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MARIA DA CONCEIÇÃO NASCIMENTO
CONSIDERAÇÕES SOBRE RACISMO E SUBJETIVIDADE:
PROBLEMATIZANDO PRÁTICAS / DESNATURALIZANDO SUJEITOS E
LUGARES
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
NITERÓI, DEZEMBRO DE 2005
MARIA DA CONCEIÇÃO NASCIMENTO
CONSIDERAÇÕES SOBRE RACISMO E SUBJETIVIDADE:
PROBLEMATIZANDO PRÁTICAS / DESNATURALIZANDO SUJEITOS E
LUGARES
Dissertação apresentada ao Departamento
de Psicologia da Universidade Federal
Fluminense como requisito parcial para a
obtenção do título de mestre em Psicologia.
Orientadora: Profª Drª Cristina Rauter
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
Niterói, Dezembro de 2005
Banca Examinadora
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Profª Drª Cristina Mair Baros Rauter – Orientadora
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Profª Drª Cecília Maria Bouças Coimbra
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Profª Drª Lilia Ferreira Lobo
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Profª Dr ª Maria Palmira da Silva
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PROFª DRª VERA MALAGUTI BATISTA
A meus pais
Luciano e Maria José
E a
Frei Fernando Geurtse (in memorian)
AGRADECIMENTOS
Enumerar pessoas, grupos ou instituições que, de algum modo, contribuíram na
realização desta dissertação se apresenta para mim como uma tarefa assaz espinhosa. Seria
talvez mais sensato evitar nomeá-los para não cometer injustiças. Entretanto, não há como
evitar este risco.
Quero, em primeiro lugar, agradecer o Criador pelo Dom da vida. Fui aprendendo
com o tempo, que o Criador é entendido, nomeado e cultuado segundo as diferentes culturas.
Infelizmente, as distintas formas de entender e reverenciar a fonte de onde emana toda criaçâo
foram utilizadas, pelos colonizadores, como expressão de “atraso” dos chamados povos
“primitivos”. Todavia, os caminhos da vida levaram-me a aguçar a sensibilidade para o
respeito a todos , independentemente de seu credo. Isso para mim é obra do Criador, por isso
a Ele todo louvor e graças.
Agradeço minha família pelo incentivo, apoio e compreensão pela minha ausência
nos momentos alegres tais como aniversários, batizados, casamentos, etc, mas também nos
momentos tristes nos quais nossa falta é por vezes sentida.
Não vou fazer um relato dos caminhos por que passei até concluir esse trabalho,
isso seria enfadonho. Todavia há que se ressaltar o quão foi importante Ter acatado a sugestão
da Profª Lília Lobo de procurar o PENESB-UFF quando, ainda na graduação, falei do meu
interesse pela história do negro no Brasil.
Meu reconhecimento à Profª Iolanda Oliveira, coordenadora do PENESB pela
acolhida desde aquele momento e incentivo para fazer o Curso de Especialização Raça, Etnias
e Educação no Brasil e, posteriormente, o mestrado. Outrossim, não poderia deixar de
registrar meu agradecimento aos que sempre me atenderam com carinho e atenção nos
momentos em que recorri ao PENESB para imprimir meus trabalhos ou tomar um livro
emprestado.
Agradeço ao Grupo Tortura Nunca Mais, pela concessão de bolsa como auxiliar de
pesquisa e à Equipe Clínica Tortura Nunca Mais pelo interesse pelo meu tema de estudo.
Não poderia deixar de ressaltar a importância da equipe de educadores do
CEJOMM, e agradecê-la pela calorosa acolhida e produção conjunta de subsídios teóricos, em
especial a partir da criação do Grupo de Estudos sobre o qual comento no decurso deste
trabalho. Igualmente agradeço à equipe do CRIAA-UFF com a qual tive a oportunidade de
discutir acerca do descaso de sucessivos governos quanto ao cuidado com os jovens e
adolescentes empobrecidos. Descaso manifestado pelos parcos recursos destinados à
manutenção dos serviços ali implementados.
Agradeço à Profª Cristina Rauter, pela paciência e incentivo nos meus momentos
de cansaço desânimo e dificuldades decorrentes dos problemas de saúde vividos nos últimos
dois anos. Quero também pontuar que reconheço o seu empenho em acolher-me como sua
orientanda.
Ao meu querido amigo Celso minha gratidão pela presteza em me ajudar desde a
elaboração do projeto inicial e pela paciência em socorrer-me em minhas dificuldades
técnicas. Agradeço-lhe pela formatação final do trabalho.
Ás amigas Ana Cristina e Mônica pela insistência e incentivo para inscrever-me
para seleção do Mestrado em Psicologia.
Finalizo desculpando-me por uma possível omissão, o que penso poder corrigir
dedicando a todos amigos e colaboradores, com muito carinho, o poema de abertura desta
dissertação, como forma de externar o meu agradecimento.
Um agradecimento especial
a Luciano e Maria José,
Meus pais e à Frei
Fernando Geurtse (im
memoriam). .
VOZES – MULHERES
(Conceição Evaristo)
A voz de minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado rumo
à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.
A voz de minha filha
recobre todas as vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
RESUMO
A negação e o silêncio em torno do racismo e, por outro lado, a existência do racismo
enquanto prática, no Brasil, são aspectos sem dúvida presentes também nas instituições de
atendimento psicológico à população. Propusemo-nos a analisar a discriminação racial
enquanto prática, em sua presença singular no quotidiano da sociedade brasileira, buscando
pensá-la não apenas como discurso, mas como um dos componentes nos processos de
produção de subjetividade. Tivemos como objetivo contribuir para a efetiva inclusão, no
campo das práticas psi e em especial, no campo da psicologia clínica, da questão racial,
aspecto geralmente ausente na literatura sobre o tema.
Palavras-chaves: Racismo – Produção de Subjetividade – Clínica Transdisciplinar.
ABSTRACT
The denial and silence that surrounds racism and the existence of racism as a practice in Brazil are aspects also present in psychological
practice in institutions directed to the general population. We intended to analyze racial discrimination in Brazil as a practice, in its singular
presence in every day experience in Brazilian society. We analyzed racism not only as a discourse but also as one of the components of subjectivity production. We expect to contribute this way to the effective inclusion of the subject in the field of “psi” practices and mainly in
the field of clinical psychology, where racism has been generally absent in current bibliography.
Key-words: Racism – Subjectity Production – Transdisciplinary clinics.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO P. 01
PARTE I - Racismo e sociedade brasileira: uma discussão oportuna P. 18
1- Sobre os conceitos de raça e racismo P. 18
1.1- Alguns usos e costumes dos termos raça e racismo P. 18
1.2- O darwinismo e uma nova conceituação de raça P. 20
1. 3- Racismo sem “raça” P. 27
1. 4- O racismo como “arma política” P. 29
2. Implicações das conceituações sobre raça na sociedade brasileira P. 36
2.1 – Racismo no Brasil: realidade ou fantasia. P. 36
2. 2 -Negação do preconceito e da discriminação raciais P. 41
2. 3 - Brasil – “paraíso racial” P. 47
2. 4 – O mito da democracia racial P.49
PARTE II - O discurso da “raça” e a produção de subjetividade P. 59
1- Clínica e relações raciais: uma articulação ainda incipiente P. 59
1.1. Uma articulação ainda incipiente P. 59
1. 2- Quando o silêncio fala mais alto P. 73
1. 3 – Subjetividade individuada: a marca do nosso tempo P. 82
1. 4- A força dos estereótipos P. 86
1. 5- Uma situação desconfortável, porém não incomum P. 90
3 – APOSTANDO NA POSSIBILIDADE DE CONSTRUÇÃO DE OUTROS MUNDOS P. 98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS P. 107
1
Introdução
Tecer um pequeno comentário ou fazer um pronunciamento mais amplo acerca do
racismo e da produção de subjetividade requer, de quem a isto se propõe, um certo cuidado
para não cair em formulações simplistas, ou num certo pessimismo frente à dureza da
realidade vivida por indivíduos ou setores da sociedade que sofrem discriminação por
questões de “raça”. O contingente dos que vivem esta realidade ainda é bem expressivo no
nosso país. Infelizmente, não só os dados oficiais estão aí para comprovar, como, vez por
outra, os jornais noticiam flagrantes de racismo, em episódios que vão desde a interdição de
entrada em alguns lugares até a prisão ou mesmo morte de alguém simplesmente por ser
negro, como foi o caso do dentista negro morto pela PM de São Paulo (O Globo, 10/02/04).
Evidentemente que, em quaisquer das situações mencionadas, quase sempre há a tentativa de
negar a ocorrência de racismo, o que vem a dificultar, inclusive, a transformação desta
realidade, como veremos no decorrer deste trabalho.
A persistência de uma ordem social na qual os negros, em sua maioria, têm
permanecido nos estratos inferiores da sociedade, aliada à insistência em não tomar isso
como um claro sinal de que vivemos numa sociedade hierarquizada, impede-nos muitas vezes
de proceder a uma análise mais acurada da realidade. De sorte que corremos o risco de
cairmos no conformismo quanto à possibilidades de mudança dessa ordem.
Queremos ressaltar que, no percurso deste trabalho, nos foi difícil demonstrar que
a raça ou cor das pessoas são elementos importantes a serem considerados porque foram e
são, ainda hoje, fatores utilizados para legitimar e perpetuar as desigualdades sociais.
Simplesmente porque fomos levados a tomar as categorias “raciais” como naturais quando, na
verdade, são uma construção social.
Por esse motivo, entendemos a importância, não só de expor as razões que nos
levaram à escolha do tema deste trabalho, como fazer um breve relato do caminho percorrido
na execução do mesmo. Optamos assim proceder por entender que nossas escolhas são fruto
de nossas vivências, são efeito das idéias e juízos que fazemos acerca do realidade da qual
fazemos parte. Idéias e juízos que, de acordo com as circunstâncias em que emergem,
extrapolam os limites de nossas existências particulares ao ponto de a academia não poder
mais ignorá-las. É exatamente aí que reside a importância de estarmos cientes de que estamos
propondo como objeto de estudo algo que tenha relevância para a sociedade na qual estamos
2
inseridos. Como nos aponta LOURAU : “a instituição acadêmico-científica nos faz escrever
e escrevemos para sermos validados e valorizados por ela”1
É mister que acreditemos firmemente no que pretendemos realizar; o que não
significa fecharmo-nos no nosso ponto de vista, mas estar abertos a tudo que venha contribuir
para o nosso crescimento tanto a nível pessoal como coletivo, considerando que se tratam de
instâncias inseparáveis. Possivelmente tenha sido este o motivo que nos fez insistir na
pertinência do tema, porque ele fala da nossa implicação enquanto sujeitos históricos;
empreendimento nem sempre tranqüilo, porque quase sempre “é muito dolorosa a análise de
nossas implicações; ou melhor, a análise dos „lugares‟ que ocupamos, ativamente, neste
mundo”2
Sendo assim, consideramos oportuno registrar os fatos que foram marcantes na
feitura desta dissertação, posto que, sem sombra de dúvida, foi a partir das críticas, das
intervenções de colegas e professores, da discordância, aprovação e ceticismo de tantos
outros, e de muita persistência de nossa parte que o trabalho foi sendo elaborado.
Há três momentos importantes na construção deste trabalho que achamos
necessário destacar:
1. O projeto apresentado para a prova de seleção para o Mestrado em Psicologia;
2. A revisão bibliográfica sobre o tema;
3. A formulação atual do trabalho.
Com a denominação inicial de Recurso dos Excluídos: Grupos de Apoio e
Produção de Subjetividade, o projeto era uma tentativa de discutir a realidade de muitos
brasileiros para os quais o acesso à educação e à saúde estão reduzidos à assistência de
diversas organizações da sociedade civil, tais como igrejas, associações de moradores,
sindicatos, clubes, etc. Em que pese o reconhecimento de que essas instituições foram e são
importantes na sociedade, chamamos a atenção para o fato de que, para os grupos sobre os
quais estamos nos referindo, o recurso a obras sociais é freqüentemente o único ao seu
alcance, posto que a oferta desses serviços pelo Estado sempre estiveram aquém das
necessidades da população. Assim, para a população negra, tornou-se comum dirigir-se às
igrejas e/ou às chamadas pessoas de boa vontade.
Importante marcar que a iniciativa deste projeto se deveu à constatação de ser
negra a maioria dos indivíduos na situação acima referida. Na verdade, o que nos movia era a
1 LOURAU, R. Análise Institucional e Prática de Pesquisa. UERJ, 1993.
2 IDEM, p. 14.
3
constatação de que esse dado era quase sempre ignorado, ou melhor, não era
visto como elemento a ser considerado quando se discutia as dificuldades das pessoas
assistidas em melhorar suas condições de vida, ou mesmo de buscar soluções para as mesmas.
O fato de ser grande o contingente de negros vivendo em situações adversas e sendo atendido
nesses espaços é algo que precisa deixar de ser visto como natural para que a situação se
reverta.
Bem, aprovado o projeto, passamos para a fase de discussão de como viabilizá-lo.
Até esse momento, e aí se incluiu a revisão dos objetivos, sentimos que não estava bem claro
de que forma iríamos desenvolver o que tínhamos em mente. A única certeza que tínhamos
era de que a discussão se centraria em torno do racismo que permeia as relações sociais,
buscando discutir em que medida a clínica psicológica toma isso como um dado de realidade.
Houve, inclusive, questionamento sobre a pertinência do projeto na área de clínica, sob o
argumento de se tratava de um tema mais voltado para a área de exclusão social3, ao que
ponderamos, afirmando ser importante sua inclusão na área de clínica, por ser ali que ele é
também silenciado, tal como ocorre na sociedade em geral.
Na verdade, estava difícil falar ou escrever sobre a motivação de debater a questão
racial no mestrado. Uma coisa é certa, o racismo, tal como ele se manifesta na sociedade
brasileira, torna-se, por vezes, algo que ofusca a visão e confunde o pensamento. É
precisamente isto que procuramos mostrar ao longo deste texto, não sabemos se o
conseguimos.
Houve momentos em que chegávamos a pensar se valeria mesmo a pena insistir
em tal propósito; o que acabou se revelando em um paradoxo, porque era aí mesmo que nosso
desejo se fortalecia. Sentíamos ser necessário expurgarmos de nós mesmos o efeito nefasto do
racismo que vivenciamos em nosso país, o qual nos deixa em situação desconfortável se
insistimos em recusar admoestações tais como: “deixa isso pra lá!”; “com o tempo, com a
evolução da sociedade isso muda”; “será conveniente tocar em algo que não deveria ser
evidenciado?”
Estas, por mais absurdas que possam parecer, foram questões que se tornaram
subsídios para sustentar a decisão de não deixar pra lá, porque isto significaria:
. em primeiro lugar, deixar de denunciar uma injustiça que se mantém por
décadas.
3 Clínica e Exclusão Social são as duas áreas de concentração em Estudos da Subjetividade do Mestrado em
Psicologia da UFF.
4
. em segundo lugar, a “evolução” da sociedade não significa necessariamente o
abandono de posições racistas. A invenção da “raça” e de seus pressupostos é bem recente na
história da humanidade, e ganha novos contornos à medida que evoluem as forças produtivas,
ou melhor, em que aumenta o fosso entre as nações mais ricas e as mais pobres, entre os “bem
sucedidos” e os “consumidores falhos”, à medida em que se investe na segurança privada
vergonhosamente chamada de pública.
. em terceiro lugar, trata-se de desconfiar do que acostumamos tomar como
natural. Não vemos como transformar nossa sociedade sem reparar a injustiça cometida contra
os afro-brasileiros. O racismo como uma prática erigiu monumentos aos grandes “heróis”
nacionais, dentre os quais alguns se notabilizaram pelo massacre de índios e quilombolas,
pela eliminação de lideranças de várias revoltas populares. Taxados de degenerados, loucos,
analfabetos, ignorantes, incultos, grande número de brasileiros foram calados em nome do
progresso e grandeza da nação.
Pensamos que o momento atual é propício para este debate, não só porque o tema
está em alta, mas porque é urgente que assim se proceda.
Necessário se faz não perder de vista que isso não é apenas resultado da
“evolução” da sociedade, como pensam alguns, mas efeito das lutas de muitos brasileiros que,
ao contrário do que comumente se alardeia, sempre denunciaram a injustiça e anunciaram
com suas ações a aurora de um novo tempo. Refiro-me aos quilombos, às irmandades de
negros, à imprensa negra, à Frente Negra Brasileira, ao Teatro Experimental do Negro, ao
MNU, e tantos outros. Todavia, não falamos apenas das ações grandiosas que se tornaram
notícias; incluímos aqui mulheres e homens que no seu dia a dia não se deixaram abater e, de
alguma forma, fizeram e fazem história. Aqui tudo conta, um gesto, uma palavra, um olhar,
um objeto guardado, uma história que se conta aos filhos, um modo de vestir, de organização
social, e até o próprio silêncio quando este evoca uma realidade de dor a ser vencida.
O que tem isso a ver com psicologia, com a clínica?
Tem que esse é o solo sobre o qual atuamos. As pessoas com as quais trabalhamos
- brancas ou negras - têm um histórico que as torna discriminadoras ou discriminadas, pessoas
que têm preconceitos ou que sofrem por causa deles. Ambas fazem parte da mesma realidade.
Como isso chega à clínica; ou não chega?
5
Vai depender de como nós profissionais pensamos a sociedade em que vivemos,
de como trabalhamos os conteúdos curriculares propostos e impostos em nossas escolas, por
vezes carregados de preconceitos e “verdades” sobre os chamados elementos formadores do
povo brasileiro. Depende também de como nos apropriamos do que é veiculado na mídia e
das conclusões que tiramos sobre o que acontece na sociedade. É a partir de tudo isso que
formulamos nossas opiniões sobre os moradores das ruas, das favelas, dos condomínios
luxuosos, do campo, das cidades, etc.
Este trabalho não se propõe a falar bem dos negros e mal dos brancos e vice-
versa; pensamos que pode contribuir para problematizar o que se passa entre nós. Estamos
todos submetidos ao mesmo modo de subjetivação capitalista, cujo objetivo é apagar toda e
qualquer expressão de singularidade, homogeneizar nossas atitudes, pasteurizar nossas
relações, isto é, nos tornar imunes a quaisquer sinais de contaminação pelo que acontece com
quem está ao nosso lado. Modo de subjetivação que, ao estabelecer fronteiras entre ricos e
pobres, negros e brancos, moradores do campo e da cidade, das favelas e do asfalto, cria a
ilusão da existência de mundos distintos, autônomos. Todavia, fazemos parte de uma mesma
realidade.
Neste trabalho, não estamos nada objetivos, no sentido durkeiniano da palavra,
pois estamos implicadas até a medula em tudo que escrevemos, é claro que o fizemos a partir
de fontes respeitáveis e de autores que são parceiros na luta por um mundo de respeito às
diferenças. Isto vem confirmar que se trata de uma escolha política, à medida em que optamos
por uma abordagem teórica que nos fortalece em nossas posições.
