oacuterfatildeo da matildee
falecida e do pai do qual natildeo tinha notiacutecias Seu Joatildeo soacute saiu de Santo Antocircnio do
Itambeacute em 1981 quando tinha 37 anos como mencionamos acima Por toda essa
experiecircncia que Seu Joatildeo teve de anos de vida na regiatildeo a sua participaccedilatildeo na
viagem era de importacircncia central
Apesar de jaacute termos algum planejamento anterior boa parte das decisotildees
foram sendo tomadas ao longo do percurso A princiacutepio haviacuteamos pensado em passar
apenas o final de semana em Presidente PrudenteSP e embarcar jaacute na segunda-feira
para Minas Gerais No entanto Adir e Geralda optaram por estender a visita aos
irmatildeos e demais parentes e resolveram ir para SerroMG apenas na quinta-feira agrave
noite Isso tambeacutem porque Seu Joatildeo precisou de uns dias para se liberar e poder nos
acompanhar na viagem Eu e Cassius entatildeo decidimos ir antes na terccedila-feira agrave noite
para organizar junto aos professores da PUCSerro as questotildees relativas ao evento
que foi composto por duas mesas de palestras na sexta-feira agrave noite (0603) e no
saacutebado pela manhatilde (0703)
174
Para compreender a importacircncia atribuiacuteda por Geralda e Adir agrave estadia junto
aos irmatildeos mais velhos que moram em Presidente PrudenteSP deve-se destacar
que eacute a experiecircncia de ter participado do passado familiar em Minas Gerais que
parece ser um criteacuterio de distinccedilatildeo daqueles que satildeo tidos como capazes de fazer a
conexatildeo narrativa da histoacuteria atual do grupo com seu ldquomito de origemrdquo Trata-se ldquodos
depositaacuterios da histoacuteria mais idosos ldquotronco velhordquo lideranccedilas das parentelas
guardiotildees da histoacuteria da comunidaderdquo (MONBELLI BENTO 2006 p 24)152 Com o
processo de autoidentificaccedilatildeo como quilombolas e a reelaboraccedilatildeo da memoacuteria
coletiva os irmatildeos mais velhos ganham status como ldquoguardadores da memoacuteriardquo os
quais passaram a ldquodesempenhar um papel sem precedentes na vida do grupordquo
(ARRUTI 1997 p 23)
Aleacutem deste aspecto da pesquisa e levantamento das histoacuterias da famiacutelia Adir
e Geralda tinham como objetivo mais imediato rever os irmatildeos(atildes) cunhados(as)
sobrinhos(as) primos(as) que vivem atualmente na regiatildeo do municiacutepio paulista Joatildeo
Aparecido irmatildeo caccedilula de Adir e Geralda tambeacutem foi por mim e Cassius apoiado
financeiramente para que pudesse chegar ateacute Presidente PrudenteSP153 onde
atualmente residem sua ex-mulher Kelly e seus dois filhos Joatildeo Vitor (13) e Tauane
(16) A ex-mulher e os filhos de Joatildeo Aparecido moravam em GuaiacuteraPR ateacute 2011
quando Kelly perdeu seu emprego na escola municipal do Maracaju dos Gauacutechos
onde trabalhava com serviccedilo de limpeza e merenda Ela resolveu entatildeo morar em
Presidente PrudenteSP e ficar proacutexima de sua famiacutelia pois acreditava que teria mais
chances de conseguir um emprego jaacute que na comunidade a situaccedilatildeo de conflito com
os vizinhos aleacutem de gerar inseguranccedila para as famiacutelias fez com que as possibilidades
de trabalho diminuiacutessem Na eacutepoca Kelly chamou Joatildeo Aparecido para que a
acompanhasse na mudanccedila mas ele natildeo foi porque entendia que sua permanecircncia
no siacutetio em GuaiacuteraPR era importante para o projeto coletivo de comunidade que ele
conduz junto com os irmatildeos Adir e Joaquim Esta situaccedilatildeo entatildeo acabou gerando a
152 O par de categorias de parentesco ldquotronco velhordquo e ldquopontas de ramardquo presente na etnografia
realizada por Arruti junto aos Pankararu no estado de Pernambuco traduzem a distacircncia entre o grupo indiacutegena e seus antepassados considerados ldquoiacutendios purosrdquo sendo utilizadas para organizar as relaccedilotildees marcadas pela ideia de ldquomisturardquo de modo a criar um ldquofluxo diferencial de forccedila religiosa e legitimidaderdquo no sentido do ldquotronco velhordquo (ARRUTI 1996 p 64) 153 Soacute Joaquim dentre os irmatildeos que moram em GuaiacuteraPR natildeo foi para Presidente PrudenteSP pois algum deles tinha que ldquoficar cuidando de tudo no siacutetiordquo
175
separaccedilatildeo do casal Haacute dois anos Joatildeo Aparecido natildeo ia para Presidente PrudenteSP
e ficou este periacuteodo sem ver os filhos
O fato de dois filhos de Manoel Ciriaco chamarem-se Joatildeo ocorreu em razatildeo
de o pai ter dado ao seu filho caccedilula nascido em 1972 o nome de Joatildeo Aparecido
para lembrar-se do filho Joatildeo Loriano que havia ficado em Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG Segundo Adir nesta eacutepoca o pai natildeo tinha mais esperanccedila de encontraacute-
lo depois de dezesseis anos de separaccedilatildeo O reencontro para aliacutevio de Manoel
ocorreu nove anos depois do nascimento de Joatildeo Aparecido em 1981 quando Joatildeo
Loriano passou a viver com a esposa Maria das Dores e os seis filhos na terra do pai
em GuaiacuteraPR
FIGURA 20 O encontro entre os dois irmatildeos ldquoJoatildeordquo em Presidente PrudenteSP
Em Presidente PrudenteSP Cassius Adir Joatildeo Aparecido Geralda e eu
ficamos hospedados na casa de D Jovelina e Seu Davi Eles moram em um bairro
perifeacuterico do municiacutepio chamado ldquoAna Jacintardquo que fica a mais ou menos uma hora
de distacircncia do centro da cidade Seu Joatildeo Loriano e D Maria das Dores tambeacutem
moram no mesmo bairro assim como alguns filhos destes dois casais com suas
respectivas famiacutelias o que permite uma convivecircncia constante e uma rede de
176
solidariedade entre eles154 Destaca-se que duas das filhas155 de Seu Joatildeo ndash
Aparecida e Dulce ndash satildeo casadas com os filhos gecircmeos de sua irmatilde D Jovelina ndash
Damasio e Damasceno ndash exemplo da ocorrecircncia de casamento entre primos de
primeiro grau
Haviacuteamos chegado em Presidente PrudenteSP no saacutebado No dia seguinte
foi preparado um almoccedilo com churrasco que reuniu parte da famiacutelia que mora proacuteximo
do bairro ldquoAna Jacintardquo para comemorar a visita dos parentes de GuaiacuteraPR
FIGURA 21 Famiacutelia reunida em Presidente PrudenteSP na casa de D Jovelina
Neste almoccedilo celebrativo Cassius ensinou Adir a usar uma das trecircs cacircmeras
de viacutedeo que tiacutenhamos agrave disposiccedilatildeo Adir ficou muito animado em poder registrar seu
olhar sobre os momentos da viagem gravando conversas com os parentes paisagens
do caminho etc Durante todo o percurso boa parte das filmagens foram realizadas
por Adir que interpelava e entrevistava as pessoas conforme seus interesses e
154 Eacute possiacutevel perceber a presenccedila de caracteriacutesticas no cotidiano destas famiacutelias que remontam agrave sua
origem no meio rural e a uma trajetoacuteria que os distingue dos demais vizinhos mesmo morando em um bairro de uma grande cidade Por exemplo Seu Joatildeo Damasio e Damasceno filhos de Jovelina acertam com os proprietaacuterios de terrenos baldios do bairro a possibilidade de utilizarem a aacuterea para plantar garantindo em contrapartida a manutenccedilatildeo do terreno 155 Outra informaccedilatildeo relevante eacute que a filha mais velha de Seu Joatildeo Maria de Faacutetima dos Santos estaacute
haacute mais de quinze anos desaparecida e segundo nos informaram teria sumido em Campinas quando para laacute foi com o entatildeo marido Edison e perderam o contato Atualmente a famiacutelia tenta encontraacute-la
177
prioridades Este material tambeacutem eacute aqui analisado como fonte de pesquisa e registro
do trabalho de campo
Adir em mais de uma oportunidade durante a estadia em Presidente
PrudenteSP mostrou para seus parentes que eles fazem parte da luta quilombola da
comunidade em GuaiacuteraPR e reforccedilou como ele estava feliz em nesta viagem ir
buscar a raiz da histoacuteria da famiacutelia Em conversa na varanda da casa de D Jovelina
comentou sobre a trajetoacuteria do ldquopovo negrordquo desde o traacutefico de africanos ateacute a
experiecircncia do Quilombo dos Palmares Concluiu dizendo a seus primos
Vocecirc deve buscar neacute na internet hoje vocecirc consegue muita coisa os quilombos Quilombo de Palmares ver o tanto de negro que entrava no Brasil E o Cassius ele eacute professor pode explicar melhor do que eu e a Dandara tambeacutem que vocecircs estudam e eu natildeo estudo fico dentro da roccedila laacute Mas tudo o que das viagens dos encontros de tudo que eu jaacute vi na vida ateacute hoje estaacute guardado aqui Mais do que eu escrevi do que eu jaacute vi Aiacute que eu penso assim em buscar a histoacuteria do meu passado por isso que eu luto Que eu vou ateacute o fim Se eles natildeo me matar
Adir ressaltava assim a importacircncia de se mobilizarem para ldquomostrar pras
pessoas que noacutes somos negros e que tem que nos respeitarrdquo Identificava a presenccedila
de tal desrespeito por exemplo na falta de acesso ao estudo para a populaccedilatildeo negra
como no caso de Olegaacuterio Seu Joatildeo e D Maria das Dores que natildeo aprenderam a ler
e a escrever Ao mesmo tempo em que Adir afirmava seu intuito de ir ldquoateacute o fimrdquo com
esta busca era a proacutepria viagem que parecia estar lhe proporcionando um
fortalecimento de convicccedilotildees bem como da vontade de continuar a frente deste
processo de mobilizaccedilatildeo Eacute como se esta viagem ateacute Minas Gerais pudesse ser
comparada a uma peregrinaccedilatildeo na qual Adir estava a visitar os lugares ldquosagradosrdquo
da memoacuteria e da experiecircncia familiar e nesta jornada fosse descobrindo quem ele
mesmo eacute (TURNER 2008)
Outro encontro que ocorreu durante nossa estadia em Presidente
PrudenteSP foi com Olegaacuterio o filho mais velho de Manoel Atualmente a famiacutelia de
Olegaacuterio mora em um lote de oito alqueires que conquistaram haacute catorze anos no
ldquoAssentamento Palurdquo156 Este assentamento fica localizado na zona rural do municiacutepio
de Presidente BernardesSP no distrito de ldquoNova Paacutetriardquo proacuteximo a Presidente
PrudenteSP Olegaacuterio e Valdeniacutecio um de seus filhos que nos relatou esta histoacuteria
156 A ocupaccedilatildeo desta fazenda se deu pelo movimento ldquoBandeira Brancardquo que na eacutepoca tinha conflito
com o ldquoMovimento dos trabalhadores Rurais Sem Terrardquo (MST)
178
revezaram-se durante dois anos no periacuteodo de acampamento para conseguirem o
acesso agrave terra Os outros filhos de Olegaacuterio lhes ajudavam por exemplo com cestas
baacutesicas Segundo Valdeniacutecio quando Olegaacuterio e os filhos vieram para o estado de
Satildeo Paulo em 1993 seu pai continuou trabalhando com produccedilatildeo de farinha com a
qual jaacute lidava em GuaiacuteraPR No estado de Satildeo Paulo trabalhou com farinha mesmo
quando moravam na cidade mas era complicado segundo Valdeniacutecio por conta dos
vizinhos que se incomodavam com a fumaccedila Quando conseguiram o lote no
assentamento estruturaram a farinheira sendo que parte dela foi Olegaacuterio mesmo
que projetou Valdeniacutecio comentou que antes de mecanizar o processo de produccedilatildeo
era difiacutecil trabalhar com a farinha de mandioca Atualmente produzem em meacutedia
vinte sacos por dia
FIGURA 22 Valdeniacutecio explicando o funcionamento da farinheira
O caso de Olegaacuterio atualmente com setenta e sete anos eacute muito significativo
ao apontar para a busca ateacute agora bem-sucedida de se manterem na aacuterea rural e
reproduzirem um modo de vida autocircnomo dentro da tradiccedilatildeo de trabalho familiar
Valdeniacutecio nos mostrou o funcionamento da farinheira e explicou detalhadamente para
Joatildeo Aparecido e Adir os quais estavam muito interessados e admirados com a forma
de trabalho dos seus parentes Durante a conversa Valdeniacutecio se lembrou do tempo
que morava em GuaiacuteraPR e que laacute eles eram ldquomais de cento e poucos negros tudo
casa de coqueirordquo Frisou tambeacutem sua lembranccedila do preconceito racial que sofriam
no ldquoMaracajurdquo afirmando que quando eles passavam todos juntos os vizinhos
provocavam-lhes dizendo que formava uma ldquonuvem pretardquo e ia chover
179
Tivemos uma longa conversa com Olegaacuterio que saiu de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG com aproximadamente vinte anos de idade Ele nos contou que o siacutetio da
avoacute Izidora de dez alqueires fica em um lugar chamado ldquoQueimadasrdquo Na eacutepoca
nessa terra moravam as famiacutelias dos irmatildeos Manoel Ciriaco e Sebastiatildeo Vicente de
Paula Manoel trabalhava de ldquopuxar cana pra fazer rapadura cortava lenha
trabalhava na lavra tirando cristalrdquo Ele saiacutea para trabalhar longe e chegou a ir ateacute
Londrina no norte do Paranaacute em migraccedilatildeo sazonal Olegaacuterio contou que Manoel
quando saiacutea de Santo Antocircnio do Itambeacute para essas viagens a trabalho iaacute primeiro
ateacute Diamantina distante mais de cem quilocircmetros157 sendo que parte do percurso
eles caminhavam cortando o morro durante o dia todo Outra parte era feita no ldquopau
de ararardquo que eacute um tipo de caminhatildeo coberto de lona que transportava pessoas
Depois em Diamantina pegava o trem e continuava a viagem Quando a famiacutelia se
mudou para o estado de Satildeo Paulo e depois para o Paranaacute jaacute foram de ocircnibus
Olegaacuterio tambeacutem nos passou vaacuterias referecircncias de lugares e pessoas que estavam
relacionadas agrave famiacutelia na regiatildeo de origem e afirmou que em uma proacutexima
oportunidade ele tambeacutem gostaria de voltar para Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
A nossa passagem por Presidente PrudenteSP tambeacutem permitiu que fosse
gravado um viacutedeo de D Maria das Dores esposa de Seu Joatildeo Loriano mandando
uma mensagem para que se noacutes achaacutessemos os seus irmatildeos em Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG ldquoaqueles que tive vivordquo pudeacutessemos lhes mostrar o seu recado Quem
registrou a conversa com ela foi Adir
Adir E daiacute cumadi Maria o que a senhora manda falar noacutes encontrando os seus parentes em Minas Gerais
D Maria das Dores Oacute eu mando cumpadi Nadir muita lembranccedila um abraccedilatildeo pra cumpadi Erosino pra cumadi Regina pra cumadi Zulmira e com a famia E muitos anos de vida sauacutede pra eles quem tiver vivo
Adir E que mais de seus irmatildeos cumadi que a sra lembra
D Maria das Dores Quero recordaccedilatildeo e notiacutecia da Teresa cumadi Anita minha irmatilde Joaquim meu irmatildeo Geralda natildeo que essa taacute pra caacute e o menino que minha matildee criou eacute o Dudu
Adir Como eacute que era o nome de sua matildee cumadi
D Maria das Dores Luzia Eleoteacuteria da Silva
Adir E seu pai cumadi
157Em sua fala frisou a distacircncia em leacuteguas forma tradicional de mediccedilatildeo da regiatildeo
180
D Maria das Dores Bertolino Gino Domingo
Adir A sra lembra o lugar que a sra morava laacute e tudo
D Maria das Dores Santo Antocircnio do Itambeacute do Serro
Adir Era muito sofrido
D Maria das Dores Era sofrido nossa Senhora meu Deus A gente comia sem nada de gordura natildeo tinha nada de sal a gente fazia gordura desse bucho de boi eacute uma gordura muito ruim A fartura que tinha laacute era mandioca cana e cafeacute Minas Gerais E tambeacutem cheguei no Paranaacute o meu cunhado que Deus daacute bom lugar pra ele chegando no Paranaacute foi benccedila e alegria ()
Adir E eu tenho feacute em Deus cumadi junto com o marido da senhora que eacute meu irmatildeo o cumpadi Joatildeo a gente vai pisar naquele solo de Minas no mesmo lugar que a senhora morou quero que o cumpadi Joatildeo revecirc isso ai a gente vai filmar tudo isso eu tenho feacute em Deus que eu encontro ainda seus irmatildeos suas irmatildes todo esse pessoal que a senhora falou que taacute gravado aqui pra gente achar esse pessoal e a gente filmar tirar foto e trazer pra senhora Ver como eacute que taacute esse pessoal laacute
D Maria das Dores Ver como eacute que taacute laacute se taacute bom
Adir Saber notiacutecia que a gente perdeu notiacutecia de todo mundo
D Maria das Dores Perdemo notiacutecia Ana Raimunda tambeacutem
Adir Pois eacute perdemo tudo essa notiacutecia
Na fala de D Maria a anguacutestia da falta de notiacutecias se expressa na duacutevida de
natildeo saber quem ainda estaria vivo dentre os seus irmatildeos A possibilidade de superar
esta situaccedilatildeo eacute atribuiacuteda por ela a uma intercessatildeo divina pois concluiu a conversa
afirmando ldquoo negoacutecio eacute joelho no chatildeo jejum e oraccedilatildeordquo pois ldquoJesus vai na frenterdquo e eacute
quem pode abrir os caminhos que permitiratildeo este reencontro Como natildeo se
sensibilizar com o drama de uma separaccedilatildeo entre familiares que se estendeu por tanto
tempo por falta segundo eles mesmos afirmam de possibilidades de deslocamento e
manutenccedilatildeo do contato Agravequeles que saiacuteram da regiatildeo de origem eacute a quem caberia
o retorno pois para os que ficaram seria ainda mais difiacutecil saber como procuraacute-los
322 A chegada em SerroMG e a ida agrave Comunidade Quilombola Vila Nova
Geralda Adir e Seu Joatildeo fizeram o trajeto de Presidente PrudenteSP ateacute Belo
HorizonteMG de ocircnibus Na rodoviaacuteria de Belo Horizonte eu e Cassius combinamos
que o professor Ricardo Ferreira Ribeiro que atua nas aacutereas de antropologia e
sociologia no curso de direito da PUCSerro iria encontra-los e leva-los para Serro
aproveitando o trajeto que Ricardo jaacute faria para ir dar aula Conforme Adir destacou
181
foi muito importante terem conversado com o professor Ricardo durante a viagem ateacute
Serro um trajeto de 330 km que demora em meacutedia cinco horas de carro Neste
caminho como eacute possiacutevel recuperar por meio dos vaacuterios viacutedeos gravados por Adir o
professor Ricardo foi lhes mostrando os elementos do ambiente os rios contando e
tambeacutem ouvindo histoacuterias sobre a regiatildeo
Ele lhes contou por exemplo sobre a comemoraccedilatildeo em 2014 dos cento e
cinquenta anos da articulaccedilatildeo do movimento de revolta dos escravos desde Serro a
Diamantina que se reuniriam no intuito de acabar com a escravidatildeo No entanto
dentro do movimento teve um traidor que denunciou o esquema e a guarda acabou
prendendo as lideranccedilas da revolta Adir em resposta comentou ldquotem histoacuteria esse
Serro heinrdquo Quando laacute chegaram Adir e Geralda que nunca tinham estado ali
puderam se encantar com a arquitetura do municiacutepio caracteriacutestica das vilas
setecentistas mineiras o que lhes remetia ainda mais a este passado familiar e
regional ndash a partir do qual fundamentam a reivindicaccedilatildeo identitaacuteria como quilombolas
em GuaiacuteraPR158
Se no Serro tem histoacuteria ateacute da organizaccedilatildeo de uma revolta de escravos uma
forma de resistecircncia negra direta enquanto motim as memoacuterias familiares sobre a
vida nesta regiatildeo conforme apontou Geralda indicam uma resistecircncia cotidiana e
silenciosa enquanto processo de sobrevivecircncia (FERNANDES BUSTOLIN
TEIREIRA 2006 p134) A moradia em ldquolocardquo ou ldquolapardquo de pedra eacute um importante
siacutembolo dessa resistecircncia onde se abrigavam de modo precaacuterio nos locais oferecidos
pelo ambiente Geralda contou por exemplo que sua avoacute materna Maria Bernarda
sofreu muito pois foi abandonada pelo marido com cinco filhas mulheres dentre elas
Ana Rodrigues sua matildee A famiacutelia soacute de mulheres passou fome Ana contava para
Geralda que cansou de comer um tipo de feijatildeo do mato que elas natildeo sabiam mas
era veneno comeram e adoeceram
Ao chegarem no Serro159 iniciava para Geralda Adir e Joatildeo o processo de
busca pelos parentes Jaacute na primeira tentativa encontraram um neto de D Zulmira
158 O municiacutepio do Serro foi o primeiro municiacutepio brasileiro cujo patrimocircnio arquitetocircnico e urbaniacutestico
foi tombado pelo Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional (IPHAN) ainda em 1938 Disponiacutevel em httpwwwserromggovbrconheC3A7a-o-serrohtml Acesso em 161015 159 Serro com 20835 habitantes159 eacute um municiacutepio que fica distante 27 km de Santo Antocircnio do Itambeacute
que tem uma populaccedilatildeo de 4135 habitantes conforme o Censo do IBGE de 2010 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316710ampsearch=minas-gerais|serro
182
cunhada de Seu Joatildeo Loriano e irmatilde de D Maria das Dores Conforme Adir relatou
quando gravamos um viacutedeo dele contando como tinha sido a viagem para D Regina
e D Zulmira as irmatildes de D Maria das Dores que encontramos em Santo Antocircnio do
Itambeacute
Chegando no Serro eu queria andar eu soacute pensava em andar andar Via as pessoas eu mais cumpadi Joatildeo perguntava ldquoseraacute que eacute nosso parente Eacute nosso parenterdquo Eu mais cumpadi Joatildeo corria laacute e perguntava Ele ia na frente porque jaacute conhecia Minas Gerais 34 anos que saiu daqui E a gente ficava nessa eu quero encontrar um parente E ele falava ldquose noacutes encontrar dois encontramo o restordquo E dito e feito Primeira pessoa que noacutes se deparemo quando saiacute do local onde a gente tava num hotel em frente a um posto de gasolina tinha um barzinho Eu falei ldquoCumpadi Joatildeo eu quero tomar uma cachaccedila de Minas Geraisrdquo porque meu pai falava muito nessa cachaccedila e eu queria tomar uma cachaccedila () Comeccedilemo a encontrar uma pessoa que dizia que era parente de vocecircs aqui das senhoras E a gente ficou naquela esperanccedila noacutes tem que encontrar Ele falou ldquoNatildeo vou soacute domingo pra laacuterdquo E noacutes fiquemo naquela
Geralda me contou sobre como ocorreu este encontro pois eu e Cassius
tiacutenhamos ido no evento na PUC enquanto eles tinham ficado descansando no hotel
pois haviam chegado em SerroMG naquele dia sexta-feira 06 de marccedilo depois de
uma longa viagem Geralda ressaltou que o rapaz Julio ndash dono do bar que fica ao
lado do hotel onde estaacutevamos hospedados ndash comentou com eles que quando os viu
jaacute pressentiu que eram parentes Ficaram entatildeo sabendo que D Zulmira e D Regina
ndash irmatildes de D Maria das Dores de quem estavam agrave procura ndash ainda moravam em
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
No outro dia de manhatilde Geralda comentou comigo que natildeo tinha dormido
durante a noite porque ficou se lembrando de sua matildee e de seu pai das coisas que
eles contavam principalmente que andavam por todos aqueles morros carregando
suas coisas em cima da cabeccedila e que era muito sofrido Geralda completou
lamentando todo este tempo que eles almejaram sem poderem retornar pois ficavam
esperando juntar um dinheiro para poder vir caccedilar os parentes Lembrou-se tambeacutem
que Manoel queria ter mandado buscar sua irmatilde Ana Raimunda mas que nunca lhe
sobrava dinheiro
Fomos todos juntos entatildeo ao segundo dia do seminaacuterio na PUC A
participaccedilatildeo de Geralda Adir e Seu Joatildeo foi muito significativa A mesa do saacutebado de
Acesso em 141015 Santo Antocircnio do Itambeacute soacute se tornou um municiacutepio independente de Serro em 1963 sete anos depois que Manoel e demais famiacutelias saiacuteram de laacute
183
manhatilde se chamava ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos
geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova
(MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo Como palestrantes estavam o professor Ricardo
Cassius e duas lideranccedilas quilombolas Seu Adatildeo lideranccedila da Comunidade
Quilombola Vila Nova e Adir lideranccedila da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco
dos Santos No tiacutetulo da mesa percebe-se a conexatildeo como apontado pelo segundo
relatoacuterio antropoloacutegico da comunidade em GuaiacuteraPR entre a trajetoacuteria histoacuterica de
deslocamentos da comunidade em GuaiacuteraPR com os processos de migraccedilatildeo da
Comunidade Vila Nova pois na regiatildeo de origem do grupo esta jaacute era uma
caracteriacutestica marcante
Com base na pesquisa realizada para o segundo relatoacuterio antropoloacutegico
Cassius expocircs um panorama da trajetoacuteria de Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues desde
Minas Gerais ateacute o Paranaacute Ao ouvirem a fala de Cassius e verem as fotos de seus
parentes na apresentaccedilatildeo Adir Geralda e Seu Joatildeo que compunham a mesa natildeo
contiveram a emoccedilatildeo Para aleacutem de uma recuperaccedilatildeo histoacuterica da trajetoacuteria da famiacutelia
aquele momento tinha um valor simboacutelico muito marcante para eles pois estavam
sendo recebidos e acolhidos na regiatildeo de origem de sua famiacutelia em um momento de
reconhecimento e valorizaccedilatildeo dentro de uma universidade
Em sua fala Adir iniciou agradecendo a Deus aos Orixaacutes e a todos que
apoiaram a realizaccedilatildeo deste sonho de chegar na regiatildeo de origem de seu pai Contou
um pouco da histoacuteria de migraccedilatildeo e resistecircncia dos seus antepassados que saiacuteram
de Minas Gerais e foram buscar uma oportunidade de vida no estado de Satildeo Paulo e
depois no Paranaacute Refletiu sobre o processo de reconhecimento como quilombolas
das famiacutelias em GuaiacuteraPR os conflitos dele decorrentes e a persistecircncia da
comunidade em lutar pelo acesso agraves poliacuteticas puacuteblicas Concluiu dizendo ldquonossa luta
eacute em memoacuteria daqueles que jaacute foram e nossa luta eacute pela sobrevivecircnciardquo
184
FIGURA 23 Mesa ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova (MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo
A ideia de realizaccedilatildeo do seminaacuterio comeccedilou como forma de dar suporte agrave
nossa estadia na regiatildeo mineira para a qual eu e Cassius tambeacutem contribuiacutemos com
recursos pessoais e algum apoio das universidades agraves quais estaacutevamos vinculados
Por meio da articulaccedilatildeo com o professor do curso de direito da PUCSerro Matheus
de Mendonccedila Gonccedilalves Leite foi viabilizada parte da nossa alimentaccedilatildeo e
hospedagem aleacutem do auxiacutelio para deslocamento na regiatildeo Este evento tomou uma
proporccedilatildeo muito mais significativa do que o sentido pragmaacutetico que o motivou
inicialmente como mencionamos acima Nesta oportunidade tambeacutem ocorreu o
primeiro contato entre os quilombolas de Guaiacutera e da comunidade ldquoVila Novardquo que
fica localizada no distrito do municiacutepio de Serro chamado ldquoSatildeo Gonccedilalo do Rio das
Pedrasrdquo para onde nos deslocamos e permanecemos ateacute segunda-feira dia 09 de
marccedilo de 2015
Como mencionamos no capiacutetulo anterior foi com esta comunidade quilombola
que a pesquisa do segundo relatoacuterio antropoloacutegico indicou possiacuteveis relaccedilotildees de
parentesco A estadia junto agraves famiacutelias desta comunidade propiciou para Adir Seu
Joatildeo e Geralda uma experiecircncia de contato com um modo de vida especiacutefico que lhes
remeteu muito agraves histoacuterias de sua origem familiar Durante os trecircs dias em que laacute
ficamos Adir Geralda e Seu Joatildeo tentaram encontrar relaccedilotildees de parentesco atraveacutes
de nomes comuns da memoacuteria sobre os antepassados Muitos nomes de parentes
eram iguais o que gerou longa conversas ateacute nos darmos conta de que natildeo
185
estaacutevamos falando das mesmas pessoas Apenas no final da viagem com a nossa
estadia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG pudemos entender qual era a ligaccedilatildeo entre
estas famiacutelias Como veremos no proacuteximo subitem o viacutenculo de parentesco ocorre
por meio dos ascendentes da famiacutelia da esposa de Seu Joatildeo D Maria das Dores
pelo lado de sua matildee Luzia Eleoteacuteria da Silva
FIGURA 24 Da esquerda para a direita Seu Adatildeo D Necila (ambos de Vila Nova) Adir Geralda D Maria Geralda (Vila Nova) e Seu Joatildeo
O distrito de Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras fica a trinta quilocircmetros da sede
do municiacutepio de Serro com acesso por estrada de terra Estaacute situado no alto da Serra
do Espinhaccedilo a 1150 m de altitude e conta com vaacuterias cachoeiras que compotildeem uma
linda paisagem O distrito com em torno de mil e quinhentos habitantes surgiu no
iniacutecio do seacuteculo XVIII em decorrecircncia da intensificaccedilatildeo da exploraccedilatildeo de ouro na
regiatildeo do ldquoSerro Friordquo160 ndash hoje municiacutepio de Serro ndash e manteacutem ainda caracteriacutesticas
arquitetocircnicas do periacuteodo colonial A comunidade quilombola ldquoVila Novardquo localiza-se
na aacuterea urbana do distrito e laacute acessam os serviccedilos puacuteblicos disponiacuteveis como escola
posto de sauacutede telefonia aacutegua tratada energia eleacutetrica entre outros As casas das
famiacutelias quilombolas que compotildeem um mesmo grupo familiar ficam todas proacuteximas
Segundo seus relatos estas famiacutelias antes moravam no entorno do distrito sendo
oriundas da localidade de Aacutegua Santa proacuteximo ao Pico do Itambeacute onde atualmente
160 A antiga ldquoVila do Priacutencipe do Serro Friordquo foi sede de comarca uma das quatro primeiras da ldquoCapitania
das Minas Geraisrdquo Disponiacutevel em httpwwwserromggovbrconheC3A7a-o-serrohtml Acesso em 161015
186
se localiza o Parque Estadual do Pico do Itambeacute Mudaram-se para Satildeo Gonccedilalo
ainda na primeira metade do seacuteculo XX161 ldquoVila Novardquo eacute uma das cinco comunidades
quilombolas em Serro junto com as comunidades ldquoAusenterdquo e ldquoBauacuterdquo proacuteximas do
Distrito de Milho Verde e a ldquoComunidade do Oacuterdquo que se localiza neste distrito aleacutem
da comunidade de ldquoRibeiratildeo dos Porcosrdquo162 Eacute possiacutevel falar em um territoacuterio regional
cultural quilombola com forte presenccedila dessas comunidades nos municiacutepios no
entorno de Serro ateacute Diamantina onde uma meacutedia de trinta comunidades jaacute se
autorreconhecem como quilombolas163 A formaccedilatildeo destas comunidades estaacute
vinculada ao processo de exploraccedilatildeo de ouro e diamante com matildeo de obra escrava
sendo que os vastos espaccedilos territoriais desocupados permitiram na eacutepoca a
formaccedilatildeo de vaacuterios quilombos164
FIGURA 25 Em frente agrave casa de D Necila Na esquerda da foto ela e Adir estatildeo conversando e ao
lado dois parentes tocando violatildeo e sanfona
161 Conforme consta no segundo relatoacuterio antropoloacutegico da comunidade ldquoManoel Ciriacordquo Procedimento
Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 728-730 [p 35-37] 162 As cinco comunidades de Serro receberam a Certidatildeo de Auto-Reconhecimento da Fundaccedilatildeo
Cultural Palmares em 2012 Em MG ateacute fevereiro de 2015 duzentos e vinte e seis comunidades contavam com a certidatildeo e mais quarenta e trecircs aguardavam a finalizaccedilatildeo do procedimento A emissatildeo da certidatildeo eacute regulada pela Portaria nordm 98 de 2007 Dados disponiacuteveis em httpwwwpalmaresgovbrpage_id=88ampestado=MG httpwwwpalmaresgovbrwp-contentuploadscrqslista-das-crqs-processos-abertos-ate-23-02-2015pdf e Portaria disponiacutevel em httpwwwpalmaresgovbrwp-contentuploads201011legis21pdf Acesso em 161015 163 Levando em consideraccedilatildeo as comunidades nos seguintes municiacutepios Serro (5) Santo Antocircnio do
Itambeacute (3) Materlacircndia (6) Sabinoacutepolis (7) Senhora do Porto (1) Alvorada de Minas (1) Conceiccedilatildeo do Mato Dentro (3) Gouveia (1) e Diamantina (1) Os dados satildeo da Comissatildeo Proacute Iacutendio de Satildeo Paulo (CPISP) Disponiacutevel em httpwwwcpisporgbrcomunidadeshtmlbrasilmgmg_mapa_zoom2html Acesso em 161015 164 ldquoQuilombos de Minas Gerais no seacuteculo XXI - Norte e nordeste do Estadordquo Disponiacutevel em
httpwwwcedefesorgbrindexphpp=colunistas_detalheampid_pro=2 Acesso em 161015
187
FIGURA 26 Regiatildeo no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute identificado pelo traccedilado vermelho FONTE ndash Google Maps
188
A conexatildeo entre as famiacutelias quilombolas de Manoel Ciriaco e de Vila Nova
para aleacutem das relaccedilotildees de parentesco expressou-se inclusive no fato de Seu Joatildeo
conhecer muitas pessoas em comum com os quilombolas de Vila Nova Quando
morava no Itambeacute ele ia da fazenda de Zinho Gonccedilalves para quem trabalhava ateacute
Satildeo Gonccedilalo pois transportava para laacute cachaccedila que levava amarrada na cangaia do
burro Os moradores quilombolas da comunidade Vila Nova tambeacutem trabalharam para
o fazendeiro Zinho Gonccedilalves que era de uma famiacutelia abastada da regiatildeo com
propriedade em Santo Antocircnio do Itambeacute
Ao chegarmos na vila deixamos nossas coisas na casa de Jovelina que
funciona tambeacutem como ldquohospedagem familiarrdquo uma forma de receber os turistas que
visitam a localidade Nossa recepccedilatildeo pelos membros da comunidade quilombola ldquoVila
Novardquo no entanto natildeo foi como turistas mas como pesquisadores e quilombolas do
Paranaacute que estavam ali com o intuito de conhecer mais sobre a comunidade e
tambeacutem em busca de levantar possiacuteveis laccedilos de parentesco entre eles Jovelina
apesar de ser nossa anfitriatilde conviveu menos conosco por conta de seus afazeres
As tias maternas de Jovelina irmatildes de Margarida ndash D Necila e D Maria
Geralda ndash foram para mim e Geralda as nossas principais anfitriatildes Passamos horas
em conversas visitas a parentes passeios refeiccedilotildees rodas de muacutesica entrevistas e
viacutedeos Seu Joatildeo Adir e Cassius foram recepcionados por Seu Adatildeo e por seu irmatildeo
Jesu e juntos entre os homens fizeram tambeacutem os seus proacuteprios trajetos para
conhecer Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras
Foram muitas trocas de experiecircncias das quais destaco o interesse de
Geralda em aprender com aquelas senhoras bem como com demais moradores
quilombolas da comunidade sobre plantas medicinais oraccedilotildees e benzimentos
Geralda comentou durante uma de nossas conversas ldquoA gente que benze a gente
tem que ter remeacutedio e eu sei que ocecircs saberdquo Ela entatildeo me pediu para que eu
anotasse o nome das ervas medicinais e para o que elas serviam ndash suas formas
terapecircuticas de uso D Necila e D Maria Geralda foram se lembrando das plantas e
eu fui anotando e registrando com o gravador de voz a marcelica (ldquopra dar pra
crianccedilardquo) o marcelicatildeo (dor de barrigadiarreia) o quebra-pedra (rim) a badama (ldquobom
pro cabelordquolavar a cabeccedila) o quitoco (ajuda no periacuteodo de menstruaccedilatildeoldquobom pra
tudordquo tambeacutem eacute usado como tempero)
189
A carqueja o funcho o guineacute baiano o taquarinho do brejo a salsa parreira
o melatildeozinho de Satildeo Caetano entre diversas ervas foram assunto dos nossos
passeios pela comunidade e pelos quintais das casas quilombolas Conhecimentos
portanto que iam sendo compartilhados por meio de um monitoramento e de
engajamento ativos ao longo deste caminhar (INGOLD 2007 p 76) Seu Joatildeo ia
indicando os remeacutedios para Geralda e Adir que estavam sempre atentos buscando
reconhececirc-los e apontaacute-los pelo caminho Geralda comentou que em GuaiacuteraPR tem
remeacutedio que eacute difiacutecil de achar soacute no raizeiro Ela se lembrou que sua matildee havia levado
consigo desde Minas dentre outras sementes de quitoco para plantar e tinha mudas
no siacutetio em GuaiacuteraPR Junto com as pessoas em seus caminhos de migraccedilatildeo
portanto havia tambeacutem um circuito de sementes e plantas para seus quintais e
plantaccedilotildees que cultivariam em outras regiotildees Seu Joatildeo Adir e Geralda quando
retornaram desta viagem tambeacutem fizeram questatildeo de levar na bagagem sementes e
mudas que foram sendo separadas ao longo do percurso Guardadas como
lembranccedilas estabeleceriam novas conexotildees e continuidades entre eles e sua regiatildeo
de origem
Necessaacuterio frisar que Maria Geralda e Necila (ambas com mais de setenta
anos) Margarida (63) Adatildeo (em torno de 60) e Jesu (um pouco mais novo) nossos
principais interlocutores nesta comunidade satildeo filhos do casal Jovelina Calisto dos
Santos e Raimundo Gomes Ambos Jovelina e Raimundo satildeo primos de primeiro
grau filhos dos irmatildeos Ana Pedro da Silva e Clarindo Gomes Gouveia
respectivamente Os irmatildeos Ana e Clarindo por sua vez satildeo filhos do casal ancestral
ao qual se faz referecircncia na comunidade quilombola ldquoVila Novardquo Francisco Lucindo e
ldquoMatilirdquo ndash Matilde Balbina de Arauacutejo
Seu Joatildeo conheceu por exemplo Raimundo Gomes e seu irmatildeo Elias
Gomes conhecido por ldquotio Iliardquo sobre quem contam em ldquoVila Novardquo histoacuterias de que
foi escravo Nesta famiacutelia tambeacutem haacute vaacuterios casos de parentes que como na histoacuteria
de Manoel Ciriaco saiacuteram da regiatildeo em busca de oportunidades de trabalho no estado
de Satildeo Paulo sendo que nunca mais souberam notiacutecia sobre alguns deles Joseacute
Bernardo filho mais velho de Jovelina e Raimundo por exemplo perdeu contato com
a famiacutelia e soacute muitos anos depois os irmatildeos encontraram seus sobrinhos e souberam
que Joseacute jaacute era falecido como nos contou seu Adatildeo
190
Eu e Cassius ficamos muito satisfeitos em ver a alegria de Adir Geralda e Seu
Joatildeo nos dias que passamos em Satildeo Gonccedilalo Esta alegria parecia decorrente da
sensaccedilatildeo de estarem em um ambiente de iguais em contraste com os relatos sobre
as experiecircncias de discriminaccedilatildeo que sofrem no Maracaju dos Gauacutechos onde se
percebem separados dos demais Seu Joatildeo que natildeo pegava no violatildeo segundo ele
desde que saiu de Minas tocou com o pessoal da comunidade nos trecircs dias que laacute
permanecemos Adir estava muito empolgado com aquele lugar no qual ainda se
preservava tanto as tradiccedilotildees dos antepassados como o uso dos fornos de barro e
de pedra presente em vaacuterias das casas pelas quais passamos Mesmo com todo seu
desejo de chegar em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Adir sofreu para se despedir dos
novos amigos Geralda estava muito feliz em conversar com aquelas senhoras que
lhe remetiam ao melhor das mulheres de sua famiacutelia muita sabedoria conhecimentos
histoacuterias de luta e resistecircncia receptividade religiosidade entre outras qualidades
Estas histoacuterias eram como um mosaico de experiecircncias nas quais podiam projetar o
modo de vida de seus antepassados pois viveram em um mesmo territoacuterio cultural
regional e tiveram contato entre si D Necila e D Maria Geralda por exemplo
conheceram Maria Olinda matildee de Seu Joatildeo e Sebastiatildeo Vicente irmatildeo de Manoel
FIGURA 27 Geralda e D Necila na frente do forno de barro no quintal da casa de D Necila
191
323 Enfim em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Na noite de segunda-feira professor Matheus e Tiago foram nos buscar no
distrito de Satildeo Gonccedilalo para nos levarem a Santo Antocircnio do Itambeacute nossa uacuteltima
etapa da viagem Eles jaacute tinham nos informado que haviam combinado com o Instituto
Estadual de Florestas (IEF) que ficariacuteamos hospedados na sede do Parque Estadual
do Pico do Itambeacute Esta sede administrativa eacute uma grande casa colonial que fazia
parte da antiga Fazenda Satildeo Joatildeo adquirida pelo IEF Quando estaacutevamos chegando
na sede do Parque jaacute passava da meia noite Seu Joatildeo reconheceu entatildeo que
aquela era a mesma fazenda de Zinho Gonccedilalves para quem trabalhou muitos anos
Seu Joatildeo jaacute havia nos relatado que ele entregava cachaccedila em Satildeo Gonccedilalo
depois voltava para um lugar chamado Condado e tinha que carregar tambeacutem ateacute o
Itambeacute trabalhando para Zinho Ele levava a cachaccedila em pipa amarrada em cima do
lombo do burro e caminhava longas distacircncias puxando aquele peso sendo que de
trecircs em trecircs dias ele refazia todo o percurso Nos contou que um dia ele percebeu que
estava ldquotrabalhando como escravordquo pois o que recebia natildeo era suficiente nem para a
alimentaccedilatildeo de sua famiacutelia Depois que havia voltado do Itambeacute jantou primeiro e foi
falar para o patratildeo que natildeo ia trabalhar mais para ele Ao relato de Seu Joatildeo Adir
completou ldquoeacute o quilombo invadindo a casa granderdquo
Seu Joatildeo com seu conhecimento sobre a regiatildeo e com sua capacidade de
acionar uma rede social mais ampla de parentesco foi o nosso ldquodescobridor de
caminhordquo durante a primeira viagem a Minas Gerais o que se intensificou enquanto
estivemos em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ldquoDescobridor de caminhordquo eacute uma
expressatildeo cunhada pelo antropoacutelogo Tim Ingold cujas reflexotildees servem de base para
a nossa anaacutelise sobre a importacircncia do movimento para o modo de articulaccedilatildeo da
identidade quilombola do grupo Segundo o autor
Os lugares natildeo tecircm posiccedilatildeo e sim histoacuterias Unidos pelos itineraacuterios de seus habitantes os lugares existem natildeo no espaccedilo mas como noacutes em uma matriz de movimento Chamarei essa matriz de ldquoregiatildeordquo Eacute o conhecimento da regiatildeo e com isso a habilidade de uma pessoa situar-se na sua posiccedilatildeo atual dentro do contexto histoacuterico de jornadas efetuadas anteriormente ndash jornada para lugares de lugares e em volta de lugares ndash que distingue o nativo do forasteiro Assim descobrir-caminho consiste em mover-se de um lugar para outro em uma regiatildeo (INGOLD 2005 p 76)
192
A simples posse de um mapa portanto natildeo poderia substituir a presenccedila de
seu Joatildeo como um descobridor de caminhos com sua bagagem de experiecircncias e
com sua percepccedilatildeo do ambiente produzida ao longo dos anos em seus movimentos
que lhe permitiram realizar um mapeamento da regiatildeo a qual consiste em uma ldquorede
mais ampla de idas e vindasrdquo (INGOLD 2005 p 84) Seu Joatildeo foi assim o elo que
pocircde nos conectar e nos inserir nesta rede de lugares e parentes ao reconstituir um
circuito de relaccedilotildees sociais locais
No primeiro dia em Santo Antocircnio Itambeacute pela manhatilde depois que dormimos
a primeira noite na sede do parque terccedila-feira 10 de marccedilo saiacutemos pela estrada de
terra que liga a sede ao pequeno centro de Santo Antocircnio do Itambeacute No caminho
Adir comentou ldquoEacute como se noacutes voltasse a histoacuteria voltasse a paacutegina da nossa vida do
comeccedilo quando nosso pai andava por tudo Eu quero passar por todas as ruas local
onde ele passavardquo Novamente estava sendo reforccedilada a referecircncia ao caminhar
como forma de dar sentido ao modo de vida de seus antepassados naquele lugar ao
sacrifiacutecio que era andar por todos aqueles morros com as coisas que levavam em
cima da cabeccedila por leacuteguas e leacuteguas pois moravam em um siacutetio longe da vila do
Itambeacute Se os caminhos satildeo parte fundamental na construccedilatildeo da memoacuteria coletiva
quilombola na nossa experiecircncia da primeira viagem continuavam sendo referecircncia
central na percepccedilatildeo de Adir Geralda e Seu Joatildeo
Nesta estrada de chatildeo que percorriacuteamos logo avistamos acima uma primeira
casa Ali Seu Joatildeo se lembrou que antigamente morava um parente Quem nos
recebeu foi Zeacute Simatildeo que estava em frente da casa e tambeacutem nos avistou Seu Joatildeo
lhe perguntou se ele lembrava de Sebastiatildeo Vicente o tio dele irmatildeo de Manoel que
ficou morando nas terras da matildee Izidora Zeacute Simatildeo em resposta disse
Zeacute Simatildeo Entatildeo tem um moccedilo aqui que o senhor deve conhecer o Seu
Daniel
Seu Joatildeo Ele eacute filho de quem
Zeacute Simatildeo Ele eacute desse povo mesmo da mesma parentagem desse povo
mesmo de
Adir Sebastiatildeo Vicente
Zeacute Simatildeo Ele eacute filho de uma tal esqueci o nome da matildee dele filho de um
tal de Joatildeo Domingo
193
Seu Joatildeo Joatildeo Domingo Conheci demais Joatildeo Domingo era tio desse aqui
(vira-se para Adir e continua) esse aqui eacute meu irmatildeo da segunda mulher
Adir Irmatildeo de Maria Bernarda Ele taacute ai
Zeacute Simatildeo Taacute ai vou chamar ele
(Seu Daniel aparece na porta da casa um senhor negro de 80 anos de idade
cabelos brancos peacutes descalccedilos calccedila rasgada)
Seu Joatildeo Eacute o senhor mesmo que eu tocirc querendo ver E o senhor como eacute que
taacute O senhor lembra de mim (Estende a matildeo para cumprimentaacute-lo)
Seu Daniel Natildeo tocirc conhecendo natildeo
Seu Joatildeo Noacutes dois natildeo levava milho laacute pro senhor moer pra noacutes
Seu Daniel Onde Eu carregava milho pra Sebastiatildeo Dama
Seu Joatildeo Eu sou filho de Manoel Ciriaco sobrinho de Sebastiatildeo Paulo
Seu Daniel Sobrinho de Sebastiatildeo Paulo Natildeo tocirc lembrado mais
Seu Joatildeo O senhor natildeo lembra de Joatildeo natildeo
Seu Daniel Joatildeo
Seu Joatildeo Joatildeo que eles falavam Joatildeo de Izidora
Seu Daniel Joatildeo de Izidora Lembro Eacute o cecirc eacute o cecirc queacute eacute Joatildeo
Seu Joatildeo Eacute eu sou neto dela
Seu Daniel Oacute quanto tempo
Seu Joatildeo Taacute com trinta e quatro anos que eu saiacute daqui
Seu Daniel Ele eacute filho de Maneacute Paulo
Geralda Aiacute oacute o nome do meu pai aqui eacute Maneacute Paulo
Zeacute Simatildeo Vocecirc que eacute Joatildeo Joatildeo de Izidora
Seu Joatildeo soacute pocircde ser reconhecido na medida em que foi inserido na rede de
parentesco local Com a referecircncia ao seu nome de registro Joatildeo Loriano dos Santos
ningueacutem poderia identificaacute-lo Foi o que ocorreu quando durante a pesquisa para o
segundo relatoacuterio antropoloacutegico Cassius esteve em frente agrave casa das cunhadas de
seu Joatildeo D Regina e D Zulmira perguntando por parentes de Joatildeo Loriano dos
Santos e o casal que o recebeu (filha de Zulmira e seu marido) respondeu que natildeo
conhecia esta pessoa Manoel Ciriaco por sua vez era conhecido como ldquoManeacute Paulordquo
194
ou ldquoManeacute de Paulardquo ou ainda ldquoManeacute de Izidorardquo pois era filho de Joaquim de Paula e
Izidora Nesta forma de nominaccedilatildeo usa-se o nome da pessoa acompanhado de
expressatildeo que aponta a identificaccedilatildeo a partir de um antepassado ou cocircnjuge
Seu Daniel como descobrimos no comeccedilo da conversa eacute primo de primeiro
grau de Ana Rodrigues matildee de Adir e Geralda O pai dele Joatildeo Domingos era irmatildeo
de Maria Bernarda matildee de Ana Rodrigues Ficamos por volta de trecircs horas na casa
em que moram Seu Daniel sua filha seu genro e seu neto com meses de vida Seu
Daniel nos recebeu muito bem e estava muito feliz em rever Seu Joatildeo um velho
amigo e conhecer Adir e Geralda seus primos de segundo grau Conversamos
longamente com ele enquanto eu e Cassius adicionaacutevamos as informaccedilotildees na aacutervore
genealoacutegica da famiacutelia especialmente sobre dados a respeito da famiacutelia de sua tia
paterna Maria Bernarda sobre a qual ele guardava muitas memoacuterias
FIGURA 28 Adir gravando a conversa com Seu Daniel
3231 Encontro com D Zulmira D Regina e D Ana Raimunda
Quando saiacutemos da casa de seu Daniel fomos procurar junto com Zeacute Simatildeo
a casa de D Regina e D Zulmira cunhadas de Seu Joatildeo e irmatildes de D Maria das
Dores que havia enviado por noacutes uma mensagem em viacutedeo para ser mostrada a seus
irmatildeos ldquoos que tive vivordquo No caminho logo encontramos a filha de D Regina
Aparecida que seu Joatildeo reconheceu ao avistaacute-la na rua quando ela e outras
195
mulheres voltavam para casa da roccedila Aparecida muito feliz de reencontrar o tio nos
levou entatildeo direto para a casa de D Zulmira pois sua matildee D Regina estava longe
trabalhando na roccedila Primeiro Aparecida foi na frente e contou para a tia D Zulmira
que Seu Joatildeo o cunhado dela estava chegando e que a irmatilde D Maria das Dores natildeo
tinha vindo mas que deram notiacutecia que ela estava bem D Zulmira jaacute se emocionou
muito com a novidade e agradeceu a Deus a Jesus Cristo louvando a possibilidade
deste reencontro Abraccedilou Seu Joatildeo e depois ele Adir e Geralda foram logo lhe
dando notiacutecias dos familiares que tinham saiacutedo dali para o Paranaacute como Manoel e
Ana que jaacute tinham falecido Olegaacuterio e Jovelina que estatildeo vivos Ela tambeacutem foi
atualizando seu Joatildeo e contando sobre os parentes que continuaram morando na
regiatildeo
Mostramos entatildeo para D Zulmira o viacutedeo com a mensagem enviada por sua
irmatilde D Maria das Dores a qual mencionamos acima D Zulmira falou que natildeo
achava que veria eles mais
D Zulmira O meu Santiacutessimo Sacramento porquecirc que some assim Ai meu nosso Senhor Que benccedilatildeo de Jesus Deus Deus achou
Cassius Eacute sua irmatilde
D Zulmira Eacute minha irmatilde meu fio Ai meu Deus Eacute das mais nova Ela deve ter uns sessenta anos Ela taacute muito bonita Eacute ela mesmo
Adir Eacute ela
D Zulmira Como eacute que eu tocirc gente Que Deus Ocirc minha Nossa Senhora cecirc trouxe o meu povo Ocirc meu Pai Eterno o Senhor trouxe o meu povo pra mim conhecer ainda (se abaixa com as matildeos no rosto e comeccedila a chorar) Graccedilas a Deus Faz vinte anos ou vinte e cinco
Adir Eacute muita emoccedilatildeo
D Zulmira Eu perdi tantos irmatildeo
Adir Mas a senhora ainda vai ver ela Se Deus quiser a senhora vai ver
O nosso encontro com D Zulmira (73 anos) e depois com D Regina (78
anos) que logo chegou da roccedila foi uma experiecircncia uacutenica para todos os presentes
Segundo elas receber notiacutecias da irmatilde e rever o cunhado era a concretizaccedilatildeo de uma
intercessatildeo divina pela qual sempre rezavam buscando esperanccedilas para acreditar
que um dia este reencontro poderia acontecer Em seguida pedimos para que elas
196
mandassem uma mensagem que levariacuteamos de volta para D Maria das Dores Dona
Regina que estava mais calma comeccedilou mandando o seu recado
Hoje eu tocirc chegando da roccedila e tive a maior surpresa com a maior satisfaccedilatildeo cumadi Maria de ver o meu cumpadi Joatildeo mais a famiacutelia dele Eu tive muito prazer que eu vivia sempre na cabeccedila achando que nem vivo ocecircs era porque ocecircs tambeacutem natildeo dava nem notiacutecia pra mim E eu perdi o contato com ocecircs porque tomaram o endereccedilo e nunca mais me deram Entatildeo eu fiquei sem jeito de ligar pra vocecircs Agora ocecircs de laacute pra caacute tinha jeito que eacute Santo Antocircnio do Itambeacute Entatildeo cumadi Maria hoje eu tocirc no maior prazer na maior riqueza sou veia e pra mim fiquei nova de prazer de saber notiacutecia da minha irmatilde com a famiacutelia dela e meu cumpadi Joatildeo Cumadi Maria breve noacutes vamos encontra se Deus quiser Agora eu natildeo vou natildeo mas eu vou
Dona Zulmira depois tambeacutem deixou sua mensagem
Cumadi Maria eu minha fia graccedilas a Deus tive tanto prazer que eu vi a sua famiacutelia que chegou de laacute a moccedila e o rapaz o cumpadi Joatildeo o irmatildeo dele a irmatilde dele eu fiquei tatildeo emocionada de vecirc essa famiacutelia prazerosa que Jesus mandou pra noacutes nesse horaacuterio certo que chegou devia de ser meio dia Eu fiquei tatildeo emocionada que eu vou falar procecirc que eu natildeo tive ideia de dar pra eles nada a ideia que eu tive foi de chorar Fiquei tatildeo feliz tatildeo satisfeita tatildeo alegre porque sempre eu pensava assim ldquoEacute de vera a minha irmatilde foi embora essa eu natildeo vejo ela maisrdquo Mas Deus abenccediloou que trouxe eles em paz com vida e sauacutede e assim eacute de trazer a senhora tambeacutem E que breve se Deus quiser noacutes vamos encontrar E cecirc vecirc que depois que a senhora foi noacutes perdeu nossa matildee noacutes perdeu nosso pai noacutes perdeu meu irmatildeo Erosino a Benedita e a Margarida entatildeo cecirc sabe Eu fiquei assim pro rumo natildeo sube nem cumprimentar eles como eles merecia de tanta emoccedilatildeo que eu fiquei Mas eu fiava em Deus que eu esperava sempre que Deus ia abenccediloar que um dia que ocecircs tivesse a par ocecircs vinha caacute e noacutes encontrava Eu fiquei tatildeo feliz que soacute cecirc vendo Natildeo soube nem tratar eles como eles merecia E a companhia deles a moccedila mais o rapaz que tava com eles de fora que tambeacutem eacute outros irmatildeo tudo que eu fiquei toda feliz e tudo eu considerei por minha famiacutelia E Deus que te abenccediloa e algum dia noacutes encontra
A experiecircncia de ter um parente perdido era para elas muito angustiante
pois se a pessoa morre eacute porque ldquoDeus levardquo mas no caso de D Maria das Dores a
anguacutestia estava nesta duacutevida que se estendia por anos da ausecircncia de qualquer
notiacutecia Fazia dezenove anos que D Maria das Dores tinha ido pela uacuteltima vez para
Santo Antocircnio do Itambeacute A responsabilidade de fazer o movimento para o reencontro
como pode se depreender do comentaacuterio de D Regina ndash ldquoAgora ocecircs de laacute pra caacute
tinha jeito que eacute Santo Antocircnio do Itambeacuterdquo ndash afinal de contas eacute atribuiacuteda agravequeles que
migraram pois sabiam para onde voltar para encontrar os parentes diferente dos que
permaneceram na regiatildeo para quem seria muito mais difiacutecil tal busca
197
FIGURA 29 D Zulmira e D Regina mandam mensagens para a irmatilde D Maria das Dores
Com o pouco tempo que passamos com D Regina e D Zulmira criamos com
elas uma conexatildeo muito forte Eu e Cassius entatildeo nos comprometemos a ajudar a
levar a D Maria das Dores para reencontraacute-las assim que fosse possiacutevel Com D
Zulmira e D Regina tambeacutem conversamos sobre a aacutervore genealoacutegica com enfoque
nos antepassados e compreendemos entatildeo o viacutenculo de parentesco da famiacutelia de
Manoel Ciriaco com a comunidade quilombola ldquoVila Novardquo165
O viacutenculo de parentesco se daacute por meio de D Maria das Dores que eacute filha de
Luiza Eleoteacuteria da Silva e neta de Virgulino Martins Gomes Virgulino por sua vez era
irmatildeo de Clarindo Gomes e filho de Matili e Francisco Lucindo o casal ancestral
estruturante da comunidade quilombola ldquoVila Novardquo Clarindo Gomes era pai de
Raimundo Gomes e avocirc de seu Adatildeo D Necila D Maria Geralda e Jesu nossos
anfitriotildees em Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras Portanto Raimundo Gomes filho de
Clarindo eacute primo de primeiro grau de Luzia Eleoteacuteria filha de Virgulino e matildee de D
Maria das Dores
165Aleacutem da importacircncia das relaccedilotildees de parentesco destacadas ateacute aqui eacute necessaacuterio aprofundar a
pesquisa a respeito das relaccedilotildees de compadrio que parecem centrais tambeacutem neste caso para reforccedilar os viacutenculos de parentesco
198
Por meio de dois casamentos a famiacutelia de Luzia Eleoteacuteria da Silva se conecta
com a famiacutelia de Manoel Trata-se do casamento entre D Maria das Dores (filha de
Luzia) e Seu Joatildeo (filho de Manoel) e entre Zeacute (filho de Sebastiatildeo Vicente irmatildeo de
Manoel Ciriaco) e Benedita (irmatilde de D Maria das Dores) D Maria das Dores nos
falou tambeacutem da possibilidade de uma conexatildeo entre as famiacutelias na geraccedilatildeo
ascendente mais distante agrave qual tivemos referecircncias Ela achava que ldquoVovoacute Matilirdquo
sua bisavoacute era irmatilde de Joseacute Domingos pai de Maria Bernarda e avocirc de Ana
Rodrigues (esposa de Manoel) bisavocirc portanto de Adir e Geralda conforme Excerto
Genealoacutegico apresentado abaixo Em alaranjado destacam-se os trecircs membros da
famiacutelia D Jovelina D Maria das Dores e Seu Joatildeo os quais efetivamente retornaram
a Minas Gerais por meio destas duas viagens pois laacute jaacute haviam morado Em amarelo
destacam-se os parentes com quem eles se encontraram durante as duas viagens
199
FIGURA 30 Excerto Genealoacutegico 4
200
Segundo D Zulmira a famiacutelia de ldquovovoacute Matilirdquondash originaacuteria de Aacutegua Santa ndash era
muito pobre Este lugar atualmente estaacute abrangido pelo Parque Estadual do Pico do
Itambeacute uma unidade de conservaccedilatildeo de proteccedilatildeo integral em decorrecircncia da qual os
uacuteltimos moradores foram retirados da aacuterea e reassentados Esta localidade de acordo
com D Zulmira era ldquoterra de ningueacutemrdquo uma ldquoterra de heranccedilardquo onde passaram
muitas dificuldades e por isso de laacute saiacuteram Com tais explicaccedilotildees pudemos comeccedilar
a compreender a conexatildeo entre a famiacutelia de D Maria das Dores e a famiacutelia da
comunidade quilombola ldquoVila Novardquo que tambeacutem originaacuteria de Aacutegua Santa bem como
conhecer um pouco de sua histoacuteria de deslocamentos dentro de uma mesma
regiatildeo166
Depois que saiacutemos da casa de D Zulmira e D Regina naquele dia 10 de
marccedilo voltamos para a casa de Zeacute Simatildeo pois ele tinha dito que sabia o paradeiro
de D Ana Raimunda irmatilde de Manoel Ciriaco que ajudou a criar Seu Joatildeo junto com
a avoacute Izidora Contratamos uma van escolar para nos levar de Itambeacute ao Serro na
casa que Zeacute Simatildeo indicava como sendo de D Ana Raimunda Natildeo tiacutenhamos certeza
se era a mesma pessoa de quem estaacutevamos falando pois alguns como a proacutepria D
Zulmira achavam que ela jaacute tivesse morrido Mas Zeacute Simatildeo genro de Seu Daniel
que nos contou que tambeacutem foi criado por Ana Raimunda afirmou que tinha ido visitaacute-
la recentemente Quando chegamos em sua casa logo na primeira pergunta que Adir
fez jaacute tivemos a confirmaccedilatildeo ldquoAna Raimunda irmatilde de Sebastiatildeo de Paulardquo Ela
respondeu ldquoEacute eu mesmordquo
Ana Raimunda da Silva nasceu em 19 de fevereiro de 1925 e tem 87 anos
Viuacuteva seu companheiro Joseacute Teoacutefilo dos Reis faleceu em 31 de agosto de 2014
quando ambos estavam hospitalizados Depois da morte de Teoacutefilo e de sua
recuperaccedilatildeo D Ana continuou morando na mesma casa e ldquopor natildeo ter parentes que
moram proacuteximordquo passou a receber cuidados da vizinhanccedila contando com uma
cuidadora chamada ldquoFatinhardquo Passou a receber tambeacutem o auxiacutelio de ldquopensatildeo por
morterdquo ndash com o intermeacutedio de Josiane outra vizinha que lhe auxiliava com as questotildees
financeiras e prestava esclarecimentos ao Centro de Referecircncia Especializado de
Assistecircncia Social (CREAS) ndash segundo consta do relatoacuterio da assistente social que
Josiane e Fatinha fizeram questatildeo de nos mostrar
166 Questatildeo que como jaacute mencionamos foi apontada pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico a partir da pesquisa realizada por Cassius em 2012 a qual merece desdobramento em pesquisa posterior
201
Seu Joatildeo se apresentou ldquoE a senhora lembra de mim Joatildeo de Izidora que a
senhora criourdquo E jaacute foi logo falando que iria levaacute-la embora com ele para Presidente
PrudenteSP Geralda tambeacutem se apresentou como filha de ldquoManeacute de Paulardquo e
perguntou sobre quais filhos de Maneacute que D Ana ainda tinha lembranccedila D Ana se
lembrou primeiro da sobrinha Jovelina e entatildeo Geralda lhe deu o recado de sua irmatilde
ldquoEla disse que vai vir aqui pra buscar a senhorardquo D Jovelina e D Ana Raimunda
puderam conversar por telefone e ficaram muito felizes depois de cinquenta e nove
anos sem se falarem Jovelina estava desde que saiacutemos de Presidente PrudenteSP
esperando notiacutecias se tiacutenhamos conseguido encontrar sua tia que junto com a avoacute
Izidora cuidou dela de Joatildeo e de Olegaacuterio quando eram pequenos e ficaram sem a
matildee Maria Olinda que havia falecido
Noacutes ficamos horas conversando com ela sobre os parentes e ela nos contou
muitas histoacuterias D Ana Raimunda eacute irmatilde de Manoel Ciriaco apenas por parte de pai
ndash Joaquim Guilherme de Paula ndash assim como Sebastiatildeo Vicente de Paula filhos de
matildees diferentes informaccedilatildeo que Adir e Geralda desconheciam O uacutenico dos irmatildeos
que era filho de Izidora era Manoel Ciriaco Ana Raimunda contou que ela eacute filha de
Joaquim de Paula Guilherme com a sobrinha de Izidora Luiza Eufraacutesio da Silva
Quando Ana nasceu sua matildee Luiza tinha a intenccedilatildeo de em seguida matar o bebecirc
pois era fruto de uma gravidez indesejada D Ana contou entatildeo que Izidora mesmo
com a traiccedilatildeo do marido interveio para lhe salvar enrolando-a na saia Depois disso
sua matildee bioloacutegica Luiza foi embora e ela nunca mais a viu Izidora foi quem a criou
e em retribuiccedilatildeo D Ana cuidou dela ateacute sua morte
Uma hora no meio da conversa D Ana comentou com Fatinha ldquoVocecirc viu a
borboleta A borboleta aqui oacute todo mundordquo E D Ana entatildeo nos explicou sobre o
que estava falando
ldquoChegou uma borboleta aqui de tarde ela chegou ai na porta fez assim oacute (fez o gesto da borboleta voando com a matildeo) e sumiu Ai eu falei assim ldquoUai Fatinha a borboleta taacute chegando aqui na porta quarque coisa eacute alguma notiacutecia ela vai dar E laacute em casa no quarto tem uma direto laacuterdquo (risos)
A borboleta veio anunciando para D Ana a chegada dos sobrinhos Ela havia
recebido haacute algum tempo a notiacutecia por outros parentes da parte de seu irmatildeo
Sebastiatildeo Vicente de Paula que moram na regiatildeo de que seus sobrinhos Olegaacuterio e
Joatildeo jaacute haviam falecido Segundo ela a notiacutecia que eles lhe haviam dado visava
202
confirmar o domiacutenio que o filho de Sebastiatildeo Vicente Geraldo tem hoje sobre a terra
que foi de Izidora E D Ana nos contou que desde que recebeu a notiacutecia rezava
para alma de Joatildeo e Olegaacuterio todos os dias
FIGURA 31 Adir e Geralda com a tia Ana Raimunda
Ela natildeo podia imaginar que naquele dia Seu Joatildeo iria visitaacute-la trazendo
consigo mais dois sobrinhos para ela conhecer Geralda e Adir que nasceram no
Paranaacute E D Ana agradeceu ldquoGraccedilas a Deus Eacute Deus que trouxe ocecircs Todo mundordquo
D Ana explicou que natildeo poderia ir agora com eles embora de Serro pois ela ainda
precisava ficar por mais um tempo ali para poder resolver algumas questotildees
pendentes sobre a heranccedila de Teoacutefilo seu marido que faleceu Segundo nos contou
com tristeza os parentes que moram na regiatildeo natildeo visitam mais ela quase natildeo tecircm
contato Ressentiu-se de ficar muito sozinha pois estaacute debilitada e precisando de
cuidados Com a diabetes ela ficou com uma ferida que estava aberta no peacute e que a
impedia de caminhar sem apoio
Noacutes entatildeo combinamos que iriacuteamos manter contato para que ela pudesse ir
passar um tempo com eles no estado de Satildeo Paulo e no Paranaacute Voltando para a
sede do parque naquele 10 de marccedilo de 2015 conversaacutevamos sobre como aquele
tinha sido um dia que entrou para a histoacuteria da famiacutelia No mesmo dia haviacuteamos
encontrado as pessoas que eles mais almejavam as irmatildes de D Maria das Dores D
Zulmira e D Regina e a irmatilde de Manoel Ciriaco Ana Raimunda
203
3232 Padre Joviano o pai de criaccedilatildeo de Maria Olinda
No outro dia o quinto e uacuteltimo que ficamos na regiatildeo passamos na igreja
matriz de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Geralda reforccedilou vaacuterias vezes como estava
realizada por chegar naquele lugar sagrado pois nunca tinha imaginado que um dia
poderia ir na igreja que foi frequentada por seu pai e sua matildee onde eles tambeacutem se
casaram
FIGURA 32 Geralda faz uma reverecircncia em frente agrave Igreja Matriz de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
A ldquoIgreja Matriz de Santo Antocircniordquo eacute a uacutenica igreja catoacutelica do municiacutepio
Construiacuteda no seacuteculo XVIII se tornou paroacutequia no ano de 1868 Apesar do desgaste
da construccedilatildeo com o passar do tempo a imagem de Santo Antocircnio estaacute preservada
e fica em destaque do lado do altar As histoacuterias sobre a imagem do santo remontam
agrave eacutepoca de construccedilatildeo da igreja matriz Conta-se como a imagem eacute viva167 pois havia
167 ldquoOs santos constituem o exemplo mais claacutessico de objetos ndash objetos de barro ou madeira objetos
narrativos objetos sem mais ndash e de ldquofeitichesrdquo que se manifestam como atores que em cada um de seus avatares natildeo se comportam como intermediaacuterios ou como signos transparentes mas como
204
sido construiacuteda uma capela para abrigaacute-la em outro lugar mas a imagem aparecia no
local onde fica atualmente a igreja como um sinal do santo de que era ali o lugar onde
a igreja deveria ser construiacuteda
Esta era a igreja em que Padre Joviano atuava Como comentamos acima
Padre Joviano foi quem criou Maria Olinda matildee de Joatildeo Jovelina e Olegaacuterio Sobre
ele contaram como era muito caridoso e amoroso com todos e por isso eacute ainda hoje
muito estimado pelo povo do lugar que o considera santo168 Ele estaacute enterrado dentro
da igreja onde as pessoas acendem velas e fazem pedidos por sua intercessatildeo
Joviano Alves Diamantino nasceu em 08 de julho de 1874 e faleceu em 10 de maio
de 1965 com 91 anos Como D Maria Geralda e D Necila haviam nos contado ele
era proveniente do distrito de Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras tendo ido depois morar
em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Acima de seu tuacutemulo estaacute afixado em uma placa os seguintes dizeres ldquoComo
Pedro foi pedra fundamental dos ensinamentos de Cristo Padre Joviano foi o pilar da
feacute do povo desta terrardquo Natildeo por acaso a data de sua morte eacute celebrada no calendaacuterio
cultural do municiacutepio conforme consta na paacutegina virtual da prefeitura169 Em duas
casas que visitamos de pessoas que foram suas contemporacircneas no municiacutepio de
Santo Antocircnio do Itambeacute ndash de Seu Daniel e de D Regina ndash vimos a imagem do padre
em um porta-retrato afixado na parede
mediadores razoavelmente opacos () Os meus livros estatildeo cheios de exemplos de como as imagens sagradas (essas imagens tatildeo desprezadas por todos os iconoclastas) satildeo muito mais ativas do que parece a sua materialidade natildeo passa despercebida aos fieacuteis que a partir dela elaboram novos relatos a respeitordquo (CALAVIA SAEZ 2009 p 215) 168 Segundo o antropoacutelogo Calavia Saez os santos satildeo achados e domesticados por meio de um
processo de canonizaccedilatildeo da Igreja Catoacutelica mas natildeo satildeo instituiacutedos pela instituiccedilatildeo pois tem origem na margem como no caso dos cultos a mortos praticamente anocircnimos (CALAVIA SAEZ p 200) 169 Disponiacutevel em httpsantoantoniodoitambemggovbrcidadecalendario-de-eventos Acesso em
121015
205
FIGURA 33 Retrato de Padre Joviano na casa de Seu Daniel
Padre Joviano eacute portanto personagem destacado da histoacuteria local como
tambeacutem se evidencia no hino municipal
Estribilho ndash I Para alto para frente Com civismo amor e feacute Povo forte nobre gente Santo Antocircnio do Itambeacute II Das bandeiras heroacuteicas e rudes Tu herdastes os anseios e a feacute Guardiatildeo de lendaacuterias virtudes Junto a ti se levanta o Itambeacute III Foste em Minas o berccedilo do prelo Esta gloacuteria tu tens sem rival Com Geraldo Pacheco de Melo170 Desfraudando o pendatildeo liberal IV Joviano chamou-se o teu Santo Outro igual nunca mais tu teraacutes Seja sempre teu nome o teu canto Numa prece de amor e de paz (grifos nossos)171
Por ter criado Maria Olinda o padre ocupa a posiccedilatildeo de avocirc de Olegaacuterio
Jovelina e Joatildeo Seu Joatildeo nos contou que conviveu muito na casa do padre que
passava por laacute e o padre o chamava de ldquominha Maria Olindardquo ao se lembrar da filha
de criaccedilatildeo que jaacute era falecida Nos contou tambeacutem como o padre sempre lhe dava
algo para comer em um gesto de cuidado e consideraccedilatildeo Hoje a casa do padre eacute
uma moradia particular Na frente haacute uma placa talhada em madeira com a
identificaccedilatildeo ldquoSolar do Padrerdquo
170 Outro importante personagem da histoacuteria local foi ourives e jornalista tendo fundado o primeiro jornal
da regiatildeo ldquoLiberal do Serrordquo em 1828 Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiSanto_AntC3B4nio_do_ItambC3A9 Acesso em 1210015 171 Hino do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute Letra composta por Padre Celso de Carvalho e
melodia por Mozart Bicalho Disponiacutevel em httpsantoantoniodoitambemggovbrcidade Acesso em 121015
206
Na imagem abaixo esta relaccedilatildeo de parentesco fica simbolizada na disposiccedilatildeo
assumida por Geralda Seu Joatildeo e Adir ndash que estaacute com as matildeos no ombro da estaacutetua
de Padre Joviano ndash que parece apontar para a percepccedilatildeo de uma continuidade entre
passadopresente e mortosvivos como em outros momentos jaacute destaquei neste
trabalho
FIGURA 34 Adir Seu Joatildeo e Geralda junto agrave estaacutetua de Padre Joviano
3233 A famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente
Seu Joatildeo Adir e Geralda natildeo poderiam segundo eles ir embora sem antes
passarem na terra que foi de Izidora onde Manoel Ciriaco viveu ateacute sua saiacuteda da
regiatildeo Seu Joatildeo ateacute 1981 quando foi morar no siacutetio de seu pai em GuaiacuteraPR
tambeacutem viveu na terra que pertencia a sua avoacute Izidora Nela atualmente moram
parentes que pelas informaccedilotildees que tivemos teriam recebido autorizaccedilatildeo de Geraldo
ndash filho de Sebastiatildeo Vicente de Paula que era irmatildeo de Manoel e D Ana Raimunda ndash
que com a morte do pai ldquotomou conta de tudordquo nos termos D Ana Ela tambeacutem nos
207
contou que quando Manoel foi embora Sebastiatildeo Vicente ocupou toda a terra e natildeo
deixou nenhum espaccedilo para ela que passou a viver na cidade do Serro172
Seu Joatildeo jaacute muito contrariado com tudo que havia sido falado sobre as
ldquoarbitrariedadesrdquo173 do falecido Sebastiatildeo Vicente e agora de Geraldo preparou-se
para conversar com seu primo sobre como tinha ficado a questatildeo do documento da
terra Quando chegamos laacute o clima era hostil Geraldo foi muito incisivo em afirmar
que os filhos de Manoel Ciriaco natildeo teriam mais direito nenhum sobre aquela terra
pois toda a aacuterea tinha sido registrada como propriedade de seu pai Sebastiatildeo Vicente
jaacute que Manoel tinha ido embora dali e nunca mais voltado Como apontamos no
primeiro capiacutetulo a migraccedilatildeo consiste em uma estrateacutegia importante precisamente
para excluir da heranccedila membros da famiacutelia visando evitar o fracionamento da terra
a um ponto que inviabilize a reproduccedilatildeo camponesa (WOORTMANN 2009)
Por outro lado esta postura de Geraldo desconsiderava que Seu Joatildeo havia
morado nesta aacuterea ateacute 1981 e que os irmatildeos filhos do segundo casamento de Manoel
ndash Joaquim e Antocircnio ndash haviam ido ateacute laacute na deacutecada de 1980 quando Sebastiatildeo
Vicente ainda era vivo para vender a parcela hereditaacuteria que cabia a Manoel Ciriaco
Na eacutepoca conforme me contou Joaquim tinham sido recebidos tambeacutem com
hostilidade e a resposta do seu tio foi que ldquonatildeo negociava com molequerdquo e que
Olegaacuterio o filho mais velho de Manoel era quem teria que ir pessoalmente laacute para
que fosse feito qualquer acordo Esta fala de Sebastiatildeo Vicente mostra que soacute o
primogecircnito dentre os filhos de Manoel ndash que ademais nasceu e morou na aacuterea ndash
poderia reivindicar a parte do pai ao passo que Antocircnio ndash que saiu de MG com quatro
anos de idade ndash e Joaquim ndash que nasceu na regiatildeo de Presidente PrudenteSP no
municiacutepio de CaiabuSP ndash ambos filhos do segundo casamento natildeo seriam
172 Pelo que se pocircde observar ateacute o momento haacute uma possibilidade de que as mulheres segundo o
arranjo costumeiro natildeo fossem herdeiras pois no sistema tradicional camponecircs geralmente elas natildeo satildeo incluiacutedas na heranccedila sendo portanto recompensadas por meio do dote pago agrave famiacutelia do marido quando se casam Posteriormente a mulher eacute incluiacuteda na heranccedila do marido (SEYFERTH 1985) Para poder fazer esta afirmaccedilatildeo de modo mais consistente no entanto seraacute necessaacuterio um aprofundamento da pesquisa na regiatildeo Soacute desta forma seraacute possiacutevel compreender as regras locais sobre o direito de heranccedila 173 Os dados levantados indicam que este parece ser um caso de ldquoheranccedila indivisardquo ou ldquoheranccedila
impartiacutevelrdquo camponesa conforme o direito costumeiro tendo em vista que o modelo de heranccedila igualitaacuteria por todos os herdeiros previsto no direito civil natildeo corresponde agraves estrateacutegias acionadas no mundo rural brasileiro Neste modelo de ldquoheranccedila indivisardquo apenas um herdeiro fica com toda a propriedade familiar (SEYFERTH 1985) No caso em questatildeo a heranccedila fica para Sebastiatildeo Vicente ao passo que Manoel migra para o Paranaacute e Ana Raimunda natildeo herda nenhuma parcela
208
reconhecidos pelo tio neste sentido conforme apontariam as regras locais de direito
costumeiro
Deve-se levar em conta ainda que os acordos locais sobre os acertos de
heranccedila podem abranger estrateacutegias variadas conforme as condiccedilotildees de escassez de
terras bem como outros fatores importantes avaliados em um dado momento Aleacutem
desta possibilidade de variaccedilatildeo das proacuteprias regras conforme a situaccedilatildeo eacute possiacutevel
perceber neste caso especiacutefico da famiacutelia de Manoel que haacute uma variaccedilatildeo no modo
de interpretaccedilatildeo das regras a partir da perspectiva especiacutefica dos sujeitos que estatildeo
posicionados de modos diferentes na estrutura familiar Eacute possiacutevel tambeacutem que haja
uma combinaccedilatildeo da estrateacutegia interpretativa local com os argumentos da legislaccedilatildeo
civil nacional
No caso de Seu Joatildeo Adir e Geralda pude observar nas conversas sobre o
tema da heranccedila a presenccedila do entendimento de que os filhos de Manoel que
moraram na terra de sua avoacute Izidora teriam o direito de retorno e de reivindicaccedilatildeo de
uma parte da aacuterea mesmo depois de anos que saiacuteram da regiatildeo Galizoni em estudo
sobre a regiatildeo no Alto Vale do Jequitinhonha muito proacuteximo da aacuterea aqui em questatildeo
apontou como a entrada do herdeiro potencial com seu retorno apoacutes a migraccedilatildeo eacute
uma situaccedilatildeo conflituosa Isso porque se cria sobre a terra ldquocamadas de direitos que
convivem uns com os outros e se sobrepotildeemrdquo (GALIZONI 2002 571)
Idealmente todos os irmatildeos tecircm direitos iguais assim como todos os netos e bisnetos Acontece que no jogo de dados que se estabelece entre filhos (as) no interior da famiacutelia e as conjunturas externas dadas por migraccedilatildeo trabalho casamento processos de acumulaccedilatildeo e ambiente cria-se uma diferenciaccedilatildeo interna na famiacutelia que se refletiraacute nas diversificaccedilotildees de trajetoacuterias e destinos e seraacute fundamental para a construccedilatildeo do herdeiro e do migrante Essas diferenciaccedilotildees podem ocorrer tanto na mesma geraccedilatildeo ndash entre irmatildeos por exemplo ndash quanto entre geraccedilotildees no caso tios e sobrinhos A partilha da terra e a sua passagem entre geraccedilotildees ocorrem atraveacutes de um processo que se desenrola no interior da famiacutelia articulado com processos exteriores (GALIZONI 2002 571)
No jogo entre herdeiros a terra principal meio de produccedilatildeo e patrimocircnio dos
agricultores eacute valorizada como um recurso valioso de modo que as disputas entre
parentes pela heranccedila camponesa decorrem de sua escassez A interpretaccedilatildeo por
parte de Seu Joatildeo Adir e Geralda acima mencionada de que os filhos de Manoel
Ciriaco que viveram neste siacutetio em Santo Antocircnio do Itambeacute seriam ldquoherdeiros
potenciaisrdquo ndash entendendo a heranccedila como um viacutenculo simboacutelico que natildeo se dilui com
209
o tempo e que garante assim a possibilidade de retorno ou reivindicaccedilatildeo da parcela
hereditaacuteria ndash conjugou-se com a possibilidade discutida naquele momento de que
futuramente decidissem acionar judicialmente o direito agrave reparticcedilatildeo igualitaacuteria entre os
herdeiros previsto na legislaccedilatildeo
Os acircnimos entre Seu Joatildeo e Geraldo poderiam ter se exaltado mas a minha
presenccedila e a do professor Matheus que foi quem nos levou fizeram com que como
Seu Joatildeo comentou ele tivesse se contido de modo que preferiu se retirar a gerar
uma confusatildeo Mesmo sem conseguirem ver uma possibilidade de negociaccedilatildeo sobre
o direito que entendem possuir sobre aquela terra principalmente em referecircncia aos
trecircs irmatildeos mais velhos que laacute viveram para Geralda e Adir soacute o fato de terem ido
conhecer o siacutetio onde seu pai e sua avoacute Izidora moraram jaacute foi muito significativo
Se por um lado a postura de Seu Joatildeo reforccedila um conjunto de relaccedilotildees
comuns ao campesinato como questotildees de honra que estatildeo baseadas na valorizaccedilatildeo
do trabalho e do sofrimento que seu pai passou ali ndash o que sustenta a sua leitura da
atitude da famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente como um ato de expropriaccedilatildeo ndash por outro
lado a postura de Geraldo pode estar embasada em regras de direito costumeiro que
sustentam estrateacutegias sucessorais locais jaacute que como analisamos acima o modo de
lidar com a heranccedila na aacuterea rural natildeo eacute uma praacutetica fixa que obedeccedila a regras gerais
do direito civil (SEYFERTH 1985 p 09)
Ao mesmo tempo reivindicar essa aacuterea seria retirar aqueles que atualmente
constroem suas vidas a partir dela jaacute que se conseguissem retomaacute-la provavelmente
natildeo haveria intenccedilatildeo de as famiacutelias de Jovelina Joatildeo e Olegaacuterio passarem a viver ali
O que mais se apontou foi a intenccedilatildeo de que a parcela hereditaacuteria fosse vendida
visando garantir melhores condiccedilotildees financeiras na localidade onde vivem hoje
Presidente PrudenteSP Com a impossibilidade de negociaccedilatildeo com Geraldo no
entanto esta questatildeo ficou suspensa para refletirem posteriormente se iriam mesmo
tomar qualquer atitude para reaver a aacuterea
Por fim no que toca aos descendentes de Sebastiatildeo Vicente tambeacutem
visitamos a casa da ex-mulher de seu filho Aniacutezio Aniacutezio estaacute haacute muitos anos
morando no Paraguai depois de ter vivido com os parentes em GuaiacuteraPR e natildeo
manteacutem mais contato com seus filhos Juliana ndash filha de Aniacutesio e sua ex-mulher
Ceciacutelia que retornou a morar em Santo Antocircnio do Itambeacute com a matildee em meados da
deacutecada de 1980 depois de terem vivido um periacuteodo na regiatildeo de GuaiacuteraPR com seu
210
pai ndash entregou a Adir entatildeo uma carta para que ele fizesse chegar ateacute Aniacutezio na
qual estava escrito
Meus irmatildeos satildeo Marcelo Erlindo Vardeti Pedro Eva
Uomesan (incompreensiacutevel) e Carlos Quase todos tem
famiacutelias Meu nome eacute Juliana tenho oito filhos um moreu
em asidenti de carro com bicicleta U nome deles satildeo
Karina Wilka Tomaz Francineli Joatildeo Vitor Camila
Igridi e Julia Eu queria encontrar meu pai para ele me
achuda minha casa taacute quase caindo o nome dele eacute Anizio
Dionizio de Paula Quando eu sai de terra rocha eu era
muito pequena Eu agora capino para sobreviver e cuidar
da minha famiacutelia Tudo que eu quero eacute encontrar meu pai
Eu queria que ele me achudace natildeo tem ninguem que me
achuda aleacutem de Deus e Nossa Senhora174
Ceciacutelia e seus filhos foram a uacutenica famiacutelia que depois de terem se mudado para
a regiatildeo de Guaiacutera (na carta Juliana cita que morou em Terra Roxa municiacutepio
vizinho) retornaram para Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Este caso de retorno indica
como a modalidade de migraccedilatildeo se temporaacuteria ou definitiva soacute pode ser definida no
fim da vida das pessoas (GALIZONI 2002 p 569) Pelo que Juliana relata na carta e
pelas condiccedilotildees de moradia que vimos na casa de Ceciacutelia atualmente estatildeo
passando por muitas dificuldades financeiras e podem vir a ser uma das famiacutelias com
interesse em retornar para o siacutetio em GuaiacuteraPR a partir da regularizaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo
da aacuterea por meio do procedimento em tracircmite no INCRA
324 Novos movimentos
Depois de nossa estadia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG retornamos para
SerroMG de onde pegamos um ocircnibus para Belo HorizonteMG De laacute eu e Cassius
embarcamos de aviatildeo para CuritibaPR enquanto Adir e Geralda voltaram de aviatildeo
ateacute CascavelPR e de laacute puderam seguir de ocircnibus ateacute GuaiacuteraPR Seu Joatildeo por sua
vez foi de ocircnibus ateacute Presidente PrudenteSP Interessante destacar que em
Cascavel Adir e Geralda pernoitaram na casa de parentes e tambeacutem aproveitaram
para fazer uma visita e ldquocolocar a conversa em diardquo
174 Adotei o uso de um formato de letra que se aproxime da letra cursiva para fazer referecircncia agrave transcriccedilatildeo de textos escritos por meus interlocutores(as)
211
Com o impacto que a primeira viagem teve para Adir Geralda e Seu Joatildeo
bem como para mim e para Cassius a possibilidade de um retorno ndash visando a
conclusatildeo de algumas questotildees prementes que ficaram abertas com esta retomada
do contato ndash fez com que eu e Cassius jaacute iniciaacutessemos o planejamento de uma nova
viagem A intenccedilatildeo agora era que D Maria das Dores fosse ateacute Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG reencontrar suas irmatildes e que D Jovelina encontrasse sua tia D Ana
Raimunda em SerroMG e a trouxesse para morar com ela em Presidente
PrudenteSP Demorou quase trecircs meses ateacute que todo este processo fosse articulado
Em 05 de junho uma sexta-feira eu e Cassius desembarcamos de aviatildeo em Belo
HorizonteMG enquanto D Maria das Dores e D Jovelina viajavam juntas de ocircnibus
desde Presidente PrudenteSP Desta vez tanto D Ana Raimunda como D Zulmira
e D Regina estavam cientes da nossa chegada e nos aguardavam para aquele fim
de semana
Eu e Cassius resolvemos entatildeo alugar um carro em Belo Horizonte para que
pudeacutessemos ter mais autonomia nos deslocamentos entre Serro e Santo Antocircnio do
Itambeacute e tambeacutem para proporcionar mais conforto agraves duas senhoras D Maria das
Dores e D Jovelina que estavam conosco aleacutem da possibilidade de que D Ana
Raimunda tambeacutem retornasse no final da viagem Por outro lado a opccedilatildeo do aluguel
do carro fez com que nos programaacutessemos para ficar apenas o final de semana jaacute
que tiacutenhamos que devolvecirc-lo na segunda-feira dia 08 de junho Apesar de ter sido
uma viagem curta como veremos abaixo este final de semana proporcionou
segundo elas tudo o que D Maria das Dores e D Jovelina almejavam
3241 O reencontro das irmatildes
Quando chegamos na casa de D Zulmira com D Maria das Dores e D
Jovelina jaacute era de madrugada e elas ficaram sem dormir conversando muito felizes
de poderem se atualizar sobre as histoacuterias as experiecircncias de vida os sofrimentos e
as alegrias Aquele reencontro tatildeo esperado tinha se concretizado No outro dia de
manhatilde saacutebado 06 de junho foi que D Maria encontrou entatildeo D Regina que eacute
vizinha de sua irmatilde D Zulmira
Eu e D Zulmira fomos na padaria comprar patildeo para o cafeacute D Zulmira estava
tatildeo eufoacuterica por conta do reencontro com sua irmatilde que foi logo contando para o dono
212
da padaria Alex sobre a vinda de D Maria das Dores que natildeo via haacute muitos anos
Alex que era tambeacutem comentarista nas missas da Igreja de Santo Antocircnio ficou muito
feliz com a notiacutecia de D Zulmira Comentou entatildeo da possibilidade de conversar com
o padre para pedir que eu fizesse um testemunho na missa que ocorreria agraves 19h
contando esta histoacuteria do reencontro entre as irmatildes Este convite se justificava
tambeacutem pelo fato de que aquele dia 06 de junho era o primeiro dia dos festejos para
Santo Antocircnio cuja ldquodata augerdquo da festa seria no saacutebado seguinte dia 13 de junho o
dia do santo Esta sincronia da nossa chegada com o calendaacuterio sagrado daquele
lugar fez com que Alex atribuiacutesse agrave intercessatildeo de Santo Antocircnio aquele
acontecimento que era tatildeo esperado por D Zulmira e D Regina
Os eventos relacionados ao catolicismo como a Festa de Santo Antocircnio o
santo padroeiro do municiacutepio satildeo os grandes eventos da sociabilidade local na regiatildeo
do Vale do Jequitinhonha (PORTO 2007 p 156) Assim que chegou a notiacutecia de que
o padre tinha concordado com a ideia os parentes ficaram muito animados e felizes
principalmente as trecircs irmatildes que consideraram este fato uma importante forma de
reconhecimento e valorizaccedilatildeo local da histoacuteria da famiacutelia bem como uma confirmaccedilatildeo
do caraacuteter sagrado daquele reencontro
Conversei entatildeo com D Maria das Dores que mesmo sendo evangeacutelica
aceitou e ficou feliz com a possibilidade de dar seu testemunho mas fez questatildeo de
apontar que segundo seu ponto de vista natildeo se tratava de milagre do santo mas de
obra de Deus diretamente No primeiro capiacutetulo destaquei neste sentido a
importacircncia das relaccedilotildees de continuidade percebidas pelos meus interlocutores(as)
entre diferentes religiotildees para aleacutem das divergecircncias existentes Podemos nos
lembrar por exemplo da fala de Eva de que ldquoDeus eacute um soacuterdquo compreensatildeo novamente
reforccedilada pela decisatildeo de D Maria das Dores em participar do ritual catoacutelico
Combinamos entatildeo que eu faria uma pequena fala introdutoacuteria e passaria o
microfone para ela relatar sua chegada em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG depois de
muitos anos sem contato com a famiacutelia E assim fizemos Depois da comunhatildeo como
estava acertado Alex que estava fazendo os comentaacuterios da missa fez um gesto
sinalizando que era a hora de subirmos ateacute o altar D Maria das Dores depois de
minha pequena introduccedilatildeo contextualizando a pesquisa e o subsiacutedio que havia sido
dado para aquele reencontro agradeceu a Deus pela oportunidade de seu retorno
que era uma grande benccedilatildeo na sua vida e de seus familiares Contou um pouco de
213
sua trajetoacuteria e fez questatildeo de enfatizar que ela natildeo tinha saiacutedo de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG ldquopor orgulhordquo mas porque ldquotinha sido buscadardquo Afirmou que temos
sempre que glorificar a Deus por suas obras e concluiu sua fala de modo um tanto
tiacutemido mas com muita firmeza
No final da missa as trecircs irmatildes foram novamente ateacute o altar para
cumprimentar e agradecer ao padre tirar fotos e neste momento foram aplaudidas
por todos os presentes Apoacutes a missa houve uma confraternizaccedilatildeo em frente agrave Igreja
onde havia uma barraca na qual se podiam comprar comidas e bebidas iniciando as
festas juninas
FIGURA 35 As trecircs irmatildes na missa na Igreja de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
De alguma forma eu e Cassius fizemos parte daquilo que para elas era
consequecircncia de um milagre e segundo afirmaram vaacuterias vezes tiacutenhamos sido
enviados por Deus para trazer esta benccedilatildeo para a famiacutelia Interessante observar
neste sentido como o catolicismo eacute uma linguagem muito presente que sustenta o
modo de compreensatildeo das pessoas e lhes daacute um horizonte de futuro bem como uma
estabilidade no presente mesmo em situaccedilotildees de adversidade Ao falarem da morte
por exemplo usam a expressatildeo ldquoDeus levourdquo ao comentarem que moram sozinhos
214
ressalvam ldquomoro eu e Deusrdquo ao dizerem que natildeo podem contar com ningueacutem como
na carta de Juliana lembram-se da ajuda ldquode Deus e Nossa Senhorardquo Esta
concepccedilatildeo catoacutelica de mundo eacute tida como a forma legiacutetima de falar dos
acontecimentos e dizer que eacute um milagre natildeo traz necessariamente um sentido de
extraordinaacuterio pois tudo estaacute sobre o domiacutenio da justiccedila divina O sagrado portanto
faz parte do cotidiano e fornece a base dos valores fundamentais a serem seguidos
a partir da religiosidade cristatilde (PORTO 2007 p 157)
Nos dois dias que D Maria passou em Santo Antocircnio do Itambeacute ela pocircde
reencontrar vaacuterios sobrinhos e tambeacutem parentes que ainda natildeo conhecia pois a
maioria foi lhe ver na casa de suas irmatildes Ela foi muito bem recebida e acolhida por
todos que estavam em clima de festa A partir deste reencontro trocaram contatos no
intuito de que natildeo haja mais um lapso de convivecircncia e de comunicaccedilatildeo como ocorrido
anteriormente
FIGURA 36 D Maria sentada na cadeira ao lado de sua irmatilde D Zulmira (no canto esquerdo) sua
sobrinha com o marido e os filhos
215
Antes de partimos gravamos um viacutedeo com as trecircs irmatildes contando sobre
como tinha sido aquele reencontro D Maria das Dores entatildeo comentou
D Maria Que noacutes foi muito bem recebida E eu tenho trecircs irmatildeos em Belo Horizonte e ateacute isso eu jaacute consegui conversar hoje com uma soacute E amanhatilde eu espero que se Deus quiser ela taacute na rodoviaacuteria pra noacutes se ver Entatildeo eu fiquei muito feliz neacute porque a gente viu meu sobrinho tudo minha sobrinha tocirc muito alegre Gloacuteria a Deus por isso E eu vou falar verdade que eu fui muito bem recebida na casa da cumadi Zulmira minha irmatilde e na casa da cumadi Regina E graccedilas a Deus laacute eu vou levando muita alegria porque tocirc vendo que taacute tudo bem neacute tudo em ordem muita fartura muita alegria e muita uniatildeo Gloacuteria a Deus por isso
Por fim jaacute na rodoviaacuteria de Belo Horizonte mais um reencontro aconteceu
entre D Maria das Dores e suas duas irmatildes que moram na capital mineira Teresa e
Anita Elas haviam combinado por telefone enquanto estaacutevamos em Santo Antocircnio
do Itambeacute que na segunda-feira se encontrariam na rodoviaacuteria da capital O uacutenico
irmatildeo que D Maria natildeo viu foi Joaquim que tambeacutem mora em Belo Horizonte mas
natildeo pocircde encontraacute-la naquele dia Segundo D Maria das Dores ela ficou imaginando
a possibilidade de um novo retorno com mais tempo para um encontro entre todos
os irmatildeos em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
FIGURA 37 (Da esquerda para a direita) Teresa D Maria das Dores e Anita na rodoviaacuteria de Belo Horizonte
216
3242 D Jovelina e o convite para a tia Ana Raimunda
D Jovelina estava ansiosa pelo reencontro com a tia Ana Raimunda que natildeo
via haacute cinquenta e nove anos desde que saiu de laacute em 1956 quando tinha catorze
anos Nesta segunda viagem depois de termos pousado a primeira noite na casa de
D Zulmira em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG no saacutebado pela manhatilde eu e Cassius
levamos D Jovelina na casa de D Ana Raimunda que morava em Serro Quando
chegamos D Ana Raimunda nos aguardava tambeacutem ansiosa pois haviacuteamos dito que
chegariacuteamos na noite anterior o que natildeo havia sido possiacutevel O encontro entre as
duas foi de muita alegria
Dandara Bom dia pra senhora
D Ana Bom dia tudo bem
Dandara Tudo bom Graccedilas a Deus
D Jovelina Ei minha matildeezinha do ceacuteu sua benccedilatildeo
D Ana Oi minha fia tem anos que eu natildeo vejo pelo amor de Deus Que tempo Jaacute tem uns quarenta anos ou mais
D Jovelina Eu natildeo to acreditando meu Deus do Ceacuteu
D Ana Jaacute tem uns quarenta anos ou mais Hein
D Jovelina Acho que eacute sessenta anos
D Ana Sessenta anos Noacute pelo amor de Deus Sumiu
D Jovelina A senhora vai comigo agora dessa vez
D Ana Que dia que vocecirc vai
D Jovelina Segunda-feira
D Ana Graccedilas a Deus Eu tocirc arrumando Que eacute eu sozinha com Deus aqui oacuteh (junta as matildeos como em oraccedilatildeo)
D Jovelina Agora eu vou te levar pra laacute vou ponhar papinha na sua boca
D Ana Eu sei boba
D Jovelina Vou te dar banho vou te carregar ponha na cama pra dormir
D Ana (risos) Ograve minha companheira
D Jovelina O que eu puder fazer eu vou fazer
D Ana Se Deus quiser Vai dar um pouquinho de confusatildeo mas vai dar certo Eu gostei que vocecirc vai segunda que segunda vai daacute tempo de noacutes arrumar tudo Vamo entrar pra dentro
217
FIGURA 38 Reencontro de Ana Raimunda com Jovelina depois de 59 anos
D Ana Raimunda jaacute estava se preparando para ir para a casa de D Jovelina
em Presidente PrudenteSP e contou com a ajuda da sobrinha que passou com ela
o final de semana para organizar e levar o maacuteximo de coisas possiacuteveis Ela disse que
natildeo estava se mudando definitivamente pois ainda teria que voltar para Serro com o
intuito de vender a casa que era de seu falecido marido Teacuteofilo e ver questotildees
relacionadas agrave heranccedila entre ela e os dois filhos dele
D Ana estava muito feliz pois agora teria sempre companhia cuidados amor
de familiares e natildeo ficaria mais tatildeo sozinha e desamparada como se sentia ali Na
segunda-feira pela manhatilde conseguimos despachar as vaacuterias sacolas e bagagens de
D Ana pelo ocircnibus e seguimos de carro ateacute a rodoviaacuteria de Belo Horizonte D Ana
estava muito tranquila durante todo o percurso e assim foi ateacute chegar em Presidente
PrudenteSP acompanhada de D Jovelina e D Maria das Dores que seguiram
viagem juntas D Ana estaacute haacute cinco meses morando com D Jovelina e se sente muito
bem junto da famiacutelia como pude observar em agosto de 2015 quando fui visitaacute-la na
casa de D Jovelina
218
FIGURA 39 D Ana Raimunda com os parentes em Presidente PrudenteSP na casa da sobrinha Jovelina
Eacute possiacutevel perceber deste modo como estes reencontros apontaram para
dinacircmicas que operam entre relaccedilotildees de proximidade e de distacircncia em famiacutelias
como esta marcadas por situaccedilotildees de deslocamento natildeo haacute rupturas definitivas mas
potencialidades que podem dinamizar ou colocar as relaccedilotildees em letargia A facilidade
e a intensidade da retomada do contato por meio das viagens realizadas nas quais
foram refeitos partes dos caminhos de seus ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100)
confirmaram a forccedila do sentimento de viacutenculo com os parentes e de continuidade com
este passado comum
Da situaccedilatildeo de isolamento que se reportavam em relaccedilatildeo agrave experiecircncia do
grupo em GuaiacuteraPR antes do autorreconhecimento como quilombolas foi possiacutevel
chegar a um novo momento em que houve um acionamento significativo da ampla
rede social de parentesco Ademais estas relaccedilotildees de parentesco entre as famiacutelias
que se deslocaram para o estado de Satildeo Paulo e para o Paranaacute e as famiacutelias
quilombolas da regiatildeo de origem tende a operar como um iacutendice da ldquoquilombolidaderdquo
do grupo Eacute possiacutevel assim identificar trecircs momentos centrais de institucionalizaccedilatildeo
da alteridade da ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo
219
(a) no primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo natildeo foi reconhecido pelos
pesquisadores nenhum ldquograurdquo de alteridade
(b) no segundo relatoacuterio antropoloacutegico foi fundamentada a existecircncia de
alteridade em continuidade com o passado mineiro do grupo com base na pesquisa
realizada na regiatildeo de SerroMG e
(c) com as duas viagens de volta realizadas em marccedilo e junho de 2015 houve
por fim um significativo fortalecimento do sentimento de continuidade dos quilombolas
com sua origem comum bem como maiores subsiacutedios para sustentar a legitimidade
histoacuterica e a possibilidade de reivindicaccedilatildeo de direitos do grupo no presente
De algum modo como jaacute mencionamos foi esta demanda por coesatildeo e
coerecircncia das narrativas do grupo que impulsionou o retorno dos proacuteprios quilombolas
agrave regiatildeo de origem como um aprofundamento do processo de ldquoauto-organizaccedilatildeo em
termos poliacuteticosrdquo e concomitantemente de ldquoarticulaccedilatildeo dos antigos costumes e
formas de relacionamento social com as novas regras a que estatildeo submetidosrdquo
(ARRUTI 1997 23-24) Para aleacutem desta dimensatildeo pragmaacutetica houve uma
transformaccedilatildeo natildeo soacute na identidade quilombola com a multiplicaccedilatildeo dos espaccedilos
pelos quais eacute validada (ARRUTI 1996) mas tambeacutem na vida e nas trajetoacuterias dos
sujeitos envolvidos com estas experiecircncias de retorno
A realizaccedilatildeo destas duas viagens agrave Minas Gerais em marccedilo e junho de 2015
criou um entrelaccedilamento do movimento dos meus interlocutores(as) e do processo de
pesquisa que gerou esta dissertaccedilatildeo Este diaacutelogo aberto decorre da proximidade e
da relaccedilatildeo de confianccedila que jaacute possuiacuteamos criada por meio de um contato que se
estende desde 2011 Foi portanto a circulaccedilatildeo por espaccedilos institucionais a partir do
autorreconhecimento como quilombolas que os conectou com agentes do estado e
com pesquisadores como eu e Cassius que criou um contexto favoraacutevel para a
realizaccedilatildeo dessas viagens de volta
Neste percurso sinuoso da trajetoacuteria histoacuterica destas famiacutelias quilombolas
marcada por continuidades e descontinuidades busquei compreender o grupo ldquopor
meio dos fluxos que o atravessam e que o ligam a agentes e fenocircmenos distribuiacutedos
por diferentes locais escalas e temposrdquo (ARRUTI 2006 p 35) Foi possiacutevel perceber
deste modo como a histoacuteria da comunidade eacute construiacuteda como resultado de um
processo de negociaccedilatildeo Como jaacute mencionado a adoccedilatildeo da identidade implica na
proacutepria produccedilatildeo dessa realidade em uma relaccedilatildeo dialeacutetica entre o herdado e o
220
projetado (ARRUTI 1997 p 28) a partir da categoria geneacuterica de ldquoquilombolardquo cujo
caraacuteter juriacutedico-administrativo eacute o caminho pelo qual as coletividades organizadas
podem se auto-objetivar (ARRUTI 2006 44)
A ldquoplasticidade identitaacuteriardquo formadora desses grupos permite efetivamente que eles ldquoresgatemrdquo ldquorecuperemrdquo elementos substantivos de identidade que passam a integrar seus processos de emergecircncia mas como ldquomateacuterias-primasrdquo que precisam ser manufaturadas pelas forccedilas mobilizadas no seu interior na forma de desejos coletivos (ARRUTI 1997 p 28)
Este passado pensado em comum estaacute portanto sendo elaborado a partir
do momento presente (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 24) o que destaca o
lugar central que estas viagens a Minas Gerais passaram a ocupar em tal processo
de reelaboraccedilatildeo da memoacuteria Imagino ter sido suficientemente exposto ao longo
deste trabalho a centralidade para estas famiacutelias quilombolas do que podemos
compreender por meio da expressatildeo ldquodever de memoacuteriardquo entendido ldquocomo um ldquodireito
agrave reparaccedilatildeo em funccedilatildeo do esquecimento e guetificaccedilatildeo a que foram submetidas suas
histoacuterias ao longo do seacuteculo XXrdquo (MATTOS ABREU 2011 p 150) Com as viagens
realizadas em marccedilo e junho de 2015 este ldquodever de memoacuteriardquo se transformou em
algo acessiacutevel para os proacuteprios quilombolas de GuaiacuteraPR ao retraccedilarem o caminho
de seus ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100) Por meio destas viagens foi possiacutevel
compreender na praacutetica a necessidade de dessubstancializaccedilatildeo da identidade no
sentido de perceber como esta eacute construiacuteda pela tomada de consciecircncia sobre as
diferenccedilas e natildeo pelas diferenccedilas em si (SCHWARCZ 1999 p 296)
221
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Eu vou contar um pouco da minha histoacuteria pra vocecircs
Dandara e alguns mais importante com esse assunto Em
primeiro lugar o assunto eacute esse eu era companheiro de
minha matildee aos 4 anos e meio de idade eu completei 5 anos
na estrada muito sofrido ateacute que um senhor passou por ela
e chegou ateacute falar ldquodona a senhora vai matar esse menino
por favor natildeo faccedila isso natildeordquo Mais com todos sofrimentos ela
foi pelejando com a vida e noacutes continuamos mais tem aquele
ditado ldquoquem tem feacute em Deus vencerdquo Era muito difiacutecil porque
tudo era com o sofrimento ateacute para agente estudar tinha
que andar 4 km para ir e mais 4 km de voltar tinha que ir
a peacute as vez ateacute discalccedilo nem sapato noacutes natildeo tinha tempo de
frio com bluza uma calccedila todos dias sempre furava o fundo
era costurado toda vez tinha hora que natildeo tava nem
aceitando remendo mais natildeo tinha onde remendar mais
Quando a gente ganhava alguma peccedila de roupa agente
nem sabia o que fazia de tanta alegria Tinha que ir a aula
e voltar de pressa para poder ganhar uns troco ainda porque
meu pai era doente natildeo podia trabalhar que ele sentia um
bronquite forte e ficava muito canccedilado coitado ele viveu ateacute
43 anos com muito sofrimento e agente natildeo podia deixar
sem o remeacutedio porque agente tinha doacute que noacutes natildeo queria
ver ele naquele sofrimento era muito triste o estado que ele
ficou mais fazer o que todos noacutes tem que passar por isso A
gente comeccedilou a trabalhar muito cedo mais a gente soacute
ajudou os outros arrumar a vida deles e noacutes ficou Eu tive
uma chance no quartel eles queria que servisse mais por
motivo do falecimento do meu pai eu natildeo pude servi outra
chance eu tive tambeacutem foi no accedilougue para trabalhar natildeo
pude tambeacutem porque noacutes tinha lavoura de algodatildeo mais
natildeo dava muito porque era as meias tudo dividido pela
metade e assim noacutes continuamos Mais graccedila a Deus estamos
ai mais natildeo pode perder a esperanccedila cada um de noacutes temos
a nossa cruz para carregar ningueacutem passa por ela a num
ser a gente Hoje graccedilas meu Bom Deus eu tenho um lugar
para agente amparar uma motinha natildeo eacute nova mais da
para agente quebrar um galho temos roupas temos
alimentos para noacutes poder alimentar temos lugar para poder
plantar alguma coisa O que noacutes queremos eacute um apoio do
Governo Federal e temos que trabalhar reunidos com paz e
amor e concentrar naquilo que estamos fazendo Fazemos
um projeto para termos um sombrite para organizar melhor
a horta para sair uns bons lucros o sombrite ajuda e proteja
do sol e o tempo da geada Escrevido por Antocircnio Aparecido
dos Santos
222
Este texto trazido como epiacutegrafe destas consideraccedilotildees finais foi escrito por
Antocircnio Aparecido dos Santos marido de Geralda e entregue a mim enquanto estive
hospedada em sua casa na vila Eletrosul durante o trabalho de campo realizado em
GuaiacuteraPR Antocircnio conhecido pelo seu apelido Guaraacute eacute filho de Maria Madalena
Rocha dos Santos e Joseacute dos Santos175 casal que tambeacutem era proveniente de Santo
Antocircnio do ItambeacuteMG e viveram em GuaiacuteraPR ateacute falecerem O texto de Antocircnio eacute
aqui destacado por ser significativo para pensar a importacircncia de aspectos analisados
ao longo desta dissertaccedilatildeo sobre este grupo quilombola Desta histoacuteria que Antocircnio
nos conta a mim e ldquoalguns mais importante com esse assuntordquo gostaria de analisar
alguns elementos
Antocircnio deixa expliacutecito logo no iniacutecio de sua narrativa sua expectativa de que
ela pudesse chegar ateacute pessoas que tenham interesse e atuaccedilatildeo com a temaacutetica
quilombola de modo que haja publicidade para suas memoacuterias para sua trajetoacuteria de
luta e feacute bem como para seus anseios de que haja uma melhor condiccedilatildeo de vida para
as famiacutelias Articula suas reflexotildees assim de modo a destacar elementos desta
memoacuteria que satildeo definidos por ele como significativos a partir do momento presente
de sua vida e da sua percepccedilatildeo sobre a trajetoacuteria coletiva do grupo quilombola
Ele ressalta em primeiro lugar como completou cinco anos ldquona estradardquo Filho
uacutenico era o companheiro de sua matildee jaacute que seu pai estava doente Ao acompanhaacute-
la em suas tarefas diaacuterias ele narra como ainda muito novo tinha que enfrentar
extensos trajetos de caminhada Para estudar novamente a experiecircncia do sofrimento
trazido por este caminhar mas acrescenta ldquoquem tem feacute em Deus vencerdquo e assim
sugere a importacircncia que atribui agrave religiosidade para a superaccedilatildeo das adversidades
da vida e da cruz que cada um tem que carregar Como vimos no primeiro capiacutetulo
este modo de elaborar a experiecircncia do sofrimento na interface com a feacute constroacutei um
saber sobre o mundo Saber pautado pela religiosidade cristatilde que vista pela lente de
um catolicismo negro eacute permeada pela religiosidade umbandista da qual Antocircnio eacute
adepto junto com sua esposa Geralda
Quando ainda crianccedilas voltavam da escola depois de oito quilocircmetros de
caminhada percorrida Antocircnio conta como tinham ainda que enfrentar uma jornada
de trabalho na roccedila que no caso dele era ainda mais necessaacuterio pelo fato de que ele
175 Joseacute dos Santos era irmatildeo de Geraldo do Santos que adquiriu um dos lotes da aacuterea original da
famiacutelia em GuaiacuteraPR
223
e a matildee tinham que cuidar de seu pai adoentado O trabalho que os membros da
comunidade realizaram desde muito novos para sobreviver contribuiu segundo ele
ldquoparra arrumar a vida delesrdquo se referindo agrave melhoria da situaccedilatildeo econocircmica dos
proprietaacuterios vizinhos e em contraste ldquonoacutes ficourdquo mostrando que natildeo foi possiacutevel
reverter os benefiacutecios deste trabalho para as proacuteprias famiacutelias da comunidade Este
contexto de interaccedilatildeo com os proprietaacuterios vizinhos a experiecircncia de ldquotrabalhar para
os outrosrdquo permeia a histoacuteria do grupo e eacute interpretada pelos quilombolas como uma
reproduccedilatildeo da situaccedilatildeo de preconceito e exclusatildeo ndash um dos fatores que motivou o
movimento de saiacuteda das famiacutelias de Minas Gerais Se o deslocamento era uma
estrateacutegia de busca por autonomia e liberdade visando a superaccedilatildeo dos processos
de exclusatildeo nos quais estavam inseridos o processo de fixaccedilatildeo em um novo contexto
acaba por reproduzir as relaccedilotildees de dominaccedilatildeo
Antocircnio faz referecircncias entatildeo a oportunidades de profissionalizaccedilatildeo que teve
quando jovem fora da aacuterea rural e complementa explicando os motivos pelos quais
natildeo foi possiacutevel investir nestas carreiras A alternativa de inserccedilatildeo no mercado de
trabalho urbano natildeo se consolida como um caminho de fato viaacutevel de modo que a
estruturaccedilatildeo de sua vida continua passando pelo trabalho na aacuterea rural mesmo
quando vai residir em uma vila da periferia de GuaiacuteraPR E novamente reforccedila a
importacircncia da feacute da esperanccedila e da gratidatildeo a Deus na melhoria de suas condiccedilotildees
de vida pois atualmente ele e sua esposa tecircm moradia proacutepria um meio de transporte
(motinha) roupas alimentos Aleacutem disso a permanecircncia da famiacutelia no territoacuterio em
GuaiacuteraPR permite a reproduccedilatildeo do trabalho familiar um certo niacutevel de autonomia
alimentar um modo de vida especiacutefico
Este ldquolugar para poder plantar alguma coisardquo ao qual Antocircnio se refere foi
deixado por seus pais e parentes mais velhos que empreenderam este processo de
chegada e conquista do territoacuterio em Guaiacutera Assim apesar de sempre ter sido
considerada uma aacuterea insuficiente para o nuacutemero de famiacutelias que nela viviam era a
garantia que poderiam deixar para seus filhos e descendentes ndash um lugar para morar
para plantar trabalhar e viverem unidos Por isso Manoel deixou como conselho que
seus filhos nunca vendessem este patrimocircnio familiar que ele lhes deixaria como
heranccedila Como Joatildeo Aparecido filho de Manoel me contou durante uma entrevista
Manoel sofreu muito para poder comprar esse ldquopedacinho de terrardquo pois quando
chegou em GuaiacuteraPE era soacute mato ldquoele natildeo tinha nem comida nem roupa nem nadardquo
224
Ficou anos trabalhando roccedilando aacutereas derrubando a mata e plantando milho e feijatildeo
para conseguir pagar parcelado o valor da terra Segundo Joatildeo ele colhia o milho
debulhava e levava para vender ateacute GuaiacuteraPR ndash caminhava carregando aquele peso
nas costas pelas picadas estreitas por dentro do mato e gastava o dia inteiro para ir
e voltar Todo este sofrimento de Manoel dos pais de Antocircnio e demais familiares
cria assim um compromisso moral dos seus descendentes de seguirem o exemplo
deixado e tambeacutem lutarem sempre lsquotrabalhando na honestidaderdquo
Assim em contraste com o ldquotrabalho para os outrosrdquo que remete na narrativa
de Antocircnio agrave experiecircncia de exploraccedilatildeo e estagnaccedilatildeo ele ressalta ao final de seu
texto o que vislumbra para o futuro o projeto coletivo de autonomia por meio da
geraccedilatildeo de renda para as famiacutelias no proacuteprio territoacuterio com o ldquoapoio do Governo
Federalrdquo para que possam ldquotrabalhar reunidos com paz e amor e concentrar naquilo
que estamos fazendordquo Um lugar portanto que antes mais nada sustenta a
possibilidade de uma vivecircncia coletiva
De um modo mais amplo como vimos um dos aspectos centrais do projeto de
futuro da comunidade eacute a possibilidade natildeo soacute de as famiacutelias que laacute vivem atualmente
permanecerem neste territoacuterio como tambeacutem garantir o aumento do nuacutemero de
famiacutelias da comunidade Esta ampliaccedilatildeo que esperam seja garantida com a conclusatildeo
do procedimento de regularizaccedilatildeo territorial do INCRA proporcionaraacute o aumento do
nuacutemero de famiacutelias da comunidade a partir do retorno de parentes que estatildeo sofrendo
em vaacuterias cidades os quais assim eacute esperado teratildeo condiccedilotildees entatildeo para geraccedilatildeo
de renda no proacuteprio territoacuterio com o acesso a poliacuteticas puacuteblicas necessaacuterias
Satildeo as dinacircmicas de parentesco que justificam a ampliaccedilatildeo do territoacuterio visto
como referecircncia mas natildeo como limite para o pertencimento identitaacuterio o qual se abre
para uma rede expandida de famiacutelias que se encontram espalhadas por todo o canto
como comentado por Adir em depoimento durante a primeira viagem para Minas
Gerais apresentado no terceiro capiacutetulo Este caso nos permite assim relativizar a
ideia de territorialidade como qualidade imanente e percebecirc-la a partir de uma busca
pela conquista de locais em que fosse possiacutevel a reproduccedilatildeo do modo de vida
especiacutefico ndash por meio de movimentos de deslocamento que desenham uma linha de
continuidade em uma longa trajetoacuteria Movimentos que satildeo eles mesmos iacutendices da
resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida e do desrespeito coletivo ao qual se sentem
submetidos
225
A relaccedilatildeo naturalizada entre identidade e territorialidade como apontamos
tem sido pressuposta pela poliacutetica puacuteblica de regularizaccedilatildeo territorial das
comunidades quilombolas no Brasil Trata-se de uma projeccedilatildeo da ideia de
enraizamento que necessita ser revisada e contextualizada historicamente ndash como
nos aponta este caso especiacutefico da experiecircncia quilombola em GuaiacuteraPR ndash para que
natildeo atue como fator limitador da possibilidade de reconhecimento de direitos a grupos
que natildeo se encaixem no padratildeo estabelecido como modelo Neste sentido a
percepccedilatildeo de continuidade natildeo necessariamente se enquadra nas expectativas da
poliacutetica de reconhecimento que tendem a desconsiderar a complexidade desta
conexatildeo com o passado enquanto dinacircmica de ldquorecuperaccedilatildeo do processo histoacuterico
vivido por tal grupordquo bem como de ldquorefabricaccedilatildeo constante de sua unidade e diferenccedila
em face de outros grupos com os quais esteve em interaccedilatildeordquo (OLIVEIRA FILHO
1994a p123) ndash presente mesmo em casos de comunidades que incluem em suas
trajetoacuterias a experiecircncia do deslocamento entre territoacuterios
O retorno agrave regiatildeo de origem foi impulsionado como vimos a partir do
processo conturbado de reconhecimento do grupo como quilombolas que gerou a
produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos no acircmbito do procedimento que ainda
tramita no INCRA Este regresso no entanto como apontei na introduccedilatildeo natildeo faz
desta linha de movimento um ciacuterculo que se fecha mas uma dinacircmica em espiral que
se abre para novos movimentos em busca de um futuro norteado pelo pertencimento
a um passado comum e pelos valores compartilhados por esta identidade coletiva Tal
abertura para novos movimentos se fez presente de um modo muito significativo na
mudanccedila de D Ana Raimunda com 87 anos de idade que deixou sua casa em Serro
e se mudou para Presidente PrudenteSP onde atualmente mora com sua sobrinha
Jovelina
A defesa de um deslocamento conceitual da ideia de quilombo tido como
sobrevivecircncia para a ressemantizaccedilatildeo do termo tendo em vista os sujeitos que se
reconhecem como quilombolas no presente (ALMEIDA 2002 p 64) pode ser ainda
ampliada com base nesta experiecircncia de pesquisa Refiro-me assim a um
deslocamento conceitual que inclua tambeacutem o reconhecimento dos proacuteprios
movimentos e deslocamentos dos grupos quilombolas como processo que natildeo retira
a legitimidade de suas reivindicaccedilotildees identitaacuterias e territoriais Este reconhecimento
tem suporte historiograacutefico nas pesquisas que apontam para a intensa movimentaccedilatildeo
226
da populaccedilatildeo negra no contexto do poacutes-aboliccedilatildeo (LIMA 2000) movimento que tinha
como sentido a saiacuteda de aacutereas de colonizaccedilatildeo histoacuterica como a regiatildeo de Minas
Gerais para aacutereas de colonizaccedilatildeo recente como eacute a regiatildeo de GuaiacuteraPR no caso
em questatildeo
Minha interaccedilatildeo com estas famiacutelias quilombolas eacute fruto da circulaccedilatildeo da
comunidade representada por suas lideranccedilas em espaccedilos institucionais aos quais
passaram a acessar com o autorreconhecimento como quilombolas e a inserccedilatildeo no
movimento poliacutetico estadual em articulaccedilatildeo com demais comunidades Enquanto
relaccedilatildeo estabelecida com o grupo primeiro em uma posiccedilatildeo de agente do Estado
como assessora no Ministeacuterio Puacuteblico do Paranaacute depois como mestranda em
antropologia tive que lidar com esta posiccedilatildeo ambiacutegua que explicita meu duplo
pertencimento acadecircmico que transita entre o direito e antropologia
Acredito que com a convivecircncia cotidiana e a possibilidade de
aprofundamento dos viacutenculos a relaccedilatildeo que antes era de intermediadora de suas
demandas dentro do oacutergatildeo ministerial passou a ser a posiccedilatildeo de algueacutem com quem
pudessem compartilhar suas histoacuterias experiecircncias e sonhos dentro dos quais me vi
imersa Esta imersatildeo possibilitou que pudeacutessemos trilhar juntos o caminho de volta
ateacute Minas Gerais e sem perceber de iniacutecio eu estava tambeacutem sendo levada por esta
linha de movimento dos seus antepassados ndash que se tornou norteadora das
estrateacutegias de pesquisa e da redaccedilatildeo deste trabalho bem como o objeto de reflexatildeo
central fruto da relaccedilatildeo entre pesquisador e sujeitos de pesquisa
Ao concluirmos a segunda viagem de volta em junho de 2015 eu estava
entatildeo inserida em suas leituras permeadas pela compreensatildeo sagrada dos
acontecimentos vivenciados Os modos de compreensatildeo dos meus interlocutores(as)
apontavam para uma leitura de que a relaccedilatildeo entre noacutes assim como entre eles e
Cassius tinham sido acionadas por meio de oraccedilotildees e preces que nos colocaram
como instrumentos na concretizaccedilatildeo destes reencontros Natildeo pude conter a emoccedilatildeo
quando por exemplo D Zulmira agradecia ldquoocirc minha Nossa Senhora ocecirc trouxe o
meu povo Ocirc meu Pai Eterno o Senhor trouxe o meu povo pra mim conhecer aindardquo
quando da nossa chegada em sua casa naquela terccedila-feira 10 de marccedilo de 2015 O
desafio colocado pela escrita antropoloacutegica ndash de construccedilatildeo de uma objetividade
perspectiva parcial e situada ndash deste modo natildeo deve ser orientado pela noccedilatildeo de
crenccedila mas pela reflexatildeo sobre como estas pessoas constroem o mundo com base
227
na articulaccedilatildeo destes conceitos Trata-se afinal de um saber sobre o mundo
(GOLDMAN 2003 p 461)
Outro desafio foi o de encontrar uma certa estabilidade que seria produzida
no registro da experiecircncia na forma de texto no que tange a processos percebidos
pelos meus interlocutores(as) como accedilatildeo e transformaccedilatildeo no mundo vivido Busquei
criar uma reflexatildeo analiacutetica a partir destas experiecircncias que foram perpassadas por
emoccedilotildees intensas e que me faziam refletir sobre a trajetoacuteria dos meus proacuteprios
antepassados como meus avoacutes paternos que tambeacutem saiacuteram do estado de Minas
Gerais em direccedilatildeo ao norte do Paranaacute na deacutecada de 1940 em busca de melhores
condiccedilotildees de vida Nossos caminhos haviam se entrelaccedilado e como diria Ingold a
partir dali um noacute havia sido criado unindo nossas trajetoacuterias (INGOLD 2011 p 148)
o que espero possa se desdobrar na continuidade desta pesquisa com a intenccedilatildeo de
aprofundar a reflexatildeo sobre muitos pontos que demandam maior investimento de
anaacutelise
Como indagaccedilatildeo final proposta por este trabalho fica a questatildeo de ateacute que
ponto a autoidentificaccedilatildeo e a reconfiguraccedilatildeo do conceito de quilombo estatildeo
consolidadas para os atores que lidam com os procedimentos estatais sobre esta
temaacutetica Eacute necessaacuterio neste processo que se reconheccedila a historicidade e a
diversidade de trajetoacuterias que constitui tais grupos sociais suas dinacircmicas e agecircncias
de modo que se possa garantir direitos sem que se parta de uma fundamentaccedilatildeo
cristalizada decorrente da ideia de territorialidade fixa ou mesmo de imobilidade
Quando pensamos no conceito de ldquotradicionalrdquo natildeo devemos deste modo buscar
uma continuidade direta e substancializadora da identidade (como na perspectiva
produzida pelo primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo) mas um tipo de relaccedilatildeo especial
com este passado coletivo que permite a manutenccedilatildeo da organizaccedilatildeo social que estaacute
ela mesma sempre em transformaccedilatildeo (como analisado pelo segundo relatoacuterio)
No caso da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos estamos
falando da diferenccedila entre por um lado partir da ideia de uma origem a ser
comprovada enquanto requisito para o reconhecimento da identidade quilombola e a
compreensatildeo por outro de como essa origem eacute acionada como importante elemento
identitaacuterio ndash pelos proacuteprios atores sociais enquanto ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo
(HALBWACHS 2003 p 94) ndash na forma pela qual se relacionam e se reinventam
como trajetoacuteria compartilhada Este viacutenculo com a origem se expressa na fala de Adir
228
ndash ao comentar sobre a nossa viagem e agradecer a recepccedilatildeo que recebemos de D
Regina e D Zulmira ndash com a qual encerro essas reflexotildees
Eu quero aqui agradecer em nome de toda a comunidade Manoel Ciriaco dos Santos que a senhora conheceu que noacutes demos o nome dessa comunidade em memoacuteria dele em Guaiacutera Paranaacute Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos onde a gente comeccedilou Meu sonho era buscar a histoacuteria da famiacutelia () E enquanto eu natildeo conseguir a histoacuteria da nossa famiacutelia que somos famiacutelia mas eu quero buscar desde o passado ateacute o presente eu natildeo vou descansar Se um dia eu morrer vou morrer feliz mas conhecer a nossa histoacuteria a histoacuteria de todos noacutes () Essa passagem taacute sendo experiecircncia pra mim porque como um filho de mineiro um filho dessa terra de pisar aqui nessa terra Que a minha vontade era andar descalccedilo soacute andar andar andar O que eu pensava era soacute andar
229
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uNivgRSiCAoe feoeR A t d o Pa r a n a
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA SETOR DE CIEcircNCIAS HUMANASPROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ANTROPOLOGIA RUA GENERAL CARNEIRO 460 6o ANDAR CEP 80060-150 - CURITIBA-PR Telefone (41) 3360-5272
PARECER DA BANCA EXAMINADORA
Os membros da Banca Examinadora designada pelo Colegiado do
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia da Universidade Federal do Paranaacute
(PPGA) para realizar a arguiccedilatildeo da Dissertaccedilatildeo de Mestrado de Dandara dos Santos
Damas Ribeiro intitulada ldquoCOMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL CIRIACO DOS
SANTOS IDENTIDADE E FAMIacuteLIAS NEGRAS EM MOVIMENTOrdquo apoacutes terem
inquirido a aluna e realizado a avaliaccedilatildeo do trabalho satildeo de parecer pela
s u a j^ ^ ^Ccedil s f^ completando-se assim todos os requisitos previstos nas normas
desta Instituiccedilatildeo para a obtenccedilatildeo do Grau de Mestre em Antropologia Social
Consideraccedilotildees adicionais da Banca Examinadora
K CAtilde-~ ikjOu
ampJSraquo V3 51X ^V CUacuteUumlSS^sSi bull
Curitiba 23 de novembro de 2015
Profa Dra Liliana de Mendonccedila Porto Orientadora r
Prof Dr Andreacute Dumaifjs Guedes 1o Examinador
laacuteampgyCjProf Dr Ricardo Cid Fernandes
2a Examinador
Dedico este trabalho ao meu pai Antocircnio e agrave minha matildee Elisabete O apoio a
paciecircncia a generosidade e o amor que recebi de vocecircs foram o oxigecircnio para este
mergulho bem como para o recomeccedilo que se anuncia
AGRADECIMENTOS
Entendo essa pesquisa como uma primeira tentativa de organizaccedilatildeo de um
rico material de campo como a possibilidade de aprofundamento do viacutenculo que jaacute
possuiacutea e que pretendo manter com as famiacutelias quilombolas de GuaiacuteraPR e espero
o iniacutecio de uma longa caminhada de dedicaccedilatildeo agrave Antropologia Agradeccedilo muitiacutessimo
pela receptividade para a realizaccedilatildeo da pesquisa em todos os lugares que percorri
durante o trabalho de campo GuaiacuteraPR Presidente PrudenteSP Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG e SerroMG Agraves famiacutelias da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos
Santos o meu agradecimento pela hospitalidade confianccedila atenccedilatildeo e aprendizados
Sou grata a Deus por nossos caminhos terem confluiacutedo para a oportunidade deste
conviacutevio que foi repleto de experiecircncias incomensuraacuteveis
Agradeccedilo pela possibilidade de mergulho na Antropologia um novo caminho
que comecei a trilhar na minha graduaccedilatildeo no curso de Direito da UFPR Esta
curiosidade se ampliou com a oportunidade de trabalhar no Ministeacuterio Puacuteblico do
Paranaacute que me proporcionou o contato com vaacuterias comunidades quilombolas no
estado oportunidade pela qual agradeccedilo ao procurador de justiccedila e amigo Dr Marcos
Fowler Percebo como finalizo essa pesquisa com a convicccedilatildeo de que o que eu
precisava mesmo era de uma experiecircncia de trabalho de campo que fizesse do
conviacutevio a base para uma proposta de conhecimento que busca a horizontalidade o
diaacutelogo e a sensibilidade ndash o que gera uma transformaccedilatildeo dentro e fora de noacutes Natildeo
poderia ter realizado esta pesquisa sem o apoio da minha famiacutelia que diante das
inseguranccedilas e desafios do caminho confortaram-me com a inestimaacutevel sensaccedilatildeo e
certeza de ser amada incondicionalmente Pela simplicidade e grandiosidade deste
amor sem preacute-condiccedilotildees sou grata eternamente em especial aos meus avoacutes Doca
e Ruy Joatildeo aos meus pais Antocircnio e Elisabete agraves minhas irmatildes Tatiara Naiara e
Janaina ao meu cunhado Marcelo e agrave minha sobrinha Olga Agrave Naiara um
agradecimento todo especial pelas contribuiccedilotildees no processo de revisatildeo deste texto
em sua versatildeo final com seu amparo atenccedilatildeo e amor Aos meus avoacutes Joaquim e
Maria Julia em memoacuteria agradeccedilo e os homenageio lembrando de suas trajetoacuterias
como migrantes os quais assim como meus interlocutores(as) tambeacutem saiacuteram de
Minas Gerais em direccedilatildeo ao norte do Paranaacute em busca de melhores condiccedilotildees de
vida Durante o periacuteodo do trabalho de campo em Santo Antocircnio do Itambeacute e
SerroMG lembrei-me dos dois e no coraccedilatildeo os senti tatildeo proacuteximos
Se de longe recebi o incentivo dos meus familiares de perto agradeccedilo e
honro o conforto da presenccedila de meu companheiro de jornada Jean Luis com seu
apoio cotidiano confianccedila carinho atenccedilatildeo amor e magia Agrave grande famiacutelia que nos
tornamos junto com os amigos Simone e Julio Ceacutesar Angeacutelica e Gustavo com suas
crianccedilas abenccediloadas Brisa Mareacute Otto e Joatildeo eu agradeccedilo por terem preenchido
meu cotidiano de amor alegria e uniatildeo Aos meus colegas de mestrado agradeccedilo
pela convivecircncia proacutespera Em especial agrave Gabi ao ldquoTucanordquo e agrave Karina dos quais
recebi toda a ajuda necessaacuteria para o ingresso no programa de poacutes-graduaccedilatildeo em
Antropologia da UFPR Agradeccedilo tambeacutem o incentivo ao longo de todo o curso e a
confianccedila que depositaram em mim Com vocecircs compartilho memoacuterias muito
especiais de um periacuteodo uacutenico de minha vida Ao meu querido amigo Leonardo Bora
minha gratidatildeo e alegria por poder contar com sua generosidade na revisatildeo do texto
Agrave minha orientadora Profa Dra Liliana de Mendonccedila Porto agradeccedilo pelo
acompanhamento gentil e consistente pela delicadeza sensibilidade e estiacutemulos
contiacutenuos em nossas conversas por seu exemplo de antropoacuteloga e de pessoa que
seratildeo sempre referecircncias para mim A todos os professores e teacutecnicos do Curso de
Poacutes-Graduaccedilatildeo em Antropologia da Universidade Federal do Paranaacute agradeccedilo pela
dedicaccedilatildeo e pelos ensinamentos compartilhados Em especial aos Professores Dr
Ricardo Cid Fernandes e Dr Joatildeo Rickli pelas contribuiccedilotildees e sugestotildees ao trabalho
na banca de qualificaccedilatildeo
Ao pesquisador Cassius Cruz sou muito grata pela oportunidade da parceria
de pesquisa na realizaccedilatildeo das viagens a Minas Gerais Tambeacutem ao professor Dr
Matheus de Mendonccedila Gonccedilalves Leite e ao pesquisador Tiago Geisler ambos da
PUCSerro agradeccedilo pelo apoio e solicitude com que nos receberam no municiacutepio do
SerroMG Sem a disponibilidade de vocecircs nossa pesquisa na regiatildeo teria sido muito
difiacutecil ou mesmo inviaacutevel O significado dessa experiecircncia na minha vida e na de meus
interlocutores(as) transcende em muito as reflexotildees desta dissertaccedilatildeo
Preciso me encontrar
ldquoDeixe-me ir
Preciso andar
Vou por aiacute a procurar
Rir pra natildeo chorarrdquo
Cartola
Agraves vezes me chamam de negro
Agraves vezes me chamam de negro
Pensando que vatildeo me humilhar
Mas o que eles natildeo sabem
Eacute que soacute me faz relembrar
Que eu venho daquela raccedila
Que lutou pra se libertar
Que eu venho daquela raccedila
Que lutou pra se libertar
Que criou o maculelecirc
E acredita no candombleacute
E que tem o sorriso no rosto
Oi a ginga no corpo e o samba no peacute
O que eacute que tem
E que tem o sorriso no rosto
Oi a ginga no corpo e o samba no peacute
(Ladainha de Capoeira)
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo baseada na etnografia realizada junto agrave ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo localizada em GuaiacuteraPR problematiza a vinculaccedilatildeo direta entre a legitimidade da reivindicaccedilatildeo territorial das comunidades quilombolas e a ideia de territorialidade fixa que tem sido presumida pela poliacutetica de garantia de direitos territoriais quilombolas no Brasil Esta pesquisa indicou como a construccedilatildeo da identidade quilombola eacute perpassada pelos processos de deslocamentos constitutivos da trajetoacuteria das famiacutelias que vivem atualmente em GuaiacuteraPR mas satildeo provenientes de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG A reivindicaccedilatildeo da identidade quilombola eacute elaborada pelos meus interlocutores(as) com base na origem e na ancestralidade comuns com antepassados negros que foram escravizados nesta regiatildeo de Minas Gerais a partir da qual ocorre a saiacuteda das famiacutelias em busca de melhores condiccedilotildees de vida passando pelo estado de Satildeo Paulo ateacute a mudanccedila para GuaiacuteraPR onde adquirem aacuterea proacutepria Nas narrativas dos membros da comunidade percebe-se como o movimento natildeo dissolve mas ao contraacuterio sustenta o pertencimento coletivo Este caso exemplifica como a ideia de territorialidade fixa desconsidera experiecircncias de ldquoresistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo ndash criteacuterio trazido pelo Decreto Federal 48872003 ao regulamentar o processo de titulaccedilatildeo quilombola ndash constituiacutedas por meio de estrateacutegias de deslocamento e natildeo pela permanecircncia em um mesmo territoacuterio de ocupaccedilatildeo tradicional Estas dinacircmicas de movimento foram em um primeiro momento do processo de regularizaccedilatildeo territorial que ainda tramita no Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (INCRA) entendidas como um elemento de descaracterizaccedilatildeo da legitimidade da reivindicaccedilatildeo do grupo pelo primeiro relatoacuterio antropoloacutegico produzido sobre a comunidade Com a natildeo aprovaccedilatildeo deste estudo por parte do INCRA um novo relatoacuterio foi contratado tendo este investido no argumento de que haacute uma continuidade entre as dinacircmicas socioculturais do grupo de GuaiacuteraPR e as comunidades quilombolas de sua regiatildeo origem a partir de pesquisa realizada no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio ItambeacuteMG Esta pesquisa realizada pelo segundo relatoacuterio criou o interesse por parte da comunidade de que eles mesmos pudessem visitar a regiatildeo Tais viagens de retorno foram realizadas no acircmbito desta dissertaccedilatildeo para buscarmos mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica das famiacutelias o que gerou um entrelaccedilamento entre a minha pesquisa e a trajetoacuteria do grupo O (re)encontro entre parentes perdidos e a possibilidade de acesso agraves histoacuterias dos antepassados proporcionados por estas viagens sugerem que a busca pela reconstituiccedilatildeo de histoacuterias e viacutenculos com a regiatildeo de origem por parte dos quilombolas de GuaiacuteraPR natildeo se restringe ao acircmbito instrumental e administrativo mas tem tambeacutem uma importante dimensatildeo afetiva A articulaccedilatildeo destas dimensotildees aponta para o anseio dos quilombolas pelo reconhecimento da legitimidade de sua versatildeo sobre sua histoacuteria do valor de sua origem e trajetoacuteria bem como do direito de se construiacuterem como sujeitos e como coletividade especiacutefica
Palavras-chave comunidade quilombola relatoacuterios antropoloacutegicos movimento memoacuteria
ABSTRACT
The present thesis based on ethnography with the Quilombola Community Manoel Ciriaco dos Santos a black community located in Guaiacutera Paranaacute State (PR) Brazil questions the direct link between the legitimacy of the territorial claims of quilombola communities and the fixed territoriality idea that has been assumed by the quilombola land rights guarantee policy in Brazil This research indicated how the construction of a quilombola identity includes process of movement that are present in the trajectory of displacements of a group of families who although originally from Santo Antocircnio do Itambeacute in Minas Gerais State live nowadays in GuaiacuteraPR Their claim over a quilombola identity is elaborated on the bases of a common origin and ancestrality of black enslaved ancestors from the Center-Northeast region of Minas Gerais which unfolds in a journey for better life conditions leaving the place crossing Satildeo Paulo State and finally arriving at GuaiacuteraPR where they acquired their own land In the narratives of community members it is noticeable that the movement does not dissolve but rather sustains the collective pertaining This case exemplifies how the fixed territoriality idea disregards experiences of resistance to historical oppression- feature brought by the Federal Decree 48872003 that regulates the process of quilombola titling - that are based on shifting strategies and not by staying in one traditionally occupied territory These movement dynamics were regarded in the first instance of the land regularization process which is still pending in the National Institute of Colonization and Agrarian Reform (INCRA) as a distortion element of the legitimacy of the groups identity claim by the first anthropological report on the community With the rejection of this study by the INCRA a new report was hired From research held in the surrounding area of the municipality of Santo Antocircnio do ItambeacuteMG the repory argument that there is a continuity between the socio-cultural dynamics of the Guaira group and the quilombola communities of their region of origin This research by the second anthropological report has created the interest from the community that they themselves could visit the region Such return trips were undertaken in this thesis to seek more information on the historical trajectory of these families which generated an entanglement between my research and the trajectory of the group The re-gathering among long unseen relatives and the possibility of access to the stories of ancestors provided by these trips suggest that the search for the reconstitution of stories and links with the region of origin by the quilombolas of GuaiacuteraPR is not restricted by mere instrumental or administrative aim but also it has an important affective dimension The articulation of these dimensions points to the quilombolarsquos desire for recognition of the legitimacy of the communityrsquos version of their own history of the value of their origin and trajectory of their right to shape themselves as subjects and as an specific collectivity
Key-words quilombola community anthropological reports movement memory
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Guaiacutera na divisa com o Paraguai e o estado
Mato Grosso do Sul32
FIGURA 2 Presenccedila de tekohas guaranis e da comunidade quilombola Manoel
Ciriaco dos Santos em Guaiacutera e Terra Roxa34
FIGURA 3 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute39
FIGURA 4 Excerto Genealoacutegico 143
FIGURA 5 Excerto Genealoacutegico 2 44
FIGURA 6 Excerto Genealoacutegico 348
FIGURA 7 ndash Documentos de identidade de Manoel Ciriaco dos Santos nascido em
16031920 e Ana Rodrigues nascida em 26071930 ambos no municiacutepio de Santo
Antocircnio do ItambeacuteMG (Comarca de Serro)50
FIGURA 8 Foto do acervo da famiacutelia53
FIGURA 9 Fluxo migratoacuterio54
FIGURA 10 Divisatildeo setorial da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos
Santos57
FIGURA 11 Cartaz sobre a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia65
FIGURA 12 Geralda com imagem de preto-velho que compotildeem o seu altar79
FIGURA 13 Carteirinha de Geralda do Conselho Mediuacutenico do Brasil80
FIGURA 14 Altina importante benzedeira na memoacuteria comunitaacuteria81
FIGURA 15 Geralda e Antocircnio (Guaraacute) em frente ao altar apoacutes a realizaccedilatildeo da
ldquoGirardquo85
FIGURA 16 Capelinha para Nossa Sordf Aparecida presenteada por D Ana92
FIGURA 17 Geraldo em 1972 quando foi pagar sua promessa em AparecidaSP93
FIGURA 18 Liacuteder da comunidade quilombola eacute ameaccedilado139
FIGURA 19 ldquolsquoLaparsquo utilizada ateacute os dias atuais como moradia quilombola na
comunidade Mata dos CrioulosMGrdquo153
FIGURA 20 O encontro entre os dois irmatildeos ldquoJoatildeordquo em Presidente PrudenteSP175
FIGURA 21 Famiacutelia reunida em Presidente PrudenteSP na casa de D Jovelina176
FIGURA 22 Valdeniacutecio explicando o funcionamento da farinheira178
FIGURA 23 Mesa ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos
geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova
(MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo184
FIGURA 24 Seu Adatildeo D Necila (ambos de Vila Nova) Adir Geralda D Maria
Geralda (Vila Nova) e Seu Joatildeo185
FIGURA 25 Em frente agrave casa de D Necila Na esquerda da foto ela e Adir estatildeo
conversando e ao lado dois parentes tocando violatildeo e sanfona186
FIGURA 26 Regiatildeo no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute identificado
pelo traccedilado vermelho187
FIGURA 27 Geralda e D Necila na frente do forno de barro no quintal da casa de D
Necila190
FIGURA 28 Adir gravando a conversa com Seu Daniel194
FIGURA 29 D Zulmira e D Regina mandam mensagens para a irmatilde D Maria das
Dores197
FIGURA 30 Excerto Genealoacutegico 4199
FIGURA 31 Adir e Geralda com a tia Ana Raimunda202
FIGURA 32 Geralda faz uma reverecircncia em frente agrave Igreja Matriz203
FIGURA 33 Retrato de Padre Joviano na casa de Seu Daniel205
FIGURA 34 Adir Seu Joatildeo e Geralda junto agrave estaacutetua de Padre Joviano206
FIGURA 35 As trecircs irmatildes na missa na Igreja de Santo Antocircnio do Itambeacute213
FIGURA 36 D Maria sentada na cadeira ao lado de sua irmatilde D Zulmira sua
sobrinha com o marido e os filhos214
FIGURA 37 Teresa D Maria das Dores e Anita na rodoviaacuteria de Belo
Horizonte215
FIGURA 38 Reencontro de Ana Raimunda com Jovelina depois de 59 anos217
FIGURA 39 D Ana Raimunda com os parentes em Presidente PrudenteSP na casa
da sobrinha Jovelina218
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO12
i ndash Estrutura dos Capiacutetulos19
ii ndash Notas sobre a pesquisa26
1 IDENTIDADE EM MOVIMENTO 31
11 SANTO ANTOcircNIO DO ITAMBEacuteMG E GUAIacuteRAPR DOIS PONTOS DE UMA
LINHA 31
12 A MEMOacuteRIA DOS CAMINHOS E OS CAMINHOS DA MEMOacuteRIA59
13 O CONTINUUM DA RELIGIOSIDADE74
2 IDENTIDADE QUILOMBOLA E RELATOacuteRIOS ANTROPOLOacuteGICOS96
21 O AUTORRECONHECIMENTO COMO QUILOMBOLAS109
22 O PRIMEIRO RELATOacuteRIO ldquoANTI-ANTROPOLOacuteGICOrdquo116
23 O CONFLITO COM OS PROPRIETAacuteRIOS VIZINHOS131
24 UM NOVO RELATOacuteRIO ANTROPOLOacuteGICO142
3 ldquoEacute COMO SE NOacuteS VOLTASSE A PAacuteGINA DA NOSSA VIDA DO COMECcedilOrdquo159
31 A ldquoVIAGEM DA VOLTArdquo159
32 O CAMINHO ATEacute MINAS GERAIS 168
321 A passagem por Presidente PrudenteSP e os irmatildeos mais velhos171
322 A chegada em SerroMG e a ida agrave Comunidade Quilombola Vila Nova180
323 Enfim em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG191
3231 Encontro com D Zulmira D Regina e D Ana Raimunda194
3232 Padre Joviano o pai de criaccedilatildeo de Maria Olinda203
3233 A famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente206
324 Novos movimentos210
3241 O reencontro das irmatildes211
3242 D Jovelina e o convite para a tia Ana Raimunda216
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS221
12
INTRODUCcedilAtildeO
As narrativas das famiacutelias negras a respeito do periacuteodo posterior agrave aboliccedilatildeo
formal da escravidatildeo no Brasil em 1888 tecircm vindo agrave tona nas uacuteltimas trecircs deacutecadas
por meio da emergecircncia da reivindicaccedilatildeo identitaacuteria das ldquocomunidades quilombolasrdquo
Este florescimento de narrativas foi estimulado pela inserccedilatildeo do direito agrave propriedade
coletiva dos territoacuterios sociais tradicionalmente ocupados conforme previsto na
Constituiccedilatildeo Federal (CF) de 1988 no artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees
Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) que versa ldquoaos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras eacute reconhecida a
propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivosrdquo Com este
ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo1 (OLIVEIRA FILHO 1998) e a consequente
reelaboraccedilatildeo da relaccedilatildeo com o passado como novos sujeitos poliacuteticos tem ocorrido
a ldquorecuperaccedilatildeo e reenquadramento da memoacuteria ateacute entatildeo recalcadardquo (ARRUTI 2006
p 28)
O ldquoprocesso de nominaccedilatildeordquo dos ldquoremanescentes das comunidades dos
quilombosrdquo na CF instituiu assim uma categoria juriacutedica e administrativa para
identificar sujeitos de direitos coletivos como objeto de accedilatildeo do Estado (ARRUTI
2006 p 45) No entanto o artigo constitucional permaneceu sem aplicaccedilatildeo ateacute 1995
(tricentenaacuterio da morte de Zumbi) sendo que soacute foi complementado por uma
regulamentaccedilatildeo que previa a criaccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica com condiccedilotildees miacutenimas
para realizar a titulaccedilatildeo territorial das comunidades quilombolas em 2003 Trata-se
do Decreto Federal 4887 que revogou o Decreto Federal anterior 3912 de 2001 Para
esta regularizaccedilatildeo territorial eacute exigida a elaboraccedilatildeo de um relatoacuterio antropoloacutegico ndash
que figura como a primeira peccedila teacutecnica produzida no acircmbito do processo de titulaccedilatildeo
quilombola ndash responsabilidade do Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio por meio
1 Segundo o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo consiste no
processo por meio do qual os grupos sociais (no caso da discussatildeo especiacutefica do autor o foco satildeo povos indiacutegenas mas este mesmo raciociacutenio pode ser estendido para as comunidades quilombolas) tornam-se coletividades organizadas enquanto objeto poliacutetico-administrativo de modo que formulam uma identidade proacutepria estabelecem mecanismos de decisatildeo e de representaccedilatildeo e reestruturam as suas formas culturais Assim ldquoas afinidades culturais ou linguiacutesticas bem como os viacutenculos afetivos e histoacutericos porventura existentes entre os membros dessa unidade poliacutetico-administrativa (arbitraacuteria e circunstancial) seratildeo retrabalhados pelos proacuteprios sujeitos em um contexto histoacuterico determinado e contrastados com caracteriacutesticas atribuiacutedas aos membros de outras unidades deflagrando um processo de reorganizaccedilatildeo sociocultural de amplas proporccedilotildeesrdquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 56)
13
do Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (INCRA) atraveacutes de suas
superintendecircncias estaduais2
Esta dissertaccedilatildeo busca analisar o processo de reconstituiccedilatildeo das memoacuterias e
da histoacuteria coletiva fruto da emergecircncia identitaacuteria da comunidade negra
autodenominada ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo localizada em
Guaiacutera no estado do Paranaacute (PR) Esta comunidade desde 2008 haacute sete anos
iniciou o processo de titulaccedilatildeo de seu territoacuterio junto agrave Superintendecircncia do INCRA no
Paranaacute Este procedimento administrativo que tramita com o nordm 542000010752008-
46 foi marcado pelo desencadeamento de conflitos e incompreensotildees resultando na
produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos em decorrecircncia da anulaccedilatildeo do primeiro
A trajetoacuteria de reconhecimento desta comunidade apresentou desafios especiacuteficos
tendo em vista que sua histoacuteria destoa do imaginaacuterio redutivo e preacute-concebido
comumente atribuiacutedo agraves comunidades quilombolas3 que parte de uma ideia de
fixaccedilatildeo territorial e de uma relaccedilatildeo ancestral e contiacutenua com um mesmo territoacuterio
tradicionalmente ocupado Este grupo quilombola no Paranaacute constroacutei sua identidade
coletiva como iremos analisar ao longo deste trabalho a partir de processos de
deslocamentos geograacuteficos no qual GuaiacuteraPR eacute o ponto de chegada para algumas
famiacutelias e ponto de passagem para outras
O municiacutepio de Guaiacutera estaacute na regiatildeo de fronteira internacional entre o Brasil
e o Paraguai definida pelos contornos do Rio Paranaacute no extremo oeste do estado
Nesta regiatildeo tais famiacutelias chegaram como gostam de narrar no comeccedilo da deacutecada
de 60 a partir de um movimento iniciado no estado de Minas Gerais (MG) passando
2 Esta atribuiccedilatildeo de titulaccedilatildeo dos territoacuterios quilombolas nas Superintendecircncias Regionais do INCRA
eacute executada pelo ldquoServiccedilo de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolasrdquo que integra a ldquoDivisatildeo de Ordenamento da Estrutura Fundiaacuteriardquo Disponiacutevel em httpwwwincragovbrincra-nos-estados Acesso em 291015 3 Um exemplo da forte presenccedila desta loacutegica reducionista no campo juriacutedico eacute o voto do entatildeo Ministro
do Supremo Tribunal Federal (STF) Cezar Peluso que foi o relator em 18 de abril de 2012 da Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade 3239 proposta pelo Partido Democratas questionando a constitucionalidade do Decreto Federal 4887 de 2003 O voto do Ministro Relator que abriu o julgamento baseou-se na acepccedilatildeo histoacuterica de quilombo para interpretar o sentido e a abrangecircncia da aplicaccedilatildeo do artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias Caso o julgamento venha a confirmar este mesmo entendimento do Ministro Peluso haveraacute um enorme retrocesso na poliacutetica quilombola com a retirada do Decreto 4887 de 2003 do ordenamento juriacutedico e com a necessidade de que tal direito seja regulamentado por lei a ser aprovada pelo Congresso Nacional no qual a bancada ruralista eacute muito expressiva Endereccedilo eletrocircnico do viacutedeo da sessatildeo de julgamento httpwwwyoutubecomwatchv=ZV94XhbFV6s Acesso em 08012015 Para uma anaacutelise do voto do ministro ver artigo que desenvolvi neste sentido (RIBEIRO 2015)
14
pela regiatildeo oeste do estado de Satildeo Paulo (SP) no municiacutepio de Caiabu4 ndash distante
quarenta quilocircmetros de Presidente Prudente5 que eacute o municiacutepio polo da regiatildeo ndash
onde chegaram em 1956 As narrativas quilombolas destacam que Manoel trabalhou
com a famiacutelia em CaiabuSP na colheita de algodatildeo e amendoim ateacute que ele e mais
alguns parentes resolvem se mudar com o objetivo de comprar terras no extremo
oeste do Paranaacute na regiatildeo dos municiacutepios de Guaiacutera e Terra Roxa
Em Minas6 viviam no municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute considerado o
local de origem do grupo localizado proacuteximo ao iniacutecio da regiatildeo conhecida como ldquoVale
do Jequitinhonhardquo Satildeo as memoacuterias dos mais velhos sobre esta regiatildeo de origem que
constituem a base da histoacuteria deste grupo conforme eacute mobilizada pelas famiacutelias que
vivem atualmente em Guaiacutera e cujos membros importante destacar jaacute nasceram no
estado de Satildeo Paulo ou no Paranaacute ou seja depois do iniacutecio do processo de
descolamento das famiacutelias
Nas narrativas sobre o passado mineiro da comunidade haacute referecircncias a
ancestrais que foram escravizados no garimpo e em fazendas da regiatildeo cujo
povoamento ainda no seacuteculo XVIII surgiu com a exploraccedilatildeo de ouro vinculada agrave
expansatildeo bandeirante paulista com forte presenccedila da escravidatildeo africana (PORTO
2007 p 66) No entanto as memoacuterias da escravidatildeo deste grupo natildeo estatildeo
circunscritas em suas narrativas ao tempo da escravidatildeo jaacute que haacute uma extensatildeo
temporal que expressa uma percepccedilatildeo de continuidade desta experiecircncia por meio
da situaccedilatildeo de viver como escravo (MELLO 2012 p 214)
4 O municiacutepio de CaiabuSP antes distrito de Regente Feijoacute foi criado pela Lei Estadual nordm 2456 de
1953 Nesta localidade desde 1935 com o iniacutecio do povoamento havia plantaccedilotildees de algodatildeo e outras culturas na qual a famiacutelia de Manoel se inseriu a partir de 1956 De acordo com Censo do IBGE realizado em 2010 o municiacutepio tem uma populaccedilatildeo de 4072 habitantes Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=350890ampsearch=||infogrE1ficos-informaE7F5es-completas Acesso em 041115 5 De acordo com Censo do IBGE realizado em 2010 o municiacutepio de Presidente PrudenteSP tem uma
populaccedilatildeo de 207610 habitantes Seu povoamento foi iniciado ainda no seacuteculo XIX a partir dos deslocamentos de mineiros para a regiatildeo que com o esgotamento das minas de ouro estavam ldquoem busca de terras boas para a lavourardquo Foi elevado agrave categoria de municiacutepio pela Lei nordm 1798 de 1921 desmembrado do municiacutepio de Campos Novos e Conceiccedilatildeo de Monte Alegre Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrpainelhistoricophplang=ampcodmun=354140ampsearch=sao-paulo|presidente-prudente|infograficos-historico Acesso em 041115 Presidente PrudenteSP exerce assim influecircncia sobre os municiacutepios menores do entorno Iremos destacar ao longo do trabalho a passagem das famiacutelias provenientes de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG pelo estado de Satildeo Paulo por meio da referecircncia agrave ldquoregiatildeo de Presidente Prudenterdquo pois natildeo tive acesso a muitas referecircncias especiacuteficas em relaccedilatildeo agrave forma e ao histoacuterico de ocupaccedilatildeo das famiacutelias nesta regiatildeo embora se indique que Manoel viveu em CaiabuSP 6 Uso a grafia em itaacutelico para a sinalizaccedilatildeo de expressotildees nativas e aspas duplas para as falas dos meus interlocutores e citaccedilotildees bibliograacuteficas
15
Nestes deslocamentos de Minas Gerais ao Paranaacute o movimento destas
famiacutelias negras foi traccedilado em direccedilatildeo primeiro agrave regiatildeo de Presidente PrudenteSP
onde se estabeleceram por alguns anos trabalhando na aacuterea rural em terras
arrendadas No comeccedilo da deacutecada de 60 vislumbraram entatildeo a possibilidade de
adquirirem aacutereas proacuteprias nos loteamentos rurais na regiatildeo de GuaiacuteraPR em contato
com pessoas que trabalhavam como ldquocorretoresrdquo e buscavam pessoas interessadas
no estado de Satildeo Paulo Novamente resolvem se deslocar agora em direccedilatildeo ao
extremo oeste paranaense onde adquirirem aacuterea no loteamento rural de iniciativa da
Sociedade Agropecuaacuteria Industrial e Comercial Maracaju LTDA que tinha sede em
Caxias do Sul Este loteamento eacute atualmente denominado como bairro rural ldquoMaracaju
dos Gauacutechosrdquo distante vinte quilocircmetros do centro comercial do municiacutepio de
GuaiacuteraPR
Estes deslocamentos constitutivos da experiecircncia do grupo satildeo articulados
por meio da atribuiccedilatildeo de uma dimensatildeo moral em relaccedilatildeo ao desrespeito coletivo ao
qual percebem terem sido submetidos e que constitui um aspecto central da
elaboraccedilatildeo de sua identidade coletiva A identificaccedilatildeo deste desrespeito7 ndash percebido
na situaccedilatildeo de precariedade de condiccedilotildees de vida e no preconceito racial sofrido por
estas famiacutelias negras enquanto fator determinante para tais movimentos com o alto
custo emocional gerado pela separaccedilatildeo entre parentes ndash veio agrave tona com o processo
de reconhecimento do grupo como quilombolas Como procuraremos apontar eacute a
trajetoacuteria coletiva de movimento e a relaccedilatildeo com esta origem mineira que constitui a
fonte de pertencimento identitaacuterio que estrutura o processo de etnogecircnese no caso do
quilombo de GuaiacuteraPR8
No entanto esta trajetoacuteria natildeo foi tida como legiacutetima em muitas situaccedilotildees de
contato do grupo com agentes externos inclusive no acircmbito do procedimento de
regularizaccedilatildeo territorial que tramita no INCRA Em contraste com este modo de
elaboraccedilatildeo da identidade que eacute reivindicada a partir da trajetoacuteria de movimento a
interpretaccedilatildeo corrente com base na previsatildeo normativa tem tomado a territorialidade
7 Ao que Arruti denomina ldquoprocesso de identificaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 46) 8 A relaccedilatildeo entre trajetoacuteria e origem segundo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho pode ser compreendida
como dinacircmica constitutiva da etnicidade pois esta supotildee necessariamente uma trajetoacuteria histoacuterica ldquodeterminada por muacuteltiplos fatoresrdquo e uma origem enquanto experiecircncia primaacuteria ldquotraduzida em saberes e narrativas aos quais vem a se acoplarrdquo Deste modo ldquoo que seria proacuteprio das identidades eacutetnicas eacute que nelas a atualizaccedilatildeo histoacuterica natildeo anula o sentimento de referecircncia agrave origem mas ateacute mesmo o reforccedila Eacute da resoluccedilatildeo simboacutelica e coletiva dessa contradiccedilatildeo que decorre a forccedila poliacutetica e emocional da etnicidaderdquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64)
16
como epicentro da identidade bem como da mobilizaccedilatildeo por direitos no processo de
reconhecimento puacuteblico dos grupos quilombolas no Brasil Tendo como referecircncia a
previsatildeo constitucional do artigo 68 do ADCT referida acima tem sido pressuposta
uma equivalecircncia entre a ancestralidadecontinuidade da ocupaccedilatildeo do territoacuterio
tradicional e a legitimidade da emergecircncia eacutetnica
A relaccedilatildeo entre ldquoterritoacuteriordquo e ldquoidentidaderdquo tambeacutem tem sido enfocada no debate
atual mais amplo sobre as comunidades tradicionais o que se daacute por meio da
construccedilatildeo de ldquouma articulaccedilatildeo especiacutefica entre certas dimensotildees lsquoespaciaisrsquo e outras
lsquoculturaisrsquordquo Poreacutem eacute necessaacuterio pensar as praacuteticas espaciais desses grupos sociais
sem pressupor ndash como parece mais palataacutevel e administraacutevel pela loacutegica estatal ndash que
eles estejam ldquoa priori (ou a posteriori) destinados ou lsquocondenadosrsquo a se enraizar num
pedaccedilo de solo qualquerrdquo (GUEDES 2013b p 53-56) Portanto
Faz-se necessaacuterio entatildeo contextualizar historicamente as ideias de ldquoterritoacuteriordquo e ldquoidentidaderdquo bem como destacar a contingecircncia da associaccedilatildeo existente entre elas em razatildeo da crescente popularidade de certas narrativas que certamente imbuiacutedas de propoacutesitos criacuteticos e poliacuteticos simpaacuteticos agrave causa das comunidades tradicionais inadvertidamente naturalizam o ldquoenraizamentordquo de tais grupos (GUEDES 2013b p 54)
A naturalizaccedilatildeo do enraizamento dos grupos quilombolas consiste em uma
ldquoidealizaccedilatildeo da situaccedilatildeo ldquopreacute-desterritorializaccedilatildeordquo esta uacuteltima implicitamente
sugerindo uma estabilidade ldquoterritorializadardquo destes grupos na terra que no contexto
brasileiro eacute antes a exceccedilatildeo do que a regrardquo (GUEDES 2013b p 55) Tal
interpretaccedilatildeo desconsidera no caso da formaccedilatildeo de grupos quilombolas o histoacuterico
de intensa movimentaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra nas deacutecadas poacutes-aboliccedilatildeo em busca
de terras para sua reproduccedilatildeo como campesinato autocircnomo Deste modo o
deslocamento de famiacutelias negras para aacutereas de colonizaccedilatildeo recente ndash como
GuaiacuteraPR ndash aparece como estrateacutegia de garantia de liberdade sempre ameaccediladas
pelo padratildeo de relaccedilotildees entre brancos e negros em regiotildees com um histoacuterico antigo
e consolidado de escravidatildeo (LIMA 2000) ndash caso de Minas Gerais Sem essa
consideraccedilatildeo mais ampla e complexa restringe-se a possibilidade de abarcar a
pluralidade de formas e contextos nos quais ocorreram a constituiccedilatildeo de territoacuterios
negros e as articulaccedilotildees identitaacuterias quilombolas no Brasil
A ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo por exemplo leva o
nome do patriarca da famiacutelia que liderou o processo de saiacuteda de Minas Gerais
17
chegada e consolidaccedilatildeo do grupo no Paranaacute Esta histoacuteria de deslocamentos implicou
em dificuldades natildeo soacute para a manutenccedilatildeo do contato entre parentes que se
dispersaram como tambeacutem para a reproduccedilatildeo intergeracional da memoacuteria coletiva
Um dos principais desafios dos membros da comunidade passava pela necessidade
de reelaboraccedilatildeo da memoacuteria coletiva que precisava ser reinterpretada agrave luz da
autoidentificaccedilatildeo como quilombolas O aumento do ciacuterculo de interaccedilatildeo do grupo com
agentes externos e a consequente influecircncia que este processo passou a ter em sua
autoimagem tornava necessaacuteria a construccedilatildeo de um novo lugar de legitimidade para
a sua histoacuteria na medida em que esta se transformava em ldquoprinciacutepio de justificaccedilatildeo
das demandas do presenterdquo (MELLO 2012 p 20) A construccedilatildeo de uma imagem de
si como quilombolas fez surgir entatildeo a necessidade de organizar ldquouma memoacuteria
linear e coerente sobre suas lsquoorigensrsquordquo (ARRUTI 2001 p 243) o que antes natildeo
aparecia como uma questatildeo a ser elaborada de forma sistemaacutetica por essas famiacutelias
No entanto a resposta a esta demanda esbarrou na ausecircncia dos parentes mais
velhos que viveram em Minas pois jaacute haviam falecido ou saiacutedo de GuaiacuteraPR
Esta necessidade de acessar a memoacuteria atraveacutes dos mais velhos e assim
subsidiar as suas narrativas em acircmbito oficial reconhecida pelos(as) proacuteprios(as)
quilombolas intensificou-se diante do questionamento levantado pelo primeiro
relatoacuterio antropoloacutegico9 publicado em 2010 e produzido no acircmbito do procedimento
do INCRA A trajetoacuteria de movimento do grupo foi em um primeiro momento lida
como obstaacuteculo para o reconhecimento puacuteblico de sua autoidentificaccedilatildeo Com o
transcorrer do processo de reconhecimento cada vez mais a busca pela nossa
histoacuteria e o desejo de retomar o contato com os parentes que permaneceram em MG
passam a ser um objetivo principalmente da lideranccedila do grupo Adir e tambeacutem uma
demanda de legitimaccedilatildeo identitaacuteria no contexto mais amplo Isso porque as memoacuterias
do grupo sobre a regiatildeo de origem e os processos de deslocamento que constituiacuteram
sua trajetoacuteria no seacuteculo XX mesmo que acessadas de modo indireto pelos que vivem
9 Como mencionado acima foram realizados dois relatoacuterios antropoloacutegicos no acircmbito do Procedimento
Administrativo (PA) 542000010752008-46 de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos que tramita na Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute instaurado em 24 de abril de 2008 O primeiro relatoacuterio realizado levantou questionamentos ao negar a legitimidade da autoidentificaccedilatildeo do grupo como quilombola e de sua trajetoacuteria histoacuterica especiacutefica tendo em vista a natildeo ancestralidade de ocupaccedilatildeo do territoacuterio e a inexistecircncia de registros de escravidatildeo negra na regiatildeo de GuaiacuteraPR Este primeiro relatoacuterio foi anulado pelo INCRA bem como foi rejeitado pelos quilombolas Estas questotildees referentes agrave produccedilatildeo dos relatoacuterios seratildeo aprofundadas no capiacutetulo 2
18
hoje na comunidade em Guaiacutera constituiacuteam o eixo da reivindicaccedilatildeo de uma
identidade quilombola
Tendo em vista a natildeo aprovaccedilatildeo do primeiro relatoacuterio eacute soacute a partir do
segundo estudo publicado em 2012 que a identidade quilombola do grupo seraacute
reconhecida e sustentada teoacuterica e etnograficamente Com este estudo a anaacutelise natildeo
seraacute mais baseada em interpretaccedilotildees substancializadas por meio de estereoacutetipos e
substratos culturais Neste debate travado dentro do procedimento administrativo do
INCRA a especificidade da experiecircncia histoacuterica da trajetoacuteria de movimento destas
famiacutelias negras foi uma questatildeo central para ambos os relatoacuterios antropoloacutegicos No
entanto as anaacutelises foram opostas o primeiro entendeu que a identidade do grupo
quilombola natildeo era legiacutetima e estava sendo forjada enquanto o segundo afirmou que
o processo de migraccedilatildeo consistia em mecanismo de resistecircncia agrave experiecircncia de
opressatildeo histoacuterica sofrida
A reivindicaccedilatildeo territorial do grupo no acircmbito deste procedimento
administrativo eacute a ampliaccedilatildeo do que restou da aacuterea que adquiriram em GuaiacuteraPR
por meio de anos de trabalho 85 alqueires onde vivem atualmente em meacutedia vinte
e cinco pessoas (sete famiacutelias)10 A conquista desta aacuterea possibilitou a manutenccedilatildeo
da coesatildeo e da identidade dos grupos familiares que haviam se deslocado de Minas
Gerais Importante ressaltar neste sentido que o acesso agrave terra eacute um instrumento
fundamental para a reproduccedilatildeo fiacutesica econocircmica social e cultural do grupo de modo
que seja viaacutevel a manutenccedilatildeo de uma forma de vida especiacutefica Apesar de poucos
moradores efetivos atualmente na aacuterea a reinvindicaccedilatildeo pela ampliaccedilatildeo territorial eacute
estimada a partir da amplitude de moradores potenciais pois contempla
principalmente a expectativa de retorno de familiares que moraram em GuaiacuteraPR
mas que em algum momento tiveram que se deslocar novamente
Tomando o tema do movimento como eixo desta dissertaccedilatildeo a histoacuteria do
grupo quilombola Manoel Ciriaco dos Santos seraacute pensada atraveacutes de uma linha que
desenha o caminhar constitutivo da identidade do grupo (INGOLD 2007) Esta linha
os conecta segundo suas narrativas apontam desde Minas Gerais no tempo da
escravidatildeo ateacute Guaiacutera no presente e segue se ramificando no movimento das
famiacutelias que continuaram se deslocando A opccedilatildeo deste recorte temaacutetico eacute fruto de
10 Este nuacutemero variou durante o periacuteodo de trabalho de campo apontando para a continuidade das dinacircmicas de movimento
19
uma sistematizaccedilatildeo que se demonstrou coerente com base na etnografia realizada e
que retrata uma escolha de anaacutelise como autora mas que principalmente emerge
no processo dialoacutegico com os sujeitos de pesquisa
i ndash Estrutura dos capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo ldquoIdentidade em movimentordquo busco analisar como os
processos de deslocamento vivenciados por essas famiacutelias no sentido MG↦SP↦PR
satildeo por elas articulados em termos de dinacircmicas constitutivas da resistecircncia
quilombola uma vez que as experiecircncias de fixaccedilatildeo remetem sobretudo agrave exclusatildeo
social e a relaccedilotildees de preconceito racial Busco refletir sobre como os membros do
grupo de Guaiacutera sentem-se fortemente vinculados e unidos por meio das memoacuterias
construiacutedas sobre a origem mineira e sobre a trajetoacuteria de deslocamentos O sentido
de unidade criado por estas famiacutelias eacute tambeacutem consequecircncia de sua inserccedilatildeo em
Guaiacutera em um contexto considerado por eles como adverso tendo em vista que o
municiacutepio foi colonizado por descendentes de europeus a partir de um vieacutes
modernizador sendo atualmente marcado pelos interesses do agronegoacutecio
Situaccedilotildees de discriminaccedilatildeo racial satildeo constantemente relatadas pelos quilombolas na
interaccedilatildeo com os italianos e alematildees proprietaacuterios vizinhos no bairro rural onde se
localiza a comunidade
O acionamento da identidade quilombola os faz reforccedilar a importacircncia das
narrativas de memoacuteria sobre a regiatildeo de origem do grupo em Minas Gerais o
municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute bem como sobre a chegada das famiacutelias em
GuaiacuteraPR Satildeo memoacuterias elaboradas a partir de um sentimento de continuidade
expresso na ecircnfase atribuiacuteda agraves dificuldades de sobrevivecircncia e agrave busca pela
superaccedilatildeo do sofrimento Esta experiecircncia de estigmatizaccedilatildeo social e racial passa a
ser positivada internamente atraveacutes do autorreconhecimento como quilombolas o
qual cria uma ruptura com a experiecircncia de silenciamento anterior A inserccedilatildeo no
movimento quilombola fez com que o grupo se colocasse em uma nova rede de
relaccedilotildees com agentes externos Adir na posiccedilatildeo de presidente da Associaccedilatildeo
Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) passou a realizar
viagens para encontros e debates sobre a temaacutetica quilombola o que o construiu
como lideranccedila e abriu espaccedilo para o pronunciamento puacuteblico sobre a proacutepria histoacuteria
20
e identidade A possibilidade destas viagens como a que foi realizada por Adir para
Brasiacutelia no Distrito Federal em novembro de 2014 na qual o acompanhei coloca-os
novamente em movimento agora de circulaccedilatildeo em acircmbito poliacutetico
A religiosidade do grupo tambeacutem seraacute abordada no primeiro capiacutetulo na
medida em que eacute permeada por dinacircmicas de movimento (a) deslocamentos
concretos como as viagens religiosas de pagamentos de promessas a saiacuteda de
Manoel Ciriaco de Minas Gerais depois de ter sido viacutetima de agressatildeo maacutegica e a
saiacuteda do filho de Manoel Ciriaco Antocircnio do siacutetio em GuaiacuteraPR para ir morar na
cidade por conta do preconceito religioso que sofriam no bairro rural ldquoMaracaju dos
Gauacutechosrdquo e (b) movimentos natildeo concretos como praacuteticas de devoccedilatildeo cotidianas que
os colocam em relaccedilatildeo com santos Orixaacutes entidades espiacuteritos almas abrindo
assim a possibilidade de se deslocarem entre mundos conectando tempos espaccedilos
linguagens possibilitando curas e orientaccedilotildees etc Aleacutem disso a religiosidade aponta
para dinacircmicas de continuidade marcadas pelas imbricaccedilotildees entre um catolicismo
negro e experiecircncias proacuteprias do universo da umbanda Nas narrativas sobre este
tema tambeacutem eacute possiacutevel perceber a convergecircncia entre as dimensotildees religiosa racial
e social considerando que as praacuteticas das religiotildees afro-brasileiras satildeo natildeo soacute
desvalorizadas mas socialmente condenadas Esta dimensatildeo cultural religiosa ndash que
os conecta com sua origem mineira ndash tende a natildeo ser enfatizada publicamente pelos
membros da comunidade como um sinal diacriacutetico opccedilatildeo que parece permeada pelo
receio de que isso possa ser usado para reforccedilar um lugar de marginalidade e
estigmatizaccedilatildeo para o grupo
No segundo capiacutetulo ldquoIdentidade quilombola e relatoacuterios antropoloacutegicosrdquo
analiso o novo voacutertice de movimento presente na trajetoacuteria coletiva do grupo que se
consolidou a partir de sua inserccedilatildeo no acircmbito poliacutetico como sujeito de direitos coletivo
o autorreconhecimento como quilombolas A inserccedilatildeo no campo de reivindicaccedilatildeo
como quilombolas colocou-os novamente nos termos de Adir diante de uma longa
caminhada Muitos percalccedilos foram enfrentados no processo de regularizaccedilatildeo
quilombola pelo INCRA ainda em tracircmite tendo em vista os questionamentos
levantados pelo primeiro relatoacuterio antropoloacutegico produzido em 2010 Eacute muito faacutecil
iniciar uma conversa de horas com Adir e Joaquim presidente e vice da ACONEMA
a respeito de suas criacuteticas e decepccedilotildees em relaccedilatildeo aos conflitos gerados a partir do
iniacutecio das atividades do INCRA junto agrave comunidade Apesar dos descontentamentos
21
e frustraccedilotildees continuam a alimentar a esperanccedila de uma resoluccedilatildeo futura que lhes
garanta a regularizaccedilatildeo territorial
A pesquisa para elaboraccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico ainda em
2009 havia sido liderada pelo professor da Universidade Estadual do Oeste do
Paranaacute (UNIOSTE) Antocircnio Pimentel Pontes Filho o qual questionou a legitimidade
das narrativas quilombolas tomando-as como oportunistas11 O fato de o grupo natildeo
ter uma relaccedilatildeo ancestral com o territoacuterio atual natildeo apresentar informaccedilotildees
consideradas consistentes sobre a existecircncia de ancestrais escravizados e natildeo se
adequar ao modelo de quilombo tiacutepico foi considerado como criteacuterio para negar a
legitimidade da identidade quilombola de modo que foram entendidos ldquoapenasrdquo como
um grupo de trabalhadores rurais negros O primeiro relatoacuterio ndash apoacutes pedidos de
alteraccedilotildees solicitados pelo INCRA mas desconsiderados pelo antropoacutelogo
responsaacutevel ndash foi rejeitado tanto pelos quilombolas quanto pelo INCRA O
desencadeamento de conflitos com os gauacutechos proprietaacuterios vizinhos agrave comunidade
quilombola a situaccedilatildeo de isolamento e a perda de relaccedilotildees de trabalho que
mantinham nas propriedades do entorno foram algumas das consequecircncias geradas
pelo iniacutecio do trabalho do INCRA com o grupo a partir da atuaccedilatildeo da primeira equipe
de pesquisadores
Um segundo relatoacuterio foi entatildeo realizado por uma nova equipe em 2012 a
partir da contrataccedilatildeo pelo INCRA via sistema de licitaccedilatildeo puacuteblica (pregatildeo eletrocircnico)
da empresa Terra Ambiental Com a possibilidade de reelaboraccedilatildeo da pesquisa
antropoloacutegica o historiador da segunda equipe de pesquisadores Cassius Cruz
deslocou-se ateacute Minas Gerais a fim de pesquisar sobre as comunidades quilombolas
da regiatildeo de origem do grupo A partir da memoacuteria coletiva indicada pelo grupo em
Guaiacutera12 muitos pontos em comum com as narrativas dos quilombolas da regiatildeo
mineira foram identificados as referecircncias a personagens histoacutericos comuns a
memoacuteria da estrateacutegia de habitaccedilatildeo em lapas de pedra (tipo de moradia construiacuteda
dentro de cavernascasa de pedra) a mobilidade espacial como processo de
formaccedilatildeo de algumas das comunidades quilombolas mineiras a tendecircncia
11 Este mesmo antropoacutelogo em 2014 foi contratado pelos produtores rurais da regiatildeo para fazer um contralaudo em contestaccedilatildeo ao relatoacuterio antropoloacutegico da FUNAI para a demarcaccedilatildeo de uma terra indiacutegena Avaacute-Guarani em GuaiacuteraPR 12 Conforme me esclareceu Cassius Cruz nenhum quilombola pocircde acompanha-lo nesta oportunidade para a realizaccedilatildeo da pesquisa em Minas Gerais em decorrecircncia de falta de recursos previstos no contrato com o INCRA
22
endogacircmica dos casamentos bem como possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco entre a
Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos e a Comunidade Quilombola Vila
Nova localizada no municiacutepio de SerroMG O segundo relatoacuterio fundamentou-se
entatildeo na capacidade de manutenccedilatildeo da organizaccedilatildeo social do grupo em continuidade
com sua regiatildeo de origem que entre outros fatores geram o sentimento de
pertencimento comum e identificaccedilatildeo como quilombolas Com a aprovaccedilatildeo do 2ordm
relatoacuterio o reconhecimento da legitimidade da identidade do grupo finalmente ganhou
mais forccedila
Por fim esta possibilidade de buscar mais conhecimento sobre a histoacuteria dos
antepassados articulada por meio da pesquisa produzida pelo segundo relatoacuterio
antropoloacutegico impulsionou aos quilombolas de Guaiacutera e a mim junto com Cassius
Cruz ndash que foi por noacutes convidado para essa empreitada ndash a ir ateacute Minas Gerais com
o objetivo de seguir o caminho de volta da trajetoacuteria de deslocamentos dos
antepassados do grupo A pesquisa por noacutes realizada em Minas Gerais eacute o tema
central do terceiro capiacutetulo denominado ldquoEacute como se noacutes voltasse a paacutegina da nossa
vida do comeccedilordquo Foram duas viagens ateacute a regiatildeo mineira realizadas em marccedilo e
em junho de 2015 A pesquisa acabou entatildeo tornando-se uma etnografia nocircmade e
entrelaccedilando-se com a histoacuteria do grupo A linha de movimento deste grupo ateacute
Guaiacutera somada a sua inserccedilatildeo no movimento quilombola gerou assim um impulso
de reaproximaccedilatildeo no qual tambeacutem nos inserimos que pode ser interpretado na chave
tripla de (a) saiacuteda (b) afirmaccedilatildeo identitaacuteria e (c) retorno Esta linha no entanto natildeo
deve ser entendida como se fechando em um movimento circular mas se constituindo
como uma espiral jaacute que natildeo eacute possiacutevel retornar mais ao mesmo lugar de onde se
saiu tendo em vista que este lugar para o qual se quer voltar jaacute se transformou bem
como os sujeitos envolvidos
Assim o esforccedilo de pesquisa natildeo esteve focado na anaacutelise do grupo
quilombola como totalidade autocontida pois buscou compreender os fluxos e
relaccedilotildees que perpassam esta trajetoacuteria de movimento conectando pessoas e
experiecircncias espalhadas por diferentes locais (ARRUTI 2006 p 35) O trabalho de
campo ritual central na antropologia e parte constitutiva do arqueacutetipo do etnoacutegrafo
ganhou dessa forma contornos especiais Permitiu uma abordagem realizada com
23
os sujeitos de pesquisa a partir de sua historicidade13 de modo que a continuidade
dos movimentos empreendidos pelos quilombolas parece demonstrar a presenccedila de
dinacircmicas de distanciamentos e aproximaccedilotildees com a potencialidade de atualizaccedilatildeo
dos viacutenculos e relaccedilotildees mesmo apoacutes muito tempo de interrupccedilatildeo
Para que a viagem ateacute Minas Gerais pudesse atender os propoacutesitos dos
quilombolas de GuaiacuteraPR inclusive de fortalecimento identitaacuterio os irmatildeos Adir (46)
e Geralda (53) filhos de Manoel Ciriaco e tambeacutem lideranccedilas locais sugeriram que
antes de irmos ateacute Santo Antocircnio do ItambeacuteMG deveriacuteamos passar por Presidente
PrudenteSP Este municiacutepio faz parte da regiatildeo para onde desde a deacutecada de 1980
retornaram os seus irmatildeos mais velhos que jaacute haviam morado com seus pais no
municiacutepio proacuteximo em CaiabuSP Com a inclusatildeo de Presidente PrudenteSP em
nosso roteiro de viagem ateacute Minas Gerais iriam assim retraccedilar o caminho de seus
ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100) atraveacutes de seu trajeto de deslocamento
realizado nas deacutecadas de 19501960 agora no sentido inverso de GuaiacuteraPR ateacute
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Em Presidente PrudenteSP moram atualmente os quatro irmatildeos mais
velhos Olegaacuterio (78) Jovelina (73) Joatildeo Loriano (71) e Eurides (65) que nasceram
em Minas Gerais e acompanharam seu pai na trajetoacuteria de deslocamento ateacute
GuaiacuteraPR e depois nas deacutecadas de 19801990 estabeleceram-se no estado de Satildeo
Paulo regiatildeo na qual jaacute haviam morado entre a deacutecada de 19501960 antes
chegarem no estado do Paranaacute Dentre os irmatildeos Joatildeo Loriano seria a pessoa mais
indicada para nos acompanhar ateacute Minas Gerais conforme me explicaram Adir e
Geralda
Joatildeo Loriano nascido em 1944 foi o uacutenico filho que Manoel Ciriaco havia
deixado em Minas Gerais quando de laacute saiu em 1956 histoacuteria que conheceremos
mais a fundo no terceiro capiacutetulo O menino ficou aos cuidados de sua avoacute Izidora
(matildee de Manoel) que foi quem o criou desde quando tinha um mecircs e sete dias de
vida pois a matildee da crianccedila Maria Olinda primeira esposa de Manoel havia falecido
na sequecircncia de seu nascimento Manoel segundo relatam natildeo teria tido coragem
de levar o menino junto com ele para natildeo o separar de sua avoacute Izidora Em 1981
quando Joatildeo Loriano jaacute tinha 37 anos seu irmatildeo Antocircnio foi ateacute Santo Antocircnio do
13 ldquoAssim a etnografia histoacuterica converge com a chamada microhistoacuteria justamente ao adotar como
procedimento acompanhar o fio de um destino particular e com ele a multiplicidade de espaccedilos de tempos e de relaccedilotildees em que se inscreverdquo (ARRUTI 2006 p 36)
24
ItambeacuteMG e conseguiu lhe achar convidando-o para ir com ele embora para o
Paranaacute Antocircnio entatildeo levou Joatildeo e sua famiacutelia esposa e filhos para GuaiacuteraPR
regiatildeo em que viveram ateacute 1992 quando decidem residir em Presidente PrudenteSP
Sendo Joatildeo o filho de Manoel que mais tempo viveu em MG ele seria afinal de
contas a pessoa que poderia ter mais facilidade para caccedilar os parentes que
permaneceram na regiatildeo mineira e com os quais perderam contato nas uacuteltimas
deacutecadas Seu Joatildeo quando por noacutes interpelado aceitou o convite para nos
acompanhar na viagem com muito entusiasmo depois de trinta e quatro anos que de
laacute havia saiacutedo sem nunca mais ter conseguido retornar
A intensidade das emoccedilotildees despertadas pelos encontros entre parentes que
jaacute natildeo se sabiam mais vivos ou que ainda natildeo se conheciam contagiou a todos
durante nossa estadia em Santo Antocircnio do Itambeacute e no municiacutepio vizinho SerroMG
Isso permitiu conversas e entrevistas que soacute poderiam ter sido geradas neste
entrelaccedilamento de lugares tempos e pessoas instaurando um regime de
temporalidade especial no qual o presente o passado e o futuro destas famiacutelias
ganhavam novos sentidos ndash concomitantemente As circunstacircncias nas quais estes
depoimentos foram produzidos e colhidos permitiam que a cacircmera de viacutedeo ligada a
maior parte do tempo ou mesmo o gravador de voz natildeo causassem estranhamento
agraves pessoas ndash quando tudo o que se passava estava contido em um momento uacutenico
que deveria ser registrado ndash nestes encontros que marcaram a histoacuteria de vida dessas
pessoas bem como a minha e a de Cassius
De alguma forma o futuro da comunidade quilombola em GuaiacuteraPR era o
retorno a Santo Antocircnio do ItambeacuteMG a esse passado depois de deacutecadas de
interrupccedilatildeo do contato efetivo Este anseio pelo retorno agrave origem que remete a uma
certa busca pela ldquocomprovaccedilatildeordquo do viacutenculo da comunidade com sua ancestralidade
mineira partiu da proacutepria comunidade no bojo de um processo controverso de
regularizaccedilatildeo territorial mas natildeo de uma demanda ou de uma opccedilatildeo teoacuterica da minha
pesquisa Deve-se levar em conta que a autoidentificaccedilatildeo de grupos como
quilombolas natildeo demanda a demonstraccedilatildeo de viacutenculos genealoacutegicos com ancestrais