Portanto, nos reportaremos ao referencial teórico que nos permite uma
compreensão do racismo como uma prática, na perspectiva de Michel Foucault e da
subjetividade a partir da concepção de Guattari e Rolnik4.
Queremos ressaltar que tivemos dificuldade em encontrar subsídios teóricos que
nos permitissem analisar até que ponto, questões relativas ao racismo são discutidas ou
incorporadas no âmbito das práticas “psi”. Isto só veio reforçar o que já suspeitávamos, de
início, dado o silenciamento em torno deste tema na sociedade.
Sendo assim, concluímos ser necessário, principalmente para entender o modo
como esse tema tem sido tratado pelos profissionais “psi”: pensar os modos de subjetivação
capitalista; elaborar algumas considerações sobre o advento da psicanálise; verificar em que
medida os dispositivos clínicos incorporam dados relativos ao cotidiano de indivíduos que
4 As referências destes e dos demais autores consultados foram feitas imediatamente, em pé de página, após as
respectivas citações e no final do trabalho na lista de referências.
6
vivenciam experiências dolorosas por causa de sua cor; problematizar as práticas
implementadas nos espaços de atendimento da população.
Sobre esses dois últimos pontos, ainda prevalece o silenciamento, não obstante
tratar-se de uma sociedade na qual é comum a ocorrência de casos de discriminação. O
silenciamento e a negação do racismo são, por excelência, o que caracteriza a sociedade
brasileira. Entendemos esta ordem social como uma construção histórica e é como tal que
deve ser tomada quando se discute os modos de subjetivação dominantes na sociedade
capitalista, tendo em vista que o silenciamento é também produtor de realidade. Sendo assim,
percebemos que talvez nossa contribuição não se restrinja apenas ao campo da saúde, mas
também ao campo da educação, ou quaisquer outros, cujos envolvidos estejam
comprometidos com o combate a quaisquer formas de discriminação.
Há, contudo, dois pontos que queremos ressaltar: Primeiramente deixar claro que
não tivemos a pretensão de escrever um manual sobre como tratar pessoas atingidas pela
discriminação racial. Antes, buscamos problematizar as práticas desenvolvidas nos locais
onde tivemos a oportunidade de estar presentes através da pesquisa, porque pudemos
inclusive participar de algumas atividades. Foram momentos em que, através do diálogo, da
discussão que tivemos acerca dos impasses decorrentes das dificuldades que os profissionais
enfrentavam no cotidiano, que pudemos, de alguma forma, intervir nesses espaços já que
nossa presença não se limitava a ouvir experiências e fazer relatórios para posterior análise.
Estávamos ali com o intuito mesmo de, respeitando o trabalho ali desenvolvido, dar nossa
contribuição sobretudo quando nos colocávamos não como “especialistas”, mas como
profissionais dispostos a pensar se os dados da realidade estavam ou não sendo levados em
conta nas práticas desenvolvidas nas instituições nas quais estivemos presentes. Assim,
chamamos a atenção para o caráter provisório de nossas apreciações e conclusões. Pensamos
que elas podem ser tomadas como material para outros desdobramentos, incluindo aí a revisão
dos nossos possíveis equívocos.
Neste ponto de nossa exposição é necessário esclarecer que nos referimos à
pesquisa Produção da Violência e Subjetividade Contemporânea: Construindo Dispositivos
Clínicos Transdisciplinares , coordenada pela Profª Cristina Rauter. Uma pesquisa realizada
numa parceria entre o Departamento de Psicologia da UFF e o Grupo Tortura Nunca Mais.
Como parte das atividades de observação participante da pesquisa, estivemos por
uma bom período presentes e atuando no CRIAA- UFF5. Ocasião em que tivemos
5 CRIAA - Centro Regional Integrado de Atendimento ao Adolescente.
7
oportunidade não só de aproximação, mas de atuação junto ao grupo de mulheres – uma
cooperativa - constituída, em sua maioria, por mães de adolescentes e jovens atendidos
naquela instituição.
O interesse nosso como pesquisadores pelo trabalho desenvolvido no CRIAA
deveu-se ao fato de alguns jovens ali atendidos terem suas existências marcadas pela
passagem polícia ou pelo juizado da infância e adolescência, serem moradores de favelas , etc.
Nossa presença no CRIAA por um período mais extenso esteve relacionada ao
fato de que a pesquisa supra citada tinha como objetivo abordar a questão da violência ligada
à criminalidade cujos índices têm sido assustadores na atualidade. Vivemos em estado de
alerta constante o qual pode ser gerado a partir de experiência pessoal, (ser assaltado , por
exemplo) ou porque somos diuturnamente bombardeados com tais notícias através dos meios
de comunicação social. Entendemos que não se pode ignorar a criminalização de juventude
pobre quando o assunto é uso de drogas. Tratava-se de uma instituição que, na verdade,
atendia adolescentes e jovens com as características citadas acima.
No mesmo período em que estivemos ligados ao CRIAA tivemos a oportunidade
de conhecer uma outra instituição, o CEJOMM6, igualmente motivados pelo fato de ali
atender crianças e adolescentes pobres. Nossa inserção, neste caso, deveu-se também ao fato
de ali serem discutidas e trabalhadas questões relativas à realidade dos negros.
Percebemos que muitas crianças e adolescentes do CEJOMM e os usuários do
CRIAA têm realidades semelhantes quanto ao fato de serem empobrecidas e viverem sob
constante stress provocado pela presença e atuação da polícia e dos traficantes.
Duas realidades distintas que, no entanto, nos permitiram observar e constatar
especificidade do racismo brasileiro. O que fizemos a partir do relato das experiências e
debates sobre esse tema no CEJOMM e da ausência de discussão sobre o mesmo no CRIAA.
No CEJOMM, juntamente, com alguns membros da equipe de educadores,
criamos um grupo de estudos por sentirmos a necessidade de ter um espaço onde pudéssemos
aprofundar nossa reflexão sobre a história e realidade dos negros brasileiros. Na verdade, o
grupo de estudos nos proporcionou uma intensa troca de experiências cujo teor tratamos na
segunda parte do nosso trabalho.
As atividades da pesquisa, a participação nos eventos no CEJOMM e as reflexões
no grupo de estudo forneceram grande parte dos subsídios teórico/práticos que nos permitiram
articular racismo e produção de subjetividade.
6 CEJOMM – Centro Juvenil Oratório Mamãe Margarida
8
O outro ponto a considerar é que neste trabalho estamos privilegiando o racismo
cujo alvo são os negros, não obstante entendermos o racismo como um fenômeno universal,
isto é, como sistema de dominação, baseado na supremacia de determinados grupos humanos.
Entretanto, é mister registrar que os critérios segundo os quais os homens foram classificados
mudaram ao longo dos tempos e não vamos nos ater em elucidar sua origem, nem dar ênfase
às formas de racismo antes da era moderna. Deste modo estamos sinalizando que nos
referimos ao racismo relativo às classificações dos diferentes grupos humanos que começaram
a ser formuladas a partir das grandes descobertas, mas que só vão ganhar o status de
científicas a partir do séc. XIX, com formulação do conceito de raças pela ciência. Trata-se do
racismo baseado na crença na existência de raças humanas.
O racismo é, pois, um sistema de dominação que antecede a idéia de raça. Como
fenômeno que atravessa as relações entre os homens, está presente no mundo há muito tempo
e parte sempre do pressuposto da superioridade de uns sobre os outros. O que muda no
decorrer da história é o princípio que sustenta a desigualdade. Assim, houve um tempo em
que os indivíduos eram considerados inferiores por não pertencerem à fé cristã ou a uma
determinada classe social ou linhagem (distinção entre nobres e plebeus), ou porque eram
primitivos (os povos recém descobertos). Hoje os alvos podem ser os imigrantes na União
Européia, os judeus, os nordestinos no Brasil, os favelados, etc.
Tudo isso vem confirmar que estamos tratando de um tema complexo, em função
dos diferentes caminhos que esta discussão pode suscitar. Todavia há um dado que se faz
necessário ter em conta, qual seja, a discriminação contra os negros na contemporaneidade, a
distinção entre os indivíduos as partir de critérios “raciais”, o que leva muitos estudiosos do
tema a afirmar que embora a concepção de “raça” do ponto de vista da biologia esteja
superada, ela subsiste no meio social, porque as pessoas continuam a ser categorizadas
segundo seu pertencimento a uma determinada “raça”.
O tema do racismo e, por conseguinte, uma certa explicação para as diferenças
entre os seres humanos sempre foi de interesse das ciências humanas, em especial
antropologia e sociologia desde o seu nascedouro. Estas disciplinas emergiram na 2ª metade
do século XIX e cuidaram de sistematizar um conjunto de saberes acerca do homem já
acumulados, em outros domínios do conhecimento. Todavia, é interessante ter em mente que
a biologia, cujos métodos de investigação obedeciam ao ideário positivista, passou a ser,
nesse momento, o grande modelo de análise. Daí que a sociedade e o homem passaram a ser
estudadas com as mesmas ferramentas utilizadas pela biologia; e, por conseguinte, buscou-se
9
detectar na sociedade, as mesmas regularidades que ocorriam na natureza e, com isso,
estabelecer as leis que regeriam a sociedade. O evolucionismo e o darwinismo social são
exemplos da transplantação das leis naturais para a sociedade. O darwinismo social
radicalizou o primado das leis biológicas na determinação da civilização,
afirmando que o progresso humano é um resultado da luta e da competição
entre raças, vencendo os mais capazes (ou aptos) – no caso os brancos,
porque as demais raças, principalmente os negros, acabariam sucumbindo à
seleção natural e social.7
Nota-se, então que há, a partir desse momento, uma especificidade no racismo em
relação aos negros, já que se pode estabelecer um nexo entre escravização de africanos e a
invenção do racismo, não que este explique esta escravidão, mas porque foi a partir dela que o
caminho para a invenção da “raça” foi gradativamente aberto (AZEVEDO, 2002, p.115). É
sobre este racismo que tratamos no presente trabalho.
É, pois, na Antropologia e Sociologia, que vamos encontrar subsídios teóricos
sobre o racismo. Não podemos perder de vista que nas hipóteses que estas disciplinas
formularam sobre o homem e a sociedade está inclusa uma raciologia – um discurso sobre
raças – que começou que a se estruturar cientificamente a partir do séc, XVIII. (Idem, idem).
Trata-se, pois, de um discurso que vem a propósito justificar a dominação dos continentes sul-
americano, africano e asiático, assim como a intervenção sobre a vida e os costumes dos
setores populares – o higienismo no Brasil nos séculos XIX e XX, por exemplo. Na verdade
um conjunto de teorias e práticas necessárias à consolidação da ordem burguesa.
Constatamos, contudo, que a grande maioria dos autores que consultamos trabalha
com os conceitos de identidade e de ideologia.
Nas obras consultadas o racismo é entendido, via de regra, como uma ideologia e,
é como tal que se explica a sua influência sobre o comportamento. Nós temos outro
entendimento sobre a questão, pois o consideramos mais que uma ideologia, e esta é a razão
pela qual estamos tentando discutir o racismo a partir de outros referenciais teóricos.
No lugar de ideologia preferimos, como sugerem GUATTARI e ROLNIK (1989),
falar em produção se subjetividade, por entendermos o racismo como uma prática que, como
tal, engendra mundos. Uma pratica discursiva que se instituiu no início da modernidade do
século XVI e se desenvolveu no campo das ciências biológicas e humanas do século XIX até
a metade do século XX. Uma prática que, no pensamento de FOUCAUT (1999), produziu um
7 SEYFERT, G. Construindo a Nação: Hierarquias raciais e o Papel do racismo na Política de Imigração e
Colonização. In MAIO, M.C; SANTOS, R. V. Raça. Ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/ CCBB,1996,
p.41.
10
saber sobre os negros. Assim, nossa observação se concentra sobre os diversos mecanismos
através dos quis se procurou estabelecer uma correlação entre “raça” e atributos “próprios”
dos diferentes grupos humanos. O discurso higienista e as práticas médicas de higienização
das populações são um demonstrativo de como as práticas produzem um saber, posto que,
como estratégias para inserir essas populações no contexto da produção capitalista, elaboram
sobre as mesmas um discurso.
Não se trata somente de uma idéia “errônea” ou deturpada sobre o outro “racial”,
mas um modo de enxergar o outro que foi construído, e está sendo continuamente construído
nas diversas instâncias sejam elas midiáticas, econômicas, sociais, científicas, etc., juntamente
com toda maquinaria da produção capitalista.
Esse processo começou a tomar vulto quando, nesta produção, o africano foi
subjetivado como negro, este passando a ser sinônimo de escravo, e mais tarde, no caso
brasileiro, o negro foi sendo associado ao perigo, ao contágio, à doença pelos higienistas .
Nada disso está apenas no plano da representação, mas “diz respeito aos comportamentos, à
sensibilidade, à percepção, à memória, às relações sociais, às relações sexuais, aos fantasmas
imaginários, etc” 8.
Daí podermos afirmar que o racismo faz parte da subjetividade capitalística. Aqui
se incluem as várias formas de racismo, além do racismo contra negros. Talvez seja possível
que a naturalização das “raças” tenha se propagado tão bem devido ao fato de a produção de
subjetividade pelo CMI “ser serializada, normalizada em torno de uma imagem, de um
consenso subjetivo referido e sobrecodificado por uma lei transcendental” 9. Sendo assim, as
diferentes formas de expressão (outros modos de subjetivação) são vistas não só como
estranhas, mas como impeditivos de uma ordem social tomada como a melhor porque
assentada sobre os princípios éticos, morais, científicos, religiosos da cultura ocidental
(branca e européia), estes sim, considerados os valores humanos.
Em se tratando explicitamente do racismo contra negros reiteramos que a
produção de saberes sobre eles não está restrita ao racialismo do século XIX, pois ela vem se
atualizando e se sofisticando através dos mais variados canais de produção de imagens,
rótulos, estereótipos, nos quais o negro é sistematicamente associado ao negativo. Uma
produção que em nada difere ou se conflitua com as instâncias produtoras de bens materiais,
pelo contrário, elas estão entrelaçadas.
8 GUATTARI, F; ROLNIK, S. Micropolítica – Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1989, p.28
9 Idem, p.40
11
Trabalhos como os de BATISTA (2003); CHALHOUB (2001); COSTA (1979);
DORNELLES (2002); WACQUANT (2000, 2002), têm demonstrado de modo inequívoco a
“eficiência” das práticas instituídas no campo das políticas públicas, nos sentido de mostrar o
quanto elas estão afinadas com a divisão do trabalho no sistema capitalista.
Pensar, pois, o racismo a partir do conceito de subjetividade proposto por Guattari
parte da constatação de que a noção de ideologia, enquanto algo que nos remete à suposição
de que o que pensamos e acreditamos é que vai dirigir nossas ações, é insuficiente para
entender o modo de subjetivação capitalística. Embora sejam a linguagem, a família e os
demais equipamentos que nos rodeiam os agentes que vão nos formando10
enquanto sujeitos
humanos, tudo o que esses agentes fazem chegar até nós “não é apenas uma questão de idéia,
não é apenas transmissão de significações por meio de enunciados significantes”11
; trata-se de
algo mais sutil e abrangente.
Segundo GUATTARI “a representação teórica e ideológica é inseparável de uma
práxis social, inseparável das condições dessa práxis. É algo que se busca no próprio
movimento, incluindo aí os recuos, as reapreciações e as reorganizações das referências que
forem necessárias”. É preciso ter em conta que as grandes máquinas produtivas e as de
controle social são inseparáveis das “instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber
o mundo” 12
. Elas fazem parte do mesmo movimento, elas se conectam diretamente de modo
que tudo concorre para emergência e/ou consolidação da subjetividade.
Entender o racismo enquanto produção significa considerá-lo antes como uma
prática cujos efeitos são a consolidação de uma ordem social na qual as desigualdades entre os
homens são naturalizadas, isto é, as desigualdades por questões de “raça” são tomadas com
10
Segundo Guattari (1981) esta formação começa cada vez mais cedo, especialmente por meio da televisão e
dos jogos educativos. Ele faz referência a um modo de inserção da criança no mundo adulto na sociedade atual
que é bem diferente da que se dava nas sociedades pré-industriais. Acena para o fato de ter havido uma mudança
radical no tipo de atividades desenvolvidas pelas crianças, de modo que elas são formadas o mais cedo possível
em “uma certa tradutibilidade do conjunto dos sistemas semióticos introduzidos pelas sociedades industriais. A
criança não aprende somente a falar uma língua materna, aprende também os códigos da circulação na rua, um
certo tipo de relações complexas com as máquinas, com a eletricidade, etc... e estes diferentes códigos devem
integrar-se aos códigos sociais do poder esta homogeinização das competências semióticas é essencial ao sistema
da economia capitalista: „a escrita‟ do capital implica com efeito que o desejo do indivíduo, em seus diferentes
desempenhos semióticos, seja capaz de se adaptar, de se „tradutibilizar‟ agenciando-se a partir de qualquer ponto
do sistema sócio-econômico.” Sobre o tema consultar GUATTARI, F Revolução Molecular – pulsações
políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 51-55. (grifos do autor)
11
GUATTARI, F; ROLNIK, S. op. cit, p.27
12
Idem, ibidem.
12
algo inerente à natureza. Para sermos mais precisos: a explicação forjada pela raciologia –
ciência das “raças” do século XIX – não ficou apenas no nível das idéias, ela penetrou todas
as instâncias produtivas, sejam elas de bens manufaturados, sejam de saberes sobre a
diversidade humana. Instâncias que se conectavam e se conectam não só ao nível das
informações, mas no fomento de práticas que reforçam e ratificam um certo modo de
percepção de mundo afinada com o sistema de significação dominante.
Entender o racismo enquanto ideologia talvez seja insuficiente para explicar seus
efeitos nefastos nas relações sociais porque permaneceríamos apenas na esfera da
representação. Verificamos que ele é mais do isso, ele é produtor de realidade, de mundos, ele
incide na produção de modelos, de comportamentos. Em outras palavras, dentro da
perspectiva que estamos considerando, sugerimos que, mais do que tomar o racismo como
ideologia, seria interessante discutir a subjetividade racista que é consumida e expressa,
vendida e afirmada. Não se trata, portanto, de pensar sobre o que algo – o racismo -
representa para nós, mas como ele está em nós, no nosso próprio modo de expressá-lo,
afirmando ou rechaçando, respectivamente, modos de existência compatíveis ou não com a
ordem capitalista.
A ordem capitalista “fabrica a relação do homem com o mundo e consigo
mesmo”13
, de sorte que muitos sequer desconfiam do sentido de suas ações e de que os
objetos e lugares não são naturais, tampouco aventam a hipótese de um outro modo de
existência, que passa a ser visto como antinatural, como anormal porque se acredita numa
forma de vida tida como correta.
Com relação a boa parte dos autores consultados, fazemos algumas ressalvas no
que diz respeito às “identidades”, à circunscrição da realidade a determinados quadros de
referência, a uma maneira de reconhecer em um grupo humano atributos que seriam
“próprios” de uma “raça”, o que conferiria ao mesmo uma identidade. Na perspectiva teórica
que estamos trabalhando não nos prendemos ao que se nos apresenta à primeira vista como
algo acabado e necessitado de reafirmação constante, de ser colocado em xeque quando deixa
de exprimir-se exatamente conforme ao modelo de referência. Este é, pois, o que sustenta a
produção capitalista, por ser este o imperativo que inibe qualquer potencial de singularização.
O “sucesso” do capitalismo reside na produção serializada, tanto de bens materiais como de
indivíduos ávidos em consumir “identidades”. Do contrário, como o mercado se firmaria,
como garantir que as mercadorias exerçam seu fascínio, se seus destinatários estiverem em
13
Idem, ibidem, p. 42
13
mutação constante? É exatamente este processo – a possibilidade de escapar das referências
dominantes - que a produção capitalista busca inibir.
A imagem que ROLNIK (1995) faz de subjetividade, comparando-a com algo
semelhante a um objeto delimitado no espaço, é bastante sugestiva, no sentido de tornar mais
apreensível o que estamos pontuando acerca das identidades, na medida em que temos a
tendência ou o costume de entendermos estas duas dimensões - subjetividade e identidade -
como algo fixo, pouco permeável às oscilações do “espaço” no qual de expressam..
O que vislumbramos da subjetividade é o perfil de um modo de ser – de
pensar, de agir de sonhar, de amar, etc. – que recorta o espaço, formando um
interior e um exterior. Nosso olhar desatento vê na pele que traça este perfil
uma superfície compacta e uma certa quietude.. Isso nos faz pensar que esse
perfil é imutável assim como o interior e o exterior.14
É justamente neste ponto que ela nos convoca a um exercício de “distanciamento”
– “uma viagem virtual” – para explicar que o que vemos não é tão homogêneo ou permanente
como se acredita à primeira vista. Para este empreendimento é imprescindível que se
convoque uma certa potencialidade do nosso olho, a qual chama de “vibrátil” para que o olho
possa ser tocado pela força do que vê.
Sem muita dificuldade, logo notamos que a densidade desta pele é ilusória e
que é efêmero o perfil que ela envolve e delineia. A pele é um tecido vivo e
móvel, feito de forças; fluxos que compõem os meios variáveis que habitam
a subjetividade: meio profissional, familiar, sexual, econômico, político,
cultural, informático, turístico, etc.; como estes meios, além de variarem ao
longo do tempo, fazem entre si diferentes combinações, outras forças entram
constantemente em jogo, que vão misturar-se às já existentes, numa dinâmica
incessante de atração e repulsão. Formam-se na pele constelações as mais
diversas que vão se acumulando até que um diagrama inusitado de relações
de forças se configure. Nesse momento nosso olho vibrátil capta na pele uma
certa inquietação, como se algo estivesse fora do lugar ou fora de foco.” 15
Nossa “guia” prossegue, avisando que, se nesse momento estendermos a pele,
desmanchando o perfil que ela desenha, transformando-a numa superfície lisa, o olho vibrátil
percebe que a pele começa a reagir ao incômodo provocado pelo novo diagrama. A pele vai se
dobrar e do interior dessa dobra emerge o cenário de todo um modo de existência. “É como se
o diagrama que dá à pele sua atual tessitura tivesse se corporificado num microuniverso.
14
ROLNIK, S. Subjetividade, ética e cultura nas prática clínicas. Reelaboração de uma palestra... ,p.1. 15
Idem, p. 2
14
Reencontra-se aqui um perfil de subjetividade, porém não é mais o mesmo que víamos no
começo.”16
Se prolongarmos essa “viagem”, vamos observar que outros fluxos vão entrar na
composição dessa pele, formando outras constelações; aos poucos outros diagrama de
relações de forças emergem e assim sucessivamente, a cada diagrama formado, uma nova
curvatura de pele se processa, de modo que há continuamente a diluição de um perfil e o
esboçamento de outro porque a cada vez que a pele é esticada, ela se curva e se estende em
outro ponto e de outra maneira.
Fica evidente que “cada modo de existência é uma dobra de pele que delineia o
perfil de uma determinada figura de subjetividade” 17
.
É dentro, pois, desta perspectiva que tentaremos pontuar alguns aspectos do que
encontramos em nossas leituras sobre identidade negra, entendendo-a mais do que como algo
construído social e historicamente e particularmente referido a um grupamento humano
específico. Tentaremos deslocar um pouco o eixo desta concepção, retornando àquelas
“forças/fluxos que compõem os meios que habitam a subjetividade”, porquanto entendemos
que nesses meios (já exemplificados) se configuram as diferentes “identidades”, ou seja, um
“jeito de ser” conforme a “raça”.
Via de regra, costuma-se afirmar que esses meios podem se configurar conforme a
“raça”, isto é, de acordo com a maneira como cada “raça” concebe o familiar, profissional, o
sexual, etc. Não se põe em questão que isto exista e que tenha sido negado ou menosprezado
(colonização), porém, salientamos que interessa-nos colocar em pauta que esse modo (negro)
de entender ou de se articular com as forças/fluxos podem não estar circunscritos apenas à
“raça” negra, outros podem assim se expressar. Outrossim, parece-nos viável ter em conta as
inúmeras possibilidades de configuração de outros mundos, para não cairmos na tentação de
“retorno ao idêntico”, à fixação de formas arcaicas; estas até podem ser retomadas, desde que
articuladas ao processo criador, para que possam adquirir alcance subjetivo (GUATTARI;
ROLNIK).
Por conseguinte, sugerimos falar na possibilidade de – ao invés de reforçar
“identidades”, remetendo-as sempre a referências já estabelecidas – referirmo-nos à “idéia de
processos transversais, de devires subjetivos que se instauram através dos indivíduos e dos
16
Idem, ibidem
17
Idem,ibidem.
15
grupos” 18
desse modo, damos um passo além da idéia de reconhecimento e/ou de construção
de identidade.
A idéia de devir desloca o foca das lentes; deixa-se de focar uma certa
configuração da subjetividade, para que o olho “vibrátil” capte as linhas que traçam outras
“constelações” – provisórias – que apontam para outras formas de relações sociais, de
agenciamento com as “forças/fluxos”.
Esse ajuste de lentes – o “olho vibrátil” – permite dar conta que os devires19
subjetivos se instauram “porque eles próprios são processos de subjetivação, eles próprios
configuram a própria existência dessas realidades subjetivas” (Idem, idem). Entretanto esses
devires não existem em si mesmos, e sim no movimento processual – por isso são potentes-
podendo atravessar quaisquer estratificações: simbólicas, materiais, maquínicas, etc. Em
resumo, trata-se de um permitir-se, de um fazer-se, mas não um instalar-se, consolidando um
determinado “jeito” de ser.
Ainda sobre o tema das “identidades” não poderíamos deixar de salientar que as
sociedades capitalísticas se mantêm exatamente porque se apóiam na “segregação dos sexos,
das raças, das faixas etárias; na codificação das atitudes, na estratificação das castas”20
.
Portanto, nessas sociedades as demarcações ao nível de raça, sexo, idade, etc. – as
“identidades” - serão sempre bem vindas. A questão não é colocar em oposição negros e
brancos, mas apostar na possibilidade de ambos se livrarem das representações e dos
constrangimentos do “corpo social”, bem como das posturas, atitudes e comportamentos
estereotipados. Trata-se, de recusar o que o “corpo social” 21
repressivo impõe,
autoritariamente.
Ao abordarmos a problemática das identidades, é oportuno sinalizar para uma
outra dimensão da questão também presente nesta exposição; a referência que alguns autores
fazem acerca de uma certa identidade nacional. Trata-se, na verdade, de algo que está
intrinsecamente ligado à discussão sobre raças. Falando de modo mais incisivo: esses autores
falam, inclusive, da angústia que tomou conta da intelectualidade brasileira quando esta se
18
GUATTARI, F.; ROLNIK, S.- op. cit. p.74.
19
Diz respeito a instâncias pré-verbais, pré-egóicas e por isso não redutíveis a uma identidade. É também uma
passagem que pode atravessar os diferentes campos, não só microssociais, mas também o da literatura, da
música, etc. É molecular no sentido de que configura um certo tipo de universo que vai afetar a relação entre
todos os sistemas de alteridade, os sistemas de percepção, de sensibilidade, a sintaxe de uma escrita, de uma
música. Cf. Idem, p. 78-79. 20
GUATTARI, F. - op. cit. p.44.
21
Idem, p.43.
16
deu conta de que este país abrigava um sem-número de não brancos e que, como nação (após
a Independência) precisava mostrar-se ao mundo. Vamos verificar que, de modo análogo ao
que dissemos acerca dos indivíduos, a “identidade nacional” também pode ser discutida, já
que se construiu e se constrói uma imagem de país a ser consumida dentro e fora dele.
Nessa construção, um ingrediente – a realidade de um país miscigenado - não
faltou e nem poderia faltar, posto que é partir dele que se acirram os debates há muito tempo.
SCHWARCZ (1994) o toma como tema recorrente nessa discussão até nossos dias. No texto
intitulado “Complexo de Zé Carioca”, Schwarcz, faz uma demonstração de como isto está
presente nos distintos momentos em que se discute a questão, afirma que:
Mais instigante é indagar sobre a recorrência da explicação que insiste no
caráter misto de nossa sociedade; sobre o diálogo que essas pequenas
narrativas estabelecem entre si e que, o mesmo tempo, constroem e
desconstroem a mestiçagem como tema; a malandragem como
representação.22
A partir desta observação a autora faz uma descrição interessante sobre como
esse “ingrediente” vai sendo utilizado nos sucessivos debates que, desde a Independência,
ocupam parte expressiva da intelectualidade brasileira. Nesta descrição pode-se notar que a
mestiçagem brasileira ao ser retomada recebe conotações distintas de acordo com o momento
histórico vivido. É isso que, ao nosso ver, permite concluir que se empreendermos uma
“viagem virtual” depararíamos com coisas interessantes sobre “identidade nacional”.
Gostaríamos de sublinhar que, no decorrer deste trabalho, falaremos, sem dúvida,
em ideologias, posto que não negamos que elas existam; apenas pontuamos sua limitação
como conceito explicativo para o racismo que sobrevive e recrudesce na atualidade sob
variadas formas. Igualmente será com a questão da identidade. Faremos ressalvas quando se
fizer necessário, porém, queremos afirmar que o mais importante é não perder de vista que
utilizamos o material que encontramos como ferramentas capazes de nos fornecer subsídios
que ratificam nosso ponto de vista, qual seja o de entender que as “identidades” são forjadas
juntamente com as demais mercadorias e em momentos específicos são matéria-prima para a
produção capitalista.
Para uma melhor compreensão do tema, dada a sua complexidade, dividimos o
trabalho em duas partes.
Na primeira parte procuramos concentrar as diversas conceituações sobre o
racismo assim como os usos e costumes do termo “raça” e suas implicações tanto no
17
cotidiano, como nas formulações científicas a partir do advento da era moderna, dando mais
ênfase ao racismo científico do século XIX. Procedemos assim porque sabemos o quanto os
pressupostos racialistas daquele período ainda fazem ecos no nosso cotidiano.
Ainda nesta parte cuidamos de analisar a especificidade do chamado “racismo à
brasileira”. Para tal fizemos um apanhado sucinto das características de nossa sociedade no
que diz respeito ao modo como vem tratando a questão racial, destacando o pensamento de
intelectuais que partilhavam das idéias racistas e que muito influenciaram na formação
técnica, política e cultural dos brasileiros envolvidos nas áreas de educação, saúde, jurídica,
cultural, etc. Fizemos também um rápido percurso na história brasileira, fazendo uma breve
apreciação sobre como se consolidou a idéia de que vivemos uma “democracia racial” e de
como essa idéia vem sendo desconstruída à medida que vai sendo rompido o silêncio que
envolvia a questão racial no Brasil, sobretudo a partir da década de 90.
Na segunda parte nos empenhamos em tentar articular o discurso da “raça” e a
produção de subjetividade, entendendo esta como matéria prima do capitalismo, necessária à
sua consolidação e manutenção. Procuramos estabelecer o vínculo entre as práticas instituídas
e a manutenção da ordem burguesa. E, finalmente, chamamos a atenção para as possíveis
saídas frente aos impasses vividos pelos protagonistas de alguns episódios aqui relatados, nos
quais se vêem nitidamente os efeitos da subjetivação capitalística. Insistimos na importância
de uma aposta na capacidade de criação dos sujeitos envolvidos e na invenção de possíveis
saídas para as situações que os impedem de desenvolverem suas potencialidades.
22
SCHWARCZ, L. M. Complexo de Zé Carioca: notas sobre uma identidade mestiça e malandra. Trabalho
apresentado na reunião anual da ANPOCS, 1994.
18
PARTE I
Racismo e sociedade brasileira: uma discussão oportuna.
1- Sobre os conceitos de raça e racismo
1.1- Alguns usos e costumes dos termos raça e racismo
O surgimento da idéia de raça se deu por volta do século XVI, porém convém
registrar que ainda não tinha a marca biológica; era uma concepção de raça que separava os
homens em fiéis e infiéis. quem não partilhava da fé cristã era considerado inferior.
SCHWARCZ (1998) nos lembra que os romanos chamavam de “bárbaros” todos
os que não pertenciam ao seu grupo, assim como, mais tarde, os cristãos nomeavam de
“pagãos” os que não partilhavam de sua fé, ou seja, o restante do mundo. Com a descoberta
do novo mundo, os povos recém-encontrados foram chamados de primitivos e, por
conseguinte, vistos “como um modelo diverso da humanidade, senão diminuto” 23
.
Talvez este tenha sido o modo mais comum, senão o único, de agrupar os
indivíduos segundo suas semelhanças e diferenças, embora os critérios utilizados para tal fim
tenham se modificado ao longo do tempo e nas diferentes culturas. Hoje, o mais comum é
falar em raça branca, amarela e negra.
Mas, tal como aconteceu em tempos mais remotos, ainda hoje, a constatação da
diferença pode vir acompanhada de um sentimento de desprezo pelo grupo apontado como
diferente do nosso. Quando isso acontece fala-se em racismo. Daí afirmar-se que o racismo é
também uma manifestação bem antiga e tem a ver, é claro, com a percepção que os homens
tiveram de suas diferenças; afinal os homens sempre souberam que eram diferentes, sendo
que “no séc. XVIII, a cor da pele foi considerada como um critério fundamental e divisor de
águas entre as chamadas raças” 24
Entretanto, somente no séc. XIX foram elaboradas as
teorias que cuidaram de explicar e qualificar essas diferenças. Foi quando a biologia
introduziu a noção de raça, articulada à transmissão de caracteres físicos próprios a cada
grupamento humano, disseminando assim a concepção de que cada “raça” tinha atributos
próprios, estes nunca relacionados a instituições, mas à natureza biológica dos indivíduos e,
por isso, permanentes.
23
SCHWARCZ, L. M. Sob o signo da diferença: a construção de modelos raciais no contexto brasileiro.
In:Estudos e Pesquisas n. 4. Niterói: EDUFF,1998, p. 68.
24
MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: Cadernos
PENESB n. 5. Niterói: EDUFF, 2004, p.19.
19
Portanto, foi somente a partir do século XIX que se passou a acreditar que as
características dos diferentes grupos humanos eram biologicamente determinadas.
TODOROV (1993) denomina este movimento de racialismo, a partir do qual o racismo
adquire um outro sentido.
Todorov se ocupa de desfazer uma confusão muito freqüente entre racismo e
racialismo, afirmando que o primeiro diz respeito a um comportamento, às vezes de ódio e de
desprezo a pessoas com características físicas bem definidas e diferentes das nossas; já o
segundo é a crença na existência de raças humanas, com atributos próprios, transmissíveis
hereditariamente. O racismo é um comportamento, ele é mais antigo, trata-se de uma reação
frente ao diferente, e nem sempre esteve preocupado em explicar as diferenças entre os grupos
humanos. O racialismo, ao contrário, “é um movimento de idéias nascido na Europa
Ocidental, cujo grande período vai de meados do século XVIII a meados de século XX” 25
e
vai utilizar-se de argumentos científicos para explicar as diferenças entre os povos.
A doutrina racialista, segundo Todorov, se assenta em 5 proposições, que são: a) a
existência de raças; b) a continuidade entre o físico e o moral, isto é, à divisão do mundo em
raças correspondes a uma divisão por culturas; c) a ação do grupo sobre o indivíduo, ou seja,
o comportamento do indivíduo depende, na maioria das vezes, do grupo racial a que pertence;
d) hierarquia universal de valores, que é a crença na superioridade de uma raça sobre outra; e)
uma política baseada no saber, o que justificaria a submissão ou a eliminação das raças
inferiores; neste caso, trata-se de uma teoria que dá lugar a uma prática, podemos dizer que aí
se conjugam racialismo e racismo. Todorov acrescenta que “o racismo que se apóia num
racialismo produz resultados catastróficos: tal é, precisamente o caso do nazismo”.26
Todorov
parte do princípio que não se pode confundir estes dois termos, até porque o racismo, tal com
está definido acima, refere-se a um comportamento antigo e de extensão provavelmente
universal, enquanto o racialismo tem seu apogeu e queda num período bem demarcado da
história.
MUNANGA (1998), assinala que se pode conferir ao racismo um sentido mais
amplo, quando este envolve qualquer forma de discriminação, uma reação de intolerância
contra o que se considera uma característica natural de determinados grupos. É o caso de um
racismo contra jovens, contra mulheres, homossexuais, etc. Neste caso:
25
TODOROV, T. Nós e os outros. A reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1993. Parte 2: Raças, p. 107.
26
Idem, ibidem.
20
“Uma tal posição implica a universalidade do racismo no tempo e no espaço
e atribui sua causa à própria psicologia humana. O racismo se torna um dado
universal que se soma ao fato da diferença existente entre os grupos
humanos, que é também um outro dado universal”27
.
Este seria, neste ponto de vista, o sentido mais amplo, comum e popular quando se
fala de racismo, e dentro desse conceito a palavra “raça” não está presente. Num sentido mais
restrito, Munanga faz referência ao racismo como “fenômeno recente da história da
humanidade , ligado indissoluvelmente à história da ciência e cultura ocidental”28
. O racismo,
nesse caso, não é um fenômeno universal, pois se trata de uma doutrina que utiliza
argumentos emprestados da ciência – a biologia (séc. XIX) - a qual não só forneceu uma
explicação para as diferenças entre os grupos humanos, mas estabeleceu uma hierarquia entre
eles e com isso a justificativa para a dominação de uns sobre os outros.