escravizados como veremos com calma no segundo capiacutetulo Este modo de
25
compreensatildeo construiria um sentido de origem histoacuterica muito limitado que natildeo estaacute
refletido na regulamentaccedilatildeo do Decreto Federal 48872003 em vigor14
A primeira viagem de quinze dias em marccedilo de 2015 oportunizou que os
quilombolas se tornassem pesquisadores e agentes da construccedilatildeo da sua proacutepria
narrativa histoacuterica Enfim o passado pocircde ocupar o importante papel que jaacute lhe era
conferido como quando os quilombolas de Guaiacutera reforccedilam a continuidade e natildeo a
ruptura em suas construccedilotildees discursivas mesmo que tal continuidade fosse
constituiacuteda por meio de dinacircmicas de movimento e mudanccedila Haacute linearidade portanto
mas natildeo aquela da linha reta
Com as oportunidades promovidas pelas viagens novos caminhos se
abriram A irmatilde de Manoel Ciriaco Ana Raimunda que encontramos morando no
municiacutepio de SerroMG aos cuidados de vizinhos decidiu que queria morar perto da
famiacutelia a convite de sua sobrinha filha de Manoel Ciriaco Jovelina que mora
atualmente em Presidente PrudenteSP Esta decisatildeo de Dona Ana Raimunda
mesmo aos oitenta e sete anos eacute significativa para apontar que o movimento das
famiacutelias natildeo implicou em rompimentos definitivos dos viacutenculos como eacute comum na
regiatildeo mineira do ldquoAlto Vale do Jequitinhonhardquo (GALIZONI 2002)15 mesmo cinquenta
e nove anos depois que Manoel saiu de Minas com parte de sua famiacutelia
Eu e Cassius fomos entatildeo em junho trecircs meses depois da primeira viagem
a Minas Gerais em uma raacutepida aventura de quatro dias Nosso objetivo foi
acompanhar D Jovelina (73) para que buscasse sua tia Ana Raimunda no SerroMG
e D Maria das Dores (70) ndash esposa de Seu Joatildeo Loriano que saiu de Santo Antocircnio
do ItambeacuteMG para acompanha-lo em 1982 ndash para rever suas duas irmatildes ndash D
Zulmira (73) e D Regina (77) ndash que tambeacutem encontramos e fizemos contato na
primeira viagem em marccedilo de 2015 A elas eu e Cassius haviacuteamos prometido que
ajudariacuteamos a organizar estes reencontros Por fim realizei mais uma uacuteltima viagem
de campo para Presidente PrudenteSP em agosto de 2015 para entrevistar D Ana
Raimunda depois de dois meses que jaacute estava morando com sua sobrinha D
Jovelina
14 Segundo seu artigo 2o ldquoconsideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos para os
fins deste Decreto os grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo 15 Regiatildeo muito proacutexima a Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
26
ii ndash Notas sobre a pesquisa
Importante neste momento finalizada a siacutentese dos temas principais dos
capiacutetulos desta dissertaccedilatildeo refletir sobre como foi a minha entrada em campo as
condiccedilotildees e as escolhas da pesquisa O meu contato com o grupo se iniciou pelo
nuacutecleo de famiacutelias em Guaiacutera trecircs anos antes da presente pesquisa realizada entre
2014 e 2015 Nos anos de 2011 e 2012 atuei como assessora juriacutedica em um setor
especializado em direitos humanos do Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute
(MPPR) em decorrecircncia da minha formaccedilatildeo como bacharel em direito Tal setor tinha
como parte de suas atividades a articulaccedilatildeo com as comunidades quilombolas do
estado visando mediar as suas demandas por acesso a direitos junto aos oacutergatildeos
puacuteblicos Tornando-me uma referecircncia enquanto pessoa que trabalha dentro do
Estado junto ao grupo busquei com a pesquisa de mestrado um reposicionamento
em campo saindo da figura de agente estatal que traz a resposta para construir
relaccedilotildees de horizontalidade no conviacutevio cotidiano
Para mim o reposicionamento tambeacutem tinha uma dimensatildeo pessoal jaacute que
eu ainda vivo essa experiecircncia de transiccedilatildeo profissional entre o direito e a
antropologia Um novo caminho que em muito tem enriquecido e desafiado a minha
formaccedilatildeo inicial a qual tambeacutem influenciou na direccedilatildeo dos meus interesses de
pesquisa Tal interesse aparece por exemplo na anaacutelise do processo de
regularizaccedilatildeo territorial quilombola em suas relaccedilotildees com o universo juriacutedico
problematizado especialmente no capiacutetulo 2 Interessante observar neste sentido
que se a identidade do grupo natildeo eacute produzida a partir do Estado por outro lado ela
teraacute que ser modulada com o Estado no processo de reconhecimento enquanto
sujeito poliacutetico e cultural especiacutefico (MARCUS 1991)
Sobre o tema do processo no INCRA as entrevistas selecionadas foram na
maioria realizadas com os homens mais envolvidos com a poliacutetica e a representaccedilatildeo
puacuteblica do grupo A predominacircncia da voz masculina no segundo capiacutetulo natildeo reflete
no entanto a caracteriacutestica da pesquisa em geral Em todos os lugares que a pesquisa
percorreu seja em GuaiacuteraPR Presidente PrudenteSP e Santo Antocircnio do Itambeacute ou
SerroMG enquanto pesquisadora mulher minha inserccedilatildeo se deu pelo universo
feminino o que me possibilitou uma reflexividade muacutetua com essas mulheres
27
quilombolas Por elas fui recebida de modo muito hospitaleiro e natildeo demorei a criar
viacutenculos
Ao fazer da subjetividade um meio de conhecimento a antropologia evidencia
como os ldquodadosrdquo estatildeo prenhes de representaccedilotildees e satildeo a proacutepria anaacutelise
construiacutedos no corte possiacutevel do etnoacutegrafo A reflexatildeo etnograacutefica constroacutei portanto
aquilo que descreve bem como constroacutei o modo de relacionamento que produz o
conhecimento pois natildeo haacute um real que jaacute estaacute laacute no campo O tema e os recortes do
trabalho se delinearam como resultado da construccedilatildeo da proacutepria etnografia por isso
soacute puderam ser definidos no final da pesquisa o que prova que sair a campo vale a
pena (CALAVIA SAEZ 2001 597-599) Essas experiecircncias etnograacuteficas satildeo antes
de tudo experiecircncias de vida perpassadas por relaccedilotildees de afetividade e mediadas
pela compreensatildeo de que a expressatildeo da identidade ganha contornos especiacuteficos
conforme os contextos com os quais o grupo interage (MELLO 2012 p 117)
Em Guaiacutera realizei trabalho de campo por periacuteodos equivalentes em dois locais
(siacutetio e Vila Eletrosul) somando quarenta dias No periacuteodo em que estive no ldquosiacutetiordquo
(como eles mesmos denominam o local onde fica a ldquocomunidaderdquo16) foi importante eu
ter sido hospedada na casa de Joaquim e Eva e natildeo na casa de Adir presidente da
associaccedilatildeo pois isso me possibilitou expandir e aprofundar o contato com outras
pessoas aleacutem da lideranccedila com quem jaacute tinha mais proximidade desde a eacutepoca da
minha atuaccedilatildeo no Ministeacuterio Puacuteblico Eva minha anfitriatilde e suas duas filhas moccedilas
Jaqueline (20) e Janaina (14) foram as minhas principais referecircncias de conviacutevio
Quando natildeo estive no siacutetio fiquei hospedada na casa do casal Geralda e
Guaraacute (apelido de Antocircnio) em uma vila localizada na periferia de Guaiacutera
denominada Vila Eletrosul A casa de Geralda tem um importante papel para seus
irmatildeos que moram no siacutetio quando eles precisam resolver questotildees na cidade Deste
modo minha estadia na Vila Eletrosul me permitiu visualizar as dinacircmicas de
interaccedilatildeo entre urbano e rural o contexto perifeacuterico do municiacutepio de Guaiacutera aleacutem de
me aprofundar na religiosidade umbandista jaacute que Geralda e Guaraacute satildeo os dois
membros do grupo que efetivamente participam de um terreiro de Umbanda
localizado no municiacutepio vizinho Terra Roxa Ademais Geralda eacute benzedeira e
16 Deve-se levar em conta a criacutetica em relaccedilatildeo ao fato de que o termo aciona ldquoum estereoacutetipo de comunidade relativamente igualitaacuteria harmocircnica coesa solidaacuteria com projetos poliacuteticos comuns (em siacutentese uma visatildeo romacircntica ndash e pode-se dizer cristatilde ndash de comunidade)rdquo (PORTO 2012 41) Atualmente este termo se tornou um conceito ecircmico
28
mobiliza uma forte rede de reciprocidade com seus vizinhos sendo um referencial
local de sabedoria conselhos e cura
Joaquim (55) Geralda (52) Adir (45) e Joatildeo Aparecido (42) satildeo irmatildeos filhos
de Manoel Ciriaco dos Santos e sua segunda esposa Ana Rodrigues dos Santos o
casal fundador da comunidade em Guaiacutera hoje jaacute falecidos Estes quatro irmatildeos tecircm
um importante papel na manutenccedilatildeo do grupo quilombola atualmente satildeo os dentre
os herdeiros do ldquoVelho Maneacuterdquo os que permaneceram na propriedade que foi
comprada por ele (e no caso de Geralda moradora da periferia do mesmo municiacutepio
que permanece com viacutenculos cotidianos com a famiacutelia) Destes quatro irmatildeos os trecircs
homens moram no siacutetio e tocam a produccedilatildeo da horta e outros plantios aleacutem da criaccedilatildeo
de pequenos animais estando diretamente engajados no projeto de manutenccedilatildeo da
comunidade quilombola com a geraccedilatildeo de renda no proacuteprio territoacuterio e com o
processo de titulaccedilatildeo no INCRA Outro nuacutecleo familiar que permanece na comunidade
satildeo os trecircs filhos (com seus cocircnjuges e filhos) e a viuacuteva de Joseacute Maria (irmatildeo mais
velho de Joaquim Geralda Adir e Joatildeo Aparecido) que faleceu em 2009 durante os
conflitos da comunidade com os vizinhos gauacutechos Mais duas famiacutelias durante o
periacuteodo que estive fazendo trabalho de campo na comunidade eram de agregados
ao nuacutecleo familiar por meio do casamento entre Adir e Solange Jaqueline ndash enteada
de Adir que mora com seus trecircs filhos pequenos ndash e D Luzia sogra de Adir com o
marido e um de seus netos
Joatildeo Aparecido o irmatildeo caccedilula por exemplo preferiu se separar da esposa
que se mudou para Presidente PrudenteSP Kelly com os dois filhos do casal em
busca de trabalho do que ir com ela e deixar a comunidade Sobre esta possibilidade
Joatildeo Aparecido comentou o seguinte
Esta luta aqui natildeo daacute pra deixar o Adir e o Joaquim Essa luta que noacutes viemos hoje abandonar assim tambeacutem natildeo daacute neacute Dandara Falei ldquodeixar eles Natildeo natildeo vira natildeo noacutes comeccedilamos noacutes temos que ir ateacute o final e meu pai sofreu muito pra comprar esse pedacinho de chatildeo aquirdquo Aiacute eu falei assim ldquocomeccedila a sair um sair o outro daqui uns dias aiacute acabou a comunidaderdquo
Estes quatro irmatildeos filhos de Manoel Ciriaco ndash que continuaram morando na
comunidade em GuaiacuteraPR ndash mantecircm contato por telefone celular aleacutem de algumas
visitas esparsas com seus quatro irmatildeos mais velhos que moram em Presidente
PrudenteSP como citado acima Laacute eles tecircm mais uma irmatilde tambeacutem filha de Manoel
e Ana Eurides (64) e aleacutem dos trecircs irmatildeos que satildeo filhos do primeiro casamento de
29
Manoel Ciriaco dos Santos com Maria Olinda Olegaacuterio (79) Jovelina (74) e Joatildeo
Loriano (71) Os quatro irmatildeos que moram no municiacutepio paulista satildeo nascidos em
Minas Gerais Santo Antocircnio do Itambeacute antes de seu pai decidir sair de sua terra natal
e iniciar uma trajetoacuteria de deslocamentos
Para aleacutem do trabalho de campo em Guaiacutera o processo de mapeamento
desta rede de parentesco realizado por meio de duas viagens a Minas Gerais foi fruto
da minha parceria de pesquisa com Cassius Cruz Ele doutorando em ciecircncias sociais
na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) ndash aleacutem de ter participado da
produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico publicado em 2012 ndash neste momento
pesquisa em sua tese o tema da mobilidade e das redes sociais de parentesco
quilombola Com a confluecircncia dos temas de pesquisa e o seu compromisso pessoal
de se aprofundar no estudo por ele realizado anteriormente em Minas Gerais sobre a
Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos Cassius se interessou em somar
esforccedilos para viabilizar que os proacuteprios quilombolas pudessem ir em busca de seus
parentes e assim realizar o objetivo do grupo de compreender melhor a trajetoacuteria de
seus antepassados
O fato no entanto das viagens para Minas Gerais soacute terem se concretizado
em marccedilo e junho de 2015 apoacutes a minha banca de qualificaccedilatildeo fez com que natildeo
fosse possiacutevel o aprofundamento necessaacuterio diante da riqueza do material de
pesquisa coletado e da intensidade das experiecircncias que este trabalho de campo me
proporcionou o que tambeacutem demanda uma maturaccedilatildeo para a posterior reflexatildeo
atraveacutes da escrita Assim de um uacuteltimo capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo acredito que este
material possa vir a se transformar no iniacutecio de uma nova pesquisa que poderaacute ser
desdobrada posteriormente e que me permitiraacute a atenccedilatildeo e o cuidado que esta
experiecircncia de trabalho de campo merece
Enfim a escrita desta dissertaccedilatildeo colocou-me diante do desafio de lidar com
o intervalo entre a pesquisa etnograacutefica e o texto antropoloacutegico o que confirma a
dimensatildeo parcial da anaacutelise e o caraacuteter inesgotaacutevel da experiecircncia Importante
ressaltar neste sentido a desconstruccedilatildeo de um lugar de objetividade na teoria
antropoloacutegica para reconhecer o texto como uma anaacutelise perspectiva relacional e
contextual17 A partir da experiecircncia deste grupo quilombola busco analisar nas
17 A criacutetica de Geertz por exemplo direciona-se a certas estrateacutegias de escrita em que o antropoacutelogo
natildeo se coloca no texto ndash ao construiacute-lo como se sua experiecircncia pudesse ser transposta em uma ldquojanela de cristalrdquo revelando supostamente o mundo laacute fora como ele ldquorealmente eacuterdquo Tal estrateacutegia buscaria
30
paacuteginas que seguem como a construccedilatildeo de um ldquonoacutes quilombolasrdquo neste caso
especiacutefico aponta para dinacircmicas de movimento que natildeo dissolvem mas ao
contraacuterio sustentam o pertencimento coletivo
credibilidade em relaccedilatildeo a questionamentos fundados em paracircmetros objetivistas pautados em criteacuterios das ciecircncias exatas mas para Geertz a antropologia estaria muito mais proacutexima dos ldquodiscursos literaacuteriosrdquo do que dos ldquocientiacuteficosrdquo (GEERTZ 2009)
31
1 IDENTIDADE EM MOVIMENTO
11 SANTO ANTOcircNIO DO ITAMBEacute E GUAIacuteRA DOIS PONTOS DE UMA LINHA
O percurso de deslocamento das famiacutelias negras em questatildeo pode ser
pensado como uma linha que conecta Santo Antocircnio do ItambeacuteMG agrave GuaiacuteraPR
distantes aproximadamente mil e seiscentos quilocircmetros O conceito de ldquolinhardquo aqui
trazido tem inspiraccedilatildeo nas contribuiccedilotildees do antropoacutelogo britacircnico Tim Ingold como
seraacute melhor abordado no item 12 O que eacute importante retermos por enquanto eacute que
a ideia de linha aqui natildeo remete a uma reta mas a uma trajetoacuteria de movimento que
tem uma dinacircmica e um traccedilado especiacuteficos
Em seu livro Lines a brief history o autor se propotildee a realizar uma
ldquoantropologia comparativa da linhardquo e delinear um campo de reflexatildeo que aglutina
aspectos das atividades humanas cotidianas como falar gesticular e caminhar ndash
subsumidos pela caracteriacutestica comum de geraccedilatildeo de linhas (INGOLD 2007) A partir
do caminhar o deslocamento constitui uma linha que pode ser tanto aquela que
descobre o seu percurso enquanto o caminho eacute percorrido ndash ou seja uma jornada que
natildeo tem um comeccedilo ou um fim oacutebvios ndash em contraste com um outro tipo de linha a
linha reta ndash que faz a conexatildeo entre pontos e que estaacute fragmentada em destinaccedilotildees
sucessivas preacute-determinadas como uma sequecircncia de compromissos
assemelhando-se a um mapa de rota onde se vecirc tudo de uma vez (2007 p 72-103)
No caso do grupo em questatildeo a trajetoacuteria de deslocamento estaacute muito mais proacutexima
da primeira caracterizaccedilatildeo de linha como jornada na qual o movimento se desenvolve
como processo de descoberta e de interaccedilatildeo como no caminho de Minas Gerais ateacute
o Paranaacute passando antes pelo estado de Satildeo Paulo
Eacute em GuaiacuteraPR que parte de um grupo maior de parentes ndash composto por
unidades familiares que estatildeo espalhadas por todo canto ndash passou a se reconhecer
como quilombola e a refletir sobre sua proacutepria trajetoacuteria histoacuterica Alguns dados
estatiacutesticos nos ajudam a compreender o perfil atual de GuaiacuteraPR e a histoacuteria da
inserccedilatildeo do grupo quilombola neste municiacutepio De acordo com o uacuteltimo censo de 2010
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) Guaiacutera tem uma populaccedilatildeo
32
de 30704 pessoas18 Do total 28206 habitantes estatildeo na aacuterea urbana ou seja 92
da populaccedilatildeo e apenas 2498 8 na aacuterea rural (IPARDES 2013 p10) Em termos
raciais19 apenas 269 (828 pessoas) da populaccedilatildeo se declarou como ldquopretardquo
3658 (11233 pessoas) como ldquopardardquo 166 (512 pessoas) como ldquoindiacutegenardquo e
217 (669 pessoas) como ldquoamarelardquo A predominacircncia da populaccedilatildeo que se declarou
ldquobrancardquo que representa quase 57 do total (17462 pessoas) aponta para a poliacutetica
de colonizaccedilatildeo e povoamento ocorrido no iniacutecio do seacuteculo XX marcado pelo estiacutemulo
agrave vinda de colonos da regiatildeo sul principalmente descendentes de italianos e alematildees
FIGURA 1 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Guaiacutera na divisa com o Paraguai e o Mato Grosso do Sul FONTE Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 718 [p 25]
A expansatildeo dos colonos e das colonizadoras gauacutechas em direccedilatildeo agrave Guaiacutera
ocorreu a partir da deacutecada de 1930 ndash viabilizada como poliacutetica de Estado ndash sob o
slogan de ldquoMarcha para o Oesterdquo Este estiacutemulo estatal veio com o entatildeo Presidente
da Repuacuteblica Getuacutelio Vargas que tomou como base a ideia de ldquovazio demograacuteficordquo e
a referecircncia ao ldquoespiacuterito do bandeiranterdquo Tal poliacutetica tinha como um de seus objetivos
a nacionalizaccedilatildeo da chamada ldquofronteira guaranirdquo (regiatildeo fronteiriccedila entre Brasil
Paraguai e Argentina) que estava ainda dominada pelos interesses estrangeiros por
18 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em
httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=410880ampsearch=parana|guaira Acesso em 140115 19 Dados sobre Populaccedilatildeo Censitaacuteria - Cor Raccedila disponiacuteveis em httpwwwipardesprgovbrimpindexphp Acesso em 140115 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpcidadesibgegovbrxtrastemasphplang=ampcodmun=410880ampidtema=91ampsearch=parana|guaira|censo-demografico-2010-resultados-da-amostra-religiao- Acesso em 20022015
33
meio do sistema de exploraccedilatildeo da erva-mate desenvolvido na regiatildeo entre o final do
seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX20
Esta poliacutetica de colonizaccedilatildeo significou o avanccedilo sobre o territoacuterio da
populaccedilatildeo nativa da etnia Guarani que jaacute tinha sido submetida desde o seacuteculo XVI
agraves reduccedilotildees jesuiacuteticas21 ao processo de miscigenaccedilatildeo e ao trabalho escravo nas
obrages O povoamento da regiatildeo no seacuteculo XX reforccedilou assim o processo de
desterritorializaccedilatildeo desta populaccedilatildeo cujos desdobramentos se refletem nos conflitos
entre os proprietaacuterios do municiacutepio e o povo indiacutegena autodenominado ldquoAvaacute-guaranirdquo22
que vieram agrave tona no iniacutecio do seacuteculo XXI Nos uacuteltimos anos houve um processo de
forte mobilizaccedilatildeo e retorno desta populaccedilatildeo agrave Guaiacutera e ao municiacutepio vizinho Terra
Roxa com o objetivo de reivindicar a demarcaccedilatildeo de um territoacuterio guarani na regiatildeo
Como eacute possiacutevel observar no censo de 2010 ao qual fizemos referecircncia
acima 166 da populaccedilatildeo guairense (512 pessoas) se declarou ldquoindiacutegenardquo o que
aponta para este processo de reorganizaccedilatildeo das famiacutelias ldquoavaacute-guaranirdquo Desde o final
dos anos 1980 tais famiacutelias passam a ldquose reagrupar e organizar novamente em
aldeamentos os tekoha em busca de reconstituir o espaccedilo onde eacute possiacutevel viver
segundo o modo de ser guaranirdquo (OLIVEIRA 2014 p 167)23
20 As obrages foram um sistema de exploraccedilatildeo da erva-mate e madeira tiacutepico da regiatildeo entatildeo
dominada por interesses hispano-platinos que utilizou o trabalho escravo da populaccedilatildeo nativa guarani Tais empreendimentos se beneficiavam do isolamento estrateacutegico da regiatildeo o que evitava a possibilidade de questionamento da violecircncia na qual se dava o modo de exploraccedilatildeo do trabalho Neste contexto a Companhia Mate Laranjeira exercia importante papel econocircmico e eacute considerada como a fundadora do distrito de Guaiacutera em 1902 que se torna sua sede Neste distrito a empresa construiu um porto por meio do qual escoava os sacos de erva-mate e as toras de madeira extraiacutedas (WACHOWICZ 1987 p 52 141) 21 O histoacuterico de colonizaccedilatildeo do municiacutepio de Guaiacutera remonta ao seacuteculo XVI quando a regiatildeo do antigo
ldquoGuairaacuterdquo jaacute era alvo do interesse dos colonizadores Entre 1608 e 1767 foram fundadas na regiatildeo mais de uma dezena de reduccedilotildees jesuiacuteticas sendo uma das mais importantes a ldquoCiudad Real del Guayraacuterdquo criada em 1554 Em 1600 ldquoas autoridades administrativas espanholas sediadas em Assunccedilatildeo acham por bem transformar a Ciudad Real em sede da Proviacutencia de Guairaacute () Eacute atraveacutes da Proviacutencia del Guairaacute e pela atividade missioneira dos jesuiacutetas que a Coroa espanhola amplia a sua presenccedila e o seu campo de atuaccedilatildeo no atual Oeste paranaenserdquo (COLODEL 2008 p 38) Nesta localidade atualmente estaacute localizado o municiacutepio de Terra Roxa vizinho ao municiacutepio de Guaiacutera 22 A estimativa atual da lideranccedila Guarani cacique Ilson Soares conforme me relatou eacute que em torno
de mil guaranis residem na regiatildeo de Guaiacutera e Terra Roxa 23 ldquoDesta forma no final dos anos 1990 intensifica-se o processo de judicializaccedilatildeo das ocupaccedilotildees
indiacutegenas inicialmente com accedilotildees movidas pela Itaipu seguida de inuacutemeros pleitos movidos por particulares que passam a reivindicar a posse das aacutereas indiacutegenas as quais possuem tiacutetulos registrados nos cartoacuterios municipais A intervenccedilatildeo intensa do Ministeacuterio Puacuteblico Federal para a promoccedilatildeo dos direitos coletivos dos iacutendios acaba por repercutir em decisotildees judiciais favoraacuteveis agrave permanecircncia dos aldeamentos indiacutegenas em algumas aacutereas Aleacutem disso as sentenccedilas determinaram agrave Uniatildeo e agrave FUNAI que promovessem os estudos necessaacuterios para identificaccedilatildeo e delimitaccedilatildeo das terras de ocupaccedilatildeo tradicional Avaacute-Guarani na regiatildeo deflagrando processos que ainda se encontram em tracircmite no acircmbito da Fundaccedilatildeordquo rdquo (OLIVEIRA 2014 p 167)
34
FIGURA 2 Presenccedila de tekohas guaranis e da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos em Guaiacutera e Terra Roxa FONTE Projeto de pesquisa ldquoA questatildeo indiacutegena no oeste do Paranaacute e a reconstruccedilatildeo do territoacuterio Avaacute-Guaranirdquo24 (2014) (Grifos meus)
24 O Projeto eacute apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico (CNPQ) e desenvolvido no curso de Direito da PUC-PR O mapa foi elaborado com base nos dados do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) Violaccedilotildees dos direitos humanos e territoriais dos Guarani no Oeste do Paranaacute (1946-1988) Subsiacutedios para a Comissatildeo Nacional da Verdade Ver httpbdtrabalhoindigenistaorgbrdocumentoviolaC3A7C3B5es-dos-direitos-humanos-e-territoriais-dos-guarani-no-oeste-do-paranC3A1-1946-1988-sub Acesso em 07 de janeiro de 2015
35
No mapa apresentado estatildeo identificadas as localizaccedilotildees das tekoha
existentes nos municiacutepios de Guaiacutera e Terra Roxa bem como a presenccedila da
Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos destacada no canto esquerdo
inferior do mapa No atual contexto de reivindicaccedilatildeo territorial tanto por indiacutegenas
como por quilombolas em Guaiacutera os proprietaacuterios rurais da regiatildeo tecircm se articulado
e promovido fortes reaccedilotildees em forma de protestos e de articulaccedilotildees poliacuteticas para se
oporem a essas reivindicaccedilotildees Deve-se ter em conta para compreender esta
mobilizaccedilatildeo dos proprietaacuterios rurais25 que ldquoa demarcaccedilatildeo de territoacuterios e o
reconhecimento de identidades tradicionais satildeo uma forma de resistecircncia mais eficaz
e imediata agraves lsquoagroestrateacutegiasrsquo do que outras modalidades de luta e reivindicaccedilatildeo
fundiaacuteriasrdquo (GUEDES 2013b p 43)
A forccedila destes atores organizados localmente tambeacutem por meio do Sindicato
Rural patronal deve-se ao perfil econocircmico do municiacutepio estruturado na produccedilatildeo de
ldquocommoditiesrdquo para exportaccedilatildeo A topografia plana e a boas condiccedilotildees de fertilidade
do solo possibilitaram o forte desenvolvimento do agronegoacutecio na regiatildeo com o
processo de mecanizaccedilatildeo da agricultura26 Deste modo a regiatildeo oeste do Paranaacute
apresenta atualmente intensa atividade do agronegoacutecio o que fez com que o preccedilo
da terra aumentasse muito nos uacuteltimos anos um alqueire na regiatildeo jaacute estaacute valendo
em meacutedia cem mil reais Esta valorizaccedilatildeo do preccedilo da terra eacute percebida de forma
expressiva pelos membros da comunidade quilombola Em 2003 depois de dez anos
que os trecircs irmatildeos mais velhos Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano saiacuteram da
comunidade para morar em Presidente PrudenteSP quando resolveram vender 15
alqueires da aacuterea adquirida por seu pai conseguiram o valor equivalente a dezoito mil
reais por alqueire Conforme relato do filho caccedilula do segundo casamento de Manoel
Joatildeo Aparecido em seis meses o preccedilo do alqueire jaacute tinha subido para o equivalente
a cinquenta mil reais de modo que seus irmatildeos demonstram arrependimento por
terem vendido a aacuterea que lhes cabia da heranccedila por um valor tatildeo baixo
Segundo dados do IBGE referentes agrave produccedilatildeo agriacutecola municipal de Guaiacutera
em 2013 as trecircs principais culturas foram o milho (182470 toneladas) depois a soja
25 Esta articulaccedilatildeo dos proprietaacuterios rurais tem ocorrido em Guaiacutera e no estado do Mato Grosso do
Sul por exemplo por meio da ldquoOrganizaccedilatildeo Nacional de Garantia do Direito de Propriedaderdquo 26 Conforme informaccedilotildees trazidas pelo antropoacutelogo da FUNAI Diogo Oliveira no I Congresso ldquoA questatildeo indiacutegena no Oeste do Paranaacute e a Reconstruccedilatildeo do Territoacuterio Guaranirdquo realizado em novembro de 2014 em Foz do Iguaccedilu 80 das terras de Guaiacutera em extensatildeo (natildeo em nuacutemero) pertencem a grandes proprietaacuterios rurais e em 90 das terras agricultaacuteveis planta-se milho e soja
36
(110425 toneladas) e por uacuteltimo o trigo (990 toneladas)27 Por outro lado diante deste
cenaacuterio adverso agrave efetivaccedilatildeo de direitos territoriais Avaacutes-Guarani e quilombolas tecircm
se fortalecido de modo articulado por meio do contato gerado entre as lideranccedilas no
acircmbito do Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos (PAA) 28 com visitas frequentes dos
quilombolas nas aldeias indiacutegenas para a realizaccedilatildeo das entregas de alimentos Neste
cenaacuterio tais grupos sociais tentam colocar na agenda puacuteblica dominada pelos
interesses hegemocircnicos do agronegoacutecio importantes debates e disputas a partir de
outras loacutegicas de uso e de relaccedilatildeo com a terra29
O contexto de Guaiacutera eacute visto como adverso pelos quilombolas ao reforccedilar um
discurso regional predominante que vecirc o agronegoacutecio como expressatildeo do
desenvolvimentordquo e da ldquoevoluccedilatildeordquo e que desloca por conseguinte indiacutegenas e
quilombolas para o passado por meio do que pode ser qualificado como um
ldquorebaixamento diacrocircnico do outrordquo estabelecendo uma sinoniacutemia entre diferenccedila e
distacircncia temporal (FABIAN 2013) Vaacuterias vezes comentaram que na regiatildeo Sul do
Brasil existe muito mais discriminaccedilatildeo contra negros do que na regiatildeo de onde satildeo
provenientes jaacute que laacute a expressividade da populaccedilatildeo negra eacute muito maior Esta
perspectiva por eles articulada pode ser entendida em relaccedilatildeo ao processo de
consolidaccedilatildeo da imagem de um Paranaacute eminentemente europeu pelas diversas
esferas do poder e da sociedade paranaense que tende a negar o reconhecimento
27 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=410880ampsearch=parana|guaira Acesso em 20022015 Outra comunidade quilombola que enfrenta um contexto de grande impacto do agronegoacutecio no Paranaacute (centro-sul) eacute a Comunidade Paiol de Telha (HARTUNG 2004) 28 O PAA consiste em um programa do Ministeacuterio do Desenvolvimento Social (MDS) criado em 2003 a partir do Programa Fome Zero Por meio desta poliacutetica puacuteblica oacutergatildeos estatais puderam adquirir com dispensa de licitaccedilatildeo produtos da agricultura familiar e doaacute-los para grupos em situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar No caso de Guaiacutera os quilombolas por meio de contrato com a Secretaria de Trabalho e Economia Solidaacuteria (SETS) atuam como produtores dos alimentos e entregam essas doaccedilotildees diretamente agraves aldeias indiacutegenas de Guaiacutera e Terra Roxa 29 Este estreito contato parece ser decorrente do ldquoefeito provaacutevel de certos mecanismos histoacutericos
comuns de repressatildeo controle e territorializaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 32) Ademais tanto no caso dos indiacutegenas da etnia Guarani como no caso dos quilombolas de Guaiacutera a presenccedila do histoacuterico de deslocamentos na trajetoacuteria destes grupos aparece como argumento mobilizado pelos articuladores do movimento contraacuterio agrave demarcaccedilatildeo territorial enquanto elemento deslegitimador das reivindicaccedilotildees destas comunidades No caso dos Guaranis a partir da deacutecada de 70 com a mecanizaccedilatildeo da agricultura sua matildeo-de-obra passou a ser desprezada e aquelas famiacutelias que resistiram ao processo de colonizaccedilatildeo foram se estabelecendo apenas nas margens do Rio Paranaacute pela pressatildeo e esbulho territorial que sofreram A maior parte foram afugentadas para o leste paraguaio sob grande violecircncia dos oacutergatildeos do Estado processo no qual o Estado ditatorial brasileiro participou ativamente Trata-se portanto de um processo de migraccedilatildeo forccedilada que ocorreu nas uacuteltimas deacutecadas e que contrasta com a dinacircmica de deslocamentos proacuteprios da etnia ligados a perspectivas e significados cosmoloacutegicos (CARVALHO 2013)
37
agraves demais alteridades e grupos eacutetnicos no estado Neste sentido afirma a antropoacuteloga
Mirian Hartung
A invisibilidade tornou-se um dos aspectos mais relevantes da identidade social dos afrodescendentes no sul do Brasil O projeto de colonizaccedilatildeo com europeus implantado entre meados do seacuteculo XIX e o XX foi a sua contraface Em um seacuteculo foram concedidos aos colonos europeus todas as primazias sobre as terras os capitais as oportunidades de trabalho e o crescimento econocircmico Este modelo seletivo e excludente orientou as poliacuteticas puacuteblicas as accedilotildees particulares e a voz dos cientistas (2004 p 7)
Em relaccedilatildeo aos desdobramentos deste modelo de colonizaccedilatildeo regional por
descentes de europeus implantado em Guaiacutera a partir da deacutecada de 1930 Joaquim
(55 anos) tambeacutem filho de Manoel Ciriaco do segundo casamento eacute pessimista no
tocante agraves mudanccedilas em curso no mundo rural O que seus vizinhos enxergam como
progresso segundo ele me relatou eacute a produccedilatildeo de transgecircnicos na base de
veneno30 o uso de sementes esteacutereis fabricadas em laboratoacuterio que implicam no
pagamento de lsquordquoroyaltiesrdquo para as empresas multinacionais Muitas plantas agriacutecolas
satildeo resistentes ao veneno que acaba por sua vez com o mato natildeo havendo
necessidade capinar Assim natildeo tem mais emprego nas plantaccedilotildees Eacute a maacutequina que
planta a semente uma por uma Denunciou entatildeo o fato de que quando os vizinhos
passam o veneno (e eles acompanham estes ciclos praticamente todos juntos) soacute
com o cheiro do veneno as folhas das plantas que estatildeo na aacuterea do grupo quilombola
tambeacutem se enrolam em consequecircncia
Estes satildeo exemplos entre outros que Joaquim citou como modificaccedilotildees
alarmantes de modo que os mais jovens ressente-se natildeo chegam sequer a
conhecer como era antes quando a regiatildeo de Guaiacutera era tomada pela mata fechada
e a produccedilatildeo era manual familiar pautada em uma loacutegica de valorizaccedilatildeo do trabalho
na terra do alimento da solidariedade Ao olhar para o passado Joaquim apontou
que na eacutepoca que Seu Manoel comprou aquela terra no iniacutecio da deacutecada de 1960 o
preccedilo era muito barato e aleacutem disso pagava-se como podia ao longo dos anos Na
eacutepoca Manoel natildeo teria comprado uma aacuterea maior porque natildeo teriam como tocar
aquele tanto de terra o que indica que a loacutegica do grupo era de ocupaccedilatildeo efetiva da
30 A imagem de Guaiacutera estaacute muito associada ao contrabando de produtos do Paraguai Um dos
produtos que satildeo contrabandeados e afetam diretamente a comunidade quilombola satildeo os defensivos agriacutecolas comercializados no Paraguai e proibidos no Brasil para uso em plantaccedilotildees como no caso do MPK 40 que foi a mim denunciado pelos quilombolas e por mais dois servidores puacuteblicos que trabalham no municiacutepio
38
aacuterea para produccedilatildeo familiar Em relaccedilatildeo ao futuro Joaquim afirmou que soacute Deus para
colocar um limite nesta ambiccedilatildeo nas alteraccedilotildees feitas na Sua criaccedilatildeo
No contexto das dificuldades que enfrentam no municiacutepio ainda mais
significativa eacute a relevacircncia atribuiacuteda pelos quilombolas agrave memoacuteria coletiva e aos laccedilos
sociais e histoacutericos principalmente no que se refere aos mais velhos que tentam
direcionar os mais novos neste mesmo sentido Este sentimento de um pertencimento
comum embasa a autoidentificaccedilatildeo e a mobilizaccedilatildeo do grupo pelo reconhecimento
como quilombolas A emergecircncia desta identidade estaacute inserida em um contexto de
relaccedilotildees de tensatildeo antes velada e que aponta para dinacircmicas de fronteira entre
brancos e negros no bairro rural ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo onde residem31
A reproduccedilatildeo da coesatildeo do grupo estaacute presente na leitura que fazem dos
processos de deslocamento que natildeo passa pela ideia de ruptura como mencionamos
na introduccedilatildeo Pelo contraacuterio desenha-se a partir da continuidade do movimento
como mecanismo de reproduccedilatildeo do grupo o que reforccedila os viacutenculos com o local de
proveniecircncia (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64) A regiatildeo do municiacutepio de Santo Antocircnio
do Itambeacute sobre a qual traremos abaixo uma breve apresentaccedilatildeo eacute o lugar de
sustentaccedilatildeo do ldquomito de origemrdquo do grupo e remonta agrave vivecircncia dos mais velhos que
laacute residiram
Apesar de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG estar abrangido pela divisatildeo
institucional da ldquomesorregiatildeo metropolitana de Belo Horizonterdquo o municiacutepio estaacute muito
mais proacuteximo em termos sociais e culturais da ldquomesorregiatildeo do Vale do
Jequitinhonhardquo situada no nordeste do estado No que tange agraves bacias hidrograacuteficas
o municiacutepio localiza-se entre a bacia do Alto Jequitinhonha e a bacia do Rio Doce e
como sugerem os moradores da regiatildeo ldquoeacute o comeccedilo do Valerdquo
31 Segundo Barth ldquoos elementos da cultura presente em um grupo eacutetnico natildeo surgem por conseguinte
do conjunto particular que constituiu a cultura do grupo em um periacuteodo anterior embora o grupo tenha uma existecircncia organizacional contiacutenua com fronteiras (criteacuterios de pertenccedila) que apesar das modificaccedilotildees nunca deixaram de delimitar uma unidade contiacutenuardquo (BARTH 2011 p 227) Tais reflexotildees deste autor continuam sendo segundo Joseacute Mauriacutecio Arruti ldquoas melhores orientaccedilotildees para a anaacutelise de grupos autodefinidos com base na origem ou em atributos de formaccedilatildeordquo e embasam a noccedilatildeo de etnicidade na reflexatildeo antropoloacutegica contemporacircnea (ARRUTI 2006 p 39)
39
FIGURA 3 Localizaccedilatildeo do Municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute FONTE Autora (2015)
Atualmente o municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG possui 4121
habitantes conforme estimativa do IBGE para 201432 Segundo o Censo de 2010
1230 pessoas moravam na zona urbana o equivalente a 2984 e mais de 70 da
populaccedilatildeo continua habitando a zona rural um total de 2905 pessoas Em termos
raciais em Santo Antocircnio do Itambeacute apenas 863 da populaccedilatildeo (357 pessoas) se
declarou como ldquobrancardquo Jaacute a autoidentificaccedilatildeo como sendo da cor ldquopretardquo somou
1947 (805 pessoas) e ldquopardardquo 6972 (2883 pessoas) A diferenccedila no que tange
ao percentual de brancos e negros com relaccedilatildeo agrave GuaiacuteraPR33 eacute significativa jaacute que laacute
a populaccedilatildeo que se declarou branca eacute a maioria 57 em contraste com os apenas
863 de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Dito isto voltemos agraves narrativas quilombolas que destacam principalmente a
capacidade de resistecircncia dos antepassados em condiccedilotildees adversas de muito
sofrimento vivenciadas na regiatildeo mineira Em Guaiacutera me contaram sobre os relatos
32 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316020 Acesso em 22062015 33 Praticamente todos os dados que seratildeo apresentados para a comparaccedilatildeo entre as duas regiotildees satildeo
fortemente contrastantes
40
que ouviram dos pais avoacutes tios irmatildeos mais velhos sobre experiecircncias de fome
trabalho aacuterduo e precariedade das moradias que tinham que ser feitas dentro de lapas
ou locas de pedra (cavernas) Por outro lado Minas eacute valorizada por sua cultura local
narrada pelas histoacuterias sobre os antepassados
Importante levar em conta que na narrativa sobre o passado certos traccedilos se
esvanecem e outros satildeo reforccedilados conforme o momento presente daqueles que
compotildeem uma mesma ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo (HALBWACHS 2003 p 94) O
relato de Jovelina filha mulher mais velha de Manoel Ciriaco atualmente com 73
anos que morou em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ateacute seus quinze anos e atualmente
reside em Presidente PrudenteSP34 destaca a fome como uma memoacuteria central nos
tempos de sua infacircncia
Dandara Dona Jo a senhora repete entatildeo pra gente o que comentou laacute das memoacuterias do pessoal mais antigo de Minas
D Jovelina Laacute no siacutetio do meu pai tinha tinha natildeo que deve ter ateacute hoje que aquilo ali natildeo foi tampado aquele valo Aliacute era cerca pros bois natildeo passar pra roccedila pra comer a roccedila Ali tinha aqueles buracatildeo os boi chegava laacute e olhava assim via aquele buraco laacute e saiacutea E se ele quebrasse a perna ali dentro aiacute entatildeo o dono dele dava pra aquelas pessoas repartir Aiacute a gente pegava e ia laacute buscar e eles repartiam tudo pra aquelas pessoas e a nossa turma ia alegre pra casa porque tava tudo morrendo de fome Ai entatildeo ia naquele lugar onde aquele boi tentou cair ali aiacute escavava mais pra baixo ainda E tinha uns ainda que tinham minha voacute sempre falava que tinha ateacute corrente no peacute que aquele ali que natildeo trabalhasse era preguiccediloso ia ser amarrado laacute no tronco da aacutervore laacute E laacute ficava
Eacute possiacutevel observar que quando Dona Jovelina fala de sua infacircncia relembra
as histoacuterias contadas pela avoacute Izidora sobre o tempo da escravidatildeo35 Interessante
refletir que na forma como a narradora conta esta lembranccedila natildeo aparece um corte
temporal entre o periacuteodo em que a famiacutelia se alimentava da carne do boi que caiacutea no
valo utilizado como cerca entre as propriedades e a eacutepoca em que as pessoas
trabalhavam acorrentadas e eram castigadas no tronco da aacutervore como a avoacute sempre
falava Haacute deste modo uma continuidade sugestiva na narrativa que faz um
34 Esta entrevista ocorreu durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo de 2015
quando passamos por Presidente PrudenteSP justamente para conversar com os irmatildeos mais velhos Jovelina Olegaacuterio e Joatildeo Loriano sobre suas lembranccedilas da vida em Santo Antocircnio do Itambeacute 35 Com os pais provavelmente ocupados em atividades laborais os avoacutes conforme problematizado por
Connerton ocupam uma posiccedilatildeo central no processo de transmissatildeo de conhecimentos sobre o passado diretamente agrave geraccedilatildeo mais nova (CONNERTON 1999 p 43-44) No caso de Jovelina ela ficou sem a matildee que faleceu quando ela tinha dois anos de idade tendo sido cuidada por sua avoacute Izidora e sua tia Ana Raimunda junto com seu pai Manoel Ciriaco
41
entrecruzamento de temporalidades em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da escravidatildeo
apontando para uma forte conexatildeo entre periacuteodos cronoloacutegicos experiecircncias e
vivecircncias ateacute o momento de sua infacircncia na deacutecada de 1940 (MELLO 2012 p 170)
D Jovelina lembrou-se tambeacutem de que quando crianccedila ela e seu irmatildeo Joatildeo ainda
muito pequenos recorriam agrave alternativa de encontrar no rio utilizando uma bateia
algum ouro que entregavam para a tia Ana Raimunda para fazer um pouco de dinheiro
e comprar algo para a famiacutelia36
D Maria das Dores esposa de Seu Joatildeo (filho de Manoel Ciriaco do primeiro
casamento) que atualmente tambeacutem mora em Presidente PrudenteSP37 comentou
sobre seu sofrimento em Minas Gerais38
Cassius A sra falou que comeccedilou a trabalhar desde pequena laacute em Santo Antocircnio
D Maria Desde pequenininha lavando mandioca no rio de manhatilde cedo com frio eacute eu sofri muito Depois cresci trabalhando pras casas dos outros Eu nunca tive vida forgada Eu criei meus filhos tudo sofrendo O menino que natildeo foi sofrido foi esse aiacute que nasceu no Paranaacute mas os outros laacute de Minas tudo () Nem roupa pra vestir a gente natildeo tinha chinelo pra pocircr no peacute era uma vida cruel A gente natildeo comia nem um arroz nem nada Nem oacuteleo pra pocircr na comida natildeo tinha
Dandara A terra era fraca neacute
D Maria Terra natildeo ia nada soacute o que eu plantava laacute era soacute cafeacute cana e mandioca soacute a fartura que vocecirc via laacute era isso eacute natildeo tinha nada natildeo
A baixa qualidade da terra e a escassez de aacutereas para plantio podem ter
impulsionado a estrateacutegia de Manoel Ciriaco de sair rumo a regiatildeo de Satildeo Paulo e
depois norte do Paranaacute acompanhado de demais parentes o que era uma praacutetica
recorrente nesta regiatildeo mineira De acordo com Flaacutevia Galizoni a regiatildeo nordeste de
Minas Gerais tem uma caracteriacutestica proacutepria em relaccedilatildeo ao modo de aquisiccedilatildeo do
direito agrave terra que se daacute principalmente por heranccedila Este eacute o caso da famiacutelia de
36 Esta forma de garimpo eacute muito comum entre mulheres e crianccedilas (GUEDES 2013a p 126) Em sua
etnografia no norte de Goiaacutes Guedes destaca como o garimpo eacute visto como uma alternativa precisamente a situaccedilotildees entendidas como cativeiro eou escravidatildeo Segundo o autor ldquotratamos aqui da continuidade ndash ou para ser mais preciso da eterna expectativa pelo retorno ou volta ndash de uma escravidatildeo cuja aboliccedilatildeo lsquoformalrsquo por vezes eacute tratada como objeto de escaacuternio natildeo passando de uma iniciativa hipoacutecrita dos ricosrdquo Garimpeiros e quilombolas ldquocompartilham assim interstiacutecios e margens e sempre estiveram a se fundir e confundir uns com os outrosrdquo (GUEDES 2013a p 118-119) 37 Esta entrevista tambeacutem realizada durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo
de 2015 38 Esta entrevista tambeacutem ocorreu durante a viagem que realizamos para Minas Gerais em marccedilo de
2015
42
Manoel cuja herdeira era sua matildee Izidora pois o siacutetio havia sido comprado pelo pai
dela como me relata Jovelina
As pessoas foram morrendo e deixando pros filhos agora aqueles filhos que morriam ficava pros outros netos deles e era assim ia ficando () Era tudo negro que tinha por aiacute Quando um tava meio apurado de serviccedilo ia laacute ah fulano vocecirc vai trabalhar pra mim que eu te pagordquo () Entatildeo chamava ia aquela turma de gente ali ajudava quando era o outro dia ia laacute na casa do outro trabalhar pro outro pagar aquele dia Que eles trabalhavam natildeo era pra receber dinheiro porque natildeo tinha Entatildeo trabalhava o dia trocado Hoje vocecirc vinha aqui e ajudava eu a fazer aquele serviccedilo aiacute amanhatilde eu ia e te ajudava tambeacutem era trocado
A terra eacute um patrimocircnio familiar transmitida pela heranccedila no acircmbito de uma
ordem moral camponesa que natildeo a restringe ao valor de mercadoria mas que a
concebe a partir de valoraccedilotildees eacuteticas Aquele que se torna dono o faz mediante o
trabalho que eacute ademais um trabalho familiar no qual as relaccedilotildees de reciprocidade
satildeo centrais (WOORTMANN 1990) em um modelo relacional que fica niacutetido na fala
de Dona Jovelina Nesta dinacircmica a migraccedilatildeo39 eacute um dos elementos importantes para
manter a terra em um tamanho necessaacuterio para as futuras geraccedilotildees jaacute que seu
fracionamento extremo pode ldquoinviabilizar a continuidade da famiacutelia como grupo de
agricultores independentesrdquo
A terra eacute o principal meio de produccedilatildeo e patrimocircnio dos agricultores mas em decorrecircncia da pressatildeo demograacutefica e da exaustatildeo do ambiente torna-se ao longo do tempo um limite para a sua reproduccedilatildeo social Quando o nuacutemero de membros excede a capacidade de suporte da terra surge o imperativo de se decidir no interior da famiacutelia como seraacute resolvida essa questatildeo e nesse contexto a heranccedila constitui um ponto nodal para compreender as estrateacutegias de permanecircncia dos agricultores familiares na terra (GALIZONI2007 p 564)
Para que parte da famiacutelia fique na terra como herdeiros torna-se imperativo
que outra saia enquanto excedente familiar no que tange o uso da terra A migraccedilatildeo
ocorre como processo familiar pois acontece em grupo a partir de estrateacutegias de
contatos nos locais de destino com o objetivo de reconstruir as unidades familiares
No caso em questatildeo Manoel antes de sair definitivamente praticava a migraccedilatildeo
39 Importante ressaltar a criacutetica ao conceito de migraccedilatildeo jaacute que esta concepccedilatildeo esta permeada
frequentemente por uma visatildeo de que o ldquomovimento natildeo teria um valor em si mesmo constituindo-se basicamente como a passagem entre dois pontosrdquo Assim o deslocamento eacute visto como acontecimento excepcional e a sedentariedade como regra Deste modo o movimento e natildeo a permanecircncia eacute o que tem que ser explicado (GUEDES 2013a p 31-36)
43
sazonal movimento recorrente nesta regiatildeo no periacuteodo da seca quando saiacutea para
trabalhar como peatildeo mundo afora Um dos seus destinos de trabalho era a regiatildeo de
Londrina norte do Paranaacute para onde se deslocava de trem Foi atraveacutes desta
experiecircncia preacutevia que traccedilou a estrateacutegia de saiacuteda definitiva com demais parentes
para a regiatildeo de Presidente PrudenteSP onde morou no municiacutepio de CaiabuSP Eacute
importante salientar que nesta regiatildeo paulista Manoel Ciriaco e demais parentes
puderam contar com o suporte da famiacutelia de seu primo de primeiro grau Raimundo
Constantino ndash filho de sua tia materna Joana ndash que laacute jaacute se encontrava Raimundo
que havia saiacutedo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG com esposa e filhos em 1949 jaacute
havia falecido quando Manoel chegou em CaiabuSP
Na eacutepoca em que Manoel deixou sua regiatildeo de origem ele jaacute havia ficado
viuacutevo de Maria Olinda sua primeira esposa com quem teve quatro filhos Luiza ndash que
faleceu aos 8 anos de idade ndash Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano
FIGURA 4 Excerto Genealoacutegico 1
Como afirmei anteriormente quando Maria Olinda faleceu Joatildeo Loriano tinha
apenas um mecircs de vida tendo sido criado pela avoacute Izidora e pela irmatilde de seu pai
Ana Raimunda Depois Manoel casou-se com Ana Rodrigues com quem teve mais
quatro filhos ainda em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Eurides Sebastiana (falecida)
Antocircnio (falecido) e Joseacute Maria (falecido) Os outros filhos deste casal jaacute nasceram
no processo de deslocamentos da famiacutelia ndash dos quais apenas Paulo faleceu quando
tinha 15 anos ndash e os quatro irmatildeos mais novos satildeo os que atualmente continuam
morando em GuaiacuteraPR e atuam de forma direta no projeto de estruturaccedilatildeo da
comunidade quilombola Joaquim Geralda Adir e Joatildeo Aparecido
44
FIGURA 5 Excerto Genealoacutegico 2
45
Para compreender o contexto da saiacuteda dessas famiacutelias em 1956 deve-se ter
em conta que a deacutecada de 1950 eacute o periacuteodo de decliacutenio da produccedilatildeo camponesa na
regiatildeo mineira em decorrecircncia da abertura de estradas bem como do
desenvolvimento e da urbanizaccedilatildeo do entorno De 1950 a 1970 a regiatildeo do ldquoVale do
Jequitinhonhardquo40 vivenciou um importante marco histoacuterico de integraccedilatildeo na economia
nacional por meio da possibilidade de acesso a produtos industrializados o que como
consequecircncia provocou a desvalorizaccedilatildeo dos produtos regionais Este periacuteodo eacute
marcado pela expansatildeo do capitalismo e pela expropriaccedilatildeo do campesinato com o
aumento significativo do deslocamento da populaccedilatildeo local (PORTO 2007 p 79)
A produccedilatildeo e o comeacutercio de alimentos e artigos artesanais eram justamente
o trabalho realizado pelas famiacutelias negras em questatildeo principalmente na lavoura de
cana-de-accediluacutecar com a qual se fazia a cachaccedila o melado e a rapadura e no
transporte destes produtos em lombo de burro para sua comercializaccedilatildeo aleacutem da
lavoura de cafeacute do trabalho no garimpo de ouro e da agricultura de subsistecircncia
Deste modo a saiacuteda dos camponeses decorre da pressatildeo das ldquoformas empresariais
e capitalistasrdquo em direccedilatildeo agrave regiatildeo ldquoos primeiros continuamente deslocados pela
marcha dos segundosrdquo (GUEDES 2013b p 53) Dentre tais empreendimentos
destaca-se a produccedilatildeo em moldes capitalistas de eucalipto de gado e de cafeacute Deste
modo eacute possiacutevel perceber como a memoacuteria e a experiecircncia do grupo quilombola vai
tomar como um marco os efeitos do histoacuterico de modernizaccedilatildeo regional e do decliacutenio
da produccedilatildeo camponesa no acircmbito de um processo mais amplo de pressatildeo
migratoacuteria (PORTO 2007 p 60) Olegaacuterio (77 anos) filho de Manoel Ciriaco que saiu
de MG com o pai contou que ele e seus parentes foram de Santo Antocircnio do Itambeacute
ateacute Diamantina no pau de arara caminhatildeo coberto de lona e de Diamantina ao estado
de Satildeo Paulo de ocircnibus
Recuando um pouco mais na histoacuteria no que tange ao comeccedilo do seacuteculo XX
os estudos historiograacuteficos demonstram como a migraccedilatildeo jaacute aparecia como uma
estrateacutegia importante para a populaccedilatildeo negra que vivia em regiotildees de colonizaccedilatildeo
antiga como eacute o caso de Minas Gerais Estes estudos tecircm analisado como os negros
40 Esta divisatildeo regional que a partir da deacutecada de 1960 cria de uma forma unificada o ldquoVale do
Jequitinhonhardquo eacute fruto de uma articulaccedilatildeo da esfera poliacutetica que tomou como criteacuterio a carecircncia e a pobreza enquanto argumentos dos poliacuteticos regionais para acessar recursos para uma aacuterea definida como ldquobolsatildeo da pobrezardquo O ldquoprogressordquo por meio desenvolvimento capitalista seraacute entatildeo apresentado como o caminho de redenccedilatildeo para a populaccedilatildeo localrdquo (PORTO 2007 p 61)
46
libertos e seus descendentes traccedilaram estrateacutegias para buscar caminhos de
autonomia e de subsistecircncia tendo em vista as dinacircmicas de disponibilidade de terra
e trabalho no poacutes-aboliccedilatildeo (1888) Esta populaccedilatildeo tinha que lidar com a permanecircncia
das categorizaccedilotildees sociais como a de ldquoex-senhores libertos e homens nascidos
livresrdquo enquanto uma das principais limitaccedilotildees para sua capacidade de negociaccedilatildeo
nas regiotildees de colonizaccedilatildeo mais antigas (MATTOS RIOS 2004 p 180) Eacute sabido
que o fim do regime escravocrata natildeo concretizou a presunccedilatildeo legal de igualdade e
cidadania para esta populaccedilatildeo que ficou sujeita agrave manutenccedilatildeo das hierarquias locais
jaacute que ser negro ainda era visto em alguma medida como sinoniacutemia de ter sido
escravo Eacute necessaacuterio neste sentido refletir sobre o projeto dos libertos no periacuteodo
do poacutes-aboliccedilatildeo ldquosua lsquovisatildeorsquo do que seria liberdade os significados deste conceito
para a populaccedilatildeo que iria finalmente vivenciaacute-la ()rdquo Uma das expressotildees destes
projetos foi a ldquomobilidade espacialrdquo a partir do direito que passaram a ter sobre os
proacuteprios corpos de ir e vir livremente (MATTOS RIOS 2004 p 171-178)
Muitas eram as dificuldades enfrentadas pelos negros nas regiotildees onde a
escravidatildeo tinha sido significativa como a localidade de Santo Antocircnio do Itambeacute que
faz parte do ldquoCaminho dos Diamantesrdquo e da ldquoEstrada Realrdquo vinculada agrave colonizaccedilatildeo
mineradora A movimentaccedilatildeo geograacutefica dos ldquonatildeo-brancos livresrdquo para aacutereas de
colonizaccedilatildeo mais recente como eacute o caso de Guaiacutera na regiatildeo noroeste do Paranaacute
onde poderiam se organizar como ldquocampesinato reconstituiacutedordquo foi uma opccedilatildeo muito
utilizada Carlos Lima denominou este processo de ldquopequena diaacutesporardquo apontando
para a ldquoforte tendecircncia emigratoacuteriardquo que partia ldquodas aacutereas centrais onde haviam sido
gerados para localidades onde o acesso agrave terra fosse mais plausiacutevelrdquo (LIMA 2000 p
109)41 Deste modo destaca em suas pesquisas sobre o poacutes-aboliccedilatildeo a inserccedilatildeo de
libertos em processos de povoamento e a tendecircncia ao deslocamento de seus
descendentes de aacutereas de colonizaccedilatildeo antiga para regiotildees mais novas ndash como no
caso em questatildeo da regiatildeo de DiamantinaMG ateacute GuaiacuteraPR O autor observou na
documentaccedilatildeo um alto grau de natildeo brancos livres no estado do Paranaacute no seacuteculo
XIX e em relaccedilatildeo inversa um nuacutemero relativamente baixo de natildeo-brancos livres nas
aacutereas de escravidatildeo mais antiga (LIMA 2000)
41 No entanto nem todos os deslocamentos eram bem-sucedidos e como aponta o estudo das historiadoras Hebe Mattos e Ana Maria Rios tambeacutem implicaram em certos casos em ldquohistoacuterias de privaccedilotildees extremas e desestruturaccedilatildeo da vida familiarrdquo (MATTOS RIOS 2004 p 171)
47
Com esta estrateacutegia de movimento o grupo familiar proveniente de MG
conseguiu adquirir terras em GuaiacuteraPR depois de quase uma deacutecada em que
moraram e trabalharam principalmente na colheita de algodatildeo e de amendoim na
regiatildeo de Presidente PrudenteSP em aacutereas arrendadas no municiacutepio de CaiabuSP
A partir do contato com Seu Olindo que era corretor foram para o Paranaacute porque
tinham interesse de comprar terras principalmente porque lhes falaram que a terra laacute
era muito boa Em Guaiacutera estabeleceram-se no iniacutecio da deacutecada de 1960 e adquiriram
quatro pequenos lotes rurais todos proacuteximos os quais demoraram anos para quitar
atraveacutes de muito trabalho modo de pagamento inaceitaacutevel nos padrotildees atuais Com
o estabelecimento de Manoel e de sua esposa Ana Rodrigues com demais parentes
em Guaiacutera outras famiacutelias tambeacutem foram se deslocando para laacute tanto provenientes
do estado de Satildeo Paulo como da regiatildeo mineira Destacam-se nas narrativas sobre
a chegada em uma aacuterea que estava comeccedilando a ser colonizada as dificuldades que
enfrentaram acampando embaixo de lona no meio do mato de onde passaram a
retirar toda a sua sobrevivecircncia por meio da caccedila e da coleta aleacutem da derrubada da
mata para limpar o terreno e para iniciar o plantio agriacutecola
Os quatro homens chefes de famiacutelia que se tornaram proprietaacuterios no Paranaacute
tinham viacutenculos de parentesco entre si e com o casal ancestral Joseacute e Joana
ascendentes mais antigos sobre o qual o grupo tinha referecircncias (antes da pesquisa
realizada em Minas Gerais) inclusive de terem trabalhado como escravos em Minas
Gerais Assim aleacutem de Manoel Ciriaco e Geraldo Domingos dos Santos os quais
adquiriram respectivamente dez e cinco alqueires contiacuteguos da Sociedade
Agropecuaacuteria Comercial e Industrial Maracaju LTDA (lotes 186 e 186-A 187 e 187-A)
tambeacutem adquiriram lotes o ldquotio Raimundatildeordquo que era tio de Ana Rodrigues e Joatildeo
Ferreira cunhado de Ana Nestes siacutetios moravam mais parentes aleacutem daqueles que
tambeacutem residiam em propriedades da regiatildeo e tocavam arrendado No caso de
Raimundo e Joatildeo Ferreira natildeo tive acesso a informaccedilotildees sobre a histoacuteria de aquisiccedilatildeo
e perda dessas aacutereas Imagino que este silenciamento seja decorrente dos conflitos
territoriais que antecederam esta pesquisa com a grupo conforme abordaremos no
segundo capiacutetulo Apesar disso membros da comunidade comentam saudosos sobre
a relevacircncia da dinacircmica de tracircnsito dos parentes entre estas aacutereas periacuteodo no qual
havia em torno de oitenta pessoas da famiacutelia morando na regiatildeo de Guaiacutera e de Terra
RoxaPR
48
FIGURA 6 Excerto Genealoacutegico 3
49
As aacutereas do ldquotio Raimundatildeordquo e de Joatildeo Ferreira atualmente natildeo constam no
processo de reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo do territoacuterio que tramita no INCRA A natildeo
indicaccedilatildeo dessas duas aacutereas parece ter sido uma estrateacutegia da comunidade na
produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico Esta estrateacutegia como pude
compreender estaacute relacionada aos conflitos gerados pela produccedilatildeo do primeiro
relatoacuterio sobre a comunidade Assim os quilombolas entenderam que era mais
seguro neste segundo relatoacuterio natildeo indicar as duas aacutereas que natildeo satildeo contiacuteguas ao
territoacuterio atual o que poderia reestabelecer a animosidade entre a comunidade e os
proprietaacuterios vizinhos Atualmente o procedimento do INCRA utiliza como base
territorial as aacutereas indicadas pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico que foram
adquiridas por Manoel Ciriaco e Geraldo dos Santos as quais somavam 15 alqueires
contiacuteguos dos quais soacute restam atualmente 85 alqueires O relatoacuterio indica tambeacutem a
aquisiccedilatildeo de uma aacuterea complementar para que possa haver meios de reproduccedilatildeo
social cultural e econocircmica das famiacutelias que atualmente permanecem na
comunidade42
Em 1992 Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano ndash filhos de Manoel Ciriaco do
primeiro casamento ndash migram de GuaiacuteraPR com suas famiacutelias As famiacutelias de
Olegaacuterio e Joatildeo Loriano foram para a TarabaiSP proacuteximo a Presidente PrudenteSP
e Jovelina foi com a famiacutelia para ColiacutederMS O ldquoVelho Maneacuterdquo havia falecido em 1989
Em 1993 Geraldo dos Santos primo de Manoel que havia comprado lote limiacutetrofe ao
seu vende seus cinco alqueires e migra com sua famiacutelia para Satildeo Jorge do
PatrociacutenioPR municiacutepio proacuteximo onde adquiriu aacuterea maior mas de menor qualidade
pois a terra mais arenosa Eva me contou o motivo de seu pai Geraldo ter preferido
sair de Guaiacutera em 1993 e vender seus cinco alqueires
Dandara Eu queria perguntar tambeacutem para a Sra sobre a saiacuteda do seu pai daqui ele foi muito pressionado pra sair pra vender
Eva Ele quis sair Dandara ele natildeo quis ficar aqui mais pouca terra muito pouco com raiva tambeacutem quando os vizinhos ia limpar a estrada rancava tudo as coisas que ele plantava na beira da estrada ele ficava muito nervoso Ele pegou e natildeo quis viver aqui mais natildeo foi embora caccedilou um outro lugar pra ele morar que um lugar que era tudo gente pobre natildeo queria morar perto
42 Esta aacuterea natildeo necessita de acordo com o procedimento ser limiacutetrofe agrave comunidade e seraacute adquirida
atraveacutes do instrumento de desapropriaccedilatildeo por interesse social pelo INCRA Aleacutem das famiacutelias que atualmente moram na comunidade haacute a previsatildeo de que vaacuterias dentre as que migraram de GuaiacuteraPR poderatildeo caso haja esta ampliaccedilatildeo do territoacuterio retornar e se juntar ao grupo Esta previsatildeo de retorno eacute utilizada para calcular o tamanho da aacuterea adicional conforme abordo no segundo capiacutetulo
50
de gente rica (risos) Daiacute ele pegou e foi embora e chegou laacute e falou que era tudo pobre tambeacutem Soacute que sofreu muito tambeacutem laacute hein
Foram muitas as dificuldades que superaram conforme narram para
permanecerem em uma regiatildeo na qual se sentem discriminados racial e socialmente
Dentro deste processo histoacuterico de deslocamento e estruturaccedilatildeo das famiacutelias no
Paranaacute o casal Manoel Ciriaco dos Santos e Ana Rodrigues dos Santos ocupa o lugar
de casal fundador e aglutinador das relaccedilotildees de parentesco da comunidade
quilombola organizada a partir de GuaiacuteraPR mas que abrange famiacutelias que estatildeo
fora do territoacuterio Esta estruturaccedilatildeo das famiacutelias na regiatildeo de GuaiacuteraPR tambeacutem
portanto foi passageira para alguns nuacutecleos familiares e mais prolongada para outros
Atualmente as famiacutelias que continuaram no territoacuterio em GuaiacuteraPR lutam para
garantirem o direito de laacute permanecerem e para que seja ampliada a aacuterea da
comunidade a qual foi sendo reduzida ao longo das uacuteltimas deacutecadas com o processo
de mecanizaccedilatildeo da agricultura da perda dos meios de trabalho da valorizaccedilatildeo
comercial da terra na regiatildeo e da saiacuteda dos ldquoparentesrdquo
Manoel e Ana o casal que estrutura o modo de elaboraccedilatildeo da narrativa
histoacuterica e da reivindicaccedilatildeo de direitos pela comunidade atualmente eram primos de
segundo grau jaacute que Joana avoacute de Ana Rodrigues era irmatilde de Izidora matildee de
Manoel
FIGURA 7 Documentos de identidade de Manoel nascido em 16031920 e Ana nascida em 26071930 ambos no municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG (Comarca de Serro)
51
Sobre as dificuldades vivenciadas quando as famiacutelias se estabeleceram em
GuaiacuteraPR e do aperto que viveram Eva filha de Geraldo Domingos dos Santos
destacou
Eva Nossa Senhora Noacutes passou um aperto aqui Aqui o que noacutes passemo aqui Eu acho mesmo o que noacutes comia era peixinho assado no fogo A muieacute que morava assim vizinha aqui quando ela colhia milho e levava milho na casa dela pra moer fazer fubaacute que noacutes comia polenta com radiche do mato serraia nem a gordura pra comer natildeo tinha Tinha dia que noacutes natildeo tinha um gratildeo de accediluacutecar Quando eles trabalhava assim que colhia as coisa pra vender daiacute jaacute comprava aproveitava que o dinheirinho era pouco mesmo depois o dinheiro natildeo dava entatildeo jaacute aproveitava e comprava de uma vez Comprava meio saco de accediluacutecar aiacute entrava pura abeia dentro de casa pura abeia (risos) Quando acabava daiacute meu pai socava poacute no pilatildeo pra noacutes fazer cafeacute de manhatilde cedo Eu falei assim ldquoeacute minha fia hoje natildeo ensina mais nada disso vocecircs nem conhece o que que eacute issordquo
Nos termos de Geralda filha de Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues que saiu
dos siacutetios haacute muitos anos e atualmente mora na periferia de Guaiacutera (Vila Eletrosul)43
eles sempre trabalharam para enriquecer os coroneacuteis mas para os negros natildeo
sobrava nada A histoacuteria de seu marido Antocircnio conhecido por Guaraacute44 segundo ela
eacute um exemplo disso ldquopara mim o meu marido foi igual escravo para sofrer o que ele
sofreu As crianccedilas hoje tecircm liberdade Noacutes natildeo noacutes tinha que trabalhar e ningueacutem
tinha doacute E se fosse negro mais aindardquo A experiecircncia da escravidatildeo natildeo fica restrita
portanto a um passado longiacutenquo pois se perpetuou para aleacutem de sua instituiccedilatildeo
oficial por meio da reproduccedilatildeo de um sistema baseado na exploraccedilatildeo continuada e
na discriminaccedilatildeo racial Haacute uma perspectiva bem proacutexima na comunidade quilombola
Aacutegua Morna no estado do Paranaacute registrada no relatoacuterio antropoloacutegico da
comunidade
() Natildeo vinculam a escravidatildeo somente ao periacuteodo preacute-aboliccedilatildeo mas a percebem em tempo muito mais recente Ela estaacute relacionada ao trabalho para os ldquode forardquo e agrave experiecircncia da negritude que os colocaria constantemente em uma situaccedilatildeo de poder desprivilegiada () Nas falas dos moradores locais a escravidatildeo se confunde com a discriminaccedilatildeo relacionada ao racismo e agrave pobreza Muito mais que uma oposiccedilatildeo entre o tempo da escravidatildeo e o tempo da liberdade com uma delimitaccedilatildeo clara entre ambos
43 Outra importante caracteriacutestica sobre a caracterizaccedilatildeo negativa de Guaiacutera eacute que mesmo sendo um
municiacutepio de porte pequeno apresenta um dos maiores iacutendices de homiciacutedio do paiacutes (WAISELFISZ 2013) A Vila Eletrosul eacute tida como um dos bairros mais perigosos de Guaiacutera com vaacuterios casos de
homiciacutedios e apreensotildees Localizada nas proximidades do Rio Paranaacute eacute por laacute que entra parte da droga e do contrabando jaacute que por meio deste desvio evita-se a entrada principal saindo de Salto del Guairaacute no Paraguai para Guaiacutera onde se concentra a fiscalizaccedilatildeo 44 Irei utilizar o apelido de Guaraacute para o distinguir de ldquofinado Antocircniordquo irmatildeo de Geralda
52
dada pela assinatura da Lei Aacuteurea em Aacutegua Morna encontramos a escravidatildeo simultaneamente percebida como una e como tripartida haacute a experiecircncia dos antepassados trazida principalmente atraveacutes do relato de Benedita e da qual a caminhada ndash e a accedilatildeo da Princesa Isabel ndash os libertou haacute a opressatildeo mais recente dos antigos jaacute no proacuteprio territoacuterio mas sujeitos agrave desigualdade que marca as relaccedilotildees com os ldquobrancosricosrdquo e por fim a vivecircncia da discriminaccedilatildeo e exploraccedilatildeo no trabalho que permanece na atualidade em que escravidatildeo se aproxima de racismo (PORTO 2008 p 71-72)
A lembranccedila da ausecircncia de acesso a recursos baacutesicos estaacute sempre presente
nas falas da Geralda
Geralda Noacutes tocava um banhado de um homi laacute e eu de a peacute pra leva comida pro Zeacute Maria e aiacute ele falou que tinha dia que ele olhava ateacute na terra pra comer de tanta fome que natildeo comia nada de manhatilde que natildeo tinha nada pra comer Aiacute eu chegava correndo minha matildee pegava um pedacinho de carne eu pegava na matildeo e iacutea correndo leva a marmita comigo longe Ele falava que natildeo tava aguentando mais de fome Ixi minha filha noacutes cheguemo pra aqui ele amarrava roupa de cipoacute num tinha roupa menina () Aiacute a minha sogra ela falava assim quando ele corria da minha sogra ela falava ldquoparece que ocecirc taacute que nem o capeta correndo da cruzrdquo correndo que natildeo tinha roupa Era tudo amarrado de cipoacute
Uma vez quando Geralda estava esquentando fogo quando era moccedila
ocorreu um acidente
Geralda Ah a gente era pobre meu pai comprava aquele paninho bem fininho que a gente falava ldquocarne secardquo aiacute sobrou o resto que minha matildee fez o colchatildeo pegou e mandou meu irmatildeo fazer uma calccedila pra mim Eles ainda ficaram tirando sarro que a calccedila pantalona aiacute as minhas irmatildes tavam ralando uma mandioca pra fazer farinha pra passar Satildeo Joatildeo e eu fiquei esquentando fogo quando eu vi o fogo pegou na minha perna aiacute a minha irmatilde correu e pegou um balde drsquoaacutegua e jogou
Haacute tambeacutem uma outra histoacuteria a da fogueira do dia de Satildeo Joatildeo que me foi
contada por Adir logo que nos encontramos na minha primeira ida a campo ainda na
rodoviaacuteria em sua famiacutelia haacute pessoas como seu irmatildeo Zeacute Maria que jaacute eacute falecido e
tambeacutem tios e tias que eram capazes de andar descalccedilos em cima da brasa da
fogueira de Satildeo Joatildeo Para isso acrescentou Adir eacute preciso ter feacute Assim se a
fogueira aparece nas narrativas de uma situaccedilatildeo de extrema falta de recursos ela
tambeacutem retorna nas memoacuterias de uma famiacutelia que tem tanta feacute que permite que
ocorram milagres como caminhar na brasa ardente sem se queimar
Ao mesmo tempo em que destacam as agruras de um passado difiacutecil um
tempo em que o frio entrava pelas frestas das casas feitas de coqueiro tambeacutem
53
aparece em seus relatos no entanto o sentimento de que havia muito mais uniatildeo no
grupo de parentes A comemoraccedilatildeo do dia de Satildeo Joatildeo por exemplo envolvia o
preparo coletivo da farinha de mandioca e do beiju45 Tambeacutem do manuseio da
mandioca se retirava o polvilho que era utilizado para o preparo de biscoitos46 No
siacutetio em Guaiacutera ressaltam que se hoje moram apenas vinte e tantas pessoas
somavam na deacutecada de 1970 mais de 80 parentes
O iniacutecio da fixaccedilatildeo do grupo em Guaiacutera eacute ressaltado em todas as falas dos
adultos como um tempo de trabalho duro para homens e mulheres Infacircncia difiacutecil
onde produziam quase tudo que consumiam natildeo tinham nem um cobertor nem um
chinelo roupa era produto de luxo Viviam da agricultura de subsistecircncia produccedilatildeo e
criaccedilatildeo de animais para comercializaccedilatildeo arrendamento de terras para derrubada e
plantio atividades que ampliavam o espaccedilo de trabalho para aleacutem das aacutereas
adquiridas Por outro lado destacam a uniatildeo e a solidariedade entre parentes O lote
de Manoel Ciriaco era o ponto de referecircncia para os demais entre os quais havia uma
forte sociabilidade relaccedilotildees de ajuda muacutetua e momentos de diversatildeo do grupo ao
som de vaacuterios instrumentos produzidos por eles mesmos
FIGURA 8 Foto do acervo da famiacutelia tirada na cidade em um ldquoestuacutediordquo (da direita para a esquerda) Seu Davi (esposo de Jovelina) sanfoneiro da famiacutelia com um casal de vizinhos e a esposa de seu primo Maria Madalena com seu filho Antocircnio (marido de Geralda)
45 O beiju eacute ldquouma espeacutecie de patildeo de mandiocardquo Para descriccedilatildeo do modo de preparo tradicional ver a
dissertaccedilatildeo de Andreacuteia Cambuy (CAMBUY 2011 103-105) 46 Estes satildeo alimentos que remetem ao jeito de viver do passado e que satildeo feitos agraves vezes Eles me
foram apresentados pelo meu interesse nas preparaccedilotildees tradicionais mas atualmente envolvem a compra dos ingredientes jaacute prontos do mercado As peccedilas da antiga farinheira estatildeo ainda guardadas mas atualmente natildeo possuem um espaccedilo fiacutesico onde possam reativaacute-la como desejam
54
O grupo de parentes em Guaiacutera engajou-se tambeacutem no plantio e
beneficiamento de hortelatilde (oacuteleo) produccedilatildeo de milho mandioca algodatildeo arroz e o
trabalho como diaristas para os vizinhos-empregadores Tais leques de atividades
contribuiacuteram para um certo grau de autonomia para os membros da comunidade
Poreacutem contam como houve uma grande mudanccedila local com o processo de
mecanizaccedilatildeo da agricultura de modo que os proprietaacuterios vizinhos passaram a natildeo
se interessar pelo arrendamento jaacute que toda a aacuterea de suas propriedades poderia ser
explorada A reduccedilatildeo da aacuterea de trabalho disponiacutevel implicou em grande dificuldade
para a manutenccedilatildeo das famiacutelias que passaram a se deslocar novamente a partir da
deacutecada de 1990
FIGURA 9 Fluxo Migratoacuterio47 FONTE A autora (2015)
Em 1989 ocorre tambeacutem o falecimento de Manoel Ciriaco que era uma
lideranccedila na articulaccedilatildeo das famiacutelias provenientes de Minas Gerais na regiatildeo de
GuaiacuteraPR Ele desempenhava ainda a sua autoridade paterna na condiccedilatildeo de
proprietaacuterio legal da aacuterea de sua famiacutelia (SEYFERTH 1985) coordenando o trabalho
47 A representaccedilatildeo cartograacutefica atraveacutes de linhas de migraccedilatildeo tem um objetivo didaacutetico neste momento
do texto Como veremos no proacuteximo subitem as discussotildees do antropoacutelogo Tim Ingold (2007) problematizam este tipo de representaccedilatildeo do deslocamento atraveacutes da linha reta A representaccedilatildeo com base no autor estaria muito mais proacutexima de um emaranhado de linhas representando o processo do movimento por meio do qual se descobre o proacuteprio caminho
55
familiar e centralizando o contato com pessoas externas Com sua morte deixou
diacutevidas para os filhos que ficaram em uma situaccedilatildeo econocircmica difiacutecil aleacutem de terem
perdido este papel de referecircncia exercido pelo pai48
Este processo de saiacuteda dos parentes de Guaiacutera eacute lembrado como um
momento muito difiacutecil e marcante por aqueles que ficaram Segundo Joaquim noacutes
fiquemo aqui abandonado Atualmente soacute restou destes quatro lotes 85 alqueires do
lote de Manoel Ciriaco sendo que os demais foram vendidos Satildeo vaacuterios os destinos
apontados em relaccedilatildeo aos parentes que migraram na deacutecada de 1990 De Guaiacutera
parentes foram para Salto del Guayra (Paraguai) Satildeo Jorge do PatrociacutenioPR
AssisPR para a regiatildeo Presidente PrudenteSP e uma famiacutelia retornou para Santo
Antocircnio do ItambeacuteMG De volta para regiatildeo de Presidente PrudenteSP onde jaacute
haviam morado na deacutecada de 1960 foram os irmatildeos mais velhos filhos do primeiro
casamento de Manoel Ciriaco com Maria Olinda ndash Olegaacuterio Jovelina e Joatildeo Loriano
ndash aleacutem de Eurides filha de Manoel com Ana Rodrigues
O siacutetio onde residem atualmente fica distante 20 km da sede do municiacutepio de
Guaiacutera e mais proacuteximo da divisa com o municiacutepio vizinho Terra Roxa Segundo me
contaram a permanecircncia ali soacute foi possiacutevel porque resistiram agraves pressotildees dos
proprietaacuterios vizinhos os quais satildeo na maioria gauacutechos descendentes de imigrantes
italianos e alematildees que queriam comprar suas terras e retiraacute-los do bairro rural O
nuacutemero de moradores variou no periacuteodo que estive em campo e a perspectiva do
grupo eacute que aumente com a possibilidade de retorno dos parentes em decorrecircncia da
possiacutevel ampliaccedilatildeo do territoacuterio prevista no processo de titulaccedilatildeo quilombola pelo
INCRA (Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria)49
Segundo Geralda haacute uma divisatildeo natildeo verbalizada entre um ldquoMaracaju dos
Pretosrdquo e um ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo nome pelo qual eacute conhecido o bairro rural onde
vivem A convivecircncia (ou a falta dela) com os gauacutechos eacute um elemento importante para
compreender a manutenccedilatildeo das fronteiras do grupo a partir de uma perspectiva
48 Desde sua morte e de sua esposa Ana Rodrigues em 1994 o inventaacuterio da propriedade ainda natildeo
foi realizado havendo a observaccedilatildeo por parte dos herdeiros inclusive dos que natildeo moram mais no siacutetio em GuaiacuteraPR de um acordo interno para a organizaccedilatildeo do uso da terra entre eles Importante ressaltar que a natildeo realizaccedilatildeo do inventaacuterio eacute uma estrateacutegia importante na organizaccedilatildeo camponesa para evitar a fragmentaccedilatildeo do lote original (SEYFERTH 1985) 49 A questatildeo de quem pode requerer o direito a morar no territoacuterio a partir de relaccedilotildees de pertencimento comeccedila a ser trabalhada pelas lideranccedilas do grupo jaacute que a fase de cadastramento das famiacutelias pelo INCRA eacute a proacutexima etapa do procedimento apoacutes a publicaccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) prevista para 2015
56
poliacutetica e relacional de grupos eacutetnicos50 As relaccedilotildees com seus vizinhos foram
estabelecidas majoritariamente pela mediaccedilatildeo de relaccedilotildees de trabalho informais
Antes do conflito desencadeado com o processo no INCRA mantinham relaccedilotildees
proacuteximas apesar de os quilombolas sempre terem percebido as manifestaccedilotildees de
preconceito racial
Geralda Eu natildeo gosto do Maracaju natildeo gosto daquelas turma Menina porque o que noacutes viveu ali Vocecirc chega na igreja noacutes natildeo vai na Igreja que eacute pra rezar Natildeo eacute pra pessoa pensar olhar laacute no padre Eles ficava olhando se vocecirc tava bem vestido se vocecirc tava limpo Hum negro Negro pra eles natildeo presta Eles fazia amizade com noacutes assim de frente mas eles nenhum gostava de noacutes a gente via na cara a gente natildeo eacute besta Noacutes convivia desde pequeno junto com eles ali Eu natildeo tenho saudade natildeo () Porque eu gosto de morar no lugar que eacute humilde neacute que a gente sente bem Vocecirc mora no lugar pro resto da vida se vocecirc morrer ali vocecirc se sente bem Aqui eacute assim (Vila Eletrosul) tem gente metido mas aqui tem gente legal E a amizade que eu tenho aqui dentro dessa Eletrosul Aqui tem muita coisa mas tanta amizade que eu tenho aqui com crianccedila com gente velho com gente novo eacute rapaz eacute moccedila eacute tudo Laacute no Maracaju natildeo eu natildeo tinha amizade Noacutes ia no baile vocecirc taacute pensando que os rapaz de laacute danccedilava com noacutes Eu posso conta procecirc que eu natildeo dancei com um rapaz laacute dentro do Maracaju Nenhum Eles natildeo danccedilava com noacutes que era preto Aiacute vocecirc vai viver num lugar desse e vocecirc vai ficar feliz
O mapa abaixo mostra a porccedilatildeo de terra da comunidade cercada pelas
propriedades vizinhas De acordo com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico produzido na
comunidade (TERRA AMBIENTAL 2013) pode-se dividir a aacuterea atual em quatro
setores O setor 1 e o setor 2 na parte superior do mapa em verde claro
correspondem agrave aacuterea onde se concentram as casas dos moradores o accedilude a
criaccedilatildeo de pequenos animais e a plantaccedilatildeo de verduras para consumo e comeacutercio
Os setores 3 e 4 satildeo de plantaccedilotildees dos proacuteprios quilombolas de mandioca milho
aveia soja entre outros Depois do setor 4 haacute um pequeno pedaccedilo de 15 alqueires
que foi vendido para o vizinho Jacomine em 1992 (quando da saiacuteda dos trecircs irmatildeos
mais velhos que foram para Presidente PrudenteSP) e por fim a aacuterea de reserva
legal da propriedade
50 O enfoque nas fronteiras nos mecanismos necessaacuterios para criaacute-las e mantecirc-las e na diferenciaccedilatildeo estrutural dos grupos em interaccedilatildeo tornam-se elementos centrais para as anaacutelises que tomam a autoatribuiccedilatildeo como traccedilo fundamental da etnicidade conforme reflexatildeo proposta por Barth acerca do modo de constituiccedilatildeo dos limites sociais dos grupos eacutetnicos (BARTH 2011)
57
FIGURA 10 ldquoDivisatildeo setorial da Comunidade Quilombola Manoel Ciriacordquo FONTE Terra Ambiental Relatoacuterio Antropoloacutegico Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos Guaiacutera ndash PR (p88)
58
Se o grupo familiar saiu de Minas Gerais ateacute o Paranaacute visando a reinserccedilatildeo
social em melhores condiccedilotildees de vida e fugindo do racismo e da marginalizaccedilatildeo
percebe-se que as estruturas de opressatildeo se reproduziram novamente Nestas cinco
deacutecadas em que estatildeo vivendo no Paranaacute natildeo houve a criaccedilatildeo de laccedilos de
parentesco com os vizinhos e a tendecircncia endogacircmica deste grupo familiar que jaacute
ocorria em Minas Gerais acentuou-se Geralda por exemplo eacute casada com Antocircnio
cujo pai Joseacute dos Santos eacute seu primo de 2ordm grau O casamento entre parentes
aparece entatildeo como fator constitutivo da manutenccedilatildeo da coesatildeo do grupo e do
territoacuterio tendo em vista o histoacuterico de deslocamentos (MELLO 2012 p 24) No
entanto para aleacutem de caracteriacutestica proacutepria da organizaccedilatildeo social o racismo e a
discriminaccedilatildeo do entorno reforccedilaram a fronteira do casamento entre brancos e negros
A partir de 2005 com a possibilidade de reivindicarem a identidade
quilombola o estigma do racismo que enfrentaram e ainda enfrentam pocircde ser
recolocado como uma afirmaccedilatildeo positiva de ser negro e uma releitura da proacutepria
trajetoacuteria do grupo Neste sentido
O ato de aquilombar-se ou seja de organizar-se contra qualquer atitude ou sistema opressivo passa a ser portanto nos dias atuais a chama reacesa para na condiccedilatildeo contemporacircnea dar sentido estimular fortalecer a luta contra a discriminaccedilatildeo e seus efeitos Vem agora iluminar parte do passado aquele que salta aos olhos pela enfaacutetica referecircncia contida nas estatiacutesticas onde os negros satildeo maioria dos socialmente excluiacutedos Quilombo vem a ser portanto o mote principal para se discutir parte da cidadania negada (LEITE 2000 p 349)
Tal categoria natildeo correspondia a como os proacuteprios grupos se
autodenominavam de modo que essa identidade quilombola passa a ser politicamente
construiacuteda com base na mobilizaccedilatildeo de elementos histoacutericos e culturais preacute-
existentes em cada caso especiacutefico Ao inveacutes de querer estabelecer portanto uma
ldquouma lista de traccedilos de natureza racial ou cultural originada da interpretaccedilatildeo
historiograacutefica sobre os quilombos da colocircnia ou do Impeacuteriordquo (ARRUTI 2006 p 39-
40)51 deve-se buscar perceber quem satildeo os grupos que se mobilizam a partir desta
51 Tais criteacuterios riacutegidos baseados em estereoacutetipos satildeo defendidos pelos que se opotildeem aos direitos destes grupos sociais e tecircm a despeito do reconhecimento legal do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo uma repercussatildeo significativa no imaginaacuterio geral impactando nas expectativas colocadas em relaccedilatildeo por exemplo ao teor dos relatoacuterios antropoloacutegicos
59
identidade tomando como base o criteacuterio de autoidentificaccedilatildeo como reconhecido pelo
ordenamento juriacutedico brasileiro52
Com a inserccedilatildeo do artigo 68 no Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais
Transitoacuterias no acircmbito da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 a literatura antropoloacutegica
sobre quilombos vem destacando a diversidade de estrateacutegias e saiacutedas produzidas
pelos grupos sociais que passaram a se mobilizar politicamente e a se reconhecerem
a partir da ldquometaacutefora do quilombordquo (OrsquoDWYER 2011 p 120) Esta diversidade de
experiecircncias sociais dos quilombos implica na necessidade de ressemantizar o
conceito histoacuterico e compreender processos especiacuteficos como o caso da Comunidade
Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos
Nesta experiecircncia social a identidade quilombola eacute pensada a partir de uma
origem comum que se desdobra por meio do movimento de deslocamento do grupo
em uma trajetoacuteria de resistecircncia Para o reconhecimento de trajetoacuterias histoacutericas
coletivas como esta como aponta o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho eacute
muito importante o processo de amadurecimento teoacuterico que sai da abordagem da
ldquoantropologia das perdasrdquo para anaacutelises dos processos de emergecircncia eacutetnica jaacute que
ldquoo que seria proacuteprio das identidades eacutetnicas eacute que nelas a atualizaccedilatildeo histoacuterica natildeo
anula o sentimento de referecircncia agrave origem mas ateacute mesmo o reforccedilardquo (OLIVEIRA
FILHO 1998 p 64) Assim eacute necessaacuterio olhar para o processo que gerou a
territorialidade reconhecendo a historicidade a dinamicidade bem como a variedade
de estrateacutegias dos grupos quilombolas
12 A MEMOacuteRIA DOS CAMINHOS E OS CAMINHOS DA MEMOacuteRIA
ldquoA histoacuteria de nosso bisavocirc escravo chamado negro Joseacute Joatildeo Paulo
casado com a negra Maria Joana O lugar que eles moravam no
Estado de Minas Gerais era a cidade de Santo Antocircnio Itambeacute do
Serro aonde eles eram escravizados pelo sinhocirc na eacutepoca da
escravidatildeo Eles eram escravizados no garimpo tirano ouro e pedras
preciosas Ele e sua esposa naquela eacutepoca trabalhavam junto no
52 O criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo atualmente estaacute consagrado em acircmbito internacional e nacional por uma seacuterie de dispositivos normativos Neste sentido destaca-se a convenccedilatildeo 169 da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho sobre Povos Indiacutegenas e Tribais que estabelece em seu artigo 1ordm ldquoA consciecircncia de sua identidade indiacutegena ou tribal deveraacute ser considerada como criteacuterio fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposiccedilotildees da presente Convenccedilatildeordquo Esta convenccedilatildeo foi ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo nordm 143 de 2062002 e entrou em vigor em 2003 No que tange agrave questatildeo especificamente quilombola o Decreto Federal 4887 de 2003 em seu artigo 2ordm sect 1ordm estabelece que ldquoPara os fins deste Decreto a caracterizaccedilatildeo dos remanescentes das comunidades dos quilombos seraacute atestada mediante autodefiniccedilatildeo da proacutepria comunidaderdquo
60
garimpo e tiveram filhos e filhas Seus filhos eram negra Maria
Eduarda negra Dolarina Domingos dos Santos negra Jorgina
Domingos dos Santos negro Joaquim Domingos dos Santos negro
Sebastiatildeo Dama Domingos dos Santos e negro Raimundo Domingos
dos Santos Eles criavam seus filhos com restos que seu sinhocirc dava e
agraves vezes ficavam ateacute sem comer para render mais porque a comida
era pouca ateacute aacutegua era retirada da mina eles tinham que beber aacutegua
suja para poder ateacute cozinhar Aiacute se um negro chegasse perto dessa
mina eles era amarrado e chicotiado e ficavam preso numa das parte
da senzala e ficavam muitos dias ateacute sem comer e doentes por causa
das chicotiadas Seu lugar de descanso eram chamados de lapa
chamado de caverna ou casa de pedra Ali se abrigavam em muitos
para poder aquecer do frio porque natildeo tinham roupa nem sapatos
andavam descalccedilos e assim criavam os seus filhos como meu avocirc
Joaquim Paulo dos Santos que se casou com Maria Zidora dos
Santos que tiveram seus filhos chamados Manoel Ciriaco dos Santos
Sebastiatildeo Vicente dos Santos Ana Raimunda dos Santos Na eacutepoca
que eles se casaram eles natildeo eram mais escravos jaacute eram alforriados
e trabalhavam para os senhores do retiro nos garimpo e na lavoura de
cana e cafeacute A cana para poder fazer a cachaccedila a rapadura e o
melado Eles vivia disso mais trabalhava mais natildeo tinha valor o seu
serviccedilo e moravam tambeacutem na lapa (casa de pedra) que nem foram
criados nos seus costumes porque natildeo era valorizado e ali criavam
seus trecircs filhos junto no trabalho da lavoura e alimentavam Aiacute casou