A biologização das raças contribuiu sobremaneira para o tipo de racismo que vai
se consolidando a partir daí, o racismo apoiado nas teorias racialistas. Estas não só
forneceram uma explicação sobre as diferenças entre os homens, mas qualificaram essas
diferenças, usando a respeitabilidade da ciência. Dito de outro modo, as práticas racistas desse
momento em diante, se justificam na afirmação da existência de uma relação estreita entre
características biológicas e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais.29
Essa corrente do racismo, baseada na vertente biológica começa a perder
substância com os avanços da ciência, a partir da segunda metade do século XX.
Não obstante a noção de raça tenha sido invalidada pela ciência, os elementos da
hierarquização entre as raças sobrevivem e ainda se mantém no imaginário das gerações
atuais, mesmo não tendo sido “cientificamente comprovada a relação entre uma variável
biológica e um caráter psicológico, entre raça e aptidões intelectuais, entre raça e cultura.” 30
.
1.2- O darwinismo e uma nova conceituação de raça
Um dos eventos que, sem dúvida, marcaram o período, foi o lançamento do livro
“Origem das Espécies”, de Charles Darwin. Essa obra teve uma influência decisiva nos
27
MUNANGA, K. “Teorias sobre o Racismo”. Estudos & Pesquisas nº 4. Niterói: EDUFF, 1998, p.45.
28
Idem, p. 46.
29
A classificação racial humana de Carl von Linné (séc. XVIII) já estava acompanhada de uma escala de valores
que sugere uma hierarquização. Consultar MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual... - op. cit.p.25.
30
Idem, p.26.
21
diversos campos do conhecimento (medicina, biologia, história, antropologia e sociologia). A
teoria de Darwin – a mais famosa teoria da evolução – postulava que “todas as espécies
descendem de um ancestral comum e evoluem gradativamente através do processo de seleção
natural” 31
.
A obra de Darwin influenciou o debate que até então polarizava as opiniões sobre
a origem da humanidade. Entretanto, ela não foi prontamente aceita no meio científico o qual
vivia sob a influência de outras teorias, tais como, o lamarkismo, a ortogênese e algumas até
mesmo antidarwinianas (SANTOS, 1996). Só após a sua morte, o conjunto de sua obra,
juntamente com a de outros pesquisadores, constitui-se no que se chamou evolução
darwiniana.
O darwinismo passou a ser paradigma para a biologia moderna a partir dos anos
40, com a chamada 2ª revolução darwiniana. Todo conhecimento acumulado até então
permitiu a elaboração da chamada síntese evolucionária ou neodarwiniana, um sistema
explicativo que se aplicava aos diversos níveis do processo evolutivo, através do qual se
explicava a transmissão do material genético até o surgimento de novas espécies. Pela síntese
foi possível compatibilizar o mendelismo, a biometria e o darwinismo.
O pensamento evolucionista é anterior a Darwin e já exercia forte influência sobre
as teorias antropológicas (Antropologia Física), sendo que o darwinismo trouxe um
complicador a mais porque enfatizava a mudança, a instabilidade, a transformação, deixando
tanto monogenistas quanto os poligenistas32
desconfortáveis em suas proposições embasadas
em teses tipológico-descritivas.
Acho importante destacar duas questões que se entrelaçavam naquela ocasião: o
avanço da burguesia européia, o auge do imperialismo que dividiu o mundo segundo seus
próprios interesses e a ascensão da biologia, É a época em que a Ciência se transforma num
grande mito e, por conta disso, ninguém a questiona ou discute suas afirmações. E o que a
31
SANTOS, R. V. Da morfologia às Moléculas, de Raça à População: Trajetórias Conceituais em Antropologia
Física no século XX. In MAIO, M. C; SANTOS, R. V. op. cit. p. 126.
32
Os monogenistas defendiam a tese de que os seres humanos teriam uma origem única, já os poligenistas
afirmavam que os seres humanos provinham de diferentes origens. O interessante que a obra de Darwim,
mesmo atenuando o debate entre essas duas correntes de pensamento, não foi suficiente para derrubar as
hierarquias entre as raças. Os poligenistas acossados pela hipótese de origem única defendida por Darwim,
argumentavam que as raças teriam se separado em épocas bem remotas e pela seleção natural umas teriam
evoluído e outra não; sendo os traços físicos e mentais permanentes, a superioridade ou a inferioridade
explicados pelo grau de evolução. Os monogenistas, por seu turno, apostavam na hipótese de que as
desigualdades raciais seriam uma amostra dos estágios mais ou menos avançados da evolução humana, ou seja,
cada uma das raças seria uma amostra dos estágios evolutivos que toda a humanidade teria que passar para
atingir graus cada vez mais avançados (Lobo, 2004; SANTOS, 1996).
22
biologia diz sobre os homens torna-se verdade incontestável, ou melhor, busca-se nas leis
biológicas a explicação para as relações humanas, posto que o homem como ser vivo estaria
submetido às mesmas leis. Isto porque, com a teoria da evolução de Darwim, a biologia,
torna-se o grande modelo de análise. “Termos como sobrevivência dos mais aptos,
adaptação, escorriam da biologia e passavam a ser utilizados na política, justificando práticas
imperialistas [...] o que se vendia era a idéia do domínio do mais forte sobre o mais fraco, do
mais adaptado ao menos adaptado” 33
.
SEYFERT (1996) vai dizer que:
O darwinismo social – principal doutrina racista vigente na passagem do
século – radicalizou o primado das leis biológicas na determinação da
civilização, afirmando que o progresso humano é um resultado da luta e da
competição entre raças, vencendo os mais capazes (ou aptos) – no caso, os
brancos, porque as demais raças, principalmente os negros, acabariam
sucumbindo à seleção natural e social.34
As teorizações da Biologia acerca do homem e da diversidade humana foram
utilizadas pela Sociologia e Antropologia, ciências que estavam surgindo naquele momento.
Schwarcz exemplifica isso, afirmando que Spencer aplicava à Sociologia as máximas de
Darwim, quando dizia: “o que vale para a Biologia vale para os homens” 35
. Segundo
ARENDT (2000), Herbert Spencer, o primeiro filósofo da evolução, tratava “a sociologia
como parte da biologia e acreditava que a seleção natural era benéfica para a humanidade e
que dela resultaria a paz eterna” 36
.
Segundo SCHWARCZ (1998), “o imperialismo utilizava-se da ciência para falar
do seu próprio andamento”; foi nessa ocasião que “se dividiu a humanidade numa só linha
ascensional, onde na ponta estavam os ocidentais, homens e brancos, de preferência da
Europa Central”. É nesse contexto que tomam força as teorias sobre as raças. Em suma, “vai-
se usar as diferenças e, sobretudo qualificar as diferenças, usando a respeitabilidade da
ciência”.37
Até a metade do século 20, a maioria dos antropólogos físicos não abriu mão do
conceito de raça e de tipo racial, mantendo-se fiel aos modelos descritivos e alheios aos
33
SCHWARCZ, L. M. Sobre o signo da diferença... - op. cit. p. 80.
34
SEYFERT, G. - op. cit. p. 41.
35
SCHWARCZ, L. M. Sob o signo da diferença…- op. cit. p. 80.
36
ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 209.
37
SCHWARCZ, L. M. - op. cit. p. 82.
23
avanços da biologia experimental e comportamental que fortaleciam a síntese neodarwiniana.
Autores que criticavam a idéia de estabilidade e fixidez das características raciais não eram
considerados.
Embora ficasse cada vez mais evidente que as tipologias raciais, baseadas em
características morfodescritivas, não tinham sustentação pelos novos parâmetros biológicos, o
debate sobre raça persistia, até mesmo se revitalizava.
A descoberta dos grupos sangüíneos por Landsteiner (1900-1901) e as pesquisas
que se seguiram foram marcantes e sugeriam que os critérios de classificação até então
utilizados precisavam ser revistos. Os grupos sangüíneos passaram a ser implementados como
marcadores raciais no lugar dos parâmetros morfológicos, pela descoberta de que eles eram
transmitidos segundo o modelo mendeliano e estavam presentes em todas as populações
humanas, inclusive em primatas não humanos, sugerindo então que a análise dos mesmos
tornaria a classificação mais objetiva.
À medida que avançam os estudos, novos parâmetros bioquímicos vão surgindo, o
que vai provocar a direção do olhar para estruturas cada vez mais diminutas, posto que as
características externas como cor da pele, formato de nariz, dimensões do crânio, tipo de
cabelo, etc. perderam sua relevância, sendo substituídas por estruturas cada vez menores, cuja
observação já não podia ser feita a olho nu, ou seja, “os marcadores raciais foram redefinidos
de modo a acompanhar este deslocamento metodológico desde a morfologia às moléculas” 38
.
O conceito de raça, enquanto ferramenta de classificação, sofre uma
transformação a partir das novas metodologias adotadas pela biologia experimental e pela
síntese neodarwiniana, porém não ocorre uma “desracialização” conceitual. O que ocorre é
uma saída da esfera de influência da perspectiva tipológico-descritiva para se abrigar à
sombra da genética, aproximando-se gradativamente do conceito de população. A raça vai se
conformando, ao longo do século 20, aos conceitos emergentes na genética de populações a
partir da síntese neodarwiniana. Houve uma mudança de perspectiva no que diz respeito ao
modo de pensar “raça”. Saiu-se da perspectiva que enfatizava a fixidez e a estabilidade para
redefinir raça “de modo a efetivar uma conciliação com um evolucionismo cuja ênfase era o
dinamismo e a mudança” 39
.
O debate em torno da definição de raça não se desenrolou sem contratempos e
consensualmente. Até meados deste século, os antropólogos físicos ainda defendiam uma
38
SANTOS, R. V. - op. cit. p. 128.
39
Idem, p. 129.
24
definição tipológica, descritiva e determinista de raça. Em 1949, a Assembléia Geral da
Unesco foi dedicada ao debate sobre o conceito de raça, e tornou pública em julho de 1950 a
chamada “1ª Declaração sobre Raça” 40
. Houve muitas reações a essa declaração, conquanto
muitos geneticistas e antropólogos não aceitarem o seu conteúdo, principalmente porque esta
enfatizava a não existência de correlação entre características biológicas e qualidades
intelectuais, mentais, psicológicas, etc.
Uma outra reunião para debater “raça” ocorreu em 1951, na qual houve a
participação apenas de antropólogos físicos e geneticistas. O resultado desta reunião foi uma
segunda Declaração cujo texto é mais factual e biológico, mas só o foi à luz da genética. Os
antropólogos foram unânimes em considerar o conceito de raça como ferramenta de
classificação por meio do qual se poderia realizar estudos sobre o processo evolucionário.
Com relação à inteligência, temperamento, cultura e raça não houve uma posição conclusiva
por parte dos membros do comitê organizador da reunião; eles afirmavam que os dados
disponíveis não permitiam comprovar ou rechaçar qualquer associação. Nesse documento, o
ser humano, delineado por geneticistas e antropólogos, não é mais definido a partir de
modelos tipológicos e racializados, mas à luz do neodarwinismo.
Os debates em torno dos documentos da UNESCO são uma amostra do
acirramento de posicionamentos prévios de grupos que defendiam visões distintas de raça. O
desdobramento disso foi à efetivação, em antropologia física, de uma transição de raça à
população tal como anteriormente aconteceu, nos outros campos da antropologia, o
realinhamento de raça e cultura.
O conceito de raça na sua vertente tipológica ainda continua presente na
antropologia física norte-americana, embora a crítica à raça tenha sido consolidada por
influência dos antropólogos e geneticistas ligados às instituições norte-americanas,
No Brasil41
, pode-se distinguir duas linhas de pesquisa em relação à raça, sendo a
primeira centrada nas análises tipológicas, tal como a que se sucedeu em instituições
40
“A chamada „Primeira Declaração sobre Raça‟ foi tornada pública em julho de 1950. Alguns de seus
principais pontos são os seguintes: (1) enfatiza que as diferenças biológicas entre os grupos humanos são devidas
à operação de forças evolutivas e que a espécie humana é constituída por “populações”, na dimensão
neodarwiniana do termo; (2) “raça” designa um grupo ou população que se caracteriza por concentração de
partículas hereditárias (genes) ou atributos físicos, que podem variar ao longo do tempo; (3) a história humana e
estudos biológicos demonstram que o espírito cooperativo é natural e arraigado nos seres humanos (ou seja, o
ódio racial não lhes seria uma característica intrínseca, “natural”; (4) os grupos humanos não diferem em suas
características mentais, seja inteligência ou comportamento (UNESCO, 1952)”. Idem, p. 129.
41
Segundo Seyfert (1996), “o Brasil já possuía uma ciência das raças, gestada desde 1860, sob a influência de
Paul Broca, eminente anatomista e antropólogo francês – [..] Até 1877 são trabalhos esparsos, realizados no
âmbito das escolas de medicina, versando sobre as origens das raças humanas e temas próximos. Em 1877 foi
25
antropologia tradicionais, tais como o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. A segunda linha, a
desenvolvida nos departamentos de biologia e genética de algumas universidades, centra-se
na genética das populações. Em resumo, nos centros tradicionais, as proposições
neodarwinianas pouco foram consideradas, ao contrário do que se sucedeu no outro ramo da
antropologia física que centrou seu foco de investigação nas pesquisas e, genética de
populações. Estudiosos como Salzano e Freire-Maia (1967) definiram raça como:
...conjunto de indivíduos ocupando uma determinada área geográfica,
cruzando-se entre si e geneticamente distintos de outros conjuntos da mesma
espécie [...]
raça é: 1) uma população, 2) predominantemente endogâmica, e 3)
caracterizada por uma comunidade de genes diversa da que caracteriza outras
populações42
.
Em trabalhos recentes, os traços morfológicos externos, que no passado foram a
base das classificações raciais, não são sequer mencionados. Para os geneticistas “raça é um
conceito probabilístico que se aplica a um conjunto de indivíduos e não a indivíduos tomados
isoladamente” 43
. Contudo, mesmo privilegiando uma leitura neodarwiniana de raça, percebe-
se ainda resquícios de uma perspectiva tipológica em pesquisa sobre a “mistura racial” ou
“análise dos componentes raciais”.
Em um outro plano, o das relações sociais, percebemos que “raça” continua
sendo um fator de distinção entre as pessoas, não obstante estudos recentes comprovarem que
os seres humanos, do ponto de vista da genética, são mais “iguais” do que parecem.
Em trabalho intitulado “Retrato Molecular do Brasil Revisitado”, Sérgio D. J.
Pena (2004), descreve a pesquisa na qual se buscou montar a configuração genética do povo
brasileiro. Ele afirma que, pesquisando as patrilinhagens e matrilinhagens de brasileiros
brancos, foi constatada a presença de 60% de matrilinhagens ameríndias e africanas em
brasileiros brancos, o que considera um número bastante alto. Isto significa que muitos
brasileiros brancos têm DNA mitocondrial ameríndio ou africano.
Isto vem comprovar que o fenótipo é apenas a ponta de um iceberg que esconde
as proximidades genealógicas entre os homens. Olhando por esta perspectiva, fica cada vez
instituído o primeiro curso de Antropologia Física no Museu Nacional, lecionado por João Batista de Lacerda. A
partir daí, os estudos se tornaram mais sistematizados, tanto nos museus como na Medicina Legal; os
pesquisadores interessados, principalmente na morfologia e classificação de tipos indígenas e mestiços.” - op.
cit. p. 48).
42
SALZANO, F. M; MAIA, N. apud SANTOS, R. V. - op. cit. p. 134-135.
43
Idem, p. 135.
26
mais patente a utilização do fenótipo para justificar as desigualdades nas relações
humanas. Falaremos disso mais adiante
Em nota alusiva ao uso do termo “raça” em seu trabalho, Pena afirma que este:
é mais uma construção social e cultural do que biológica. Na verdade, do
ponto de vista genético, raças humanas não existem (TEMPLETOM, 1998).
O homem moderno distribuiu-se geograficamente e desenvolveu
características físicas, incluindo cor da pele, que são adaptações ao ambiente
de cada nicho ecológico. Entretanto, do ponto de vista genético não houve
diversificação suficiente entre estes grupos geográficos para caracterizar
raças em um sentido biológico, como demonstrou recentemente o geneticista
americano Alan Templenton 44
.
Um outro aspecto que convém considerar está relacionado ao destaque que se dá à
ínfima parte do material genético que nos diferencia do ponto de vista fenotípico, posto que
são poucos os genes responsáveis pela pigmentação da pele enquanto que para as demais
características não há praticamente diferenças que justifiquem, por exemplo, a existência de
uma outra espécie humana. Somos todos, independentemente das características morfológicas
externas Homo sapiens sapiens.
Pensamos que um pequeno trecho da belíssima conclusão de Stefhen J. Gould
(1999), em “A falsa medida do Homem”, nos fornece elementos valiosíssimos para livrarmo-
nos das limitações impostas pelas “verdades” pouco consistentes sobre as nossas “diferenças”.
Uns poucos caracteres ostensivos da aparência externa levam-nos a
considerar subjetivamente que se trata de diferenças importantes. Mas os
biólogos afirmaram recentemente, se bem que o suspeitassem havia muito
tempo, que as diferenças genéticas globais entre as raças humanas são
assombrosamente pequenas. Embora a freqüência dos diferentes estados de
um gene varie entre as raças, não encontramos “genes raciais”, ou seja,
estados estabelecidos em certas raças e ausentes em todas as demais.
Lewontin (1972) estudou a variação de dezessete genes que codificam
diferenças de sangue e comprovou que apenas 6,3% da variação podia ser
considerada própria de determinada raça. Nada menos que 85,4% da
variação ocorria dentro de populações locais (os 8,5% restantes
correspondiam às diferenças entre populações locais dentro de uma mesma
raça). Como observava Lewontin (comunicação oral), se o holocausto
acontecesse, e os únicos sobreviventes fossem os membros de uma pequena
tribo vivendo nas profundezas das florestas da Nova Guiné, seriam
conservadas quase todas as variações genéticas atualmente presentes nos
inúmeros grupos de nossa população de quatro bilhões de pessoas.
Esta informação a respeito das limitadas diferenças genéticas entre os grupos
humanos é tão útil quanto interessante, inclusive no sentido mais profundo
de salvar vidas humanas. Quando os eugenistas americanos atribuíram as
doenças da pobreza à constituição genética inferior das pessoas pobres, não
conseguiram propor outro remédio sistemático que não fosse a esterilização.
44
PENA, S. D. J. Retrato molecular do Brasil Revisitado. In Cadernos PENESB n. 5 - op. cit, p. 53.
27
Quando Josepf Goldberger demonstrou que a pelagra não era um distúrbio
genético, mas uma conseqüência da avitaminose conseguiu curá-la45
.
1. 3- Racismo sem “raça”
Se o termo raça, utilizado para fazer distinção entre grupos humanos, a partir de
sua semelhanças e diferenças, adquiriu sentidos diversos, segundo o entendimento que se
imprimiu à evidência da diversidade humana, o mesmo se pode afirmar em relação ao sentido
de racismo.
Nem sempre se pode estabelecer uma relação direta entre racismo e a idéia de raça
tal como foi concebida no séc. XIX. Houve várias teorias justificando o racismo, até mesmo
de origem mitológica cujo exemplo é a derivada da interpretação que foi dada para a origem
das raças branca, amarela e negra a partir do relato bíblico acerca da maldição de Noé sobre
seu filho Cam. O incidente relatado no livro do Gênesis46
foi utilizado para fundamentar o
racismo contra os negros, justificando com isso a escravidão destes. Há uma edição da Bíblia
que, em uma nota de pé de página traz a seguinte sentença: “a maldição de Cam foi
abusivamente interpretada na história como maldição da raça negra” 47
.
ARENDT (2000), em “Origens do Totalitarismo”, ao analisar o aparecimento de
ideologias raciais na França e Alemanha, na época de constituição desses Estados, demonstra
que a distinção entre os homens era feita a partir da idéia de uma suposta primazia de uns
grupos sobre outros que teria sido formulada a partir da distinção entre nobres e plebeus,
entre aristocratas e burgueses. Sendo que na França a “raça” foi utilizada como arma para a
guerra civil e para a divisão do país e, na Alemanha, como esforço para reunir os alemães
contra o domínio estrangeiro. Neste caso, a raça se refere a grupos de indivíduos segundo a
classe a que pertencem, daí o slogan “uma „raça‟ de aristocratas contra uma nação de
cidadãos48
”. Busca-se, inclusive, na ascendência do indivíduo a explicação para as suas ações.
Também é apontada como uma forma de racismo a exclusão ou estigmatização de
um conjunto de indivíduos pertencentes a uma mesma categoria social. Assim temos um
racismo contra mulheres, contra pobres, homossexuais, obesos, etc. Nesses casos, o motivo da
45
GOULD, S. J. A Falsa Medida do Homem. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 45.
46
Gênesis 9:18-27.
47
BÍBLIA SAGRADA – Edição Pastoral. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Edições
Paulinas. 1990 p. 20 (grifos no original).
48
ARENDT, H. - op. cit., p. 191.
28
rejeição não é a “raça” desses sujeitos, mas uma certa concepção sobre eles, baseada na idéia
de que eles têm algumas características que lhes são próprias, isto é, intrínsecas a sua
natureza.
Esse fato é por vezes utilizado para minimizar o racismo contra negros, sendo
comuns declarações do tipo: “mas as mulheres, os pobres, os travestis também são
discriminados”. Com efeito, essa discriminação acontece e é efeito de uma certa biologização
desses grupos, como se eles tivessem um “estigma corporal” 49
que lhes conferisse um modo
de ser ou de agir particulares, próprios.
Não queremos dizer com isso que esses racismos sejam mais palatáveis ou menos
nocivos do que o racismo contra os negros, por exemplo; a questão é que podem levar “à
banalização dos efeitos do racismo, ou seja, a um esvaziamento da importância ou da
gravidade dos efeitos nefastos do racismo no mundo” 50
, do racismo enquanto sistema de
dominação de povos e culturas.
Um outro aspecto a ser considerado é a necessidade de dar a devida atenção às
novas formulações do racismo nos últimos tempos: o racismo constituído com base nas
diferenças culturais e identitárias. Em outras palavras, o racismo ainda é uma realidade nas
relações sociais e ganha novas feições no mundo globalizado.
HASENBALG (1998), chama a atenção para alguns fatores que sinalizam uma
outra feição do racismo ultimamente. Nesse caso, se incluem as restrições à entrada de
imigrantes nos EUA, atualmente de latino-americanos e asiáticos, e a formação de uma
“subclasse” ou “underclass”, efeito da deterioração da situação de uma parcela da população
negra. Na União Européia há o que se pode chamar de “neo-racismo”, ou “racismo
diferencial” do qual os imigrantes são os alvos. A estes é imputada a responsabilidade pelos
problemas de desemprego e crises de moradia, criminalidade, drogas e terrorismo. Para
Hasenbalg, a lógica desse racismo diferencial é a cultura dos povos imigrantes que ameaça a
integridade da nação. Fica patente que o referencial já não é mais a raça, mas a cultura.
Diferentemente do que acontece na Europa e nos EUA, considera que há, na atualidade,
conflitos que já não apontam para a exclusão, mas para a eliminação de certas etnias, já que
“grupos étnicos são vistos como estranhos, estrangeiros e, inevitavelmente como inimigos” 51
,
49
MUNANGA, K. Uma abordagem... - op. cit. p 26.
50
Idem, p. 27.
51
HASENBALG, C. Relações Raciais no contexto Nacional e Internacional. In Estudos e Pesquisas n. 4. op. cit.
p. 12..
29
como é o caso do ocorre entre hindus e muçulmanos, entre judeus e árabes, entre os Hutus e
Tutsi em Ruanda, etc.
O racismo, tal como foi visto anteriormente adquiriu múltiplas feições, decorrente
do fato de que cientificamente, as raças não existem. Todavia elas existem plenamente, no
mundo social e são o produto de formas de classificar e de identificar que orientam as ações
humanas (GUIMARÃES, 1999).
1. 4- O racismo como “arma política” 52
Não há raças e entretanto há relações raciais. Paradoxo? Não. Na realidade, a
expressão “relações raciais” acoberta outras relações, corresponde a um
eufemismo. Racismo pode ser definido então como a imposição de relações
de dominação disfarçadas sob a crença de que são raciais, isto é, de que há
raças. (Joel Rufino dos Santos)
A frase de Joel Rufino dos Santos tanto nos reporta ao que já foi dito
anteriormente como nos chama a atenção para um outro aspecto do fenômeno do racismo tal
como se estrutura a partir do século XIX.
Segundo ARENDT (2000), o racismo, emergiu simultaneamente em todos os
países ocidentais no século XIX, entretanto, nos séculos anteriores já tinha raízes profundas.
Considera que, na verdade, ele absorveu todos os pensamentos racistas que existiam
anteriormente, mas que por si mesmos não eram capazes de transformar o racismo em
ideologia53
.
Arendt afirma que, antes de começar a “corrida para a África”, o pensamento
racial era uma idéia que, como tantas outras, disputava a aceitação da opinião pública, mas
somente algumas dessas idéias chegaram a se tornar uma ideologia, ou seja, um sistema
capaz de atrair e persuadir as pessoas, passando a ser o orientador de suas vidas na
modernidade. Ela concebe ideologia como um sistema de pensamento que pretende ser a
chave da história, ou seja, “julga poder apresentar a solução dos „enigmas do universo‟ e
dominar o conhecimento íntimo das leis universais „ocultas‟, que supostamente regem a
natureza e o homem” 54
. Para ela apenas duas ideologias sobreviveram à pressão do
pensamento racional: a que interpreta a história como uma luta natural entre raças e a que
52
Expressão utilizada por Hannah Arendt . - op. cit. p. 189.
53
O que achamos intessante na exposição de Hannah Arendt sobre racismo diz respeito ao que ela entende sobre
ideologia.
54
ARENDT, H. - op. cit. p. 189.
30
interpreta a história como luta econômica de classes. Essas ideologias alcançaram o status de
explicadores dos fatos históricos, sociais e humanos. Por conta disso, afirma que tanto a
ideologia racial como a de classes “formaram moldes obrigatórios de pensamento”55
, ou seja,
não só os intelectuais, mas as grandes massas rejeitam a apresentação de fatos, passados ou
presentes, que não se ajustem a uma delas. Ao racismo se deu uma importância e dignidade
como se fosse uma grande contribuição espiritual para o mundo ocidental. Segundo Arendt, o
racismo, tal como toda ideologia, foi criado, mantido e aperfeiçoado como arma política. Seu
aspecto científico não é o mais importante, embora se utilize de argumentos aparentemente
bem articulados os quais têm o poder de convencer até mesmo os cientistas, notadamente os
que estão mais interessados em pregar às grandes massas as novas interpretações da vida e do
mundo do que nas pesquisas propriamente ditas. Por isso que não há praticamente nenhuma
ciência que não tenha sido afetada pelas cogitações raciais. AZEVEDO (2002) vai mais
fundo nesse ponto ao afirmar que “o racialismo foi parte da própria modernidade da
ciência”56
.
Sobre este ponto, FOUCAULT (2002) vai mais além ao afirmar que o racismo foi
introduzido nos mecanismos de Estado quando da emergência do biopoder, o qual considera
um dos traços fundamentais das tecnologias de poder desde o século XIX, momento em que
o domínio da vida sofre por completo a intervenção de um poder que se incumbiu não só do
cuidado com o corpo dos indivíduos, no sentido de aumentar-lhe a força útil, mas na gestão
de tudo o que diz respeito à vida desses indivíduos enquanto espécie humana. Trata-se de
gerir a vida na terra, de regulamentá-la, de modo a ter o absoluto controle sobre a mesma.
Quando discute a emergência do biopoder, Foucault nos interpela para uma outra dimensão
do racismo. Este é por ele entendido , como uma maneira de o biopoder introduzir um corte
no domínio da vida, sobre um domínio que ele mesmo se incumbiu de intervir; “o corte entre
o que deve viver e o que deve morrer”57
.
Ele vê no surgimento das raças, na distinção e hierarquia entre elas, na
qualificação de umas e desqualificação de outras “uma maneira de fragmentar o campo do
biológico de que o poder se incumbiu”, uma maneira de defasar, no interior da população,
uns grupos em relação a outros...de estabelecer uma cesura que será do tipo biológico no
55
Idem, idem.
56
AZEVEDO, C. M.M. Para além das Relações Raciais: por uma história do racismo. In: Anti–racismo e seus
paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, 2004, p. 124.
57
FOUCAULT, M. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 304.
31
interior do domínio considerado como sendo um domínio biológico. Esta seria a primeira
função do racismo: fragmentar o biológico; a segunda função seria a de permitir uma relação
positiva, no sentido de poder justificar a morte do outro “inferior” porque isso pode tornar a
vida – entendida aqui como sinônimo de espécie humana – mais justa. Em resumo, quanto
mais espécies inferiores forem eliminadas, mais fortes e vigorosas serão as demais. O foco
não é mais o indivíduo e sim a espécie, é esta que sairá fortalecida. Neste ponto, a morte do
outro inferior, anormal ou degenerado se constitui num bem para a humanidade. Não seria
este o princípio que orientou as práticas eugênicas e nazistas, as de extermínio de um modo
geral?
A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria
minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça
inferior ( ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em
geral mais sadia; mais sadia e mais pura58
.
Mais adiante, ele vai afirmar que “a raça, o racismo, é a condição de
aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização”, numa sociedade que tem um
poder que é “em primeira instância, em primeira linha um biopoder”59
. Nesta sociedade, a
eliminação dos indesejáveis (ou tudo que inviabilize a existência destes) é sempre referida ao
fortalecimento da própria espécie ou da raça.
Segundo Foucault, o racismo faz funcionar uma relação do tipo guerreira, porém
de uma forma completamente nova, afinada com o biopoder; uma relação biológica onde não
há mais enfrentamento explícito como na relação guerreira. Esta é, na verdade, bem anterior
ao racismo, mas é dela que extrai sua lógica: para não ser morto o indivíduo tem que matar,
para ser vitorioso, um grupo tem que massacrar o inimigo. Por conseguinte, damo-nos conta
do quão oportuna foi a teorização que a ciência faz sobre raça no século XIX . O discurso
sobre raça iniciou bem antes, mas é só a partir desse momento, não por coincidência, que ele
vai ganhar o status de científico, no mesmo período em que o biopoder “tomou posse da
vida” porque a ação deste ultrapassa o cuidado com o corpo dos indivíduos, ela se estende do
orgânico ao biológico, do corpo à população, de modo que não há instância vital que não seja
atravessada por esse poder, daí a expressão: biopoder.
Foucault ao dissecar os meandros do biopoder, aponta os paradoxos de um poder
que, ao mesmo tempo que investe nas tramas que podem prolongar a vida, intervem sobre a
58
Idem, p. 305.
59
Idem, p.306.
32
mesma proporcionando melhores condições, pode, do outro lado inviabilizar a vida, dadas as
possibilidades concretas de fabricar seres monstruosos, destruidores. Porém, o que mais
salienta é o fato de este poder que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar
morrer. Como, a partir dos avanços da medicina, das ciências biológicas, da farmacologia, se
pode aceitar, permitir, ou ser indiferente à morte de milhões de seres humanos? Ou dito de
outro modo: como achar natural que determinados indivíduos sejam tratados como
cidadãos de 2ª classe? É possível porque o exercício do biopoder – incluindo aí o poder
de matar - passa pelo racismo, este entendido a partir da perspectiva foucaultiana.
Neste ponto podemos nos dar conta que se pode estabelecer um nexo entre a
teorização que a ciência faz sobre raça no século XIX - uma teoria que pode ser vista como
uma síntese do discurso sobre raças que começou alguns séculos antes - e o poder que
também foi, paulatinamente, abrangendo toda a extensão da vida até se constituir no que
entendemos como biopoder.
Outrossim, pensamos ser interessante ter em conta que, em primeiro lugar, a
argumentação científica, elaborada pelos teóricos da raça, vem justificar a dominação e
exploração de povos e, em segundo lugar, que as teorias racialistas caem como uma luva num
mundo que busca “progresso” 60
a todo custo. Cada conquista da sociedade capitalista é vista
como um avanço em direção a um mundo melhor. É nesse sentido que Foucault afirma que o
evolucionismo de Darwim tornou-se não só um jeito de “transcrever em termos biológicos o
discurso político”, mas a expressão de um modo de “pensar as relações de colonização, a
necessidade das guerras, a criminalidade” etc. O racismo se desenvolve e vai irromper, nas
sociedades modernas que funcionam no modo do biopoder, nas circunstâncias onde “o
direito de morte é necessariamente requerido” 61
.
É interessante que se pode estabelecer uma correlação entre as diversas
formulações do racismo e o avanço do capitalismo. Fica claro que à medida que uma
argumentação a seu favor vai se esgotando, novos elementos são suscitados, de sorte que já
se afirmou que se os negros não existissem seriam inventados (GUATTARI,1999), tal a
necessidade que o capitalismo tem de apresentar algo que justifique suas práticas.
60
Quando se entende por progresso o modo ocidental de dominar a natureza e de dominar os homens. Com esse
culto ao progresso, justifica-se o direito do capitalismo de colonizar “os povos ditos „primitivos‟ ou „atrasados‟
para que se beneficiem dos „progressos da civilização‟” CHAUÍ, M. O que é Ideologia. São Paulo:
Brasiliense,1985,.p.121.
61
FOUCAULT, M. - op. cit. p. 307.
33
O capitalismo é um sistema econômico baseado no lucro, sendo o acúmulo de
capital o motor que o sustenta, tornando-se poderoso aquele que o controla. Os países
europeus , a partir do século XV se tornam senhores dos demais: Ásia, África e América. Foi
a partir da exploração destes que os europeus reuniram capital suficiente para financiar os
seus projetos. A escravização dos povos indígena e africano foi durante muito tempo a forma
de adquirir riqueza pela extração de açúcar, tabaco, algodão, minério desses três
continentes. Era preciso justificar o tratamento dado a esses indivíduos, cujos costumes e
crenças eram bem diferentes dos europeus. O empreendimento europeu era inclusive
apontado como possibilidade de redenção dessas almas, se é que esses homens as possuíam!
Havia dúvidas sobre isso, não foram poucas as controvérsias sobre a humanidade dos índios e
dos africanos, considerados inferiores por suas práticas religiosas e por sua ignorância dos
preceitos cristãos. Ainda não se falava em raças, era a ascendência do indivíduo, isto é, o
pertencimento a uma certa linhagem que distinguia os homens. Era o chamado “estatuto da
pureza do sangue” 62
que sustentava o colonizador branco no poder, aquele cujos ancestrais
não tinham a marca do gentio.
Já no século XVIII, o chamado século das Luzes, essas distinções não têm mais
lugar, e os homens não buscavam mais na religião as explicações para tudo, inclusive para a
existência de povos diferentes.
O Iluminismo vai trazer algumas questões para a sociedade de então, o regime de
escravidão vai sendo questionado, tanto pelas novas conceituações sobre o homem, quanto
pelas novas relações de trabalho.
O final do século XIX caracteriza-se pelo intenso movimento de expansão do
domínio das potências européias - é o imperialismo. O período é marcado pelo surgimento
dos grandes conglomerados de empresas. As nações mais ricas iniciam a exportação de
capitais para as nações mais pobres. Para as primeiras já não era suficiente ter um mercado
consumidor para os seus excedentes, era preciso controlar ou possuir as fontes de matéria
prima, em abundância nos países pobres (HUBERMAN, 1979). Estes vão ter suas economias
subordinadas aos interesses dos donos do capital. É preciso explicar a sujeição dos países
pobres.E uma das explicações é que estes países eram habitados por seres inferiores,
incapazes de criar uma civilização, portanto, era natural que Europa ocidental mantivesse o
controle sobre os demais.
62
LOBO, L. F. “Racismo e Controle Social no Brasil: A psiquiatria e os saberes competentes”. Cadernos Penesb
nº 5. Niterói: EDUFF, 2004, p. 59.
34
Na Europa, em meados do século XIX, era grande a preocupação com o futuro da
civilização, a pureza do sangue já não assegurava o domínio sobre as massas, era a nobreza
em agonia, seus ideais caindo por terra. A idéia da superioridade da raça branca, defendida
por Gobineau em seu “Essai sur l‟inégalité dés races humaines”, se detém sobre o declínio
das civilizações e busca uma explicação para tal fato. Procura explicá-lo colocando a história
na categoria das ciências naturais – uma lei natural regendo o curso dos acontecimentos. Há
nela uma conexão íntima entre o sentimento racista e as explicações sobre a decadência das
civilizações; afirmava que “as nações morrem quando se compõem de elementos
degenerados” 63
.
Gobineau fez uma escala de desigualdades, tomando por base as “provas” da
história e da cultura dos povos, colocando os brancos no topo das características morais e
intelectuais e os negros na parte inferior e degradada. Igualmente postulou que a queda das
civilizações se devia à degenerescência das raças causada pela mistura de sangue, ou seja, a
raça inferior sempre acabava preponderando em qualquer mistura. Batalhou pela definição e
criação de uma elite que sustentasse a aristocracia: no lugar de príncipes uma “raça” de
príncipes, os arianos. Pela raça, segundo ele, se poderia constituir uma elite com direito às
antigas prerrogativas das famílias feudais – a partir daí se sentir como nobres – origem
superior – garantia de direitos superiores.
Ainda cabe perguntar, por que as teorias racialistas ganharam tanta força em
lugares onde a escravidão de negros agonizava como no Brasil e em muitos lugares onde já
tinha sido abolida? Em princípio, esta questão só tem sentido, quando se imagina que as
teorias racialistas justificariam a escravidão. Ocorre que elas surgiram exatamente no
momento em que se discute o princípio de igualdade entre os homens. Se os homens são
iguais, têm por princípio os mesmos direitos. Então, como explicar e sustentar a
subordinação de alguns? As teorias racialistas são, na verdade, uma extensão do princípio
igualitário, são um modo de reafirmar a hierarquia quando se afirma, por outro lado, a
igualdade entre os homens. Trata-se de uma contraposição a esse princípio. Frente a
reaproximação dos grupos sociais, surge o movimento contrário, o de antagonização desses
grupos. O princípio da hierarquia é contemporâneo ao princípio da igualdade entre os
homens64
.