um dos seus filhos o que era meu pai Manoel Ciriaco dos Santos que
casou com Maria Olina do primeiro casamento que teve quatro filhos
com sua primeira esposa Os filhos Jovelina Ciriaco dos Santos Luiza
Ciriaco dos Santos Olegario da Silva e Joatildeo Loriano dos Santos E aiacute
foi trabalhar para poder criar seus quatro filhos no Estado de Minas
Gerais em Santo Antonio do Itambeacute do Serro O meu pai trabalhava
no retiro dos fazendeiros com carpi lavoura de mandioca retirando
carvatildeo no garimpo do ouro Transportava cachaccedila o queijo rapadura
carne secada no sol farinha de mandioca milho O transporte era feito
na cangaia no lombo de burro que era o trabalho que meu pai fazia
Era pra quem trabalhava que ele chamava de seus fulanos que eram
os fazendeiros para sustentar a sua primeira famiacutelia Com o passar do
tempo o meu pai perdeu a minha irmatilde que faleceu com 8 anos laacute em
Minas Gerais Ela se chamava Luiza Ciriaco dos Santos Meu pai ficou
viuacutevo ai ele ficou sozinho para poder cuidar dos filhos aiacute resolveu
casar de novo com a minha matildee Ana Rodrigues dos Santos aiacute tiveram
quatro filhos laacute no Estado de Minas Gerais Eurides dos Santos
Sebastiana Feliciana dos Santos Antocircnio Gregoacuterio dos Santos e Joseacute
Maria Gonccedilalves Aiacute eu sai dali com minha matildee e meu pai e meus
irmatildeos eu tinha seis meses de vida Aiacute naquela eacutepoca meu pai deixou
o meu irmatildeo com sete anos o Joatildeo Loriano dos Santos Aiacute nos fomos
para o Estado de Satildeo Paulo na cidade de Caiabuacute perto de Presidente
Prudente no ano de 1956 municiacutepio de Martinoacutepolis Meus pais
tiveram mais dois filhos Joaquim dos Santos e Geralda dos Santos Laacute
meu pai trabalhava torrando farinha para meu tio aiacute ele foi pra uma
fazenda arrendocirc uma terra de fazendeiro aiacute prantocirc amendoim
algodatildeo feijatildeo aiacute depois de oito anos noacutes saiacutemos de laacute e vinhemos
para o Paranaacute em 1964 na cidade de Guairaacute no Patrimocircnio do
Maracaju dos Gauacutechos aonde noacuteis residimos ateacute hoje Mais na
chegada aqui era tudo mato aiacute eu meu pai e meus irmatildeos mais velhos
ajudamos meu pai a caccedilar e derrubar a mata Fizemos uma barraca de
lona e acampamos no meio do mato Aiacute com o tempo fizemos um
rancho com taubinha de cedro e cercado de coqueiro e no chatildeo
61
passava argila misturada com esterco de vaca Noacuteis dormia no chatildeo e
minha matildee cozinhava no fogatildeo de barro mais mesmo assim noacutes
passava necessidade tinha dia que noacutes natildeo tinha nem o angu para
comer nem feijatildeo Caccedilava caccedila do mato pescava assava e comia
porque a gordura noacuteis natildeo tinha Minha matildee lavava nossa roupa No
lugar do sabatildeo porque natildeo tinha usava cinza de madeira e lavava na
mina Aiacute com o tempo noacuteis fomo roccedilando fomo preparando a terra e
aiacute saiu a lavoura que noacuteis comecemos a plantar Com o tempo tivemos
mais trecircs irmatildeos Paulo dos Santos Adir Rodrigo dos Santos e Joatildeo
Aparecido dos Santos Com o tempo o meu irmatildeo Paulo ele era
deficiente mental aiacute veio a falecer com 15 anos Aiacute depois faleceu
Manoel Ciriaco dos Santos com 69 anos Aiacute depois faleceu Antocircnio
Gregoacuterio dos Santos faleceu com 35 anos depois faleceu Sebastiana
Feliciana dos Santos depois faleceu Ana Rodrigues dos Santos aiacute
depois que meus pais e meus irmatildeos faleceram ficamos soacute nois os
filhos Continuamos lidando com a terra mais com muita dificuldade
Passamos fome e humilhaccedilatildeo pelos grande fazendeiro porque na
eacutepoca que meu pai faleceu deixou muita diacutevida por causa da lavoura
aiacute comeccedilamos a trabaiaacute por dia para poder sustentar nossas famiacutelia e
assim mesmo tinha muita dificuldade para pode pagar as contas Por
causa disso noacutes nunca pudemos ir pra frente soacute ficamos pra trais aqui
nesse lugar passamos a trabaiaacute mais por dia pros outros nas lavoura
de mandioca para pequeno e grande agricultor para podecirc pagar as
nossas contas e mesmo assim natildeo conseguimos porque se pagasse
as contas ficava sem comer Trabalhamos no rancadatildeo de mandioca
para poder se alimentar Com muita dificuldade trabalhamos dias
mecircs anos e ateacute hoje continuamos no mesmo serviccedilo sem futuro pra
noacutes e nossos filhos Isto eacute um pouco da nossa histoacuteria da nossa
comunidade e o contador da histoacuteria eacute o negro Joseacute Maria Gonccedilalves
filho do Manoel Ciriaco dos Santosrdquo (Joeacute Maria Gonccedilalves) (GRUPO
DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA 2010 p 149-151)
A fala apresentada acima eacute central para este trabalho por ser a primeira
narrativa do grupo para agentes do Estado que foi registrada53 O finado Zeacute Maria eacute o
narrador perante os membros do Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM)54 e resume
a trajetoacuteria histoacuterica da comunidade Ele era na eacutepoca o mais velho dentre os irmatildeos
que permaneceram no siacutetio em GuaiacuteraPR depois da saiacuteda da maior parte das
famiacutelias a partir da deacutecada de 1990 Com este decreacutescimo de famiacutelias e com a morte
dos mais velhos que vieram de Minas (tendo como referecircncia principal os pais Manoel
Ciriaco falecido em 1989 e Ana Rodrigues em 1994) os adultos que ficaram na
comunidade se tornaram os portadores das lembranccedilas daqueles que vivenciaram
esta histoacuteria familiar de movimento Zeacute Maria por exemplo saiu de Minas Gerais com
53 Este relato foi gravado em 15 de janeiro de 2007 Disponiacutevel em httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=69 Acesso em 30042014 54 Grupo Intersecretarial criado pelo governo do estado do Paranaacute em 2005 para realizar levantamento de comunidades quilombolas no estado Foi extinto em 2010
62
apenas seis meses de vida Dentre os irmatildeos mais novos que satildeo os que
permanecem em Guaiacutera atualmente Joaquim (55) e Geralda (53) nasceram no estado
de Satildeo Paulo proacuteximo a Presidente Prudente ndash no municiacutepio de CaiabuSP ndash
enquanto Adir (46) e Joatildeo Aparecido (43) nasceram no Pararaacute em Guaiacutera55
Na narrativa acima observa-se que a organizaccedilatildeo dos fatos se daacute de modo
cronoloacutegico e tem iniacutecio com o marco fundamental dos seus bisavocircs casal ancestral
que foi escravizado em Santo Antocircnio Itambeacute do SerroMG Suas lembranccedilas falam
da situaccedilatildeo de pobreza e sofrimento dos antepassados associada a elementos como
o trabalho escravo no garimpo a moradia na senzala a submissatildeo agrave violecircncia fiacutesica
a fome a falta de acesso a roupa e recursos baacutesicos O nascimento de seu pai
Manoel Ciriaco dos Santos em 1920 eacute um acontecimento destacado eacute ele o
personagem central do processo de deslocamento do grupo para o Paranaacute Durante
toda a narrativa destaca os viacutenculos de parentesco nascimentos casamentos e
mortes em uma percepccedilatildeo do tempo baseada na sequecircncia de geraccedilotildees Zeacute Maria
reforccedila que mesmo com o fim da escravidatildeo seus avoacutes continuaram a trabalhar para
os senhores no garimpo e na lavoura de cana e cafeacute tendo se mantido a
desvalorizaccedilatildeo de seu trabalho e a dificuldade de sobrevivecircncia da famiacutelia Indica que
a alforria natildeo trouxe portanto uma mudanccedila significativa para as suas condiccedilotildees de
vida e as relaccedilotildees de trabalho O movimento em etapas eacute iniciado pelas famiacutelias ateacute
chegarem em Guaiacutera onde conquistam novas aacutereas de terra atraveacutes do trabalho duro
em uma histoacuteria de ldquoluta e humilhaccedilatildeordquo O narrador finaliza sua histoacuteria demonstrando
os motivos pelos quais os membros da comunidade natildeo tecircm perspectivas de futuro
pois tal reconfiguraccedilatildeo acaba novamente reproduzindo a opressatildeo
Esta narrativa como todo ato de recordaccedilatildeo deve ser entendida como uma
interpretaccedilatildeo e natildeo como recordaccedilatildeo literal Trata-se da ldquoconstruccedilatildeo de um
lsquoesquemarsquo de uma codificaccedilatildeo que nos permite discernir e por isso recordarrdquo
(CONNERTON 1999 p 30) A autoidentificaccedilatildeo final do narrador como negro bem
como sua insistecircncia em destacar tal caracteriacutestica em relaccedilatildeo aos parentes parece
55 No plano narrativo uma situaccedilatildeo rememorada natildeo seraacute contada a partir de um narrador onisciente
que daacute um testemunho autecircntico e estaacute ldquoacima do desenvolvimento dos fatos mas a partir de um narrador parcial e imerso em seu interiorrdquo permeado portanto pela rede de relaccedilotildees em que se insere o narrador Eacute o processo de visatildeo decorrente do caraacuteter parcial do ponto de vista em sua subjetividade e natildeo os fatos que satildeo vistos o que eacute mais relevante na anaacutelise das narrativas de memoacuterias o que aponta para as condiccedilotildees sociais de sua produccedilatildeo bem como suas articulaccedilotildees com o momento presente (PORTELLI 1996 p 64)
63
apontar a percepccedilatildeo do lugar que cabe ao negro nos contextos descritos O aspecto
da resistecircncia do grupo natildeo eacute lido pelo narrador como confronto aberto em relaccedilatildeo agrave
ordem instituiacuteda Resistir eacute de certa forma persistir na reproduccedilatildeo da ldquocampesinidade
como ordem moralrdquo (WOORTMANN 1990) na luta contiacutenua por estar na terra
condiccedilatildeo de sua existecircncia material afetiva e simboacutelica o que aponta para uma
amaacutelgama entre resistecircncia racial e resistecircncia camponesa (RUBERT SILVA 2009)
Na histoacuteria desta famiacutelia portanto o foco do deslocamento natildeo era o urbano
como comum na deacutecada de 1960 mas a possibilidade de reinserccedilatildeo do grupo por
meio da reproduccedilatildeo do trabalho rural Este anseio do grupo pode ser inserido como
desdobramentos de um panorama histoacuterico mais amplo no qual a resistecircncia dos ex-
escravos passou pela consolidaccedilatildeo de uma alternativa camponesa que
() possibilite a autonomia produtiva direcionada tanto para o autoconsumo quanto para diversos circuitos do mercado Essa autonomia produtiva soacute eacute possiacutevel por sua vez mediante a consolidaccedilatildeo de um espaccedilo em que instacircncias de socializaccedilatildeo que no caso satildeo fundamentadas em uma gramaacutetica do parentesco operam a passagem por parte de escravos e ex-escravos da condiccedilatildeo de coisa agrave condiccedilatildeo de pessoa (RUBERT SILVA 2009 p 267)
A busca pela reproduccedilatildeo camponesa destas famiacutelias negras implicou entatildeo
na decisatildeo de saiacuterem de sua regiatildeo origem com o alto custo emocional e econocircmico
que tal escolha gera O antropoacutelogo Klaas Woortmann com importante contribuiccedilatildeo
para os estudos do campesinato demonstrou como a migraccedilatildeo eacute uma praacutetica de
reproduccedilatildeo dos camponeses enquanto condiccedilatildeo para a permanecircncia de parte da
famiacutelia na aacuterea rural Isso porque a migraccedilatildeo definitiva tem como um dos principais
motivos minimizar ou impedir o fracionamento da terra pela heranccedila56 tendo em vista
o processo histoacuterico de reduccedilatildeo da aacuterea do campesinato pelo avanccedilo capitalista
Outro mecanismo para preservar o patrimocircnio familiar eacute o ldquopadratildeo de preferecircncias
matrimoniaisrdquo pelo casamento endogacircmico (WOORTMANN 2009 p 229-230)
praacutetica que era comum nestas famiacutelias negras desde Minas e que se mantiveram no
processo de migraccedilatildeo A definiccedilatildeo de quem dentro da famiacutelia se tornaraacute migrante
passa por praacuteticas como a valorizaccedilatildeo da primogenitura que define a condiccedilatildeo de
ldquoherdeiro preferencialrdquo No caso de Manoel Ciriaco ao passo que Manoel migrou o
irmatildeo mais velho Sebastiatildeo Vicente tornou-se herdeiro da terra da famiacutelia
56 Assim tambeacutem demonstrou o estudo de Galizoni sobre a regiatildeo especiacutefica do Alto Jequitinhonha (MG) como citado na Introduccedilatildeo (GALIZONI 2002)
64
Devem migrar todos os filhos de determinada famiacutelia menos o herdeiro Para
os membros de um conjunto de irmatildeos haacute portanto como que duas temporalidades
a continuidade para uns e a descontinuidade para outros Para que uns continuem
sitiantes outros devem deixar de secirc-lo (WOORTMANN 2009 p 233) A migraccedilatildeo
ocorre por meio da rede de parentesco os que migram de uma mesma localidade
tendem a buscar um destino comum Laacute iratildeo constituir redes onde se replica o
casamento entre primos e forma-se um sistema de apoio para novos migrantes
(WOORTMANN 2009 p 234) Conforme expliacutecito no cartaz que seraacute apresentado
abaixo exposto no barracatildeo da comunidade o movimento destas famiacutelias negras eacute
compreendido na memoacuteria do grupo como parte fundamental do processo de
emergecircncia eacutetnica
O iniacutecio da trajetoacuteria de deslocamento da comunidade eacute identificado no
cartaz57 abaixo em referecircncia ao traacutefico de africanos para serem comercializados
como escravos no Brasil mais especificamente no estado de Minas Gerais O paiacutes de
origem na Aacutefrica de onde imaginam serem provavelmente descendentes eacute Angola
mas natildeo haacute informaccedilotildees sobre este passado mais remoto A relaccedilatildeo com a regiatildeo de
origem africana surgiu a partir da identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas fiacutesicas comuns a
alguns membros da comunidade Segundo Adir lideranccedila quilombola em Guaiacutera
Nosso pessoal natildeo veio de um lugar soacute da Aacutefrica porque tem uns que satildeo alto e magro canela fina que o senhor do engenho usava mais no serviccedilo da roccedila Outros que satildeo mais baixo e forte satildeo mais lento usava mais no trabalho em casa As mulheres mais fortes mais baixa mais troncuda eacute que serviria para dar de mamar para as crianccedilas do senhor de engenho
57 O cartaz foi elaborado pelos membros da comunidade junto com uma teacutecnica da EMATER com quem tecircm forte proximidade quando da inauguraccedilatildeo em 2008 do Telecentro (sala com computadores com acesso a internet) instalado na comunidade pela empresa ELETROSUL Nesta oportunidade foi feita uma festa no barracatildeo da comunidade para receber as pessoas da regiatildeo (inclusive Adir destacou que os vizinhos do Maracaju estiveram presentes pois ainda natildeo havia ocorrido o conflito desencadeado pela elaboraccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico no acircmbito do procedimento do INCRA) Para divulgar a histoacuteria da comunidade nesta oportunidade resolveram entatildeo fazer um cartaz em que contassem os momentos principais da sua trajetoacuteria marcada pelo deslocamento Atualmente o cartaz fica exposto no barracatildeo da comunidade ndash espaccedilo onde fazem reuniotildees ocorrem as aulas de educaccedilatildeo de jovens e adultos jogam capoeira recebem visitas de escolas e agentes diversos
65
FIGURA 11 Cartaz sobre a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia
66
Em Minas Gerais onde os antepassados dessas famiacutelias criaram raiacutezes
ldquocomeccedila a saga da famiacutelia dos Remanescentes dos Quilombos com a histoacuteria do
patriarca Manoel Ciriaco dos Santos A famiacutelia morava em uma lsquolaparsquo de pedra A vida
era feita de fome e muito trabalhordquo como legendado no cartaz A palavra saga aponta
para o caraacuteter heroico que eacute atribuiacutedo a esta histoacuteria dos antepassados pois de Minas
Gerais tiveram que sair rumo ao desconhecido com bebecircs crianccedilas idosos com
poucos recursos para a viagem enfrentando inuacutemeras dificuldades e desafios para
buscarem oportunidades no estado de Satildeo Paulo Foi a ldquomudanccedila de vida rumo a Satildeo
Paulo com destino a Caiabu O trabalho colheita de algodatildeo e amendoimrdquo Por fim
o terceiro momento descrito no cartaz eacute marcado pelo deslocamento em direccedilatildeo ao
Paranaacute e eacute identificado como sendo a ldquoconquista da liberdade Manoel Ciriaco compra
terras em Guaiacutera no Estado do Paranaacute em 1962 A famiacutelia do patriarca chega ao
patrimocircnio do Maracaju dos Gauacutechos em suas terras no ano de 1964rdquo A liberdade
real significa entatildeo a autonomia e a possibilidade de reproduccedilatildeo do grupo viabilizada
pela conquista de um pedaccedilo de terra em Guaiacutera um ldquoterritoacuterio quilombolardquo a partir
do qual novas conquistas seratildeo alcanccediladas pela comunidade
Ao comparar a fala de Zeacute Maria com a trajetoacuteria descrita no cartaz eacute possiacutevel
perceber que ele na articulaccedilatildeo de suas memoacuterias ainda natildeo apontava o caminho
do reconhecimento como quilombolas enquanto uma possibilidade de alteraccedilatildeo do
percurso histoacuterico de exclusatildeo que narra jaacute que conclui sua fala apontando para a
falta de perspectiva de futuro para ele e seus parentes No caso do cartaz ao
contraacuterio a perspectiva de futuro aparece com a conquista do territoacuterio e
posteriormente com o conhecimento de uma seacuterie de direitos dos quais se
consideram detentores e em busca dos quais passam a se organizar em torno da
identidade quilombola Isto mostra como a memoacuteria eacute dinacircmica enquanto fruto do
trabalho coletivo realizado com base no ldquorepertoacuterio de narrativas de uma comunidade
afetivardquo Tal repertoacuterio estaacute ldquoem permanente relaccedilatildeo com o oral apresentando-se
sempre como versatildeo aberta permanentemente reconstruiacuteda pelas trocas sociais e
constantemente reestabelecida pela repeticcedilatildeo e pela negociaccedilatildeo de versotildeesrdquo
(ARRUTI1996 p 32-33)
Considerando que a fala de Zeacute Maria foi registrada nos primeiros contatos dos
representantes do grupo com agentes externos em janeiro de 2007 eacute interessante
observar que o eixo narrativo do deslocamento do sofrimento e da discriminaccedilatildeo
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provavelmente natildeo foi elaborado com a intenccedilatildeo de adequar a histoacuteria do grupo como
uma resposta agrave demanda pela construccedilatildeo identitaacuteria enquanto quilombolas pois esta
questatildeo natildeo aparece em sua reflexatildeo Por outro lado em termos de sistematizaccedilatildeo
histoacuterica da trajetoacuteria do grupo que lhe foi demandada naquele momento os
elementos que estruturaram o seu relato continuaratildeo a subsidiar este processo de
construccedilatildeo identitaacuteria quilombola da comunidade em GuaiacuteraPR
O cartaz por sua vez elaborado pelos membros da comunidade junto com
uma teacutecnica da EMATER com quem consideram ter uma relaccedilatildeo de bastante
confianccedila e proximidade tambeacutem tinha o intuito de contar visualmente a histoacuteria da
comunidade Isto ocorreu em 2008 apoacutes a autoidentificaccedilatildeo do grupo como
quilombolas de modo que eacute possiacutevel observar como o cartaz aponta para a afirmaccedilatildeo
desta identidade como o comeccedilo de um novo ciclo na histoacuteria dessas famiacutelias desde
seus antepassados Se no seacuteculo XIX foram escravizados em Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG e laacute resistiram ateacute a deacutecada de 50 do seacuteculo XX com os deslocamentos e
a reorganizaccedilatildeo do grupo em Guaiacutera novas perspectivas de futuro se apresentam
pelo caminho da identidade quilombola no iniacutecio do seacuteculo XXI Deste modo ldquoa
identidade contrastiva constituiacuteda sob a eacutegide do estigmardquo seraacute invertida como uma
afirmaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a si mesmos (RUBERT SILVA 2009 p 252-258)
A elaboraccedilatildeo da identidade quilombola conforme eacute possiacutevel perceber na fala
de Adir passa a ser construiacuteda a partir da temaacutetica da resistecircncia frente a contextos
contiacutenuos de adversidade desde nossos antepassados da luta e da busca pela
efetivaccedilatildeo dos nossos direitos A categoria de autoidentificaccedilatildeo como ldquoquilombolasrdquo
seraacute mobilizada portanto a partir de elementos preacute-existentes da histoacuteria e da
memoacuteria do grupo Esta fala foi realizada para um puacuteblico de alunos de uma escola
da regiatildeo que visitaram a comunidade na semana da comemoraccedilatildeo da aboliccedilatildeo da
escravatura (13 de maio) em 20 de maio de 201458
Adir () Vou contar pra vocecircs as nossas dificuldades a nossa luta no dia a dia a nossa trajetoacuteria desde os nossos antepassados na Aacutefrica trajetoacuteria da Aacutefrica em navio negreiro de laacute pra caacute e tambeacutem da onde o nosso pessoal foi
58 Esta foi uma de muitas visitas que recebem (segundo Adir recebem mais de mil pessoas durante o
ano todo enfatizando a intensidade dos agendamentos) quando satildeo procurados principalmente por professores da regiatildeo que querem levar os alunos para conhecer a histoacuteria dos quilombolas Aleacutem do 13 de maio as visitas ocorrem com maior frequecircncia proacuteximo ao dia 20 de novembro dia da consciecircncia negra A professora que acompanhou este grupo especiacutefico em 20 de maio de 2014 contou ao final da apresentaccedilatildeo de Adir como jaacute incorporou a visita agrave comunidade como uma proposta de levar todo ano seus alunos para conhecer o ldquoquilombo de Guaiacuterardquo
68
centralizado no estado em Minas Gerais onde o trabalho desde o trabalho escravo e depois o trabalho nas mesmas fazendas garimpo de ouro cana-de-accediluacutecar cafeacute Entatildeo todo aquele trabalho que eles faziam em Minas Gerais desde os mais velhos que sofreram na eacutepoca da escravidatildeo Eu sei que o local onde eles morava laacute era um local de difiacutecil acesso em loca de pedra muito difiacutecil o trabalho deles o sofrimento fome sem identidade sem nenhum tipo de direito e isso fez com que eles saiacutessem de laacute e procuramos um local melhor procurando sobreviver melhor e aconteceu que hoje noacutes estamos aqui Eles fizeram a trajetoacuteria de Minas ateacute o Estado de Satildeo Paulo e do estado de Satildeo Paulo nessa regiatildeo aqui em Guaiacutera Eacute uma regiatildeo de muito preconceito o local onde a gente taacute centralizado aqui Me lembro que na idade de vocecircs que a gente estudava no coleacutegio a gente era chamado de macaco de filho do capeta natildeo tinham respeito com a gente jaacute dizia que por causa da cor da pele jaacute significava tudo pra eles a separaccedilatildeo de negro e de branco Entatildeo noacutes sobrevivemos a tudo isso o maior preconceito e mesmo assim noacutes trabalhamos pra eles Depois que a gente cresceu os nossos mais velhos dependiam do trabalho porque quando nosso pai chegou era tudo o mato natildeo tinha nada a sobrevivecircncia era tirar o sustento tambeacutem da mata aproveitar ao maacuteximo possiacutevel pra sobrevivecircncia e poder criar a famiacutelia Aqui noacutes aprendemos a nossa religiatildeo aqui noacutes aprendemos a trabalhar e respeitar as pessoas aqui noacutes aprendemos a sobreviver de forma difiacutecil de forma sofrida E por isso a gente taacute aqui hoje mesmo com esse sofrimento todo toda a pressatildeo opressatildeo de latifundiaacuterio opressatildeo que queria tomar as nossas terras opressatildeo de toda forma E noacutes a nossa resistecircncia pra noacutes taacute aqui ateacute hoje aqui nessa luta sem sonho sem poder sem direito E noacutes a partir de 2005 e 2006 foi aonde que a gente criou essa esperanccedila de que a gente podia conhecer os nossos direitos lutar se organizar construir uma associaccedilatildeo e aonde a gente aprendeu e ainda estamos aprendendo muitas coisas para noacutes requerer nossos direitos Natildeo digo soacute direito da terra mas direito tambeacutem das poliacuteticas puacuteblicas direito de conviver com a naccedilatildeo direito de sobreviver com dignidade e que as pessoas possam nos respeitar E de vocecirc olhar pra um negro e dizer que esse negro natildeo deve andar no meio da sociedade natildeo possa ter as suas poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode ter nada de garantia nem sobrevivecircncia Mas a nossa mentalidade hoje a gente pensa diferente de antes Antes a gente ficava calado a gente natildeo falava numa religiatildeo a gente natildeo falava na nossa culinaacuteria e a gente natildeo podia falar em nada tudo que a gente aprendeu e aprendia isso era guardado soacute na mente E hoje natildeo hoje a gente possa pronunciar que a gente vecirc o direito que tecircm E natildeo soacute por causa do direito porque eu acho que nem precisaria a gente ficar correndo atraacutes de algum direito Se eacute que o negro trabalhou nesse paiacutes de forma injusta e quantos derramaram o seu sangue nesse solo brasileiro pra construir esse paiacutes que natildeo precisava a gente taacute aiacute nessa correria pra recorrer aos nossos direitos recorrer a algumas coisas e ateacute mesmo agrave nossa sobrevivecircncia
Nesta construccedilatildeo identitaacuteria raccedila eacute um conceito ecircmico fundamental no
cotidiano das pessoas que influenciou de modo determinante os significados
atribuiacutedos agrave identidade quilombola neste grupo (MELLO 2012 p 50) A importacircncia
da noccedilatildeo de raccedila no contexto local remete ao processo de ldquooutrificaccedilatildeordquo a que a
populaccedilatildeo negra foi submetida no Brasil conforme analisado por Rita Segato ldquoser
negro significa exibir traccedilos que lembram e remetem agrave derrota histoacuterica dos povos
africanos perante os exeacutercitos coloniais e sua posterior escravizaccedilatildeordquo Enquanto
ldquoalteridade histoacutericardquo a experiecircncia de ldquoser outro no contexto da naccedilatildeo e da regiatildeordquo
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(SEGATO 2005) eacute ainda mais sentida pelos membros do grupo em sua inserccedilatildeo na
regiatildeo Sul do Brasil onde a segregaccedilatildeo racial remonta ao projeto estatal de
branqueamento da populaccedilatildeo no iniacutecio do seacuteculo XX Mas se antes natildeo se sabiam
ldquoquilombolasrdquo e ficavam calados como aponta Adir passaram entatildeo a se pronunciar
a partir do processo de autoidentificaccedilatildeo identitaacuteria que toma os deslocamentos como
marcos de uma histoacuteria de resistecircncia contiacutenua
Assim o ldquocaminhar quilombolardquo que orienta as narrativas locais no acircmbito do
processo de emergecircncia do grupo como sujeito poliacutetico tema deste capiacutetulo
questiona o cerne dos estereoacutetipos constituintes dos discursos colonial e poacutes-colonial
sobre a construccedilatildeo da alteridade nos termos de sua ldquodependecircncia em relaccedilatildeo ao
conceito de lsquofixidezrsquo Fixidez implica repeticcedilatildeo rigidez e uma ordem imutaacutevelrdquo como
observou o autor indiano Homi Bhabha (BHABHA 1998 p 70-104) Este discurso de
fixidez tem grande reverberaccedilatildeo dentre os agentes do Estado que satildeo aqueles que
instituem categorias para identificaccedilatildeo de sujeitos de direitos coletivos que passam
desta forma a ser objeto da accedilatildeo estatal o que Arruti entende por ldquoprocesso de
nominaccedilatildeordquo (ARRUTI 2006 p 45-46)
Tomando por base tal ideia de ldquofixidezrdquo a ldquopoliacutetica das identidadesrdquo tende a
captar e reduzir as expressotildees de ldquoidentidades poliacuteticasrdquo que foram engendradas
como resposta dos grupos sociais ao processo hegemocircnico e verticalizante de
produccedilatildeo de ldquoalteridades histoacutericasrdquo A autoidentificaccedilatildeo dos grupos de saiacuteda estaacute
sobredeterminada pela ldquopoliacutetica das identidadesrdquo que eacute institucionalizada legal e
administrativamente em torno da perspectiva de enraizamento territorial o que pode
implicar na perda da profundidade histoacuterica da complexidade de origem da riqueza e
da densidade ldquodas outredades localmente modeladasrdquo (SEGATO 2005) como no
caso de uma comunidade quilombola que se constroacutei a partir do movimento e natildeo na
relaccedilatildeo ancestral com um mesmo territoacuterio Identidade quilombola esta reivindicada
vale destacar pelo grupo que saiu da regiatildeo de origem
A partir destas narrativas e reflexotildees dos quilombolas em Guaiacutera os debates
do antropoacutelogo britacircnico Tim Ingold em seu livro Lines a brief history ganharam
relevacircncia para as anaacutelises desta dissertaccedilatildeo O autor traz exemplos de cosmologias
de grupos para os quais o movimento consiste em um modo de ser Este eacute o caso do
povo Inuit habitantes da regiatildeo do Aacutertico para os quais o ato de viajar define quem o
viajante eacute Neste sentido o viajante e a linha de seu movimento sua trilha satildeo o
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mesmo Outro exemplo eacute do povo Walbiri estudado por Roy Wagner para os quais a
vida de uma pessoa eacute a soma de seus caminhos e a inscriccedilatildeo de seus movimentos
algo que pode ser traccedilado atraveacutes do chatildeo (INGOLD 2007 p 75-79)
Por mais efecircmeras que sejam essas trilhas permanecem na memoacuteria pois o
trajeto eacute mais do que a distacircncia de um ponto ao outro Implica em atividades
permanentes de interaccedilatildeo e de monitoramento perceptivo do ambiente visando a
sustentaccedilatildeo daquele que o percorre (INGOLD 2007 p 76) Observando uma estreita
ligaccedilatildeo entre locomoccedilatildeo e percepccedilatildeo Ingold define movimento como
(hellip) Not a casting about the hard surfaces of a word in which everything is already laid out but an issuing along with things in the very process of their generation not the trans-port (carrying across) of completed being but the pro-duction (bringing forth) of perpetual becoming (INGOLD 2011 p 12)
A partir dessa compreensatildeo de movimento Ingold elabora sua perspectiva do
habitar que perpassa a imersatildeo dos seres nas correntes do mundo da vida atraveacutes
da atenccedilatildeo e do engajamento com o ambiente em um movimento ao longo de um
caminho no qual as vidas satildeo vividas os talentos desenvolvidos as observaccedilotildees satildeo
feitas e as compreensotildees crescem Observaccedilatildeo implica movimento todos os seres
observadores satildeo animais e todos os animais satildeo moacuteveis O caminho deste modo eacute
a condiccedilatildeo primeira de ser ou melhor de se tornar jaacute que ldquowayfaring is the
fundamental mode by which living beings inhabit the earthrdquo (INGOLD 2011 p 09-12)
O autor reforccedila a prioridade dos processos contiacutenuos sobre a forma final na constante
coproduccedilatildeo do ambiente e de seus habitantes humanos e natildeo humanos Questiona
assim as premissas de uma antropologia sincrocircnica jaacute que esta desconsidera a
historicidade dos grupos sociais em suas trajetoacuterias A questatildeo poreacutem eacute mais ampla
pois tambeacutem eacute possiacutevel abordar a histoacuteria atraveacutes de lugares e eventos circunscritos
A ecircnfase seria em Ingold principalmente em dinacircmicas e processos os quais natildeo se
fixam em momentos ou locais especiacuteficos A anaacutelise de tais movimentos portanto
demandaraacute em sua abordagem uma perspectiva necessariamente diacrocircnica
Ingold dialoga com outras propostas teoacutericas da antropologia que buscam
superar o paradigma da fixidez em prol de anaacutelises que trabalhem com a fluidez59 O
59 Esta anaacutelise proposta por Ingold estaacute conectada com a influecircncia trazida para as discussotildees
contemporacircneas da Antropologia por meio do livro Mil Platocircs dos filoacutesofos franceses Deleuze e Guattari cuja primeira ediccedilatildeo eacute de 1980 Com o enfoque analiacutetico na complexidade na heterogeneidade na coexistecircncia nos processos os autores apontam para a importacircncia das
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autor entende que a vida se desenvolve natildeo dentro dos lugares mas atraveacutes em
torno e a partir deles para outros lugares ao longo dos caminhos em trajetoacuterias de
movimento A ideia do que se pode tentar traduzir como ldquoviagem a peacuterdquo (wayfaring) eacute
utilizada entatildeo para descrever a experiecircncia corporal deste movimento
perambulatoacuterio pois eacute como ldquocaminhantesrdquo que os humanos habitam a terra O autor
prefere entatildeo conceituar as pessoas como ldquohabitantesrdquo e natildeo como ldquolocaisrdquo pois
seria equivocado supor que estas pessoas estivessem confinadas dentro de um lugar
particular ou que sua experiecircncia ficasse circunscrita pelo restrito horizonte de uma
vida vivida apenas ali Trata-se ao contraacuterio da ligaccedilatildeo entre lugares que ocorre por
meio das trilhas deixadas Onde as pessoas se encontram neste caminhar as trilhas
se entrelaccedilam formando um noacute O lugar portanto eacute como um noacute mais ou menos
denso de acordo com a quantidade de linhas de vida entrelaccediladas (INGOLD 2011
p 148)
Dentro deste modo de anaacutelise o siacutetio onde vivem os quilombolas de
GuaiacuteraPR pode ser entendido como um noacute de trilhas entrelaccediladas cuja origem
descreve uma linha de conexatildeo com o noacute originaacuterio Santo Antocircnio do ItambeacuteMG60 e
um outro noacute tambeacutem relevante na regiatildeo de Presidente PrudenteSP Natildeo uma
territorialidade fechada e circunscrita em Guaiacutera mas uma base territorial que
diferentes linhas que compotildeem uma multiplicidade Apesar de sua relevacircncia e profundidade teoacuterica iremos apenas mencionar que no que tange aos processos de territorializaccedilatildeo tema que se relaciona diretamente com a anaacutelise desta dissertaccedilatildeo a partir da ecircnfase no movimento haveraacute sempre um potencial de desterritorializaccedilatildeo e de reterritorializaccedilatildeo conforme as respostas agenciadas diante de elementos cuja interferecircncia gera novos contextos de modo que as configuraccedilotildees nunca satildeo fechadas Por outro lado ponderam que o aparelho do Estado enquanto ldquoo logos o filoacutesofo-rei a transcendecircncia da Ideia a interioridade do conceito a repuacuteblica dos espiacuteritos o tribunal da razatildeo os funcionaacuterios do pensamento o homem legislador e sujeitordquo natildeo compreende em sua atuaccedilatildeo de sobrecodificaccedilatildeo este tipo de dinacircmica presente por exemplo em praacuteticas como a do nomadismo (DELEUZE GUATTARI 2000 [1997] p 35) Neste sentido importante mencionar que a proacutepria descriccedilatildeo do funcionamento do rizoma modelo epistemoloacutegico nesta teoria filosoacutefica aponta para dinacircmicas de territorializaccedilatildeo e desterritorializaccedilatildeo e reterritorializaccedilatildeo Por um lado as linhas de segmentaridade que compotildeem o rizoma iratildeo estratificaacute-lo de modo a territorializaacute-lo e organizaacute-lo mas por outro o rizoma tambeacutem eacute composto por linhas de desterritorializaccedilatildeo linhas de fuga as quais podem reencontrar ldquoorganizaccedilotildees que reestratificam o conjuntordquo Resumidamente podemos entender o rizoma a partir da seguinte citaccedilatildeo ldquooposto a uma estrutura que se define por um conjunto de pontos e posiccedilotildees por correlaccedilotildees binaacuterias entre estes pontos e relaccedilotildees biuniacutevocas entre estas posiccedilotildeesrdquo O rizoma eacute feito somente de linhas ldquolinhas de segmentaridade de estratificaccedilatildeo como dimensotildees mas tambeacutem linha de fuga ou de desterritorializaccedilatildeo como dimensatildeo maacutexima segundo a qual em seguindo-a a multiplicidade se metamorfoseia mudando de naturezardquo (DELEUZE GUATTARI 2000 p 31) 60 Antes das viagens realizadas para Santo Antocircnio do Itambeacute e Serro em Minas Gerais no final da
pesquisa em marccedilo e junho de 2015 estas conexotildees permaneciam no plano da memoacuteria posteriormente o viacutenculo estaacute sendo reconstruiacutedo com os parentes que foram (re)encontrados
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possibilitou a reproduccedilatildeo de uma comunidade61 que se entende aberta em uma
articulaccedilatildeo entre identidade parentesco e origem comum Importante destacar que
um elemento importante na construccedilatildeo desta identidade tambeacutem passa pela
possibilidade de movimento que surge atraveacutes de viagens que se tornaram frequentes
na vida da lideranccedila do grupo Adir em contato com agentes externos em encontros
reuniotildees audiecircncias etc Para seguir nas trilhas abertas pelos habitantes da
comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos natildeo se pode portanto
desconsiderar a importacircncia dessas relaccedilotildees externas inclusive para ldquoproduzir natildeo soacute
o a imagem do grupo mas o proacuteprio grupordquo
Nesta produccedilatildeo o exerciacutecio de representaccedilatildeo das ldquolideranccedilas peregrinasrdquo
em seu papel de porta-voz eacute fundamental ao ldquose fazerem conhecer por autoridades
extra-locaisrdquo atraveacutes do circuito das viagens e do paulatino domiacutenio da loacutegica de
mediaccedilatildeo (ARRUTI 1996 p 57) A busca por reconhecimento contatos acesso a
direitos projetos de futuro atraveacutes das lideranccedilas em constantes viagens podem ser
entendidas portanto como ldquoverdadeiras romarias poliacuteticasrdquo (OLIVEIRA FILHO 1998
p 65) Pude acompanhar uma dessas viagens da lideranccedila do grupo Adir para a
participaccedilatildeo como delegado representando o estado do Paranaacute na Conferecircncia
Nacional de Educaccedilatildeo (CONAE)62 em novembro de 2014 que ocorreu em
BrasiacuteliaDF Durante o evento Adir me falou em uma entrevista sobre sua experiecircncia
com viagens para diversos encontros que destaca como um dos pontos mais
61 Se em relaccedilatildeo aos parentes que estatildeo fora a comunidade quilombola natildeo pode ser vista como
unidade fechada em relaccedilatildeo aos que estatildeo morando no territoacuterio vale ressaltar isso tambeacutem natildeo se sustenta O papel de lideranccedila de Adir apesar de natildeo haver candidato disposto agrave substituiacute-lo mesmo depois de sete anos na presidecircncia da ACONEMA colocaria segundo outros parentes me falaram seu nuacutecleo familiar numa posiccedilatildeo privilegiada Por outro lado Adir entende que sua atuaccedilatildeo como lideranccedila as constantes viagens para outras cidades ou mesmos os deslocamentos entre a comunidade e a sede do municiacutepio em Guaiacutera (distante vinte quilocircmetros do siacutetio) prejudica seu trabalho como agricultor e a possibilidade de dedicaccedilatildeo agrave sua ldquovida particularrdquo o que os outros parentes natildeo reconheceriam Haacute tambeacutem fissuras internas em relaccedilatildeo ao modo adequado de gerir a associaccedilatildeo e de lidar com os projetos e programas do governo que a comunidade acessa o que fica restrito a conversas indiretas e natildeo eacute explicitado em contextos mais amplos tendo em vista que mais do que um grupo poliacutetico trata-se de relaccedilotildees de convivecircncias diaacuterias de uma comunidade estruturada nos viacutenculos de parentesco Haacute tambeacutem visotildees dissonantes de projetos de futuro entre as geraccedilotildees sendo que os jovens satildeo criticados pelos mais velhos por natildeo valorizarem as ldquofacilidadesrdquo que eles teriam se comparado com a infacircncia e juventude de precariedade material que os adultos viveram Os jovens satildeo vistos como seduzidos por padrotildees de consumo por exemplo e distantes de Deus Apesar da relevacircncia das dinacircmicas internas natildeo me aprofundarei neste tema No entanto se enfatizo a dimensatildeo do grupo em distinccedilatildeo ao contexto local natildeo desconsidero essas fissuras internas e a criacutetica necessaacuteria a uma idealizaccedilatildeo do conceito de comunidade como unidade harmocircnica 62 Adir foi delegado com direito a voz e voto na Conferecircncia por indicaccedilatildeo estadual enquanto representante ldquodos movimentos de afirmaccedilatildeo da diversidaderdquo Dentro deste conceito estavam abarcados os seguintes movimentos ldquoLGBT movimento feminista movimento negro representaccedilatildeo quilombola representaccedilatildeo social dos povos indiacutegenasrdquo conforme regulamento da conferecircncia
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positivos em relaccedilatildeo agrave inserccedilatildeo da comunidade no movimento quilombola O grupo
passou a ter contato com os oacutergatildeos puacuteblicos estaduais de modo que ele chegou a
fazer treze viagens em um mesmo ano para Curitiba capital do Paranaacute distante mais
de setecentos quilocircmetros de Guaiacutera
Tais viagens como reforccedilou Adir o transformaram profundamente e o
construiacuteram enquanto lideranccedila Nesta viagem para Brasiacutelia em novembro de 2014
jaacute era a quarta vez que Adir estava na capital nacional Segundo ele a primeira vez
que laacute esteve foi a viagem mais marcante pois as lideranccedilas quilombolas foram
recebidas no dia 20 de novembro o ldquoDia da Consciecircncia Negrardquo pelo entatildeo
presidente da repuacuteblica Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que estava comeccedilando a abrir a
porta para as comunidades quilombolas no governo federal Adir relata como por
meio desta participaccedilatildeo em encontros eventos reuniotildees foi aos poucos perdendo a
timidez que considera caracteriacutestica dos membros do grupo quando em contato com
pessoas de fora
Adir Comecei a se soltar um pouco mas na hora que eu falava eu tremia porque totalmente uma realidade diferente da que noacutes veve a nossa vida ali foi uma vida inteira soacute ali entre noacutes mesmos No mais as pessoas ali da cidade que a gente as vezes no comeccedilo a gente nem ia soacute vivia entre noacutes aiacute depois ter o conhecimento na cidade mas a vida pacata mesmo aquela vidinha laacute escondida Ai de repente acontece o reconhecimento da nossa comunidade aiacute eu comeccedilo a sair em busca de objetivo melhoria em vaacuterias aacutereas poliacuteticas puacuteblicas Ai comecei a conhecer pessoas de dentro do estado comecei a conhecer pessoas fora do estado e hoje eu tenho contato no RS SC MS BA um monte contato com outras comunidades quilombolas e aldeia indiacutegena
A caracteriacutestica de movimento como algo que empodera as lideranccedilas
tambeacutem estaacute presente na anaacutelise de Yara Alves em seu artigo Como etnografar um
mundo em que tudo gira gera e mexe sobre a comunidade quilombola de Pinheiro
no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais A relaccedilatildeo entre ldquoandanccedilasrdquo e ldquosabedoriardquo
eacute acionada pelos membros do grupo no contexto de sua inserccedilatildeo no movimento
quilombola a partir das experiecircncias das viagens a eventos realizadas pelas
lideranccedilas ao representarem a associaccedilatildeo63 (ALVES 2015 p 85) Deste modo as
63 A centralidade do movimento abrange tambeacutem outras formas e escalas de socialidade do grupo As
ldquosaiacutedas para trabalharrdquo que os conectam com a regiatildeo do interior de Satildeo Paulo municiacutepio de Barreirinha eacute um dos elementos que compotildeem movimentos muacuteltiplos ldquoencarados de maneiras diversas e altamente valorizados - um motor existencial muito mais do que um recurso econocircmicordquo
(ALVES 2015)
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viagens feitas pelas lideranccedilas poliacuteticas adquirem uma dimensatildeo fundamental no
processo de emergecircncia eacutetnica dos grupos sociais
No caso da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos portanto a
possibilidade de deslocamento constituiu a experiecircncia dos antepassados enquanto
estrateacutegia de conquista de condiccedilotildees melhores de vida para as famiacutelias e continua se
desdobrando na ativa atuaccedilatildeo da lideranccedila do grupo em viagens fora de Guaiacutera Eacute a
partir do processo de elaboraccedilatildeo identitaacuteria que ocorre a passagem de uma
experiecircncia de silenciamento para a possibilidade de se pronunciarem sobre a proacutepria
identidade e buscarem novos caminhos de reproduccedilatildeo social do grupo
13 O CONTINUUM DA RELIGIOSIDADE
A importacircncia das dinacircmicas de movimento para a Comunidade Quilombola
Manoel Ciriaco dos Santos que buscamos demonstrar ateacute aqui tambeacutem estaacute
presente na dimensatildeo da religiosidade dos membros do grupo tema que iremos tratar
neste subitem Na minha uacuteltima viagem a campo para Presidente PrudenteSP
realizada no iniacutecio de agosto de 2015 pude perceber como as relaccedilotildees entre
movimento e religiosidade estavam presentes na histoacuteria do grupo de um modo
marcante na proacutepria motivaccedilatildeo da saiacuteda de Manoel Ciriaco de Minas O intuito desta
viagem de campo foi visitar D Ana Raimunda irmatilde de Manoel Ciriaco que haviacuteamos
encontrado em marccedilo morando em SerroMG e que em junho ajudamos a trazecirc-la
de mudanccedila para morar com a sobrinha D Jovelina em Presidente PrudenteSP
Nas outras duas viagens anteriores em que estive com D Ana em marccedilo e
em junho de 2015 natildeo havia tido oportunidade de conversar com ela sobre os motivos
que impulsionaram a saiacuteda de seu irmatildeo Manoel Ciriaco de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG em 1956 quando foi embora e nunca mais voltou Imaginando que ela
iria me falar das dificuldades de sobrevivecircncia de toda a famiacutelia na terra que era
heranccedila da matildee deles Izidora sou surpreendida com sua resposta ela conta que o
que desencadeou a saiacuteda de Manoel foi que ele ficou muito doente e assim que
melhorou resolveu ir embora O movimento inicial de deslocamento do grupo familiar
segundo me contou tinha sido impulsionado por causas maacutegico-religiosas
D Ana Raimunda Ele ficou doente depois a cabeccedila esquentou e saiu de laacute que laacute era bom e era ruim ficou doente demais doenccedila quase matou ele laacute mas Deus ajudou que
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Dandara Mas era coisa feita pra ele
D Ana Raimunda Era ele oh (fez sinal com as matildeos)
Dandara Tinha tambeacutem desentendimento entre os parentes
D Ana Raimunda Tinha cascou fora foi bom ter vindo embora se natildeo ia mais de pressa neacute Entatildeo eles vieram e a gente ficou laacute rezando se apegando com Deus pra eles Demorou dar notiacutecia nossa ela (Izidora matildee de D Ana e Manoel) ficava chorando dia e noite eu falei natildeo chora natildeo que eles daacute notiacutecia e como deu neacute deu notiacutecia que tava bem graccedilas a Deus
Se ateacute agora analisamos os fatores sociais e econocircmicos que contribuiacuteram
para a decisatildeo de deslocamento destas famiacutelias neste momento da conversa com D
Ana vieram agrave tona informaccedilotildees sobre como dentro deste quadro social mais amplo
as tensotildees sociais internas foram decisivas e atuaram para o impulso de saiacuteda
Importante observar neste sentido que natildeo haacute uma reaccedilatildeo mecacircnica ao
desenvolvimento regional mas sim uma combinaccedilatildeo de fatores externos e internos
ao grupo familiar
A fala de D Ana aponta para uma acusaccedilatildeo de que Manoel teria sido alvo de
uma agressatildeo maacutegica com consequecircncias muito seacuterias pois quase o levou agrave morte
e que quando ele se recuperou dos efeitos deste enfeiticcedilamento64 deu na cabeccedila de
vir embora As dimensotildees maacutegico-religiosas nesta visatildeo de mundo especiacutefica
portanto podem gerar deslocamentos concretos
Neste momento do texto apresento alguns exemplos sinteacuteticos65 do modo
como a religiosidade implica em movimento concretos na trajetoacuteria de vida dessas
pessoas e tambeacutem estaacute permeada por movimentos natildeo concretos em seu cotidiano
Estes movimentos sutis se apresentam por exemplo no acircmbito das relaccedilotildees que satildeo
estabelecidas entre o humano e o divino como quando acionam a capacidade de se
64 Importante considerar que a histoacuteria sobre a morte de Manoel em GuaiacuteraPR tambeacutem eacute narrada como
resultado de um feiticcedilo Geralda me contou que foi uma pessoa bem proacutexima da famiacutelia que tinha muita inveja de Manoel porque eles tinham progredido ele era respeitado e querido na cidade Relatou que Manoel estava trabalhando na roccedila e foram buscar uma aacutegua para ele a seu pedido Soacute que o pessoal que estava na roccedila comeccedilou a achar estranho que estava demorando demais para voltarem e parecia ateacute que tinham ido furar o poccedilo D Ana falou com Manoel que ela estava esganado por aacutegua e por quecirc natildeo esperava chegar em casa A pessoa que fez o feiticcedilo entatildeo pegou um sapo raspou o couro dele e pocircs na aacutegua Daiacute Manoel bebeu mas os outros natildeo quiseram porque tinham cisma Com o passar do tempo ele comeccedilou a se sentir mal natildeo conseguia comer porque sentia gosto de areia a pressatildeo subia foi piorando sofreu muito ateacute que morreu Ressalta-se que estas natildeo foram as uacutenicas histoacuterias sobre feiticcedilo que me foram relatadas durante o trabalho de campo no entanto natildeo irei me deter neste assunto pois isso geraria uma dispersatildeo no texto 65 Natildeo eacute possiacutevel levando em conta o enfoque analiacutetico da dissertaccedilatildeo abordar as questotildees relativas
agrave religiosidade do grupo com a profundidade necessaacuteria em apenas um subitem Por isso iremos analisar sobre a religiosidade apenas alguns aspectos que satildeo relevantes para o conjunto do argumento do texto no que tange ao tema do movimento
76
deslocar entre mundos e conectar subjetividades temporalidades e espacialidades
distintas Os mortos os espiacuteritos as entidades os santos em suas diversas formas
de manifestaccedilatildeo satildeo agentes importantes e presentes no dia-a-dia dos quilombolas
As formas como suas praacuteticas de devoccedilatildeo satildeo interpretadas pelos vizinhos
consideradas como preconceituosas pelos quilombolas eacute tambeacutem uma dimensatildeo
importante Este preconceito que combina dimensotildees raciais e religiosas como
iremos analisar impulsionou a saiacuteda de Antocircnio filho de Manoel Ciriaco que realizava
trabalhos mediuacutenicos na comunidade Ele teve que ir morar na periferia de Guaiacutera
pois sua praacutetica espiritual como curador e meacutedium natildeo era aceita no bairro rural
ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo
A religiosidade importante destacar eacute uma esfera significativa de reproduccedilatildeo
da memoacuteria comunitaacuteria e do viacutenculo que o grupo manteacutem com a regiatildeo de origem
Aleacutem de narrativa (cognitiva) como analisamos no subitem anterior a memoacuteria eacute
tambeacutem performativa e corporal O reencenamento do passado na conduta presente
constitui uma ldquomnemocircnica do corpordquo66 muito caracteriacutestica nas culturas orais67
conforme analisado no livro Como as sociedades recordam do antropoacutelogo Paul
Connerton (CONNERTON 1999 p 86) Um dos aspectos interessantes desta
mnemocircnica corporal quilombola foi indicado por Geralda que trabalha como meacutedium
em um terreiro de Umbanda haacute mais de sete anos a experiecircncia da incorporaccedilatildeo de
entidades como os pretos-velhos permite a reativaccedilatildeo de memoacuterias dos espiacuteritos de
escravos
Tais espiacuteritos satildeo investidos de eficaacutecia e de autoridade para fornecer
conselhos de cura para os vivos quando incorporados nos meacutediuns Estas entidades
espirituais se apresentam no terreiro de Umbanda para lidar com todos os tipos de
problemas pessoais da clientela que frequenta o terreiro Enquanto ldquoculto de
possessatildeordquo a Umbanda eacute composta por um panteatildeo que integra ldquoalgumas entidades
do candombleacute aleacutem de novos estereoacutetipos como iacutendios preto-velhos tropeiros
66 Para aleacutem das histoacuterias narrativas nos interessam tambeacutem o processo de permanecircncia social
enfocado atraveacutes da noccedilatildeo de ldquomemoacuteria-haacutebitordquo enquanto capacidade de reproduzir determinada accedilatildeo que dentro da dimensatildeo social eacute ldquoingrediente essencial para o desempenho bem-sucedido dos coacutedigos e normasrdquo Haacute outras formas de lembrar por exemplo por meio de ldquoatos de transferecircncia que tornam possiacutevel recordar em conjuntordquo Trata-se de ldquotipos particulares de repeticcedilatildeordquo que ocorrem no acircmbito da ldquomemoacuteria comunalrdquo como vivenciado nas cerimocircnias comemorativas e nas praacuteticas corporais (CONNERTON 1999 p 44) 67 Em contraste com a cultura escrita caracterizada pela ldquopraacutetica de inscriccedilatildeordquo por meio da qual a
memoacuteria se reproduz atraveacutes dos ldquodispositivos de armazenamento e recuperaccedilatildeo de informaccedilatildeordquo (CONNERTON 1999 p 84-87)
77
baianosrdquo Com profunda influecircncia do Espiritismo e do Catolicismo popular e derivada
em boa parte do Candombleacute a Umbanda deu cobertura para uma seacuterie de ldquopraacuteticas
miacutesticas populares altamente estigmatizadasrdquo Eacute a proacutepria marginalidade desses
espiacuteritos no que tange aos valores estabelecidos pelo sistema social hegemocircnico a
fonte da forccedila e da capacidade que possuem para resolver as afliccedilotildees humanas
(BRUMANA MARTIacuteNEZ 1991 p 64-86)
A manifestaccedilatildeo dos pretos-velhos ou as pretas-velha espiacuteritos de velhos(as)
escravos(as) traz agrave tona temas da memoacuteria coletiva brasileira e da ideologia religiosa
que resiste agraves hierarquias alienantes do colonialismo e do capitalismo (MATORY
2007 p 405) A representaccedilatildeo sobre estes espiacuteritos enquanto importante siacutembolo da
identidade nacional abrange desde a submissatildeo resignada agrave resistecircncia heroica do
escravo (HALE 1997 p 393)
These spirits constitute sign vehicles through which Umbandistas interpret and explore themes of racism national identity domination suffering and redemption within a moral framework broadly informed by the values and motifs of popular Catholicism At the same time pretos velhos work a reciprocal semiotic movement through them these cultural discourses and collective memories constitute bodily experience by way of spirit possession and spirit performance (HALE 1997 p 393)
Eacute por meio dessa experiecircncia corporal vivenciada por Geralda
quinzenalmente como meacutedium na ldquoAssociaccedilatildeo Espiacuterita Reino de Baluaecircrdquo que ela faz
a associaccedilatildeo dos pretos-velhos com sua trajetoacuteria pessoal e familiar Enquanto
quilombolas agricultores ela compara o desgaste fiacutesico que tiveram em decorrecircncia
dessas atividades rurais com a experiecircncia dos pretos(as) velhos(as) quando viveram
na terra e trabalharam como escravos(as) Esta memoacuteria corporal se manifesta na
forma de incorporaccedilatildeo do meacutedium quando ldquoo controle social do corpo natildeo eacute
simplesmente abolido no transe mas substituiacutedo por outro controle o dos estereoacutetipos
corporais da incorporaccedilatildeo de cada entidade miacutesticardquo (BRUMANA MARTINEZ 1991
p 84) A maioria destas entidades exibem sinais caracteriacutesticos de idade e debilidade
fiacutesica caminham debruccediladas sobre suas bengalas com rigidez articular movimentos
trabalhados e pausados Ao incorporarem no meacutedium portanto apresentam um
ldquodesempenho corporalrdquo que passa por uma certa codificaccedilatildeo estereotiacutepica que as
identificam entre si e as distinguem das demais entidades atraveacutes de atributos
materiais como o cachimbo e o vinho doce podendo usar chapeacuteu de palha e lenccedilos
(BRUMANA MARTINEZ 1991 p 240)
78
Podemos pensar nas entidades da Umbanda enquanto mediadores entre
temas culturais mais abrangentes e a experiecircncia corporal Ademais aleacutem desta
codificaccedilatildeo a performance da possessatildeo espiritual vai ocorrer tambeacutem a partir de
uma ldquogramaacutetica da accedilatildeo socialrdquo a partir do contexto do proacuteprio meacutedium (HALE 1997
P 393) Assim os pretos-velhos podem ser analisados como veiacuteculos atraveacutes dos
quais
Umbandistas speak to and embody Brazilian dramas of race and power () Their bodies are worn-out from hard labor torture hunger and accident This is understood most of the time the physical signs stand as a mute reproach for the suffering inflicted by the allegedly benevolent system of Brazilian slavery (HALE 1997 p 395 397)
Geralda entende que eacute a partir dessa experiecircncia comum que ela ganha forccedila
como meacutedium para trabalhar com os(as) pretos-velhos(as) Segundo ela me contou
sobre as histoacuterias dessas entidades eles(as) cantavam para aliviar a dor de tanto que
apanhavam amarrados com a matildeo para traacutes e com os cantos louvavam a Nossa
Senhora Aparecida para que os ajudassem E completou ldquoera soacute no chicote ficavam
presos comendo aquele angu os restos quando a princesa Isabel libertou os
negros eles louvaram a Deusrdquo Ela se lembrou tambeacutem de como ouvia seus pais
contarem sobre os parentes que tinham trabalhado como escravos em Minas Gerais
e da avoacute Maria Bernarda que chorava e falava que eles natildeo tinham liberdade
O acionamento dos espiacuteritos dos antepassados dos negros representado de
um modo abrangente por estas entidades espirituais deste modo faz com que se
tornem mediadores da elaboraccedilatildeo identitaacuteria o que reforccedila a forccedila poliacutetica da
memoacuteria revivida nos rituais da Umbanda Este paralelismo construiacutedo na fala de
Geralda sobre a experiecircncia de trabalho racismo pobreza escravidatildeo em relaccedilatildeo agraves
entidades dos pretos-velhos foi se explicitando ao longo do trabalho etnograacutefico
Segundo ela como trabalhou muito catando algodatildeo sabe bem o que eacute o trabalho
duro e o porquecirc de os pretos-velhos serem encurvados pois era de tanto trabalhar na
roccedila no sol quente Eacute por causa da lembranccedila deste corpo torturado sujeito a um
sofrimento ilegiacutetimo que quando o preto-velho sai do corpo do meacutedium e
desincorpora eles te mata ocecirc de tatildeo sofrido que eles eram
79
FIGURA 12 Geralda com imagem de preto-velho que compotildee o seu altar
Esta memoacuteria do sofrimento ilegiacutetimo do tempo da escravidatildeo se desdobra
em uma infeliz continuidade que se estende ao tempo presente Neste sentido haacute
uma reflexatildeo feita pelos quilombolas sobre como a pobreza assim como o racismo
institui uma realidade contraacuteria agrave vontade divina jaacute que foi Deus que nos deu esta cor
e todos somos irmatildeos perante a Ele Nesse sentido a cunhada de Geralda casada
com seu irmatildeo Joaquim Eva que eacute a principal referecircncia da praacutetica do catolicismo na
comunidade de Guaiacutera comenta sobre como passou a ter orgulho de sua cor
Eva Eu tenho o maior orgulho que eu sou preta eu natildeo tenho problema que eu sou preta natildeo Deus me deu esta cor e eu natildeo ligo natildeo () De primeiro eu tinha vergonha que eu era preta eu natildeo ligo que eu sou preta natildeo Deus fez eu assim eu tenho que ficar assim vou fazer o quecirc Natildeo tem como a pessoa mudar mais Eacute a vontade de Deus assim a cor da pessoa com sauacutede
A ideia de que haveria uma maior sacralidade dos negros eacute recorrente neste
grupo quilombola Liliana Porto encontrou uma concepccedilatildeo proacutexima nas suas
pesquisas no Vale do Jequitinhonha e aponta que ldquosatildeo os negros e pobres os
80
legiacutetimos representantes do divinordquo (PORTO 2007 p 143) Estas duas experiecircncias
de subalternidade a pobreza e o racismo muito presentes na histoacuteria do grupo
quilombola em Guaiacutera satildeo vistas por eles como recompensadas por Deus por outro
lado atraveacutes da presenccedila de dons mediuacutenicos e espirituais em vaacuterios membros da
famiacutelia como meacutediuns benzedores e adivinho Desde os meus primeiros contatos
com a comunidade ainda em 2011 quando eu era assessora do Ministeacuterio Puacuteblico
Geralda jaacute se identificara como umbandista e nos mostrou sua carteirinha do Conselho
Mediuacutenico do Brasil (CEBRAS)
FIGURA 13 Carteirinha de Geralda do Conselho Mediuacutenico do Brasil
As histoacuterias da manifestaccedilatildeo da mediunidade e dons de benzimento cura e
adivinhaccedilatildeo satildeo muito valorizadas internamente como um dom Seria como uma
missatildeo recebida do plano superior que coloca em movimento o acesso agraves fontes do
sagrado democratizando-o e provocando uma ldquorotinizaccedilatildeo dos milagresrdquo (BRUMANA
MARTINEZ 1991 p 23-25) A histoacuteria do finado Zeacute Maria eacute muito interessante
neste sentido Como me contou Geralda quando ele nasceu ele veio dentro de uma
espeacutecie de capa um envoltoacuterio que era um iacutendice reconhecido pelos adultos de sua
capacidade de adivinhaccedilatildeo um dom que ele jaacute veio trazendo porque Deus deu a ele
A parteira (Maria Inaacutecia das Dores matildee de Antocircnio e sogra de Geralda) que conhecia
o significado desta peculiaridade perguntou para D Ana matildee de Zeacute Maria se ela
81
queria guardar a capa mas a matildee disse que natildeo e esta foi enterrada Se tivesse sido
guardada quando ele completasse sete anos poderia ser confirmado seu dom
adivinhatoacuterio atraveacutes do seguinte desafio pegariam a roupa que ele usou quando
nasceu e colocariam no meio de outras Se ele adivinhasse qual era a que tinha usado
na ocasiatildeo de seu nascimento o seu dom estaria confirmado Mesmo este processo
natildeo tendo sido feito Geralda reforccedilou como ele era sabido e natildeo falava nada errado
ou seja o dom estaacute presente independente de um processo ritual de confirmaccedilatildeo
Haacute entre os membros do grupo a referecircncia mais forte dos seguintes
benzedoresbenzedeiras que jaacute faleceram e vieram de Minas Gerais morar em Guaiacutera
Ana Rodrigues (esposa de Manoel Ciriaco) Altina (tia de Ana Rodrigues irmatilde de sua
matildee Maria Bernarda) Maria Madalena (nora de Altina e sogra de Geralda) Geraldo
(filho de Altina e pai de Eva) Sobre Geralda sua matildee Ana Rodrigues benzeu muita
gente no ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo e depois falavam que a gente natildeo prestava
FIGURA 14 Altina importante benzedeira na memoacuteria comunitaacuteria68
68 Ela faleceu com 108 anos e segundo acreditam essa era sua idade miacutenima jaacute que ela foi registrada
em Minas Gerais e antigamente se demorava para fazer o registro da crianccedila
82
Segundo Geralda nascida em 1962 e criada em Guaiacutera no siacutetio os meus pais
criaram noacutes assim iam buscar remeacutedio na casa dos benzedor o que destaca o
aspecto maacutegico das concepccedilotildees de sauacutede e doenccedila na comunidade Os remeacutedios
eram predominantemente caseiros produzidos a partir da proacutepria mata como as
garrafadas os chaacutes o uso terapecircutico de uma diversidade de plantas medicinais A
restauraccedilatildeo da sauacutede neste contexto eacute permeada por uma concepccedilatildeo ampla que
natildeo se restringe a males com origens fiacutesicas mas perpassam uma seacuterie de ameaccedilas
miacutesticas como o mau-olhado o quebrante ateacute a feiticcedilaria que soacute podem ser revertidos
por meio de benzeccedilotildees simpatias curas recebidas espiritualmente ou no caso do
feiticcedilo com accedilotildees de defesa que anulem seus efeitos69 Um contexto semelhante eacute
analisado por Porto a partir da etnografia realizada proacuteximo da regiatildeo de origem do
grupo no Alto Jequitinhonha
No universo acima delineado a percepccedilatildeo do processo sauacutede e doenccedila eacute bastante complexa envolvendo uma seacuterie de avaliaccedilotildees em torno de questotildees religiosas maacutegicas e orgacircnicas e natildeo sendo evidente a separaccedilatildeo entre estas esferas () natildeo se baseia em uma distinccedilatildeo clara entre natural e sobrenatural Mesmo a distinccedilatildeo entre ldquodoenccedila de meacutedicordquo e ldquodoenccedila de curadorrdquo hoje existente me parece muito mais o resultado de um processo de especializaccedilatildeo dos serviccedilos de cura e a classificaccedilatildeo natildeo eacute necessariamente excludente (PORTO 2005)
Geralda ressaltou vaacuterias vezes em conversas comigo e tambeacutem pude
observar na minha estadia em sua casa a quantidade de pessoas que ela benze
neste caso ldquosozinhardquo aleacutem do benzimento que ela faz como meacutedium no terreiro Haacute
para ela um sentido de obrigaccedilatildeo como benzedeira em atender a todos que lhe
pedem ajuda Desde pequena relatou jaacute pediam para que ela benzesse mas ela natildeo
queria e fugia Quando comeccedilou a trabalhar na Umbanda a demanda de benzimento
69 Atualmente satildeo muito mais dependentes da aquisiccedilatildeo de remeacutedios e alguns frequentam meacutedicos
regularmente tanto no postinho do Maracaju onde haacute uma tarde disponibilizada na semana exclusivamente para os quilombolas Haacute tambeacutem casos que dependem dos deslocamentos promovidos pelo municiacutepio principalmente a Cascavel para tratamentos especializados agendados pelo SUS (principalmente Joaquim que tem problema na perna Eva e Geralda que tecircm problemas nos olhos) Adir e Joaquim fazem questatildeo de frisar que natildeo tomam remeacutedio de farmaacutecia e Nilza viuacuteva de Zeacute Maria me relatou que foi pouquiacutessimas vezes no meacutedico durante toda a sua vida Se por um lado a medicina busca se impor como discurso hegemocircnico por outro os especialistas populares de cura natildeo desaparecem bem como haacute manifestaccedilotildees de resistecircncia de algumas pessoas da comunidade em aderir a ida aos meacutedicos ou o uso de remeacutedios como tratamento (PORTO 2013a p 73)
83
aumentou bastante e as entidades lhe orientaram no sentido de que ela tinha que
benzer sem restriccedilatildeo para que pudesse ter a felicidade em sua vida70
Em relaccedilatildeo aos dons mediuacutenicos entre os membros da comunidade de
Guaiacutera satildeo mais citados os irmatildeos de Geralda ldquofinado Antocircniordquo ldquofinado Zeacute Mariardquo e
Joaquim Geralda e seu marido Antocircnio conhecido como Guaraacute Os pais de Geralda
seu Manoel e dona Ana segundo ela comentou jaacute frequentavam centro de umbanda
desde Minas Gerais mas natildeo trabalhavam O finado Antocircnio assassinado no comeccedilo
da deacutecada de 90 eacute a principal referecircncia de trabalhos mediuacutenicos tendo manifestado
seus dons desde crianccedila enquanto ldquouma capacidade inata para encontrar e incorporar
espiacuteritosrdquo sem necessidade de iniciaccedilatildeo para tanto (SANSI 2009 p 141)
Segundo Sansi as religiotildees afro-brasileiras incorporam a histoacuteria em suas
praacuteticas rituais atraveacutes da relaccedilatildeo dialeacutetica entre a iniciaccedilatildeo pela reproduccedilatildeo das
dinacircmicas da tradiccedilatildeo e o dom expresso na capacidade dos meacutediuns de
incorporarem novos espiacuteritos (SANSI 2009) A presenccedila de manifestaccedilotildees de
mediunidade entre os membros da comunidade quilombola em questatildeo abrange
essas duas possibilidades pois em alguns casos ela parte de um dom de
mediunidade que a pessoa jaacute trouxe desde a infacircncia e desenvolveu de modo
autocircnomo como no caso de Antocircnio e em outros casos esta capacidade de
incorporaccedilatildeo mediuacutenica dependeu de um processo de iniciaccedilatildeo na Umbanda como
na histoacuteria de Geralda
Esta matriz de religiosidade afro-brasileira71 natildeo eacute portanto dependente
unicamente da relaccedilatildeo com terreiros de Umbanda mas tambeacutem eacute resultado de uma
experiecircncia histoacuterica e cultural proacutepria da trajetoacuteria familiar Nesta trajetoacuteria familiar o
que poderia ser compreendido em outros contextos como catolicismo e umbanda
enquanto esferas distintas manifestam-se em um mesmo continuum de dinamicidade
70 Quando as pessoas vatildeo em sua casa pedir benzimento geralmente mulheres moccedilas e crianccedilas ela
pega o nome completo acende uma vela para o anjo da guarda daquela pessoa e pede para que os orixaacutes intercedam por ela Entatildeo benze com um ramo de arruda o que pode se repetir por trecircs dias consecutivos caso necessaacuterio Geralda entende que a proacutepria pessoa deve trazer a vela para que o pedido seja feito em sua intenccedilatildeo mas muitas vezes as pessoas natildeo trazem e ela se sente sobrecarregada pois acaba oferecendo a vela com seus proacuteprios e escassos recursos Natildeo haacute nestes casos uma reciprocidade pela ajuda realizada o que fere a proacutepria dinacircmica de oferecimento e recompensa que permeia a relaccedilatildeo com o sagrado em sua visatildeo 71 Segundo GOLDMAN uma definiccedilatildeo inicial sobre as ldquoreligiotildees afro-brasileirasrdquo aponta para ldquoum
conjunto algo heteroacuteclito mas certamente articulado de praacuteticas e concepccedilotildees religiosas cujas bases foram trazidas pelos escravos africanos e que ao longo da sua histoacuteria incorporaram em maior ou menor grau elementos das cosmologias e praacuteticas indiacutegenas assim como do catolicismo popular e do espiritismo de origem europeiardquo (2009 p 106)
84
Nas histoacuterias sobre o finado Antocircnio seus irmatildeos contam como ele comeccedilou a se
desenvolver mediunicamente em casa sozinho e passou a realizar trabalhos em uma
casinha de coqueiro e tambeacutem dentro da mata do siacutetio com o apoio dos demais
irmatildeos que tambeacutem tinham o dom Geralda e Guaraacute lembraram que ele trabalhava
com baiano (baiano Juvenal) caboclo exu penacho boiadeiro Zeacute Pilintra preto-
velho pomba-gira e outros
Por motivo do preconceito religioso que sofreram da parte dos vizinhos que
os acusavam de macumbeiros feiticeiros coisa do capeta entre outros Antocircnio
resolveu se mudar do siacutetio deixar o conviacutevio cotidiano com sua famiacutelia para poder
trabalhar como curador e cumprir sua missatildeo primeiro em Terra Roxa e depois se
fixou na Vila Guarani periferia de Guaiacutera Joatildeo Aparecido o irmatildeo caccedilula me contou
sobre este processo
Joatildeo Soacute que eu sei que na vila Guarani Dandara oacuteia ele recebia muita gente Aqui nessa regiatildeo ele tirava em primeiro lugar ele que atingia mais gente nessa regiatildeo aqui Dandara Mais ateacute que esse terreiro hoje que a Geralda vai Joatildeo Mais porque ela (a matildee de santo D Penha) natildeo tinha aquilo ali antigamente O dela era bem mais pequeno Soacute que ela natildeo recebia o tanto de gente que meu irmatildeo recebia natildeo Ele recebia muita gente por dia Tinha dia que a gente chegava laacute e ele falava assim ldquooh eu tocirc ateacute agora natildeo almocei tomei um cafezinho aacutegua soacuterdquo Era gente do Mato Grosso Paraguai Cascavel toda regiatildeo Dandara vinha Esses dias atraacutes o Joaquim recebeu um cara aqui o cara vinha a procura dele Aiacute o Joaquim falou com ele ldquoOh infelizmente o meu irmatildeo faleceurdquo O cara saiu daqui de cabeccedila baixa Entatildeo tem muita gente ainda que natildeo sabe e sempre na cidade eles pergunta noacutes o que aconteceu que meu irmatildeo natildeo recebe mais ningueacutem aiacute noacutes falamos ldquonatildeo ele faleceurdquo Eu tenho tudinho guardado na lembranccedila tudinho tem o local laacute em cima na mata onde ele fazia os trabalhos dele Entatildeo tenho ateacute hoje e foi uma desde pequeno que a gente vem nessa religiatildeo da Umbanda soacute que a gente assim Dandara natildeo vecirc assim tem gente que vecirc a Umbanda como se fosse assim ah a religiatildeo do democircnio outros natildeo vecirc como uma boa coisa mas a gente vecirc assim que vocecirc mesmo vocecirc pode assistir laacute natildeo sei se vocecirc pocircde assistir um trabalho Natildeo eacute coisa do outro mundo Que tem muitos que vecirc aquilo ali e meu deus do ceacuteu eacute coisa que que vai acabar com tudo Natildeo eacute Sempre a gente fala mesmo assim pra jogar pedra eacute faacutecil mas vocecirc tem que ver primeiro as coisas pra depois vocecirc estar criticando Porque essa religiatildeo a gente foi muito criticado por causa disso ai mesmo Quando ele (Antocircnio) trabalhava aqui teve uma eacutepoca que a gente teve que trabalhar escondido porque os pessoal natildeo podia saber que natildeo eles ia falava ldquoaqueles ali tatildeo mexendo tudo eles satildeo macumbeiro eles satildeo feiticeirordquo Soacute que a gente natildeo trabalhava pro mal porque foi um dom que ele recebeu neacute mas eles via aquilo ali e nossa Aiacute ele falava assim ldquoNatildeo eu sou obrigado a trabalhar escondido pra ningueacutem ficar sabendordquo
85
Geralda eacute a irmatilde que daacute continuidade como meacutedium para os trabalhos de seu
irmatildeo Antocircnio atualmente Um siacutembolo desta vinculaccedilatildeo de forccedila e missatildeo eacute uma
guia (colar) com as sete linhas da Umbanda que ela recebeu de Antocircnio e que natildeo
tira do pescoccedilo haacute mais de vinte anos Geralda me disse que vai fazer um terreiro
ainda que isso eacute um desejo que ela vai realizar Ela (52 anos) e seu marido que
tambeacutem se chama Antocircnio (49 anos) frequentam a Associaccedilatildeo Espiacuterita Reino de
Baluaecirc72 localizada no Municiacutepio de Terra RoxaPR (vizinho agrave Guaiacutera)73
FIGURA 15 Geralda e Antocircnio (Guaraacute) em frente ao altar apoacutes a realizaccedilatildeo da ldquogirardquo
72 Disponiacutevel em wwwreinodebaluaecombr Acesso em 20082014 73 As ldquogirasrdquo nome dado ao ritual central da Umbanda aberto para que as pessoas se consultem
diretamente com as entidades (principalmente preto-velho caboclo e vaacuterias formas de Exu) ocorrem aos saacutebados duas vezes no mecircs Geralda eacute meacutedium de incorporaccedilatildeo e Guaraacute estaacute girando ainda ou seja estaacute sendo preparado para que possa incorporar Enquanto isso ele daacute suporte agrave muacutesica por meio do pandeiro ou tambor que satildeo muito importantes nas chamadas que satildeo feitas para que as
entidades baixem no terreiro
86
Geralda fala do desenvolvimento de sua mediunidade como um mandato
espiritual pois se fosse por ela natildeo queria ter desenvolvido este trabalho o qual
implica em muitas obrigaccedilotildees e restriccedilotildees pois jaacute estava cansada pelo tanto que
trabalhara na roccedila em serviccedilo pesado a vida inteira Antes de comeccedilar a trabalhar
ela jaacute frequentava o terreiro para buscar atendimento e ficava na assistecircncia de onde
as pessoas que natildeo fazem parte do corpo de trabalho da casa observam a sessatildeo e
satildeo beneficiadas por ela Chegou um tempo em que ela comeccedilou a sentir muita
fraqueza colocava a panela no fogo e tinha que deitar Quando foi consultar no terreiro
para ver o que era a Matildee de Santo que eacute o cargo mais alto da hierarquia da Umbanda
(eacute quem tem e manteacutem o terreiro) lhe disse que teria que trabalhar como meacutedium
caso contraacuterio ela soacute iria piorar e ldquodava seis meses tava morta porque tinha que ter
algueacutem pra substituirrdquo O diagnoacutestico da doenccedila portanto como eacute muito comum nas
histoacuterias dos meacutediuns indicou a interferecircncia de um espirito no sentido da
necessidade do desenvolvimento da mediunidade da pessoa com seu consequente
ingresso na Umbanda (BRUMANA MARTIacuteNEZ 1991 p 64)
Geralda e seu marido Antocircnio (Guaraacute) fazem pedidos e oferecem retribuiccedilotildees
agraves entidades recorrentemente em um quarto de sua casa que aliaacutes era o quarto que
eu dormia quando fiquei hospedada com eles Quando eu ia me deitar geralmente
esperava a vela apagar o cigarro acabar e eles retiravam as oferendas para que eu
pudesse me deitar Essa experiecircncia me provocava sensaccedilotildees diferentes e
impactantes quando eu pensava que aquele quarto estava povoado por relaccedilotildees e
seres invisiacuteveis Esse processo de comunicaccedilatildeo entre pessoas e entidades e qual
entidade estava sendo acionada em determinado dia natildeo me era relatado apenas
algumas informaccedilotildees eram mencionadas mas sempre encobertas por um ar de
misteacuterio enquanto conhecimento iniciaacutetico Importante eacute perceber apesar de eu natildeo
poder me aprofundar neste tema agora que a Umbanda nesta dinacircmica de interaccedilatildeo
recupera a reciprocidade como valor de modo que o dar-e-receber atua ldquocomo um
princiacutepio moral fundamental que une todos os homens entre si e toda a humanidade
viva com uma humanidade morta este mundo com o outro e os homens com os
Orixaacutesrdquo (BRUMANA MARTINEZ 1991 p 25)
Geralda questionou em conversas comigo o porquecirc de algumas pessoas
terem inveja dela no terreiro como uma outra meacutedium com quem teve um seacuterio
desentendimento Na avaliaccedilatildeo de Geralda uma mulher branca de classe meacutedia que
87
tem um carro e sabe dirigir tem muito mais reconhecimento na sociedade do que ela
que sendo ldquopreta e pobrerdquo em seus proacuteprios termos sabe que ocupa na classificaccedilatildeo
social hegemocircnica o lugar menos privilegiado No entanto por outro lado Geralda
reconhece que possui uma forccedila que esta sua mesma origem lhe confere uma forccedila
que eacute miacutestica podemos dizer e que estaacute ligada agrave feacute e agrave proteccedilatildeo que recebe dos seus
Orixaacutes74 o que tambeacutem eacute valorizado pelo Pai de Santo do terreiro que ela frequenta
Pude perceber que o reconhecimento em relaccedilatildeo ao papel de Geralda que lhe
eacute conferido pelos seus vizinhos da ldquoEletrosulrdquo enquanto benzedeira meacutedium de um
terreiro com sabedoria e capacidade de orientaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo valorizado no acircmbito
de sua proacutepria famiacutelia Se Adir eacute quem tem o manejo como mediador com os agentes
externos para realizar as articulaccedilotildees poliacuteticas ela desde o comeccedilo da minha
estadia estava me dizendo nas entrelinhas que era quem possuiacutea o manejo como
mediadora junto aos espiacuteritos e agraves forccedilas miacutesticas Ela eacute quem domina atualmente a
esfera da religiosidade afro-brasileira a qual embora seja em algumas situaccedilotildees
acionada como um siacutembolo para a afirmaccedilatildeo da identidade negra e quilombola do
grupo natildeo aparece de modo tatildeo expliacutecito como por exemplo a capoeira praacutetica que
tambeacutem remete a esta ldquomnemocircnica do corpordquo (CONNERTON 999 p 86)
Deve-se levar em conta que o tema da religiosidade afro-brasileira eacute ainda
muito delicado pois vinculado a um forte preconceito racialreligioso presente na
sociedade brasileira Jaacute a capoeira eacute um marcador negro muito menos polecircmico e cuja
performance da roda se consolidou como modo de apresentaccedilatildeo da comunidade
quilombola nas visitas feitas pelas escolas Este natildeo acionamento da Umbanda como
elemento diacriacutetico enquanto quilombolas remete ao fato de esta religiatildeo que
apresenta aspectos de influecircncia africana e que remete agrave experiecircncia negra no Brasil
eacute tambeacutem um motivo de estigmatizaccedilatildeo para o grupo como explicitado na fala acima
de Joatildeo sobre a saiacuteda de Antocircnio do siacutetio pelas acusaccedilotildees que recebia tendo que
desenvolver seu trabalho como meacutedium na periferia de Guaiacutera
Neste sentido interessante refletir sobre a dinacircmica que se estabeleceu no
Brasil entre religiosidade magia e preconceito racial jaacute que ldquoa visatildeo construiacuteda do
negro e de sua religiatildeo os vincula a caracteriacutesticas natildeo soacute desvalorizadas mas
74 Ela estaacute sempre dizendo que se natildeo fossem os seus Orixaacutes lhe ajudando ela natildeo sabe como
conseguiria dar conta de todas as suas atribuiccedilotildees cotidianas jaacute que tem a sauacutede fraca desde pequena o que se agravou de tanto trabalhar aleacutem de um problema especiacutefico nos olhos
88
tambeacutem socialmente condenadasrdquo75 Construiu-se assim um sistema classificatoacuterio
elaborado a partir da perspectiva dicotocircmica entre bem e mal no qual as religiotildees
cristatildes figuram no polo do bem e enquanto modelo branco satildeo vistas precisamente
como religiotildees Jaacute as religiotildees afro-brasileiras aparecem no polo oposto entendidas
ao contraacuterio como feiticcedilaria ou ldquomacumbariardquo ou seja em alusatildeo ao mal (PORTO
2014187-190) Deste modo este viacutenculo entre preconceito racial e preconceito
religioso somado agrave ldquocondenaccedilatildeo moral da magiardquo a partir da identificaccedilatildeo feita com
ldquoo uso da magia maleacutefica ndash feiticcedilaria ou lsquomagia negrarsquordquo remonta a processos histoacutericos
do periacuteodo colonial Eacute ainda no Brasil colocircnia que se consolida o medo do feiticcedilo no
Brasil direcionado por meio de acusaccedilotildees feitas pelos sujeitos legitimados do sistema
dominante branco e catoacutelico aos natildeo brancos indiacutegenas e negros ou seja aos que
constituiacuteam as alteridades deste modelo (PORTO 2014 191) A imagem do negro
portanto eacute elaborada pela elite a partir de estereoacutetipos negativos que se reforccedilam e
que constroem seu lugar marginal na sociedade Evidencia-se assim a importacircncia
do preconceito para a manutenccedilatildeo da ordem vigente por atribuir argumentos que
legitimariam a exclusatildeo e exploraccedilatildeo desta camada da populaccedilatildeo
O caso do grupo quilombola em questatildeo eacute relevante notar articula estas
referecircncias de religiotildees de matriz afro-brasileiras com expressotildees do catolicismo
popular ou mesmo com o que podemos chamar de ldquocatolicismo negrordquo Esta
articulaccedilatildeo eacute muito presente na religiosidade de Eva quilombola de 50 anos que eacute
detentora de vasta memoacuteria da histoacuteria do grupo76 Ela mora no siacutetio desde seus dois
anos de idade quando seus pais Geraldo e Antocircnia migraram de Satildeo Paulo para o
Paranaacute junto com as demais famiacutelias Eacute casada com Joaquim filho de Manoel Ciriaco
com quem possui certo grau de parentesco consanguiacuteneo (primos de terceiro grau)
Sua devoccedilatildeo eacute reconhecida pelas demais pessoas simbolicamente no fato de ela
cumprir seu ritual cotidiano de rezar o terccedilo de joelhos todos os dias agrave noite depois
de jaacute ter rezado de manhatilde vinte ave-marias (por isso os dois joelhos dela estatildeo
75 A reafirmaccedilatildeo do preconceito teve papel fundamental no momento em que foi abolida a escravidatildeo
no paiacutes sendo que a religiosidade negra eacute um dos pilares que o sustenta Como se pode observar na associaccedilatildeo estrateacutegica realizada por meio da criminalizaccedilatildeo de praacuteticas das religiotildees afro-brasileiras no Coacutedigo Penal de 1890 Interessante notar neste sentido que apesar de os elementos maacutegico-religiosos marcarem toda a religiosidade nacional sua identificaccedilatildeo ficou restrita aos sujeitos natildeo brancos (PORTO 2014 200-201) 76 Lembrando inclusive o ano em que os fatos preteacuteritos aconteceram data de aniversaacuterio de muitos
parentes Eva conversa tranquilamente sobre a genealogia da famiacutelia sabendo contaacute-la a partir da histoacuteria de fixaccedilatildeo do grupo no Paranaacute
89
marcados com uma espeacutecie de calo como lembrou sua filha Jaqueline enquanto
conversaacutevamos sobre este assunto)77
Ademais ela frequenta com seu marido Joaquim (55) e suas duas filhas
Jaqueline (20) e Janaina (14) as missas em Guaiacutera apenas uma vez por mecircs apesar
de que gostaria de poder ir mais frequentemente Isso se torna difiacutecil devido ao
dispecircndio com o combustiacutevel necessaacuterio para percorrer o trecho entre o bairro rural
Maracaju dos Gauacutechos e a sede do Municiacutepio distante 20 km Por muitas vezes natildeo
poder se deslocar ela utiliza aleacutem do raacutedio a televisatildeo que transmite missas e
terccedilos78 Antes do conflito ocorrido entre o grupo e os proprietaacuterios vizinhos79 o qual
foi desencadeado pelo processo administrativo de regularizaccedilatildeo quilombola eles
frequentavam a igreja do ldquoMaracajurdquo o que se tornou insustentaacutevel para o grupo Eva
me explicou como ldquoficava sem jeito de ir para a igrejardquo
Dandara Como que foi essa saiacuteda Eva Isso aiacute porque as turma ficou com raiva de noacuteis por causa do negoacutecio do INCRA aiacute cara feia pra noacutes sei laacute eu ficava sem jeito pra ir na Igreja neacute as turma falava assim ldquoah pode ir eles natildeo pode toca ocecircs da igreja a igreja eacute puacuteblica a igreja eacute pra todo mundordquo ningueacutem pode tocar a gente da igreja mas a pessoa fica com vergonha de ir neacute porque eles natildeo conversa com a pessoa nem nada como eacute que a gente vai na igreja Dandara E o padre assim vocecirc sentiu alguma coisa da parte do padre Eva Ah o padre acho que puxava mais pras turma ele veio uma vez na comunidade aqui ele rezou a missa nem conversou muito com noacutes conversou pouco e quando noacutes puxou no assunto aqui das turma ele escapou fora foi embora e natildeo vortocirc mais Dandara A Sra imagina de ter uma igreja aqui Eva Meu sonho menina eacute ter uma Igreja aqui eu falo pro Adir direto eacute meu sonho que tivesse uma igreja perto direto eu tava na igreja
77 Tambeacutem ouve diariamente pelo raacutedio o programa ldquoExperiecircncia de Deusrdquo apresentado pelo Padre
Reginaldo Manzotti enquanto organiza a cozinha em seu ritmo hoje mais lento devido a seu problema de visatildeo Este programa tem uma hora de duraccedilatildeo e conta com a participaccedilatildeo de ouvintes leitura biacuteblica que Eva acompanha com sua biacuteblia em matildeos aleacutem da realizaccedilatildeo de novena 78 Eva contou que na sexta-feira santa como ela natildeo pocircde ir na ldquoprocissatildeo do Senhor Mortordquo ela
benzeu pela tv um ramo de aacutervore Esta procissatildeo antigamente era acompanhada por muitas pessoas do grupo e ldquouma renca de gente aqui da comunidade ia a peacute ateacute Terra Roxardquo municiacutepio vizinho agrave Guaiacutera cuja sede fica mais proacutexima ao siacutetio Os meios de comunicaccedilatildeo de massa portanto satildeo utilizados como em outras comunidades tradicionais com presenccedila de catoacutelicos para que se possa ter acesso a ritos religiosos e praacuteticas em certa medida maacutegicas como a benzeccedilatildeo de aacutegua 79 O tema do conflito ocorrido em 2009 e 2010 com os proprietaacuterios vizinhos seraacute abordado no proacuteximo
capiacutetulo
90
Apesar de natildeo poder mais frequentar a igreja com a frequecircncia que gostaria
isso natildeo diminui a vivecircncia cotidiana que ela tem de sua feacute Por outro lado as pessoas
do Maracaju dos Gauacutechos que estatildeo indo na igreja na visatildeo de Eva natildeo tecircm uma
atitude cristatilde Isso porque mesmo dentro da missa satildeo movidos por sentimentos de
discriminaccedilatildeo e de orgulho o que acabou fazendo com que os membros da
comunidade natildeo se sentissem mais confortaacuteveis para continuar frequentando tal
igreja
Em relaccedilatildeo ao preconceito racial que ateacute hoje sofrem no ldquoMaracaju dos
Gauacutechos ele se estende inclusive a Nossa Senhora Aparecida santa negra de quem
a comunidade eacute devota Neste sentido Joaquim me contou uma histoacuteria sobre uma
senhora que havia se mudado para bairro rural e que tinha feito uma promessa para
Nossa Senhora Aparecida Ela foi de ocircnibus com a famiacutelia agrave Basiacutelica em AparecidaSP
e de laacute trouxe uma imagem e tinha o desejo de colocaacute-la na igreja do Maracaju Mas
como a maioria dos moradores satildeo descendentes de imigrantes europeus com
atitudes consideradas racistas pelos quilombolas eles natildeo aceitaram a santa
alegando que ela era a ldquoNossa Senhora dos Morcegosrdquo em referecircncia a ser uma santa
negra Joaquim concluiu afirmando que se eles tinham raiva da santa que natildeo lhes
poderia fazer nenhum mal ele imaginava entatildeo o quanto tinham raiva das pessoas
da comunidade Mas ele acrescentou que posteriormente houve outra pessoa que
fez uma promessa e que entatildeo eles acabaram tendo que aceitar colocar a santa na
igreja do Maracaju Nossa Senhora Aparecida eacute natildeo somente negra mas tambeacutem a
padroeira do Brasil A devoccedilatildeo a ela eacute muito grande em todo o paiacutes (sendo um
exemplo a relevacircncia das romarias a Aparecida do Norte inclusive entre os membros
do grupo) A recusa agrave santa negra eacute sentida de uma forma particular pela comunidade
mas a resistecircncia dos vizinhos europeus natildeo pode se sustentar embora natildeo tenha
sido vencida por um membro da comunidade mas por uma pessoa natildeo identificada
Importante neste momento pontuar que uma anaacutelise aprofundada das
concepccedilotildees e praacuteticas religiosas da comunidade demandaria um capiacutetulo inteiro desta
dissertaccedilatildeo No entanto objetivo analisar neste subitem alguns aspectos dentro
deste universo religioso que sobressaem atraveacutes das dinacircmicas de movimento
(concretas e natildeo-concretas) e de comunicaccedilatildeo entre expressotildees religiosas Durante
o trabalho de campo fui me tornando mais atenta para situaccedilotildees e narrativas que
apontavam como as percepccedilotildees quilombolas sobre diferentes praacuteticas religiosas natildeo
91
eram descontiacutenuas ou antagocircnicas mas permeadas por diaacutelogos permanentes e
proacuteximos o que eacute comum observar em contextos de religiosidade popular80 O
movimento tambeacutem permeia a accedilatildeo religiosa dos membros da comunidade por meio
da praxe dedicada agrave circulaccedilatildeo entre pessoas e santos (permeada por promessas)
bem como em relaccedilatildeo agraves entidades da umbanda (por meio de pedidos oferendas e