63
GOBINEAU, 1937. Apud LOBO, l. F. - op. cit, p. 63.
64
Sobre este assunto, consultar: DUMONT, L. Homo Hierarchicus. São Paulo: Edusp, 1992. Anexo 1: Casta,
racismo e estratificação.
35
As doutrinas racialistas se alimentam das categorias produzidas na escravidão e
até antes dela. Elas sempre tiveram conexão com teorias científicas. Transplantaram
explicações da biologia para a sociedade. Trataram menos de investigar as relações que
provar que a biologia determinava o comportamento, esta foi a proposta da antropologia
física dos séculos XIX até meados do século XX.
A crença na superioridade e/ou inferioridade de uma raça já era um fato antes do
racialismo, de modo que o racismo apenas adquire um outro sentido, indo servir para
justificar as práticas discriminatórias, nas quais se incluem desde as atitudes de aceitação ou
repulsa entre as pessoas no seu dia a dia às reações contrárias à legitimidade de uma
determinada população de instalar-se no país ou na cidade que lhe aprouver. Cremos que aqui
também retomar a argumentação de Foucault (2000) sobre a importância do racismo numa
sociedade que funciona no modo do biopoder, quando enfatiza que é só mediante um racismo
que foi possível a implementação de políticas de exclusão ou eliminação de grupos
considerados “inúteis”, “incapazes” ou “perigosos” em uma sociedade. Ele vai afirmar que “a
função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do
biopoder, pelo racismo” 65
.
O racismo na verdade esconde - e muito bem - outros interesses em questão e sua
“eficácia” reside exatamente nisso: a naturalização da “raça”, isto é, “raça” como
componente da natureza. Segundo ARAÚJO (1999), isto aconteceu a partir do momento em
que a raça passou a ser objeto da Ciência, a qual forneceu alguns critérios para a
categorização racial, tomando características físicas (umas mais que outras),
comportamentais e cognitivas como definidoras de um determinado tipo racial. De sorte que
esses critérios fortalecem a crença de que não é possível mudar de uma categoria para outra,
ou seja, se o sujeito é caracterizado como pertencente a uma raça não há como deixar de sê-
lo, valendo como “critério de pertencimento a uma determinada raça o fato de ter sido gerado
ou por ser capaz de gerar indivíduos que tragam as mesmas características raciais” 66
.
Araújo prossegue pontuando que raça é um “conceito que traz em sua essência o
velamento de pertencimento a nossas práticas lingüísticas”, posto que, mesmo após a
insuficiência da sua conceituação biológica, as categorias raciais continuam, tal como já
existiam antes de a ciência fornecer critérios seguros de diferenciação racial. Elas já tinham
seu lugar no mundo, daí que:
65
FOUCAULT, M. - op. cit. p306.
66
ARAÚJO, G. G. Identidade Racial e Teoria Psicanalista. Dissertação de Mestrado. IMS/UERJ,1999, p.74.
36
Os critérios raciais, lançados no século XIX, saíram das páginas dos tratados
científicos e conquistaram definitivamente seu lugar no uso público de raça.
A circularidade está aí: os critérios raciais científicos já não servem para
definir raça, mas raça é definida pelos critérios de outrora. O que se infere
disso é que o conceito de raça tem atualmente pouco compromisso com sua
origem. O que sustenta é o uso lingüístico, isto é, o preconceito racial67
.
Araújo pontua que os critérios raciais já não se sustentam em evidências
científicas, porém têm efeito performativo, isto é, produzem realidade, porque as pessoas
continuam sendo categorizadas e categorizando do mesmo modo, devendo ainda levar-se em
conta que “ser categorizado continua tendo as mesmas implicações estéticas e morais que
sempre tiveram” (Idem). Acha, inclusive “possível que a distância entre a aplicação
contemporânea de critérios raciais e a origem desses critérios apenas fortaleça um dos
aspectos fundamentais do conceito de raça: sua naturalidade”.68
O fato é que todos, desde o nascimento, estamos como que presos a uma teia de
significados atribuídos à categoria “racial” a que pertencemos. E tudo isso concebido como
parte da natureza, e não como uma explicação inventada pelos homens em um momento
datado da história.
A classificação mais comum agrupa a espécie humana em três grandes grupos: o
branco, o negro e o amarelo. Estas são “cores” que nada têm a ver com a cor branca, amarela
ou preta, a aplicação dessa cromatologia sobre os humanos tem a ver como significado
atribuído ao branco e ao preto na cultura ocidental. Cabe aqui a observação de GUIMARÃES
(1999) afirmando que “alguém só pode ter cor e ser classificado num grupo de cor se existir
uma ideologia em que a cor das pessoas tenha algum significado. Isto é, as pessoas têm cor
apenas no interior de ideologias raciais”.69
2. Implicações das conceituações sobre raça na sociedade brasileira
2.1 – Racismo no Brasil: realidade ou fantasia.
Já é costume no nosso país ouvir-se expressões de indignação ou de perplexidade
frente às denúncias de discriminação racial. Diante de manifestações explícitas de racismo,
muitos são categóricos e dizem tratar-se de uma situação absurda nos dias de hoje. Chega-se
67
Idem, p. 75.
68
Idm, ibidem (grifos do autor)
69
GUIMARÃES, A S. A – op. ciit. p.44.
37
mesmo a afirmar que isso não cabe mais no atual estágio da humanidade, que o valor da
pessoa está nas suas ações e não na cor de sua pele, que todos somos iguais, ou que somos
todos irmãos, etc. Entretanto, todos sabemos que não é bem assim. Em uma sociedade
altamente hierarquizada como a brasileira, os lugares são muito bem definidos, inclusive pelas
fronteiras de raça e cor. Como diz Milton Santos:
Ser negro no Brasil é, pois, com freqüência, ser objeto de um olhar
enviesado. A chamada boa sociedade parece considera que há um lugar
predeteminado, lá em baixo, para os negros e assim tranqüilamente se
comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da pirâmide
social como haver “subido na vida”70
Assim, ser pobre e negro no Brasil é condição para não aspirar cursar medicina,
por exemplo; ou ter seu espaço de circulação restrito a alguns lugares. Nesse caso, não falta
alguém que, sutil ou diretamente, pergunte: como? E o que não é dito claramente,
transparece em olhares, indagações sutis, evasivas, aconselhamento ou sugestões
“práticas e objetivas” 71
.
Isso ficou bem patente no debate atual sobre cotas as raciais nas universidades, no
qual há até quem discorde apenas afirmando que os negros seriam mais discriminados porque
não teriam possibilidade de lá se manter ou porque se sentiriam diminuídos por terem
conseguido o ingresso na universidade mediante tal prerrogativa. Evidentemente que há
outros argumentos contrários a tal política, inclusive entre negros. Não vamos explorá-los
todos aqui, apenas tecer alguns comentários sobre o assunto em questão. Do nosso ponto de
vista, percebemos que nem sempre os argumentos levantados – os favoráveis e os contrários –
revelam uma visão mais abrangente da questão. Todavia, achamos importante que as pessoas
se manifestem; afinal veio a público um assunto que a sociedade brasileira sempre evitou – o
racismo. Consideramos que este debate é um dos efeitos positivos da implementação de cotas
raciais nas universidades brasileiras.
Nossa exposição sobre esse tema será bastante resumida, porque excederia os
limites deste trabalho, e porque o mesmo tem sido trabalhado em publicações recentes, entre
70
SANTOS, M. Folha de São Paulo – Caderno Mais!, 07/05/00.
71
Sugestões que apontam para escolha de um curso cujo ingresso seria mais “fácil” e/ou que possibilitaria um
ingresso mais rápido no mercado de trabalho. Opções que estão relacionadas, respectivamente, à preparação para
o vestibular e à necessidade de trabalhar; para muitos é sugerido um curso que permita trabalhar. Como vai fazer
um curso em tempo integral e adquirir livros e outros materiais exigidos? Mais sobre esse assunto consultar:
TEIXEIRA, M. P. “Negros em ascensão. Trajetórias de Alunos e Professores Universitários no Rio de Janeiro”.
Tese de Doutorado. Museu Nacional. UFRJ.1998, p. 215 – 242.
38
as quais citamos: GUIMARÃES (1999), MOREIRA (2003), CARNEIRO (2003),
HENRIQUES (2003), MAIO & SANTOS (2004), AZEVEDO (2004), BRANDÃO (2004).
Em primeiro lugar, entendermos que a implementação de cotas raciais tem que ser
vista como parte de um conjunto de medidas emergenciais no sentido de corrigir graves
distorções no acesso à universidade; e em segundo lugar que não se trata de uma benesse do
governo, mas de resultado da ação de diversos setores da sociedade comprometidos com a
transformação da realidade da população negra como um todo. Sendo assim, a questão das
cotas precisa ser vista no conjunto do que chamamos políticas de ação afirmativa.
De acordo com MAIO & SANTOS (2004), a implementação de políticas de ação
afirmativa, vem ganhando “maior visibilidade na versão „cotas raciais‟ nas universidades
públicas”. Eles vêem nesse processo
um momento de inflexão do papel do poder público de um discurso centrado
no elogio à miscigenação e à ausência de conflito racial,, para o do
reconhecimento não apenas do racismo como um grave problema de
iniqüidade social, mas também da necessidade de se criar instrumentos
políticos que o debelem a partir do diagnóstico das desigualdades raciais72
.
No Brasil, a mudança passou a ser sentida quando esse tema entrou na agenda
política do governo Fernando Henrique Cardoso que instituiu, no dia 20 de novembro de 1995
– por ocasião de uma manifestação em homenagem aos 300 anos de Zumbi dos Palmares – o
“Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra”. No entanto, é
em torno da realização da “Conferência Mundial contra o Racismo, discriminação Racial,
Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, sob os auspícios da ONU e realizada em
Durban, África do Sul, em setembro de 2001” que se observa “a grande guinada rumo as
ações afirmativas no Brasil” 73
.
Segundo Maio e Santos, os efeitos de Durban logo se fizeram sentir no Brasil,
pois, o governo estava atento à revelação de credenciais de país democrático no plano
internacional, “especialmente no cumprimento de resoluções elaboradas em fóruns
multilaterais em nome dos princípios de igualdade, inclusive racial, sob o signo dos direitos
humanos”. Imediatamente após a conferência, o governo brasileiro definiu um programa de
políticas de cotas no âmbito de alguns ministérios (Desenvolvimento Agrícola e Reforma
Agrária, Justiça, Relações Exteriores). Nos municípios e nos estados, também foram tomadas
72
MAIO, M.C.; SANTOS, R. V. Políticas de cotas, os “olhos da sociedade” e os usos da antropologia: o caso da
UnB. Reunião anual da ANPOCS. Caxambu, 2004, p. 7.
73
Idem .
39
iniciativas nesses sentido, porém a que obteve mais destaque em 200l foi a aprovação, pela
Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, do sistema de cotas raciais nas
universidades estaduais.
O que observamos, e os autores supracitados confirmam, é que nos últimos anos o
debate em torno da implementação de políticas de ação afirmativa tem girado em torno do
sistema de cotas nas universidades públicas. Há, por certo, o perigo do isolamento, as cotas
sendo apontadas como única solução para o problema. Este é, pois, um dos riscos apontados
por alguns setores que têm restrições não só à política de cotas, mas a políticas de ação
afirmativa como um todo. Achamos que essas críticas – quando baseadas em argumentos
consistentes - podem contribuir não só para o enriquecimento do debate mas para a
implementação de políticas públicas que de fato atendam aos interesses dos menos
favorecidos. Ademais, essas críticas são bem vindas, na medida em que possam servir de
subsídios que ajudem os envolvidos a refletir sobre os possíveis efeitos dessas políticas,
avaliando em que medida elas poderão contribuir para a construção de uma sociedade menos
desigual.74
Todavia, quase sempre nessas discussões não se fazem referência ao que pode ser
o estopim de todo esses “alvoroço” em torno deste assunto: os interesses econômicos
envolvidos, como bem escreve MOREIRA (2003):
É impossível prever quanto tempo será necessário para se alcançar uma
sociedade em que raça deixe de ser um critério de classificação das
pessoas.Quando mais rápido vier esse tempo, melhor, porque raça tem
funcionado como uma carga de opressão e humilhação sobre os não-brancos
em todo o mundo. Dentre os inúmeros fatores que irão contribuir para que
possamos atingir o ideal de sociedade não racista, deve-se considerar a
posição dos brancos, a forma pela qual reagirão à perda de privilégios de
sempre desfrutam exatamente pelo controle inconteste do Estado75
.
São muitos os argumentos pró e a favor dessas políticas, eles variam desde os
baseados em informações sérias aos sem consistência teórica alguma; é possível que alguns
sejam decorrentes da visão estereotipada sobre o negro, o que apenas refletiria uma faceta do
racismo brasileiro.
74
Não se referindo diretamente à questão das ações afirmativas, mas de forma mais ampla, Bauman 2003), ao
discutir o direito ao reconhecimento num contexto do capitalismo globalizado, chama a atenção para o perigo do
sectarismo e da absolutização da diferença que podem comprometer todo um trabalho de integração. Sobre o
tema consultar: BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Cap. 6, p. 69-81.
75
MOREIRA, D. Reflexões sobre mudança sócio-racial no Brasil. In: Racismos contemporâneos. Rio de
Janeiro: Takano Ed. 2003., p. 72.
40
BRANDÃO (2004) nos expõe, de forma sucinta, algumas questões que perpassam
essa discussão a partir de trabalho realizado com alunos freqüentadores do PVNC76
porque
elas sintetizam um pouco da nossa realidade.
Submersos nas redes ideológicas que caracterizam a ordem social brasileira,
que negam o racismo e afirmam a existência de uma falsa democracia racial
esses alunos olham para política de cotas com esperança e medo. Paira sobre
suas cabeças também a ideologia do mérito que acompanha os processos de
operação política das sociedades capitalistas ancoradas em perspectivas
liberais. O medo de subverter a noção abstrata e inconsciente de mérito se
alia entre esses jovens o medo de serem mais uma vez vítimas das
discriminações que marcaram suas vidas. [...], mas todos lançarão mão do
direito que a lei estadual lhes garantiu... 77
Vale também pontuar que, frente à inevitabilidade desta prática, retorna-se ao
velho chavão: tem que haver melhoria no ensino básico, pois é de lá que tem que começar a
mudança. É claro que isso tem que ser feito, entretanto, parte da realidade fica encoberta por
este argumento – seguramente bastante forte - porque remete ao direito de todos de acesso à
educação. Uma realidade comprovada pelas estatísticas oficiais que informam que, “apesar
da melhoria dos níveis médios de escolaridade da população brasileira ao longo do século
XX, o padrão de discriminação racial expresso pelo diferencial na escolaridade entre brancos
e negros, mantém-se perversamente estável entre gerações”78
. O que vem a demonstrar que as
“políticas universalistas não têm sido capazes de alterar o padrão de desigualdade racial” 79
.
Este é um dos argumentos em que nos apoiamos quando defendemos a adoção de políticas
públicas que contribuam para romper com a perpetuação das desigualdades raciais.
Reiteramos o que já dissemos anteriormente, essa – a política de cotas – não é a
solução do problema, mas pode se constituir em um dos meios, em caráter temporário, de se
buscar uma sociedade em que a raça seja um fator irrelevante na alocação de recursos e
distribuição de riquezas. Esta política tem que estar articulada com as demais reformas
políticas, que tenham como meta a construção de uma sociedade democrática disposta a
76
PVNC - Pré-vestibular para negros e carentes. “... as origens do PVNC remontam ao ano de 1993, quando na
Baixada Fluminense um grupo de educadores, em sua maioria ligados ao movimento negro na região, resolveu
atuar contra as dificuldades de acesso ao ensino superior das parcelas pobres e racialmente discriminadas da
população. Esta idéia nasce de reflexões previamente elaboradas pela “Pastoral do Negro” que nos anos de 1989
e 1992 organizou encontros em vários estados da federação para discutir a questão do acesso de negros e
mestiços ao ensino superior. BRANDÃO, A. P. Discursos sobre o mérito entre alunos do PVNC. In: Cadernos
PENESB n. 5 p. 135.
77
Idem p.155.
78
HENRIQUES, R. Silêncio – O canto da desigualdade racial. In Racismos contemporâneos. - op. cit. p, 15.
79
CARNEIRO, S. Ideologia Tortuosa. Idem, p.122.
41
enfrentar o rolo compressor da globalização neoliberal. Por isso, uma estratégia nacional de
combate ao desemprego e à pobreza também se faz necessária.
Tal como já afirmamos anteriormente, o mito da “democracia racial” encobriu
uma realidade na qual o acesso a bens e serviços tem sido limitado por barreiras de raça e cor;
a tese da igualdade de oportunidades para todos nunca foi contestada, como se todos
estivessem nas mesmas condições no momento da disputa. Mas ocorre que, no momento em
que se tenta colocar o dedo na ferida, invocando a urgência de se apelar para outras formas
de), enfrentamento da situação, de modo a barrar a “transmissão hereditária
dadesigualdade”80
, porque os dados oficiais estão aí para confirmar que “apesar da
escolaridade de brancos e negros crescer de forma contínua no século XX, 2,3 anos de estudo
é a diferença observada na escolaridade média dos pais desses jovens e de forma
assustadoramente natural, encontra-se a mesma diferença entre os avós desses jovens”81
.
Mesmo assim, ainda é comum ouvir pessoas afirmando que não é bem isso, e arranjando
explicações outras para a causa do problema, quase sempre apontando retornando ao discurso
da pobreza como causa do problema. Só que pobreza não é causa, ela é efeito da subtração de
recursos para satisfação das necessidades básicas dos indivíduos.
Desse modo percebe-se o quanto o racismo brasileiro, é escorregadio, de difícil
diagnóstico, porque sempre há a tentativa de confundi-lo com classismo.
2. 2 -Negação do preconceito e da discriminação raciais
Quase sempre quem nega a existência de racismo no Brasil acena para a ausência
de conflitos raciais e aponta a intensa miscigenação como um fator que dificulta inclusive, a
assunção de uma “identidade” racial.
A idéia de um paraíso racial não é recente e remonta ao período republicano e foi
largamente utilizada, inclusive, para atrair imigrantes (RAMOS, 1996). Posto que a realidade
de um país mestiço se revelava irreversível, utilizou-se desse fato para a elaboração de um
discurso acerca da convivência harmonioso entre as raças.
Uma convivência harmoniosa entre as “raças” não é de modo algum indesejada,
todavia, isso só pode ocorrer de fato quando não existe a crença em um ser humano universal,
mas o reconhecimento de que há modos distintos de expressão humana. Ora, este é um ponto
80
PASSET, R. A ilusão neoliberal. Apud MOREIRA, D. - op. cit. p. 63.
81
HENRIQUES, R. op. cit, p. 15.
42
de vista que contrasta sobremaneira com as concepções sobre o homem e o mundo que, no
início do período republicano, dominavam82
o pensamento das elites brasileiras sempre
interessadas em encontrar uma fórmula que permitisse manter seus domínios e assegurar seus
privilégios. Pensamos serem oportunos alguns comentários acerca dos fundamentos dessa
concepção.
Trata-se, pois, de uma sociedade cuja grande preocupação era resguardar a
propriedade adquirida por meio de concessões segundo a “ordem social patrimonialista”
transplantada para o Brasil pelos portugueses. SODRÉ (1999) nos expõe com muita clareza os
antecedentes do modo como os brasileiros ainda hoje entendem o direito de propriedade.
Fazendo referência ao “Livro da Virtuosa Benfeitoria”, escrito na primeira metade do século
quinze pelo Infante D. Pedro (1392-1449)”83
, Sodré nos expõe de forma clara e sucinta os
princípios que balizavam a concessão de “benfeitorias” desde o início da colonização. No
livro,
o príncipe, o governante é apresentado como aquele a quem naturalmente
devem pertencer as riquezas: „A arte do canto mais deve ser ensinada a
quem tem boa voz e afinação, e é poderosa para bem usar da música, assim
como os príncipes são possuidores das riquezas temporais, de que muitos
podem fazer bem e mercês‟84
.
O açambarcamento de riquezas pela nobreza e a sua distribuição, por
favorecimento, a outros parceiros sociopolíticos ficam assim justificados eticamente, afirma o
autor.
A importância do texto de D. Pedro reside no fato de que ele permite entrar em
contato com a fonte inspiradora do que é ainda o fulcro de toda a argumentação de quem
resiste a qualquer forma de questionamento e transformação da ordem vigente. Assim escreve
Sodré:
O notável em todo esse texto é que, graças a ele, pode-se tomar contato com
uma fonte ideológica do Estado patrimonialista português nascente que
coloca, sem rodeios e com tintas filosóficas, no centro da argumentação, a
categoria do favor privilegiado, persistente até hoje como forma social na
vida brasileira.85
82
E ainda dominam a sociedade em geral.
83
SODRÉ, M. Claros e Escuros: identidade, povo e mídia no Brasil”. Petrópolis: Vozes, 1999, p.70.
84
Idem, p. 71.
85
Idem, p.71/72 (grifos do autor)
43
De acordo com o “Livro da Virtuosa Benfeitoria”, as “benfeitorias” deveriam
circular na “comunidade dos iguais, chefiada por príncipes e senhores, ou seja, a comunidade
dos africanos e seus descendentes estavam excluídos. Consideramos a Lei de Terras86
, de
1850, um bom exemplo dessa prática, pois a partir dela a posse legal das terras passou a ser
reconhecida mediante a compra, mas nem por isso a cultura do favor deixou de imperar entre
os que Faoro (1973) denominou “os donos do poder” 87
. Estes faziam estender seus domínios
cooptando elementos das classes pobres, inclusive mulatos. Era a fórmula por excelência de
anular antagonismos raciais e amainar possíveis descontentamentos. Os favorecimentos, o
compadrio, os arrendamentos foram e ainda são formas de garantir o domínio por parte dos
setores dominantes da sociedade.
As elites brasileiras sempre foram muito hábeis na defesa de seus interesses, e
pode-se dizer que seu amor ao Brasil cresce na razão direta do quanto de riquezas elas podem
extrair para ostentar um padrão de vida compatível com o que pensam de si mesmas: cidadãos
de primeira classe. Elas se sentem parte de uma “raça” superior, da porção européia na
constituição da nação brasileira, à qual se credita o mérito pelo crescimento e
desenvolvimento do país; aos demais, negros e índios, os lugares e as posições subalternas,
pois racialmente inferiores88
.
Um dos dilemas dos governos após a independência residia na dificuldade que
tinham em lidar com algo que os aterrorizava: como se afirmar como nação aos olhos do
mundo, com uma população majoritariamente negra e mestiça? Se os intelectuais de então
anteviam com pessimismo o futuro do país, devido a mistura de raças que aqui se efetivara.
Havia, portanto, de acordo com Sodré uma grande ambigüidade por parte das classes
dominantes, porque elas, ao mesmo tempo em que almejavam romper com a colonização
européia e assumir uma “identidade” própria (e isso era uma exigência histórica), insistiam
em manter intacta a hierarquia de classes herdada de Portugal. Sodré afirma que “as
sociedades com passado colonial, como as americanas [...] tiveram que inventar a sua
identidade no momento em que romperam com a colonização européia”. Essa preocupação
com a identidade, por vezes excessiva, era, segundo ele, expressão de sua ausência ou
86
Um eufemismo para o que se pode chamar de impedimento aos pobres (leia-se: negros libertos) do acesso à
terra.
87
FAORO, R. Os donos do poder- a formação do patronato político brasileiro. Apud. SODRÉ, M. - op. cit. p.
73.
88
Darcy Ribeiro (1995) também fala da estabilização desse tipo de ordenamento social no qual os setores
dominantes se sentem (e são vistos) como detentores naturais do poder. In: RIBEIRO, D. O povo brasileiro,
p.24.
44
“formulação excessiva por parte de um estrato oligárquico-patrimonialista dominante” que
insistia em “manter uma unidade territorial caracterizada por relações de servidão entre o
Estado (o Senhor) e a Nação (as massas real e tendencialmente excluídas).”89
Há, por certo, o anseio em marcar uma diferença em relação à Europa, e isso só
pode ser alcançado mediante a incorporação de elementos valorizáveis do território nacional,
no entanto, persiste-se em “sobrevalorizar como „superior‟ a civilização do colonizador
europeu” 90
, o que constitui uma ambigüidade, no pensamento de Sodré, que a aponta
igualmente nas “situações de classe”, posto que no período colonial a ordem estava assentada
na “dicotomia racial branco-europeu/negro-africano” e no segundo império “o preconceito
racial servia para manter a distância entre o mundo dos privilégios e direitos e o mundo das
privações e deveres” 91
.
A distância entre esses dois mundos não se alterou com a abolição, seus
defensores, pertencentes à elite monarquista, se preocupavam menos com o destino das
grandes massas do que em estar afinados com as idéias liberais que chegavam da Europa.
Nem se aventava a hipótese de romper com a lógica dominante que reputava como natural a
ordem vigente. Infelizmente, pouco ou nada mudou até os dias de hoje. O Brasil continua
sendo um dos países cuja concentração de renda é uma das mais altas do mundo. Guimarães
ressalta que
a admissão da igualdade universal entre os homens era colocada ao nível
dogmático e teórico, acima e além de qualquer contato ou engajamento com
os interesses reais das pessoas envolvidas. Tal como hoje, essa teoria
coexistia, sem maiores problemas com a enorme distância social e com o
sentido de superioridade que separavam os brancos e letrados dos pretos, dos
mulatos e da gentinha em geral.92
Por conseguinte não é de se estranhar a exclusão dos negros do pacto social pós-
independência (entre monarquia, senhores rurais e comércio exterior). Eles não são nem de
longe adequados ao projeto de um país “homogêneo e puro”, isto é, “com identidade branca”
tal como propugnava em 1820, José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da
Independência (SODRÉ, 1999). As oligarquias brasileiras e os segmentos sociais com eles
comprometidos se preocupavam, desde a Independência, em fazer o país firmar-se no cenário
89
SODRÉ, M. - op. cit. p.78.
90
Idem, idem.
91
DA COSTA, E. V. “The Brazilian empire:myths and histories. Apud. SODRÉ - op. Cit. p.78.
92
GUIMARÃES, A. S. R. , “Racismo e anti-racismo no Brasil” São Paulo: Editora 34, 1999, p. 47.
45
internacional, era preciso dar-lhe um “rosto”, mas interessava manter a nação como um
“negócio”, naturalmente não mais do rei de Portugal, mas dos dirigentes locais. Como diz
Sodré:
Era preciso ter um perfil identitário com alguma valorização frente à Europa
e, ao mesmo tempo, manter nos lugares dominados os negros e os índios,
esses que efetivamente constituíam as possibilidades concretas de povo.” 93
Era exatamente a realidade de um país, onde os não brancos eram maioria, que
aborrecia a classe dirigente e que é bem evidente por ocasião da Primeira Guerra Mundial
quando, tanto no Brasil como no exterior é intenso o movimento de caráter nacionalista
através do qual se pretende “descobrir, afirmar e reclamar os princípios da nacionalidade e
realiza-lo através do Estado Nacional” 94
. A situação de caos instalada na Europa em
decorrência da guerra encorajava os brasileiros na busca de um caminho de desenvolvimento
a partir de seus próprios recursos. O envolvimento do Brasil no conflito, com a declaração de
guerra às potências centrais colocava-o na posição de destaque na América Latina, o que
conferia ao país uma confiança em si mesmo. Todavia, ainda permanecia uma questão que,
segundo Skidimore, incomodava profundamente os dirigentes da nação:
os políticos brasileiros não tinham mais dúvidas de que representavam o país
líder do bloco latino-americano. Restava só uma questão- mas essa
aborrecida. Que identidade étnica exibiria lá fora esse aspirante ao concerto
das nações?95
Esse tipo de preocupação dá a medida do quanto, no início do século XX, a crença
na inferioridade racial de determinados grupos humanos é ainda corrente e fonte de inspiração
para as medidas governamentais que vão atingir os que são considerados um obstáculo ao
desenvolvimento: nas cidades, a grande massa de libertos, subempregados, e desocupados em
geral e no interior, a população de miseráveis à mercê das vicissitudes da natureza e do
descaso dos grandes proprietários. Não faltaram defensores para o programa de erradicação
de doenças que nos sertões afetavam as populações dependentes, em sua maioria, da
benevolência dos senhores, cujo estatuto de pertença ao estamento superior lhes conferia o
direito de propriedade, inclusive dos que gravitavam no entorno de seus domínios. Nos
centros urbanos a intervenção governamental se fez, sobretudo, nas obras de modernização
93
SODRÉ, M., op. cit, p. 80.
94
LIMA, N.T.; HOCHMAN, G. Condenado pela Raça, Absolvido pela Medicina: O Brasil Descoberto pelo
Movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, M. C.; SANTOS, R.V. Raça, Ciência ...op. cit. p.24.
95
SKIDIMORE, T. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976, p.191.
46
das cidades e campanhas de higiene e mudança nos costumes. (COSTA, 1979; CHALHOUB,
1996).
A higiene - um conjunto de práticas cujo objetivo era o ordenamento das cidades,
posto que a questão da salubridade era apontada como prioridade para os governos nas
primeiras décadas do século XX - foi peça chave para a aceitação da medicina como agente
transformador das cidades posto que outros métodos se mostravam ineficazes. A medicina
tomou conta do espaço urbano com sua política de higienização das populações. Esse foi o
período áureo do higienismo cujo alvo foi a família (COSTA,1979) a qual foi sendo
persuadida a mudar seus costumes considerados antiquados para os novos tempos. A higiene
funcionava como auxiliar na política de transformação dos indivíduos em função “das razões
de Estado”. (COSTA, 1979).
Costa salienta que essas medidas de higiene se dirigem, contudo, à família
burguesa, citadina, modificando sua conduta física, intelectual, moral, sexual e social; os
escravos, mendigos, os “sem família”, em geral, estão fora; estão sim, sujeitos a outras
práticas: policial, segregacional.
... pode-se observar que, no processo de definição da „família‟, a higiene
dirige-se exclusivamente às família de extração elitista. Não interessava ao
Estado modificar o padrão familiar dos escravos que deveriam continuar
obedecendo o código punitivo de sempre. [...] Escravos, mendigos, loucos,
vagabundos, ciganos, capoeiras, etc. servirão de antinorma, de casos-limite de
infração higiênica. A eles vão ser dedicadas outras políticas médicas. Foi
sobre as elites que a medicina fez incidir sua política familiar, [...] A camada
dos „sem família‟ vai continuar sendo entregue à polícia, ao recrutamento
militar ou aos espaços de segregação higienizados como prisões e asilos.96
Se, anteriormente, o tratamento desumano imputado aos negros era justificado
pelo estatuto da escravidão agora com o higienismo, assiste-se ao seu progressivo afastamento
do convívio social, sob a alegação de que sua influência era prejudicial às famílias, leia-se:
pequena e alta burguesia. (COSTA, 1979). Creio que não se pode perder de vista que nessa
época o conceito biológico de raças inda está em vigor e outras políticas estão sendo
implementadas com o objetivo, explícito ou velado, de transformar a realidade considerada
caótica pelas elites. Mas, de qualquer forma, não vamos encontrar uma declaração explícita de
que as medidas tomadas tinham qualquer cunho racial, nem faria sentido algo dessa natureza
num país onde as fronteiras raciais nunca foram bem demarcadas, um fato largamente
96
COSTA, J, F. “Ordem Médica e Norma Familiar”. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 33.
47
utilizado para negar o racismo que se expressava em políticas diferenciadas, mas nunca
como política de Estado. Voltaremos nesse tema mais adiante.
GUIMARÃES (1999) nos fala desse modo de entender o racismo que só é
percebido ou denunciado, quando inclui medidas discriminatórias ou segregacionistas, nos
países onde é oficialmente reconhecido, porém, deixa de considerar também como
manifestação de racismo a existência e permanência de instituições que negam ao outro
racial um tratamento igualitário.
2. 3 - Brasil – “paraíso racial”
A definição que o dicionário Koogan-Larousse dá ao termo paraíso reforça a idéia
que talvez seja comum em muitas culturas, qual seja a de uma realidade cuja possibilidade de
acesso depende em grande parte do esforço humano, mas aponta também, em sentido
figurado, como “lugar de delícias, lugar onde a gente se sente bem, em paz e sossego”.
Pois bem, em se tratando de relações raciais há o costume de aplicar essa idéia à
realidade brasileira, havendo referência explícita a uma suposta coexistência pacífica entre as
três “raças” formadoras da nação brasileira. Geralmente, se faz comparação com a realidade
de outros países para a defesa desse ponto de vista.
A imagem de um país onde não existem conflitos raciais pode ser complementar à
visão paradisíaca da terra brasileira que desde os tempos dos descobrimentos suscitou a
imaginação dos que para cá vieram. Até os dias de hoje não há quem deixe de extasiar-se
frente à exuberante vegetação, às extensas planícies, às montanhas, às praias, enfim, diante do
Brasil “marcado pela própria natureza”. A ponto de ser a natureza o primeiro motivo de
orgulho dos brasileiros, conforme pesquisa VP/Veja, CPDOC-FGV/Iser - Lei, justiça e
cidadania, cujo comentário de CARVALHO (1999) merece destaque. Ele inicia seu artigo
afirmando que o “motivo edênico habita a imaginação nacional desde os primórdios da
presença européia” e que seu objetivo nesse trabalho é documentar, com os dados da
pesquisa, a “surpreendente vitalidade do motivo edênico no Brasil de hoje” e sugerir uma
possível explicação para isso. Uma explicação que para ele poderia ser chamada de “motivo
satânico”, isto é, a “visão negativa do povo” 97
que também é antiga.
Carvalho faz uma retrospectiva da admiração frente à natureza que está presente
desde a carta de Caminha e em obras de diversos autores nacionais e estrangeiros. Faz
97
CARVALHO, J. M. o motivo edênico no imaginário social brasileriro. In; PANDOLFI et al (org). Cidadania,
Justiça e Violência. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1999, p.19.
48
referência, inclusive à época da Independência quando a imagem do país é “arranhada”
porque o português Manuel Fernandes Tomás – o Compadre de Lisboa - afirmara que o Brasil
não poderia ser a sede da monarquia porque não tinha um bom clima e que apenas os
africanos teriam condições de suportá-lo98
. Esses comentários provocaram a ira do cônego
Luís Gonçalves dos Santos, o padre Perereca e de outros panfletários. O padre recorreu a
várias autoridades brasileiras e estrangeiras para refutar as declarações do compadre de
Lisboa e “aponta a excelência do clima, de „primavera completa‟, as belezas naturais, a
fertilidade do solo, as riquezas minerais. [...] a ausência de flagelos naturais, secas,
terremotos, tufões, epidemias.”99
O que é surpreendente para Carvalho é o fato de ainda hoje, tal como o padre
Perereca, os brasileiros vão buscar na natureza as razões para se orgulhar do Brasil, conforme
pesquisa supracitada. Então pergunta: “Como é que, 174 anos após a independência, os
brasileiros ainda não conseguem encontrar as razões para seu orgulho patriótico que tenham a
ver com conquistas nacionais e não com fatores sobre os quais não têm controle?” Carvalho
lembra que já Machado de Assis reclamava dos estrangeiros visitantes do Brasil que só
tinham olhos para a natureza e dela se maravilhavam. Tal atitude, para Machado, “excluía
qualquer idéia de ação humana” 100
.
Ora, esta é exatamente a questão, pois na medida em que se exaltavam as belezas
naturais, atribuía-se ao brasileiro a causa de todos os males. Tanto é assim que, Brandônio, o
autor dos “Diálogos das Grandezas do Brasil”, descreve as maravilhas da terra e quando lhe
pedem explicações sobre a carestia dos produtos, ele responde que “é culpa, negligência e
pouca indústria de seus moradores”. Os jesuítas, por outro lado, queixavam-se do envio de
criminosos e prostitutas para o Brasil, afirmando que a escravidão favorecia a corrupção entre
senhores e escravos. Estes últimos eram considerados depravados por natureza.101
98
“O compadre de Lisboa, Manuel Fernandes Tomás, atacara o clima e a gente do Brasil para desqualificar o
país como sede da monarquia. Dissera, repetindo Aristóteles, que o país, por estar na zona tórrida, tinha clima
ardente e pouco sadio. Só os africanos podiam suportar, e isto, por tempo limitado, os „dardejantes raios de uma
zona abrasadora‟. Além disso, continuava, a população do país estava reduzida „a poucas hordas de negrinhos
pescados na Costa d‟África. O país é „selvagem, inculto, e terra de macacos, dos pretos e das serpentes.‟” Idem,
p. 22.
99
Idem, p. 22-23.
100
Idem . p. 30.
101
O jesuíta Jorge Benci – autor de “Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos”. Nesta obra o
trabalho é concebido como uma obrigação que o senhor tem diante do escravo. Benci considera que os pretos
são mais inclinados ao ócio e, por conseguinte, ao vício. Assim Benci os descreve: “Os brancos para serem bons
mestres na arte de pecar necessitam de lições mui repetidas, e por isso é necessário que freqüentem por largo
tempo as classes do ´cio; e os pretos não necessitam de muito tempo. Com quatro dias de lição ficam Mestres em
49
Essa inferioridade brasileira vai ganhar revestimento cientificista com as teorias
racialistas do século XIX. Parece oportuno enfatizar o quanto essas características “negativas”
foram utilizadas para justificar ações governamentais contra todas as iniciativas de
organização popular, a maioria delas “esquecidas”, daí o brasileiro não ter do que se orgulhar,
a não ser de possuir uma bela paisagem. Nela incluída uma população ordeira e pacífica.