obrigaccedilotildees) Esta dimensatildeo relacional vai tecendo uma socialidade comum entre
sujeitos que embora hieraacuterquica natildeo eacute irrevogaacutevel Em contraposiccedilatildeo a dinacircmica
estabelecida entre Deus e fiel eacute constituiacuteda pela distacircncia equivalente agrave relaccedilatildeo entre
sujeito e objeto (CALAVIA SAEZ 2009 p 204-205) As viagens rituais para o
pagamento de promessas para o santuaacuterio de Nossa Senhora Aparecida localizado
no municiacutepio de AparecidaSP tambeacutem apontam para a importacircncia do movimento no
contato com o sagrado como nas experiecircncias de peregrinaccedilatildeo e romaria (TURNER
2008 p 155-214)
Haacute muitas histoacuterias no grupo de promessas feitas a Nossa Senhora Aparecida
que foram atendidas Uma delas a primeira que Eva me contou foi feita por sua sogra
Ana Rodrigues esposa de Manoel Ciriaco Interessante notar que quando Eva foi me
contar como a promessa veio a se cumprir ou seja quando Joaquim enfim conseguiu
parar de beber o contexto passou a trazer elementos e entidades da Umbanda
demonstrando a continuidade a que nos referimos acima D Ana pediu agrave santa que
seu filho Joaquim marido de Eva parasse com o viacutecio com bebidas alcoacuteolicas
Mandou entatildeo fazer uma capelinha para a imagem da santa e quando Eva e Joaquim
se casaram ela lhes deu de presente A cura de Joaquim do viacutecio no entanto veio
de um modo inesperado e assustador Tudo aconteceu quando Joaquim tinha parado
de fazer suas obrigaccedilotildees com os Orixaacutes pois costumava ascender vela e defumar a
casa Um dia ele incorporou ldquoSeu Tranca Ruardquo (Exu) que chegou e falou para Eva
que iria jogar seu ldquopeacute-de-calccedilardquo81 embaixo de quatro rodas Neste momento a
entidade estava se referindo ao fato de que ela iria provocar um acidente com o seu
cavalo (o meacutedium) ou seja Joaquim E o que a entidade falou acabou acontecendo
80 Segundo a criacutetica do antropoacutelogo Calavia Saez ldquoa religiatildeo popular eacute a religiatildeo normal natildeo uma
versatildeo empobrecida de algo que se manifesta alhures com maior eficiecircncia ndash algo que boa parte dos estudos sobre religiatildeo subalterna manifesta agrave revelia do paradigma em que se desenvolvemrdquo (CALAVIA SAEZ 2009 p 201) 81 Essa expressatildeo ldquopeacute-de-calccedilardquo eacute utilizada no terreiro de Umbanda para se referir aos homens como me explicou Geralda Depois que eu assisti uma gira no seu terreiro e me consultei com a Preta-Velha que ela tinha incorporado Geralda me esclareceu a duacutevida sobre o significado dessa expressatildeo que a entidade tinha falado para mim
92
Eva me contou que um dia quando Joaquim estava becircbado ele e seu irmatildeo Adir
estavam lidando com o trator quando Joaquim caiu e o trator acabou passando em
cima da perna dele Ele soacute natildeo perdeu a perna neste acidente porque estava com
uma calccedila jeans nova que resistiu e protegeu a perna que ficou pendurada Eva
sonhou com Nossa Senhora Aparecida que lhe disse que natildeo seria necessaacuterio
amputar a perna dele Joaquim ficou vaacuterios dias no hospital e depois por meses em
recuperaccedilatildeo em casa Soacute assim com o susto provocado pelo acidente com o trator
que Joaquim parou de beber e a promessa da sua matildee foi entatildeo atendida
FIGURA 16 Capelinha para Nossa Sordf Aparecida presenteada por D Ana
Pode-se observar portanto que haacute uma comunicaccedilatildeo total entre estes seres
no universo maacutegico-religioso do grupo em uma histoacuteria em que a entidade da
Umbanda um Exu aparece como mediadora para o cumprimento de uma promessa
feita para Nossa Senhora Aparecida o que aponta um marcador de identidade
significativo em contraponto com um ldquooutro catolicismordquo dos vizinhos
O pai de Eva Geraldo tambeacutem foi um dos beneficiados com as graccedilas de
uma promessa atendida por Nossa Senhora Aparecida em mais uma relaccedilatildeo pessoal
bem-sucedida entre santos e fieacuteis Segundo Eva me contou ele pediu agrave santa para
que fosse capaz de aprender a ler e a escrever e que conseguisse comprar um pedaccedilo
93
de terra Aleacutem de ter aprendido o que pediu esse pedaccedilo de terra conquistado foram
os cinco alqueires que ele comprou no Maracaju dos Gauacutechos Deste modo esta
promessa aparece como um mito de origem da comunidade que fortalece a devoccedilatildeo
a Nossa Senhora Aparecida jaacute confirmada por outras promessas atendidas que me
foram narradas
FIGURA 17 Geraldo em 1972 quando foi pagar sua promessa em AparecidaSP
Eva me contou tambeacutem sobre quando ela e Joaquim foram em romaria a
Basiacutelica de Nossa Senhora Aparecida em AparecidaSP82 para pagar a promessa que
ele tambeacutem tinha feito para que ele conseguisse parar de beber Ela percebeu
sensaccedilotildees fiacutesicas diferentes ao chegar laacute o que reforccedila o sentimento de que se estaacute
diante de um local sagrado o corpo fica leve e a pessoa natildeo tem pensamentos
82 O Santuaacuterio Nacional eacute o ldquomaior santuaacuterio mariano do mundordquo construiacutedo em 1955 ldquoPreocupados
em providenciar o jantar para o poderoso Conde de Assumar de passagem pela Vila de Guaratinguetaacute trecircs pescadores retiraram com suas redes do Rio Paraiacuteba do Sul uma imagem de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo A imagem ficou abrigada durante anos na casa de um dos pescadores ateacute que em 1745 foi construiacuteda uma capela no Morro dos Coqueirosrdquo Disponiacutevel em httpaparecidaspgovbrhistoria-da-cidade Acesso em 01092014
94
Contou que era preciso pagar trecircs reais para subir ateacute o local onde fica a imagem da
santa que foi encontrada no rio onde tambeacutem ficam expostas as correntes dos
escravos Eva assim como Joaquim entende que eacute possiacutevel circular entre as religiotildees
e que se deve respeitar a todas Faz tempo que ela natildeo vai no terreiro de Umbanda
mas jaacute frequentou e sabe contar em quais dias satildeo realizadas as festas das entidades
como Preto Velho Cosme e Damiatildeo e Zeacute Pilintra Em sua casa possui uma imagem
de Satildeo Cosme e Damiatildeo os santos gecircmeos sincretizados com os orixaacutes ibejis
divindade gecircmea na mitologia yorubaacute (PRANDI 2001366-377)
Quando fui ao terreiro de Umbanda com a Geralda como estava ficando na
casa de Eva e Joaquim no siacutetio conversamos sobre este assunto quando voltei
Joaquim entatildeo contou-me sobre uma mulher de Terra Roxa municiacutepio vizinho que
antes de plantar oferecia as ervas para cada santo e entatildeo a muda dava ldquoTudo tem
um misteacuteriordquo e aquelas pessoas que tecircm matildeo boa sabem disso portanto quando vai
fazer o plantio do milho por exemplo eacute importante ter feacute para ter uma boa colheita Eacute
necessaacuterio ter matildeo boa tambeacutem para fazer o patildeo crescer para fazer vinagre de
mamona e para fazer sabatildeo83 reforccedilando como a intenccedilatildeo da pessoa que prepara
interfere no resultado obtido Eva tambeacutem eacute conhecedora da preparaccedilatildeo de
garrafadas que satildeo remeacutedios caseiros ensinados pelos antigos Mesmo entre aqueles
que natildeo frequentam atualmente terreiro de Umbanda percebe-se como a
religiosidade eacute maacutegica e eacute permeada por ritos de proteccedilatildeo relacionados com um
ldquocatolicismo negrordquo brasileiro
Ao olhar para o futuro Eva fala de uma mudanccedila que ocorreraacute na percepccedilatildeo
sobre as religiotildees pois segundo me contou no Apocalipse o fim do mundo estaacute
anunciado que todas as religiotildees seratildeo uma soacute jaacute que Deus eacute um soacute Este Deus uacutenico
aponta como sua a concepccedilatildeo de religiatildeo tem por base o cristianismo
Eva Eu Dandara natildeo desfaccedilo de nenhum tem gente que natildeo gosta assim de esprito assim os evangeacutelico tem gente que natildeo gosta Eu natildeo pra mim tudo eacute um soacute Tem gente que fala ldquoah eu natildeo gosto de crenterdquo Eu natildeo eu natildeo falo Porque quando no fim do mundo ateacute o pastor falou isso a igreja vai ser tudo uma soacute vai unir todo mundo junto Deus natildeo separou ningueacutem neacute Deus eacute um soacute Tem gente que natildeo acredita Eu natildeo eu natildeo desfaccedilo de nenhuma eu gosto tudo igual
83 Nesse sentido interessante que na pesquisa realizada por Cambuy na comunidade quilombola Joatildeo
Suraacute em AdrianoacutepolisPR o sabatildeo eacute tido como um preparo que eacute louco de reineiro pois entre todos eacute o mais faacutecil de reinar ou seja natildeo daacute certo se a pessoa que fizer ldquonatildeo tiver o coraccedilatildeo bomrdquo ou se for alvo de olho gordo sendo necessaacuterio para o sucesso do sabatildeo que seja feito em um contexto harmocircnico (CAMBUY 2011 250-252)
95
No entanto quando um pastor que agraves vezes realizava cultos na comunidade
(que mesmo com a forte presenccedila de praacuteticas afro-brasileiras natildeo tem dificuldade de
dialogar com os crentes) quis batizaacute-la ela contou que se negou ldquoAh eu natildeo batizo
na religiatildeo nisso aiacute natildeo Ele queria que eu batizasse na lei de crente mas eu natildeo jaacute
sou batizada desde pequena vou batizar outro batismo pra quecirc rdquo Haacute portanto uma
perspectiva da religiatildeo como abrangente natildeo havendo neste caso contradiccedilatildeo entre
denominaccedilotildees e frequecircncias a espaccedilos diversos No entanto haacute tambeacutem a
necessidade de uma escolha oficial que no caso de Eva se daacute pela religiatildeo catoacutelica
A religiosidade do grupo aponta assim para uma perspectiva proacutepria de um
universo negro que natildeo estabelece fronteiras claras entre as religiotildees mas uma
interdependecircncia constante Como tentamos demonstrar ao longo deste subitem
estas experiecircncias falam de dinacircmicas de movimento natildeo soacute no diaacutelogo entre esferas
religiosas mas de movimentos concretos como nas viagens realizadas para
pagamentos de promessas movimentos estabelecidos na relaccedilatildeo entre devoto e
santo entre meacutedium e entidades espirituais Estas praacuteticas falam de uma memoacuteria
corporal performaacutetica e ritual que constitui parte essencial da relaccedilatildeo que
estabelecem com o passado e da forma de atualizaacute-lo no presente Religiosidade que
marca a relaccedilatildeo entre negritude opressatildeo e santidade significativa nos discursos de
grupos quilombolas sobre sua relaccedilatildeo com o sagrado (PORTO 2007)
96
2 IDENTIDADE QUILOMBOLA E RELATOacuteRIOS ANTROPOLOacuteGICOS
Quando os funcionaacuterios do governo do Paranaacute chegaram ateacute as famiacutelias em
questatildeo em GuaiacuteraPR e lhes apresentaram a possibilidade de reivindicaccedilatildeo da
identidade quilombola nunca tinham ouvido falar neste termo ou sequer imaginavam
que poderiam reivindicar algum direito de um Estado que segundo afirmam nunca
lhes enxergou ou lhes protegeu pelo contraacuterio Esta situaccedilatildeo inesperada causou
muita duacutevida e inseguranccedila sobre acionar ou natildeo a autodeclaraccedilatildeo como quilombolas
tendo em vista os riscos e as consequecircncias da opccedilatildeo por este caminho Quando
optaram por trilhaacute-lo entraram aos poucos em mais uma trajetoacuteria de movimento
agora de inserccedilatildeo e circulaccedilatildeo em novas esferas sociais tanto concretas quanto
simboacutelicas
Passaram entatildeo a ter que lidar com uma linguagem estatal e burocraacutetica que
desconheciam com uma organizaccedilatildeo em termos poliacuteticos por meio de uma
associaccedilatildeo juriacutedica ndash que os integrou formalmente como sujeito coletivo ndash e neste
processo Adir como lideranccedila da comunidade desde entatildeo foi convidado a realizar
vaacuterias viagens como representante quilombola tanto no Paranaacute como em outros
estados Com a pauta de reivindicaccedilatildeo territorial foi desencadeada uma redefiniccedilatildeo
das relaccedilotildees locais vindo agrave tona de forma impactante processos de tensatildeo antes
latentes na convivecircncia com os proprietaacuterios vizinhos Por outro lado houve tambeacutem
uma ampliaccedilatildeo significativa de relaccedilotildees para aleacutem das dinacircmicas locais ndash um aspecto
considerado pelos quilombolas como muito positivo ndash pois a inserccedilatildeo no movimento
quilombola os colocou em contato com outras comunidades e inclusive proporcionou
uma retomada de viacutenculos dentro da proacutepria famiacutelia reconectando-os com sua regiatildeo
de origem em Minas Gerais por meio da realizaccedilatildeo das viagens de volta que seratildeo
abordadas no terceiro capiacutetulo
No entanto a peculiaridade de um grupo marcado por dinacircmicas de
movimento e que se reconhece como quilombola a partir de um viacutenculo com uma
regiatildeo de origem na qual natildeo mais habitam ndash pois de laacute saiacuteram em trajetoacuterias seguidas
de deslocamentos como vimos no capiacutetulo anterior ndash colocou um grande desafio e
quase um empecilho para o tracircmite do processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria do grupo
junto ao oacutergatildeo responsaacutevel o Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria
97
(INCRA) O caso da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos como
veremos nos permite o aprofundamento de uma reflexatildeo muito importante sobre ateacute
que ponto o reconhecimento da diversidade sociocultural estaacute de fato presente nos
processos e procedimentos administrativos bem como na compreensatildeo dos agentes
que atuam em nome do Estado nesta temaacutetica Sobre esta delicada questatildeo a
antropoacuteloga Miriam Chagas argumenta que
() a sociedade moderna admitiria uma uacutenica foacutermula minimizada de reconhecimento das diferenccedilas ou seja a mera conversatildeo da igualdade em identidade Essa consideraccedilatildeo aponta para uma questatildeo de difiacutecil tratamento pois o proacuteprio conceito de identidade ndash tambeacutem cultural ndash seria fruto da configuraccedilatildeo ideonormativa do sistema de valores da sociedade moderna (CHAGAS 2001 p 232)
Deve-se levar em conta que antes da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 o
ordenamento juriacutedico nacional negava a diversidade cultural da populaccedilatildeo brasileira
procurando homogeneizaacute-la A partir da consolidaccedilatildeo em 1988 de ldquodireitos eacutetnicosrdquo
enquanto garantias constitucionais iniciou-se um novo momento de reconhecimento
formal e consolidaccedilatildeo do acesso a tais direitos Os agentes do Estado daiacute em diante
ao classificarem em legislaccedilotildees categorias como ldquoquilombolasrdquo ldquoindiacutegenasrdquo ldquopovos e
comunidades tradicionaisrdquo precisam considerar que natildeo estatildeo apenas a nomear e a
reconhecer tais grupos mas tambeacutem estatildeo produzindo alteridades Marcadas ldquopela
qualidade de lsquoprimitivorsquo lsquotradicionalrsquo e correlatosrdquo estas categorias criam e
caracterizam o que nomeiam ao oporem um quadro classificatoacuterio de definiccedilatildeo e
redefiniccedilatildeo da alteridade com desdobramentos na emergecircncia de novos sujeitos
poliacuteticos organizados (ARRUTI 2006 51-53) Eacute a partir da sobrecodificaccedilatildeo e
normatizaccedilatildeo estatal portanto que tais grupos estaratildeo categorizados e seu
reconhecimento territorial seraacute regulado em procedimentos administrativos atraveacutes de
regulamentaccedilatildeo infraconstitucional
Estes sujeitos coletivos se mobilizam em unidades sociais a partir de um
pertencimento comum que funda uma identidade coletiva em processos de
autodefiniccedilatildeo referenciados nas categorias juridicamente reconhecidas Esta
mobilizaccedilatildeo poliacutetica que se desenrola principalmente em torno da luta pela garantia
dos territoacuterios ocupados tradicionalmente tambeacutem gera efeitos por meio de pressotildees
de movimentos sociais articulados ao tensionar o centro de poder do Estado Neste
processo estes grupos sociais vatildeo atribuindo seus proacuteprios sentidos aos conceitos
98
geneacutericos de reconhecimento como ldquoquilombolasrdquo os quais satildeo acionados em uma
vasta gama de situaccedilotildees para expressar diversos significados
Uma multiplicidade de metaacuteforas eacute portanto atribuiacuteda aos signos eacutetnicos no
processo social da etnicidade pelos grupos sociais que reivindicam ldquodireitos de uma
cidadania diferenciada ao Estado brasileirordquo (OrsquoDWYER 2009 p 175) Este processo
de reivindicaccedilatildeo vai gerando uma maximizaccedilatildeo da alteridade ndash por meio da
diferenciaccedilatildeo de sentidos ndash mesmo no acircmbito instituiacutedo de padronizaccedilatildeo estatal Esta
maximizaccedilatildeo eacute necessaacuteria porque ldquoas unidades de descriccedilatildeo das populaccedilotildees
submetidas respondem ao custo de uma brutal reduccedilatildeo de sua alteridade agraves
necessidades de produccedilatildeo de unidades geneacutericas de intervenccedilatildeo e controle socialrdquo
(ARRUTI 1997 p 20) Haacute que se refletir sobre ateacute que ponto
() quilombo expressa a dimensatildeo poliacutetica da identidade negra no Brasil ou ele eacute uma nova reduccedilatildeo brutal da alteridade dos diferentes grupos que sob este prisma teriam que se adequar a um conceito geneacuterico para novos propoacutesitos de intervenccedilatildeo e controle social (LEITE 2000 p 343)
De forma anaacuteloga ao que ocorreu com os povos indiacutegenas com o
estabelecimento de um certo padratildeo de ldquoindianidaderdquo ndash imposto pelo oacutergatildeo estatal e
que acaba sendo assumido como padratildeo de comportamento dos grupos em questatildeo
ndash podemos observar a existecircncia tambeacutem de um modelo de ldquoquilombolidaderdquo com
uma determinada forma de compreender quem satildeo os ldquoquilombolasrdquo a partir da qual
se estabelece procedimentos padronizados para lidar com esta diversidade (ARRUTI
1997 p 41) Esta necessidade de limitar a complexidade social para definir de modo
impositivo quem seriam os destinataacuterios do direito territorial reconhecido
constitucionalmente mostra marcas de um colonialismo interno que em muito ainda
manteacutem ldquouma praacutetica de dominaccedilatildeo intimamente ligada agrave ideologia da concentraccedilatildeo
fundiaacuteria como sinocircnimo de progresso numa economia agroexportadorardquo (ALMEIDA
2011 p 07-13)
No caso do direito territorial das comunidades quilombolas o primeiro marco
normativo foi estabelecido na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 mas natildeo em seu corpo
permanente e sim no Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) pelo
artigo 68 ldquoaos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras eacute reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-
99
lhes os tiacutetulos respectivosrdquo84 A partir de 2003 com o Decreto Federal 4887 assinado
no primeiro ano de mandato do entatildeo Presidente Lula a questatildeo quilombola ganha
forccedila e passa por uma estruturaccedilatildeo paulatina no Governo Federal A competecircncia
para titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas eacute atribuiacuteda ao INCRA no acircmbito do Ministeacuterio
do Desenvolvimento Agraacuterio o qual passa a incidir diretamente na questatildeo fundiaacuteria
das comunidades quilombolas em todo o Brasil
O conceito de quilombo imposto arbitrariamente no periacuteodo colonial enquanto
tipo penal para reprimir escravos fugidos85 demandou novos procedimentos
interpretativos ao se tornar uma categoria para reconhecimento de sujeitos de direitos
no presente Deve haver assim um deslocamento conceitual sobre as ideias de
quilombo como sobrevivecircncia e reminiscecircncia para que se possa compreender o que
satildeo as comunidades que se reconhecem como quilombolas hoje e como construiacuteram
sua autonomia historicamente (ALMEIDA 2011 p 64) Para tal reconfiguraccedilatildeo
conceitual a perspectiva antropoloacutegica tem contribuiccedilatildeo fundamental e se contrapocircs
por exemplo agraves limitaccedilotildees trazidas pelo Decreto Federal 3912 de 2001 obra do
governo do entatildeo presidente Fernando Henrique Cardoso
Nesta regulamentaccedilatildeo em forma de decreto do artigo 68 do ADCT realizada
em 2001 natildeo se reconhecia a autoatribuiccedilatildeo identitaacuteria pelos proacuteprios grupos sociais
Ao partir de um criteacuterio de heteroidentidade o decreto reproduzia a recusa da titulaccedilatildeo
definitiva das comunidades quilombolas sendo que durante a vigecircncia deste
instrumento no periacuteodo de dois anos nenhuma titulaccedilatildeo foi realizada Foram
estabelecidas condiccedilotildees restritivas como
(a) a manutenccedilatildeo da competecircncia da Fundaccedilatildeo Cultural Palmares (FCP) para
titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas o que limitava o direito territorial unicamente agrave
dimensatildeo cultural Esta atribuiccedilatildeo de competecircncia a FCP impossibilitava a efetivaccedilatildeo
da desapropriaccedilatildeo fundiaacuteria necessaacuteria
84 Esta parte da Constituiccedilatildeo na qual foi inserido o artigo 68 o ADCT consiste em um ato para regulaccedilatildeo da transiccedilatildeo entre regimes constitucionais o que revela a dificuldade em pautar esta temaacutetica que natildeo constou no corpo do texto principal da Constituiccedilatildeo No entanto segundo os juristas que se utilizam do modo de interpretaccedilatildeo sistemaacutetica da Constituiccedilatildeo este fato natildeo minimiza a eficaacutecia da norma enquanto garantidora de um direito fundamental Sobre o debate doutrinaacuterio e jurisprudencial acerca da temaacutetica ver SOUZA 2013 85 O Conselho Ultramarino Portuguecircs de 1740 definia quilombo como ldquotoda habitaccedilatildeo de negros fugidos que passem de cinco em parte desprovida ainda que natildeo tenham ranchos levantados ou se achem pilotildees nelesrdquo (LEITE 2000 p 336)
100
(b) a aplicaccedilatildeo do direito apenas para o caso das terras que jaacute estavam
ocupadas por quilombos em 1888 data da aboliccedilatildeo da escravidatildeo e que
continuassem ocupadas por ldquoremanescentesrdquo em 1988 quando da promulgaccedilatildeo da
Constituiccedilatildeo Federal Trata-se no entanto de duas datas arbitraacuterias do calendaacuterio do
Estado que por si soacute natildeo produziram ldquoa instituiccedilatildeo de um novo estado de coisas na
sociedaderdquo e que somadas estabeleceram um requisito temporal arbitraacuterio
colocando a necessidade de comprovaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo por cem anos para a
aquisiccedilatildeo do direito (MILANO 2011 p 97)
Em um contexto em que eacute o Estado no exerciacutecio de um poder tutelar que
define se um grupo eacute ou natildeo quilombola dentro desta perspectiva da heteroidentidade
estabelecida no decreto federal de 2001 a interlocuccedilatildeo do fazer antropoloacutegico dentro
do procedimento administrativo de titulaccedilatildeo seria direcionada para a produccedilatildeo de
laudos que teriam uma funccedilatildeo dupla de investigaccedilatildeo primeiro do da legitimidade do
reconhecimento eacutetnico da identidade reivindicada pelo grupo para entatildeo analisar o
reconhecimento territorial
Um novo cenaacuterio vem agrave tona com a ratificaccedilatildeo da Convenccedilatildeo 169 sobre Povos
Indiacutegenas e Tribais da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) por meio do
Decreto Legislativo nordm 143 de 200286 de modo que passa a ser incorporado no
ordenamento juriacutedico nacional o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo na identificaccedilatildeo de grupos
eacutetnicos Este criteacuterio foi previsto entatildeo no Decreto Federal 4887 de 2003 ndash tendo
revogado o decreto anterior 3912 de 2001 ndash o qual estaacute atualmente em vigor e
regulamenta os procedimentos para a titulaccedilatildeo territorial quilombola de
responsabilidade do INCRA
Com o Decreto 4883 de 2003 ndash que precedeu o Decreto 4887 tambeacutem de
2003 ndash a competecircncia para titulaccedilatildeo quilombola havia sido transferida da Fundaccedilatildeo
Cultural Palmares (FCP) para o INCRA Esta mudanccedila teve uma repercussatildeo positiva
pois este oacutergatildeo federal eacute o que possui atribuiccedilatildeo para ordenaccedilatildeo da estrutura fundiaacuteria
nacional podendo realizar assim desapropriaccedilotildees com o intuito de efetivar as
titulaccedilotildees quilombolas Entretanto o INCRA natildeo possuiacutea estrutura institucional para
lidar com demandas de caraacuteter eacutetnico ndash em contraste com a Fundaccedilatildeo Cultural
86 Aleacutem do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo a ratificaccedilatildeo da Convenccedilatildeo 169 trouxe outras inovaccedilotildees significativas para o ordenamento juriacutedico nacional sobre as quais natildeo iremos nos aprofundar neste trabalho Sobre este tema ver MILANO 2011
101
Palmares (FCP) e a Fundaccedilatildeo Nacional do Iacutendio (FUNAI) oacutergatildeos federais que jaacute
contavam com ampla experiecircncia de trabalho com demandas eacutetnicas
Com uma nova conjuntura estabelecida pela incorporaccedilatildeo do criteacuterio de
autoatribuiccedilatildeo nos processos de regularizaccedilatildeo territorial os laudos antropoloacutegicos
deixam de exercer a funccedilatildeo de ldquoreconhecimento eacutetnico-territorialrdquo para assumir a
funccedilatildeo apenas de ldquoreconhecimento territorialrdquo (ARRUTI 2006 p 27-32) pois o
reconhecimento eacutetnico passou a ser definido pela autoidentificaccedilatildeo dos proacuteprios
grupos sociais A questatildeo deixa de ser a quem se aplica o direito para quais satildeo os
grupos que dirigem suas reivindicaccedilotildees a estes direitos ou ainda quem satildeo os sujeitos
que orientam suas accedilotildees a partir do sentimento de pertencer a um grupo especiacutefico
quilombola O criteacuterio de autoidentificaccedilatildeo estaacute de acordo com a perspectiva
antropoloacutegico de que os grupos eacutetnicos satildeo entidades autodefinidas e de que ldquoas
etnicidades demandam uma visatildeo construiacuteda de dentro e elas natildeo tecircm relaccedilotildees
imperativas com qualquer criteacuterio objetivordquo (OrsquoDWYER 2011 p 113)87
Eacute por meio dos processos de emergecircncia de novas identidades sociais que o
passado e as narrativas histoacutericas da memoacuteria coletiva vatildeo ser articulados de modo
ldquopoliacutetica e socialmente operacionaisrdquo no sentido de subsidiar as reivindicaccedilotildees
identitaacuterias (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 22) Assim como natildeo haacute criteacuterios
objetivos para a definiccedilatildeo da etnicidade natildeo haacute tambeacutem um passado pronto que
vecircm agrave tona Ademais eacute por meio destes novos contextos de interaccedilatildeo que as
diferenccedilas culturais seratildeo percebidas pelos proacuteprios sujeitos como socialmente
significativas (BARTH 2011)
Neste cenaacuterio de reconhecimento de direitos eacutetnicos a interlocuccedilatildeo do saber
antropoloacutegico com o juriacutedico tem se potencializado mas natildeo sem ambivalecircncias A
participaccedilatildeo de antropoacutelogos como peritos em procedimentos de reconhecimento
territorial tem sido fundamental para a realizaccedilatildeo de ldquoestudo in loco dos processos
pelos quais emergem os grupos negrosrdquo (LEITE FERNANDES 2006 p 09-10) A
antropologia tem contribuiacutedo portanto com seu acuacutemulo teoacuterico que passa a ser
colocado a serviccedilo das instituiccedilotildees puacuteblicas o que torna necessaacuteria por conseguinte
a ldquobusca por paracircmetros de avaliaccedilatildeo e execuccedilatildeo para a antropologia e antropoacutelogosrdquo
em um novo acircmbito de profissionalizaccedilatildeo
87 Este eacute um aspecto central discutido pela tradiccedilatildeo teoacuterica da antropologia cuja referecircncia fundamental
eacute o antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth com seu texto Grupos eacutetnicos e suas fronteiras publicado inicialmente em 1969 (BARTH 2011)
102
Para a elaboraccedilatildeo de tais paracircmetros eacute preciso que haja ampla discussatildeo
divulgaccedilatildeo e debate acerca dos trabalhos de periacutecia criando assim um espaccedilo de
reflexatildeo criacutetica dentro da disciplina antropoloacutegica capaz de responder a tais demandas
geradas na interface entre o saber juriacutedico e antropoloacutegico visando que ldquoo campo se
consolide e este instrumento (o relatoacuterio antropoloacutegico) seja cada vez mais eficaz no
contexto e objetivos a que se propotildeerdquo (LEITE FERNANDES 2006 p 09-10) Este eacute
o principal objetivo deste segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo no qual pretendo analisar
comparativamente os dois relatoacuterios antropoloacutegicos produzidos sobre a ldquoComunidade
Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo
Ambos os relatoacuterios foram produzidos no acircmbito do Procedimento
Administrativo (PA) 542000010752008-46 de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria que tramita na
Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute instaurado em 24 de abril de 2008 O primeiro
relatoacuterio foi produzido por meio do convecircnio do INCRA com a Universidade Estadual
do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE) tendo a versatildeo final sido encaminhada a este oacutergatildeo
federal em 29 de outubro de 2010 Os argumentos levantados iam de encontro agraves
premissas da autoatribuiccedilatildeo questionando assim a legitimidade da reivindicaccedilatildeo
identitaacuteria e territorial da comunidade Este relatoacuterio foi recusado pelo INCRA com
base em vaacuterios argumentos dentre os quais destaco o fato de os autores terem
apresentado ldquobaixa qualidade teacutecnica e antropoloacutegicardquo e natildeo terem cumprido ldquocom os
termos do convecircnio e da IN 492008rdquo 88
Este primeiro relatoacuterio que seraacute a partir de agora denominado de ldquorelatoacuterio
anti-antropoloacutegicordquo nesta dissertaccedilatildeo foi posteriormente retirado do procedimento de
regularizaccedilatildeo territorial do grupo passando a constar apenas no procedimento
referente agrave finalizaccedilatildeo e tomada de contas do convecircnio com a UNIOESTE
(Procedimento Administrativo nordm 542000023842008-33) Dentre os argumentos
levantados questionando a legitimidade da reivindicaccedilatildeo da comunidade destaca-se
o entendimento de que natildeo havia ancestralidade de ocupaccedilatildeo de um mesmo territoacuterio
e que aquele natildeo era um territoacuterio quilombola tendo em vista por exemplo a
inexistecircncia de registros histoacutericos de escravidatildeo negra na regiatildeo de GuaiacuteraPR
Em decorrecircncia do trabalho do INCRA com a comunidade houve o
desencadeamento de um seacuterio conflito causado pela mobilizaccedilatildeo dos proprietaacuterios
88 Instruccedilatildeo Normativa que regia o procedimento de titulaccedilatildeo quilombola no INCRA na eacutepoca da
produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio antropoloacutegico
103
vizinhos contraacuterios agraves reivindicaccedilotildees quilombolas sendo que a lideranccedila do grupo foi
ameaccedilada de morte vaacuterias vezes em um clima de forte tensatildeo e animosidade Em
resposta a esta situaccedilatildeo de inseguranccedila e agrave recusa do primeiro relatoacuterio o INCRA
contratou um segundo relatoacuterio antropoloacutegico que foi produzido pela empresa Terra
Ambiental Esta empresa foi a vencedora do pregatildeo eletrocircnico realizado pela
Coordenaccedilatildeo Geral de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolas (DFQ) da sede do
INCRA em Brasiacutelia tendo em vista a urgecircncia deste processo de regularizaccedilatildeo
territorial em GuaiacuteraPR A versatildeo final do segundo relatoacuterio foi encaminhada em 15
de julho de 2013 E avaliado em sua consonacircncia com a instruccedilatildeo normativa em vigor
572009 o relatoacuterio antropoloacutegico foi aprovado e incorporado ao Relatoacuterio Teacutecnico de
Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID)89 da comunidade
A pesquisa para produccedilatildeo de um novo relatoacuterio antropoloacutegico teve que lidar
com as questotildees provocadas pelo primeiro estudo e sua recusa em reconhecer a
autoidentificaccedilatildeo do grupo como quilombolas Como resposta a equipe de
pesquisadores contratados pela empresa Terra Ambiental realizou um levantamento
acerca das memoacuterias coletivas do grupo sobre sua origem mineira deslocando o
historiador Cassius Cruz ateacute a regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG de onde as
famiacutelias satildeo provenientes Atraveacutes deste levantamento de informaccedilotildees em Minas
Gerais foi possiacutevel apontar os viacutenculos e as referecircncias comuns de memoacuteria entre a
comunidade de Guaiacutera e comunidades quilombolas desta regiatildeo mineira bem como
levantar possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco com a Comunidade Quilombola Vila Nova
localizada em SerroMG especificamente
89 O RTID eacute um conjunto de peccedilas teacutecnicas que eacute produzido pelo INCRA no acircmbito do procedimento administrativo para regularizaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas O relatoacuterio antropoloacutegico eacute a primeira peccedila teacutecnica do RTID (o qual eacute composto por outros estudos) e tem como objetivo ldquocaracterizarrdquo a comunidade quilombola e o territoacuterio reivindicado conforme a Instruccedilatildeo Normativa 57 de 2009 que regulamenta o procedimento De um modo mais geral sobre as etapas que compotildeem o processo de titulaccedilatildeo tem-se que ldquoa primeira parte dos trabalhos do Incra consiste na elaboraccedilatildeo de um estudo da aacuterea destinado agrave confecccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) do territoacuterio Uma segunda etapa eacute a de recepccedilatildeo anaacutelise e julgamento de eventuais contestaccedilotildees Aprovado em definitivo esse relatoacuterio o Incra publica uma portaria de reconhecimento que declara os limites do territoacuterio quilombola A fase seguinte do processo administrativo corresponde agrave regularizaccedilatildeo fundiaacuteria com desintrusatildeo de ocupantes natildeo quilombolas mediante desapropriaccedilatildeo eou pagamento de indenizaccedilatildeo e demarcaccedilatildeo do territoacuterio O processo culmina com a concessatildeo do tiacutetulo de propriedade agrave comunidaderdquo Disponiacutevel em httpwwwincragovbrestrutura-fundiariaquilombolas Acesso em 180915
104
Para entender a complexidade da produccedilatildeo destes dois relatoacuterios eacute
importante levar em conta que a produccedilatildeo de tal tipo de documento no acircmbito de um
procedimento do INCRA consiste em uma forma especiacutefica de pesquisa
antropoloacutegica Trata-se de um processo dirigido de interaccedilatildeo entre o antropoacutelogo e os
sujeitos de pesquisa a partir de paracircmetros legais e administrativos O territoacuterio a ser
delimitado como proposta final do estudo seraacute neste contexto resultado de uma
fabricaccedilatildeo mediada por atores que interagem em uma rede configurada tambeacutem como
um forte campo de disputas Em jogo estatildeo natildeo soacute as tensotildees entre estes campos
de conhecimento mas tambeacutem entre interesses antagocircnicos sobre a questatildeo eacutetnica
e territorial principalmente no que tange agrave resistecircncia dos setores conservadores da
sociedade em relaccedilatildeo agraves possibilidades de alteraccedilatildeo e democratizaccedilatildeo da estrutura
agraacuteria nacional
Um dos efeitos em relaccedilatildeo a essa disputa que cria entraves para a efetivaccedilatildeo
de titulaccedilotildees de territoacuterios quilombolas foi o aumento na burocratizaccedilatildeo dos
procedimentos exigidos pelo INCRA por meio da alteraccedilatildeo das instruccedilotildees normativas
(IN) que regem este processo ateacute a atual IN 57 de 2009 Ainda em 2008 a Associaccedilatildeo
Brasileira de Antropologia (ABA) se posicionou sobre o debate acerca da reforma da
IN 20 anterior agrave mais exigente IN 5790 por meio da ldquoCarta de Porto Segurordquo criticando
o estabelecimento de um roteiro com itens descritivos a serem seguidos pelo
antropoacutelogo responsaacutevel pela realizaccedilatildeo de relatoacuterios de identificaccedilatildeo territorial
() Diferentemente de outras periacutecias teacutecnicas o relatoacuterio antropoloacutegico natildeo trabalha sob o suposto de uma verdade absoluta e externa aos atores mas desempenha o papel de apreender e interpretar o ponto de vista nativo sobre sua histoacuteria sociedade e ambiente de forma a traduzi-lo nas linguagens externas a ele Como corolaacuterio deste papel principal a Antropologia tambeacutem tem o papel de relativizar e enriquecer tais saberes e linguagens do Estado ao confrontaacute-lo com concepccedilotildees e conceitos que lhe satildeo externos A recusa de qualquer destes objetivos deve ser assumida pelas agecircncias de Estado como fruto de decisatildeo poliacutetica expliacutecita e natildeo transferida para o exerciacutecio antropoloacutegico por meio de constrangimentos legais ou normativos Diante destas consideraccedilotildees repudiamos a pretensatildeo do Estado Brasileiro em interferir sobre o saber e o fazer antropoloacutegicos tendo em vista interesses
90 Segundo Arruti as alteraccedilotildees da Instruccedilatildeo Normativa 202005 para a 572009 foram decorrentes da
mediaccedilatildeo do Governo Federal frente agrave pressatildeo poliacutetica que os opositores ao tema provocaram com a proposta de Accedilatildeo Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3239 encaminhada pelo partido Democratas ao Supremo Tribunal Federal Esta ADIn questiona o Decreto 48872003 que regulamenta o procedimento de titulaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas Arruti afirma que ldquo() o governo federal assumiu o ocircnus de incorporar o contraditoacuterio imposto pela oposiccedilatildeo ao tema na forma de uma nova proposta de reformulaccedilatildeo da Instruccedilatildeo Normativa interna ao Incra abrindo um novo campo de disputas que agora o opotildee ele mesmo ao movimento quilombolardquo (ARRUTI 2009 p 120)
105
conjunturais e externos ao legiacutetimo debate puacuteblico em torno dos objetivos que formalmente sustentam o diaacutelogo entre antropoacutelogos e agecircncias de Estado91
O contato do campo juriacutedico com os antropoacutelogos ndash tanto na esfera
administrativa como na judicial ndash nas quais o relatoacuterio antropoloacutegico pode ser
interpretado como prova pericial ndash cria uma expectativa por parte dos operadores do
direito da produccedilatildeo de um conhecimento cientiacutefico objetivo pensado a partir de fatos
como elementos externos e preacute-existentes bem como a partir da dicotomia entre
representaccedilatildeo e realidade (OrsquoDWYER 2009 p 177) Esta aproximaccedilatildeo entre campos
de conhecimento tem sido permeada portanto de desentendimentos muacutetuos
Haacute o poder e a autoridade do juiz de dizer de quem eacute ou natildeo eacute o direito quem pode ou natildeo pode quem vai ou natildeo vai ter direito agrave condiccedilatildeo pleiteada ou neste exemplo agrave terra reivindicada O mesmo natildeo pode ser esperado do antropoacutelogo embora sua voz seja importante na decisatildeo do juiz () Haacute muitas vezes durante esse processo uma dificuldade de entendimento sobre o lugar efetivo do antropoacutelogo Entatildeo lhe recaem responsabilidades que parecem criar uma confusatildeo entre saberes poderes e responsabilidades a ponto de ser atribuiacutedo ao antropoacutelogo um lugar de juiz isto eacute o papel de julgar e definir quem seraacute beneficiado (LEITE 2004 67)
Os criteacuterios juriacutedicos natildeo deveriam desta forma desconsiderar os paracircmetros
de execuccedilatildeo e de avaliaccedilatildeo da proacutepria antropologia jaacute que eacute a esta tradiccedilatildeo teoacuterica
que se estaacute recorrendo em funccedilatildeo de seu campo interpretativo para subsidiar a
compreensatildeo das dinacircmicas sociais em questatildeo A relevacircncia do meacutetodo etnograacutefico
para a antropologia coloca em questatildeo as dificuldades impostas em contextos de
pesquisa em que a temporalidade do processo natildeo eacute a mesma da etnografia para
estudos acadecircmicos Eacute importante que este meacutetodo de pesquisa possa ser
incorporado nos procedimentos desta poliacutetica de reconhecimento em condiccedilotildees de
efetivo respeito agrave alteridade Nesse sentido para que a etnografia possa se realizar a
partir do criteacuterio da produccedilatildeo de um conhecimento dialoacutegico e operar como um
instrumento adequado antropologicamente seria necessaacuterio que a poliacutetica de
reconhecimento do Estado incorporasse outros saberes e linguagens capazes de
enriquecer e problematizar a questatildeo da diversidade cultural
Ademais se por um lado o direito cria um filtro para lidar com a antropologia
a antropologia por outro eacute ela mesma um filtro Importante destacar que o problema
91 ldquoCarta de Porto Seguro sobre as posturas estatais diante das consultas formais aos antropoacutelogosrdquo
Disponiacutevel em httpwwwabantorgbrconteudoANAISCD_Virtual_26_RBAcartadeportoseguropdf Acesso em 180915
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do poder e do silenciamento na produccedilatildeo de textos antropoloacutegicos estaacute teoricamente
elaborado desde a deacutecada de 1970 com a virada poacutes-moderna O etnoacutegrafo natildeo pode
mais escapar imune dessa ldquocrise teoacuterico-poliacuteticardquo Necessaacuterio retomar desta maneira
a criacutetica aos modos de escrita antropoloacutegica que instauram regimes de verdade em
relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo do nativo a partir de padrotildees de disciplinamento e controle
que escamoteiam a presenccedila do antropoacutelogo como autor e que podem reforccedilar uma
ldquounidade cognoscenterdquo92 em relaccedilotildees de poder sobre os grupos estudados
(CARVALHO 2002 p 06)
Ao passo que este debate sobre a representaccedilatildeo etnograacutefica estaacute colocado
para a antropologia em situaccedilotildees de diaacutelogo com esferas como o direito que trabalha
com a busca de provas a partir da elaboraccedilatildeo de periacutecias torna-se muito mais
complexo (mas natildeo menos necessaacuterio) problematizar o lugar do antropoacutelogo na
relaccedilatildeo de pesquisa e na forma de escrita Nesta intersecccedilatildeo de aacutereas de saber o
que vem agrave tona muitas vezes em primeiro plano eacute a possibilidade pragmaacutetica dos
antropoacutelogos participarem dos processos de garantia de direitos para os grupos aos
quais tecircm dedicado longa tradiccedilatildeo de estudos e neste processo debates importantes
da antropologia podem acabar negligenciados em prol de estrateacutegias de persuasatildeo
argumentativa dos relatoacuterios antropoloacutegicos
Neste contexto de traduccedilotildees e incompreensotildees eacute necessaacuterio reafirmar
conforme pautado pelo documento produzido pela Associaccedilatildeo Brasileira de
Antropologia (ABA) ndash a Carta de Ponta das Canas93 ndash que agrave antropologia cabe a
produccedilatildeo de inteligibilidade e natildeo de julgamentos a construccedilatildeo de interpretaccedilotildees e
natildeo de ldquoverdadesrdquo natildeo tendo o relatoacuterio antropoloacutegico um caraacuteter de atestado (ABA
2001) A diferenccedila deste tipo de trabalho com relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo acadecircmica estaria
em uma certa economia a que o antropoacutelogo deve responder restringindo na medida
do possiacutevel a riqueza etnograacutefica aos limites da demanda Essa tensatildeo entre
antropologia e direito no entanto natildeo deve ser eliminada pois isso soacute ocorreria por
meio da submissatildeo de um saber ao outro Assim recomenda-se que o antropoacutelogo
92 O antropoacutelogo Joseacute Jorge de Carvalho problematiza o fato de que a comunidade antropoloacutegica eacute
avassaladoramente branca e que se de um lado a antropologia estaacute interessada na diversidade nativa natildeo conseguiu ainda superar a homogeneidade social racial e de classe dos proacuteprios antropoacutelogos profissionais (CARVALHO 2002 p 08) 93 Documento produzido na ldquoOficina sobre Laudos Antropoloacutegicosrdquo realizada pela Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia (ABA) e organizada pelo Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Ver ABA Laudos Antropoloacutegicos - Carta de Ponta das Canas Textos e Debates n 9 Florianoacutepolis NUERUFSC 2001
107
seja minucioso e sistemaacutetico na explicitaccedilatildeo das razotildees que o levaram agrave apresentaccedilatildeo
das informaccedilotildees selecionadas tendo em vista os objetivos especiacuteficos deste tipo de
documento (ABA 2001 p 04- 05)
Eacute sabido que diferentes situaccedilotildees etnograacuteficas iratildeo gerar diferentes respostas
dos grupos sociais em termos da possibilidade de estabelecimento de relaccedilotildees de
confianccedila compreensibilidade e diaacutelogo (OLIVEIRA FILHO 2003 141-180) Para
aleacutem do caraacuteter juriacutedico que assume o relatoacuterio antropoloacutegico haacute uma importante
dimensatildeo de valorizaccedilatildeo da memoacuteria da legitimidade e dos conhecimentos dos
grupos que passam por tal tipo de estudo o que iraacute depender do posicionamento eacutetico
dos profissionais envolvidos e das relaccedilotildees estabelecidas com seus interlocutores
Com um relatoacuterio antropoloacutegico que possa embasar teoricamente esta experiecircncia
histoacuterica e coletiva especiacutefica abre-se a possibilidade inclusive de uma confrontaccedilatildeo
de historicidades tendo em vista que a histoacuteria oficial em sua linearidade
uniformizadora natildeo incorpora esta diversidade de experiecircncias histoacutericas (CHAGAS
2005 p 75)
Neste capiacutetulo busco analisar de que forma o processo de reconhecimento
da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos ndash por meio da atuaccedilatildeo de diferentes atores
externos e especialmente no que tange agrave produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos
ndash foi percebido pelos membros do grupo quilombola e ao mesmo tempo em um certo
sentido produziu o proacuteprio grupo94 em um acircmbito institucional Assim como afirmou
Homi Bhabha importante teoacuterico dos estudos poacutes-coloniais eacute preciso reconhecer a
forccedila da escrita e de seu discurso retoacuterico ldquocomo matriz produtiva que define o lsquosocialrsquo
A textualidade natildeo eacute simplesmente uma expressatildeo ideoloacutegica de segunda ordem ou
um sintoma verbal de um sujeito poliacutetico preacute-dadordquo (BHABHA 1988 p 48) Assim
deve-se ter em vista o potencial transformador contido no processo que se pretende
de ldquoreconhecimentordquo e que muitas vezes incorre no equiacutevoco de buscar uma
identidade e um territoacuterio preacute-existentes
94 Se no primeiro relatoacuterio os autores afirmaram que natildeo se tratava de um grupo quilombola mas sim
de famiacutelias negras de trabalhadores rurais no segundo relatoacuterio reconheceu-se a autoindentificaccedilatildeo como grupo quilombola e fundamentou-se sua reivindicaccedilatildeo identitaacuteria a partir das referecircncias sobre a regiatildeo de origem do grupo Com base na pesquisa feita pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico impulsionou-se o retorno de quilombolas para Minas Gerais em busca de seus parentes e de mais informaccedilotildees sobre seus antepassados Isto demonstra como os processos de escrita sobre o grupo repercutiram em sua proacutepria dinacircmica interna de modo significativo tendo em vista que a memoacuteria coletiva estava passando por uma adequaccedilatildeo a este tipo de avaliaccedilatildeo externa
108
O que natildeo pode ser deixado de lado eacute o caraacuteter criativo e transformador deste processo que tende a ser obscurecido quando se supotildee que o ldquoterritoacuteriordquo remete necessariamente a sentidos e usos do espaccedilo preexistentes a ele A proacutepria noccedilatildeo de ldquoreconhecimentordquo tende a favorecer tal interpretaccedilatildeo sugerindo que o que estaacute em jogo eacute apenas a ldquoformalizaccedilatildeordquo ou ldquolegalizaccedilatildeordquo de um estado de coisas jaacute existente Ainda que fosse esse o caso eacute preciso destacar tambeacutem que tal ldquoformalizaccedilatildeordquo ou ldquolegalizaccedilatildeordquo implica em substanciais mudanccedilas na dinacircmica vital e social dos grupos envolvidos Sem qualquer pretensatildeo agrave exaustividade poderiacuteamos a esse respeito evocar apenas a intensificaccedilatildeo da presenccedila dos ldquomediadoresrdquo (lideranccedilas de movimentos sociais e sindicatos universitaacuterios pesquisadores funcionaacuterios do Estado e de ONGs) na vida cotidiana destas pessoas No contexto da luta poliacutetica elas satildeo obrigadas a se ver agraves voltas com dinacircmicas que se por um lado satildeo positivamente avaliadas como indicadores da ldquopolitizaccedilatildeordquo ou ldquoresistecircnciardquo da ldquocomunidaderdquo por outro satildeo por elas mesmas contrapostas ao ldquosossegordquo ou ldquotranquilidaderdquo que usufruiacuteam nos momentos em que podiam manter uma maior autonomia perante as exigecircncias e pressotildees do mundo ldquourbanordquo eou ldquoletradordquo Note-se que nesse uacuteltimo caso estamos nos referindo tanto aos ldquoinimigosrdquo destes grupos como aos seus aliados as ameaccedilas oriundas dos primeiros muitas vezes tornando imperativo o estabelecimento e consolidaccedilatildeo de relacionamentos com os segundos ndash frequentemente a partir de formas praacuteticas e linguagens que satildeo mais familiares a estes mediadores do que agravequeles que por eles ldquomediadosrdquo Que as dificuldades decorrentes desses relacionamentos sejam desconsideradas em prol das vantagens deles originadas soacute confirma o que pretendemos argumentar aqui para o bem ou para o mal natildeo se vive impunemente a luta poliacutetica e as alianccedilas vinculadas a ela as marcas decorrentes de tal processo frequentemente se convertendo em marcos na histoacuteria e memoacuteria dos grupos que optaram por ndash ou foram compelidos a ndash ldquose engajarrdquo (GUEDES 2013b p 56-57)
Entre inimigos e aliados o grupo quilombola Manoel Ciriaco dos Santos natildeo
viveu impunemente a sua opccedilatildeo pelo engajamento poliacutetico Parece que a primeira
impressatildeo de que o reconhecimento como quilombolas poderia representar um risco
como veremos abaixo veio a se confirmar para eles com os desdobramentos
conflituosos que se seguiram agrave presenccedila do INCRA na comunidade (a partir da
atuaccedilatildeo da equipe que realizou o primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo) resultando na
perda de empregos nas propriedades vizinhas no isolamento das famiacutelias e na
necessidade de receberem cestas baacutesicas por falta de meios de sobrevivecircncia Com
o segundo relatoacuterio antropoloacutegico uma nova perspectiva se apresentou atraveacutes da
busca por informaccedilotildees que demonstrassem o viacutenculo da comunidade em Guaiacutera com
sua regiatildeo de origem em Minas Gerais Essa pesquisa trouxe repercussotildees
significativas natildeo soacute no acircmbito do procedimento do INCRA pois ganhou dimensotildees
profundas em termos emocionais simboacutelicos e poliacuteticos para o grupo Eacute a partir dos
questionamentos levantados pelo primeiro relatoacuterio e desta conflituosidade do
processo de reconhecimento que os quilombolas em GuaiacuteraPR impulsionam-se
para a busca de maiores informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica de seus
109
antepassados e reacionam os viacutenculos com a regiatildeo de origem bem como com seus
parentes em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG como analisaremos no uacuteltimo capiacutetulo
21 O AUTORRECONHECIMENTO COMO QUILOMBOLAS
O autorreconhecimento como quilombolas remete ao contato que as famiacutelias
tiveram com agentes do Estado que lhes apresentaram esta via de direitos no ano de
2005 a partir da visita de Clemilda Santiago Neto professora de histoacuteria e militante
do movimento negro que na eacutepoca trabalhava na Secretaria de Educaccedilatildeo do Estado
do Paranaacute (SEED) e no Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) O chamado ldquoGT
Cloacutevis Mourardquo foi criado por iniciativa do governo estadual95 tendo atuado entre os
anos de 2005 e 2010 enquanto uma equipe intersecretarial com o objetivo de realizar
um ldquoLevantamento Baacutesico de Comunidades Negras do Paranaacuterdquo96 o qual teve
importacircncia fundamental no estiacutemulo agrave certificaccedilatildeo de grupos quilombolas no estado
Poreacutem como iremos analisar o contato com agentes estatais no caso da comunidade
quilombola em questatildeo desde o primeiro momento envolveu tensotildees e foi marcado
pela desconfianccedila por parte dos quilombolas
Os grupos sociais que foram identificados no levantamento do governo do
estado tendo em vista o objetivo de ldquodescobrir o Paranaacute Negrordquo poderiam ser
classificados segundo os membros do GTCM em trecircs categorias Remanescente de
Quilombo Negros Tradicionais ou Comunidade Negra (LEWANDOWISKI 2009 p
42 50) Tais comunidades foram vistas pelo GTCM como ldquohistoricamente e ateacute agora
invisibilizadas eou suprimidas pelas diversas esferas do poder e da sociedade civilrdquo
e para superar tal situaccedilatildeo o levantamento visava ldquoatingir objetivos mais imediatos
tornaacute-las alvo de poliacuteticas puacuteblicas que estatildeo sendo disponibilizadas a outras
comunidades e segmentos sociais em accedilatildeo de inclusatildeo socialrdquo97
O resultado da pesquisa apontava em 2010 quando o grupo de trabalho foi
extinto para um quadro de trinta e seis comunidades quilombolas certificadas pela
95 Resoluccedilatildeo conjunta nordm 012005 que inclui a Secretaria do Estado da Educaccedilatildeo Assuntos Estrateacutegicos Cultura Comunicaccedilatildeo Social e Meio Ambiente 96 O relatoacuterio final elaborado pelo GTCM estaacute disponiacutevel em httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=69 Acesso em 30042014 97 Texto de apresentaccedilatildeo que consta no site institucional do GTCM Disponiacutevel em
httpwwwgtclovismouraprgovbrmodulesconteudoconteudophpconteudo=16 Acesso em 170215
110
Fundaccedilatildeo Cultural Palmares (FCP) vinte ldquocomunidades negras tradicionaisrdquo ainda
natildeo certificadas e 32 (trinta e dois) indicativos da existecircncia de outras comunidades
no estado do Paranaacute (GRUPO DE TRABALHO CLOacuteVIS MOURA 2010 17-21)
Atualmente a Superintendecircncia do INCRA no Paranaacute possui 37 procedimentos de
regularizaccedilatildeo de territoacuterios quilombolas abertos Deste total dez estatildeo em andamento
e cinco estatildeo em processo de elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e
Delimitaccedilatildeo (RTID) dentre os quais o da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos
Santos98
Durante o governo estadual de Roberto Requiatildeo (PMDB2003-2010) levando
em consideraccedilatildeo o alinhamento com o governo federal de Luis Inaacutecio Lula da Silva
(PT2003-2010) foi gerado portanto um momento propiacutecio para pautar a agenda
puacuteblica com as questotildees relativas agraves minorias eacutetnicas com base em leis e decretos
que inovaram no tratamento destas questotildees99 Buscou-se assim sensibilizar os
administradores em relaccedilatildeo agraves demandas das comunidades quilombolas e dar apoio
para que os proacuteprios segmentos pudessem acionar com a mediaccedilatildeo do GTCM as
diversas secretarias de estado bem como os oacutergatildeos federais
Quando a comunidade se auto-reconhecia como remanescente de quilombo o grupo de trabalho prestava uma assessoria para organizaccedilatildeo das associaccedilotildees de moradores condiccedilatildeo fundamental para abertura dos processos junto ao Incra na construccedilatildeo dos estatutos e na eleiccedilatildeo de uma diretoria Quando escolhidas as novas lideranccedilas comunitaacuterias passavam a ter contato intenso com a equipe do GT A orientaccedilatildeo era para que diante de qualquer duacutevida ou problema o GT pudesse ser acionado para resolver (LEWANDOWSKI 2009 p 51)
Em relaccedilatildeo agrave chegada de Clemilda ndash uma das principais protagonistas do
processo de levantamento das comunidades pelo GTCM ndash e a como ocorreu o
reconhecimento do grupo em GuaiacuteraPR Eva (50) esposa de Joaquim (55) (portanto
98 As outras comunidades em processo de elaboraccedilatildeo do RTID satildeo Adelaide Maria Trindade Batista em Palmas Varzeatildeo em Doutor Ulysses Serra do Apon em Castro e Mamatildes em Cerro Azul Notiacutecia disponiacutevel em httpwwwincragovbrnoticiasmesa-de-acompanhamento-da-politica-de-regularizacao-quilombola-e-instalada-no-parana Acesso em 24022015 99 Dentre as principais normatizaccedilotildees estatildeo a Lei 106392003 (que inclui ldquono curriacuteculo oficial da Rede
de Ensino a obrigatoriedade da temaacutetica Histoacuteria e Cultura Afro-Brasileira) o Decreto Federal 48872003 (que regulamenta o processo de titulaccedilatildeo ldquodas terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos) e o Decreto Federal 60402007 (que ldquoinstitui a Poliacutetica Nacional de Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionaisrdquo) dentre outras regulamentaccedilotildees federais neste sentido
111
nora de Manoel Ciriaco) contou-me sobre como ficaram surpresos com a visita de
uma funcionaacuteria puacuteblica interessada na histoacuteria do grupo
Dandara Como seraacute que ela ficou sabendo de vocecircs mesmo
D Eva Porque eu estudava aqui na escola com a Lucia daiacute ela tambeacutem trabaiava no negoacutecio que a Clemilda trabaia laacute Daiacute entatildeo ela falou que aqui ni Guaiacutera tinha ela achava que era descendente de escravo era remanescente de quilombo Daiacute ela mandou vim aqui daiacute a Clemilda veio Ela veio primeiro falar daiacute depois a Clemilda veio Acho que ela (Lucia) veio aqui se era dois mil ih fazia tempo nem lembrava disso mais Daiacute foi a Clemilda chegou aqui Ningueacutem acreditava E o Zeacute Maria falava assim ldquonatildeo eles vatildeo roubar de noacutesrdquo Eacute (risos) ldquoNoacutes nunca foi conhecido nesse lugar Noacutes nunca foi reconhecido nesse lugar aqui Noacutes sempre desprezado aqui Como eacute que domingo ainda Ah natildeo acredito ah natildeo acreditordquo (risos) Pegou a muletinha dele e foi embora pra casa Natildeo quis nada de jeito nenhum
Dandara E antes da Clemilda vocecircs natildeo imaginavam que teriam direito
D Eva Natildeo noacutes natildeo imaginava natildeo que noacutes natildeo sabia de nada eacute natildeo falava nem nada disso aiacute
As pessoas da comunidade natildeo soacute ficaram surpresas com a chegada de
Clemilda como tambeacutem desconfiaram de suas intenccedilotildees ainda mais porque ela
chegou em um dia de domingo Me contaram como desconfiaram ateacute se ela era do
governo principalmente o ldquofinado Zeacute Mariardquo que na eacutepoca era a referecircncia e a
lideranccedila da famiacutelia sendo o filho mais velho dentre os que permaneceram na
comunidade Ele resistiu muito ateacute concordar em assinar os papeacuteis que solicitariam o
reconhecimento da comunidade como quilombola Joaquim destacou como a postura
do irmatildeo foi enfaacutetica e estava legitimada na sua posiccedilatildeo de autoridade
Joaquim Ai uma hora ele falou com ela ldquoeacute eu fico muito emocionado noacutes aqui nesse fim de mundo e vocecircs que eacute pessoal do governo veio procurar a gente que nunca aconteceu issordquo Ele falou pra ela (risos) Aiacute a hora que ela caccedilou ele falou ldquoMelhor ficar que eu vou embora agora que o que meu pai deixou pra noacutes eacute mixaria e eu natildeo quero perder e ningueacutem me faz eu assinarrdquo
A fala de Joaquim em referecircncia ao comentaacuterio de Zeacute Maria indica uma
sensaccedilatildeo de invisibilidade e abandono por parte do Estado para com estas famiacutelias
o que eacute reforccedilado na leitura dos membros do grupo pela condiccedilatildeo histoacuterica de
exclusatildeo e opressatildeo do negro no Brasil Se esta percepccedilatildeo poderia ter sido alterada
com o processo de reconhecimento do grupo como quilombola percebe-se no
entanto que o Estado entendido como figura abstrata dissociada de seus agentes
112
especiacuteficos ndash com os quais em alguns casos eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees de
confianccedila e amizade ndash continua apresentando posicionamentos duacutebios e natildeo dignos
de confianccedila O Estado de alguma forma segundo Adir se isentaria diante do fato
de que os quilombolas tecircm ainda que correr atraacutes de direitos que deveriam lhes ser
garantidos prontamente tendo em vista a histoacuteria de opressatildeo a que vem sendo
submetidos Para conquistar algum direito com muita luta e paciecircncia sentem-se
refeacutens dos labirintos burocraacuteticos e hieraacuterquicos de procedimentos instruccedilotildees
normativas leis e barganhas poliacuteticas
Joaquim Eva e Adir me relataram como foi conturbado este contato inicial
com agentes do Estado Zeacute Maria pediu inclusive para que Adir solicitasse agrave Clemilda
o seu crachaacute comprovando que ela era funcionaacuteria puacuteblica Esta desconfianccedila em
assinar os papeacuteis que solicitariam o reconhecimento da comunidade como quilombola
parece decorrente do risco de expropriaccedilatildeo por eles percebido bem como aponta
para a dificuldade de domiacutenio do mundo documental pelos membros do grupo100 Fala
tambeacutem sobre o processo de exclusatildeo e sobre como o grupo o percebe jaacute que se
estar invisiacutevel era algo que confirmava a situaccedilatildeo perifeacuterica em que viviam por outro
lado a visibilidade tambeacutem eacute percebida como um risco101 No entanto Zeacute Maria foi
depois convencido e assinou o documento que subsidiou a elaboraccedilatildeo da ldquoCertidatildeo
de Auto-Reconhecimentordquo expedida em 02 de outubro de 2006 Em 2007 o grupo
funda com auxiacutelio do GTCM a Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos
Santos (ACONEMA)
Antes disso eles desconheciam que esta identidade era reconhecida e
guarnecida pelo Estado bem como desconheciam as nominaccedilotildees de ldquoquilombolasrdquo
ou ldquoremanescente de quilombosrdquo agraves quais iratildeo paulatinamente conferir significado
com base na releitura de sua proacutepria histoacuteria Neste sentido
A noccedilatildeo de ldquoremanescenterdquo como algo que jaacute natildeo existe ou em processo de desaparecimento e tambeacutem a de ldquoquilombordquo como unidade fechada igualitaacuteria e coesa tornou-se extremamente restritiva Mas foi principalmente porque a expressatildeo natildeo correspondia agrave autodenominaccedilatildeo destes mesmos
100 No caso da Comunidade Quilombola Aacutegua Morna localizada em CuriuacutevaPR por exemplo o relatoacuterio antropoloacutegico relata como eles foram enganados por parente proacuteximo que pediu que assinassem documento que foi posteriormente utilizado para a expropriaccedilatildeo de uma aacuterea do grupo (PORTO 2012 p 61-62) 101 O fato tambeacutem de se tratar de um grupo com niacutevel baixo de acesso agrave educaccedilatildeo formal reforccedila esta dificuldade em lidar com a documentaccedilatildeo principalmente concernente agrave terra Este quadro estaacute sendo modificado na geraccedilatildeo de jovens hoje os quais tecircm condiccedilotildees de terminar o ensino meacutedio e ateacute o ensino superior comeccedila a ser acessado
113
grupos e por tratar-se de uma identidade ainda a ser politicamente construiacuteda que suscitou tantos questionamentos De saiacuteda exigiu-se nada mais que um esforccedilo interpretativo do processo como um todo por parte dos intelectuais e militantes bem como das proacuteprias comunidades envolventes e sem o qual seria impossiacutevel a aplicabilidade juriacutedica do artigo (LEITE 2000 p 341)
A experiecircncia que meus interlocurores(as) possuiacuteam de uma ldquotrajetoacuteria
histoacuterica proacutepriardquo vinculada agrave ldquoresistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo conceitos da
definiccedilatildeo de quilombo trazida pelo Decreto 44872003 (que regulamenta o processo
de titulaccedilatildeo quilombola) ficava restrita enquanto objeto de introspecccedilatildeo interna ao
grupo Isto porque tal afirmaccedilatildeo segundo eles seria percebida como motivo de
escaacuternio e de discriminaccedilatildeo por parte das outras pessoas da regiatildeo102 Eacute atraveacutes de
uma rede de mediadores como o GTCM organizaccedilotildees governamentais natildeo
governamentais e movimento negro que o ldquoprocesso de reconhecimentordquo eacute
estimulado no Paranaacute e neste caso especiacutefico
Na fala dos irmatildeos Adir e Joaquim atualmente presidente e vice-presidente
da Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) aparece
este sentimento de que se comentassem sobre sua histoacuteria antes do processo de
reconhecimento como quilombolas ningueacutem iria acreditar neles e seriam alvo de
ridicularizaccedilatildeo
Dandara Mas essa histoacuteria da origem do Manoel Ciriaco laacute de Minas que tinha descendecircncia de ex-escravos isso tudo era todo mundo que conhecia ou era soacute alguns que sabiam dessa histoacuteria
Adir Vocecirc fala a populaccedilatildeo
Dandara Natildeo vocecircs da famiacutelia mesmo
Adir Noacutes jaacute sabia
Joaquim E muitos aqui sabia tambeacutem que meu pai falava neacute com os italiano aqui que eles Mas eles natildeo ligava
Adir Mas era coisa que nem eles mais falava assim ldquoque vatildeo buscar nada de histoacuteria deles nada atraacutes nadardquo Chegaram contaram o que eles passaram quando chegaram aqui que teve dificuldade que vieram de um lugar laacute onde teve escravo isso e aquilo outro Mas quem que ia ligar nisso Nem noacutes mesmos Noacutes aprendemos com nossos pais nossos avoacutes nossa matildee sim nossa histoacuteria que noacutes natildeo podia pronunciar pra ningueacutem Ia falar pra quem Dizer pra quem isso aiacute E quando surge isso nos pega tambeacutem de surpresa E ai vocecirc vai falar o quecirc Vai divulgar o quecirc Quem que vai acreditar em vocecirc Natildeo eacute difiacutecil E eacute isso aiacute
102 Sobre o tema da introspecccedilatildeo acerca da identidade ver o caso do grupo indiacutegena Caxixoacute de Minas Gerais (SANTOS OLIVEIRA 2003 p 22)
114
Nesta fala de Adir e Joaquim eacute relevante notar a diferenccedila entre o que eacute
entendido como um silenciamento sobre o passado em contraste com um processo
de esquecimento (PORTO 2013b p 175) Eacute a partir do momento em que se encontra
uma possibilidade de escuta que a memoacuteria passa a ser pronunciada publicamente
Ateacute entatildeo estava contida como algo indiziacutevel pois soacute fazia sentido enquanto processo
de transmissatildeo de memoacuteria interno agrave famiacutelia (POLLAK 1989 p 09) Haacute uma
polarizaccedilatildeo portanto entre um passado de silenciamento e um presente de
pronunciamento que aparece como um princiacutepio de operaccedilatildeo na forma como
percebem a relaccedilatildeo deles com o contexto mais amplo no qual se inserem Poderem
ser ouvidos como narradores legiacutetimos de sua proacutepria histoacuteria por meio deste novo
contexto de reconhecimento pelo Estado eacute um ganho que transcende as questotildees
juriacutedicas e poliacuteticas na medida em que representa para eles uma valorizaccedilatildeo e um
reconhecimento da necessidade de reparaccedilatildeo da opressatildeo sofrida
Esta fala tambeacutem aponta para a expectativa que a comunidade tinha frente agrave
produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio de que sua histoacuteria seria registrada e reconhecida aleacutem
de significar um marco para a possibilidade de conquista de direitos que os
empoderaria diante do contexto local adverso Como veremos adiante foram muitas
as dificuldades que tiveram para lidar com o fato de sua identidade ter sido negada
oficialmente por um antropoacutelogo bem como com os conflitos gerados a partir dos
desdobramentos do procedimento que tramita no INCRA103
O registro da histoacuteria comum dos membros da comunidade deu um novo
status agrave memoacuteria coletiva e agravequeles que satildeo vistos internamente como os guardiotildees
destas histoacuterias Os elementos preacute-existentes da memoacuteria passam a ser mobilizados
de formas especiacuteficas tendo em vista que eacute o Estado quem estabelece os criteacuterios
normativos que funcionaratildeo como modelos a partir do qual a populaccedilatildeo passa a se
pensar em termos de identidade objetivada conceitualmente o que se faraacute por meio
de mediaccedilotildees e modulaccedilotildees (MARCUS 1991)104
103 Este impasse vivido pelo grupo aponta para a ldquodificuldade de identificar os sujeitos do direito e suas
complexas demandasrdquo bem como ldquoas tensotildees entre as conceituaccedilotildees histoacuterica antropoloacutegica e juriacutedica de quilombordquo (LEITE FERNANDES 2006 p 12) sobre as quais no entanto natildeo iremos nos aprofundar neste trabalho 104 Interessante observar o deslocamento semacircntico no que tange estas modulaccedilotildees do Estado que foi ocorrendo ldquorealizado tanto por agentes estatais quanto por membros do movimento social e representantes do meio acadecircmico - em que os remanescentes de comunidades de quilombos passam a ser definidos como comunidades remanescentes de quilombos e no momento seguinte
115
O claacutessico estudo de Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva demonstra como
apesar da aparecircncia de experiecircncia individual a memoacuteria soacute eacute possiacutevel por meio das
relaccedilotildees sociais de interaccedilatildeo enquanto fenocircmeno coletivo Assim a duraccedilatildeo de uma
memoacuteria estaria limitada agrave duraccedilatildeo do grupo no acircmbito do qual tais lembranccedilas foram
geradas e enquanto fenocircmeno construiacutedo coletivamente tambeacutem estaacute sujeita a
transformaccedilotildees Dentro destas dinacircmicas o autor ressalta a existecircncia de pontos de
referecircncias comuns que formam um nuacutecleo resistente relativamente invariaacutevel um fio
condutor de acontecimentos-chaves (HALBWACHS 2003 p 35)
No caso do quilombo de Guaiacutera enquanto ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo
(HALBWACHS 2003) que gera o sentimento de pertencimento de identificaccedilatildeo e
aglutinaccedilatildeo entre seus membros este fio condutor passa pelo compartilhamento da
memoacuteria das dinacircmicas de movimento e fixaccedilatildeo das famiacutelias Este movimento inicia-
se a partir do que podemos chamar de um ldquolugar formador de memoacuteriardquo (POLLAK
1992 p 203) a regiatildeo de origem do grupo Mesmo fora do espaccedilo-tempo da vida da
comunidade no Paranaacute esta referecircncia eacute fundamental para a identidade do grupo a
partir da qual se contextualiza a memoacuteria herdada dos antepassados em continuidade
com a construccedilatildeo da autoimagem do grupo no presente A origem mineira assume
entatildeo uma dimensatildeo miacutetica pois seu significado eacute ampliado e formalizado de modo
simboacutelico como autorrepresentaccedilatildeo partilhada pelo grupo (PORTELLI 1998 p 120)
A memoacuteria coletiva do grupo quilombola como vimos no primeiro capiacutetulo foi
reorganizada discursivamente a partir do autorreconhecimento identitaacuterio de modo
que pudessem se tornar testemunhas contra o ldquoesquecimento compulsivordquo da sua
proacutepria trajetoacuteria histoacuterica (CONNERTON 1999 p 17) A organizaccedilatildeo poliacutetica do
grupo como quilombolas foi fundamental para a preservaccedilatildeo do que podemos chamar
de ldquomemoacuterias subterracircneasrdquo as quais satildeo majoritariamente reproduzidas pela
oralidade e ldquocomo parte integrante das culturas minoritaacuterias e dominadas se opotildeem
agrave lsquoMemoacuteria Oficialrsquo no caso a memoacuteria nacionalrdquo (POLLAK 1989 p 05)
A percepccedilatildeo de um passado comum em relaccedilatildeo ao qual se destacam as
histoacuterias contadas pelos mais velhos sobre o sofrimento que viveram em Minas
Gerais com a memoacuteria de ascendentes que foram escravizados integra-se agrave busca
por uma nova possibilidade de reproduccedilatildeo do grupo por meio dos deslocamentos a
comunidades quilombolas apontando para a modificaccedilatildeo conceitual ocorrida ()rdquo (PORTO KAISS COFREacute 2012 p 41)
116
percepccedilatildeo da distintividade cultural enquanto grupo negro rural viacutetima de preconceito
racial e religioso em GuaiacuteraPR bem como a perspectiva da reelaboraccedilatildeo de um
futuro comum com acesso a direitos historicamente negados mobilizam dentre outros
fatores este processo de etnogecircnese
22 O PRIMEIRO RELATOacuteRIO ldquoANTI-ANTROPOLOacuteGICOrdquo
Quatro anos depois do iniacutecio do processo de contato com agentes externos e
do autorreconhecimento da comunidade como quilombola em 2009 e 2010 foi
realizado o primeiro relatoacuterio de cunho antropoloacutegico dentro do procedimento de
titulaccedilatildeo territorial da comunidade quilombola em Guaiacutera de responsabilidade do
INCRA105 O posicionamento dos autores defendido no documento no entanto negou
que esta comunidade em GuaiacuteraPR seria um grupo quilombola entendendo que se
tratava de uma famiacutelia negra de trabalhadores rurais e que o grupo estava construindo
recentemente esta identidade de modo vinculado com o interesse de garantia de
direitos concluindo que
ldquoO que se percebeu por intermeacutedio da pesquisa eacute que a identidade quilombola eacute algo novo entre as pessoas e que ainda esta (sic) em processo de formaccedilatildeo natildeo estando presente no pensamento coletivo eacute como se os membros da auto denominada (sic) comunidade Negra estivessem aprendendo a ser quilombolasrdquo (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1521 [p 111])
Como jaacute citado o primeiro relatoacuterio foi fruto de um convecircnio entre o INCRA e
a UNIOESTE Conforme a legislaccedilatildeo quando natildeo dispuser de profissional em seu
quadro para a realizaccedilatildeo do relatoacuterio antropoloacutegico o INCRA poderaacute realizar
contrataccedilotildees Junto com Antocircnio Pimentel Pontes Filho antropoacutelogo responsaacutevel pela
equipe tambeacutem participaram da pesquisa mais um mestre em antropologia Roberto
Biscoli e duas auxiliares de pesquisa graduandas da UNIOESTE106 A uacuteltima versatildeo
do relatoacuterio apresentada pelo antropoacutelogo responsaacutevel ndash depois dos pedidos de
105 Percebe-se como o desdobramento do procedimento no INCRA demonstra como este oacutergatildeo natildeo
tinha ainda uma compreensatildeo amadurecida sobre como lidar com as questotildees antropoloacutegicas tendo deixado que o primeiro relatoacuterio fosse concluiacutedo com suas graves consequecircncias para o grupo quilombola para apenas depois de sua finalizaccedilatildeo o avaliar como insuficiente tecnicamente e o retirar do procedimento de titulaccedilatildeo da comunidade 106 Neste convecircnio com a UNIOESTE foi produzido mais um relatoacuterio antropoloacutegico de responsabilidade do mesmo antropoacutelogo na Comunidade Quilombola Maria Adelaide Trindade Batista localizada no Municiacutepio de PalmasPR o qual tambeacutem natildeo foi aprovado
117
adequaccedilatildeo solicitados pelo INCRA os quais foram em grande parte desconsiderados
ndash era composta de centro e trinta e quatro paacuteginas organizadas nas seguintes partes
sobre as quais destacamos alguns pontos principais
(1) Introduccedilatildeo os autores do relatoacuterio trazem um debate sobre o conceito de
quilombo e se posicionam no sentido de que o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo
natildeo eacute compatiacutevel com a perspectiva relacional de etnicidade a qual
entenderia os grupos eacutetnicos como constituiacutedos em relaccedilatildeo por meio das
fronteiras O relatoacuterio afirma que esta abordagem pressupotildee que deva
haver o reconhecimento tambeacutem pelos ldquooutrosrdquo de que o grupo que se
autoidentifica apresenta uma identidade diferenciada em um processo de
ldquohetero-identidaderdquo Eacute segundo esta perspectiva reconhecida por eles
mesmos como incompatiacutevel com o criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo que estatildeo
embasadas suas anaacutelises no relatoacuterio Trazem tambeacutem uma seacuterie de
informaccedilotildees sobre o processo de elaboraccedilatildeo da pesquisa elencando ao
longo de quinze paacuteginas cada uma das entrevistas realizadas bem como
demais atividades da equipe desde ofiacutecios e-mails visitas destacando
inclusive os contatos externos aos membros do grupo que foram
realizados Comentam sobre o conflito desencadeado durante a pesquisa
mas se isentam de qualquer responsabilidade em relaccedilatildeo aos
acontecimentos
(2) ldquoA auto denominada (sic) comunidade negra Manoel Ciriaco dos Santosrdquo
pelo proacuteprio tiacutetulo atribuiacutedo ao segundo capiacutetulo do relatoacuterio recusam a
denominaccedilatildeo de ldquoquilombolasrdquo e parecem estar denunciando em uma
negaccedilatildeo dupla o processo de autorreconhecimento da comunidade como
ilegiacutetimo Apresentam uma anaacutelise sobre os membros da comunidade
como se este pertencimento estivesse restrito agraves pessoas que estatildeo
indicadas no estatuto da Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel Ciriaco
dos Santos (ACONEMA) Trazem tambeacutem uma descriccedilatildeo das famiacutelias
que moravam na aacuterea na eacutepoca
(3) ldquoGuaiacutera ndash Paranaacute descriccedilatildeo sobre a regiatildeordquo retomam o processo histoacuterico
de colonizaccedilatildeo da regiatildeo Depois analisam o histoacuterico de constituiccedilatildeo do
que chamam ldquoComunidade de Maracaju dos Gauacutechosrdquo atribuindo ao
bairro rural tambeacutem um sentido de grupo e de relaccedilotildees de pertencimento
118
em equiparaccedilatildeo com a autodenominaccedilatildeo como comunidade por parte dos
quilombolas Afirmam que as aacutereas adquiridas pela ldquofamiacutelia Santosrdquo natildeo
constituem um territoacuterio quilombola preacute-existente e que o levantamento
realizado pelo Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) careceu de
ldquocriteacuterios antropoloacutegicosrdquo
(4) ldquoTrajetoacuteria histoacuterica da auto denominada (sic) comunidade negra Manoel
Ciriaco dos Santosrdquo analisam os relatos dos membros da comunidade
sobre sua trajetoacuteria histoacuterica de fixaccedilatildeo em GuaiacuteraPR mas o fazem de
modo a desvalorizar a memoacuteria e as informaccedilotildees trazidas que satildeo
entendidas pelos autores como insuficientes ou improcedentes ao serem
por exemplo cotejadas com dados repassados pelos vizinhos Afirmam
que natildeo houve segregaccedilatildeo racial na constituiccedilatildeo do bairro rural e que natildeo
existiria preconceito por parte dos vizinhos acusando ao contraacuterio os
membros da comunidade de serem preconceituosos em relaccedilatildeo aos
ldquoitalianosrdquo
(5) ldquoCaracterizaccedilatildeo atual da auto denominada (sic) comunidade negra Manoel
Ciriaco dos Santos sua organizaccedilatildeo espacial e socialrdquo apresentam uma
descriccedilatildeo da comunidade destacando as poliacuteticas puacuteblicas e os cursos a
que passaram a ter acesso bem como as atividades de cultivo e criaccedilatildeo
de animais Afirmam haver um sentimento de propriedade e de posse
particular por parte dos membros da comunidade que natildeo se organizaria
por dinacircmicas propriamente comunitaacuterias Concluem que os moradores da
comunidade natildeo se diferenciam em suas praacuteticas de seus vizinhos
Trazem informaccedilotildees geneacutericas sobre ldquopapeacuteis sociaisrdquo entre os seus
membros e tambeacutem sobre religiatildeo
(6) ldquoRe-construccedilatildeo (sic) de uma memoacuteria e de uma identidade socioculturalrdquo
defendem a perspectiva de que deve ser alcanccedilada uma objetividade
etnograacutefica e afirmam neste sentido que o processo de construccedilatildeo da
identidade eacutetnica do grupo seria recente e giraria em torno de uma
finalidade poliacutetica a partir do contato do grupo com agentes externos com
o objetivo de criar uma distinccedilatildeo ldquonoacutesrdquo e ldquoelesrdquo Os autores afirmam que tal
identidade estaacute baseada em suposiccedilotildees de uma origem e de
antepassados que teriam sido escravos Defendem que se haacute preconceito
119
no acircmbito da relaccedilatildeo com os vizinhos eacute um preconceito muacutetuo e concluem
dizendo que a ldquoauto denominada comunidade negrardquo (sic) natildeo apresenta
os sinais diacriacuteticos que ldquodeveriamrdquo os diferenciar
(7) ldquoResultado da periacuteciardquo por fim asseveram que apesar de terem partido da
categoria do autorreconhecimento entendem que natildeo haacute territoacuterio
quilombola a ser indicado pois a equipe de pesquisa ldquoconstatourdquo que eles
seriam apenas herdeiros de uma propriedade e que portanto ldquopossuem
relaccedilotildees comuns ao mundo ruralrdquo natildeo havendo um territoacuterio quilombola
preacute-existente
(8) Bibliografia e anexos
Para analisar os argumentos apresentados por este relatoacuterio ldquoanti-
antropoloacutegicordquo eacute importante primeiramente trazer algumas reflexotildees dos quilombolas
em relaccedilatildeo agrave forma como foram conduzidos os trabalhos pela primeira equipe de
pesquisadores
Joaquim Os antropoacutelogos que eles arrumaram Dandara eu falei assim ldquovocecircs tinha que arrumar uns antropoacutelogo que sabia fazer antropologia Os antropoacutelogos natildeo ficavam com noacutes aqui Era duas horas trecircs horas por dia soacute vinha e voltava raacutepido noacutes desconfiou dos antropoacutelogo Aiacute noacutes tava laacute dentro de Guaiacutera e eles trataram com o Adir que era pra noacutes encontrar que eles ia pegar coacutepia do certificado da comunidade Noacutes taacute esperando e ldquonoacutes tamo chegando tamo chegandordquo e natildeo chegava Aiacute tinha esse advogado que eacute vizinho nosso aqui que mora laacute em Guaiacutera Daqui a pouco ele vem e vem os dois antropoacutelogos de laacute pra caacute no escritoacuterio dele e noacutes tava em frente a prefeitura que eacute pertinho Aiacute eles chegaram ldquoeacute mas noacutes natildeo pode ficar aqui que a turma taacute de zoacuteio em noacutes que natildeo sei que laacuterdquo Pegou a coacutepia da nossa matildeo e despediu de noacutes ldquoNoacutes tem que vazar emborardquo ldquoentatildeo taacute bomrdquo Mas a gente natildeo eacute tanto besta neacute aiacute noacutes pensamos ldquosabe de uma coisa vou dar uma volta na rua aqui pra ver se eles foram embora mesmordquo Noacutes damo a volta na rua eles laacute no advogado e tinha ido embora Aiacute tudo que eles falavam no raacutedio o advogado tava sabendo que era representando os agricultor neacute Ele tava sabendo tudinho Mas quem taacute passando informaccedilatildeo eacute os antropoacutelogos Menina noacutes teve raiva laacute em Toledo na Universidade eles chamaram pra noacutes pra ter uma reuniatildeo () Quando esse antropoacutelogo comeccedilou a falar eu falei com eles assim ldquovocecircs pensa que noacutes eacute tatildeo besta Tatildeo besta natildeo eacute noacutes eacute da roccedila natildeo temo estudo natildeo temo a linguagem que vocecircs fala mas vocecirc lembra aquele dia que vocecircs tava em Guaiacutera Vocecircs dando noacute em noacutes falando que ia embora se vocecircs tava laacute junto com o advogado e tudo ele taacute sabendo o que vocecircs tava fazendordquo E eu falei ldquoa antropologia de vocecircs eacute fraca Eu natildeo entendo de antropologia a antropologia de vocecircs eacute fracardquo Eu falei ldquovocecircs fica sabendordquo - e tava gravando e filmando ndash ldquovocecircs tatildeo fazendo antropologia de cem quilocircmetros de distacircncia cem quilocircmetrordquo Aiacute o reitor da universidade abanou a cabeccedila Aiacute eu falei ldquovocecircs natildeo fizeram nada vocecircs natildeo fizeram nada nadardquo
120
Percebe-se que a criacutetica que Joaquim faz inicia-se com uma
responsabilizaccedilatildeo do INCRA pois foram eles que ldquoarrumaramrdquo estes antropoacutelogos
para fazer o estudo Interessante observar neste sentido que Antocircnio Pimentel
Pontes Filho o pesquisador responsaacutevel pelo estudo natildeo tinha experiecircncia com
grupos etnicamente diferenciados sendo que suas pesquisas de graduaccedilatildeo e
mestrado giravam em torno de questotildees relacionadas agrave antropologia da religiatildeo com
foco na organizaccedilatildeo da Igreja Catoacutelica O INCRA com uma gestatildeo burocratizada e
impessoal apesar de ter tido acesso a versotildees preliminares do relatoacuterio que iam
abertamente de encontro ao criteacuterio da autoatribuiccedilatildeo natildeo evitou contudo que um
relatoacuterio final - depois considerado pelo proacuteprio INCRA como de ldquobaixa qualidaderdquo ndash
fosse incorporado ao procedimento da comunidade Apenas depois da natildeo aprovaccedilatildeo
da versatildeo final pelo INCRA encaminharam-se as medidas administrativas para
finalizar o convecircnio com a UNIOESTE por meio de um procedimento separado ainda
em tracircmite no qual passou a constar o primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo
(Procedimento Administrativo 542000023842008-33) retirado do procedimento de
regularizaccedilatildeo do territoacuterio da comunidade (Procedimento Administrativo
542000010752008-46)
A partir da fala de Joaquim citada acima eacute possiacutevel tambeacutem entender qual o
lugar que a relaccedilatildeo com os antropoacutelogos passa a ocupar no discurso dos quilombolas
sistematizada na indicaccedilatildeo de trecircs momentos centrais O primeiro momento diz
respeito agrave constataccedilatildeo da falta de contato da equipe de pesquisa com o grupo jaacute que
natildeo estavam presentes na comunidade durante um periacuteodo de tempo considerado
satisfatoacuterio pelos quilombolas A permanecircncia em campo eacute tida portanto como um
criteacuterio determinante para a antropologia inclusive na visatildeo das lideranccedilas
quilombolas O segundo momento central apresentado por Joaquim diz respeito agrave
percepccedilatildeo de que haveria um viacutenculo dos pesquisadores com os proprietaacuterios
vizinhos o que lhes causou revolta dada a mobilizaccedilatildeo agressiva desencadeada
contrariamente ao trabalho do INCRA na localidade Assim a leitura que Joaquim faz
em relaccedilatildeo ao resultado do relatoacuterio passa pela percepccedilatildeo de um compromisso direto
dos antropoacutelogos com os proprietaacuterios vizinhos O terceiro momento eacute quando
Joaquim destaca a possibilidade de uma reaccedilatildeo bem-sucedida do grupo em uma
reuniatildeo realizada na UNIOESTE Nesta oportunidade eles verbalizaram
publicamente esta insatisfaccedilatildeo com o trabalho produzido e questionaram os
121
antropoacutelogos diretamente sobre o que consideraram ser uma ldquoantropologia de cem
quilocircmetros de distacircnciardquo destacando a importacircncia que datildeo agrave relaccedilatildeo de proximidade
e confianccedila que natildeo se estabeleceu em nenhum momento com esta primeira equipe
A dificuldade de comunicaccedilatildeo foi outro ponto destacado por Joaquim o que
se configura em um problema muito seacuterio e limitador em uma pesquisa antropoloacutegica
ainda mais quando se trata de um estudo sobre a reivindicaccedilatildeo territorial do grupo
Adir E depois laacute em Cascavel dizer pra noacutes assim ldquopelo que noacutes pesquisamos vocecircs durante esse tempo vocecircs eacute uma comunidade igual agrave comunidade de Maracaju natildeo tem diferenccedila nenhuma Vocecircs natildeo satildeo quilombolardquo ()
Joaquim O que os outros plantava noacutes plantava tambeacutem Eu falei assim ldquoOh noacutes planta pimenta noacutes planta taioba noacutes planta inhame Vocecirc viu os italianos se eles tecircm inhame plantado tem taioba tanta coisa se eles temrdquo aiacute ele diz que eacute tarde
Adir Eu mostrei pra eles o que noacutes cultivava eu falei ldquooacute a nossa histoacuteria professor Antocircnio vocecirc pode prestar atenccedilatildeo da nossa histoacuteria Noacutes nossos antepassados vieram da Aacutefrica trazido pra um solo brasileiro trabalharam como escravo cara
Joaquim Eles falaram isso laacute em Cascavel soacute que em Toledo eles mudaram
Adir ldquoAjudar a construir esse paiacutes soacute isso jaacute chega natildeo precisa de mais nada Soacute a nossa cor jaacute nos identifica noacutes mesmo a nossa escravidatildeo no passado Seraacute que pra vocecirc que eacute um professor um doutor vem falar issordquo
O depoimento acima sintetiza a concepccedilatildeo de que o fato de serem da cor
negra jaacute demonstra a descendecircncia de africanos escravizados Esta compreensatildeo
identificada no plano eacutetnico-racial correlaciona parentesco com traccedilos fenotiacutepicos e
expressa ldquoas propriedades primordiais elegidas para a construccedilatildeo de uma memoacuteria
das lsquoorigensrsquo remetida agrave experiecircncia comum do cativeirordquo (RUBERT SILVA 2009 p
269) A fala aponta tambeacutem para a percepccedilatildeo dos sujeitos quilombolas em relaccedilatildeo agrave
valorizaccedilatildeo das diferenccedilas entre eles e os proprietaacuterios vizinhos sendo que os sinais
diacriacuteticos destacados por Joaquim se referem aos tipos de alimentos cultivados pelo
grupo quilombola As diferenccedilas se expressam aleacutem disso no lugar social dos
quilombolas em contraste com o lugar dos antropoacutelogos de um lado a experiecircncia
histoacuterica de opressatildeo a autoidentificaccedilatildeo que comeccedila pela cor da pele a afirmaccedilatildeo
de uma cultura proacutepria e distinta e de uma relaccedilatildeo especiacutefica com uma base territorial
de outro pesquisadores de uma elite (branca) ldquoum doutorrdquo que mesmo antropoacutelogo
desconsiderou a percepccedilatildeo do grupo sobre sua proacutepria histoacuteria quando deveria ter
pelo menos buscado compreendecirc-la
122
O fato de as famiacutelias que se autodefinem como quilombolas natildeo terem um
viacutenculo ancestral com aquele territoacuterio por serem provenientes de outra regiatildeo bem
como o fato de serem donos da aacuterea que ocupam em GuaiacuteraPR foi interpretado pelo
primeiro relatoacuterio como um fator de descaracterizaccedilatildeo de sua ldquoquilombolidaderdquo A
conquista do acesso formal agrave terra por estas famiacutelias superando todo um contexto de
exclusatildeo territorial da populaccedilatildeo negra foi entendida como um criteacuterio para negar o
reconhecimento do direito de ampliaccedilatildeo deste territoacuterio considerado como condiccedilatildeo
fundamental pelos quilombolas para viabilizar a sobrevivecircncia do grupo Este tipo de
compreensatildeo por parte dos autores do relatoacuterio evidencia uma certa expectativa de
que a condiccedilatildeo de estar agrave margem do sistema formal de propriedade seria um iacutendice
da legitimidade da reivindicaccedilatildeo de direitos territoriais quilombolas
As propriedades adquiridas na comunidade de Maracajuacute dos Gauacutechos pela famiacutelia Santos por meio de Seu Manuel natildeo caracterizam um territoacuterio preacute-existente nem se justifica o pedido pelos membros desta comunidade ou de sua representante coletiva ACONEMA de uma expansatildeo territorial (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1466 [p 56])
Tal perspectiva que parte da ideia de um territoacuterio ancestralmente ocupado
desconsidera o fato de que ldquopor sua mesma estrutura e mobilidade os quilombos natildeo
permitiram uma continuidade da ocupaccedilatildeo da terra e sobretudo natildeo deixaram restos
arqueoloacutegicos ou provas documentaisrdquo (MALIGUETTI 2000 p 102) (traduccedilatildeo minha)
Eacute muito difiacutecil encontrar provas factuais da existecircncia de quilombos histoacutericos e
praticamente impossiacutevel provar que o lugar e a terra onde as comunidades
quilombolas vivem hoje sejam os mesmos em que originariamente se formaram Este
tipo de comprovaccedilatildeo faacutetica natildeo eacute exigido pelo Decreto 48872003 que regulamenta o
procedimento de titulaccedilatildeo atualmente em vigor Em seu artigo 2ordm considera como
ldquoremanescentes das comunidades dos quilombosrdquo os grupos eacutetnico-raciais ldquosegundo
criteacuterios de auto-atribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria dotados de relaccedilotildees
territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra relacionada com a
resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo Em relaccedilatildeo agrave territorialidade afirma no sect2ordm
do mesmo artigo que ldquosatildeo terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos as utilizadas para a garantia de sua reproduccedilatildeo fiacutesica social econocircmica e
culturalrdquo
123
Natildeo haacute na legislaccedilatildeo portanto a imposiccedilatildeo de uma noccedilatildeo de verdadeiro ou
falso a partir da ideia de prova histoacuterica em relaccedilatildeo agraves narrativas daqueles que se
autodefinem como quilombolas No entanto a utilizaccedilatildeo de argumentos de ordem
histoacuterica se torna o padratildeo de persuasatildeo discursiva de modo mais amplo na
produccedilatildeo de relatoacuterios antropoloacutegicos sobre grupos quilombolas adotando loacutegicas e
linguagem proacuteprias agraves instacircncias do Estado pautadas em criteacuterios de verdade para
ganhar eficaacutecia
() os laudos sobre remanescentes de quilombos satildeo produzidos quase invariavelmente ndash com maior ou menor competecircncia clareza e elaboraccedilatildeo por parte dos seus autores ndash lanccedilando matildeo de argumentos histoacutericos Assim ao ser expulsa pela porta a histoacuteria retorna pela janela numa versatildeo ingecircnua e positivista quando natildeo simplesmente hipoteacutetica (ARRUTI 2005 p 24)
A postura analiacutetica defendida pelo primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo
aponta para a supremacia de instacircncias externas de legitimaccedilatildeo e a desconsideraccedilatildeo
do ponto de vista da comunidade o que se expressa por exemplo na busca por
comprovaccedilotildees histoacutericas Deste modo emprestam ldquoagraves identidades sociais substacircncia
e permanecircnciardquo buscando no passado uma continuidade linear com as dinacircmicas do
presente e assim desconsideram as ldquocategorias e praacuteticas nativas da construccedilatildeo
simboacutelica do grupo e de sua atualizaccedilatildeo por meio de accedilotildees sociaisrdquo (OLIVEIRA
FILHO SANTOS 2003 p 116-131) que satildeo o vetor da elaboraccedilatildeo de laudos periciais
antropoloacutegicos Ignorando o processo contiacutenuo de produccedilatildeo de fronteiras sociais o
relatoacuterio em um tom de autoridade afirma que se ldquoconstatourdquo
() com relaccedilatildeo agrave presunccedilatildeo de ancestralidade da Famiacutelia Santos primeiro natildeo haacute nenhuma memoacuteria sobre escravismo na regiatildeo em que vivem hoje segundo que eles mesmos natildeo descrevem essa ancestralidade como sendo do local onde estatildeo pois se dizem filhos de mineiros (e por exemplo o mineirismo a mineiridade satildeo demonstrados pela culinaacuteria que praticam pelo que cultivam em suas hortas dentre outros aspectos (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1528 [p 118])
Este tom objetivista perpassa todo o relatoacuterio e se amplifica no uso de
expressotildees como ldquocomprovaccedilatildeo documentalrdquo ldquoinformaccedilatildeo confirmadardquo
ldquocomprovaccedilatildeo por meio de pesquisa histoacutericardquo assim como o uso dos verbos como
ldquoconstatou-serdquo e ldquoverificou-serdquo entre outras construccedilotildees discursivas este mesmo
padratildeo Aleacutem disso ao longo do texto os autores expressam de maneira reiterada as
124
suas desconfianccedilas em relaccedilatildeo agrave legitimidade das fontes orais107 Estas posturas
estatildeo todas articuladas em uma certa visatildeo do que seria o criteacuterio antropoloacutegico de
pesquisa enquanto conhecimento teacutecnico e cientiacutefico e o papel do antropoacutelogo como
ldquopesquisador-censorrdquo em sua abordagem essencialista da identidade eacutetnica (MELLO
2012 p 44) como fica evidenciado neste trecho do relatoacuterio
Como apontam diversos autores e estudos antropoloacutegicos a antropologia se baseia nas etnografias feitas e estas natildeo satildeo apenas subjetividade dos autores eou um amontoado de dados mas sim uma compreensatildeo objetiva com argumento de objetividade etnograacutefica sobre um problema social posto para estudo Assim natildeo se incorre em um jogo de versotildees sobre um fato eou mera disputa de opiniotildees (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1511 [p 101])
Dentro desta visatildeo de uma pretensa ldquoobjetividade etnograacuteficardquo os autores do
relatoacuterio entendem que tecircm como atribuiccedilatildeo averiguar a existecircncia ou natildeo de uma
comunidade quilombola Apesar de afirmarem reconhecer e operar a partir do conceito
de autoidentificaccedilatildeo que estaacute previsto na legislaccedilatildeo nacional natildeo a incorporam como
premissa teoacuterica e etnograacutefica No iniacutecio do relatoacuterio haacute uma tentativa de justificar a
natildeo adesatildeo completa ao criteacuterio da autodefiniccedilatildeo com o argumento de que este seria
insuficiente para definir a identidade do grupo devendo ser complementado por uma
noccedilatildeo heteroidentidade que torna necessaacuterio o reconhecimento exterior de que se
trata de um grupo percebido como distinto em uma relaccedilatildeo entre ldquonoacutesrdquo e ldquoelesrdquo
No Decreto 4887 fica claro que os criteacuterios a serem reconhecidos pelo governo federal satildeo o de auto-atribuiccedilatildeo contrastando com a perspectiva antropoloacutegica interacionista relacional pois esta trabalha com o processo de construccedilatildeo da identidade onde a categoria do ldquonoacutesrdquo constroacutei-se na relaccedilatildeo com a categoria do ldquoelesrdquo natildeo existindo uma heacutetero identidade (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1422 [p 12])
Eacute possiacutevel perceber por meio de uma anaacutelise sistemaacutetica de todo o texto do
relatoacuterio que houve um uso instrumental e distorcido da teoria da identidade
107 Como observa Alessandro Portelli em seu livro ldquoEnsaios de Histoacuteria Oralrdquo os documentos satildeo
envoltos por uma ldquopresunccedilatildeo de verdade que uma certa historiografia atribui agraves fontes escritas consagrando-as com o nome de documentosrdquo Trata-se da historiografia do seacuteculo XIX que tomou o documento como uma realidade sem perceber no entanto que eles estatildeo tambeacutem permeados pela ideologia pelos sonhos e pela subjetividade de quem os escreve Esta corrente historiograacutefica teve forte influecircncia na atribuiccedilatildeo de superioridade das fontes escritas sobre as fontes orais o que se percebe claramente no acircmbito do direito e mais especificamente nos processos judiciais e administrativos (PORTELLI 201068)
125
contrastiva proposta pelo antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth Ao contraacuterio do que
afirmado no trecho acima foi a partir das contribuiccedilotildees deste autor que processos de
autoatribuiccedilatildeo passaram a ser considerados como centrais no estudo dos grupos
eacutetnicos bem como no modo de constituiccedilatildeo dos proacuteprios limites sociais do grupo com
relaccedilatildeo a outros grupos No caso das comunidades quilombolas segundo os
desdobramentos das anaacutelises desta tradiccedilatildeo teoacuterica o reconhecimento destes grupos
natildeo deve partir de ldquouma lista de traccedilos de natureza racial ou cultural originada da
interpretaccedilatildeo historiograacutefica sobre os quilombos da colocircnia ou do Impeacuteriordquo (ARRUTI
2006 p 39-40) Contraditoriamente eacute a partir de uma tal lista que os autores do
relatoacuterio parecem estabelecer os paracircmetros para embasar a pretensa ldquoobjetividade
etnograacuteficardquo que reivindicam
Esta contradiccedilatildeo fica evidente por exemplo no argumento desenvolvido a
respeito da existecircncia ou natildeo dos ldquosinais diacriacuteticos que deveriam os diferenciar dos
seus vizinhosrdquo e em natildeo os constatando concluem que fica ldquoevidente sim os sinais
diacriacuteticos que os igualam no seu modo de ser dos demais moradores da comunidade
Maracaju dos Gauacutechosrdquo (grifo meu) Esta utilizaccedilatildeo da ideia de fronteira entre ldquonoacutesrdquo e
os ldquoelesrdquo parece ter sido acionada ao longo do texto para justificar a opccedilatildeo pela
realizaccedilatildeo de um trabalho de campo ndash que consideram amplo neutro e mais
aprofundado ndash no qual estabeleceram contato efetivo de pesquisa com pessoas ldquoda
comunidade negra da comunidade de Maracaju dos Gauacutechos e da cidaderdquo108
Com relaccedilatildeo agrave ideia de que a ldquoauto-identidade que eacute definida por si mesmardquo
dependeria de uma ldquohetero-identidade que eacute definida pelos outrosrdquo109 argumentam
Compreende-se que a identidade eacute sempre contrastiva relacional e situacional focando essa fronteira entre o ldquonoacutesrdquo e os ldquooutrosrdquo se procurou dar voz ao entorno da auto denominada comunidade Negra moradores de origem eacutetnica italiana alematilde portuguesa ou entatildeo mineiros gauacutechos paulistas paraiacutebas pois a equipe de pesquisa entendeu que devia observar como os grupos se vecircem e satildeo vistos uns pelos outros (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1518 [p 108])
A despeito novamente de afirmarem que ldquoprivilegiaram a metodologia
participativa a qual prevecirc a incorporaccedilatildeo de saberes e perspectivas locais em todas
as etapas do estudordquo110 em muitos momentos do relatoacuterio a fala dos quilombolas satildeo
108 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1438 [p 28] 109 Idem p 1519 [p 109] 110 Ibidem p 1426 [p 16]
126
questionadas ao passo que agrave versatildeo dos proprietaacuterios vizinhos eacute atribuiacuteda
legitimidade considerando que esta sim poderia ser comprovada documentalmente
Essa adesatildeo ao discurso dos proprietaacuterios do entorno foi utilizada como argumento
comprovatoacuterio da natildeo existecircncia de segregaccedilatildeo racial por parte da ldquoSociedade Agro-
Pecuaacuteria Maracaju LTDArdquo que teria vendido os lotes indistintamente inclusive para
Manoel Ciriaco
Assim esta pretensa ausecircncia de discriminaccedilatildeo formal ganha destaque no
texto enquanto o sentimento de discriminaccedilatildeo vivenciado pela comunidade quilombola
eacute desqualificado Os autores afirmam por exemplo que ldquoa equipe de pesquisa
constatou atraveacutes das falas da famiacutelia Santos a existecircncia de um auto-isolamento
motivado pela pobreza e timidezrdquo111 O fato de ter ocorrido um casamento entre a
enteada de Adir Juliana (que natildeo tem viacutenculo de parentesco com o grupo e que
poderia ser considerada apenas como ldquomorenardquo na classificaccedilatildeo interna112) com um
dos descendentes dos italianos eacute considerado pelos autores como uma prova de que
natildeo haveria preconceito racial por parte dos ldquoitalianosrdquo Por outro lado identificam uma
fala ldquogeneralista e preconceituosardquo da parte de Zeacute Maria
Joseacute Maria Gonccedilalves relata que ldquoos italianos sempre quiseram comprar as nossas terras queriam afastar a gente daqui porque somos pretosrdquo Tal fala chamou a atenccedilatildeo da equipe de pesquisa pois desde o primeiro dia de pesquisa de campo se sabia que Juliana enteada do Adir Santos pertencente a auto denominada comunidade Negra Manoel Ciriaco dos santos eacute casada com Fabio Graciano filho de Paulo Um casamento entre negros e ldquoitalianosrdquo desabona a fala generalista e preconceituosa exposta por Joseacute Maria (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1473 [p 63])
Argumentam tambeacutem que puderam observar um preconceito por parte da
proacutepria comunidade Manoel Ciriaco em relaccedilatildeo aos seus vizinhos aos quais
denominariam como ldquoitalianosrdquo ldquoalematildeesrdquo ldquoratos brancosrdquo entre outros termos
Buscam atribuir assim uma equivalecircncia entre os dois lados desconsiderando a
percepccedilatildeo quilombola de uma desigualdade de poder e oportunidades entre brancos
e negros Os quilombolas afirmam neste sentido que sempre trabalharam para esses
proprietaacuterios em relaccedilotildees informais de trabalho como por meio de diaacuterias situaccedilotildees
111 Ibidem p 1520 [p 110] 112 Depois que a enteada de Adir se casou com o filho de um agricultor do Maracaju dos Gauacutechos
descendente de italianos rompeu com a comunidade inclusive tendo agredido verbalmente sua matildee e condenando a reivindicaccedilatildeo do grupo
127
nas quais eles lhes pagavam o quanto desejavam Aleacutem disso sentem-se alvo de
racismo em diversas situaccedilotildees ao longo de anos como jaacute apontamos nas falas
ressaltadas no primeiro capiacutetulo
No acircmbito desta descaracterizaccedilatildeo da comunidade produzida pelo
documento ndash que parece funcionar mais como um contra-laudo ao fundamentar-se na
ldquoheacutetero-identidaderdquo produzida pela visatildeo dos proprietaacuterios vizinhos ndash um dos aspectos
destacados diz respeito agrave suposta natildeo autenticidade da reivindicaccedilatildeo da identidade
quilombola tendo em vista que esta seria decorrente de um contato estreito com
agentes externos
Este processo de construccedilatildeo de identidade eacutetnica estaacute baseado em accedilotildees inicialmente de agentes esternos (sic) a auto denominada (sic) Comunidade Negra e que a partir destes contatos tem buscado em supostas interpretaccedilotildees de origens antepassado que teriam sido escravos (sic) bem como a criaccedilatildeo de uma memoacuteria de exclusatildeo por parte das sociedades onde viveram (Itambeacute do Serro Caiabu e agora Maracaju dos Gauacutechos) () (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1473
[p 63]) 113
Ao passo que neste relatoacuterio a inserccedilatildeo do Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura
(GTCM) no cenaacuterio poliacutetico de estiacutemulo agrave autodeclaraccedilatildeo e organizaccedilatildeo associativa
quilombola foi considerada como ilegiacutetima por ldquotrazer de forardquo a reivindicaccedilatildeo da
identidade no Relatoacuterio Antropoloacutegico da Comunidade Quilombola Aacutegua Morna
localizada em CuriuacutevaPR realizado pela antropoacuteloga Liliana Porto a importacircncia
deste trabalho do GTCM eacute destacada como uma ldquoguinada significativardquo para o
reconhecimento das comunidades quilombolas no contexto paranaense A
antropoacuteloga ressalva contudo que tal elaboraccedilatildeo identitaacuteria das comunidades soacute foi
possiacutevel tendo como base elementos preacute-existentes que foram entatildeo mobilizados
pelos grupos ldquoa partir de um contexto poliacutetico-legal novordquo (PORTO 2008 07)
Esta desvalorizaccedilatildeo por parte dos autores do relatoacuterio sobre a comunidade de
GuaiacuteraPR do que consideram ldquoelementos trazidos de forardquo implica em uma
essencializaccedilatildeo da cultura o que contrasta diretamente com a abordagem relacional
da etnicidade que afirmam adotar Dentro desta perspectiva o fato de os quilombolas
terem passado a participar posteriormente agrave certificaccedilatildeo pela Fundaccedilatildeo Cultural
Palmares de aulas de artesanato e de capoeira indicaria um esforccedilo natildeo autecircntico do
113 Transcriccedilatildeo igual agrave redaccedilatildeo no texto original inclusive com os erros de portuguecircs
128
grupo por praacuteticas que pudessem ldquolembrar haacutebitos de seus antepassadosrdquo114 No
entanto estes autores natildeo levam em conta que ldquoos discursos sobre o passado
apontam a maneira como no presente se lida com este passadordquo (PORTO SALLES
MARQUES 2013 p174) tendo em vista ainda uma certa de expectativa de futuro
Neste sentido segundo Joatildeo Aparecido quilombola que mora na comunidade
e que eacute filho de Manoel Ciriaco a capoeira jaacute era praticada por eles mas natildeo do
mesmo jeito que passaram a jogar com as aulas do Mestre Djalma Este professor foi
contratado pela prefeitura a partir de uma articulaccedilatildeo dos quilombolas Antes segundo
Joatildeo a praacutetica da capoeira era uma brincadeira ensinada pelos primos que moravam
em AssisSP que tinham mais experiecircncia Com as aulas do Mestre Djalma na
comunidade comeccedilaram a aprender de forma sistematizada com troca de cordatildeo115
realizada em Guaiacutera e com uma periodicidade que proporcionou o envolvimento todos
os jovens da comunidade Este enfoque em atividades para os jovens eacute algo sempre
reforccedilado por Adir como uma necessidade de trazecirc-los mais proacuteximos da histoacuteria do
grupo da cultura pois satildeo eles que iratildeo dar continuidade no futuro
A capoeira foi entatildeo mobilizada como um marcador da diferenccedila cultural do
grupo na condiccedilatildeo de siacutembolo de resistecircncia dos escravos ao sistema de opressatildeo e
tornou-se tambeacutem uma espeacutecie de ldquoritual poliacuteticordquo para demarcar fronteiras a partir da
exigecircncia de descontinuidade com os regionais116 Todas as vezes que a comunidade
recebe visita de escolas sobre as quais mencionamos no primeiro capiacutetulo eacute a roda
de capoeira a performance da cultura escolhida para falar sobre as origens do grupo
e sobre a continuidade de sua luta Neste sentido Adir compara a resistecircncia dos
negros do passado com o momento presente do grupo no qual continuam resistindo
aos processos de negaccedilatildeo de direitos impostos a partir da loacutegica do capitalismo em
que as exclusotildees social e racial se reforccedilam mutuamente Joatildeo Aparecido tambeacutem
comentou que escolheram o berimbau como siacutembolo da Associaccedilatildeo Comunidade
Negra Manoel Ciriaco dos Santos (ACONEMA) porque a capoeira ajudou na histoacuteria
114 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1513 [p 103] 115 Momento no qual o aluno sobe de gradaccedilatildeo e recebe um novo cordatildeo que usa com o uniforme do
grupo de capoeira Para tanto no dia da troca ele tem que colocar em praacutetica o que aprendeu no entanto ldquotem que esquivar mas natildeo pode revidarrdquo 116 No caso analisado por Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho sobre a emergecircncia de identidades indiacutegenas no Nordeste o ritual poliacutetico mobilizado foi o ldquotoreacuterdquo protagonizado ldquosempre que eacute necessaacuterio demarcar as fronteiras entre lsquoiacutendiosrsquo e lsquobrancosrsquo Ele ldquopermite exibir a todos os atores presentes nessa situaccedilatildeo intereacutetnica (regionais indigenistas e os proacuteprios iacutendios) os sinais diacriacuteticos de uma indianidade (Oliveira 1988) peculiar aos iacutendios do Nordesterdquo (OLIVEIRA FILHO 1997 p 60)
129
dos quilombos e se relaciona diretamente com a religiosidade do grupo lembrando-
se de como o seu irmatildeo Zeacute Maria gostava de cantar as ladainhas de capoeira que
satildeo como os pontos do terreiro de Umbanda117
Na anaacutelise dos processos de autoidentificaccedilatildeo eacutetnica segundo Barth e sua
teoria da identidade contrastiva natildeo satildeo as diferenccedilas em si que importam mas como
em determinados contextos elas satildeo acionadas (BARTH 2011) como neste caso do
acionamento da capoeira como um siacutembolo central da comunidade Ademais o
compartilhamento por um grupo de uma mesma cultura e a consequente produccedilatildeo de
diferenccedilas culturais deve ser lido como consequecircncia de processos de interaccedilatildeo e
natildeo como causa primeira (VILLAR 2004 171) Na contramatildeo desta perspectiva os
autores do relatoacuterio antropoloacutegico pareciam estar agrave procura de traccedilos ldquooriginaisrdquo que
correspondessem a um modelo estereotiacutepico de quilombo Tal noccedilatildeo pode ser
remetida ao modo como a histoacuteria oficial se reporta agrave experiecircncia da formaccedilatildeo de
quilombos enquanto fenocircmeno social que ocorreu durante o periacuteodo escravista118
Em relaccedilatildeo agrave anaacutelise da presenccedila de ldquomemoacuterias sobre a escravidatildeordquo na
comunidade os autores do relatoacuterio afirmam que apesar de existirem referecircncias agrave
escravidatildeo natildeo existiriam ldquoreminiscecircncias de um quilombordquo119 Afirmam entatildeo que
ldquoa identidade como algo contrastivo se faz presente desde antes desse pedido de
reconhecimentordquo mas que ldquoa construccedilatildeo de uma identidade quilombola eacute algo
recenterdquo120 Deste modo o relatoacuterio eacute finalizado com a seguinte conclusatildeo
Por fim a equipe de pesquisa esclarece que o que se viu constatou e
verificou foram somente dois lotes rurais de nuacutemeros 186ordf (pertencentes por
heranccedila aos filhos de Seu Manoel C Santos) assim como os lotes rurais dos
seus vizinhos como constatado no mapa da Gleba nordm 4-A colocircnia ldquoCrdquo Serra
Maracajuacute natildeo havendo distinccedilatildeo entre eles portanto natildeo haacute qualquer
territorialidade quilombola possiacutevel na regiatildeo da comunidade de Maracajuacute dos
Gauacutechos Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do
INCRAPR p 1532 [p 122]
117 Por outro lado a religiosidade embora central como vimos no capiacutetulo anterior natildeo eacute mobilizada
pelo grupo como marcador puacuteblico de identidade o que pode estar ligado a uma estrateacutegia de evitar as criacuteticas geradas pela combinaccedilatildeo de preconceito racial e religioso bem como pode decorrer da opccedilatildeo de deixar a esfera do sagrado separada das dinacircmicas de mobilizaccedilatildeo identitaacuterias pelo seu proacuteprio valor especial e superior 118 Deste modo determinadas caracteriacutesticas da experiecircncia do quilombo com mais repercussatildeo histoacuterica o quilombo de Palmares tecircm sido colocadas como regras e condicionantes para o reconhecimento de outros grupos com histoacuterias e caracteriacutesticas diversas (MILANO 2011 31) 119 Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do INCRAPR p 1505 [p 95] 120 Idem p 1521 [p 111]
130
Esta insistecircncia em uma classificaccedilatildeo externa por parte dos autores do relatoacuterio
se desdobra em um mecanismo de controle sobre os grupos e suas formas de viver
na medida em que natildeo reconhece a possibilidade de autoidentificaccedilatildeo destes grupos
Deste modo
ldquose a situaccedilatildeo se desdobra em um mecanismo de controle sobre os grupos populaccedilotildees sobre suas formas de viver na medida pois ldquose a situaccedilatildeo presente eacute de pluralismo do corpo social se natildeo mais subsiste o poder de um grupo sobre os demais natildeo haacute soluccedilatildeo possiacutevel senatildeo que cada qual assuma para si as suas definiccedilotildees identitaacuteriasrdquo (DUPRAT 2014 p 60)
Natildeo eacute pertinente portanto fundamentar a negativa do acesso ao direito
territorial quilombola como faz o relatoacuterio com base no argumento de que haveria
uma manipulaccedilatildeo identitaacuteria por parte do grupo Este ponto de vista decorre de uma
perspectiva superada teoricamente na antropologia que parte de uma
ldquoessencializaccedilatildeo impliacutecita dos conteuacutedos socioculturais que informariam as
identidades eacutetnicasrdquo (SANTOS 1996 p 136)
Muitas perguntas podem ser levantadas com a anaacutelise deste documento Eacute
possiacutevel que a antropologia sirva a interesses antagocircnicos como de quilombolas e de
proprietaacuterios vizinhos Pode a antropologia ser vista como um saber teacutecnico e natildeo
poliacutetico Eacute possiacutevel reconhecer a diversidade sem transformar o Outro em uma
imagem paacutelida de noacutes mesmos Sem pretender esgotar o debate entendo que antes
de mais nada eacute necessaacuterio aceitar que haacute muito o que se avanccedilar nas poliacuteticas
puacuteblicas no Brasil para que natildeo seja a proacutepria imagem do Estado sobre a diversidade
a uacutenica possibilidade de reconhecimento admitida (HARTUNG 2009 p 11)
Para os quilombolas de GuaiacuteraPR as consequecircncias do primeiro relatoacuterio
foram muito graves como veremos a respeito do conflito desencadeado ndash que seraacute
abordado no toacutepico abaixo A necessidade de lidar com a negaccedilatildeo oficial de sua
identidade colocou-os diante de uma encruzilhada ou desistiam do processo em
tracircmite no INCRA de modo que a primeira versatildeo do relatoacuterio se tornaria a uacutenica
interpretaccedilatildeo oficial sobre a trajetoacuteria do grupo ndash mesmo que natildeo aprovada pelo
INCRA e pela comunidade ndash ou optariam por passar por um novo estudo que
recomeccedilaria todo o processo e poderia reacender os conflitos com os proprietaacuterios
vizinhos mas por outro lado tambeacutem seria uma chance de rever e responder aos
questionamentos colocados pela equipe da UNIOESTE e dar seguimento agrave
131
reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo territorial do grupo Decidiram entatildeo continuar a trilhar o
caminho do reconhecimento territorial
23 O CONFLITO COM OS PROPRIETAacuteRIOS VIZINHOS
O processo de produccedilatildeo do primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo foi o eixo de
um conflito desencadeado entre a comunidade quilombola e os proprietaacuterios vizinhos
como analisaremos neste momento Quando finalizado este documento natildeo foi
aprovado pela comunidade que natildeo se sentiu nele representada nem tampouco pelo
INCRA que por questotildees de insuficiecircncias teacutecnicas o rejeitou No ano de 2012
ocorreu a produccedilatildeo de um segundo relatoacuterio como uma das respostas institucionais
do INCRA diante da grave situaccedilatildeo em que o grupo quilombola se encontrava e de
cuja responsabilidade tal oacutergatildeo natildeo poderia se furtar
As razotildees do INCRA para ter rejeitado o primeiro relatoacuterio podem ser
sintetizadas nos seguintes pontos conforme Informaccedilatildeo Teacutecnica produzida por um
antropoacutelogo do INCRA da Coordenaccedilatildeo Geral de Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios
Quilombolas em Brasiacutelia (Procedimento Administrativo 542000023842008-33 do
INCRAPR p 1576-1579)
a) Argumentaccedilatildeo contraacuteria ao processo de construccedilatildeo identitaacuteria da
comunidade vista como uma tentativa de manipulaccedilatildeo jaacute que afirmam
natildeo existir nenhuma diferenciaccedilatildeo com os proprietaacuterios do entorno
b) Ausecircncia de reflexotildees sobre a trajetoacuteria histoacuterica da comunidade que daacute
sentido agrave construccedilatildeo da territorialidade bem como sobre os conflitos com
a comunidade envolvente o processo de perda territorial a organizaccedilatildeo
social da comunidade o modo como se relaciona com o territoacuterio e o meio
ambiente
c) Ausecircncia de uma proposta de delimitaccedilatildeo territorial para a comunidade
tendo em vista que os autores mantiveram a posiccedilatildeo de que natildeo existiria
um territoacuterio quilombola a ser indicado natildeo atendendo assim aos
objetivos deste tipo de estudo
132
d) Incompatibilidade do relatoacuterio com os termos da Instruccedilatildeo Normativa em
vigor na eacutepoca IN 492008 bem como com o convecircnio entre o INCRA e a
UNIOESTE
Eacute possiacutevel observar que a avaliaccedilatildeo do INCRA em relaccedilatildeo ao primeiro
relatoacuterio se aproxima da visatildeo da comunidade sobre a atuaccedilatildeo da primeira equipe
expressa na insatisfaccedilatildeo dos quilombolas por considerarem que natildeo houve uma
ldquoescutardquo de suas narrativas memoacuterias pontos de vistas sentimentos e projetos Este
descontentamento da comunidade foi denunciado pela Federaccedilatildeo das Comunidades
Quilombolas do Paranaacute (FECOQUI) agrave 6ordf Cacircmara de Coordenaccedilatildeo e Revisatildeo sobre
Povos Indiacutegenas e Comunidades Tradicionais do Ministeacuterio Puacuteblico Federal e tambeacutem
agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Antropologia (ABA) tendo o antropoacutelogo responsaacutevel pelo
primeiro relatoacuterio sido advertido por falta grave por esta uacuteltima instituiccedilatildeo A despeito
de o INCRA ter rejeitado o estudo e depois ter contratado uma nova equipe de
pesquisadores bem como de seus funcionaacuterios tambeacutem terem sido viacutetimas da reaccedilatildeo
dos proprietaacuterios vizinhos isto natildeo os isentou na avaliaccedilatildeo dos quilombolas da
responsabilidade pelos desdobramentos ocorridos Como afirmou Adir de forma
enfaacutetica ldquoquando veio o impacto do trabalho do INCRA nossa nos devorou
arrebentourdquo
A autodeclaraccedilatildeo deste grupo como quilombola e a reivindicaccedilatildeo de
ampliaccedilatildeo territorial implicou que arcassem com consequecircncias negativas
importantes como a evidenciaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo de conflitos com os grupos locais O
conflito com os proprietaacuterios vizinhos foi considerado pelo governo estadual como um
dos piores do estado do Paranaacute tendo em vista as frequentes ameaccedilas de violecircncia
fiacutesica e uma seacuterie de violecircncias simboacutelicas que atingiram a comunidade Em 2009
enquanto este primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo estava sendo produzido a
mobilizaccedilatildeo do grupo contraacuterio liderada pelo entatildeo presidente do Sindicato Rural
Patronal de Guaiacutera Silvanir Rosseti teve apoio da imprensa local e regional em seus
questionamentos sobre a identidade quilombola e a ampliaccedilatildeo do territoacuterio do grupo
Essa oposiccedilatildeo tatildeo intensa dos proprietaacuterios vizinhos intensificou-se ainda
mais quando tiveram acesso de modo irregular ao mapa preliminar ndash construiacutedo por
meio da orientaccedilatildeo dada pelos antropoacutelogos da primeira equipe aos quilombolas ndash
que supostamente representaria o territoacuterio reivindicado pela comunidade Acontece
133
que o modo como os antropoacutelogos orientaram o grupo sobre os criteacuterios para a
indicaccedilatildeo das aacutereas eacute questionado por Joaquim e Adir que ressaltam a dificuldade
sentida para a compreensatildeo a linguagem dos pesquisadores o que gerou uma falta
de fluidez na comunicaccedilatildeo entre eles Atualmente eles percebem que teriam sido
induzidos a indicar uma aacuterea maior do que pretendiam incluindo todas as
propriedades com as quais tinham tido viacutenculos mesmo que fossem apenas por meio
de trabalho121 Conjugando esta interpretaccedilatildeo com a que fazem em relaccedilatildeo ao
compromisso dos antropoacutelogos com os proprietaacuterios vizinhos a elaboraccedilatildeo de um
mapa com pretensotildees muito maiores do que era reivindicado pelo grupo teria servido
natildeo soacute para enfraquecer sua demanda territorial como para justificar a forte reaccedilatildeo
dos donos das aacutereas indicadas
Joaquim Esses outros antropoacutelogos sabe o que eles fizeram com a gente
Dandara Eles jogaram noacutes contra a parede Eles falou de onde eacute que noacutes
tinha viacutenculo com aquela terra aquela propriedade noacutes tinha que indicar Aiacute
noacutes falamos ldquomas naquela propriedade tem essa daqui oacute noacutes tem viacutenculo
essa daqui nem essa daqui noacutes natildeo temrdquo ldquoNatildeo tem que ir levando tudo
Vocecircs pode ir ateacute 10 km cecircs pode ateacute ir daqui em Guaiacuterardquo (fala dos
antropoacutelogos)
Adir Vocecirc que taacute com esse estudo eu tenho certeza que vocecirc vai conseguir vocecirc vai passar A antropologia do Professor Antocircnio que era o chefe laacute da equipe falar a verdade Um cara que fala vocecirc pode ver o cara fala e duratildeo Fala de uma maneira que natildeo eacute a nossa linguagem Eles natildeo podia fazer isso com noacutes que eles fez
Joaquim Eles vieram trecircs vezes aqui Dandara e eles falou ldquoou vocecircs daacute a resposta hoje ou se natildeo vocecircs vai de aacutegua baixordquo Noacutes tinha que falar eles falou assim ldquomas noacutes tambeacutem noacutes temos contrato que se vocecircs natildeo vai fazer a indicaccedilatildeo entatildeo noacutes mesmo fazrdquo Noacutes podia ter deixado eles fazer
A assimetria na relaccedilatildeo entre os antropoacutelogos e os quilombolas bem como a
dificuldade de diaacutelogo satildeo portanto questotildees centrais na maneira como o grupo
interpreta os fatos ocorridos Em contraste com esta situaccedilatildeo de pesquisa que
consideram malsucedida eu sou entatildeo colocada no diaacutelogo acima entre Adir e
Joaquim quando Adir afirma ldquovocecirc que taacute com esse estudo eu tenho certeza que
vocecirc vai conseguir vocecirc vai passarrdquo A comparaccedilatildeo entre a minha pesquisa e a
pesquisa do primeiro relatoacuterio natildeo eacute feita por Adir de um modo direto mas eacute possiacutevel
121 No acircmbito do procedimento de reconhecimento territorial o fato de terem trabalhado para os proprietaacuterios vizinhos natildeo eacute criteacuterio para ampliaccedilatildeo da aacuterea que jaacute possuem com base no artigo 2ordm do Decreto Federal 4887 de 2003
134
inferir que por ter sido construiacuteda uma relaccedilatildeo de confianccedila entre mim e os membros
do grupo ndash relaccedilatildeo esta que antecedia a proacutepria pesquisa e que remete a minha antiga
posiccedilatildeo como assessora do Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute ndash havia uma
expectativa positiva de que o resultado do meu trabalho iria trazer algum tipo de
contribuiccedilatildeo para a comunidade
Eacute a falta de confianccedila dos quilombolas em relaccedilatildeo ao trabalho da primeira
equipe de pesquisadores que no presente embasa esta percepccedilatildeo de que teriam
sido enganados pelas orientaccedilotildees dos antropoacutelogos quando da elaboraccedilatildeo do mapa
preliminar Uma desconfianccedila que foi se acentuando durante o processo de pesquisa
ateacute que fosse confirmada segundo eles pelo proacuteprio resultado do relatoacuterio final que
era contraacuterio agraves reivindicaccedilotildees da comunidade Com a colocaccedilatildeo de Joaquim no
diaacutelogo acima ndash ldquoNoacutes podia ter deixado eles fazerrdquo ndash percebe-se que ao se sentirem
incomodados com as orientaccedilotildees passadas pelos antropoacutelogos eles poderiam ter
tomado outra atitude ao inveacutes de naquele momento terem aceitado a pressatildeo dos
antropoacutelogos de que o mapa soacute poderia ser produzido daquela maneira
Joaquim me contou entatildeo como ldquoo INCRA deixou eles (os vizinhos)
roubarem o mapardquo jaacute que o oacutergatildeo deveria ao contraacuterio ter zelado por este
documento de importacircncia central para o processo tanto em um niacutevel administrativo
como para as dinacircmicas de relaccedilotildees locais em torno da questatildeo territorial Observa-
se na fala de Joaquim uma ambiguidade na forma como ele avalia a posiccedilatildeo do oacutergatildeo
federal que se de um lado estava atuando na regiatildeo com o objetivo de garantir o
direito do grupo de outro mostra-se imprudente ao contratar pesquisadores
inadequados para realizar o estudo e ainda acaba por perder o mapa preliminar
Joaquim Eacute Dandara eu jaacute desconfiei na hora sabe por quecirc A indicaccedilatildeo que noacutes fez era bem grande aiacute eles ponharam eu e a Claudia do INCRA o Adir natildeo tava aqui eu e a Claacuteudia o motorista e um outro que veio saber onde eacute que a gente tinha indicaccedilatildeo e noacutes andamos tudo em volta com a camionete do INCRA Aiacute quando chegou aqui o cara falou assim ldquoEh a indicaccedilatildeo eacute muito a aacuterea eacute muito granderdquo Ateacute o cara desconfiou da aacuterea aiacute eu falei ldquoquem fez noacutes dar essa indicaccedilatildeo Os antropoacutelogos Que eles falou que noacutes podia ir ateacute 20 30 km e noacutes foi indicandordquo E depois a turma do INCRA deixou eles roubarem o mapa a coacutepia do mapa Eu natildeo sei como eacute que eles fizeram eles tiraram de dentro da camioneta ali embaixo ali Aiacute eles passaram a divulgaccedilatildeo pra todo mundo Eles levaram no Sindicato Patronal levou pra casa de um cara que eu sei onde eacute que eacute laacute pra frente aiacute esconderam porque a poliacutecia podia ir atraacutes neacute Aiacute a poliacutecia natildeo sabia que um passou pro outro foi passando Aiacute aumentaram a aacuterea ponharam uma parte do municiacutepio de Terra Roxa Aiacute eles botaram os dois municiacutepios contra a gente E eu ainda falei com a Juliana assim ldquomas vocecircs tinha uma coisa em segredo eles que tava com essa coacutepia natildeo podia ter deixado as turma
135
roubarrdquo () Aiacute quando eles tinham tomado a chave da camioneta quando eles subiram laacute pra cima no meio da roccedila tava tudo limpo natildeo tinha plantaccedilatildeo nenhuma aiacute eles pegaram terra assim colocaram dentro do tanque da camioneta Eles (funcionaacuterios do INCRA) ficaram detido das oito horas da manhatilde ateacute as trecircs horas da tarde A Poliacutecia Federal que veio soltar eles aliacute E aiacute depois cercaram a camioneta cercaram eles duas vez dentro do Maracaju e natildeo deixaram eles descer aqui embaixo
Esta ocasiatildeo de forte tensatildeo social ocorrida em 30 de setembro de 2009 foi
o primeiro protesto realizado pelos proprietaacuterios vizinhos Os funcionaacuterios do INCRA
sofreram ameaccedilas ndash como a de que o carro da instituiccedilatildeo seria incendiado ndash e foram
impedidos de chegar agrave comunidade tendo sido mantidos como refeacutens por algumas
horas dentro de uma casa nas proximidades da comunidade122 A gravidade do
conflito ganhou repercussatildeo pela presenccedila das emissoras de televisatildeo Tarobaacute e
Record bem como a raacutedio de Guaiacutera
Adir () Quando foi trecircs horas da tarde aiacute a rede Record veio aqui em casa a raacutedio tudo aqui Aiacute disse ldquooacute Adir eu quero saber o que que taacute acontecendo se vocecirc pode dar uma entrevista pra falar dos seus vizinhos pra falar da sua convivecircncia com eles desse trabalho que taacute sendo feito do INCRA Aiacute que eu falei pra eles eu falei assim ldquoeu natildeo vou dar entrevista de nada o que eu vou falar com vocecircs eacute o seguinte esse trabalho natildeo eacute nosso eacute do INCRA esse levantamento que foi feito pra noacutes ser reconhecido aqui natildeo foi noacutes eacute o governo vocecircs tem que conversar com o governo e conversar com o pessoal do INCRA Noacutes tamo aqui haacute tantos anos e vamos continuar o mesmo eles tambeacutem vatildeo continuar noacutes natildeo queremos nada que eacute deles Se o INCRA taacute fazendo um trabalho que ateacute pra noacutes eacute uma surpresa porque noacutes natildeo entende o que taacute acontecendo natildeo queremos confusatildeo com ningueacutem guerra com ningueacutem E noacutes hoje noacutes estamos podendo falar da nossa cultura aquilo que a gente natildeo pocircde falar a gente ficou preso a vida inteira sem poder pronunciar o que que a gente eacute de verdaderdquo Aiacute chamei as crianccedilas todas e falei ldquovamos mostrar pra eles o que Vamos tocar pra eles vamos cantar vamos tocar vamos bater atabaque e eacute issordquo Aiacute chamei as crianccedilas noacutes toquemo cantamos e ldquoEacute isso se vocecircs quiser filmar vocecircs filma isso aqui Pelo menos vamos preservar a nossa cultura aquilo que a gente natildeo pocircde falar Agora essa questatildeo aiacute natildeo eacute nossa Eacute questatildeo do INCRA e vocecircs Do governo federal e do governo estadual natildeo eacute nossardquo
Quando Adir relata sua recusa em dar uma resposta para a emissora ele estaacute
indicando que a responsabilidade pelo trabalho que estava sendo conduzido natildeo era
dos quilombolas e sim do INCRA Pelo modo como ocorreu o contato com a primeira
equipe de pesquisadores os quilombolas acabam se sentindo viacutetimas e natildeo sujeitos
do processo Por outro lado a resposta de Adir reforccedila o aspecto positivo do processo
122 O Ministeacuterio Puacuteblico Federal de Umuarama ofereceu denuacutencia contra os proprietaacuterios que se ldquoopuseram agrave execuccedilatildeo do ato legalrdquo por parte do INCRA que realizaria na oportunidade levantamento agroambiental referente ao procedimento da Comunidade Quilombola A denuacutencia estaacute disponiacutevel em httpwwwprprmpfgovbrpdfs2013umuarama20-20quilombolas20-20denunciapdf Acesso em 241015
136
de reconhecimento como forma de ter a voz do grupo reconhecida no espaccedilo puacuteblico
abrindo a possibilidade de falarem de sua cultura de pronunciarem sua identidade e
por isso conclui dizendo ldquovamos tocar vamos cantarrdquo Contudo se o processo de
regularizaccedilatildeo territorial poderia ter sido este momento de valorizaccedilatildeo da memoacuteria da
histoacuteria do grupo e de suas reivindicaccedilotildees ele natildeo alcanccedila o resultado esperado jaacute
que por meio da atuaccedilatildeo de agentes autorizados pelo Estado para produzirem o
relatoacuterio antropoloacutegico a legitimidade de suas falas lhe eacute novamente negada
Em um outro episoacutedio de conflito ocorrido em 20 de novembro de 2009 dia
da consciecircncia negra os quilombolas saiacuteam de ocircnibus em direccedilatildeo a Marechal
Cacircndido Rondon municiacutepio da regiatildeo para apresentaccedilatildeo do grupo de capoeira em
duas escolas estaduais No entanto em protesto os proprietaacuterios vizinhos fecharam
a estrada do bairro rural ldquoMaracaju dos Gauacutechosrdquo com ameaccedilas de que iriam incendiar
o ocircnibus Apoacutes horas de negociaccedilatildeo o grupo de quilombolas conseguiu ultrapassar a
barreira de manifestantes Esta situaccedilatildeo de obstruccedilatildeo da estrada ocorreu em outras
ocasiotildees por exemplo com o impedimento de que cestas baacutesicas chegassem agrave
comunidade Houve portanto um processo de inviabilizaccedilatildeo de movimentos e
restriccedilatildeo de circulaccedilatildeo dos quilombolas que eram possiacuteveis antes do iniacutecio dos
estudos para o primeiro relatoacuterio
Um exemplo importante dessas restriccedilotildees ocorreu na articulaccedilatildeo por parte
dos vizinhos por meio do Sindicato Rural Patronal para natildeo mais contratarem
quilombolas para trabalharem em suas propriedades nas quais faziam diversos tipos
de funccedilotildees desde cortar rama carpir plantaccedilatildeo rancaccedilatildeo de mandioca entre outros
e recebiam por diaacuteria Segundo me relataram a situaccedilatildeo econocircmica da comunidade
se agravou pois este tipo de trabalho antes permitia uma complementaccedilatildeo
fundamental da fonte de renda das famiacutelias quilombolas Aleacutem disso os proprietaacuterios
vizinhos tambeacutem influenciaram os donos de comeacutercio para natildeo dar creacutedito para estas
famiacutelias Sem trabalho ou creacutedito dependeram de doaccedilatildeo de cestas baacutesicas por parte
do Estado uacutenico auxiacutelio direto dos oacutergatildeos puacuteblicos que destacam terem recebido
(outros tipos de auxiacutelio estatildeo ligados agrave mediaccedilatildeo de conflitos) Esta situaccedilatildeo de
dependecircncia eacute vista por Adir e Joaquim como algo ateacute vergonhoso pois consideram
digno conquistar as coisas com o proacuteprio trabalho mas para isso teriam que ter
oportunidades por meio de projetos dos oacutergatildeos puacuteblicos para geraccedilatildeo de renda na
comunidade
137
Adir Porque eacute o seguinte se tem editais tem projeto tem tudo e noacutes na situaccedilatildeo que noacutes se encontramos aqui eles (agentes do Estado) viram eles mesmo viram com os proacuteprios olhos e nos auxiliaram em nada nos apoiaram em nada soacute apoiaram com conversa e noacutes aqui precisando ateacute hoje eu fico preocupado com esses jovens fico preocupado com essas mulheres porque noacutes soacute vamos conseguir afirmar aqui com trabalho com geraccedilatildeo de renda O primeiro passo eacute a geraccedilatildeo de renda Aiacute noacutes consegue ter uma comunidade decente natildeo viver de cesta de baacutesica que isso eu natildeo quero
Joaquim E se fosse pra noacutes viver de cesta baacutesica noacutes jaacute tinha morrido de fome Eles fica cinco seis mecircs sem mandar
Adir A cesta baacutesica ela natildeo daacute noacutes assim poder pra noacutes crescer noacutes queremos viver do nosso proacuteprio suor do nosso proacuteprio trabalho
Joaquim Eacute que noacutes nunca vivemos de cesta baacutesica
Adir Pra noacutes conseguir comprar o que eacute nosso ter o prazer de ocecirc chegar e comprar tocirc trabalhando e tenho condiccedilotildees de fazer isso Viver de cesta baacutesica isso natildeo existe noacutes natildeo queremos isso noacutes queremos ter nosso proacuteprio sustento que noacutes sempre vivia trabalhamos nem que for sofrendo e tudo mas nosso sustento Natildeo viver eacute dependendo de cesta baacutesica dependendo de governo natildeo dependendo de noacutes mesmo eacute isso que eu quero escrever pra SEPPIR e pra Fundaccedilatildeo Palmares Que eacute muito bonito nos eventos que eu jaacute fui vaacuterios nossa jaacute perdi a conta de andar nesse Brasil No comeccedilo eu ia com esperanccedila e trazia aquela esperanccedila aquela coisa pra dentro da comunidade falava pra eles que era isso e aquilo outro que ia acontecer que ia acontecer
Assim como observamos no capiacutetulo anterior esta situaccedilatildeo de
vulnerabilidade desencadeada pelos conflitos em torno do primeiro relatoacuterio reforccedilou
o sentimento de sofrimento e humilhaccedilatildeo que estaacute presente na leitura que fazem de
sua trajetoacuteria coletiva Na fala de Adir abaixo em que avalia a poliacutetica puacuteblica para as
comunidades quilombolas ele aponta para a expectativa de que o contato com os
diversos oacutergatildeos puacuteblicos responsaacuteveis jaacute tivesse naquele momento repercutido de
forma positiva para a comunidade123
Adir Eacute e daiacute a gente Dandara trazia uma esperanccedila pra comunidade e aiacute depois eu comecei a trazer uma desesperanccedila pra dentro da comunidade Aiacute como que fica Um presidente da comunidade taacute indo atraacutes laacute o pessoal fica esperando e eu trazer o quecirc pra eles Comecei a natildeo trazer mais nada Comecei nem a falar nada mais pra eles porque eu ia e voltava falar o quecirc Trazer o quecirc Papel Papel Soacute Na praacutetica nada Aiacute eu comecei ateacute eu ter desesperanccedila Eu luto sim porque eu tenho um conhecimento hoje mas eu vou correr atraacutes daquilo que quando eu vejo que eacute certo eu tenho que lutar nem que tenha dificuldade burocracia cecirc sabe que isso existe
123 Uma das principais demandas do grupo eacute a garantia de uma dinacircmica interna de geraccedilatildeo de renda
que crie para os quilombolas autonomia de trabalho e que viabilize a permanecircncia das famiacutelias no territoacuterio
138
Esta posiccedilatildeo de mediador poliacutetico ocupada por Adir teve consequecircncias
graves durante os conflitos em decorrecircncia da pressatildeo dos vizinhos que de certo
modo foi nele personificada Sofreu vaacuterias ameaccedilas de morte e foi incluiacutedo no
Programa de Proteccedilatildeo aos Defensores dos Direitos Humanos da Secretaria de
Direitos da Presidecircncia da Repuacuteblica Uma das ameaccedilas que sofreu foi atraveacutes de um
trabalho de magia feito contra ele Foram encontrados nos fundos da aacuterea da
comunidade um pequeno caixatildeo uma galinha morta vela pinga areia e uma cruz
com o nome de Adir e a data em que seria morto 13012010 A relevacircncia desta
ameaccedila estaacute ligada a uma referecircncia expliacutecita agrave religiosidade afro-brasileira do grupo
vinculada agrave Umbanda Adir me contou como foi ateacute o lugar e jogou sal grosso em cima
do trabalho para se proteger O jornal local noticiou o ocorrido trazendo a fala de Adir
em resposta ldquoConhecemos essa arte termos irmatildeos que frequentaram a Mesa
Branca a pessoa que fez isso natildeo sabe com quem estaacute brincandordquo
Geralda irmatilde de Adir me explicou de modo indignado mesmo depois de anos
do ocorrido que ela e seu marido por frequentarem o centro de Umbanda foram
acusados pelos vizinhos de terem feito aquilo para gerar falaccedilatildeo Para ela foram os
proacuteprios vizinhos que fizeram o trabalho e os acusaram com o objetivo de criar uma
crise interna na famiacutelia Segundo Geralda os vizinhos tambeacutem frequentam terreiros
mas de modo velado jaacute que natildeo ldquovatildeo ali na regiatildeo porque natildeo querem que ningueacutem
saiba que eles mexem com issordquo Deste modo os vizinhos natildeo explicitariam o viacutenculo
com terreiros de Umbanda jaacute que tecircm acesso e influecircncia junto ao padre local tendo
inclusive acionado esta influecircncia contra os quilombolas para ldquotirar eles da Igrejardquo
139
FIGURA 18 Liacuteder da comunidade quilombola eacute ameaccedilado FONTE Jornal Paranazatildeo 11 de setembro de 2009
140
A acusaccedilatildeo contra Geralda e seu marido indica como abordamos no capiacutetulo
anterior a percepccedilatildeo dos vizinhos em relaccedilatildeo ao grupo de que eles seriam ldquonegros
feiticeiros ou macumbeirosrdquo atribuindo-lhes natildeo soacute uma inadequaccedilatildeo moral mas
tambeacutem uma representaccedilatildeo como possiacuteveis agressores (PORTO 2014 p 199) Por
um lado se haacute uma condenaccedilatildeo moral na interpretaccedilatildeo das religiotildees afro-brasileiras
parece haver por outro um reconhecimento de sua eficaacutecia pois aleacutem de Geralda
afirmar que eles tambeacutem acionam este circuito religioso de modo velado teriam se
utilizado de um trabalho para tentar agredir seus oponentes neste momento de
exacerbaccedilatildeo do conflito Eficaacutecia esta natildeo reconhecida no acircmbito de uma esfera
religiosa mas como uma praacutetica de ldquomagiardquo o que acaba por reforccedilar a atribuiccedilatildeo de
subalternidade que seria conferida a este tipo de praacutetica miacutestica (BRUMANA
MARTINEZ 1991 p 81) Esta ameaccedila contra Adir ganhou repercussatildeo no jornal local
como mais uma forma de intimidaccedilatildeo contra o liacuteder da comunidade
A tensatildeo entre brancos e negros antes latente transformou-se com a
eclosatildeo do conflito no que Adir denominou de ldquoapartheidrdquo Esta situaccedilatildeo ficou
evidente para ele principalmente na dificuldade de convivecircncia entre as crianccedilas e
adolescentes da comunidade e os filhos dos proprietaacuterios vizinhos que pegavam
juntos o ocircnibus para ir para a escola Jaqueline (19 anos) filha de Joaquim contou
como o preconceito que jaacute sofria na escola por sempre ter sido a uacutenica negra de sua
sala agravou-se durante o conflito Ela tinha que escutar os outros adolescentes
falando que sua comunidade iria roubar a terra dos pais deles No ocircnibus os filhos
dos proprietaacuterios vizinhos natildeo deixavam que as crianccedilas e adolescentes da
comunidade se sentassem juntos deles
Outro fato que marcou muito o grupo no final de 2009 foi a morte do irmatildeo
mais velho e liacuteder interno da comunidade Zeacute Maria que sofria de diabetes Nos
relatos sobre este periacuteodo os seus irmatildeos responsabilizam as ameaccedilas e o conflito
com os vizinhos os quais foram pressionando os quilombolas e teriam assim
contribuiacutedo para fragilizar a sauacutede de Zeacute Maria Ademais eles contam como enquanto
seu corpo estava sendo velado na comunidade indignaram-se ao ouvirem fogos de
artifiacutecios que entenderam como ato de comemoraccedilatildeo provocaccedilatildeo e total desrespeito
por parte dos vizinhos agrave situaccedilatildeo de perda da famiacutelia
Neste contexto de adversidade procuraram apoio junto a vaacuterios oacutergatildeos puacuteblicos
como a Poliacutecia Federal a Poliacutecia Civil a Poliacutecia Militar o Ministeacuterio Puacuteblico Federal
141
o Ministeacuterio Puacuteblico Estadual e os oacutergatildeos do Governo Federal que tratam da temaacutetica
quilombola o proacuteprio INCRA a Fundaccedilatildeo Cultural Palmares FCP) e a Secretaria de
Poliacuteticas de Promoccedilatildeo da Igualdade Racial da Presidecircncia da Repuacuteblica (SEPPIR)
Somente quando a questatildeo deixou de ficar restrita ao acircmbito regional do INCRA no
Paranaacute e houve uma intervenccedilatildeo direta de agentes do Estado representantes do
governo federal o conflito se acalmou
Joaquim () E noacutes natildeo tinha mais sossego Aiacute depois que veio as turma de Brasiacutelia neacute Adir aiacute que eles obedeceram Que essas turma de Brasiacutelia que botaram o ponto final Falou ldquocecircs natildeo cerca mais ningueacutem que vai laacute hoje na comunidade deles mais ningueacutem A ordem agora vem de Brasiacutelia natildeo eacute daqui de Guaiacutera mais natildeordquo Aiacute eles natildeo mexeram mais porque eles falou ldquoAgora noacutes vamos prender mesmordquo
O Ministeacuterio Puacuteblico Federal (MPF) em Umuarama propocircs em julho de 2012
uma Accedilatildeo Civil Puacuteblica contra o INCRA a Uniatildeo o Estado do Paranaacute e o municiacutepio
de Guaiacutera com objetivo de garantir direitos da comunidade quilombola em Guaiacutera124
Tal accedilatildeo teve como base o Inqueacuterito Civil Puacuteblico instaurado em 2008 no
MPFUmuarama que acompanhou a realizaccedilatildeo do estudo antropoloacutegico e os
desdobramentos conflituosos que foram desencadeados e que tiveram ampla
repercussatildeo nos meios de comunicaccedilatildeo da regiatildeo125 Assim depois de todo impacto
negativo do trabalho do INCRA com a comunidade os quilombolas se questionaram
se valia a pena dar continuidade ao procedimento de regularizaccedilatildeo territorial jaacute que
tinham arcado com muitos prejuiacutezos e humilhaccedilotildees e aleacutem disso o relatoacuterio
antropoloacutegico produzido era contraacuterio aos seus interesses O trabalho tinha sido
iniciado mas o INCRA segundo Joaquim natildeo teve estrutura para conduzi-lo de forma
adequada de modo que as lideranccedilas do grupo passaram a distinguir entatildeo o que
era o trabalho do INCRA e o que era o proacuteprio posicionamento dos quilombolas
124 ldquoNa accedilatildeo o MPF pede liminarmente que a Justiccedila Federal de Guaiacutera fixe um prazo maacuteximo de um ano para que o Incra conclua o procedimento administrativo de identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas pela Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos Pedem ainda que Uniatildeo Estado do Paranaacute e municiacutepio de Guaiacutera cumpram com o dever legal de inserir a comunidade em suas respectivas poliacuteticas puacuteblicasrdquo ldquoUmuarama pede que Incra conclua procedimento para garantir direitos de quilombola Notiacutecia disponiacutevel em httpwwwredesuldenoticiascombrhomeaspid=43708 Acesso em 240215 125 Sobre os conflitos em comunidades quilombolas abordados na imprensa estadual no Paranaacute o caso de Guaiacutera eacute um dos principais ldquonas notiacutecias a respeito desta comunidade destaca-se aleacutem da lideranccedila quilombola ter sido ameaccedilada por supostos rituais de feiticcedilaria o fato dos funcionaacuterios do INCRA terem sido feitos de refeacutens por cerca de 150 agricultores da regiatildeo durante a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo do Territoacuterio Quilombolardquo CRUZ Cassius Conjuntura quilombola no Paranaacute Disponiacutevel em httpsetnicowordpresscomcategoryquilombos Acesso em 240215
142
Neste sentido a persistecircncia na luta pelo direito territorial com a decisatildeo de
passarem pela elaboraccedilatildeo de um segundo relatoacuterio antropoloacutegico mesmo diante de
todas as condiccedilotildees adversas que estavam colocadas pelo primeiro parecer contraacuterio
parece demonstrar ldquoa existecircncia de um projeto de futuro suficientemente
compartilhadordquo (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 130) Com a produccedilatildeo de um
segundo relatoacuterio antropoloacutegico renovaram-se as esperanccedilas de que pudessem ter
um territoacuterio suficiente para a reproduccedilatildeo do grupo com a perspectiva de retorno de
familiares que saiacuteram dali e que juntos consigam construir um projeto comum
Ademais aleacutem deste aspecto territorial tal decisatildeo de dar continuidade ao
procedimento no INCRA tambeacutem se relaciona agrave afirmaccedilatildeo da legitimidade da
perspectiva do grupo sobre a sua proacutepria histoacuteria
Mas se antes do iniacutecio do trabalho deste oacutergatildeo federal na comunidade os
quilombolas desconheciam os processos estatais pelos quais iriam passar ateacute a
regularizaccedilatildeo do territoacuterio depois de todos os desdobramentos ocorridos estavam
muito mais informados e ldquocalejadosrdquo com relaccedilatildeo ao funcionamento deste tipo de
poliacutetica puacuteblica territorial Eacute a partir de um novo espaccedilo de experiecircncia que passaram
entatildeo a refletir sobre o que ocorreu desde a certificaccedilatildeo da comunidade pela
Fundaccedilatildeo Cultural Palmares em 2006 Tornaram-se assim mais seguros de suas
perspectivas sobre a postura tanto das equipes de pesquisa bem como dos
funcionaacuterios do INCRA e de outros oacutergatildeos federais responsaacuteveis pela temaacutetica A
necessidade de circular por novas esferas de atuaccedilatildeo e diaacutelogo se consolidou como
um novo campo de movimento no qual os membros do grupo interagem questionam
reivindicam e constituem aliados para a busca de seus objetivos
24 UM NOVO RELATOacuteRIO ANTROPOLOacuteGICO
A decisatildeo de continuar com o processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria do INCRA
passou pelo desejo de consolidar o reconhecimento puacuteblico da legitimidade da histoacuteria
e da luta do grupo questionadas pelo primeiro relatoacuterio Como apontado em conversa
com Adir e Joaquim eles natildeo queriam desistir do objetivo de ampliaccedilatildeo do territoacuterio
da comunidade tendo em vista a possibilidade de garantir o retorno dos parentes que
de laacute saiacuteram nas uacuteltimas deacutecadas Para manter este propoacutesito consideram que eacute
143
preciso ter ldquocoragem forccedila e feacute em Deusrdquo acionando o suporte de uma ordem de
moral e de justiccedila superior que lhes ampara
Adir Que o nosso pessoal aqui Dandara natildeo viveu soacute no municiacutepio de Guaiacutera Quando esse pessoal vieram de Minas ocupou os dois municiacutepios
Joaquim E trabalhava de diaacuteria pra todo mundo que era muita gente neacute entatildeo noacutes natildeo tinha terra pra trabalhar soacute pra gente Ia derrubando mato tocava trecircs anos e eles ia passando pra frente
Adir E hoje podia taacute todo mundo aqui Natildeo taacute porque de alguma forma contribuiacuteram (os vizinhos) pra que esse pessoal nosso saiacutesse daqui Ocuparam os espaccedilos e noacutes fiquemos sem nada Por isso que noacutes natildeo podemos deixar de lutar Noacutes tem que lutar mesmo Que nem eu falo pra eles ldquose um morrer a guerra natildeo pode parar tem que continuarrdquo E a gente quer mostrar dentro desse municiacutepio de Guaiacutera mostrar pra eles que noacutes tambeacutem temos ndash oportunidade natildeo temos ndash mas que temos coragem forccedila e feacute em Deus pra lutar e conseguir com nossos braccedilos nossas pernas conseguir mostrar pra eles
No entanto a decisatildeo de retomar o processo do INCRA natildeo foi faacutecil jaacute que
na percepccedilatildeo de Joaquim e Adir o oacutergatildeo os decepcionou quando recuou diante da
reaccedilatildeo dos proprietaacuterios e ldquolargou noacutes aqui abandonadordquo Joaquim ressalta como
deixou claro para a antropoacuteloga do INCRA Juliane que acompanhou o procedimento
da comunidade desde o comeccedilo que o oacutergatildeo tinha responsabilidade pelos
desdobramentos do conflito bem como pela situaccedilatildeo econocircmica precaacuteria em que
ficou a comunidade Todos esses acontecimentos faziam com que se sentissem
temeraacuterios com o reiniacutecio dos trabalhos com a reelaboraccedilatildeo de um novo relatoacuterio
antropoloacutegico
Joaquim E teve um ano que noacutes fiquemos nervoso eu falei com a Juliane mesmo do INCRA Eu falei ldquovocecircs natildeo teve peito pra arcar com o pessoal que noacutes natildeo sabe tambeacutem como eacute que eacute essa lei o direitordquo Porque vocecircs recuaram
Adir Recuaram de alguma forma Tambeacutem eacute muito novo Joaquim Eles abriram esse trabalho e depois largou noacutes aqui abandonado Noacutes tamo abandonado sem serviccedilo sem ningueacutem E vocecircs eacute difiacutecil entrar em comunicaccedilatildeo com a gente noacutes fiquemos aqui oacute foi muito tempo sem eles entrar em comunicaccedilatildeo com noacutes
Atualmente entendem a continuidade do procedimento como positiva jaacute que
a avaliaccedilatildeo que fazem da segunda equipe de pesquisadores eacute muito diferente da
primeira Um dos principais criteacuterios utilizados eacute a permanecircncia do antropoacutelogo com
144
eles na comunidade para presenciar o cotidiano e ldquoentender o que estaacute acontecendordquo
Neste mesmo sentido tambeacutem a minha pesquisa eacute avaliada
Adir () Eles (primeira equipe) estava escrevendo uma coisa de laacute natildeo aqui proacuteximo a noacutes Eacute legal que nem vocecirc taacute aqui agora vocecirc falou que vai vir pra ficar tantos dias depois vocecirc volta de novo pra ficar tantos dias depois vocecirc pode voltar de novo ficar tantos dia Aiacute vocecirc vai conviver com noacutes aqui durante esses dias tudo vocecirc vai ver o que vai acontecer o que taacute acontecendo vocecirc vai presenciar tudo Entatildeo que nem noacutes fala pro pessoal do INCRA pra esses antropoacutelogos pra fazer um relatoacuterio antropoloacutegico tem que conviver laacute dentro tem que viver laacute junto com noacutes tem que ver da nossa cultura da nossa alimentaccedilatildeo da nossa dificuldade da nossa luta de tudo isso tem que conviver com noacutes aqui dentro Natildeo adianta vir meia hora sentar com noacutes ali bater um papo pesquisar noacutes ali e voltar embora Presenciar dia a dia
Dandara Quando veio o Paulo (antropoacutelogo) agora pra esse segundo (relatoacuterio) eles ficaram aqui
Adir Ah o Paulo estava aqui presente todo dia com a gente
Joaquim Totalmente diferente
Adir Totalmente diferente E o Paulo foi buscar nossa histoacuteria laacute em Minas que era ateacute pra mim ter ido junto com o Cassius (historiador) aiacute deu um problema que eu natildeo pude ir mas o Cassius me chamou era pra mim taacute junto com eles laacute
A elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico teve o meacuterito segundo os
quilombolas de ter incluiacutedo a pesquisa realizada por Cassius Cruz historiador da
equipe junto agraves comunidades quilombolas da regiatildeo de proveniecircncia de Manoel
Ciriaco dos Santos em Minas Gerais Adir na eacutepoca foi convidado para que o
acompanhasse na viagem com o intuito de contribuir para a realizaccedilatildeo desta
pesquisa o que natildeo pode acontecer segundo Cassius em decorrecircncia de o contrato
do INCRA com a empresa Terra Ambiental natildeo disponibilizar recursos suficientes e
de Adir natildeo ter como realizaacute-la com recursos proacuteprios Caso a equipe responsaacutevel
optasse por deslocar recursos para financiar a ida da lideranccedila quilombola natildeo
haveria condiccedilotildees para o pagamento total das diaacuterias de trabalho de campo dos
pesquisadores Muitas contribuiccedilotildees poderiam ter sido geradas para o relatoacuterio
antropoloacutegico se priorizado pelo oacutergatildeo federal como ldquoprocessordquo (de pesquisa de
articulaccedilatildeo de fortalecimento comunitaacuterio) no acircmbito do qual seria muito relevante a
participaccedilatildeo de Adir nesta pesquisa em Minas Gerais No entanto esta possibilidade
natildeo se concretizou dada a incompatibilidade com o orccedilamento disponiacutevel na execuccedilatildeo
145
do relatoacuterio vieacutes pelo qual responde a uma certa dinacircmica administrativa que o
entende afinal de contas como ldquoprodutordquo contratado (FERNANDES 2005)
Mesmo sem a ida de um integrante da comunidade a pesquisa em Minas
Gerais foi fundamental para a argumentaccedilatildeo que o segundo relatoacuterio construiu
As pesquisas de campo realizadas em Minas Gerais possibilitaram localizar elementos comuns entre as narrativas da comunidade de Manoel Ciriaco e a Comunidade de Vila Nova (Serro-MG) aleacutem de constatar a presenccedila material de imagens recorrentemente explicitadas pela memoacuteria dos descendentes de Manoel Ciriaco para se referir agrave origem mineira exemplo disso eacute o fato de utilizarem provisoriamente de lapas de pedra como forma de habitaccedilatildeo e espaccedilo de trabalho (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 735 [p 32])
Neste sentido Adir comenta a importacircncia deste relatoacuterio por ter dado
subsiacutedio e legitimidade para a versatildeo do grupo sobre sua proacutepria histoacuteria muito
diferente da experiecircncia com o primeiro estudo
Adir () E eu faccedilo de tudo pra ser cumprido esse relatoacuterio antropoloacutegico noacutes vamos contribuir com tudo pra ser cumprido esse relatoacuterio que no final decirc o que decirc mas pelo menos o trabalho tem que ser feito Demorou pra noacutes porque quase que noacutes natildeo ia aceitar o relatoacuterio antropoloacutegico mais Porque tudo que a gente passou noacutes tivemos muita conversa com o pessoal do INCRA eu mais o Joaquim fomos pra Curitiba umas par de vez pra gente sentar laacute com o Nilton (Superindente do INCRA no Paranaacute) conversamos com o pessoal de Brasiacutelia porque noacutes natildeo ia aceitar mais o relatoacuterio antropoloacutegico noacutes fiquemos muito desgastado desgastado de mais
A pesquisa para o segundo relatoacuterio foi produzida durante o ano de 2012 por
uma equipe multidisciplinar coordenada pelo antropoacutelogo Paulo R Homem de Goacutees
que tinha ampla experiecircncia de trabalho e pesquisa com comunidades indiacutegenas Tal
equipe foi contratada pela Empresa Terra Ambiental que venceu a licitaccedilatildeo puacuteblica
(modelo de pregatildeo eletrocircnico) 126 para a produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos no
126 O modelo de convecircnio com universidades em comparaccedilatildeo com o modelo de ldquopregatildeo eletrocircnicordquo
adotado desde 2011 era melhor avaliado pelos antropoacutelogos por sua contribuiccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de um campo de debate antropoloacutegico sobre o tema dos quilombos nos espaccedilos acadecircmicos proporcionando um nuacutemero expressivo de trabalhos e grupos de pesquisa em cursos de antropologia todo o paiacutes (ARRUTI 2013) No entanto o modelo de convecircnio foi substituiacutedo pelo chamado ldquoPregatildeo Eletrocircnicordquo que se tornou a ferramenta de contrataccedilatildeo para os relatoacuterios antropoloacutegicos e produccedilatildeo de RTID No caso de Guaiacutera contudo a experiecircncia com a realizaccedilatildeo do pregatildeo apresentou melhores resultados do que com o convecircnio estabelecido com a UNIOESTE localizada na regiatildeo oeste do Paranaacute pois neste convecircnio natildeo havia em seu quadro docente um antropoacutelogo que dispusesse de experiecircncia sobre temas relacionados com identidade e territorialidade e que estivesse assim apto para coordenar o estudo em questatildeo
146
Paranaacute nos municiacutepios de Guaiacutera e Palmas Trata-se precisamente das duas
comunidades quilombolas que haviam passado pela produccedilatildeo de um primeiro
relatoacuterio antropoloacutegico fruto do convecircnio do INCRA com a UNIOESTE cujos
resultados foram recusados tanto pelo oacutergatildeo como pelas comunidades pesquisadas
O histoacuterico de conflitos em Guaiacutera gerou questionamentos quanto aos riscos
a que os pesquisadores envolvidos na elaboraccedilatildeo de um novo relatoacuterio antropoloacutegico
e os proacuteprios quilombolas poderiam estar expostos Assim foram pensadas
estrateacutegias para evitar novas situaccedilotildees de animosidade Para que aceitassem passar
por um novo momento de pesquisa os quilombolas exigiram que o INCRA garantisse
a seguranccedila dos membros da comunidade jaacute que se sentiram desprotegidos e
vulneraacuteveis no conflito desencadeado pelo primeiro relatoacuterio Uma das estrateacutegias foi
a realizaccedilatildeo de uma audiecircncia puacuteblica convocada pelo Ministeacuterio Puacuteblico Federal de
Guaiacutera na qual participaram os representantes quilombolas os agricultores do
Maracaju dos Gauacutechos da Poliacutecia Federal e Militar do Sindicato Patronal Rural de
Guaiacutera do INCRA da empresa Terra Ambiental da Casa Civil do Estado do Paranaacute
e da Federaccedilatildeo da Agricultura do Estado do Paranaacute De acordo com o segundo
relatoacuterio antropoloacutegico
O objetivo da reuniatildeo foi tornar puacuteblico o reiniacutecio do processo e garantir que fosse realizado de forma paciacutefica explicitando os procedimentos legais que envolvem a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo do qual o Relatoacuterio Antropoloacutegico ora apresentado constitui apenas a primeira etapa Avaliamos que natildeo obstante os intensos questionamentos realizados por parte dos agricultores na audiecircncia que durou cerca de 5 horas a mesma teve um resultado extremamente produtivo uma vez que foi possiacutevel agrave equipe teacutecnica realizar suas atividades ao longo dos meses subsequentes sem interferecircncia de agentes externos ou ameaccedila Destacamos apenas que houve dificuldade em dialogar com pessoas vizinhas agrave comunidade sobre o processo pois os conflitos geraram muita desconfianccedila e temor (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 760 [p 67])
Deste modo o segundo estudo natildeo poderia desconsiderar todo este contexto
preacutevio de relaccedilotildees externas e tambeacutem o proacuteprio conteuacutedo levantado pela primeira
pesquisa sobre a qual os autores do segundo relatoacuterio antropoloacutegico avaliam
A forma como o processo foi conduzido pelos pesquisadores da Unioeste foi desaprovada pelas lideranccedilas da comunidade que atribuem parte dos conflitos decorrentes desse primeiro processo de elaboraccedilatildeo do RTID agrave conduccedilatildeo da pesquisa antropoloacutegica A reabertura do processo e a contrataccedilatildeo de nova equipe multidisciplinar foi recebida com alegria pela comunidade poreacutem natildeo sem receio dado a experiecircncia anterior
147
(Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 701 [p 08])
A repercussatildeo do questionamento sobre a identidade do grupo pode ser
percebida tambeacutem na dissertaccedilatildeo elaborada em 2012 por Claacuteudia Hoffmann que
versa sobre a comunidade quilombola de Guaiacutera no acircmbito do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Sociedade Cultura e Fronteiras da UNIOESTE Mesmo a autora
fazendo criacuteticas ao primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo e agrave situaccedilatildeo de conflito que
se seguiu ela afirma ao longo do texto que optou por natildeo os denominar como
ldquoquilombolasrdquo porque ainda natildeo havia ocorrido a ldquodemarcaccedilatildeo de suas terrasrdquo
preferindo entatildeo referir-se a eles como ldquointegrantes da comunidade negrardquo
(HOFFMANN 2012 p 14-15) Questionou deste modo a autoidentificaccedilatildeo do grupo
como se esta soacute fosse legiacutetima em consequecircncia do reconhecimento territorial oficial
por parte do Estado Interessante observar no entanto que a autora na mesma
dissertaccedilatildeo natildeo hesitou em denominar a comunidade de Joatildeo Suraacute localizada no
municiacutepio de AdrianoacutepolisPR como ldquoComunidade Remanescente de Quilombo Joatildeo
Suraacuterdquo (HOFFMANN 2012 p 40) embora este grupo tambeacutem natildeo tenha sido titulado
como territoacuterio quilombola pelo INCRA Esta diferenccedila de posicionamento pode ser
decorrente de seu desconhecimento do tracircmite do procedimento da comunidade de
Joatildeo Suraacute no INCRA ou talvez ter surgido devido ao fato de este grupo se encaixar
no modelo de ldquoquilombo tiacutepicordquo bem mais do que o grupo de GuaiacuteraPR e natildeo ter tido
a sua identidade questionada oficialmente
Para lidar com os questionamentos levantados pelo primeiro relatoacuterio e suas
repercussotildees a pesquisa para elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico como
nos referimos acima buscou dar suporte agraves referecircncias da memoacuteria coletiva do grupo
em GuaiacuteraPR sobre a vida de seus antepassados em Minas Gerais e o processo de
migraccedilatildeo ateacute o Paranaacute A versatildeo final do relatoacuterio com cento e trinta e quatro
paacuteginas127 foi estruturada com as seguintes partes
(1) ldquoIntroduccedilatildeo e definiccedilatildeo dos conceitosrdquo fazem uma leitura densa sobre o
desenvolvimento da interpretaccedilatildeo teoacuterica sobre o conceito de quilombo reforccedilando a
importacircncia da ressemantizaccedilatildeo do termo a partir da introduccedilatildeo do artigo 68 do ADCT
na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 para abranger o novo contexto de emergecircncia
127 Interessante observar que ambos os relatoacuterios apresentam o mesmo nuacutemero de paacuteginas
148
identitaacuteria das comunidades quilombolas no presente Destacam tambeacutem a
importacircncia da incorporaccedilatildeo do criteacuterio de autoatribuiccedilatildeo trazido pelo Decreto Federal
48872003 e finalizam com uma anaacutelise criacutetica da efetivaccedilatildeo dos direitos territoriais
das comunidades quilombolas que tem ocorrido em uma velocidade muito aqueacutem da
necessaacuteria
(2) ldquoCaracterizaccedilatildeo do municiacutepiordquo apresentam o histoacuterico de ocupaccedilatildeo e
colonizaccedilatildeo da regiatildeo desde meados do seacuteculo XIX e o contexto de criaccedilatildeo do
municiacutepio de Guaiacutera a partir do empreendimento da empresa Matte Laranjeira no
local Destacam tambeacutem como nas deacutecadas de 1970 e 1980 houve uma inversatildeo na
proporccedilatildeo de habitantes das aacutereas rurais e urbanas do municiacutepio chegando a uma
proporccedilatildeo de 80 da populaccedilatildeo na aacuterea urbana no ano 2000 processo que teve forte
impacto na comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos
(3) ldquoHistoacuteria da comunidade quilombola Manoel Ciriacordquo abordam os dados
da pesquisa realizada em MG demonstrando os laccedilos de memoacuteria e indicativos de
possiacuteveis relaccedilotildees de parentesco entre a comunidade quilombola de GuaiacuteraPR e ldquoas
comunidades quilombolas migrantes do Jequitinhonha ndash MGrdquo assim como uma
anaacutelise mais especiacutefica sobre a trajetoacuteria de migraccedilatildeo de seu Manoel Ciriaco
Destacam tambeacutem o fato de a migraccedilatildeo jaacute estar presente nas dinacircmicas das famiacutelias
negras na regiatildeo de origem do grupo Estes processos migratoacuterios ocorriam em uma
escala local de circulaccedilatildeo das famiacutelias que viviam em lapas (cavernas) de pedra e
mantinham sua autonomia com poucos recursos o que gerava uma significativa
mobilidade territorial Apontam como entre os seacuteculos XIX e XX havia uma
importante produccedilatildeo local de queijo cachaccedila milho carne e outros alimentos que
visava o abastecimento de Diamantina principal centro minerador da regiatildeo As
famiacutelias de ex-escravos aleacutem do trabalho com o garimpo mantinham uma produccedilatildeo
de modo autocircnomo para o autoconsumo e tambeacutem para este abastecimento externo
atraveacutes da atividade tropeira Nas deacutecadas de 1950 e 1960 muitas destas famiacutelias
foram compelidas a migrar por conta do processo de modernizaccedilatildeo e pressatildeo sobre
as terras camponesas na regiatildeo
(4) ldquoParentesco organizaccedilatildeo social e o tabu do lsquooutcestrsquordquo analisam como o
casamento preferencial a partir de uma loacutegica endogacircmica ndash tabu do lsquooutcestrsquo ou
seja do casamento fora do grupo ndash jaacute era uma caracteriacutestica presente desde MG e
se constituiu como importante dinacircmica para a manutenccedilatildeo e coesatildeo do grupo em
149
GuaiacuteraPR Os autores propotildeem entatildeo uma anaacutelise do processo de migraccedilatildeo como
mecanismo necessaacuterio para a manutenccedilatildeo das famiacutelias em contraste com a anaacutelise
anterior do primeiro relatoacuterio que entendia a migraccedilatildeo como elemento
descaracterizador da identidade quilombola do grupo Descrevem ainda os aspectos
da religiosidade e os procedimentos terapecircuticos utilizados pelos membros da
comunidade finalizando este capiacutetulo com uma anaacutelise do processo de
reconhecimento do direito quilombola e dos conflitos dele decorrentes
(5) ldquoA terra as plantas e a produccedilatildeordquo apresentam uma anaacutelise de aspectos
ambientais e agronocircmicos da comunidade
(6) ldquoProposta de delimitaccedilatildeo da comunidade remanescente de quilombo
Manoel Ciriaco dos Santos em que apresentam uma proposta de territoacuterio quilombola
como base nos dados da pesquisa realizada diversamente do primeiro relatoacuterio que
afirmava natildeo haver territoacuterio quilombola a ser indicado
(7) Referecircncias bibliograacuteficas e anexos
O caminho argumentativo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico estruturou-se
por meio da fundamentaccedilatildeo histoacuterica das ldquomemoacuterias mineirasrdquo do grupo quilombola
em GuaiacuteraPR Apontam assim para os ldquopotenciais elos de parentesco com
comunidades quilombolas de Minas Geraisrdquo bem como para os ldquodados histoacutericos
sobre origens e dispersotildees geograacuteficasrdquo das comunidades quilombolas da regiatildeo
mineira e suas ldquodinacircmicas locais de migraccedilatildeordquo A significativa presenccedila da
argumentaccedilatildeo histoacuterica neste relatoacuterio estaacute relacionada possivelmente ao contexto de
produccedilatildeo da pesquisa realizada na sequecircncia de um outro relatoacuterio antropoloacutegico que
rejeitava a legitimidade da identidade e da reivindicaccedilatildeo territorial do grupo
precisamente por conta da suposta impossibilidade de vinculaacute-los a uma
ancestralidade quilombola Assim os autores do segundo relatoacuterio buscam
demonstrar como o trabalho de campo realizado em MG proporcionou fontes ldquoque
corroboram e possibilitam aprofundar os elementos apontados pelas famiacutelias
quilombolas de Manoel Ciriaco sobre suas origens mineirasrdquo (Procedimento
Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 701-702 [p 08-09] 721
[p28])
Esta busca de comprovaccedilatildeo histoacuterica natildeo eacute como jaacute abordamos
anteriormente um requisito legal conforme a definiccedilatildeo atual dada pelo Decreto
Federal 4887 de 2003 que regulamentou o processo de titulaccedilatildeo de territoacuterios
150
quilombolas A opccedilatildeo do decreto em atribuir ao relatoacuterio antropoloacutegico ndash e natildeo a um
ldquorelatoacuterio histoacutericordquo ndash a responsabilidade de ser um dos estudos (o primeiro deles) que
subsidia o tracircmite de acesso a direitos territoriais aponta para um direcionamento que
perceba como o grupo elabora no presente suas narrativas sobre ldquoa resistecircncia agrave
opressatildeo histoacuterica sofridardquo a partir da ldquopresunccedilatildeo da ancestralidade negrardquo nos
termos do referido decreto o que natildeo depende de uma noccedilatildeo restrita de comprovaccedilatildeo
da ascendecircncia do grupo com negros escravizados no passado No entanto apesar
de formalmente este relatoacuterio ter caraacuteter antropoloacutegico as precauccedilotildees adotadas pelo
pesquisador em relaccedilatildeo a possiacuteveis contestaccedilotildees e contralaudos dentro do
procedimento administrativo no INCRA podem fazer com que haja um predomiacutenio de
argumentos de ordem histoacuterica os quais parecem ser mais persuasivos para os
diferentes atores implicados na rede que de dentro do Estado em um dado momento
de estabilizaccedilatildeo iraacute consolidar o territoacuterio do grupo (RIBEIRO CALABRIA 2013)
Dentre estes atores haacute um predomiacutenio da loacutegica juriacutedica a partir da qual o
relatoacuterio antropoloacutegico pode ser interpretado como prova pericial o que cria uma
expectativa da produccedilatildeo por parte da antropologia de um conhecimento cientiacutefico
objetivo (OrsquoDWYER 2009 p 177) Nesta relaccedilatildeo entre direito e antropologia o
conhecimento histoacuterico entendido numa chave positivista e factualista eacute convocado
a oferecer provas comprovatoacuterias que serviriam para atender as expectativas do
campo juriacutedico Opera-se desta maneira a partir de uma certa linguagem de
legalidade que estabelece linhas de interpretaccedilatildeo do passado e de clivagem do social
e do cultural gerando uma racionalizaccedilatildeo das memoacuterias da comunidade em um todo
coerente com base em significados e registros de comunicaccedilatildeo preacute-estabelecidos
Faz-se necessaacuterio para tanto o silenciamento do fluxo e da indeterminaccedilatildeo do
passado para que seja possiacutevel uma reduccedilatildeo taacutetica e palataacutevel aos instrumentos
juriacutedicos os quais parecem basear sua legitimidade em uma promessa pragmaacutetica de
criar equivalecircncia para a transaccedilatildeo entre interesses contraacuterios e incomensuraacuteveis
(como no caso de disputas por terras) a partir de um denominador comum Nisto em
parte reside sua hegemonia a despeito de que em si mesmos os criteacuterios juriacutedicos
natildeo satildeo garantidores de igualdade (COMAROFF COMAROFF 2011 p 145-151)
Para que fosse possiacutevel a realizaccedilatildeo da pesquisa e do trabalho de campo na
regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ndash fundamental para a estrutura narrativa
construiacuteda pelo relatoacuterio ndash algumas estrateacutegias foram adotadas A primeira foi a
151
divulgaccedilatildeo junto agraves organizaccedilotildees e instituiccedilotildees que executam trabalhos com as
comunidades quilombolas da regiatildeo de origem do grupo de uma mensagem
produzida pela comunidade em conjunto com os pesquisadores Esta mensagem
visou estabelecer contato com as comunidades quilombolas da regiatildeo e solicitou em
nome da lideranccedila do grupo em GuaiacuteraPR apoio para a localizaccedilatildeo dos parentes que
permaneceram em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Prezados Me chamo Adir Rodrigues dos Santos lideranccedila da comunidade quilombola Manoel Ciriaco localizada em Guaiacutera - PR Somos uma comunidade certificada pela Fundaccedilatildeo Palmares e estamos no processo de elaboraccedilatildeo do laudo antropoloacutegico para realizaccedilatildeo nasceram (sic) no municiacutepio de Santo Antonio do Itambeacute em Minas Gerais suas terras eram proacuteximas a um fazendeiro chamado Milton Gonccedilalves em Santo Antonio do Itambeacute No ano de 1981 o filho de seu Manoel Joatildeo Louriano dos Santos casado com Maria Conceiccedilatildeo das Dores e seu primo Aniacutesio Dioniacutesio de Paula (irmatildeo de Geraldo de Paula ambos filhos de Sebastiatildeo Vicente) vieram para Guaiacutera Paranaacute Manoel Ciriaco chegou em Guaiacutera em 1962 onde nascemos e vivemos ateacute hoje Fazendo pesquisa na internet encontramos no site httpwwwcpisporgbrcomunidadeshtmlbrasilmgmg_lista_comunidadeshtml as comunidades de Mata dos Crioulos Botafogo e Martins localizadas no municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute e as comunidades Ausente Bauacute Comunidade do Ocirc Ribeiratildeo dos Porcos e Rua Vila Nova no municiacutepio do Serro meu pai tinha memoacuteria desses dois municiacutepios Acreditamos que nessas comunidades haacute ancestrais nossos encontraacute-los contribuiria muito para nossa luta pelo reconhecimento e titulaccedilatildeo Caso vocecircs tenham maiores informaccedilotildees sobre essas comunidades relatoacuterios jaacute realizados ou qualquer pista que contribua aos nossos estudos pedimos que nos enviem (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 700 [p 07])
A articulaccedilatildeo entre os pesquisadores que elaboravam o relatoacuterio
antropoloacutegico e as comunidades quilombolas da regiatildeo mineira se deu a partir do
contato estabelecido com a equipe de assessoria juriacutedica quilombola que atua dentro
do curso de graduaccedilatildeo em direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Serro (PUC-
Serro) e que realiza haacute mais de cinco anos projetos de extensatildeo com estes grupos128
Este contato possibilitou o acesso de Cassius Cruz historiador da equipe aos
mediadores poliacuteticos das comunidades quilombolas da regiatildeo tornando possiacutevel a
realizaccedilatildeo de trabalho de campo em seis comunidades quilombolas nos municiacutepios
de Serro (ldquoAusentesrdquo ldquoBauacuterdquo ldquoVila Novardquo ldquoQueimadasrdquo e ldquoSanta Cruzrdquo) e de
128 Este campus da PUC estaacute localizado no municiacutepio de Serro que eacute vizinho a Santo Antocircnio do Itambeacute
e funciona como municiacutepio referecircncia por ter um porte maior com 20835 habitantes segundo o censo do IBGE de 2010 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316710ampsearch=minas-gerais|serro Acesso em 230915
152
Diamantina (ldquoMata dos Crioulosrdquo) nos periacuteodos de 05 a 13 de setembro e de 22 a 28
de outubro de 2012 (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do
INCRAPR p 721 [p 28])
Durante a pesquisa de campo foram levantadas possibilidades de viacutenculos de
parentesco entre a comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos e o casal
fundador da Comunidade Quilombola Vila Nova Os diagramas de parentesco dos
grupos mineiros bem como fotos e viacutedeos foram enviados para Guaiacutera para que fosse
possiacutevel a identificaccedilatildeo de viacutenculos de parentesco entre as comunidades
No final do mecircs de setembro apresentamos as fotografias viacutedeos e demais informaccedilotildees que conseguimos em Minas Gerais agrave comunidade de Manoel Ciriaco sendo este um momento chave da relaccedilatildeo estabelecida entre os pesquisadores e a comunidade pois se manifestaram muito felizes com os resultados apresentados e por termos conseguido encontrar e registrar informaccedilotildees que eles mesmos conheciam unicamente pela transmissatildeo oral (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 702-703 [p 09-10])
O segundo relatoacuterio argumenta ao longo de todo o capiacutetulo sobre a ldquoHistoacuteria
da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo que a memoacuteria coletiva
existente em Guaiacutera sobre sua regiatildeo de origem pocircde ser respaldada pela pesquisa
realizada em Minas Gerais a partir de elementos comuns ldquoseja com relaccedilatildeo aos
modos de produccedilatildeo habitaccedilatildeo religiosidade quer seja pela descriccedilatildeo de estrateacutegias
matrimoniais dos grupos familiaresrdquo (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 p 737 [p 44]) Uma das narrativas importantes que compotildee
a memoacuteria do grupo em Guaiacutera diz respeito ao uso provisoacuterio que seus antepassados
fizeram de lapas ou locas de pedra como moradia Como a pesquisa na regiatildeo mineira
pocircde demonstrar esta eacute uma praacutetica cultural mantida ateacute os dias de hoje em
comunidades quilombolas da regiatildeo de origem do grupo como registrado na atraveacutes
trazida a foto abaixo129 na Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos
(DiamantinaMG)
129 A importacircncia da evocaccedilatildeo desta imagem na construccedilatildeo do argumento do segundo relatoacuterio antropoloacutegico parece ser confirmada pela sua utilizaccedilatildeo tambeacutem na capa do documento
153
FIGURA 19 ldquolsquoLaparsquo utilizada ateacute os dias atuais como moradia quilombola na comunidade Mata dos CrioulosMGrdquo FONTE Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 726 [p 33]
Esta praacutetica parece estar relacionada segundo a anaacutelise do relatoacuterio agrave
situaccedilatildeo de precariedade em que viviam e agrave criatividade necessaacuteria para sobreviver a
partir do que a natureza lhes oferecia no periacuteodo escravagista e poacutes-escravagista Os
autores apontam assim como a utilizaccedilatildeo de lapas se insere em dinacircmicas de busca
por autonomia e liberdade em contraste com a experiecircncia de descendentes de
escravos que permaneceram agregados agraves fazendas formando comunidades
quilombolas que se caracterizam por uma baixa mobilidade A estrateacutegia de
mobilidade em um mesmo contexto regional associada a diferentes modos de
trabalho e ocupaccedilatildeo territorial tambeacutem conformaram comunidades quilombolas na
regiatildeo marcadas ldquoainda hoje por fluxos migratoacuterios internos e externos e uma rede
de parentesco que articula diversas dessas comunidadesrdquo (Procedimento
Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 724-725 [p 31 e 32])
A experiecircncia de mobilidade portanto teria significativa importacircncia na
trajetoacuteria de muitas famiacutelias negras que atualmente se reconhecem como quilombolas
na regiatildeo de Santo Antocircnio do Itambeacute e SerroMG Esta seria uma das caracteriacutesticas
154
marcantes da continuidade histoacuterica do grupo do Paranaacute com seus antepassados
dessa regiatildeo
A mobilidade espacial destes grupos jaacute tendia ser maior mesmo antes do iniacutecio do processo migratoacuterio que levaria famiacutelias a sair de Minas Gerais pois mantinham uma relaccedilatildeo mais tecircnue e por isso de mais autonomia frente ao contexto regional de arregimentaccedilatildeo de matildeo-de-obra uma vez que faziam das lapas suas moradias natildeo sendo assim dependentes das estruturas das fazendas (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 743 [p 50])
A continuidade histoacuterica estaria presente tambeacutem nessa busca de autonomia
nas relaccedilotildees de trabalho A pesquisa indicou a existecircncia de um padratildeo seguido por
geraccedilotildees e expresso na estrateacutegia atual dos membros da comunidade em Guaiacutera de
complementarem a renda obtida no proacuteprio territoacuterio com relaccedilotildees de trabalho
estruturadas fora da loacutegica patratildeo-empregado como diaristas arrendataacuterios ou
empreiteiros Esta opccedilatildeo garantiria a manutenccedilatildeo de autonomia ldquouma vez que natildeo
se tornam dependentes de patrotildees especiacuteficosrdquo (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 do INCRAPR p 745 [p 52])
Dentre as estrateacutegias identificadas pela pesquisa como aquelas que apontam
para a manutenccedilatildeo de referecircncias comuns com as comunidades quilombolas da
regiatildeo mineira estaacute segundo o relatoacuterio a continuidade da tendecircncia endogacircmica
que analisam atraveacutes de vaacuterios excertos genealoacutegicos apresentados no capiacutetulo
ldquoParentesco organizaccedilatildeo social e o tabu do lsquooutcestrsquordquo A importacircncia desta estrateacutegia
estaria na possibilidade de manutenccedilatildeo do sentimento de pertencimento a uma
origem comum que cria identidade e memoacuteria coletiva permitindo a continuidade das
dinacircmicas de organizaccedilatildeo social do grupo mesmo com a dispersatildeo territorial
Reforccedilada pelo contexto socialmente perifeacuterico e de preconceito racial no qual
o grupo se inseriu na regiatildeo de GuaiacuteraPR esta tendecircncia endogacircmica como
argumentam os autores eacute precedente e contribui para o fortalecimento de alianccedilas
intra-familiares enquanto heranccedila socioloacutegica que reforccedilou as fronteiras e a
capacidade de manutenccedilatildeo da coesatildeo social do grupo (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 do INCRAPR p 738 [p 45]) Deste modo esta capacidade
de manutenccedilatildeo de uma coletividade natildeo se baseia apenas na aacuterea que lograram
adquirir e que ocupam haacute sessenta anos mas tambeacutem decorre das relaccedilotildees de
parentesco e das formas proacuteprias de organizaccedilatildeo social (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 do INCRAPR p 736 [p 43])
155
As relaccedilotildees de parentesco atualmente estendem-se por uma rede que
transcende os limites territoriais desta comunidade Esta rede ampliada se expandiu
com os deslocamentos de famiacutelias que deixaram a comunidade em GuaiacuteraPR nas
uacuteltimas deacutecadas em decorrecircncia da diminuiccedilatildeo das aacutereas e das oportunidades de
trabalho na regiatildeo ligadas ao processo de mecanizaccedilatildeo da agricultura A estrutura do
segundo relatoacuterio aborda assim como aleacutem da importacircncia de uma territorialidade
especiacutefica construiacuteda em GuaiacuteraPR haacute uma visatildeo sobre os viacutenculos de
pertencimento ao grupo que se abre por esta rede de parentes (que estatildeo fora do
territoacuterio e que podem retornar com o processo de titulaccedilatildeo) o que gera uma
percepccedilatildeo de territorialidade mais ampla perpassada por referecircncias de memoacuteria
sobre a regiatildeo de origem do grupo no municiacutepio de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Neste sentido a literatura antropoloacutegica recente tem tematizado sobre a natildeo
exclusividade da relaccedilatildeo territorial enquanto criteacuterio de identificaccedilatildeo de grupos
quilombolas jaacute que ldquoo conceito de quilombo natildeo pode ser territorial apenas ou fixado
em um uacutenico lugar geograficamente definido historicamente lsquodocumentadorsquo e
arqueologicamente lsquoescavadorsquordquo (ALMEIDA 2011 p 45) A situaccedilatildeo de deslocamento
caracteriacutestica deste grupo de GuaiacuteraPR mas tambeacutem os outros casos de expulsatildeo e
de reassentamento demonstram como ldquomais do que uma exclusiva dependecircncia da
terra o quilombo faz da terra a metaacutefora que possibilita a continuidade do grupo ()rdquo
(LEITE FERNANDES 2006 p 11)
O segundo relatoacuterio corrobora esta leitura antropoloacutegica que natildeo se limita a
uma noccedilatildeo de territorialidade fixa para reconhecer direitos territoriais agraves comunidades
quilombolas Dessa forma a proposta de delimitaccedilatildeo territorial apresentada e
aprovada pela comunidade atraveacutes de discussatildeo em reuniatildeo especiacutefica indica
a) A recomposiccedilatildeo dos lotes adquiridos por Manoel Ciriaco dos Santos (aacuterea
de 102 alqueires paulistas dos quais 142 alq foi vendido e 45 estatildeo
arrendados atualmente) e por Geraldo dos Santos (51 alq paulistas
vendidos em 1993) a serem titulados enquanto territoacuterio quilombola
b) A aquisiccedilatildeo pelo INCRA de uma aacuterea complementar de aproximadamente
35 alqueires paulistas que eacute justificada devido ldquoagraves formas de relaccedilatildeo de
trabalho tradicionais da comunidade que diminuem com a mecanizaccedilatildeo
agriacutecola aos conflitos gerados pelo processo que inviabilizaram o acesso
156
a trabalhos na regiatildeo e ao consequente crescimento do ecircxodo de
membros da comunidade do territoacuteriordquo (Procedimento Administrativo
542000010752008-46 do INCRAPR p 802 [p 109]) Outro motivo para
a aquisiccedilatildeo complementar eacute a possibilidade de retorno de em meacutedia vinte
e seis famiacutelias as quais atualmente estatildeo vivendo em condiccedilotildees precaacuterias
em diferentes cidades Este eacute um dado referente ao nuacutemero aproximado
de famiacutelias que deixaram o territoacuterio em Guaiacutera e que segundo as
lideranccedilas manteacutem viacutenculos com a comunidade e retornariam caso
houvesse possibilidade O nuacutemero de trinta e trecircs famiacutelias (somando as
sete famiacutelias residentes na comunidade na eacutepoca da elaboraccedilatildeo do
relatoacuterio mais as vintes e seis com previsatildeo de retorno) embasou o caacutelculo
desta aacuterea adicional tendo tambeacutem como referecircncia os criteacuterios
agronocircmicos para a estimativa da necessidade de acreacutescimo de aacuterea de
cultivo que possa viabilizar a manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo fiacutesica e econocircmica
da comunidade
De acordo com a avaliaccedilatildeo do INCRA o segundo relatoacuterio antropoloacutegico
cumpriu com seus objetivos e caracterizou a comunidade e o territoacuterio ao qual o grupo
tem direito a partir de dados etnograacuteficos e histoacutericos suficientes segundo a Instruccedilatildeo
Normativa 592007 atualmente em vigor Enquanto a aacuterea do territoacuterio quilombola que
seraacute titulada corresponde aos dois lotes acima referidos a aacuterea complementar seraacute
obtida por meio de desapropriaccedilatildeo por interesse social conforme previsto na Lei
41321962 ficando a comunidade com o usufruto atraveacutes de Contrato de Concessatildeo
de Direito Real de Uso (CCDRU) O tamanho da aacuterea adicional necessaacuteria apesar de
jaacute previamente indicado no relatoacuterio dependeraacute conforme aponta o parecer
conclusivo SR(09)F4Nordm 0012014 do INCRAPR130 do nuacutemero de famiacutelias
cadastradas pelo INCRA que permaneceratildeo no territoacuterio bem como da discussatildeo
sobre os tipos de produccedilatildeo agriacutecola que seratildeo por elas desenvolvidas
Atualmente haacute um importante viacutenculo com as aacutereas adquiridas por Manoel
Ciriaco e Geraldo dos Santos apoacutes deacutecadas de ocupaccedilatildeo que embasa uma
130 De acordo com a ementa do documento trata-se do ldquoParecer conclusivo do Serviccedilo de
Regularizaccedilatildeo de Territoacuterios Quilombolas do INCRAPR sobre o Relatoacuterio Teacutecnico de Identificaccedilatildeo e Delimitaccedilatildeo (RTID) da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos com base na IN 572009rdquo (Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 1062-1067)
157
reivindicaccedilatildeo especiacutefica pelo retorno do territoacuterio ao tamanho da aacuterea inicial a qual
somava quinze alqueires e da qual soacute mantiveram em torno de 50 Aleacutem desta aacuterea
de ocupaccedilatildeo efetiva a possibilidade de ampliaccedilatildeo deste territoacuterio com a compra pelo
INCRA de uma nova aacuterea ndash com a qual o grupo quilombola natildeo possui uma relaccedilatildeo
preacutevia ndash demonstra a especificidade deste caso e a necessidade portanto de que
houvesse um procedimento diferenciado por parte deste oacutergatildeo federal
A demanda por um procedimento diferenciado de regularizaccedilatildeo territorial no
caso de GuaiacuteraPR foi necessaacuteria tendo em vista que a experiecircncia de ldquoresistecircncia agrave
opressatildeo histoacuterica sofridardquo organizou-se por meio da realizaccedilatildeo de deslocamentos
Tais movimentos visavam a concretizaccedilatildeo da autonomia liberdade e melhores
condiccedilotildees de vida para estas famiacutelias dada a insuficiecircncia das aacutereas na regiatildeo de
origem do grupo em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG por meio do acesso a novos
territoacuterios Deste modo percebe-se que a possibilidade de conquista de territoacuterios estaacute
no acircmago deste processo de resistecircncia social e que se em outros casos de grupos
quilombolas a resistecircncia consiste na permanecircncia em um mesmo territoacuterio
tradicional neste caso ela se constituiu pela experiecircncia de deslocamentos
Deve-se levar em conta ainda que estes deslocamentos iniciados em 1956
por estas famiacutelias negras da aacuterea rural de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG em direccedilatildeo
ao municiacutepio de CaiabuSP implicavam em seacuterios riscos tanto no caminho como no
processo de fixaccedilatildeo em um novo lugar onde teriam que encontrar novas
oportunidades de inserccedilatildeo e de trabalho As referecircncias a existecircncia de mais famiacutelias
relacionadas ao nuacutecleo de parentes do casal Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues
apontam para o fato de que esta linha de migraccedilatildeo da regiatildeo de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG ateacute a regiatildeo de Presidente PrudenteSP consistia em um movimento mais
amplo como rede de apoio para a migraccedilatildeo de novas famiacutelias No acircmbito deste fluxo
de deslocamentos a busca por direitos da comunidade de GuaiacuteraPR eacute construiacuteda
atualmente a partir da trajetoacuteria de deslocamentos do casal Manoel e Ana mas natildeo
se restringe a este nuacutecleo familiar Eacute principalmente a partir desta rede preacutevia de apoio
que os desafios da migraccedilatildeo puderam ser por eles enfrentados Como mencionado
no primeiro capiacutetulo a referecircncia de Manoel na regiatildeo paulista era seu primo de
primeiro grau Raimundo Constantino que saiu com esposa e filhos de Santo Antocircnio
do Itambeacute em 1949 sete anos antes de Manoel Tais desafios do processo de
158
migraccedilatildeo satildeo ainda mais significativos tendo em vista a existecircncia de contextos que
podem ser hostis para a inserccedilatildeo da populaccedilatildeo negra
Importante para finalizar este capiacutetulo destacar que foi o processo
conturbado de regularizaccedilatildeo territorial e reconhecimento da legitimidade da
reivindicaccedilatildeo identitaacuteria da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos que impulsionou
a realizaccedilatildeo de duas viagens de retorno para a regiatildeo de origem do grupo as quais
iremos abordar no capiacutetulo seguinte Com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico a partir
da pesquisa realizada pelo historiador Cassius Cruz na regiatildeo do SerroMG Adir
enquanto lideranccedila da comunidade de Guaiacutera comeccedila a ter expectativas de conhecer
a regiatildeo de origem de sua famiacutelia buscar os parentes com quem perderam o contato
pesquisar mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria de seus antepassados A realizaccedilatildeo
desta pesquisa de mestrado mostrou-se como oportunidade de aprofundar tal
pesquisa a partir dos caminhos apontados pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico tendo
em vista que jaacute havia um primeiro levantamento de dados e contatos na regiatildeo de
origem do grupo
159
3 ldquoEacute COMO SE NOacuteS VOLTASSE A PAacuteGINA DA NOSSA VIDA DO COMECcedilOrdquo
31 A ldquoVIAGEM DA VOLTArdquo131
Se no primeiro capiacutetulo destacamos a relevacircncia das dinacircmicas de
movimento para a compreensatildeo da emergecircncia identitaacuteria quilombola em GuaiacuteraPR
eacute fundamental neste momento pontuar que a centralidade dos deslocamentos na
trajetoacuteria do grupo natildeo nos levou a recorrer a uma ideia de ldquomobilidaderdquo132 pois este
conceito poderia sugerir que haacute uma constacircncia ou uma facilidade em se realizar
deslocamentos por parte dos membros do grupo o que de fato natildeo ocorre Para que
se consiga visualizar como a trajetoacuteria do grupo eacute perpassada pelo movimento faz-se
necessaacuteria uma perspectiva de longa duraccedilatildeo considerando que no presente como
observei durante o trabalho de campo haacute uma possibilidade muito limitada de
deslocamentos em decorrecircncia das dificuldades financeiras Viajar para visitar os
parentes eacute sempre um plano mas dificilmente sobram recursos para concretizaacute-lo
A dificuldade de deslocamento comeccedila inclusive dentro do proacuteprio municiacutepio
pois os quilombolas natildeo tecircm acesso a transporte puacuteblico que chegue proacuteximo agrave
comunidade e ateacute 2012 contavam apenas com um carro utilitaacuterio antigo em uma
comunidade com em meacutedia sete famiacutelias Na eacutepoca em que eu atuei como assessora
juriacutedica no Ministeacuterio Puacuteblico do Estado do Paranaacute pude contribuir para o
encaminhamento de um pedido realizado pela Associaccedilatildeo Comunidade Negra Manoel
Ciriaco dos Santos (ACONEMA) junto agrave Poliacutecia Federal de Foz do Iguaccedilu133 visando
agrave doaccedilatildeo de um veiacuteculo para a associaccedilatildeo Tal pedido foi embasado na necessidade
da comunidade de dispor de meios para a realizaccedilatildeo das entregas de alimentos
abrangidas pelo contrato do Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos (PAA)134
131 Tiacutetulo homocircnimo ao trabalho de Oliveira Filho ldquoA Viagem da Volta reelaboraccedilatildeo cultural e horizonte
poliacutetico dos povos indiacutegenas do Nordesterdquo (OLIVEIRA FILHO 1994) 132 Este termo eacute utilizado no segundo relatoacuterio antropoloacutegico para destacar a importacircncia da presenccedila de deslocamentos na trajetoacuteria histoacuterica do grupo 133 As ldquoentidades sem fins lucrativosrdquo podem solicitar doaccedilotildees de mercadorias apreendidas pela Poliacutecia
Federal devendo constar na solicitaccedilatildeo entre outros requisitos formais a justificativa e a finalidade do pedido 134 Dentre as entidades que atualmente recebem a doaccedilatildeo de alimentos conforme o contrato que a
comunidade quilombola eacute responsaacutevel destaca-se como mencionado no primeiro capiacutetulo treze tekohas (aldeias avaacute-guaranis) de Guaiacutera e do municiacutepio vizinho Terra Roxa Esta parceria com os grupos indiacutegenas eacute fruto da articulaccedilatildeo direta entre Adir e os caciques
160
Com o recebimento da doaccedilatildeo de uma camionete ldquosilveradordquo com trecircs
lugares na frente e uma carroceria ampla e fechada a execuccedilatildeo do PAA na
comunidade foi viabilizada em termos concretos com condiccedilotildees para o transporte da
produccedilatildeo agriacutecola o que era uma demanda muito urgente para as famiacutelias
quilombolas Esta poliacutetica puacuteblica de seguranccedila alimentar se constituiu como uma
importante fonte de renda na comunidade nos uacuteltimos anos mesmo tendo em vista a
demora na realizaccedilatildeo dos pagamentos por parte do governo que natildeo lhes garante
uma renda mensal135 Neste contexto os programas de assistecircncia e previdecircncia
social como aposentadoria e Bolsa Famiacutelia136 proporcionam uma complementaccedilatildeo
econocircmica considerada pelos quilombolas como muito necessaacuteria Os quilombolas
realizam tambeacutem a comercializaccedilatildeo de seus produtos como verduras legumes
raiacutezes frutos temperos animais de pequeno porte e tambeacutem milho e soja
Atualmente trecircs pessoas trabalham fora da comunidade a esposa e a enteada de
Adir na lanchonete do posto de gasolina localizado na rodovia em frente agrave entrada
para o bairro rural Maracaju dos Gauacutechos e Luciano ndash casado com Cleusimar filha
de Zeacute Maria ndash que tambeacutem trabalha de auxiliar de limpeza no mesmo posto
O territoacuterio atualmente de 85 alqueires eacute considerado por eles como
insuficiente para as sete famiacutelias que tiram seu sustento da produccedilatildeo agriacutecola
Segundo Adir o ideal seria cinco alqueires por famiacutelia no miacutenimo Uma das principais
demandas somada agrave necessidade de ampliaccedilatildeo do territoacuterio eacute o acesso a poliacuteticas
puacuteblicas que possibilitem uma fonte de renda gerada na proacutepria comunidade
Pleiteiam assim a construccedilatildeo de um barracatildeo onde sonham com a instalaccedilatildeo por
exemplo de uma cozinha comunitaacuteria137 Deve-se levar em conta ainda que a
135 O limite anual do valor de repasse do Ministeacuterio do Desenvolvimento Social oacutergatildeo responsaacutevel pelo
PAA na modalidade de ldquoDoaccedilatildeo Simultacircneardquo ndash acessada pela comunidade quilombola ndash eacute de ateacute R$ 65 mil por ano por agricultor 136 O ldquoBolsa Famiacuteliardquo segundo a paacutegina virtual do Governo Federal ldquoeacute um programa de transferecircncia
direta de renda direcionado agraves famiacutelias em situaccedilatildeo de pobreza e extrema pobreza em todo o Paiacutes de modo que consigam superar a situaccedilatildeo de vulnerabilidade e pobrezardquo Disponiacutevel em httpwwwcaixagovbrprogramas-sociaisbolsa-familiaPaginas Acesso em 041115 137 A solicitaccedilatildeo da comunidade de que a prefeitura construa este barracatildeo foi questionada pela
administraccedilatildeo municipal em decorrecircncia de a aacuterea da comunidade consistir em uma propriedade privada e natildeo ter sido realizada ainda a titulaccedilatildeo quilombola conforme me relatou Adir No entanto de acordo com a Portaria Interministerial (Ministeacuterio do Planejamento Orccedilamento e Gestatildeo Ministeacuterio da Fazenda e Controladoria Geral da Uniatildeo) nordm 507 de 2011 artigo 39 sect2ordm inciso III aliacutenea ldquoardquo o municiacutepio tem respaldo para a construccedilatildeo de uma benfeitoria ldquopor interesse puacuteblico ou socialrdquo na comunidade que eacute certificada pela Fundaccedilatildeo Cultural Palmares e que estaacute em processo de regularizaccedilatildeo territorial pelo INCRA A referida portaria estaacute disponiacutevel em httpswwwconveniosgovbrportalarquivos1_Portaria_Interministerial_507_24_11_2011_e_alteracoes_Dezembro_de_2013pdf Acesso em 091015
161
situaccedilatildeo econocircmica da comunidade se agravou muito apoacutes o conflito com os vizinhos
em decorrecircncia do qual natildeo satildeo mais contratados para trabalharem nas propriedades
do entorno atividade que haacute muitos anos realizavam na regiatildeo
Com esta breve descriccedilatildeo das dificuldades de geraccedilatildeo de renda das famiacutelias
quilombolas eacute possiacutevel compreender as limitaccedilotildees que encontram para se
deslocarem mesmo que seja para visitas a parentes que moram proacuteximos De acordo
com o segundo relatoacuterio antropoloacutegico produzido pela empresa Terra Ambiental
() satildeo no miacutenimo 43 indiviacuteduos que possuem relaccedilatildeo de parentesco direto com os atuais moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo Manoel Ciriaco dos Santos e vivem em cidades localizadas em um raio de no maacuteximo 200 quilocircmetros sendo que desses 35 vivem em um raio inferior a 100 quilocircmetros da comunidade Segue uma relaccedilatildeo dos municiacutepios e nuacutemero de indiviacuteduos cujos viacutenculos de parentesco foram identificados
(Procedimento Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 751[p 58])
Dentro da rede ampliada de parentesco138 dos quilombolas de GuaiacuteraPR um
local muito significativo e mais afastado em relaccedilatildeo agrave comunidade eacute a regiatildeo de
Presidente PrudenteSP por onde as famiacutelias que saiacuteram de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG passaram tendo vivido no municiacutepio de CaiabuSP entre as deacutecadas de
19501960 antes de se fixarem em GuaiacuteraPR e para onde retornaram os irmatildeos mais
velhos Olegaacuterio (78) Jovelina (73) Joatildeo Loriano (71) e Eurides (65) O municiacutepio de
Presidente PrudenteSP fica a 448 km de Guaiacutera e o trajeto demanda um investimento
de em meacutedia duzentos reais para passagens rodoviaacuterias de ida e volta por pessoa
Se este trajeto eacute de acesso difiacutecil para os quilombolas de GuaiacuteraPR o que
falar entatildeo do anseio reforccedilado pelos questionamentos colocados pelo conturbado
processo de titulaccedilatildeo em tracircmite no INCRA de ir ateacute Minas Gerais para que
138 Quando nos referimos a parentesco natildeo estamos falando apenas do parentesco genealoacutegico mas
em um sentido mais amplo que inclui relaccedilotildees por exemplo de compadrio (ARANTES 1975)
Municiacutepio Nordm Indiviacuteduos
Terra Roxa- PR 22
Assis Chateaubriand- PR 6
Satildeo Jorge do Patrociacutenio - PR 4
Guaraniaccedilu ndash PR 3
Catanduvas- PR 3
Guaiacutera- PR 2
Eldorado ndash MS 2
Cascavel- PR 1
162
pudessem conhecer suas raiacutezes e reencontrar seus parentes mineiros Somando
apenas os valores das passagens rodoviaacuterias para poder ir e voltar de GuaiacuteraPR a
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG de ocircnibus percorrendo em meacutedia 3354 quilocircmetros por
terra (duas vezes o percurso de 1677 km139) o custo gira em torno atualmente de
setecentos reais por pessoa
Assim a contradiccedilatildeo apontada acima entre os deslocamentos que marcaram
a trajetoacuteria do grupo nos uacuteltimos sessenta anos e a condiccedilatildeo de difiacutecil mobilidade das
geraccedilotildees atuais tem uma chave de interpretaccedilatildeo comum a posiccedilatildeo socioeconocircmica
perifeacuterica do grupo A mesma condiccedilatildeo que os imobiliza por natildeo disporem atualmente
de recursos financeiros que permitam a realizaccedilatildeo de viagens eacute parte significativa
das causas que provocaram os movimentos de deslocamento das famiacutelias em busca
de melhores condiccedilotildees de vida no passado
Importante pontuar que se os deslocamentos que marcam a trajetoacuteria histoacuterica
da famiacutelia criaram por um lado uma situaccedilatildeo de inviabilidade do reencontro entre
parentes ndash jaacute que os que foram para GuaiacuteraPR perderam nas uacuteltimas deacutecadas
qualquer contato com os parentes que se mantiveram em MG ndash por outro lado tal
interrupccedilatildeo do contato natildeo significou uma ruptura de viacutenculos (GALIZONI 2002)140
Com base nos encontros proporcionados pelas duas viagens de retorno para Serro e
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG realizadas no acircmbito desta pesquisa em marccedilo e em
junho de 2015 foi possiacutevel perceber que houve uma atualizaccedilatildeo significativa dos laccedilos
e viacutenculos afetivos que estavam antes latentes
Natildeo soacute os viacutenculos foram mantidos mas como analisado pelo segundo
relatoacuterio antropoloacutegico houve um processo de permanecircncia de referecircncias culturais e
de memoacuterias comuns que continuaram mesmo agrave distacircncia e sem contatos
conectando os quilombolas de Guaiacutera a seus parentes em Minas Gerais Neste
sentido importante mencionar a contribuiccedilatildeo de Garcia Jr (1989) em sua pesquisa
com migrantes que saiacuteam da Paraiacuteba para o Sul na qual reflete sobre como tais
deslocamentos natildeo implicaram no abandono de suas formas de organizaccedilatildeo social
139 Este caacutelculo foi feito com base no trajeto que pode ser percorrido de ocircnibus conforme experiecircncia
da viagem realizada em marccedilo de 2015 de GuaiacuteraPR para UmuaramaPR de laacute para Presidente PrudenteSP ateacute Belo HorizonteMG Na capital mineira toma-se um ocircnibus para SerroMG e de onde
enfim chega-se em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG 140 Em seu estudo na regiatildeo do Alto Vale do Jequitinhonha muito proacutexima a regiatildeo aqui em questatildeo
Galizoni aponta como a migraccedilatildeo eacute um processo familiar e soacute muito raramente ocorre as pessoas que saiacuteram de sua regiatildeo de origem ldquorompem de vez com a famiacuteliardquo (GALIZONI 2002 p 569)
163
anteriores mas ao contraacuterio na sua manutenccedilatildeo com o objetivo de retorno para suas
aacutereas de origem no Nordeste141
No acircmbito deste processo de manutenccedilatildeo de viacutenculos ndash e do desejo de uma
reconexatildeo natildeo soacute simboacutelica e mnemocircnica mas tambeacutem fiacutesica com este lugar de
origem e com os parentes que laacute ficaram ndash a possibilidade de organizar a viagem de
volta que percorresse a trajetoacuteria de deslocamentos das famiacutelias surgiu das minhas
conversas com Adir durante o trabalho de campo em GuaiacuteraPR Ele havia
comentado comigo em vaacuterias ocasiotildees como gostaria de ter tido apoio por parte do
INCRA para acompanhar Cassius na pesquisa realizada em Minas Gerais durante a
elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico
Esta busca pelo contato com pessoas que compartilham a mesma
ldquocomunidade de lembranccedilardquo (HALBWACHS 2003) protagonizada por Adir aponta
para dois aspectos complementares do fenocircmeno eacutetnico a ldquoluta por reconhecimentordquo
e a ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo142 (ARRUTI 2006 p 44) No que tange agrave noccedilatildeo de
ldquoluta por reconhecimentordquo o que estaacute em questatildeo eacute a proacutepria autoidentificaccedilatildeo do
grupo como quilombola ldquopor meio da experenciaccedilatildeo comum de um desrespeito tiacutepico
e de sua traduccedilatildeo em uma identidade coletivardquo (ARRUTI 2006) As viagens de retorno
a Minas Gerais trouxeram agrave tona a compreensatildeo de que o caraacuteter coletivo de
desrespeito agraves famiacutelias que marca a reivindicaccedilatildeo do grupo em GuaiacuteraPR como
coletividade especiacutefica reflete-se na situaccedilatildeo de separaccedilatildeo e de dispersatildeo dos
parentes Trata-se de um sofrimento gerado pela impossibilidade de manutenccedilatildeo das
famiacutelias na regiatildeo de origem e de reproduccedilatildeo do modo de vida camponecircs enquanto
populaccedilatildeo negra que natildeo teve seu processo de cidadania garantido de forma plena
Esta ldquocomunidade de lembranccedilardquo abrange portanto uma noccedilatildeo mais ampla de
pertencimento por parte dos membros da comunidade quilombola de Guaiacutera no qual
141 Este tambeacutem eacute o caso do processo de mobilidade do povo indiacutegena Pankararu de Pernambuco
analisado por Arruti no qual grupos de famiacutelias transferiram seu local de morada por tempo indeterminado em especial para a cidade de Satildeo Paulo na favela Real Parque no bairro do Morumbi ldquoonde se desenha uma espeacutecie de reterritorializaccedilatildeo Pankararurdquo Neste caso a mediaccedilatildeo entre territoacuterio e identidade fruto da abstraccedilatildeo dos ldquodireitosrdquo gerada na modulaccedilatildeo com o Estado produz o sentido de um ldquoterritoacuterio imaterialrdquo como um espaccedilo poliacutetico e simboacutelico para os indiacutegenas Se o territoacuterio eacute acionado como referecircncia fundamental natildeo eacute percebido no entanto como moldura e limitaccedilatildeo de modo que pode se abrir ldquopara o vasto exterior da identidade Pankararu onde a dicotomia do ser natildeo ser tem um caraacuteter mais pendular que geomeacutetricordquo (ARRUTI 1996 p 166-159) 142 A noccedilatildeo de ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo eacute retomada a partir das discussotildees de Taylor e de ldquoluta por reconhecimentordquo a partir de Honneth (ARRUTI 2006)
164
estatildeo englobados o local de origem de Manoel Ciriaco e os demais locais de dispersatildeo
do grupo familiar nos processos de deslocamento ao longo das uacuteltimas deacutecadas
O comentaacuterio de Adir em uma conversa com as duas senhoras que
encontramos morando em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ndash D Regina (77) e D Zulmira
(73) cunhadas de Seu Joatildeo Loriano (71) filho de Manoel Ciriaco ndash eacute muito enfaacutetico
a respeito desta forma de compreensatildeo da histoacuteria familiar Tal conversa ocorreu no
final da primeira viagem realizada em marccedilo de 2015 durante a gravaccedilatildeo de um viacutedeo
no qual Adir conta para elas o que tinha ocorrido em nosso percurso e comenta sobre
o significado da viagem para ele e para a comunidade Manoel Ciriaco dos Santos
Esse lugar onde a gente mora hoje eacute uma comunidade reconhecida pela Fundaccedilatildeo Cultural dos Palmares Uma comunidade que hoje eu represento que natildeo eacute tatildeo grande porque as pessoas estatildeo espalhadas como se fosse aqui tambeacutem espalhados pra todo canto Por que no passado essas pessoas natildeo teve oportunidade de ficar junto e de viver junto e essa lembranccedila ficasse de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo mas todo mundo tivesse o seu espaccedilo Porque se a gente falar na eacutepoca da escravidatildeo noacutes somos de uma eacutepoca da escravidatildeo uma escravidatildeo passada onde a gente natildeo adquiriu nada nem o nosso nome E isso tudo passava na minha cabeccedila e eu lembrava e falava assim ldquoMeu Deusrdquo
O desejo dos quilombolas de GuaiacuteraPR de encontrarem seus parentes em
sua regiatildeo de origem e de poderem ldquovoltar a paacutegina da nossa vida do comeccedilordquo como
na expressatildeo utilizada por Adir que serve de tiacutetulo a este capiacutetulo inscreve-se em
uma dinacircmica dupla que abrange uma dimensatildeo poliacutetica vinculada ao processo de
regularizaccedilatildeo territorial da comunidade e um significado familiar e afetivo muito
intenso A mobilizaccedilatildeo de Adir em torno da realizaccedilatildeo desta viagem inicia-se pelo
anseio de subsidiar a consolidaccedilatildeo da imagem do grupo na esfera puacuteblica ndash o que
pode ser compreendido por meio da noccedilatildeo de ldquopoliacutetica de reconhecimentordquo (ARRUTI
2006) ndash jaacute que tal imagem da comunidade foi abertamente questionada pelo primeiro
relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo durante o processo de regularizaccedilatildeo territorial pelo
INCRA ainda em tracircmite
Na leitura de meus interlocutores(as) sobre tais demandas externas de
legitimaccedilatildeo entendiam que se o segundo relatoacuterio antropoloacutegico havia demonstrado
a continuidade histoacuterica entre a comunidade de GuaiacuteraPR e as comunidades
quilombolas da regiatildeo mineira de um modo mais amplo apenas o retorno dos
proacuteprios quilombolas agrave regiatildeo ndash percorrendo a trajetoacuteria de deslocamentos da famiacutelia
ndash poderia proporcionar-lhes mais referecircncias sobre a histoacuteria de seus antepassados
165
assim como a retomada das relaccedilotildees com os parentes apoacutes anos sem contato Os
laccedilos da comunidade em GuaiacuteraPR com este passado ldquoprecisam ser produzidos hoje
atraveacutes da seleccedilatildeo e recriaccedilatildeo de elementos da memoacuteriardquo (ARRUTI 1997 p 23)
recriaccedilatildeo esta que passa pela ideia de ldquoorigemrdquo143 e de ldquoretornordquo
Em sua anaacutelise sobre o processo de emergecircncia identitaacuteria dos povos
indiacutegenas no Nordeste144 Oliveira Filho lanccedilou matildeo da metaacutefora da ldquoviagem da voltardquo
que eacute parte de uma poesia de Torquato Neto sobre a narrativa de um migrante
nordestino que deseja retornar agrave terra de origem ldquodesde que saiacute de casa trouxe a
viagem da volta gravada na minha matildeo enterrada no umbigo dentro e fora assim
comigo minha proacutepria condiccedilatildeordquo (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64) Com o uso desta
expressatildeo Oliveira Filho destaca as dimensotildees constitutivas da etnicidade no que
tange agrave trajetoacuteria histoacuterica do grupo social que natildeo anula mas ateacute mesmo reforccedila o
sentimento de referecircncia agrave origem (OLIVEIRA FILHO 1998 p 64)
Os quilombolas de GuaiacuteraPR assim como os povos indiacutegenas no
Nordeste145 natildeo se encaixam nas representaccedilotildees difusas da identidade que
reivindicam Tendo em vista esta descontinuidade gerada em grande parte pela
condiccedilatildeo diaspoacuterica da trajetoacuteria coletiva de reterritorializaccedilatildeo destas famiacutelias
quilombolas a necessidade que sentiram de buscar referecircncias histoacutericas para
dialogar com uma demanda de ldquoorigemrdquo somada a um desejo interno ao grupo deram
para a expressatildeo da ldquoviagem da voltardquo um sentido natildeo soacute metafoacuterico de etnogecircnese
como tambeacutem um sentido literal de regresso No contexto conturbado do
procedimento de regularizaccedilatildeo do grupo em tracircmite no INCRA a volta agrave regiatildeo de
origem se tornou necessaacuteria para o reconhecimento de uma identidade negra singular
que os legitimasse como quilombolas Este processo de retorno se iniciou com a
143 Este reinvestimento nas memoacuterias estava tambeacutem referenciado na busca por ldquotraccedilos culturais que
sirvam como os ldquosinais externosrdquo reconhecidos pelos mediadores e o oacutergatildeo que tem a autoridade de nomeaccedilatildeordquo (ARRUTI 1997 p 23) A identificaccedilatildeo destes ldquosinais externosrdquo da etnicidade remontam ao acionamento da ideia de ldquoorigemrdquo que estaacute na base do conceito de ldquoremanescentesrdquo utilizado pela Constituiccedilatildeo Federal para reconhecer direitos territoriais aos ldquoremanescentes das comunidades de quilombosrdquo no artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias (ADCT) 144 O conceito de ldquoremanescenterdquo foi utilizado para se referir aos ldquoremanescentes indiacutegenasrdquo na regiatildeo
Nordeste ndash os quais passaram por um processo de retomada de tradiccedilotildees nas uacuteltimas deacutecadas e que satildeo percebidos como tendo pouca distintividade em relaccedilatildeo aos regionais (ARRUTI 1997) 145 Esta comparaccedilatildeo entre quilombolas e povos indiacutegenas no Nordeste estaacute relacionada agrave dificuldade
de ldquoprecisar os contextos sociohistoacutericos em que tais grupos se constituiacuteram e se consolidaram como ldquounidades discretasrdquo portadoras de um forte referencial eacutetnico e assim diferenciadas do contexto social mais amplordquo (BRASILEIRO SAMPAIO 2002 p 83)
166
elaboraccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico e se ampliou por meio das viagens
realizadas em marccedilo e junho de 2015 no acircmbito desta pesquisa de mestrado
Diante do exposto acima interessante ressaltar que estas viagens para Santo
Antocircnio do Itambeacute em 2015 foram precedidas por outras viagens de retorno que
segundo meus interlocutores(as) ocorreram na deacutecada de 1980 Eva filha de Geraldo
dos Santos que tambeacutem adquiriu um lote vizinho ao de Manoel relatou como era difiacutecil
juntar dinheiro para visitar os parentes em Minas e manter contato agrave distacircncia Contou-
me como sua matildee Antocircnia Domingues dos Santos que saiu de Minas Gerais para
morar em GuaiacuteraPR ficou mais de dezesseis anos sem ver a matildee dela Alexandrina
Moreira da Silva que permaneceu na regiatildeo mineira
Dandara E nesta eacutepoca mandava carta assim ou nem carta Eva Mandava nada natildeo sabia mais o endereccedilo deles natildeo sabia mais nada Dezesseis anos daiacute foi saber o endereccedilo Soacute uma vez depois que casou depois que ela veio aqui para o Paranaacute soacute essa vez ela foi na casa da matildee dela Dandara Ela contou como que foi Eva Ela falou que laacute era triste menina Laacute tava triste Falou que era tudo manual casinha tudo ruim as casinhas deles trabalho demais sofria demais era muito sofrido minha matildee falava que a terra era fraca lavoura natildeo saiacutea direito e quando ela falava pro pai e a matildee dela vir pra caacute (GuaiacuteraPR) meu vocirc falava que natildeo vinha pra caacute natildeo que ele natildeo ia largar a terra dele laacute natildeo Minha matildee falava ldquooh meu fio se ocecirc for laacute pro Paranaacute se ocecirc saber o tamanho das pranta que noacutes pranta o tamanho que fica a pranta aqui as pranta natildeo sai da terra baixinha assimrdquo ldquoNatildeo eu vou morrer aqui memo daqui eu natildeo saiordquo ele falou pra matildee A matildee falou que laacute era triste Dandara E ela viajou sozinha essa vez Eva Natildeo foi ela meu pai e meu cunhado o irmatildeo do Adir o Antocircnio Meu pai e o finado Antocircnio largou matildee laacute na casa da matildee dela Minha irmatilde tambeacutem foi irmatilde minha mais velha Iracema e foi a Cenira que era a caccedilula Cenira tinha acho que um ano e trecircs mecircs Daiacute meu pai largou matildee laacute e eles foi laacute na titia na Bahia Dandara Tem parente na Bahia tambeacutem Eva Natildeo eles foi laacute numa titia laacute neacute Dandara Quem que eacute titia Eva Assim eacute que benzia neacute titia matildee de santo noacutes falava titia Eles foi na casa dela pegou endereccedilo com a famiacutelia deles laacute Meu pai foi e meu cunhado o Antocircnio irmatildeo do Adir mais velho Dandara E seu pai jaacute tinha mais contato com a Umbanda
167
Eva Sim ele trabalhava tambeacutem em Umbanda O Antocircnio tambeacutem meu pai minha matildee tambeacutem trabalhava Tudo trabalhava na Umbanda
Em 1981 Antocircnia e seu marido Geraldo voltaram a Minas Gerais para
reverem seus parentes e foram acompanhados por Antocircnio filho de Manoel Ciriaco
Se em Guaiacutera passavam dificuldades quando se trata de Minas Gerais as memoacuterias
reforccedilam como a sobrevivecircncia era ainda mais complicada No entanto mesmo com
tamanha adversidade o avocirc de Eva Sebastiatildeo preferiu permanecer em Minas
Gerais reforccedilando a importacircncia do viacutenculo com seu lugar de origem No relato sobre
este retorno a Minas Gerais Eva destacou a viagem de Geraldo e Antocircnio que
aproveitaram a oportunidade e foram para a Bahia onde estaacute localizado o terreiro de
Umbanda em que Antocircnio fez sua iniciaccedilatildeo ritual
Nesta mesma viagem realizada em 1981 Antocircnio conseguiu encontrar seu
irmatildeo Joatildeo Loriano filho do primeiro casamento de seu pai que o havia deixado em
Minas aos cuidados da avoacute Izidora como mencionamos no primeiro capiacutetulo Segundo
nos contou Joatildeo Loriano146 Antocircnio comprou ateacute roupa para ele poder viajar pois ele
passava muita dificuldade na regiatildeo de origem de seu pai Quando chegou no Paranaacute
ele se considerou rico pois em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG soacute comiam coisa do
mato como tatu lagartixa e ateacute garrincha (passarinho bem pequeno) que eles
matavam e davam para os filhos comerem com purecirc de farinha Quando Joatildeo Loriano
encontrou o pai contou que sentiu tanta alegria que ateacute o pegou para danccedilar Entatildeo
o pai falou ldquosai pra laacute meu filhordquo mas Joatildeo se justificou dizendo que era de tanto amor
que sentia pelo pai que natildeo via haacute tantos anos Os demais irmatildeos contaram como o
pai tambeacutem estava feliz que fez uma festa para receber o filho
Depois que trouxe o irmatildeo Joatildeo Loriano Antocircnio voltou no ano seguinte para
Minas Gerais para buscar a mulher de Seu Joatildeo Maria das Dores e seus filhos que
passaram a morar em Guaiacutera no siacutetio de Manoel com os demais parentes Nesta
mesma viagem Antocircnio trouxe para o Paranaacute seu primo Aniacutesio filho de seu tio
paterno Sebastiatildeo Vicente que era irmatildeo de seu pai Em 1983 Antocircnio jaacute com a
experiecircncia adquirida nas viagens anteriores eacute quem leva Maria das Dores para
visitar sua famiacutelia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Quando retornam trazem com
146 Joatildeo Loriano atualmente mora em Presidente Prudente Esta fala foi registrada jaacute durante a viagem
passando por Presidente Prudente ateacute Minas Gerais em marccedilo de 2015
168
eles a esposa de seu primo Aniacutesio Ceciacutelia e seu filhos pois Aniacutesio morava em
GuaiacuteraPR desde 1982
No mesmo ano 1983 Antocircnio volta novamente agrave regiatildeo mineira acompanhado
agora de Joaquim com o intuito de reivindicarem a heranccedila e venderem a parte do
siacutetio de Izidora que cabia a seu pai Manoel e tambeacutem a heranccedila da matildee de Geraldo
Altina Segundo Joaquim relatou as parcelas hereditaacuterias seriam de respectivamente
onze e oito alqueires No entanto quando chegaram no siacutetio de Izidora relatam que
foram recebidos com desconfianccedila ldquoos homensrdquo (parentes) estavam armados e
falaram para eles que soacute passariam o documento da terra para Olegaacuterio o filho mais
velho de Manoel que havia morado laacute A regra local para transmissatildeo de heranccedila
parecia atribuir naquela eacutepoca apenas aos sujeitos que haviam morado no local o
direito de reivindica-la como no caso de Olegaacuterio o que natildeo se estendia aos seus
descendentes ou parentes colaterais como os irmatildeos Antocircnio e Joaquim
Por fim a uacuteltima visita realizada na deacutecada de 1980 ocorreu entre 1985 e 1986
quando Antocircnio acompanhou Ceciacutelia com os filhos de volta a Santo Antocircnio do Itambeacute
pois ela natildeo havia se adaptado agrave regiatildeo de GuaiacuteraPR e natildeo estava vivendo bem junto
a seu marido Aniacutesio segundo me contou Eva A famiacutelia de Ceciacutelia importante
destacar foi a uacutenica dentre os que se mudaram para o Paranaacute que voltou a viver em
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
A realizaccedilatildeo destas viagens em um periacuteodo de cinco anos aponta para como
na deacutecada de 1980 a condiccedilatildeo econocircmica da comunidade estava melhor147 As
viagens no entanto depois se interrompem por deacutecadas Com o falecimento de seu
Manoel a comunidade fica em uma situaccedilatildeo muito delicada financeiramente com as
diacutevidas deixadas por ele aleacutem da perda da referecircncia daquele que era o administrador
da economia familiar A mecanizaccedilatildeo da agricultura tambeacutem tem um impacto direto
sobre as dinacircmicas de trabalho da comunidade como jaacute destacado Atualmente
ressaltam como a necessidade de ldquopagar contasrdquo em contraste com um periacuteodo
anterior de maior autossuficiecircncia impactam diretamente sobre a renda familiar
32 O CAMINHO ATEacute MINAS GERAIS
147 Na eacutepoca produziam e comercializavam o algodatildeo plantado no proacuteprio siacutetio e em aacutereas arrendadas
possuiacuteam um mangueiratildeo de porco e Manoel adquirira um trator para ldquogradearrdquo (arar e sulcar) a terra
169
As anaacutelises de Oliveira Filho indicadas acima enfocam a relaccedilatildeo entre
pertencimento eacutetnico e territorialidade dando um peso central agrave dimensatildeo poliacutetica da
organizaccedilatildeo dos grupos sociais no acircmbito dos paracircmetros colocados pelo Estado e
do processo de territorializaccedilatildeo148 Se as reflexotildees deste autor nos ajudam a pensar
(a) o processo de emergecircncia identitaacuteria (b) a importacircncia atribuiacuteda ao viacutenculo com a
regiatildeo de origem e (c) a dinacircmica que a relaccedilatildeo com o Estado desempenhou nesta
organizaccedilatildeo poliacutetica do grupo a partir da reivindicaccedilatildeo territorial em GuaiacuteraPR
importante pontuar por outro lado que ndash com a realizaccedilatildeo das viagens de volta em
marccedilo e junho de 2015 da qual participaram cinco membros da famiacutelia149 ndash a ecircnfase
dada pelos quilombolas para a estruturaccedilatildeo do pertencimento identitaacuterio pareceu estar
muito mais centrada nas dinacircmicas do parentesco do que na noccedilatildeo de territorialidade
A relaccedilatildeo entre a pessoa e o grupo eacutetnico ndash que implica na sua possibilidade
de autorreconhecimento como quilombola ndash foi acionada por meio da mediaccedilatildeo das
relaccedilotildees de parentesco as quais saiacuteram fortalecidas neste percurso que conectou
parte significativa da rede expandida de famiacutelias Este enfoque no parentesco natildeo
minimiza no entanto a importacircncia da reivindicaccedilatildeo de ampliaccedilatildeo territorial em
GuaiacuteraPR que estaacute baseada inclusive como um dos principais argumentos na
possibilidade do retorno de parentes que estatildeo atualmente fora do territoacuterio e que
pelo viacutenculo familiar podem se autorreconhecer como quilombolas
Esta possibilidade foi estendida a parentes que encontraram na primeira
viagem e que sempre viveram na regiatildeo mineira Este convite para viver no territoacuterio
em GuaiacuteraPR foi apresentado por exemplo a D Ana Raimunda (87) irmatilde de Manoel
Ciriaco que encontramos morando no SerroMG e a Seu Daniel (80) primo de
primeiro grau de Ana Rodrigues (esposa de Manoel) que mora em Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG Seu Daniel ficou feliz com o convite pois mora com a filha o genro e o
neto em condiccedilotildees muito precaacuterias mas precisaria de suporte para que pudesse
148 Com o conceito de ldquoprocesso de territorializaccedilatildeordquo o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira Filho
afirma buscar se afastar da ideia de qualidade imanente consubstanciada na noccedilatildeo de territorialidade e deste modo critica as premissas de continuidade e de imemorialidade atribuiacutedas ao territoacuterio indiacutegena Destaca dentre os seus argumentos a frequecircncia com a qual os povos indiacutegenas passaram por processos de reterritorializaccedilatildeo no acircmbito do proacuteprio processo de colonizaccedilatildeo e defende que a avaliaccedilatildeo para a criaccedilatildeo de uma terra indiacutegena apresenta uma caracteriacutestica conjuntural (OLIVEIRA FILHO 1994ordf p 134) 149 Na primeira viagem para Santo Antocircnio do Itambeacute e SerroMG realizada em marccedilo de 2015 eu e
Cassius acompanhamos Adir e Geralda quilombolas de Guaiacutera aleacutem de Seu Joatildeo Loriano que mora atualmente em Presidente PrudenteSP Na segunda viagem em junho de 2015 eu e Cassius acompanhamos D Jovelina e D Maria das Dores que moram atualmente em Presidente PrudenteSP
170
realizar essa mudanccedila Pareceu-me que neste caso a possibilidade ficou no ar D
Ana como veremos no proacuteximo toacutepico em junho de 2015 foi morar com D Jovelina
em Presidente PrudenteSP a partir da viagem que fizemos para buscaacute-la em
SerroMG
Para que fosse possiacutevel realizar a primeira viagem em marccedilo de 2015 foi
fundamental o contato que eu jaacute possuiacutea com Cassius o historiador que desenvolveu
a pesquisa na regiatildeo durante a produccedilatildeo do segundo relatoacuterio antropoloacutegico Eu o
conheci quando trabalhava como assessora juriacutedica no Ministeacuterio Puacuteblico e ele
compunha o Grupo de Trabalho Cloacutevis Moura (GTCM) equipe que realizou o
levantamento das comunidades quilombolas no Paranaacute no periacuteodo de 2005-2010
Atualmente Cassius estaacute cursando doutorado em Ciecircncias Sociais na UNICAMP e
pesquisa justamente o tema da mobilidade e das redes sociais de parentesco
quilombola Um dos processos que passou a analisar em sua pesquisa de doutorado
com a realizaccedilatildeo das viagens a Minas Gerais foi o da comunidade quilombola Manoel
Ciriaco dos Santos
Propus para Cassius que organizaacutessemos juntos esta viagem e buscaacutessemos
recursos com as respectivas universidades agraves quais estamos vinculados UFPR e
UNICAMP para financiar a nossa ida em marccedilo de 2015 bem como de mais trecircs
pessoas Adir e Geralda do grupo que mora em GuaiacuteraPR e Joatildeo Loriano que mora
atualmente em Presidente PrudenteSP A importacircncia da ida de Seu Joatildeo Loriano foi
defendida por Adir e Geralda tendo em vista que ele foi o uacutenico filho de Manoel Ciriaco
que ficou em MG ateacute 1981 ano em que se mudou para GuaiacuteraPR Em 1993 Joatildeo
Loriano Olegaacuterio e Eurides se mudaram de GuaiacuteraPR para Presidente PrudenteSP
onde a irmatilde Jovelina jaacute morava desde 1986 Deste modo quando pensamos nosso
trajeto ateacute MG a proposta de Adir e de Geralda que nunca tinham ido ateacute laacute foi que
pudeacutessemos passar por Presidente PrudenteSP para que eles conversassem com
estes irmatildeos mais velhos com o objetivo de buscar mais informaccedilotildees sobre as
memoacuterias mineiras e sobre a histoacuteria da famiacutelia para subsidiar a pesquisa na regiatildeo
Ademais propuseram que Joatildeo Loriano pudesse continuar o caminho ateacute MG
conosco e ser uma espeacutecie de guia para a nossa viagem
A uacuteltima vez que Adir tinha conseguido visitar os parentes em Presidente
PrudenteSP havia sido antes da comunidade de GuaiacuteraPR ser reconhecida como
quilombola haacute nove anos e Geralda natildeo ia a Presidente Prudente haacute vinte anos
171
Deste modo percebe-se que ateacute com os irmatildeos que estatildeo no estado de Satildeo Paulo o
grupo de Guaiacutera tem dificuldade de manter contato presencial mas manteacutem contatos
frequentes por meio de telefone celular Adir comentou que estava sendo muito
oportuna esta visita pois ainda natildeo tinha tido condiccedilotildees de explicar para seus irmatildeos
sobre o momento atual do tracircmite do procedimento do INCRA que em breve realizaraacute
o cadastramento das famiacutelias que compotildee a comunidade quilombola segundo
indicaccedilatildeo a ser feita pelo proacuteprio grupo A viagem tambeacutem proporcionou uma
retomada de memoacuterias e de trocas de experiecircncias que em outras circunstacircncias
poderiam natildeo ser acionadas
Outro ponto importante na organizaccedilatildeo da nossa viagem eacute que a primeira ida
de Cassius agraves comunidades quilombolas da regiatildeo de origem de Manoel Ciriaco em
2012 viabilizou o contato com os professores do curso de direito da PUC-Serro
(Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica) os quais atuam com estes grupos e se
disponibilizaram a nos dar o apoio logiacutestico durante a nossa estadia Fomos
convidados em contrapartida a fazer parte de um evento realizado na universidade
com o seguinte tema ldquoSeminaacuterio de Introduccedilatildeo aos Direitos Eacutetnicos direito e conflitos
em territoacuterios quilombolasrdquo Eu Cassius e Adir participamos como palestrantes em
mesas do evento sendo que os dois trataram especificamente da histoacuteria da
Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santos
Neste subitem meu objetivo seraacute debater dados levantados a partir nesta
primeira viagem realizada entre os dias 28 de fevereiro a 13 de marccedilo de 2015 e no
subitem seguinte em relaccedilatildeo agrave segunda viagem derivada da primeira e realizada
entre os dias 05 e 08 de junho de 2015 A estrateacutegia por mim e por Cassius adotada
foi que os quilombolas fossem os protagonistas em todo o trajeto e que escolhessem
os caminhos a serem acionados tendo por base uma programaccedilatildeo preacutevia
estabelecida em parceria com nossos apoiadores da PUCSerro
321 A passagem por Presidente PrudenteSP e os irmatildeos mais velhos
No momento da chegada agrave rodoviaacuteria de Presidente PrudenteSP em um
saacutebado dia 28 de fevereiro Cassius perguntou para Adir como tinha sido a viagem de
GuaiacuteraPR ateacute ali e ele em resposta referiu-se agrave viagem de um modo mais amplo em
seu objetivo de chegar ateacute Minas Gerais
172
A viagem Cassius pra mim foi taacute sendo muito importante primeiro que eu vou rever todos os meus parentes quanto tempo que eu natildeo vejo mais os meus irmatildeos meus sobrinhos primos e segundo eacute aquela viagem para Minas Gerais que ela vai ser uma viagem muito importante para nossa vida principalmente para mim
A possibilidade de atualizaccedilatildeo das relaccedilotildees de parentesco era um dos
objetivos principais da viagem que estava dividida em duas etapas Presidente
PrudenteSP e a regiatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG A passagem por Presidente
PrudenteSP como mencionamos acima tinha como objetivo trocar experiecircncias
sobre as memoacuterias do tempo em que os irmatildeos mais velhos viveram em Minas Gerais
e convidar Seu Joatildeo Loriano para nos acompanhar pois ele foi o uacutenico irmatildeo que laacute
ficou morando ateacute os 37 anos Ao nosso convite seu Joatildeo respondeu ldquopode ficar
tranquilos que noacutes vamos rachar no mundo Falou comigo que eacute pra passear meu
filhordquo 150 A histoacuteria de Seu Joatildeo que foi sendo contada e detalhada durante a viagem
eacute central para compreender esta reconexatildeo da famiacutelia que estaacute no Paranaacute e no estado
de Satildeo Paulo com a regiatildeo de origem em Minas Gerais
Manoel Ciriaco antes de se casar com Ana Rodrigues era viuacutevo de Maria
Olinda com quem teve quatro filhos Luiza (que faleceu aos oito anos) Olegaacuterio
Jovelina e Joatildeo Loriano Maria Olinda foi criada pelo Padre Joviano um padre muito
estimado pela populaccedilatildeo de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG que o considera santo
Junto com ela mais trecircs irmatildes de criaccedilatildeo moravam na casa do padre ndash Cecilia
Geralda Estrelina e outra irmatilde de quem Seu Joatildeo natildeo se lembrou o nome Esta casa
ficava beirando o rio bem proacuteximo agrave Igreja Matriz Maria Olinda segundo nos contou
Seu Joatildeo e D Jovelina foi achada no mato pelo padre em um dia que ele ia a cavalo
rezar uma missa e quando ouviu um choro de bebecirc foi ver o que era A menina que
teria acabado de nascer havia sido deixada enrolada em uma coberta A pessoa que
a abandonara natildeo teria deixado pistas da trilha por onde passou
Quando Seu Joatildeo tinha um mecircs e sete dias sua matildee faleceu151 tendo ele
ficado aos cuidados de sua avoacute Izidora matildee de Manoel e de sua tia Ana Raimunda
150 Curioso notar que apesar da seriedade do propoacutesito da viagem ela eacute vista por Seu Joatildeo tambeacutem
como uma chance de diversatildeo atraveacutes do movimento o que se expressa na ideia de ldquopassearrdquo 151 Segundo Geralda Maria Olinda teria morrido por ter sido viacutetima de feiticcedilo Geralda contou que ela
falava demais e Maneacute a avisava para ter cuidado Um dia quando ela estava trabalhando serviram para ela aacutegua com uma folha Ela teria achado estranho mas tomou Depois passou um tempo descobriram por meio das entidades espirituais que era feiticcedilo mas jaacute natildeo tinha mais o que fazer para reverter o efeito ldquoEm Minas tem feiticeiro mesmordquo acrescentou Geralda
173
irmatilde de seu pai Seu Joatildeo ficou morando com avoacute Izidora quando Manoel saiu de
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG em direccedilatildeo ao estado de Satildeo Paulo em 1956 pois seu
pai natildeo teria tido coragem de o separar da avoacute Durante um certo periacuteodo Seu Joatildeo
comentou que eles tiveram contato com seu pai uma ou duas vezes por carta mas
quando foram mandar notiacutecia sobre o falecimento de Izidora natildeo sabiam mais seu
endereccedilo
Quando ocorreu o falecimento de sua avoacute Seu Joatildeo foi morar e trabalhar na
fazenda de Zinho Gonccedilalves e como ele frisou foi mais criado na fazenda do que em
casa Ele trabalhava com tropa levando cachaccedila e outros produtos pela regiatildeo Tinha
dia que ele falava para a esposa que natildeo ia levar marmita para ldquolargar o comecirc pra daacute
pros meus meninordquo Ele casou com 16 anos com D Maria das Dores que tinha a
mesma idade Segundo D Maria das Dores nos contou foi o fazendeiro que os ajudou
financeiramente para que pudessem casar e ldquoos vestiu dos peacutes agrave cabeccedilardquo
No Itambeacute Seu Joatildeo era conhecido como ldquoJoatildeo do Rosaacuteriordquo pois quando foi
fazer seu registro em Minas Gerais ndash como seu pai havia levado seu documento ndash ao
lhe perguntarem no cartoacuterio qual era seu sobrenome ele entatildeo respondeu ldquoAh potildee
Joatildeo do Rosaacuterio de qualquer jeitordquo Seu Joatildeo riu quando terminou de nos relatar esta
lembranccedila que fala de sua experiecircncia difiacutecil como rapaz que cresceu oacuterfatildeo da matildee
falecida e do pai do qual natildeo tinha notiacutecias Seu Joatildeo soacute saiu de Santo Antocircnio do
Itambeacute em 1981 quando tinha 37 anos como mencionamos acima Por toda essa
experiecircncia que Seu Joatildeo teve de anos de vida na regiatildeo a sua participaccedilatildeo na
viagem era de importacircncia central
Apesar de jaacute termos algum planejamento anterior boa parte das decisotildees
foram sendo tomadas ao longo do percurso A princiacutepio haviacuteamos pensado em passar
apenas o final de semana em Presidente PrudenteSP e embarcar jaacute na segunda-feira
para Minas Gerais No entanto Adir e Geralda optaram por estender a visita aos
irmatildeos e demais parentes e resolveram ir para SerroMG apenas na quinta-feira agrave
noite Isso tambeacutem porque Seu Joatildeo precisou de uns dias para se liberar e poder nos
acompanhar na viagem Eu e Cassius entatildeo decidimos ir antes na terccedila-feira agrave noite
para organizar junto aos professores da PUCSerro as questotildees relativas ao evento
que foi composto por duas mesas de palestras na sexta-feira agrave noite (0603) e no
saacutebado pela manhatilde (0703)
174
Para compreender a importacircncia atribuiacuteda por Geralda e Adir agrave estadia junto
aos irmatildeos mais velhos que moram em Presidente PrudenteSP deve-se destacar
que eacute a experiecircncia de ter participado do passado familiar em Minas Gerais que
parece ser um criteacuterio de distinccedilatildeo daqueles que satildeo tidos como capazes de fazer a
conexatildeo narrativa da histoacuteria atual do grupo com seu ldquomito de origemrdquo Trata-se ldquodos
depositaacuterios da histoacuteria mais idosos ldquotronco velhordquo lideranccedilas das parentelas
guardiotildees da histoacuteria da comunidaderdquo (MONBELLI BENTO 2006 p 24)152 Com o
processo de autoidentificaccedilatildeo como quilombolas e a reelaboraccedilatildeo da memoacuteria
coletiva os irmatildeos mais velhos ganham status como ldquoguardadores da memoacuteriardquo os
quais passaram a ldquodesempenhar um papel sem precedentes na vida do grupordquo
(ARRUTI 1997 p 23)
Aleacutem deste aspecto da pesquisa e levantamento das histoacuterias da famiacutelia Adir
e Geralda tinham como objetivo mais imediato rever os irmatildeos(atildes) cunhados(as)
sobrinhos(as) primos(as) que vivem atualmente na regiatildeo do municiacutepio paulista Joatildeo
Aparecido irmatildeo caccedilula de Adir e Geralda tambeacutem foi por mim e Cassius apoiado
financeiramente para que pudesse chegar ateacute Presidente PrudenteSP153 onde
atualmente residem sua ex-mulher Kelly e seus dois filhos Joatildeo Vitor (13) e Tauane
(16) A ex-mulher e os filhos de Joatildeo Aparecido moravam em GuaiacuteraPR ateacute 2011
quando Kelly perdeu seu emprego na escola municipal do Maracaju dos Gauacutechos
onde trabalhava com serviccedilo de limpeza e merenda Ela resolveu entatildeo morar em
Presidente PrudenteSP e ficar proacutexima de sua famiacutelia pois acreditava que teria mais
chances de conseguir um emprego jaacute que na comunidade a situaccedilatildeo de conflito com
os vizinhos aleacutem de gerar inseguranccedila para as famiacutelias fez com que as possibilidades
de trabalho diminuiacutessem Na eacutepoca Kelly chamou Joatildeo Aparecido para que a
acompanhasse na mudanccedila mas ele natildeo foi porque entendia que sua permanecircncia
no siacutetio em GuaiacuteraPR era importante para o projeto coletivo de comunidade que ele
conduz junto com os irmatildeos Adir e Joaquim Esta situaccedilatildeo entatildeo acabou gerando a
152 O par de categorias de parentesco ldquotronco velhordquo e ldquopontas de ramardquo presente na etnografia
realizada por Arruti junto aos Pankararu no estado de Pernambuco traduzem a distacircncia entre o grupo indiacutegena e seus antepassados considerados ldquoiacutendios purosrdquo sendo utilizadas para organizar as relaccedilotildees marcadas pela ideia de ldquomisturardquo de modo a criar um ldquofluxo diferencial de forccedila religiosa e legitimidaderdquo no sentido do ldquotronco velhordquo (ARRUTI 1996 p 64) 153 Soacute Joaquim dentre os irmatildeos que moram em GuaiacuteraPR natildeo foi para Presidente PrudenteSP pois algum deles tinha que ldquoficar cuidando de tudo no siacutetiordquo
175
separaccedilatildeo do casal Haacute dois anos Joatildeo Aparecido natildeo ia para Presidente PrudenteSP
e ficou este periacuteodo sem ver os filhos
O fato de dois filhos de Manoel Ciriaco chamarem-se Joatildeo ocorreu em razatildeo
de o pai ter dado ao seu filho caccedilula nascido em 1972 o nome de Joatildeo Aparecido
para lembrar-se do filho Joatildeo Loriano que havia ficado em Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG Segundo Adir nesta eacutepoca o pai natildeo tinha mais esperanccedila de encontraacute-
lo depois de dezesseis anos de separaccedilatildeo O reencontro para aliacutevio de Manoel
ocorreu nove anos depois do nascimento de Joatildeo Aparecido em 1981 quando Joatildeo
Loriano passou a viver com a esposa Maria das Dores e os seis filhos na terra do pai
em GuaiacuteraPR
FIGURA 20 O encontro entre os dois irmatildeos ldquoJoatildeordquo em Presidente PrudenteSP
Em Presidente PrudenteSP Cassius Adir Joatildeo Aparecido Geralda e eu
ficamos hospedados na casa de D Jovelina e Seu Davi Eles moram em um bairro
perifeacuterico do municiacutepio chamado ldquoAna Jacintardquo que fica a mais ou menos uma hora
de distacircncia do centro da cidade Seu Joatildeo Loriano e D Maria das Dores tambeacutem
moram no mesmo bairro assim como alguns filhos destes dois casais com suas
respectivas famiacutelias o que permite uma convivecircncia constante e uma rede de
176
solidariedade entre eles154 Destaca-se que duas das filhas155 de Seu Joatildeo ndash
Aparecida e Dulce ndash satildeo casadas com os filhos gecircmeos de sua irmatilde D Jovelina ndash
Damasio e Damasceno ndash exemplo da ocorrecircncia de casamento entre primos de
primeiro grau
Haviacuteamos chegado em Presidente PrudenteSP no saacutebado No dia seguinte
foi preparado um almoccedilo com churrasco que reuniu parte da famiacutelia que mora proacuteximo
do bairro ldquoAna Jacintardquo para comemorar a visita dos parentes de GuaiacuteraPR
FIGURA 21 Famiacutelia reunida em Presidente PrudenteSP na casa de D Jovelina
Neste almoccedilo celebrativo Cassius ensinou Adir a usar uma das trecircs cacircmeras
de viacutedeo que tiacutenhamos agrave disposiccedilatildeo Adir ficou muito animado em poder registrar seu
olhar sobre os momentos da viagem gravando conversas com os parentes paisagens
do caminho etc Durante todo o percurso boa parte das filmagens foram realizadas
por Adir que interpelava e entrevistava as pessoas conforme seus interesses e
154 Eacute possiacutevel perceber a presenccedila de caracteriacutesticas no cotidiano destas famiacutelias que remontam agrave sua
origem no meio rural e a uma trajetoacuteria que os distingue dos demais vizinhos mesmo morando em um bairro de uma grande cidade Por exemplo Seu Joatildeo Damasio e Damasceno filhos de Jovelina acertam com os proprietaacuterios de terrenos baldios do bairro a possibilidade de utilizarem a aacuterea para plantar garantindo em contrapartida a manutenccedilatildeo do terreno 155 Outra informaccedilatildeo relevante eacute que a filha mais velha de Seu Joatildeo Maria de Faacutetima dos Santos estaacute
haacute mais de quinze anos desaparecida e segundo nos informaram teria sumido em Campinas quando para laacute foi com o entatildeo marido Edison e perderam o contato Atualmente a famiacutelia tenta encontraacute-la
177
prioridades Este material tambeacutem eacute aqui analisado como fonte de pesquisa e registro
do trabalho de campo
Adir em mais de uma oportunidade durante a estadia em Presidente
PrudenteSP mostrou para seus parentes que eles fazem parte da luta quilombola da
comunidade em GuaiacuteraPR e reforccedilou como ele estava feliz em nesta viagem ir
buscar a raiz da histoacuteria da famiacutelia Em conversa na varanda da casa de D Jovelina
comentou sobre a trajetoacuteria do ldquopovo negrordquo desde o traacutefico de africanos ateacute a
experiecircncia do Quilombo dos Palmares Concluiu dizendo a seus primos
Vocecirc deve buscar neacute na internet hoje vocecirc consegue muita coisa os quilombos Quilombo de Palmares ver o tanto de negro que entrava no Brasil E o Cassius ele eacute professor pode explicar melhor do que eu e a Dandara tambeacutem que vocecircs estudam e eu natildeo estudo fico dentro da roccedila laacute Mas tudo o que das viagens dos encontros de tudo que eu jaacute vi na vida ateacute hoje estaacute guardado aqui Mais do que eu escrevi do que eu jaacute vi Aiacute que eu penso assim em buscar a histoacuteria do meu passado por isso que eu luto Que eu vou ateacute o fim Se eles natildeo me matar
Adir ressaltava assim a importacircncia de se mobilizarem para ldquomostrar pras
pessoas que noacutes somos negros e que tem que nos respeitarrdquo Identificava a presenccedila
de tal desrespeito por exemplo na falta de acesso ao estudo para a populaccedilatildeo negra
como no caso de Olegaacuterio Seu Joatildeo e D Maria das Dores que natildeo aprenderam a ler
e a escrever Ao mesmo tempo em que Adir afirmava seu intuito de ir ldquoateacute o fimrdquo com
esta busca era a proacutepria viagem que parecia estar lhe proporcionando um
fortalecimento de convicccedilotildees bem como da vontade de continuar a frente deste
processo de mobilizaccedilatildeo Eacute como se esta viagem ateacute Minas Gerais pudesse ser
comparada a uma peregrinaccedilatildeo na qual Adir estava a visitar os lugares ldquosagradosrdquo
da memoacuteria e da experiecircncia familiar e nesta jornada fosse descobrindo quem ele
mesmo eacute (TURNER 2008)
Outro encontro que ocorreu durante nossa estadia em Presidente
PrudenteSP foi com Olegaacuterio o filho mais velho de Manoel Atualmente a famiacutelia de
Olegaacuterio mora em um lote de oito alqueires que conquistaram haacute catorze anos no
ldquoAssentamento Palurdquo156 Este assentamento fica localizado na zona rural do municiacutepio
de Presidente BernardesSP no distrito de ldquoNova Paacutetriardquo proacuteximo a Presidente
PrudenteSP Olegaacuterio e Valdeniacutecio um de seus filhos que nos relatou esta histoacuteria
156 A ocupaccedilatildeo desta fazenda se deu pelo movimento ldquoBandeira Brancardquo que na eacutepoca tinha conflito
com o ldquoMovimento dos trabalhadores Rurais Sem Terrardquo (MST)
178
revezaram-se durante dois anos no periacuteodo de acampamento para conseguirem o
acesso agrave terra Os outros filhos de Olegaacuterio lhes ajudavam por exemplo com cestas
baacutesicas Segundo Valdeniacutecio quando Olegaacuterio e os filhos vieram para o estado de
Satildeo Paulo em 1993 seu pai continuou trabalhando com produccedilatildeo de farinha com a
qual jaacute lidava em GuaiacuteraPR No estado de Satildeo Paulo trabalhou com farinha mesmo
quando moravam na cidade mas era complicado segundo Valdeniacutecio por conta dos
vizinhos que se incomodavam com a fumaccedila Quando conseguiram o lote no
assentamento estruturaram a farinheira sendo que parte dela foi Olegaacuterio mesmo
que projetou Valdeniacutecio comentou que antes de mecanizar o processo de produccedilatildeo
era difiacutecil trabalhar com a farinha de mandioca Atualmente produzem em meacutedia
vinte sacos por dia
FIGURA 22 Valdeniacutecio explicando o funcionamento da farinheira
O caso de Olegaacuterio atualmente com setenta e sete anos eacute muito significativo
ao apontar para a busca ateacute agora bem-sucedida de se manterem na aacuterea rural e
reproduzirem um modo de vida autocircnomo dentro da tradiccedilatildeo de trabalho familiar
Valdeniacutecio nos mostrou o funcionamento da farinheira e explicou detalhadamente para
Joatildeo Aparecido e Adir os quais estavam muito interessados e admirados com a forma
de trabalho dos seus parentes Durante a conversa Valdeniacutecio se lembrou do tempo
que morava em GuaiacuteraPR e que laacute eles eram ldquomais de cento e poucos negros tudo
casa de coqueirordquo Frisou tambeacutem sua lembranccedila do preconceito racial que sofriam
no ldquoMaracajurdquo afirmando que quando eles passavam todos juntos os vizinhos
provocavam-lhes dizendo que formava uma ldquonuvem pretardquo e ia chover
179
Tivemos uma longa conversa com Olegaacuterio que saiu de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG com aproximadamente vinte anos de idade Ele nos contou que o siacutetio da
avoacute Izidora de dez alqueires fica em um lugar chamado ldquoQueimadasrdquo Na eacutepoca
nessa terra moravam as famiacutelias dos irmatildeos Manoel Ciriaco e Sebastiatildeo Vicente de
Paula Manoel trabalhava de ldquopuxar cana pra fazer rapadura cortava lenha
trabalhava na lavra tirando cristalrdquo Ele saiacutea para trabalhar longe e chegou a ir ateacute
Londrina no norte do Paranaacute em migraccedilatildeo sazonal Olegaacuterio contou que Manoel
quando saiacutea de Santo Antocircnio do Itambeacute para essas viagens a trabalho iaacute primeiro
ateacute Diamantina distante mais de cem quilocircmetros157 sendo que parte do percurso
eles caminhavam cortando o morro durante o dia todo Outra parte era feita no ldquopau
de ararardquo que eacute um tipo de caminhatildeo coberto de lona que transportava pessoas
Depois em Diamantina pegava o trem e continuava a viagem Quando a famiacutelia se
mudou para o estado de Satildeo Paulo e depois para o Paranaacute jaacute foram de ocircnibus
Olegaacuterio tambeacutem nos passou vaacuterias referecircncias de lugares e pessoas que estavam
relacionadas agrave famiacutelia na regiatildeo de origem e afirmou que em uma proacutexima
oportunidade ele tambeacutem gostaria de voltar para Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
A nossa passagem por Presidente PrudenteSP tambeacutem permitiu que fosse
gravado um viacutedeo de D Maria das Dores esposa de Seu Joatildeo Loriano mandando
uma mensagem para que se noacutes achaacutessemos os seus irmatildeos em Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG ldquoaqueles que tive vivordquo pudeacutessemos lhes mostrar o seu recado Quem
registrou a conversa com ela foi Adir
Adir E daiacute cumadi Maria o que a senhora manda falar noacutes encontrando os seus parentes em Minas Gerais
D Maria das Dores Oacute eu mando cumpadi Nadir muita lembranccedila um abraccedilatildeo pra cumpadi Erosino pra cumadi Regina pra cumadi Zulmira e com a famia E muitos anos de vida sauacutede pra eles quem tiver vivo
Adir E que mais de seus irmatildeos cumadi que a sra lembra
D Maria das Dores Quero recordaccedilatildeo e notiacutecia da Teresa cumadi Anita minha irmatilde Joaquim meu irmatildeo Geralda natildeo que essa taacute pra caacute e o menino que minha matildee criou eacute o Dudu
Adir Como eacute que era o nome de sua matildee cumadi
D Maria das Dores Luzia Eleoteacuteria da Silva
Adir E seu pai cumadi
157Em sua fala frisou a distacircncia em leacuteguas forma tradicional de mediccedilatildeo da regiatildeo
180
D Maria das Dores Bertolino Gino Domingo
Adir A sra lembra o lugar que a sra morava laacute e tudo
D Maria das Dores Santo Antocircnio do Itambeacute do Serro
Adir Era muito sofrido
D Maria das Dores Era sofrido nossa Senhora meu Deus A gente comia sem nada de gordura natildeo tinha nada de sal a gente fazia gordura desse bucho de boi eacute uma gordura muito ruim A fartura que tinha laacute era mandioca cana e cafeacute Minas Gerais E tambeacutem cheguei no Paranaacute o meu cunhado que Deus daacute bom lugar pra ele chegando no Paranaacute foi benccedila e alegria ()
Adir E eu tenho feacute em Deus cumadi junto com o marido da senhora que eacute meu irmatildeo o cumpadi Joatildeo a gente vai pisar naquele solo de Minas no mesmo lugar que a senhora morou quero que o cumpadi Joatildeo revecirc isso ai a gente vai filmar tudo isso eu tenho feacute em Deus que eu encontro ainda seus irmatildeos suas irmatildes todo esse pessoal que a senhora falou que taacute gravado aqui pra gente achar esse pessoal e a gente filmar tirar foto e trazer pra senhora Ver como eacute que taacute esse pessoal laacute
D Maria das Dores Ver como eacute que taacute laacute se taacute bom
Adir Saber notiacutecia que a gente perdeu notiacutecia de todo mundo
D Maria das Dores Perdemo notiacutecia Ana Raimunda tambeacutem
Adir Pois eacute perdemo tudo essa notiacutecia
Na fala de D Maria a anguacutestia da falta de notiacutecias se expressa na duacutevida de
natildeo saber quem ainda estaria vivo dentre os seus irmatildeos A possibilidade de superar
esta situaccedilatildeo eacute atribuiacuteda por ela a uma intercessatildeo divina pois concluiu a conversa
afirmando ldquoo negoacutecio eacute joelho no chatildeo jejum e oraccedilatildeordquo pois ldquoJesus vai na frenterdquo e eacute
quem pode abrir os caminhos que permitiratildeo este reencontro Como natildeo se
sensibilizar com o drama de uma separaccedilatildeo entre familiares que se estendeu por tanto
tempo por falta segundo eles mesmos afirmam de possibilidades de deslocamento e
manutenccedilatildeo do contato Agravequeles que saiacuteram da regiatildeo de origem eacute a quem caberia
o retorno pois para os que ficaram seria ainda mais difiacutecil saber como procuraacute-los
322 A chegada em SerroMG e a ida agrave Comunidade Quilombola Vila Nova
Geralda Adir e Seu Joatildeo fizeram o trajeto de Presidente PrudenteSP ateacute Belo
HorizonteMG de ocircnibus Na rodoviaacuteria de Belo Horizonte eu e Cassius combinamos
que o professor Ricardo Ferreira Ribeiro que atua nas aacutereas de antropologia e
sociologia no curso de direito da PUCSerro iria encontra-los e leva-los para Serro
aproveitando o trajeto que Ricardo jaacute faria para ir dar aula Conforme Adir destacou
181
foi muito importante terem conversado com o professor Ricardo durante a viagem ateacute
Serro um trajeto de 330 km que demora em meacutedia cinco horas de carro Neste
caminho como eacute possiacutevel recuperar por meio dos vaacuterios viacutedeos gravados por Adir o
professor Ricardo foi lhes mostrando os elementos do ambiente os rios contando e
tambeacutem ouvindo histoacuterias sobre a regiatildeo
Ele lhes contou por exemplo sobre a comemoraccedilatildeo em 2014 dos cento e
cinquenta anos da articulaccedilatildeo do movimento de revolta dos escravos desde Serro a
Diamantina que se reuniriam no intuito de acabar com a escravidatildeo No entanto
dentro do movimento teve um traidor que denunciou o esquema e a guarda acabou
prendendo as lideranccedilas da revolta Adir em resposta comentou ldquotem histoacuteria esse
Serro heinrdquo Quando laacute chegaram Adir e Geralda que nunca tinham estado ali
puderam se encantar com a arquitetura do municiacutepio caracteriacutestica das vilas
setecentistas mineiras o que lhes remetia ainda mais a este passado familiar e
regional ndash a partir do qual fundamentam a reivindicaccedilatildeo identitaacuteria como quilombolas
em GuaiacuteraPR158
Se no Serro tem histoacuteria ateacute da organizaccedilatildeo de uma revolta de escravos uma
forma de resistecircncia negra direta enquanto motim as memoacuterias familiares sobre a
vida nesta regiatildeo conforme apontou Geralda indicam uma resistecircncia cotidiana e
silenciosa enquanto processo de sobrevivecircncia (FERNANDES BUSTOLIN
TEIREIRA 2006 p134) A moradia em ldquolocardquo ou ldquolapardquo de pedra eacute um importante
siacutembolo dessa resistecircncia onde se abrigavam de modo precaacuterio nos locais oferecidos
pelo ambiente Geralda contou por exemplo que sua avoacute materna Maria Bernarda
sofreu muito pois foi abandonada pelo marido com cinco filhas mulheres dentre elas
Ana Rodrigues sua matildee A famiacutelia soacute de mulheres passou fome Ana contava para
Geralda que cansou de comer um tipo de feijatildeo do mato que elas natildeo sabiam mas
era veneno comeram e adoeceram
Ao chegarem no Serro159 iniciava para Geralda Adir e Joatildeo o processo de
busca pelos parentes Jaacute na primeira tentativa encontraram um neto de D Zulmira
158 O municiacutepio do Serro foi o primeiro municiacutepio brasileiro cujo patrimocircnio arquitetocircnico e urbaniacutestico
foi tombado pelo Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional (IPHAN) ainda em 1938 Disponiacutevel em httpwwwserromggovbrconheC3A7a-o-serrohtml Acesso em 161015 159 Serro com 20835 habitantes159 eacute um municiacutepio que fica distante 27 km de Santo Antocircnio do Itambeacute
que tem uma populaccedilatildeo de 4135 habitantes conforme o Censo do IBGE de 2010 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) disponiacuteveis em httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=316710ampsearch=minas-gerais|serro
182
cunhada de Seu Joatildeo Loriano e irmatilde de D Maria das Dores Conforme Adir relatou
quando gravamos um viacutedeo dele contando como tinha sido a viagem para D Regina
e D Zulmira as irmatildes de D Maria das Dores que encontramos em Santo Antocircnio do
Itambeacute
Chegando no Serro eu queria andar eu soacute pensava em andar andar Via as pessoas eu mais cumpadi Joatildeo perguntava ldquoseraacute que eacute nosso parente Eacute nosso parenterdquo Eu mais cumpadi Joatildeo corria laacute e perguntava Ele ia na frente porque jaacute conhecia Minas Gerais 34 anos que saiu daqui E a gente ficava nessa eu quero encontrar um parente E ele falava ldquose noacutes encontrar dois encontramo o restordquo E dito e feito Primeira pessoa que noacutes se deparemo quando saiacute do local onde a gente tava num hotel em frente a um posto de gasolina tinha um barzinho Eu falei ldquoCumpadi Joatildeo eu quero tomar uma cachaccedila de Minas Geraisrdquo porque meu pai falava muito nessa cachaccedila e eu queria tomar uma cachaccedila () Comeccedilemo a encontrar uma pessoa que dizia que era parente de vocecircs aqui das senhoras E a gente ficou naquela esperanccedila noacutes tem que encontrar Ele falou ldquoNatildeo vou soacute domingo pra laacuterdquo E noacutes fiquemo naquela
Geralda me contou sobre como ocorreu este encontro pois eu e Cassius
tiacutenhamos ido no evento na PUC enquanto eles tinham ficado descansando no hotel
pois haviam chegado em SerroMG naquele dia sexta-feira 06 de marccedilo depois de
uma longa viagem Geralda ressaltou que o rapaz Julio ndash dono do bar que fica ao
lado do hotel onde estaacutevamos hospedados ndash comentou com eles que quando os viu
jaacute pressentiu que eram parentes Ficaram entatildeo sabendo que D Zulmira e D Regina
ndash irmatildes de D Maria das Dores de quem estavam agrave procura ndash ainda moravam em
Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
No outro dia de manhatilde Geralda comentou comigo que natildeo tinha dormido
durante a noite porque ficou se lembrando de sua matildee e de seu pai das coisas que
eles contavam principalmente que andavam por todos aqueles morros carregando
suas coisas em cima da cabeccedila e que era muito sofrido Geralda completou
lamentando todo este tempo que eles almejaram sem poderem retornar pois ficavam
esperando juntar um dinheiro para poder vir caccedilar os parentes Lembrou-se tambeacutem
que Manoel queria ter mandado buscar sua irmatilde Ana Raimunda mas que nunca lhe
sobrava dinheiro
Fomos todos juntos entatildeo ao segundo dia do seminaacuterio na PUC A
participaccedilatildeo de Geralda Adir e Seu Joatildeo foi muito significativa A mesa do saacutebado de
Acesso em 141015 Santo Antocircnio do Itambeacute soacute se tornou um municiacutepio independente de Serro em 1963 sete anos depois que Manoel e demais famiacutelias saiacuteram de laacute
183
manhatilde se chamava ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos
geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova
(MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo Como palestrantes estavam o professor Ricardo
Cassius e duas lideranccedilas quilombolas Seu Adatildeo lideranccedila da Comunidade
Quilombola Vila Nova e Adir lideranccedila da Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco
dos Santos No tiacutetulo da mesa percebe-se a conexatildeo como apontado pelo segundo
relatoacuterio antropoloacutegico da comunidade em GuaiacuteraPR entre a trajetoacuteria histoacuterica de
deslocamentos da comunidade em GuaiacuteraPR com os processos de migraccedilatildeo da
Comunidade Vila Nova pois na regiatildeo de origem do grupo esta jaacute era uma
caracteriacutestica marcante
Com base na pesquisa realizada para o segundo relatoacuterio antropoloacutegico
Cassius expocircs um panorama da trajetoacuteria de Manoel Ciriaco e Ana Rodrigues desde
Minas Gerais ateacute o Paranaacute Ao ouvirem a fala de Cassius e verem as fotos de seus
parentes na apresentaccedilatildeo Adir Geralda e Seu Joatildeo que compunham a mesa natildeo
contiveram a emoccedilatildeo Para aleacutem de uma recuperaccedilatildeo histoacuterica da trajetoacuteria da famiacutelia
aquele momento tinha um valor simboacutelico muito marcante para eles pois estavam
sendo recebidos e acolhidos na regiatildeo de origem de sua famiacutelia em um momento de
reconhecimento e valorizaccedilatildeo dentro de uma universidade
Em sua fala Adir iniciou agradecendo a Deus aos Orixaacutes e a todos que
apoiaram a realizaccedilatildeo deste sonho de chegar na regiatildeo de origem de seu pai Contou
um pouco da histoacuteria de migraccedilatildeo e resistecircncia dos seus antepassados que saiacuteram
de Minas Gerais e foram buscar uma oportunidade de vida no estado de Satildeo Paulo e
depois no Paranaacute Refletiu sobre o processo de reconhecimento como quilombolas
das famiacutelias em GuaiacuteraPR os conflitos dele decorrentes e a persistecircncia da
comunidade em lutar pelo acesso agraves poliacuteticas puacuteblicas Concluiu dizendo ldquonossa luta
eacute em memoacuteria daqueles que jaacute foram e nossa luta eacute pela sobrevivecircnciardquo
184
FIGURA 23 Mesa ldquoA continuidade da diaacutespora africana no Brasil os motivos geradores dos processos de migraccedilatildeo das comunidades quilombolas de Vila Nova (MG) e Manoel Ciriaco (PR)rdquo
A ideia de realizaccedilatildeo do seminaacuterio comeccedilou como forma de dar suporte agrave
nossa estadia na regiatildeo mineira para a qual eu e Cassius tambeacutem contribuiacutemos com
recursos pessoais e algum apoio das universidades agraves quais estaacutevamos vinculados
Por meio da articulaccedilatildeo com o professor do curso de direito da PUCSerro Matheus
de Mendonccedila Gonccedilalves Leite foi viabilizada parte da nossa alimentaccedilatildeo e
hospedagem aleacutem do auxiacutelio para deslocamento na regiatildeo Este evento tomou uma
proporccedilatildeo muito mais significativa do que o sentido pragmaacutetico que o motivou
inicialmente como mencionamos acima Nesta oportunidade tambeacutem ocorreu o
primeiro contato entre os quilombolas de Guaiacutera e da comunidade ldquoVila Novardquo que
fica localizada no distrito do municiacutepio de Serro chamado ldquoSatildeo Gonccedilalo do Rio das
Pedrasrdquo para onde nos deslocamos e permanecemos ateacute segunda-feira dia 09 de
marccedilo de 2015
Como mencionamos no capiacutetulo anterior foi com esta comunidade quilombola
que a pesquisa do segundo relatoacuterio antropoloacutegico indicou possiacuteveis relaccedilotildees de
parentesco A estadia junto agraves famiacutelias desta comunidade propiciou para Adir Seu
Joatildeo e Geralda uma experiecircncia de contato com um modo de vida especiacutefico que lhes
remeteu muito agraves histoacuterias de sua origem familiar Durante os trecircs dias em que laacute
ficamos Adir Geralda e Seu Joatildeo tentaram encontrar relaccedilotildees de parentesco atraveacutes
de nomes comuns da memoacuteria sobre os antepassados Muitos nomes de parentes
eram iguais o que gerou longa conversas ateacute nos darmos conta de que natildeo
185
estaacutevamos falando das mesmas pessoas Apenas no final da viagem com a nossa
estadia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG pudemos entender qual era a ligaccedilatildeo entre
estas famiacutelias Como veremos no proacuteximo subitem o viacutenculo de parentesco ocorre
por meio dos ascendentes da famiacutelia da esposa de Seu Joatildeo D Maria das Dores
pelo lado de sua matildee Luzia Eleoteacuteria da Silva
FIGURA 24 Da esquerda para a direita Seu Adatildeo D Necila (ambos de Vila Nova) Adir Geralda D Maria Geralda (Vila Nova) e Seu Joatildeo
O distrito de Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras fica a trinta quilocircmetros da sede
do municiacutepio de Serro com acesso por estrada de terra Estaacute situado no alto da Serra
do Espinhaccedilo a 1150 m de altitude e conta com vaacuterias cachoeiras que compotildeem uma
linda paisagem O distrito com em torno de mil e quinhentos habitantes surgiu no
iniacutecio do seacuteculo XVIII em decorrecircncia da intensificaccedilatildeo da exploraccedilatildeo de ouro na
regiatildeo do ldquoSerro Friordquo160 ndash hoje municiacutepio de Serro ndash e manteacutem ainda caracteriacutesticas
arquitetocircnicas do periacuteodo colonial A comunidade quilombola ldquoVila Novardquo localiza-se
na aacuterea urbana do distrito e laacute acessam os serviccedilos puacuteblicos disponiacuteveis como escola
posto de sauacutede telefonia aacutegua tratada energia eleacutetrica entre outros As casas das
famiacutelias quilombolas que compotildeem um mesmo grupo familiar ficam todas proacuteximas
Segundo seus relatos estas famiacutelias antes moravam no entorno do distrito sendo
oriundas da localidade de Aacutegua Santa proacuteximo ao Pico do Itambeacute onde atualmente
160 A antiga ldquoVila do Priacutencipe do Serro Friordquo foi sede de comarca uma das quatro primeiras da ldquoCapitania
das Minas Geraisrdquo Disponiacutevel em httpwwwserromggovbrconheC3A7a-o-serrohtml Acesso em 161015
186
se localiza o Parque Estadual do Pico do Itambeacute Mudaram-se para Satildeo Gonccedilalo
ainda na primeira metade do seacuteculo XX161 ldquoVila Novardquo eacute uma das cinco comunidades
quilombolas em Serro junto com as comunidades ldquoAusenterdquo e ldquoBauacuterdquo proacuteximas do
Distrito de Milho Verde e a ldquoComunidade do Oacuterdquo que se localiza neste distrito aleacutem
da comunidade de ldquoRibeiratildeo dos Porcosrdquo162 Eacute possiacutevel falar em um territoacuterio regional
cultural quilombola com forte presenccedila dessas comunidades nos municiacutepios no
entorno de Serro ateacute Diamantina onde uma meacutedia de trinta comunidades jaacute se
autorreconhecem como quilombolas163 A formaccedilatildeo destas comunidades estaacute
vinculada ao processo de exploraccedilatildeo de ouro e diamante com matildeo de obra escrava
sendo que os vastos espaccedilos territoriais desocupados permitiram na eacutepoca a
formaccedilatildeo de vaacuterios quilombos164
FIGURA 25 Em frente agrave casa de D Necila Na esquerda da foto ela e Adir estatildeo conversando e ao
lado dois parentes tocando violatildeo e sanfona
161 Conforme consta no segundo relatoacuterio antropoloacutegico da comunidade ldquoManoel Ciriacordquo Procedimento
Administrativo 542000010752008-46 do INCRAPR p 728-730 [p 35-37] 162 As cinco comunidades de Serro receberam a Certidatildeo de Auto-Reconhecimento da Fundaccedilatildeo
Cultural Palmares em 2012 Em MG ateacute fevereiro de 2015 duzentos e vinte e seis comunidades contavam com a certidatildeo e mais quarenta e trecircs aguardavam a finalizaccedilatildeo do procedimento A emissatildeo da certidatildeo eacute regulada pela Portaria nordm 98 de 2007 Dados disponiacuteveis em httpwwwpalmaresgovbrpage_id=88ampestado=MG httpwwwpalmaresgovbrwp-contentuploadscrqslista-das-crqs-processos-abertos-ate-23-02-2015pdf e Portaria disponiacutevel em httpwwwpalmaresgovbrwp-contentuploads201011legis21pdf Acesso em 161015 163 Levando em consideraccedilatildeo as comunidades nos seguintes municiacutepios Serro (5) Santo Antocircnio do
Itambeacute (3) Materlacircndia (6) Sabinoacutepolis (7) Senhora do Porto (1) Alvorada de Minas (1) Conceiccedilatildeo do Mato Dentro (3) Gouveia (1) e Diamantina (1) Os dados satildeo da Comissatildeo Proacute Iacutendio de Satildeo Paulo (CPISP) Disponiacutevel em httpwwwcpisporgbrcomunidadeshtmlbrasilmgmg_mapa_zoom2html Acesso em 161015 164 ldquoQuilombos de Minas Gerais no seacuteculo XXI - Norte e nordeste do Estadordquo Disponiacutevel em
httpwwwcedefesorgbrindexphpp=colunistas_detalheampid_pro=2 Acesso em 161015
187
FIGURA 26 Regiatildeo no entorno do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute identificado pelo traccedilado vermelho FONTE ndash Google Maps
188
A conexatildeo entre as famiacutelias quilombolas de Manoel Ciriaco e de Vila Nova
para aleacutem das relaccedilotildees de parentesco expressou-se inclusive no fato de Seu Joatildeo
conhecer muitas pessoas em comum com os quilombolas de Vila Nova Quando
morava no Itambeacute ele ia da fazenda de Zinho Gonccedilalves para quem trabalhava ateacute
Satildeo Gonccedilalo pois transportava para laacute cachaccedila que levava amarrada na cangaia do
burro Os moradores quilombolas da comunidade Vila Nova tambeacutem trabalharam para
o fazendeiro Zinho Gonccedilalves que era de uma famiacutelia abastada da regiatildeo com
propriedade em Santo Antocircnio do Itambeacute
Ao chegarmos na vila deixamos nossas coisas na casa de Jovelina que
funciona tambeacutem como ldquohospedagem familiarrdquo uma forma de receber os turistas que
visitam a localidade Nossa recepccedilatildeo pelos membros da comunidade quilombola ldquoVila
Novardquo no entanto natildeo foi como turistas mas como pesquisadores e quilombolas do
Paranaacute que estavam ali com o intuito de conhecer mais sobre a comunidade e
tambeacutem em busca de levantar possiacuteveis laccedilos de parentesco entre eles Jovelina
apesar de ser nossa anfitriatilde conviveu menos conosco por conta de seus afazeres
As tias maternas de Jovelina irmatildes de Margarida ndash D Necila e D Maria
Geralda ndash foram para mim e Geralda as nossas principais anfitriatildes Passamos horas
em conversas visitas a parentes passeios refeiccedilotildees rodas de muacutesica entrevistas e
viacutedeos Seu Joatildeo Adir e Cassius foram recepcionados por Seu Adatildeo e por seu irmatildeo
Jesu e juntos entre os homens fizeram tambeacutem os seus proacuteprios trajetos para
conhecer Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras
Foram muitas trocas de experiecircncias das quais destaco o interesse de
Geralda em aprender com aquelas senhoras bem como com demais moradores
quilombolas da comunidade sobre plantas medicinais oraccedilotildees e benzimentos
Geralda comentou durante uma de nossas conversas ldquoA gente que benze a gente
tem que ter remeacutedio e eu sei que ocecircs saberdquo Ela entatildeo me pediu para que eu
anotasse o nome das ervas medicinais e para o que elas serviam ndash suas formas
terapecircuticas de uso D Necila e D Maria Geralda foram se lembrando das plantas e
eu fui anotando e registrando com o gravador de voz a marcelica (ldquopra dar pra
crianccedilardquo) o marcelicatildeo (dor de barrigadiarreia) o quebra-pedra (rim) a badama (ldquobom
pro cabelordquolavar a cabeccedila) o quitoco (ajuda no periacuteodo de menstruaccedilatildeoldquobom pra
tudordquo tambeacutem eacute usado como tempero)
189
A carqueja o funcho o guineacute baiano o taquarinho do brejo a salsa parreira
o melatildeozinho de Satildeo Caetano entre diversas ervas foram assunto dos nossos
passeios pela comunidade e pelos quintais das casas quilombolas Conhecimentos
portanto que iam sendo compartilhados por meio de um monitoramento e de
engajamento ativos ao longo deste caminhar (INGOLD 2007 p 76) Seu Joatildeo ia
indicando os remeacutedios para Geralda e Adir que estavam sempre atentos buscando
reconhececirc-los e apontaacute-los pelo caminho Geralda comentou que em GuaiacuteraPR tem
remeacutedio que eacute difiacutecil de achar soacute no raizeiro Ela se lembrou que sua matildee havia levado
consigo desde Minas dentre outras sementes de quitoco para plantar e tinha mudas
no siacutetio em GuaiacuteraPR Junto com as pessoas em seus caminhos de migraccedilatildeo
portanto havia tambeacutem um circuito de sementes e plantas para seus quintais e
plantaccedilotildees que cultivariam em outras regiotildees Seu Joatildeo Adir e Geralda quando
retornaram desta viagem tambeacutem fizeram questatildeo de levar na bagagem sementes e
mudas que foram sendo separadas ao longo do percurso Guardadas como
lembranccedilas estabeleceriam novas conexotildees e continuidades entre eles e sua regiatildeo
de origem
Necessaacuterio frisar que Maria Geralda e Necila (ambas com mais de setenta
anos) Margarida (63) Adatildeo (em torno de 60) e Jesu (um pouco mais novo) nossos
principais interlocutores nesta comunidade satildeo filhos do casal Jovelina Calisto dos
Santos e Raimundo Gomes Ambos Jovelina e Raimundo satildeo primos de primeiro
grau filhos dos irmatildeos Ana Pedro da Silva e Clarindo Gomes Gouveia
respectivamente Os irmatildeos Ana e Clarindo por sua vez satildeo filhos do casal ancestral
ao qual se faz referecircncia na comunidade quilombola ldquoVila Novardquo Francisco Lucindo e
ldquoMatilirdquo ndash Matilde Balbina de Arauacutejo
Seu Joatildeo conheceu por exemplo Raimundo Gomes e seu irmatildeo Elias
Gomes conhecido por ldquotio Iliardquo sobre quem contam em ldquoVila Novardquo histoacuterias de que
foi escravo Nesta famiacutelia tambeacutem haacute vaacuterios casos de parentes que como na histoacuteria
de Manoel Ciriaco saiacuteram da regiatildeo em busca de oportunidades de trabalho no estado
de Satildeo Paulo sendo que nunca mais souberam notiacutecia sobre alguns deles Joseacute
Bernardo filho mais velho de Jovelina e Raimundo por exemplo perdeu contato com
a famiacutelia e soacute muitos anos depois os irmatildeos encontraram seus sobrinhos e souberam
que Joseacute jaacute era falecido como nos contou seu Adatildeo
190
Eu e Cassius ficamos muito satisfeitos em ver a alegria de Adir Geralda e Seu
Joatildeo nos dias que passamos em Satildeo Gonccedilalo Esta alegria parecia decorrente da
sensaccedilatildeo de estarem em um ambiente de iguais em contraste com os relatos sobre
as experiecircncias de discriminaccedilatildeo que sofrem no Maracaju dos Gauacutechos onde se
percebem separados dos demais Seu Joatildeo que natildeo pegava no violatildeo segundo ele
desde que saiu de Minas tocou com o pessoal da comunidade nos trecircs dias que laacute
permanecemos Adir estava muito empolgado com aquele lugar no qual ainda se
preservava tanto as tradiccedilotildees dos antepassados como o uso dos fornos de barro e
de pedra presente em vaacuterias das casas pelas quais passamos Mesmo com todo seu
desejo de chegar em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Adir sofreu para se despedir dos
novos amigos Geralda estava muito feliz em conversar com aquelas senhoras que
lhe remetiam ao melhor das mulheres de sua famiacutelia muita sabedoria conhecimentos
histoacuterias de luta e resistecircncia receptividade religiosidade entre outras qualidades
Estas histoacuterias eram como um mosaico de experiecircncias nas quais podiam projetar o
modo de vida de seus antepassados pois viveram em um mesmo territoacuterio cultural
regional e tiveram contato entre si D Necila e D Maria Geralda por exemplo
conheceram Maria Olinda matildee de Seu Joatildeo e Sebastiatildeo Vicente irmatildeo de Manoel
FIGURA 27 Geralda e D Necila na frente do forno de barro no quintal da casa de D Necila
191
323 Enfim em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Na noite de segunda-feira professor Matheus e Tiago foram nos buscar no
distrito de Satildeo Gonccedilalo para nos levarem a Santo Antocircnio do Itambeacute nossa uacuteltima
etapa da viagem Eles jaacute tinham nos informado que haviam combinado com o Instituto
Estadual de Florestas (IEF) que ficariacuteamos hospedados na sede do Parque Estadual
do Pico do Itambeacute Esta sede administrativa eacute uma grande casa colonial que fazia
parte da antiga Fazenda Satildeo Joatildeo adquirida pelo IEF Quando estaacutevamos chegando
na sede do Parque jaacute passava da meia noite Seu Joatildeo reconheceu entatildeo que
aquela era a mesma fazenda de Zinho Gonccedilalves para quem trabalhou muitos anos
Seu Joatildeo jaacute havia nos relatado que ele entregava cachaccedila em Satildeo Gonccedilalo
depois voltava para um lugar chamado Condado e tinha que carregar tambeacutem ateacute o
Itambeacute trabalhando para Zinho Ele levava a cachaccedila em pipa amarrada em cima do
lombo do burro e caminhava longas distacircncias puxando aquele peso sendo que de
trecircs em trecircs dias ele refazia todo o percurso Nos contou que um dia ele percebeu que
estava ldquotrabalhando como escravordquo pois o que recebia natildeo era suficiente nem para a
alimentaccedilatildeo de sua famiacutelia Depois que havia voltado do Itambeacute jantou primeiro e foi
falar para o patratildeo que natildeo ia trabalhar mais para ele Ao relato de Seu Joatildeo Adir
completou ldquoeacute o quilombo invadindo a casa granderdquo
Seu Joatildeo com seu conhecimento sobre a regiatildeo e com sua capacidade de
acionar uma rede social mais ampla de parentesco foi o nosso ldquodescobridor de
caminhordquo durante a primeira viagem a Minas Gerais o que se intensificou enquanto
estivemos em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG ldquoDescobridor de caminhordquo eacute uma
expressatildeo cunhada pelo antropoacutelogo Tim Ingold cujas reflexotildees servem de base para
a nossa anaacutelise sobre a importacircncia do movimento para o modo de articulaccedilatildeo da
identidade quilombola do grupo Segundo o autor
Os lugares natildeo tecircm posiccedilatildeo e sim histoacuterias Unidos pelos itineraacuterios de seus habitantes os lugares existem natildeo no espaccedilo mas como noacutes em uma matriz de movimento Chamarei essa matriz de ldquoregiatildeordquo Eacute o conhecimento da regiatildeo e com isso a habilidade de uma pessoa situar-se na sua posiccedilatildeo atual dentro do contexto histoacuterico de jornadas efetuadas anteriormente ndash jornada para lugares de lugares e em volta de lugares ndash que distingue o nativo do forasteiro Assim descobrir-caminho consiste em mover-se de um lugar para outro em uma regiatildeo (INGOLD 2005 p 76)
192
A simples posse de um mapa portanto natildeo poderia substituir a presenccedila de
seu Joatildeo como um descobridor de caminhos com sua bagagem de experiecircncias e
com sua percepccedilatildeo do ambiente produzida ao longo dos anos em seus movimentos
que lhe permitiram realizar um mapeamento da regiatildeo a qual consiste em uma ldquorede
mais ampla de idas e vindasrdquo (INGOLD 2005 p 84) Seu Joatildeo foi assim o elo que
pocircde nos conectar e nos inserir nesta rede de lugares e parentes ao reconstituir um
circuito de relaccedilotildees sociais locais
No primeiro dia em Santo Antocircnio Itambeacute pela manhatilde depois que dormimos
a primeira noite na sede do parque terccedila-feira 10 de marccedilo saiacutemos pela estrada de
terra que liga a sede ao pequeno centro de Santo Antocircnio do Itambeacute No caminho
Adir comentou ldquoEacute como se noacutes voltasse a histoacuteria voltasse a paacutegina da nossa vida do
comeccedilo quando nosso pai andava por tudo Eu quero passar por todas as ruas local
onde ele passavardquo Novamente estava sendo reforccedilada a referecircncia ao caminhar
como forma de dar sentido ao modo de vida de seus antepassados naquele lugar ao
sacrifiacutecio que era andar por todos aqueles morros com as coisas que levavam em
cima da cabeccedila por leacuteguas e leacuteguas pois moravam em um siacutetio longe da vila do
Itambeacute Se os caminhos satildeo parte fundamental na construccedilatildeo da memoacuteria coletiva
quilombola na nossa experiecircncia da primeira viagem continuavam sendo referecircncia
central na percepccedilatildeo de Adir Geralda e Seu Joatildeo
Nesta estrada de chatildeo que percorriacuteamos logo avistamos acima uma primeira
casa Ali Seu Joatildeo se lembrou que antigamente morava um parente Quem nos
recebeu foi Zeacute Simatildeo que estava em frente da casa e tambeacutem nos avistou Seu Joatildeo
lhe perguntou se ele lembrava de Sebastiatildeo Vicente o tio dele irmatildeo de Manoel que
ficou morando nas terras da matildee Izidora Zeacute Simatildeo em resposta disse
Zeacute Simatildeo Entatildeo tem um moccedilo aqui que o senhor deve conhecer o Seu
Daniel
Seu Joatildeo Ele eacute filho de quem
Zeacute Simatildeo Ele eacute desse povo mesmo da mesma parentagem desse povo
mesmo de
Adir Sebastiatildeo Vicente
Zeacute Simatildeo Ele eacute filho de uma tal esqueci o nome da matildee dele filho de um
tal de Joatildeo Domingo
193
Seu Joatildeo Joatildeo Domingo Conheci demais Joatildeo Domingo era tio desse aqui
(vira-se para Adir e continua) esse aqui eacute meu irmatildeo da segunda mulher
Adir Irmatildeo de Maria Bernarda Ele taacute ai
Zeacute Simatildeo Taacute ai vou chamar ele
(Seu Daniel aparece na porta da casa um senhor negro de 80 anos de idade
cabelos brancos peacutes descalccedilos calccedila rasgada)
Seu Joatildeo Eacute o senhor mesmo que eu tocirc querendo ver E o senhor como eacute que
taacute O senhor lembra de mim (Estende a matildeo para cumprimentaacute-lo)
Seu Daniel Natildeo tocirc conhecendo natildeo
Seu Joatildeo Noacutes dois natildeo levava milho laacute pro senhor moer pra noacutes
Seu Daniel Onde Eu carregava milho pra Sebastiatildeo Dama
Seu Joatildeo Eu sou filho de Manoel Ciriaco sobrinho de Sebastiatildeo Paulo
Seu Daniel Sobrinho de Sebastiatildeo Paulo Natildeo tocirc lembrado mais
Seu Joatildeo O senhor natildeo lembra de Joatildeo natildeo
Seu Daniel Joatildeo
Seu Joatildeo Joatildeo que eles falavam Joatildeo de Izidora
Seu Daniel Joatildeo de Izidora Lembro Eacute o cecirc eacute o cecirc queacute eacute Joatildeo
Seu Joatildeo Eacute eu sou neto dela
Seu Daniel Oacute quanto tempo
Seu Joatildeo Taacute com trinta e quatro anos que eu saiacute daqui
Seu Daniel Ele eacute filho de Maneacute Paulo
Geralda Aiacute oacute o nome do meu pai aqui eacute Maneacute Paulo
Zeacute Simatildeo Vocecirc que eacute Joatildeo Joatildeo de Izidora
Seu Joatildeo soacute pocircde ser reconhecido na medida em que foi inserido na rede de
parentesco local Com a referecircncia ao seu nome de registro Joatildeo Loriano dos Santos
ningueacutem poderia identificaacute-lo Foi o que ocorreu quando durante a pesquisa para o
segundo relatoacuterio antropoloacutegico Cassius esteve em frente agrave casa das cunhadas de
seu Joatildeo D Regina e D Zulmira perguntando por parentes de Joatildeo Loriano dos
Santos e o casal que o recebeu (filha de Zulmira e seu marido) respondeu que natildeo
conhecia esta pessoa Manoel Ciriaco por sua vez era conhecido como ldquoManeacute Paulordquo
194
ou ldquoManeacute de Paulardquo ou ainda ldquoManeacute de Izidorardquo pois era filho de Joaquim de Paula e
Izidora Nesta forma de nominaccedilatildeo usa-se o nome da pessoa acompanhado de
expressatildeo que aponta a identificaccedilatildeo a partir de um antepassado ou cocircnjuge
Seu Daniel como descobrimos no comeccedilo da conversa eacute primo de primeiro
grau de Ana Rodrigues matildee de Adir e Geralda O pai dele Joatildeo Domingos era irmatildeo
de Maria Bernarda matildee de Ana Rodrigues Ficamos por volta de trecircs horas na casa
em que moram Seu Daniel sua filha seu genro e seu neto com meses de vida Seu
Daniel nos recebeu muito bem e estava muito feliz em rever Seu Joatildeo um velho
amigo e conhecer Adir e Geralda seus primos de segundo grau Conversamos
longamente com ele enquanto eu e Cassius adicionaacutevamos as informaccedilotildees na aacutervore
genealoacutegica da famiacutelia especialmente sobre dados a respeito da famiacutelia de sua tia
paterna Maria Bernarda sobre a qual ele guardava muitas memoacuterias
FIGURA 28 Adir gravando a conversa com Seu Daniel
3231 Encontro com D Zulmira D Regina e D Ana Raimunda
Quando saiacutemos da casa de seu Daniel fomos procurar junto com Zeacute Simatildeo
a casa de D Regina e D Zulmira cunhadas de Seu Joatildeo e irmatildes de D Maria das
Dores que havia enviado por noacutes uma mensagem em viacutedeo para ser mostrada a seus
irmatildeos ldquoos que tive vivordquo No caminho logo encontramos a filha de D Regina
Aparecida que seu Joatildeo reconheceu ao avistaacute-la na rua quando ela e outras
195
mulheres voltavam para casa da roccedila Aparecida muito feliz de reencontrar o tio nos
levou entatildeo direto para a casa de D Zulmira pois sua matildee D Regina estava longe
trabalhando na roccedila Primeiro Aparecida foi na frente e contou para a tia D Zulmira
que Seu Joatildeo o cunhado dela estava chegando e que a irmatilde D Maria das Dores natildeo
tinha vindo mas que deram notiacutecia que ela estava bem D Zulmira jaacute se emocionou
muito com a novidade e agradeceu a Deus a Jesus Cristo louvando a possibilidade
deste reencontro Abraccedilou Seu Joatildeo e depois ele Adir e Geralda foram logo lhe
dando notiacutecias dos familiares que tinham saiacutedo dali para o Paranaacute como Manoel e
Ana que jaacute tinham falecido Olegaacuterio e Jovelina que estatildeo vivos Ela tambeacutem foi
atualizando seu Joatildeo e contando sobre os parentes que continuaram morando na
regiatildeo
Mostramos entatildeo para D Zulmira o viacutedeo com a mensagem enviada por sua
irmatilde D Maria das Dores a qual mencionamos acima D Zulmira falou que natildeo
achava que veria eles mais
D Zulmira O meu Santiacutessimo Sacramento porquecirc que some assim Ai meu nosso Senhor Que benccedilatildeo de Jesus Deus Deus achou
Cassius Eacute sua irmatilde
D Zulmira Eacute minha irmatilde meu fio Ai meu Deus Eacute das mais nova Ela deve ter uns sessenta anos Ela taacute muito bonita Eacute ela mesmo
Adir Eacute ela
D Zulmira Como eacute que eu tocirc gente Que Deus Ocirc minha Nossa Senhora cecirc trouxe o meu povo Ocirc meu Pai Eterno o Senhor trouxe o meu povo pra mim conhecer ainda (se abaixa com as matildeos no rosto e comeccedila a chorar) Graccedilas a Deus Faz vinte anos ou vinte e cinco
Adir Eacute muita emoccedilatildeo
D Zulmira Eu perdi tantos irmatildeo
Adir Mas a senhora ainda vai ver ela Se Deus quiser a senhora vai ver
O nosso encontro com D Zulmira (73 anos) e depois com D Regina (78
anos) que logo chegou da roccedila foi uma experiecircncia uacutenica para todos os presentes
Segundo elas receber notiacutecias da irmatilde e rever o cunhado era a concretizaccedilatildeo de uma
intercessatildeo divina pela qual sempre rezavam buscando esperanccedilas para acreditar
que um dia este reencontro poderia acontecer Em seguida pedimos para que elas
196
mandassem uma mensagem que levariacuteamos de volta para D Maria das Dores Dona
Regina que estava mais calma comeccedilou mandando o seu recado
Hoje eu tocirc chegando da roccedila e tive a maior surpresa com a maior satisfaccedilatildeo cumadi Maria de ver o meu cumpadi Joatildeo mais a famiacutelia dele Eu tive muito prazer que eu vivia sempre na cabeccedila achando que nem vivo ocecircs era porque ocecircs tambeacutem natildeo dava nem notiacutecia pra mim E eu perdi o contato com ocecircs porque tomaram o endereccedilo e nunca mais me deram Entatildeo eu fiquei sem jeito de ligar pra vocecircs Agora ocecircs de laacute pra caacute tinha jeito que eacute Santo Antocircnio do Itambeacute Entatildeo cumadi Maria hoje eu tocirc no maior prazer na maior riqueza sou veia e pra mim fiquei nova de prazer de saber notiacutecia da minha irmatilde com a famiacutelia dela e meu cumpadi Joatildeo Cumadi Maria breve noacutes vamos encontra se Deus quiser Agora eu natildeo vou natildeo mas eu vou
Dona Zulmira depois tambeacutem deixou sua mensagem
Cumadi Maria eu minha fia graccedilas a Deus tive tanto prazer que eu vi a sua famiacutelia que chegou de laacute a moccedila e o rapaz o cumpadi Joatildeo o irmatildeo dele a irmatilde dele eu fiquei tatildeo emocionada de vecirc essa famiacutelia prazerosa que Jesus mandou pra noacutes nesse horaacuterio certo que chegou devia de ser meio dia Eu fiquei tatildeo emocionada que eu vou falar procecirc que eu natildeo tive ideia de dar pra eles nada a ideia que eu tive foi de chorar Fiquei tatildeo feliz tatildeo satisfeita tatildeo alegre porque sempre eu pensava assim ldquoEacute de vera a minha irmatilde foi embora essa eu natildeo vejo ela maisrdquo Mas Deus abenccediloou que trouxe eles em paz com vida e sauacutede e assim eacute de trazer a senhora tambeacutem E que breve se Deus quiser noacutes vamos encontrar E cecirc vecirc que depois que a senhora foi noacutes perdeu nossa matildee noacutes perdeu nosso pai noacutes perdeu meu irmatildeo Erosino a Benedita e a Margarida entatildeo cecirc sabe Eu fiquei assim pro rumo natildeo sube nem cumprimentar eles como eles merecia de tanta emoccedilatildeo que eu fiquei Mas eu fiava em Deus que eu esperava sempre que Deus ia abenccediloar que um dia que ocecircs tivesse a par ocecircs vinha caacute e noacutes encontrava Eu fiquei tatildeo feliz que soacute cecirc vendo Natildeo soube nem tratar eles como eles merecia E a companhia deles a moccedila mais o rapaz que tava com eles de fora que tambeacutem eacute outros irmatildeo tudo que eu fiquei toda feliz e tudo eu considerei por minha famiacutelia E Deus que te abenccediloa e algum dia noacutes encontra
A experiecircncia de ter um parente perdido era para elas muito angustiante
pois se a pessoa morre eacute porque ldquoDeus levardquo mas no caso de D Maria das Dores a
anguacutestia estava nesta duacutevida que se estendia por anos da ausecircncia de qualquer
notiacutecia Fazia dezenove anos que D Maria das Dores tinha ido pela uacuteltima vez para
Santo Antocircnio do Itambeacute A responsabilidade de fazer o movimento para o reencontro
como pode se depreender do comentaacuterio de D Regina ndash ldquoAgora ocecircs de laacute pra caacute
tinha jeito que eacute Santo Antocircnio do Itambeacuterdquo ndash afinal de contas eacute atribuiacuteda agravequeles que
migraram pois sabiam para onde voltar para encontrar os parentes diferente dos que
permaneceram na regiatildeo para quem seria muito mais difiacutecil tal busca
197
FIGURA 29 D Zulmira e D Regina mandam mensagens para a irmatilde D Maria das Dores
Com o pouco tempo que passamos com D Regina e D Zulmira criamos com
elas uma conexatildeo muito forte Eu e Cassius entatildeo nos comprometemos a ajudar a
levar a D Maria das Dores para reencontraacute-las assim que fosse possiacutevel Com D
Zulmira e D Regina tambeacutem conversamos sobre a aacutervore genealoacutegica com enfoque
nos antepassados e compreendemos entatildeo o viacutenculo de parentesco da famiacutelia de
Manoel Ciriaco com a comunidade quilombola ldquoVila Novardquo165
O viacutenculo de parentesco se daacute por meio de D Maria das Dores que eacute filha de
Luiza Eleoteacuteria da Silva e neta de Virgulino Martins Gomes Virgulino por sua vez era
irmatildeo de Clarindo Gomes e filho de Matili e Francisco Lucindo o casal ancestral
estruturante da comunidade quilombola ldquoVila Novardquo Clarindo Gomes era pai de
Raimundo Gomes e avocirc de seu Adatildeo D Necila D Maria Geralda e Jesu nossos
anfitriotildees em Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras Portanto Raimundo Gomes filho de
Clarindo eacute primo de primeiro grau de Luzia Eleoteacuteria filha de Virgulino e matildee de D
Maria das Dores
165Aleacutem da importacircncia das relaccedilotildees de parentesco destacadas ateacute aqui eacute necessaacuterio aprofundar a
pesquisa a respeito das relaccedilotildees de compadrio que parecem centrais tambeacutem neste caso para reforccedilar os viacutenculos de parentesco
198
Por meio de dois casamentos a famiacutelia de Luzia Eleoteacuteria da Silva se conecta
com a famiacutelia de Manoel Trata-se do casamento entre D Maria das Dores (filha de
Luzia) e Seu Joatildeo (filho de Manoel) e entre Zeacute (filho de Sebastiatildeo Vicente irmatildeo de
Manoel Ciriaco) e Benedita (irmatilde de D Maria das Dores) D Maria das Dores nos
falou tambeacutem da possibilidade de uma conexatildeo entre as famiacutelias na geraccedilatildeo
ascendente mais distante agrave qual tivemos referecircncias Ela achava que ldquoVovoacute Matilirdquo
sua bisavoacute era irmatilde de Joseacute Domingos pai de Maria Bernarda e avocirc de Ana
Rodrigues (esposa de Manoel) bisavocirc portanto de Adir e Geralda conforme Excerto
Genealoacutegico apresentado abaixo Em alaranjado destacam-se os trecircs membros da
famiacutelia D Jovelina D Maria das Dores e Seu Joatildeo os quais efetivamente retornaram
a Minas Gerais por meio destas duas viagens pois laacute jaacute haviam morado Em amarelo
destacam-se os parentes com quem eles se encontraram durante as duas viagens
199
FIGURA 30 Excerto Genealoacutegico 4
200
Segundo D Zulmira a famiacutelia de ldquovovoacute Matilirdquondash originaacuteria de Aacutegua Santa ndash era
muito pobre Este lugar atualmente estaacute abrangido pelo Parque Estadual do Pico do
Itambeacute uma unidade de conservaccedilatildeo de proteccedilatildeo integral em decorrecircncia da qual os
uacuteltimos moradores foram retirados da aacuterea e reassentados Esta localidade de acordo
com D Zulmira era ldquoterra de ningueacutemrdquo uma ldquoterra de heranccedilardquo onde passaram
muitas dificuldades e por isso de laacute saiacuteram Com tais explicaccedilotildees pudemos comeccedilar
a compreender a conexatildeo entre a famiacutelia de D Maria das Dores e a famiacutelia da
comunidade quilombola ldquoVila Novardquo que tambeacutem originaacuteria de Aacutegua Santa bem como
conhecer um pouco de sua histoacuteria de deslocamentos dentro de uma mesma
regiatildeo166
Depois que saiacutemos da casa de D Zulmira e D Regina naquele dia 10 de
marccedilo voltamos para a casa de Zeacute Simatildeo pois ele tinha dito que sabia o paradeiro
de D Ana Raimunda irmatilde de Manoel Ciriaco que ajudou a criar Seu Joatildeo junto com
a avoacute Izidora Contratamos uma van escolar para nos levar de Itambeacute ao Serro na
casa que Zeacute Simatildeo indicava como sendo de D Ana Raimunda Natildeo tiacutenhamos certeza
se era a mesma pessoa de quem estaacutevamos falando pois alguns como a proacutepria D
Zulmira achavam que ela jaacute tivesse morrido Mas Zeacute Simatildeo genro de Seu Daniel
que nos contou que tambeacutem foi criado por Ana Raimunda afirmou que tinha ido visitaacute-
la recentemente Quando chegamos em sua casa logo na primeira pergunta que Adir
fez jaacute tivemos a confirmaccedilatildeo ldquoAna Raimunda irmatilde de Sebastiatildeo de Paulardquo Ela
respondeu ldquoEacute eu mesmordquo
Ana Raimunda da Silva nasceu em 19 de fevereiro de 1925 e tem 87 anos
Viuacuteva seu companheiro Joseacute Teoacutefilo dos Reis faleceu em 31 de agosto de 2014
quando ambos estavam hospitalizados Depois da morte de Teoacutefilo e de sua
recuperaccedilatildeo D Ana continuou morando na mesma casa e ldquopor natildeo ter parentes que
moram proacuteximordquo passou a receber cuidados da vizinhanccedila contando com uma
cuidadora chamada ldquoFatinhardquo Passou a receber tambeacutem o auxiacutelio de ldquopensatildeo por
morterdquo ndash com o intermeacutedio de Josiane outra vizinha que lhe auxiliava com as questotildees
financeiras e prestava esclarecimentos ao Centro de Referecircncia Especializado de
Assistecircncia Social (CREAS) ndash segundo consta do relatoacuterio da assistente social que
Josiane e Fatinha fizeram questatildeo de nos mostrar
166 Questatildeo que como jaacute mencionamos foi apontada pelo segundo relatoacuterio antropoloacutegico a partir da pesquisa realizada por Cassius em 2012 a qual merece desdobramento em pesquisa posterior
201
Seu Joatildeo se apresentou ldquoE a senhora lembra de mim Joatildeo de Izidora que a
senhora criourdquo E jaacute foi logo falando que iria levaacute-la embora com ele para Presidente
PrudenteSP Geralda tambeacutem se apresentou como filha de ldquoManeacute de Paulardquo e
perguntou sobre quais filhos de Maneacute que D Ana ainda tinha lembranccedila D Ana se
lembrou primeiro da sobrinha Jovelina e entatildeo Geralda lhe deu o recado de sua irmatilde
ldquoEla disse que vai vir aqui pra buscar a senhorardquo D Jovelina e D Ana Raimunda
puderam conversar por telefone e ficaram muito felizes depois de cinquenta e nove
anos sem se falarem Jovelina estava desde que saiacutemos de Presidente PrudenteSP
esperando notiacutecias se tiacutenhamos conseguido encontrar sua tia que junto com a avoacute
Izidora cuidou dela de Joatildeo e de Olegaacuterio quando eram pequenos e ficaram sem a
matildee Maria Olinda que havia falecido
Noacutes ficamos horas conversando com ela sobre os parentes e ela nos contou
muitas histoacuterias D Ana Raimunda eacute irmatilde de Manoel Ciriaco apenas por parte de pai
ndash Joaquim Guilherme de Paula ndash assim como Sebastiatildeo Vicente de Paula filhos de
matildees diferentes informaccedilatildeo que Adir e Geralda desconheciam O uacutenico dos irmatildeos
que era filho de Izidora era Manoel Ciriaco Ana Raimunda contou que ela eacute filha de
Joaquim de Paula Guilherme com a sobrinha de Izidora Luiza Eufraacutesio da Silva
Quando Ana nasceu sua matildee Luiza tinha a intenccedilatildeo de em seguida matar o bebecirc
pois era fruto de uma gravidez indesejada D Ana contou entatildeo que Izidora mesmo
com a traiccedilatildeo do marido interveio para lhe salvar enrolando-a na saia Depois disso
sua matildee bioloacutegica Luiza foi embora e ela nunca mais a viu Izidora foi quem a criou
e em retribuiccedilatildeo D Ana cuidou dela ateacute sua morte
Uma hora no meio da conversa D Ana comentou com Fatinha ldquoVocecirc viu a
borboleta A borboleta aqui oacute todo mundordquo E D Ana entatildeo nos explicou sobre o
que estava falando
ldquoChegou uma borboleta aqui de tarde ela chegou ai na porta fez assim oacute (fez o gesto da borboleta voando com a matildeo) e sumiu Ai eu falei assim ldquoUai Fatinha a borboleta taacute chegando aqui na porta quarque coisa eacute alguma notiacutecia ela vai dar E laacute em casa no quarto tem uma direto laacuterdquo (risos)
A borboleta veio anunciando para D Ana a chegada dos sobrinhos Ela havia
recebido haacute algum tempo a notiacutecia por outros parentes da parte de seu irmatildeo
Sebastiatildeo Vicente de Paula que moram na regiatildeo de que seus sobrinhos Olegaacuterio e
Joatildeo jaacute haviam falecido Segundo ela a notiacutecia que eles lhe haviam dado visava
202
confirmar o domiacutenio que o filho de Sebastiatildeo Vicente Geraldo tem hoje sobre a terra
que foi de Izidora E D Ana nos contou que desde que recebeu a notiacutecia rezava
para alma de Joatildeo e Olegaacuterio todos os dias
FIGURA 31 Adir e Geralda com a tia Ana Raimunda
Ela natildeo podia imaginar que naquele dia Seu Joatildeo iria visitaacute-la trazendo
consigo mais dois sobrinhos para ela conhecer Geralda e Adir que nasceram no
Paranaacute E D Ana agradeceu ldquoGraccedilas a Deus Eacute Deus que trouxe ocecircs Todo mundordquo
D Ana explicou que natildeo poderia ir agora com eles embora de Serro pois ela ainda
precisava ficar por mais um tempo ali para poder resolver algumas questotildees
pendentes sobre a heranccedila de Teoacutefilo seu marido que faleceu Segundo nos contou
com tristeza os parentes que moram na regiatildeo natildeo visitam mais ela quase natildeo tecircm
contato Ressentiu-se de ficar muito sozinha pois estaacute debilitada e precisando de
cuidados Com a diabetes ela ficou com uma ferida que estava aberta no peacute e que a
impedia de caminhar sem apoio
Noacutes entatildeo combinamos que iriacuteamos manter contato para que ela pudesse ir
passar um tempo com eles no estado de Satildeo Paulo e no Paranaacute Voltando para a
sede do parque naquele 10 de marccedilo de 2015 conversaacutevamos sobre como aquele
tinha sido um dia que entrou para a histoacuteria da famiacutelia No mesmo dia haviacuteamos
encontrado as pessoas que eles mais almejavam as irmatildes de D Maria das Dores D
Zulmira e D Regina e a irmatilde de Manoel Ciriaco Ana Raimunda
203
3232 Padre Joviano o pai de criaccedilatildeo de Maria Olinda
No outro dia o quinto e uacuteltimo que ficamos na regiatildeo passamos na igreja
matriz de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Geralda reforccedilou vaacuterias vezes como estava
realizada por chegar naquele lugar sagrado pois nunca tinha imaginado que um dia
poderia ir na igreja que foi frequentada por seu pai e sua matildee onde eles tambeacutem se
casaram
FIGURA 32 Geralda faz uma reverecircncia em frente agrave Igreja Matriz de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
A ldquoIgreja Matriz de Santo Antocircniordquo eacute a uacutenica igreja catoacutelica do municiacutepio
Construiacuteda no seacuteculo XVIII se tornou paroacutequia no ano de 1868 Apesar do desgaste
da construccedilatildeo com o passar do tempo a imagem de Santo Antocircnio estaacute preservada
e fica em destaque do lado do altar As histoacuterias sobre a imagem do santo remontam
agrave eacutepoca de construccedilatildeo da igreja matriz Conta-se como a imagem eacute viva167 pois havia
167 ldquoOs santos constituem o exemplo mais claacutessico de objetos ndash objetos de barro ou madeira objetos
narrativos objetos sem mais ndash e de ldquofeitichesrdquo que se manifestam como atores que em cada um de seus avatares natildeo se comportam como intermediaacuterios ou como signos transparentes mas como
204
sido construiacuteda uma capela para abrigaacute-la em outro lugar mas a imagem aparecia no
local onde fica atualmente a igreja como um sinal do santo de que era ali o lugar onde
a igreja deveria ser construiacuteda
Esta era a igreja em que Padre Joviano atuava Como comentamos acima
Padre Joviano foi quem criou Maria Olinda matildee de Joatildeo Jovelina e Olegaacuterio Sobre
ele contaram como era muito caridoso e amoroso com todos e por isso eacute ainda hoje
muito estimado pelo povo do lugar que o considera santo168 Ele estaacute enterrado dentro
da igreja onde as pessoas acendem velas e fazem pedidos por sua intercessatildeo
Joviano Alves Diamantino nasceu em 08 de julho de 1874 e faleceu em 10 de maio
de 1965 com 91 anos Como D Maria Geralda e D Necila haviam nos contado ele
era proveniente do distrito de Satildeo Gonccedilalo do Rio das Pedras tendo ido depois morar
em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
Acima de seu tuacutemulo estaacute afixado em uma placa os seguintes dizeres ldquoComo
Pedro foi pedra fundamental dos ensinamentos de Cristo Padre Joviano foi o pilar da
feacute do povo desta terrardquo Natildeo por acaso a data de sua morte eacute celebrada no calendaacuterio
cultural do municiacutepio conforme consta na paacutegina virtual da prefeitura169 Em duas
casas que visitamos de pessoas que foram suas contemporacircneas no municiacutepio de
Santo Antocircnio do Itambeacute ndash de Seu Daniel e de D Regina ndash vimos a imagem do padre
em um porta-retrato afixado na parede
mediadores razoavelmente opacos () Os meus livros estatildeo cheios de exemplos de como as imagens sagradas (essas imagens tatildeo desprezadas por todos os iconoclastas) satildeo muito mais ativas do que parece a sua materialidade natildeo passa despercebida aos fieacuteis que a partir dela elaboram novos relatos a respeitordquo (CALAVIA SAEZ 2009 p 215) 168 Segundo o antropoacutelogo Calavia Saez os santos satildeo achados e domesticados por meio de um
processo de canonizaccedilatildeo da Igreja Catoacutelica mas natildeo satildeo instituiacutedos pela instituiccedilatildeo pois tem origem na margem como no caso dos cultos a mortos praticamente anocircnimos (CALAVIA SAEZ p 200) 169 Disponiacutevel em httpsantoantoniodoitambemggovbrcidadecalendario-de-eventos Acesso em
121015
205
FIGURA 33 Retrato de Padre Joviano na casa de Seu Daniel
Padre Joviano eacute portanto personagem destacado da histoacuteria local como
tambeacutem se evidencia no hino municipal
Estribilho ndash I Para alto para frente Com civismo amor e feacute Povo forte nobre gente Santo Antocircnio do Itambeacute II Das bandeiras heroacuteicas e rudes Tu herdastes os anseios e a feacute Guardiatildeo de lendaacuterias virtudes Junto a ti se levanta o Itambeacute III Foste em Minas o berccedilo do prelo Esta gloacuteria tu tens sem rival Com Geraldo Pacheco de Melo170 Desfraudando o pendatildeo liberal IV Joviano chamou-se o teu Santo Outro igual nunca mais tu teraacutes Seja sempre teu nome o teu canto Numa prece de amor e de paz (grifos nossos)171
Por ter criado Maria Olinda o padre ocupa a posiccedilatildeo de avocirc de Olegaacuterio
Jovelina e Joatildeo Seu Joatildeo nos contou que conviveu muito na casa do padre que
passava por laacute e o padre o chamava de ldquominha Maria Olindardquo ao se lembrar da filha
de criaccedilatildeo que jaacute era falecida Nos contou tambeacutem como o padre sempre lhe dava
algo para comer em um gesto de cuidado e consideraccedilatildeo Hoje a casa do padre eacute
uma moradia particular Na frente haacute uma placa talhada em madeira com a
identificaccedilatildeo ldquoSolar do Padrerdquo
170 Outro importante personagem da histoacuteria local foi ourives e jornalista tendo fundado o primeiro jornal
da regiatildeo ldquoLiberal do Serrordquo em 1828 Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiSanto_AntC3B4nio_do_ItambC3A9 Acesso em 1210015 171 Hino do municiacutepio de Santo Antocircnio do Itambeacute Letra composta por Padre Celso de Carvalho e
melodia por Mozart Bicalho Disponiacutevel em httpsantoantoniodoitambemggovbrcidade Acesso em 121015
206
Na imagem abaixo esta relaccedilatildeo de parentesco fica simbolizada na disposiccedilatildeo
assumida por Geralda Seu Joatildeo e Adir ndash que estaacute com as matildeos no ombro da estaacutetua
de Padre Joviano ndash que parece apontar para a percepccedilatildeo de uma continuidade entre
passadopresente e mortosvivos como em outros momentos jaacute destaquei neste
trabalho
FIGURA 34 Adir Seu Joatildeo e Geralda junto agrave estaacutetua de Padre Joviano
3233 A famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente
Seu Joatildeo Adir e Geralda natildeo poderiam segundo eles ir embora sem antes
passarem na terra que foi de Izidora onde Manoel Ciriaco viveu ateacute sua saiacuteda da
regiatildeo Seu Joatildeo ateacute 1981 quando foi morar no siacutetio de seu pai em GuaiacuteraPR
tambeacutem viveu na terra que pertencia a sua avoacute Izidora Nela atualmente moram
parentes que pelas informaccedilotildees que tivemos teriam recebido autorizaccedilatildeo de Geraldo
ndash filho de Sebastiatildeo Vicente de Paula que era irmatildeo de Manoel e D Ana Raimunda ndash
que com a morte do pai ldquotomou conta de tudordquo nos termos D Ana Ela tambeacutem nos
207
contou que quando Manoel foi embora Sebastiatildeo Vicente ocupou toda a terra e natildeo
deixou nenhum espaccedilo para ela que passou a viver na cidade do Serro172
Seu Joatildeo jaacute muito contrariado com tudo que havia sido falado sobre as
ldquoarbitrariedadesrdquo173 do falecido Sebastiatildeo Vicente e agora de Geraldo preparou-se
para conversar com seu primo sobre como tinha ficado a questatildeo do documento da
terra Quando chegamos laacute o clima era hostil Geraldo foi muito incisivo em afirmar
que os filhos de Manoel Ciriaco natildeo teriam mais direito nenhum sobre aquela terra
pois toda a aacuterea tinha sido registrada como propriedade de seu pai Sebastiatildeo Vicente
jaacute que Manoel tinha ido embora dali e nunca mais voltado Como apontamos no
primeiro capiacutetulo a migraccedilatildeo consiste em uma estrateacutegia importante precisamente
para excluir da heranccedila membros da famiacutelia visando evitar o fracionamento da terra
a um ponto que inviabilize a reproduccedilatildeo camponesa (WOORTMANN 2009)
Por outro lado esta postura de Geraldo desconsiderava que Seu Joatildeo havia
morado nesta aacuterea ateacute 1981 e que os irmatildeos filhos do segundo casamento de Manoel
ndash Joaquim e Antocircnio ndash haviam ido ateacute laacute na deacutecada de 1980 quando Sebastiatildeo
Vicente ainda era vivo para vender a parcela hereditaacuteria que cabia a Manoel Ciriaco
Na eacutepoca conforme me contou Joaquim tinham sido recebidos tambeacutem com
hostilidade e a resposta do seu tio foi que ldquonatildeo negociava com molequerdquo e que
Olegaacuterio o filho mais velho de Manoel era quem teria que ir pessoalmente laacute para
que fosse feito qualquer acordo Esta fala de Sebastiatildeo Vicente mostra que soacute o
primogecircnito dentre os filhos de Manoel ndash que ademais nasceu e morou na aacuterea ndash
poderia reivindicar a parte do pai ao passo que Antocircnio ndash que saiu de MG com quatro
anos de idade ndash e Joaquim ndash que nasceu na regiatildeo de Presidente PrudenteSP no
municiacutepio de CaiabuSP ndash ambos filhos do segundo casamento natildeo seriam
172 Pelo que se pocircde observar ateacute o momento haacute uma possibilidade de que as mulheres segundo o
arranjo costumeiro natildeo fossem herdeiras pois no sistema tradicional camponecircs geralmente elas natildeo satildeo incluiacutedas na heranccedila sendo portanto recompensadas por meio do dote pago agrave famiacutelia do marido quando se casam Posteriormente a mulher eacute incluiacuteda na heranccedila do marido (SEYFERTH 1985) Para poder fazer esta afirmaccedilatildeo de modo mais consistente no entanto seraacute necessaacuterio um aprofundamento da pesquisa na regiatildeo Soacute desta forma seraacute possiacutevel compreender as regras locais sobre o direito de heranccedila 173 Os dados levantados indicam que este parece ser um caso de ldquoheranccedila indivisardquo ou ldquoheranccedila
impartiacutevelrdquo camponesa conforme o direito costumeiro tendo em vista que o modelo de heranccedila igualitaacuteria por todos os herdeiros previsto no direito civil natildeo corresponde agraves estrateacutegias acionadas no mundo rural brasileiro Neste modelo de ldquoheranccedila indivisardquo apenas um herdeiro fica com toda a propriedade familiar (SEYFERTH 1985) No caso em questatildeo a heranccedila fica para Sebastiatildeo Vicente ao passo que Manoel migra para o Paranaacute e Ana Raimunda natildeo herda nenhuma parcela
208
reconhecidos pelo tio neste sentido conforme apontariam as regras locais de direito
costumeiro
Deve-se levar em conta ainda que os acordos locais sobre os acertos de
heranccedila podem abranger estrateacutegias variadas conforme as condiccedilotildees de escassez de
terras bem como outros fatores importantes avaliados em um dado momento Aleacutem
desta possibilidade de variaccedilatildeo das proacuteprias regras conforme a situaccedilatildeo eacute possiacutevel
perceber neste caso especiacutefico da famiacutelia de Manoel que haacute uma variaccedilatildeo no modo
de interpretaccedilatildeo das regras a partir da perspectiva especiacutefica dos sujeitos que estatildeo
posicionados de modos diferentes na estrutura familiar Eacute possiacutevel tambeacutem que haja
uma combinaccedilatildeo da estrateacutegia interpretativa local com os argumentos da legislaccedilatildeo
civil nacional
No caso de Seu Joatildeo Adir e Geralda pude observar nas conversas sobre o
tema da heranccedila a presenccedila do entendimento de que os filhos de Manoel que
moraram na terra de sua avoacute Izidora teriam o direito de retorno e de reivindicaccedilatildeo de
uma parte da aacuterea mesmo depois de anos que saiacuteram da regiatildeo Galizoni em estudo
sobre a regiatildeo no Alto Vale do Jequitinhonha muito proacuteximo da aacuterea aqui em questatildeo
apontou como a entrada do herdeiro potencial com seu retorno apoacutes a migraccedilatildeo eacute
uma situaccedilatildeo conflituosa Isso porque se cria sobre a terra ldquocamadas de direitos que
convivem uns com os outros e se sobrepotildeemrdquo (GALIZONI 2002 571)
Idealmente todos os irmatildeos tecircm direitos iguais assim como todos os netos e bisnetos Acontece que no jogo de dados que se estabelece entre filhos (as) no interior da famiacutelia e as conjunturas externas dadas por migraccedilatildeo trabalho casamento processos de acumulaccedilatildeo e ambiente cria-se uma diferenciaccedilatildeo interna na famiacutelia que se refletiraacute nas diversificaccedilotildees de trajetoacuterias e destinos e seraacute fundamental para a construccedilatildeo do herdeiro e do migrante Essas diferenciaccedilotildees podem ocorrer tanto na mesma geraccedilatildeo ndash entre irmatildeos por exemplo ndash quanto entre geraccedilotildees no caso tios e sobrinhos A partilha da terra e a sua passagem entre geraccedilotildees ocorrem atraveacutes de um processo que se desenrola no interior da famiacutelia articulado com processos exteriores (GALIZONI 2002 571)
No jogo entre herdeiros a terra principal meio de produccedilatildeo e patrimocircnio dos
agricultores eacute valorizada como um recurso valioso de modo que as disputas entre
parentes pela heranccedila camponesa decorrem de sua escassez A interpretaccedilatildeo por
parte de Seu Joatildeo Adir e Geralda acima mencionada de que os filhos de Manoel
Ciriaco que viveram neste siacutetio em Santo Antocircnio do Itambeacute seriam ldquoherdeiros
potenciaisrdquo ndash entendendo a heranccedila como um viacutenculo simboacutelico que natildeo se dilui com
209
o tempo e que garante assim a possibilidade de retorno ou reivindicaccedilatildeo da parcela
hereditaacuteria ndash conjugou-se com a possibilidade discutida naquele momento de que
futuramente decidissem acionar judicialmente o direito agrave reparticcedilatildeo igualitaacuteria entre os
herdeiros previsto na legislaccedilatildeo
Os acircnimos entre Seu Joatildeo e Geraldo poderiam ter se exaltado mas a minha
presenccedila e a do professor Matheus que foi quem nos levou fizeram com que como
Seu Joatildeo comentou ele tivesse se contido de modo que preferiu se retirar a gerar
uma confusatildeo Mesmo sem conseguirem ver uma possibilidade de negociaccedilatildeo sobre
o direito que entendem possuir sobre aquela terra principalmente em referecircncia aos
trecircs irmatildeos mais velhos que laacute viveram para Geralda e Adir soacute o fato de terem ido
conhecer o siacutetio onde seu pai e sua avoacute Izidora moraram jaacute foi muito significativo
Se por um lado a postura de Seu Joatildeo reforccedila um conjunto de relaccedilotildees
comuns ao campesinato como questotildees de honra que estatildeo baseadas na valorizaccedilatildeo
do trabalho e do sofrimento que seu pai passou ali ndash o que sustenta a sua leitura da
atitude da famiacutelia de Sebastiatildeo Vicente como um ato de expropriaccedilatildeo ndash por outro
lado a postura de Geraldo pode estar embasada em regras de direito costumeiro que
sustentam estrateacutegias sucessorais locais jaacute que como analisamos acima o modo de
lidar com a heranccedila na aacuterea rural natildeo eacute uma praacutetica fixa que obedeccedila a regras gerais
do direito civil (SEYFERTH 1985 p 09)
Ao mesmo tempo reivindicar essa aacuterea seria retirar aqueles que atualmente
constroem suas vidas a partir dela jaacute que se conseguissem retomaacute-la provavelmente
natildeo haveria intenccedilatildeo de as famiacutelias de Jovelina Joatildeo e Olegaacuterio passarem a viver ali
O que mais se apontou foi a intenccedilatildeo de que a parcela hereditaacuteria fosse vendida
visando garantir melhores condiccedilotildees financeiras na localidade onde vivem hoje
Presidente PrudenteSP Com a impossibilidade de negociaccedilatildeo com Geraldo no
entanto esta questatildeo ficou suspensa para refletirem posteriormente se iriam mesmo
tomar qualquer atitude para reaver a aacuterea
Por fim no que toca aos descendentes de Sebastiatildeo Vicente tambeacutem
visitamos a casa da ex-mulher de seu filho Aniacutezio Aniacutezio estaacute haacute muitos anos
morando no Paraguai depois de ter vivido com os parentes em GuaiacuteraPR e natildeo
manteacutem mais contato com seus filhos Juliana ndash filha de Aniacutesio e sua ex-mulher
Ceciacutelia que retornou a morar em Santo Antocircnio do Itambeacute com a matildee em meados da
deacutecada de 1980 depois de terem vivido um periacuteodo na regiatildeo de GuaiacuteraPR com seu
210
pai ndash entregou a Adir entatildeo uma carta para que ele fizesse chegar ateacute Aniacutezio na
qual estava escrito
Meus irmatildeos satildeo Marcelo Erlindo Vardeti Pedro Eva
Uomesan (incompreensiacutevel) e Carlos Quase todos tem
famiacutelias Meu nome eacute Juliana tenho oito filhos um moreu
em asidenti de carro com bicicleta U nome deles satildeo
Karina Wilka Tomaz Francineli Joatildeo Vitor Camila
Igridi e Julia Eu queria encontrar meu pai para ele me
achuda minha casa taacute quase caindo o nome dele eacute Anizio
Dionizio de Paula Quando eu sai de terra rocha eu era
muito pequena Eu agora capino para sobreviver e cuidar
da minha famiacutelia Tudo que eu quero eacute encontrar meu pai
Eu queria que ele me achudace natildeo tem ninguem que me
achuda aleacutem de Deus e Nossa Senhora174
Ceciacutelia e seus filhos foram a uacutenica famiacutelia que depois de terem se mudado para
a regiatildeo de Guaiacutera (na carta Juliana cita que morou em Terra Roxa municiacutepio
vizinho) retornaram para Santo Antocircnio do ItambeacuteMG Este caso de retorno indica
como a modalidade de migraccedilatildeo se temporaacuteria ou definitiva soacute pode ser definida no
fim da vida das pessoas (GALIZONI 2002 p 569) Pelo que Juliana relata na carta e
pelas condiccedilotildees de moradia que vimos na casa de Ceciacutelia atualmente estatildeo
passando por muitas dificuldades financeiras e podem vir a ser uma das famiacutelias com
interesse em retornar para o siacutetio em GuaiacuteraPR a partir da regularizaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo
da aacuterea por meio do procedimento em tracircmite no INCRA
324 Novos movimentos
Depois de nossa estadia em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG retornamos para
SerroMG de onde pegamos um ocircnibus para Belo HorizonteMG De laacute eu e Cassius
embarcamos de aviatildeo para CuritibaPR enquanto Adir e Geralda voltaram de aviatildeo
ateacute CascavelPR e de laacute puderam seguir de ocircnibus ateacute GuaiacuteraPR Seu Joatildeo por sua
vez foi de ocircnibus ateacute Presidente PrudenteSP Interessante destacar que em
Cascavel Adir e Geralda pernoitaram na casa de parentes e tambeacutem aproveitaram
para fazer uma visita e ldquocolocar a conversa em diardquo
174 Adotei o uso de um formato de letra que se aproxime da letra cursiva para fazer referecircncia agrave transcriccedilatildeo de textos escritos por meus interlocutores(as)
211
Com o impacto que a primeira viagem teve para Adir Geralda e Seu Joatildeo
bem como para mim e para Cassius a possibilidade de um retorno ndash visando a
conclusatildeo de algumas questotildees prementes que ficaram abertas com esta retomada
do contato ndash fez com que eu e Cassius jaacute iniciaacutessemos o planejamento de uma nova
viagem A intenccedilatildeo agora era que D Maria das Dores fosse ateacute Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG reencontrar suas irmatildes e que D Jovelina encontrasse sua tia D Ana
Raimunda em SerroMG e a trouxesse para morar com ela em Presidente
PrudenteSP Demorou quase trecircs meses ateacute que todo este processo fosse articulado
Em 05 de junho uma sexta-feira eu e Cassius desembarcamos de aviatildeo em Belo
HorizonteMG enquanto D Maria das Dores e D Jovelina viajavam juntas de ocircnibus
desde Presidente PrudenteSP Desta vez tanto D Ana Raimunda como D Zulmira
e D Regina estavam cientes da nossa chegada e nos aguardavam para aquele fim
de semana
Eu e Cassius resolvemos entatildeo alugar um carro em Belo Horizonte para que
pudeacutessemos ter mais autonomia nos deslocamentos entre Serro e Santo Antocircnio do
Itambeacute e tambeacutem para proporcionar mais conforto agraves duas senhoras D Maria das
Dores e D Jovelina que estavam conosco aleacutem da possibilidade de que D Ana
Raimunda tambeacutem retornasse no final da viagem Por outro lado a opccedilatildeo do aluguel
do carro fez com que nos programaacutessemos para ficar apenas o final de semana jaacute
que tiacutenhamos que devolvecirc-lo na segunda-feira dia 08 de junho Apesar de ter sido
uma viagem curta como veremos abaixo este final de semana proporcionou
segundo elas tudo o que D Maria das Dores e D Jovelina almejavam
3241 O reencontro das irmatildes
Quando chegamos na casa de D Zulmira com D Maria das Dores e D
Jovelina jaacute era de madrugada e elas ficaram sem dormir conversando muito felizes
de poderem se atualizar sobre as histoacuterias as experiecircncias de vida os sofrimentos e
as alegrias Aquele reencontro tatildeo esperado tinha se concretizado No outro dia de
manhatilde saacutebado 06 de junho foi que D Maria encontrou entatildeo D Regina que eacute
vizinha de sua irmatilde D Zulmira
Eu e D Zulmira fomos na padaria comprar patildeo para o cafeacute D Zulmira estava
tatildeo eufoacuterica por conta do reencontro com sua irmatilde que foi logo contando para o dono
212
da padaria Alex sobre a vinda de D Maria das Dores que natildeo via haacute muitos anos
Alex que era tambeacutem comentarista nas missas da Igreja de Santo Antocircnio ficou muito
feliz com a notiacutecia de D Zulmira Comentou entatildeo da possibilidade de conversar com
o padre para pedir que eu fizesse um testemunho na missa que ocorreria agraves 19h
contando esta histoacuteria do reencontro entre as irmatildes Este convite se justificava
tambeacutem pelo fato de que aquele dia 06 de junho era o primeiro dia dos festejos para
Santo Antocircnio cuja ldquodata augerdquo da festa seria no saacutebado seguinte dia 13 de junho o
dia do santo Esta sincronia da nossa chegada com o calendaacuterio sagrado daquele
lugar fez com que Alex atribuiacutesse agrave intercessatildeo de Santo Antocircnio aquele
acontecimento que era tatildeo esperado por D Zulmira e D Regina
Os eventos relacionados ao catolicismo como a Festa de Santo Antocircnio o
santo padroeiro do municiacutepio satildeo os grandes eventos da sociabilidade local na regiatildeo
do Vale do Jequitinhonha (PORTO 2007 p 156) Assim que chegou a notiacutecia de que
o padre tinha concordado com a ideia os parentes ficaram muito animados e felizes
principalmente as trecircs irmatildes que consideraram este fato uma importante forma de
reconhecimento e valorizaccedilatildeo local da histoacuteria da famiacutelia bem como uma confirmaccedilatildeo
do caraacuteter sagrado daquele reencontro
Conversei entatildeo com D Maria das Dores que mesmo sendo evangeacutelica
aceitou e ficou feliz com a possibilidade de dar seu testemunho mas fez questatildeo de
apontar que segundo seu ponto de vista natildeo se tratava de milagre do santo mas de
obra de Deus diretamente No primeiro capiacutetulo destaquei neste sentido a
importacircncia das relaccedilotildees de continuidade percebidas pelos meus interlocutores(as)
entre diferentes religiotildees para aleacutem das divergecircncias existentes Podemos nos
lembrar por exemplo da fala de Eva de que ldquoDeus eacute um soacuterdquo compreensatildeo novamente
reforccedilada pela decisatildeo de D Maria das Dores em participar do ritual catoacutelico
Combinamos entatildeo que eu faria uma pequena fala introdutoacuteria e passaria o
microfone para ela relatar sua chegada em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG depois de
muitos anos sem contato com a famiacutelia E assim fizemos Depois da comunhatildeo como
estava acertado Alex que estava fazendo os comentaacuterios da missa fez um gesto
sinalizando que era a hora de subirmos ateacute o altar D Maria das Dores depois de
minha pequena introduccedilatildeo contextualizando a pesquisa e o subsiacutedio que havia sido
dado para aquele reencontro agradeceu a Deus pela oportunidade de seu retorno
que era uma grande benccedilatildeo na sua vida e de seus familiares Contou um pouco de
213
sua trajetoacuteria e fez questatildeo de enfatizar que ela natildeo tinha saiacutedo de Santo Antocircnio do
ItambeacuteMG ldquopor orgulhordquo mas porque ldquotinha sido buscadardquo Afirmou que temos
sempre que glorificar a Deus por suas obras e concluiu sua fala de modo um tanto
tiacutemido mas com muita firmeza
No final da missa as trecircs irmatildes foram novamente ateacute o altar para
cumprimentar e agradecer ao padre tirar fotos e neste momento foram aplaudidas
por todos os presentes Apoacutes a missa houve uma confraternizaccedilatildeo em frente agrave Igreja
onde havia uma barraca na qual se podiam comprar comidas e bebidas iniciando as
festas juninas
FIGURA 35 As trecircs irmatildes na missa na Igreja de Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
De alguma forma eu e Cassius fizemos parte daquilo que para elas era
consequecircncia de um milagre e segundo afirmaram vaacuterias vezes tiacutenhamos sido
enviados por Deus para trazer esta benccedilatildeo para a famiacutelia Interessante observar
neste sentido como o catolicismo eacute uma linguagem muito presente que sustenta o
modo de compreensatildeo das pessoas e lhes daacute um horizonte de futuro bem como uma
estabilidade no presente mesmo em situaccedilotildees de adversidade Ao falarem da morte
por exemplo usam a expressatildeo ldquoDeus levourdquo ao comentarem que moram sozinhos
214
ressalvam ldquomoro eu e Deusrdquo ao dizerem que natildeo podem contar com ningueacutem como
na carta de Juliana lembram-se da ajuda ldquode Deus e Nossa Senhorardquo Esta
concepccedilatildeo catoacutelica de mundo eacute tida como a forma legiacutetima de falar dos
acontecimentos e dizer que eacute um milagre natildeo traz necessariamente um sentido de
extraordinaacuterio pois tudo estaacute sobre o domiacutenio da justiccedila divina O sagrado portanto
faz parte do cotidiano e fornece a base dos valores fundamentais a serem seguidos
a partir da religiosidade cristatilde (PORTO 2007 p 157)
Nos dois dias que D Maria passou em Santo Antocircnio do Itambeacute ela pocircde
reencontrar vaacuterios sobrinhos e tambeacutem parentes que ainda natildeo conhecia pois a
maioria foi lhe ver na casa de suas irmatildes Ela foi muito bem recebida e acolhida por
todos que estavam em clima de festa A partir deste reencontro trocaram contatos no
intuito de que natildeo haja mais um lapso de convivecircncia e de comunicaccedilatildeo como ocorrido
anteriormente
FIGURA 36 D Maria sentada na cadeira ao lado de sua irmatilde D Zulmira (no canto esquerdo) sua
sobrinha com o marido e os filhos
215
Antes de partimos gravamos um viacutedeo com as trecircs irmatildes contando sobre
como tinha sido aquele reencontro D Maria das Dores entatildeo comentou
D Maria Que noacutes foi muito bem recebida E eu tenho trecircs irmatildeos em Belo Horizonte e ateacute isso eu jaacute consegui conversar hoje com uma soacute E amanhatilde eu espero que se Deus quiser ela taacute na rodoviaacuteria pra noacutes se ver Entatildeo eu fiquei muito feliz neacute porque a gente viu meu sobrinho tudo minha sobrinha tocirc muito alegre Gloacuteria a Deus por isso E eu vou falar verdade que eu fui muito bem recebida na casa da cumadi Zulmira minha irmatilde e na casa da cumadi Regina E graccedilas a Deus laacute eu vou levando muita alegria porque tocirc vendo que taacute tudo bem neacute tudo em ordem muita fartura muita alegria e muita uniatildeo Gloacuteria a Deus por isso
Por fim jaacute na rodoviaacuteria de Belo Horizonte mais um reencontro aconteceu
entre D Maria das Dores e suas duas irmatildes que moram na capital mineira Teresa e
Anita Elas haviam combinado por telefone enquanto estaacutevamos em Santo Antocircnio
do Itambeacute que na segunda-feira se encontrariam na rodoviaacuteria da capital O uacutenico
irmatildeo que D Maria natildeo viu foi Joaquim que tambeacutem mora em Belo Horizonte mas
natildeo pocircde encontraacute-la naquele dia Segundo D Maria das Dores ela ficou imaginando
a possibilidade de um novo retorno com mais tempo para um encontro entre todos
os irmatildeos em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG
FIGURA 37 (Da esquerda para a direita) Teresa D Maria das Dores e Anita na rodoviaacuteria de Belo Horizonte
216
3242 D Jovelina e o convite para a tia Ana Raimunda
D Jovelina estava ansiosa pelo reencontro com a tia Ana Raimunda que natildeo
via haacute cinquenta e nove anos desde que saiu de laacute em 1956 quando tinha catorze
anos Nesta segunda viagem depois de termos pousado a primeira noite na casa de
D Zulmira em Santo Antocircnio do ItambeacuteMG no saacutebado pela manhatilde eu e Cassius
levamos D Jovelina na casa de D Ana Raimunda que morava em Serro Quando
chegamos D Ana Raimunda nos aguardava tambeacutem ansiosa pois haviacuteamos dito que
chegariacuteamos na noite anterior o que natildeo havia sido possiacutevel O encontro entre as
duas foi de muita alegria
Dandara Bom dia pra senhora
D Ana Bom dia tudo bem
Dandara Tudo bom Graccedilas a Deus
D Jovelina Ei minha matildeezinha do ceacuteu sua benccedilatildeo
D Ana Oi minha fia tem anos que eu natildeo vejo pelo amor de Deus Que tempo Jaacute tem uns quarenta anos ou mais
D Jovelina Eu natildeo to acreditando meu Deus do Ceacuteu
D Ana Jaacute tem uns quarenta anos ou mais Hein
D Jovelina Acho que eacute sessenta anos
D Ana Sessenta anos Noacute pelo amor de Deus Sumiu
D Jovelina A senhora vai comigo agora dessa vez
D Ana Que dia que vocecirc vai
D Jovelina Segunda-feira
D Ana Graccedilas a Deus Eu tocirc arrumando Que eacute eu sozinha com Deus aqui oacuteh (junta as matildeos como em oraccedilatildeo)
D Jovelina Agora eu vou te levar pra laacute vou ponhar papinha na sua boca
D Ana Eu sei boba
D Jovelina Vou te dar banho vou te carregar ponha na cama pra dormir
D Ana (risos) Ograve minha companheira
D Jovelina O que eu puder fazer eu vou fazer
D Ana Se Deus quiser Vai dar um pouquinho de confusatildeo mas vai dar certo Eu gostei que vocecirc vai segunda que segunda vai daacute tempo de noacutes arrumar tudo Vamo entrar pra dentro
217
FIGURA 38 Reencontro de Ana Raimunda com Jovelina depois de 59 anos
D Ana Raimunda jaacute estava se preparando para ir para a casa de D Jovelina
em Presidente PrudenteSP e contou com a ajuda da sobrinha que passou com ela
o final de semana para organizar e levar o maacuteximo de coisas possiacuteveis Ela disse que
natildeo estava se mudando definitivamente pois ainda teria que voltar para Serro com o
intuito de vender a casa que era de seu falecido marido Teacuteofilo e ver questotildees
relacionadas agrave heranccedila entre ela e os dois filhos dele
D Ana estava muito feliz pois agora teria sempre companhia cuidados amor
de familiares e natildeo ficaria mais tatildeo sozinha e desamparada como se sentia ali Na
segunda-feira pela manhatilde conseguimos despachar as vaacuterias sacolas e bagagens de
D Ana pelo ocircnibus e seguimos de carro ateacute a rodoviaacuteria de Belo Horizonte D Ana
estava muito tranquila durante todo o percurso e assim foi ateacute chegar em Presidente
PrudenteSP acompanhada de D Jovelina e D Maria das Dores que seguiram
viagem juntas D Ana estaacute haacute cinco meses morando com D Jovelina e se sente muito
bem junto da famiacutelia como pude observar em agosto de 2015 quando fui visitaacute-la na
casa de D Jovelina
218
FIGURA 39 D Ana Raimunda com os parentes em Presidente PrudenteSP na casa da sobrinha Jovelina
Eacute possiacutevel perceber deste modo como estes reencontros apontaram para
dinacircmicas que operam entre relaccedilotildees de proximidade e de distacircncia em famiacutelias
como esta marcadas por situaccedilotildees de deslocamento natildeo haacute rupturas definitivas mas
potencialidades que podem dinamizar ou colocar as relaccedilotildees em letargia A facilidade
e a intensidade da retomada do contato por meio das viagens realizadas nas quais
foram refeitos partes dos caminhos de seus ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100)
confirmaram a forccedila do sentimento de viacutenculo com os parentes e de continuidade com
este passado comum
Da situaccedilatildeo de isolamento que se reportavam em relaccedilatildeo agrave experiecircncia do
grupo em GuaiacuteraPR antes do autorreconhecimento como quilombolas foi possiacutevel
chegar a um novo momento em que houve um acionamento significativo da ampla
rede social de parentesco Ademais estas relaccedilotildees de parentesco entre as famiacutelias
que se deslocaram para o estado de Satildeo Paulo e para o Paranaacute e as famiacutelias
quilombolas da regiatildeo de origem tende a operar como um iacutendice da ldquoquilombolidaderdquo
do grupo Eacute possiacutevel assim identificar trecircs momentos centrais de institucionalizaccedilatildeo
da alteridade da ldquoComunidade Quilombola Manoel Ciriaco dos Santosrdquo
219
(a) no primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo natildeo foi reconhecido pelos
pesquisadores nenhum ldquograurdquo de alteridade
(b) no segundo relatoacuterio antropoloacutegico foi fundamentada a existecircncia de
alteridade em continuidade com o passado mineiro do grupo com base na pesquisa
realizada na regiatildeo de SerroMG e
(c) com as duas viagens de volta realizadas em marccedilo e junho de 2015 houve
por fim um significativo fortalecimento do sentimento de continuidade dos quilombolas
com sua origem comum bem como maiores subsiacutedios para sustentar a legitimidade
histoacuterica e a possibilidade de reivindicaccedilatildeo de direitos do grupo no presente
De algum modo como jaacute mencionamos foi esta demanda por coesatildeo e
coerecircncia das narrativas do grupo que impulsionou o retorno dos proacuteprios quilombolas
agrave regiatildeo de origem como um aprofundamento do processo de ldquoauto-organizaccedilatildeo em
termos poliacuteticosrdquo e concomitantemente de ldquoarticulaccedilatildeo dos antigos costumes e
formas de relacionamento social com as novas regras a que estatildeo submetidosrdquo
(ARRUTI 1997 23-24) Para aleacutem desta dimensatildeo pragmaacutetica houve uma
transformaccedilatildeo natildeo soacute na identidade quilombola com a multiplicaccedilatildeo dos espaccedilos
pelos quais eacute validada (ARRUTI 1996) mas tambeacutem na vida e nas trajetoacuterias dos
sujeitos envolvidos com estas experiecircncias de retorno
A realizaccedilatildeo destas duas viagens agrave Minas Gerais em marccedilo e junho de 2015
criou um entrelaccedilamento do movimento dos meus interlocutores(as) e do processo de
pesquisa que gerou esta dissertaccedilatildeo Este diaacutelogo aberto decorre da proximidade e
da relaccedilatildeo de confianccedila que jaacute possuiacuteamos criada por meio de um contato que se
estende desde 2011 Foi portanto a circulaccedilatildeo por espaccedilos institucionais a partir do
autorreconhecimento como quilombolas que os conectou com agentes do estado e
com pesquisadores como eu e Cassius que criou um contexto favoraacutevel para a
realizaccedilatildeo dessas viagens de volta
Neste percurso sinuoso da trajetoacuteria histoacuterica destas famiacutelias quilombolas
marcada por continuidades e descontinuidades busquei compreender o grupo ldquopor
meio dos fluxos que o atravessam e que o ligam a agentes e fenocircmenos distribuiacutedos
por diferentes locais escalas e temposrdquo (ARRUTI 2006 p 35) Foi possiacutevel perceber
deste modo como a histoacuteria da comunidade eacute construiacuteda como resultado de um
processo de negociaccedilatildeo Como jaacute mencionado a adoccedilatildeo da identidade implica na
proacutepria produccedilatildeo dessa realidade em uma relaccedilatildeo dialeacutetica entre o herdado e o
220
projetado (ARRUTI 1997 p 28) a partir da categoria geneacuterica de ldquoquilombolardquo cujo
caraacuteter juriacutedico-administrativo eacute o caminho pelo qual as coletividades organizadas
podem se auto-objetivar (ARRUTI 2006 44)
A ldquoplasticidade identitaacuteriardquo formadora desses grupos permite efetivamente que eles ldquoresgatemrdquo ldquorecuperemrdquo elementos substantivos de identidade que passam a integrar seus processos de emergecircncia mas como ldquomateacuterias-primasrdquo que precisam ser manufaturadas pelas forccedilas mobilizadas no seu interior na forma de desejos coletivos (ARRUTI 1997 p 28)
Este passado pensado em comum estaacute portanto sendo elaborado a partir
do momento presente (OLIVEIRA FILHO SANTOS 2003 p 24) o que destaca o
lugar central que estas viagens a Minas Gerais passaram a ocupar em tal processo
de reelaboraccedilatildeo da memoacuteria Imagino ter sido suficientemente exposto ao longo
deste trabalho a centralidade para estas famiacutelias quilombolas do que podemos
compreender por meio da expressatildeo ldquodever de memoacuteriardquo entendido ldquocomo um ldquodireito
agrave reparaccedilatildeo em funccedilatildeo do esquecimento e guetificaccedilatildeo a que foram submetidas suas
histoacuterias ao longo do seacuteculo XXrdquo (MATTOS ABREU 2011 p 150) Com as viagens
realizadas em marccedilo e junho de 2015 este ldquodever de memoacuteriardquo se transformou em
algo acessiacutevel para os proacuteprios quilombolas de GuaiacuteraPR ao retraccedilarem o caminho
de seus ancestrais (INGOLD 2007 p 99-100) Por meio destas viagens foi possiacutevel
compreender na praacutetica a necessidade de dessubstancializaccedilatildeo da identidade no
sentido de perceber como esta eacute construiacuteda pela tomada de consciecircncia sobre as
diferenccedilas e natildeo pelas diferenccedilas em si (SCHWARCZ 1999 p 296)
221
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Eu vou contar um pouco da minha histoacuteria pra vocecircs
Dandara e alguns mais importante com esse assunto Em
primeiro lugar o assunto eacute esse eu era companheiro de
minha matildee aos 4 anos e meio de idade eu completei 5 anos
na estrada muito sofrido ateacute que um senhor passou por ela
e chegou ateacute falar ldquodona a senhora vai matar esse menino
por favor natildeo faccedila isso natildeordquo Mais com todos sofrimentos ela
foi pelejando com a vida e noacutes continuamos mais tem aquele
ditado ldquoquem tem feacute em Deus vencerdquo Era muito difiacutecil porque
tudo era com o sofrimento ateacute para agente estudar tinha
que andar 4 km para ir e mais 4 km de voltar tinha que ir
a peacute as vez ateacute discalccedilo nem sapato noacutes natildeo tinha tempo de
frio com bluza uma calccedila todos dias sempre furava o fundo
era costurado toda vez tinha hora que natildeo tava nem
aceitando remendo mais natildeo tinha onde remendar mais
Quando a gente ganhava alguma peccedila de roupa agente
nem sabia o que fazia de tanta alegria Tinha que ir a aula
e voltar de pressa para poder ganhar uns troco ainda porque
meu pai era doente natildeo podia trabalhar que ele sentia um
bronquite forte e ficava muito canccedilado coitado ele viveu ateacute
43 anos com muito sofrimento e agente natildeo podia deixar
sem o remeacutedio porque agente tinha doacute que noacutes natildeo queria
ver ele naquele sofrimento era muito triste o estado que ele
ficou mais fazer o que todos noacutes tem que passar por isso A
gente comeccedilou a trabalhar muito cedo mais a gente soacute
ajudou os outros arrumar a vida deles e noacutes ficou Eu tive
uma chance no quartel eles queria que servisse mais por
motivo do falecimento do meu pai eu natildeo pude servi outra
chance eu tive tambeacutem foi no accedilougue para trabalhar natildeo
pude tambeacutem porque noacutes tinha lavoura de algodatildeo mais
natildeo dava muito porque era as meias tudo dividido pela
metade e assim noacutes continuamos Mais graccedila a Deus estamos
ai mais natildeo pode perder a esperanccedila cada um de noacutes temos
a nossa cruz para carregar ningueacutem passa por ela a num
ser a gente Hoje graccedilas meu Bom Deus eu tenho um lugar
para agente amparar uma motinha natildeo eacute nova mais da
para agente quebrar um galho temos roupas temos
alimentos para noacutes poder alimentar temos lugar para poder
plantar alguma coisa O que noacutes queremos eacute um apoio do
Governo Federal e temos que trabalhar reunidos com paz e
amor e concentrar naquilo que estamos fazendo Fazemos
um projeto para termos um sombrite para organizar melhor
a horta para sair uns bons lucros o sombrite ajuda e proteja
do sol e o tempo da geada Escrevido por Antocircnio Aparecido
dos Santos
222
Este texto trazido como epiacutegrafe destas consideraccedilotildees finais foi escrito por
Antocircnio Aparecido dos Santos marido de Geralda e entregue a mim enquanto estive
hospedada em sua casa na vila Eletrosul durante o trabalho de campo realizado em
GuaiacuteraPR Antocircnio conhecido pelo seu apelido Guaraacute eacute filho de Maria Madalena
Rocha dos Santos e Joseacute dos Santos175 casal que tambeacutem era proveniente de Santo
Antocircnio do ItambeacuteMG e viveram em GuaiacuteraPR ateacute falecerem O texto de Antocircnio eacute
aqui destacado por ser significativo para pensar a importacircncia de aspectos analisados
ao longo desta dissertaccedilatildeo sobre este grupo quilombola Desta histoacuteria que Antocircnio
nos conta a mim e ldquoalguns mais importante com esse assuntordquo gostaria de analisar
alguns elementos
Antocircnio deixa expliacutecito logo no iniacutecio de sua narrativa sua expectativa de que
ela pudesse chegar ateacute pessoas que tenham interesse e atuaccedilatildeo com a temaacutetica
quilombola de modo que haja publicidade para suas memoacuterias para sua trajetoacuteria de
luta e feacute bem como para seus anseios de que haja uma melhor condiccedilatildeo de vida para
as famiacutelias Articula suas reflexotildees assim de modo a destacar elementos desta
memoacuteria que satildeo definidos por ele como significativos a partir do momento presente
de sua vida e da sua percepccedilatildeo sobre a trajetoacuteria coletiva do grupo quilombola
Ele ressalta em primeiro lugar como completou cinco anos ldquona estradardquo Filho
uacutenico era o companheiro de sua matildee jaacute que seu pai estava doente Ao acompanhaacute-
la em suas tarefas diaacuterias ele narra como ainda muito novo tinha que enfrentar
extensos trajetos de caminhada Para estudar novamente a experiecircncia do sofrimento
trazido por este caminhar mas acrescenta ldquoquem tem feacute em Deus vencerdquo e assim
sugere a importacircncia que atribui agrave religiosidade para a superaccedilatildeo das adversidades
da vida e da cruz que cada um tem que carregar Como vimos no primeiro capiacutetulo
este modo de elaborar a experiecircncia do sofrimento na interface com a feacute constroacutei um
saber sobre o mundo Saber pautado pela religiosidade cristatilde que vista pela lente de
um catolicismo negro eacute permeada pela religiosidade umbandista da qual Antocircnio eacute
adepto junto com sua esposa Geralda
Quando ainda crianccedilas voltavam da escola depois de oito quilocircmetros de
caminhada percorrida Antocircnio conta como tinham ainda que enfrentar uma jornada
de trabalho na roccedila que no caso dele era ainda mais necessaacuterio pelo fato de que ele
175 Joseacute dos Santos era irmatildeo de Geraldo do Santos que adquiriu um dos lotes da aacuterea original da
famiacutelia em GuaiacuteraPR
223
e a matildee tinham que cuidar de seu pai adoentado O trabalho que os membros da
comunidade realizaram desde muito novos para sobreviver contribuiu segundo ele
ldquoparra arrumar a vida delesrdquo se referindo agrave melhoria da situaccedilatildeo econocircmica dos
proprietaacuterios vizinhos e em contraste ldquonoacutes ficourdquo mostrando que natildeo foi possiacutevel
reverter os benefiacutecios deste trabalho para as proacuteprias famiacutelias da comunidade Este
contexto de interaccedilatildeo com os proprietaacuterios vizinhos a experiecircncia de ldquotrabalhar para
os outrosrdquo permeia a histoacuteria do grupo e eacute interpretada pelos quilombolas como uma
reproduccedilatildeo da situaccedilatildeo de preconceito e exclusatildeo ndash um dos fatores que motivou o
movimento de saiacuteda das famiacutelias de Minas Gerais Se o deslocamento era uma
estrateacutegia de busca por autonomia e liberdade visando a superaccedilatildeo dos processos
de exclusatildeo nos quais estavam inseridos o processo de fixaccedilatildeo em um novo contexto
acaba por reproduzir as relaccedilotildees de dominaccedilatildeo
Antocircnio faz referecircncias entatildeo a oportunidades de profissionalizaccedilatildeo que teve
quando jovem fora da aacuterea rural e complementa explicando os motivos pelos quais
natildeo foi possiacutevel investir nestas carreiras A alternativa de inserccedilatildeo no mercado de
trabalho urbano natildeo se consolida como um caminho de fato viaacutevel de modo que a
estruturaccedilatildeo de sua vida continua passando pelo trabalho na aacuterea rural mesmo
quando vai residir em uma vila da periferia de GuaiacuteraPR E novamente reforccedila a
importacircncia da feacute da esperanccedila e da gratidatildeo a Deus na melhoria de suas condiccedilotildees
de vida pois atualmente ele e sua esposa tecircm moradia proacutepria um meio de transporte
(motinha) roupas alimentos Aleacutem disso a permanecircncia da famiacutelia no territoacuterio em
GuaiacuteraPR permite a reproduccedilatildeo do trabalho familiar um certo niacutevel de autonomia
alimentar um modo de vida especiacutefico
Este ldquolugar para poder plantar alguma coisardquo ao qual Antocircnio se refere foi
deixado por seus pais e parentes mais velhos que empreenderam este processo de
chegada e conquista do territoacuterio em Guaiacutera Assim apesar de sempre ter sido
considerada uma aacuterea insuficiente para o nuacutemero de famiacutelias que nela viviam era a
garantia que poderiam deixar para seus filhos e descendentes ndash um lugar para morar
para plantar trabalhar e viverem unidos Por isso Manoel deixou como conselho que
seus filhos nunca vendessem este patrimocircnio familiar que ele lhes deixaria como
heranccedila Como Joatildeo Aparecido filho de Manoel me contou durante uma entrevista
Manoel sofreu muito para poder comprar esse ldquopedacinho de terrardquo pois quando
chegou em GuaiacuteraPE era soacute mato ldquoele natildeo tinha nem comida nem roupa nem nadardquo
224
Ficou anos trabalhando roccedilando aacutereas derrubando a mata e plantando milho e feijatildeo
para conseguir pagar parcelado o valor da terra Segundo Joatildeo ele colhia o milho
debulhava e levava para vender ateacute GuaiacuteraPR ndash caminhava carregando aquele peso
nas costas pelas picadas estreitas por dentro do mato e gastava o dia inteiro para ir
e voltar Todo este sofrimento de Manoel dos pais de Antocircnio e demais familiares
cria assim um compromisso moral dos seus descendentes de seguirem o exemplo
deixado e tambeacutem lutarem sempre lsquotrabalhando na honestidaderdquo
Assim em contraste com o ldquotrabalho para os outrosrdquo que remete na narrativa
de Antocircnio agrave experiecircncia de exploraccedilatildeo e estagnaccedilatildeo ele ressalta ao final de seu
texto o que vislumbra para o futuro o projeto coletivo de autonomia por meio da
geraccedilatildeo de renda para as famiacutelias no proacuteprio territoacuterio com o ldquoapoio do Governo
Federalrdquo para que possam ldquotrabalhar reunidos com paz e amor e concentrar naquilo
que estamos fazendordquo Um lugar portanto que antes mais nada sustenta a
possibilidade de uma vivecircncia coletiva
De um modo mais amplo como vimos um dos aspectos centrais do projeto de
futuro da comunidade eacute a possibilidade natildeo soacute de as famiacutelias que laacute vivem atualmente
permanecerem neste territoacuterio como tambeacutem garantir o aumento do nuacutemero de
famiacutelias da comunidade Esta ampliaccedilatildeo que esperam seja garantida com a conclusatildeo
do procedimento de regularizaccedilatildeo territorial do INCRA proporcionaraacute o aumento do
nuacutemero de famiacutelias da comunidade a partir do retorno de parentes que estatildeo sofrendo
em vaacuterias cidades os quais assim eacute esperado teratildeo condiccedilotildees entatildeo para geraccedilatildeo
de renda no proacuteprio territoacuterio com o acesso a poliacuteticas puacuteblicas necessaacuterias
Satildeo as dinacircmicas de parentesco que justificam a ampliaccedilatildeo do territoacuterio visto
como referecircncia mas natildeo como limite para o pertencimento identitaacuterio o qual se abre
para uma rede expandida de famiacutelias que se encontram espalhadas por todo o canto
como comentado por Adir em depoimento durante a primeira viagem para Minas
Gerais apresentado no terceiro capiacutetulo Este caso nos permite assim relativizar a
ideia de territorialidade como qualidade imanente e percebecirc-la a partir de uma busca
pela conquista de locais em que fosse possiacutevel a reproduccedilatildeo do modo de vida
especiacutefico ndash por meio de movimentos de deslocamento que desenham uma linha de
continuidade em uma longa trajetoacuteria Movimentos que satildeo eles mesmos iacutendices da
resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida e do desrespeito coletivo ao qual se sentem
submetidos
225
A relaccedilatildeo naturalizada entre identidade e territorialidade como apontamos
tem sido pressuposta pela poliacutetica puacuteblica de regularizaccedilatildeo territorial das
comunidades quilombolas no Brasil Trata-se de uma projeccedilatildeo da ideia de
enraizamento que necessita ser revisada e contextualizada historicamente ndash como
nos aponta este caso especiacutefico da experiecircncia quilombola em GuaiacuteraPR ndash para que
natildeo atue como fator limitador da possibilidade de reconhecimento de direitos a grupos
que natildeo se encaixem no padratildeo estabelecido como modelo Neste sentido a
percepccedilatildeo de continuidade natildeo necessariamente se enquadra nas expectativas da
poliacutetica de reconhecimento que tendem a desconsiderar a complexidade desta
conexatildeo com o passado enquanto dinacircmica de ldquorecuperaccedilatildeo do processo histoacuterico
vivido por tal grupordquo bem como de ldquorefabricaccedilatildeo constante de sua unidade e diferenccedila
em face de outros grupos com os quais esteve em interaccedilatildeordquo (OLIVEIRA FILHO
1994a p123) ndash presente mesmo em casos de comunidades que incluem em suas
trajetoacuterias a experiecircncia do deslocamento entre territoacuterios
O retorno agrave regiatildeo de origem foi impulsionado como vimos a partir do
processo conturbado de reconhecimento do grupo como quilombolas que gerou a
produccedilatildeo de dois relatoacuterios antropoloacutegicos no acircmbito do procedimento que ainda
tramita no INCRA Este regresso no entanto como apontei na introduccedilatildeo natildeo faz
desta linha de movimento um ciacuterculo que se fecha mas uma dinacircmica em espiral que
se abre para novos movimentos em busca de um futuro norteado pelo pertencimento
a um passado comum e pelos valores compartilhados por esta identidade coletiva Tal
abertura para novos movimentos se fez presente de um modo muito significativo na
mudanccedila de D Ana Raimunda com 87 anos de idade que deixou sua casa em Serro
e se mudou para Presidente PrudenteSP onde atualmente mora com sua sobrinha
Jovelina
A defesa de um deslocamento conceitual da ideia de quilombo tido como
sobrevivecircncia para a ressemantizaccedilatildeo do termo tendo em vista os sujeitos que se
reconhecem como quilombolas no presente (ALMEIDA 2002 p 64) pode ser ainda
ampliada com base nesta experiecircncia de pesquisa Refiro-me assim a um
deslocamento conceitual que inclua tambeacutem o reconhecimento dos proacuteprios
movimentos e deslocamentos dos grupos quilombolas como processo que natildeo retira
a legitimidade de suas reivindicaccedilotildees identitaacuterias e territoriais Este reconhecimento
tem suporte historiograacutefico nas pesquisas que apontam para a intensa movimentaccedilatildeo
226
da populaccedilatildeo negra no contexto do poacutes-aboliccedilatildeo (LIMA 2000) movimento que tinha
como sentido a saiacuteda de aacutereas de colonizaccedilatildeo histoacuterica como a regiatildeo de Minas
Gerais para aacutereas de colonizaccedilatildeo recente como eacute a regiatildeo de GuaiacuteraPR no caso
em questatildeo
Minha interaccedilatildeo com estas famiacutelias quilombolas eacute fruto da circulaccedilatildeo da
comunidade representada por suas lideranccedilas em espaccedilos institucionais aos quais
passaram a acessar com o autorreconhecimento como quilombolas e a inserccedilatildeo no
movimento poliacutetico estadual em articulaccedilatildeo com demais comunidades Enquanto
relaccedilatildeo estabelecida com o grupo primeiro em uma posiccedilatildeo de agente do Estado
como assessora no Ministeacuterio Puacuteblico do Paranaacute depois como mestranda em
antropologia tive que lidar com esta posiccedilatildeo ambiacutegua que explicita meu duplo
pertencimento acadecircmico que transita entre o direito e antropologia
Acredito que com a convivecircncia cotidiana e a possibilidade de
aprofundamento dos viacutenculos a relaccedilatildeo que antes era de intermediadora de suas
demandas dentro do oacutergatildeo ministerial passou a ser a posiccedilatildeo de algueacutem com quem
pudessem compartilhar suas histoacuterias experiecircncias e sonhos dentro dos quais me vi
imersa Esta imersatildeo possibilitou que pudeacutessemos trilhar juntos o caminho de volta
ateacute Minas Gerais e sem perceber de iniacutecio eu estava tambeacutem sendo levada por esta
linha de movimento dos seus antepassados ndash que se tornou norteadora das
estrateacutegias de pesquisa e da redaccedilatildeo deste trabalho bem como o objeto de reflexatildeo
central fruto da relaccedilatildeo entre pesquisador e sujeitos de pesquisa
Ao concluirmos a segunda viagem de volta em junho de 2015 eu estava
entatildeo inserida em suas leituras permeadas pela compreensatildeo sagrada dos
acontecimentos vivenciados Os modos de compreensatildeo dos meus interlocutores(as)
apontavam para uma leitura de que a relaccedilatildeo entre noacutes assim como entre eles e
Cassius tinham sido acionadas por meio de oraccedilotildees e preces que nos colocaram
como instrumentos na concretizaccedilatildeo destes reencontros Natildeo pude conter a emoccedilatildeo
quando por exemplo D Zulmira agradecia ldquoocirc minha Nossa Senhora ocecirc trouxe o
meu povo Ocirc meu Pai Eterno o Senhor trouxe o meu povo pra mim conhecer aindardquo
quando da nossa chegada em sua casa naquela terccedila-feira 10 de marccedilo de 2015 O
desafio colocado pela escrita antropoloacutegica ndash de construccedilatildeo de uma objetividade
perspectiva parcial e situada ndash deste modo natildeo deve ser orientado pela noccedilatildeo de
crenccedila mas pela reflexatildeo sobre como estas pessoas constroem o mundo com base
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na articulaccedilatildeo destes conceitos Trata-se afinal de um saber sobre o mundo
(GOLDMAN 2003 p 461)
Outro desafio foi o de encontrar uma certa estabilidade que seria produzida
no registro da experiecircncia na forma de texto no que tange a processos percebidos
pelos meus interlocutores(as) como accedilatildeo e transformaccedilatildeo no mundo vivido Busquei
criar uma reflexatildeo analiacutetica a partir destas experiecircncias que foram perpassadas por
emoccedilotildees intensas e que me faziam refletir sobre a trajetoacuteria dos meus proacuteprios
antepassados como meus avoacutes paternos que tambeacutem saiacuteram do estado de Minas
Gerais em direccedilatildeo ao norte do Paranaacute na deacutecada de 1940 em busca de melhores
condiccedilotildees de vida Nossos caminhos haviam se entrelaccedilado e como diria Ingold a
partir dali um noacute havia sido criado unindo nossas trajetoacuterias (INGOLD 2011 p 148)
o que espero possa se desdobrar na continuidade desta pesquisa com a intenccedilatildeo de
aprofundar a reflexatildeo sobre muitos pontos que demandam maior investimento de
anaacutelise
Como indagaccedilatildeo final proposta por este trabalho fica a questatildeo de ateacute que
ponto a autoidentificaccedilatildeo e a reconfiguraccedilatildeo do conceito de quilombo estatildeo
consolidadas para os atores que lidam com os procedimentos estatais sobre esta
temaacutetica Eacute necessaacuterio neste processo que se reconheccedila a historicidade e a
diversidade de trajetoacuterias que constitui tais grupos sociais suas dinacircmicas e agecircncias
de modo que se possa garantir direitos sem que se parta de uma fundamentaccedilatildeo
cristalizada decorrente da ideia de territorialidade fixa ou mesmo de imobilidade
Quando pensamos no conceito de ldquotradicionalrdquo natildeo devemos deste modo buscar
uma continuidade direta e substancializadora da identidade (como na perspectiva
produzida pelo primeiro relatoacuterio ldquoanti-antropoloacutegicordquo) mas um tipo de relaccedilatildeo especial
com este passado coletivo que permite a manutenccedilatildeo da organizaccedilatildeo social que estaacute
ela mesma sempre em transformaccedilatildeo (como analisado pelo segundo relatoacuterio)
No caso da comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos Santos estamos
falando da diferenccedila entre por um lado partir da ideia de uma origem a ser
comprovada enquanto requisito para o reconhecimento da identidade quilombola e a
compreensatildeo por outro de como essa origem eacute acionada como importante elemento
identitaacuterio ndash pelos proacuteprios atores sociais enquanto ldquocomunidade de lembranccedilasrdquo
(HALBWACHS 2003 p 94) ndash na forma pela qual se relacionam e se reinventam
como trajetoacuteria compartilhada Este viacutenculo com a origem se expressa na fala de Adir
228
ndash ao comentar sobre a nossa viagem e agradecer a recepccedilatildeo que recebemos de D
Regina e D Zulmira ndash com a qual encerro essas reflexotildees
Eu quero aqui agradecer em nome de toda a comunidade Manoel Ciriaco dos Santos que a senhora conheceu que noacutes demos o nome dessa comunidade em memoacuteria dele em Guaiacutera Paranaacute Comunidade Manoel Ciriaco dos Santos onde a gente comeccedilou Meu sonho era buscar a histoacuteria da famiacutelia () E enquanto eu natildeo conseguir a histoacuteria da nossa famiacutelia que somos famiacutelia mas eu quero buscar desde o passado ateacute o presente eu natildeo vou descansar Se um dia eu morrer vou morrer feliz mas conhecer a nossa histoacuteria a histoacuteria de todos noacutes () Essa passagem taacute sendo experiecircncia pra mim porque como um filho de mineiro um filho dessa terra de pisar aqui nessa terra Que a minha vontade era andar descalccedilo soacute andar andar andar O que eu pensava era soacute andar
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