Enfim, os ingredientes que, aliados à prodigiosa natureza, resultariam num paraíso, inclusive
racial, porque nesta terra as três “raças” convivem harmoniosamente.
RAMOS (1996) comenta que no retrato que a diplomacia brasileira fazia do país,
nos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX, também predominavam os dotes
naturais; outrossim a idéia de que aqui inexistiam conflitos sociais e raciais era um incentivo
para atrair imigrantes102
.
2. 4 - O mito da democracia racial
Talvez sejamos tentados a aceitar que de fato isso aconteça, que a cordialidade
entre as raças seja uma realidade, pois, afirmar o contrário pode trazer conseqüências tais
como ser acusado de importar um problema que aqui não existe (HASENBALG, 1998),
sobretudo porque se tornou muito comum analisar a situação brasileira a partir das realidades
norte-americana103
e sul-africana, onde o Jim Crow e o apartheid104
, respectivamente,
artes e Doutores da malícia. Mas qual é a razão desta diversidade? Como os pretos são em comparação mais
hábeis para todo o gênero de maldades que os brancos, por isso eles com menos tempo de estudo saem grandes
licenciados do vício na classe do ócio. Esta grande habilidade para os vícios, com que os pretos levam singular
vantagem sobre os brancos, o mesmo Deus a declarou por Amós, comparando os filhos de Israel com os Etíopes
(Amós 9,7). Pergunto agora: faltavam nações, brancas e viciosas, com que pudesse comparar Deus os filhos de
Israel? A razão se colhe de S. Jerônimo, o qual diz que nas Escrituras se chamam Etíopes não quaisquer
pecadores, senão os que são tintos com a cor preta de todos os vícios. Logo consenti o senhor ócio aos escravos,
é querê-los mestres em todo o gênero de vícios e singularmente no vício da desonestidade.” In HOONAERT, E.
Et. all. (org.) “História da Igreja no Brasil” Primeira Época. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 379.
102
Sobre a questão racial e imigração consultar: RAMOS, J. S. - op. cit. p. 59 a 81.
103
Para Guimarães, nem mesmo os cientistas sociais escaparam desse caminho posto que “tomaram, em geral,o
padrão de relações raciais nos Estados Unidos como modelo para comparar, contrastar e entender a construção
social das „raças‟ em outras sociedades, especialmente no Brasil.” GUIMARÃES, A. S. A. - op. cit. p. 39
104
Jim Crow: nome como ficaram popularmente conhecidas as leis se segregação racial nos EUA. Essas leis
surguiram nos estados da antiga confederação separatista – os estados do sul . Através dessas leis, os direitos de
cidadania da população negra, em teoria garantidos pelas emendas à constituição foram gradativamente
neutralizados. Por essas leis, foi instituída a segregação dos negros em transportes públicos, restaurantes, escolas,
lavatórios, estações de ônibus e trens, forças armadas, etc. Foram muitos os protestos contra essas leis, no
entanto elas perduraram até o final da década de 60, do século XX. Mais sobre o tema consultar: DU BOIS, W.
E. R., As Almas da Gente Negra, Rio de Janeiro: Lacerda Editora, 1999, p.10 – 44.
50
estabeleceram limites bem demarcados para negros e brancos, o contrário do Brasil, onde a
ausência desses limites105
é utilizada, inclusive, para negar práticas discriminatórias, estas
sempre encobertas pelo discurso da igualdade perante a lei. Temos até mesmo uma lei, a qual
afirma que racismo é crime inafiançável. Entretanto há uma série de empecilhos para que se
faça uso desta lei, sendo um deles a dificuldade de arrolar testemunhas sobre um caso de
racismo; quase sempre a vítima é, pelos motivos apontados acima, induzida a não levar o caso
adiante. A insistência em denunciar uma prática racista provoca um intenso mal-estar,
porque desvela algo que não se quer tocar, que é um tabu; de fato muitos se imaginam
numa democracia racial. Essa é uma fonte de orgulho nacional e é um trunfo frente a
outras nações para afirmar que somos um povo civilizado (GUIMARÃES, 1999). É
comum ouvir-se que no nosso país isso não existe mais, que é coisa de “gente atrasada”.
DAMATTA (1989), ao analisar algumas das peculiaridades do “racismo à
brasileira”, vai reportar-se ao que se sucedeu nos Estados Unidos, após o término da Guerra
Civil, quando o Norte – igualitário e individualista – sai vitorioso e impõe para todo o país
sua hegemonia moral e política. DaMatta vai também lembrar que as sociedades igualitárias
engendraram formas muito claras de preconceito, porque seu modo de funcionamento não
admitia igualdade entre as raças. Sendo assim, a forma de sustentar o lugar subalterno do
negro, herdado da estrutura escravista do Sul, foi apelar para leis que impediam claramente a
“competição econômica de negros e brancos como iguais num mercado de trabalhadores
livres”. No Brasil tal não aconteceu, aqui foi difundida a idéia de que a nação brasileira é o
resultado da mistura de três raças: a branca, a negra e amarela, como se fosse um encontro
casual. Ignora-se que somos uma “sociedade hierarquizada e que foi formada dentro de um
quadro rígido de valores discriminatórios”, herdeira da colonização de “portugueses brancos e
aristocráticos”, de sorte que a famosa mistura de raças se deu mantendo as distinções de
classe e de origem dos diferentes elementos da mistura. É exatamente isto que o mito da
democracia racial encobre. Por isso DaMatta afirma:
Apartheid: sistema de segregação dos negros implantado a partir de 1948 na África do Sul. Segundo
Munanga (op. cit) “o apartheid (palavra do Afrikans) foi oficialmente definido como um projeto político de
desenvolvimento separado, baseado no respeito às diferenças étnicas ou culturais dos povos sul-africanos, Um
projeto certamente fundamentado no multiculturalismo política ideologicamente manipulado” (p.27). Este
sistema no qual os negros, a maioria da população, só podiam habitar os lugares previamente definidos para tal,
durou até a década de 80, do último século.
105
O fato de ter mencionado os sistemas norte-americano e sul-africano não significa querer compará-los com o
que ocorre no Brasil. Tratou-se apenas de pontuar que são sistemas distintos, não cabendo discutir se existe um
que seja melhor, todos são ruins, sendo qualquer comparação um modo de enfraquecer o combate ao racismo.
51
Realmente estou convencido de que a sociedade brasileira ainda não se viu
como sistema altamente hierarquizado, onde a posição de negros, índios e
brancos está ainda tragicamente de acordo com a hierarquia das raças. Numa
sociedade onde não há igualdade entre as pessoas, o preconceito velado é a
forma muito mais eficiente de discriminar pessoas de cor, desde que elas
fiquem no seu lugar e “saibam” qual é ele.106
Lugares quase nunca questionados porque naturalizados pelos costumes, pela
tradição de um país que se vê evoluído porque tem uma legislação na qual o racismo é crime
inafiançável. Ora, se é crime, é porque existe, mas o racismo “à brasileira” tem uma existência
camaleônica, transmuta-se sob o manto da hipocrisia geral que se utilizando de um arsenal de
justificativas nega a prática de qualquer ato discriminatório de natureza racial. O incômodo é
muito grande porque contraria aquilo que é fortemente defendido com o uma característica de
nossa sociedade, qual seja a de uma sociedade democrática, onde as pessoas podem circular
livremente, pois não há leis que as impeçam. No entanto, as pessoas podem circular
livremente, desde que não firam o código que está implícito nas relações entre os
diferentes grupos. E isso inclui não dar “nome aos bois”. É como se houvesse um acordo
tácito entre brancos e negros de modo que nem um nem outro denuncie o que está havendo.
Essa prática silenciosa também pode ser entendida como algo que contribui para a
perpetuação das desigualdades, como veremos mais adiante. Assim a presença de negros nos
lugares tradicionalmente ocupados por brancos, ou no exercício de determinadas profissões
pode provocar um certo estranhamento, porém, este se transformará em desconforto se houver
insistência em apontar as causas desse estranhamento.
Parece incrível, mas é assim que acontece, cria-se um embaraço muito grande
quando o assunto é preconceito e discriminação racial, racismo,...Afinal aqui é o “paraíso
racial”.
Guimarães (1999) sustenta que a superação do conceito biológico de raças foi um
dos eixos de sustentação do discurso que nega a ocorrência de racismo no Brasil; segundo ele,
“tornou-se lugar comum, entre os brasileiros, a afirmação de que as raças não existem, e de
que o que importa, no Brasil, em termos de oportunidades de vida, é a classe social de
alguém” 107
, o que, na verdade, equivale a dizer que não tem sentido falar em raças face à
inexistência de racismo entre os brasileiros. Destaca ainda que “no Brasil o ideário anti-
racialista de negação da existência de „raças‟ fundiu-se logo à política de negação do racismo
106
DAMATTA, R. A ilusão das relações raciais. In O que faz do Brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1989,
p.46.
107
GUIMARÃES, A. S. A – op. cit. p.62.
52
como fenômeno social” 108
e que entre nós haveria apenas “preconceito”, algo que poderia ser
superado com a convivência entre as pessoas e os grupos.
Não obstante a superação do conceito biológico de raças, as pessoas, os diferentes
grupamentos humanos foram e continuam sendo classificados a partir de critérios pouco ou
nada consistentes, mas suficientemente fortes para assegurar a supremacia de uns sobre
outros. Daí concordar com Guimarães quando aponta a necessidade de teorizar as raças como:
construtos sociais, formas de identidade baseadas numa idéia biológica
errônea, mas socialmente eficaz para construir, manter, reproduzir diferenças
e privilégios. Se as raças não existem no sentido estrito e realista da
ciência,ou seja, se não são um fato do mundo físico, elas existem , contudo,
de modo pleno, no mundo social, produtos de formas de classificar e de
identificar que orientam as ações humanas.109
Essas formas de classificar e de identificar se deram, como já dissemos
anteriormente, a partir de critérios que não se sustentam porque baseados numa suposta
continuidade entre natureza e sociedade.
Para PEREIRA (2001), aqui o racismo se apresenta de forma difusa e não
explicitada, ora se manifesta, ora não, e quando tal acontece não é da mesma forma; quase
sempre “obedece a um código moral que, decalcado em subterfúgios, procura negar a
existência do próprio racismo, embora haja também setores preocupados em desnudar o
avesso desse código que insiste em esconder a desigualdade debaixo da diversidade”. E mais,
esse código de ambigüidades impede que as que as vítimas do racismo se situem frente ao
fenômeno e possam medir o alcance de suas exigências. “Ele é simplesmente desorientador.
Tal ambigüidade decorre da própria dificuldade em se conceituar o que é racismo e da
confusão deste com classismo”. Pereira vai mais adiante ao pontuar que “o racismo deve ser
entendido como um complexo de idéias, atitudes e ações sociais centradas em alegadas
diferenças biológicas dos indivíduos em interação social”.Um complexo de idéias que
compreende
uma predisposição psicológica para a ação social” – atitudes e opiniões
desfavoráveis ao “outro” racial (preconceito) podendo ou não ser
verbalizadas – e passa pela ação ou comportamento social real que cerceia
ou mesmo impede o “outro” de ampliar seus espaços sociais (
discriminação), chegando até a confiná-lo a espaços físicos com limites
bem definidos (segregação).110
108
Idem, idem.
109
Idem, p. 64
110
PEREIRA, J. B. B. “Diversidade, Racismo e Educação”. In cadernos PENESB n º 3. Niterói: EDUFF, 2001,
p.21.
53
No caso brasileiro não há segregação de grupos de forma direta ou programada.
Entretanto quando isso ocorre, “o confinamento se dá de forma indireta, quase sempre
mediada pela classe social ou por condições econômicas”, conclui Pereira. A nosso ver, a
concentração de negros nas periferias e favelas das grandes cidades brasileiras ilustra esse
ponto de vista.
Não existe, pois, racismo institucionalizado, isto é, não está estabelecido em
normas institucionais o impedimento do acesso de negros a determinados lugares. “Todos são
iguais perante a lei”, reza a Constituição. Todavia, em termos materiais, na ausência de
discriminações raciais institucionalizadas, esse racismo se mantém e se reproduz, na opinião
de Guimarães, quando contraditoriamente a cidadania para alguns é definida amplamente pela
garantia de direitos formais e para outros (a maioria) a cidadania é negada porque os direitos
“são, em geral, ignorados, não cumpridos e estruturalmente limitados pela pobreza e pela
violência cotidiana”.111
Desse modo, o racismo se perpetua através de “restrições factuais de
cidadania”, de imposição de distâncias sociais advindas das enormes diferenças de renda e
educação, ou seja, através das “desigualdades sociais que separam brancos de negros, ricos de
pobres, nordestinos de sulistas”.
Guimarães afirma o seguinte:
Assim é o racismo brasileiro: sem cara. Travestido em roupas ilustradas,
universalistas, tratando-se a si mesmo como anti-racismo, e negando, como
anti-nacional, a presença integral do afro-brasileiro ou do índio-brasileiro.
Para este racismo, o racista é aquele que separa, não o que nega a
humanidade de outrem, desse modo, racismo, para ele é o racismo do
vizinho (o racismo americano).112
Guimarães também não poupa críticas ao marxismo pelo fato de este ter insistido
no caráter “ideológico das raças” não colaborando para a mudança desse quadro. Aponta a
influência marxista no pensamento e ações de uma “fração emergente das classes médias
brasileiras, nas décadas seguintes ao pós-guerra” 113
. Os intelectuais de então afirmavam que,
com o advento de uma nova ordem social, estariam sanados os problemas das minorias, eles
eram partidários da idéia de que os negros estavam em desvantagem por uma questão apenas
econômica. Para eles a chamada “democracia racial” seria conquistada através da luta de
111
GUIMARÃES, A. S. R. op. cit. p. 56.
112
Idem. p. 57.
113
Idem , idem.
54
classes. De certa forma contestavam a idéia de que a democracia racial era uma realidade,
porém, achavam que ela seria possível com o desenvolvimento econômico do país.
Um contexto no qual as pessoas, independentemente de sua condição econômica e
social, tenham igualdade de tratamento certamente é desejável (pelo menos para os
defensores de uma sociedade igualitária). Entretanto, quando se diz que no Brasil se vive uma
democracia racial, não podemos nos iludir, quanto ao significado da construção histórica e
social desse conceito, articulado ao mito fundador da nacionalidade brasileira, tomada como
resultante da interação das três “raças”. HASENBALG (1998) aponta para a originalidade
dessa construção, por considerar que, se de um lado houve integração simbólica do negro e
do índio, do outro houve a subordinação dos mesmos nos planos econômico e social.
Portanto, a chamada democracia racial não passa de um mito. Trata-se de uma certa
explicação para o amplo processo de miscigenação que ocorreu e ocorre na sociedade
brasileira.
DAMATTA vai dizer que
a mistura de raças foi um modo de esconder a profunda injustiça social
contra negros, índios e mulatos, pois, situando no biológico uma questão
profundamente social, econômica e política, deixava-se de lado a
problemática mais básica da sociedade. De fato, é mais fácil dizer que o
Brasil foi formado por um triângulo de raças, o que nos conduz ao mito da
democracia social, do que assumir que somos uma sociedade
hierarquizada.114
Partilhando deste ponto de vista, Hasenblag considera que o mito da “democracia
racial” tem o “mérito” de amortecer as iniciativas para o enfrentamento da situação, pois ela
“camufla, oculta as desigualdades raciais e dificulta a percepção do racismo”115
. Outrossim, o
fato de não haver restrição formal aos negros, em quaisquer instâncias da sociedade, é
utilizado para afirmar que há oportunidade para todos.
As noções acerca da democracia racial foram formuladas por intelectuais
partir de idéias preexistentes e, no caso do Brasil, foram encampadas pelo
Estado e oferecem a definição oficial da situação. Mais ainda, essas idéias
estão parcialmente incorporadas ao senso comum racial da população. Ao se
falar ou agir contra essa definição pode-se incorrer em custos políticos e
sociais elevados. Um desses custos é a sempre repetida acusação de se
importar um problema que inexiste na sociedade brasileira”.116
114
DAMATTA, R. op. cit. p. 46-47.
115
HASENBALG. C. op. cit. p. 14.
116
HASENBALG. C. “Entre o Mito e os Fatos: Racismo e Relações Sociais no Brasil”. In MAIO, M. C. e
SANTOS, R. V. (orgs) op. cit. p. p.239.
55
Hasenbalg aponta outros elementos do modelo brasileiro que seriam inibidores de
manifestações de racismo: a “apologia da mestiçagem” e o “hibridismo” ou “mestiçagem
cultural”. No primeiro caso refere-se à ambigüidade e pouca nitidez nas fronteiras entre os
grupos étnicos e raciais. No segundo, considera que “as influências culturais no Brasil têm
duas direções: de brancos para negros e de negros para brancos. Isto implica na
nacionalização de símbolos culturais negros e na socialização dos negros na cultura branca
dominante. Conclui que
“as sínteses culturais são de via dupla e este hibridismo cultural, onde
tantos brancos participam de práticas culturais de origem negra, também
parece funcionar como elemento inibidor de formas „diferenciais‟ de
racismo”.117
A mestiçagem cultural em si não é ruim, pelo contrário. Não se faz aqui apologia
a uma suposta “pureza” racial ou cultural. As trocas que ocorreram entre os diferentes
grupamentos humanos são uma constante, posto que são efeito do contato entre eles. As
intensas migrações que empreenderam desde os primórdios da humanidade contribuíram para
que tal acontecesse.Isto é, sem dúvida, enriquecedor. O que se discute aqui e quando ela é
utilizada para negar a ocorrência de racismo, o qual se fundamente com uma suposta
superioridades entre as raças.
SCHWARCZ (1998) também comenta sobre a “democracia racial”, ao considerar
que no Brasil “o racismo não está nas leis, não está no Estado, mas disseminado no
cotidiano”. Para ela “as teorias raciais deixaram de ser modelos científicos, mas não são
abolidas. Passaram para o dia a dia, se transformaram em códigos internalizados e, portanto,
jamais afirmados; eficientes porque invisíveis e silenciosos” 118
. Torna-se, nesse caso,
difícil de ser identificado e combatido.
Para ela o racismo, até os dias de hoje, é um grande mal entendido entre os
brasileiros. Considera ser ele
o resultado de uma convivência tão longa com a escravidão; de uma abolição
entendida como presente e que não previu qualquer reparação ou
incorporação ao mercado de trabalho, e de um modelo científico racial que
se afirmou no mesmo momento em que os negros – ex-escravos –ganhavam
direito à liberdade.119
117
Idem. Relações Raciais... op. cit. p. 15.
118
SCHWARCZ, L. M. op. cit. p. 95.
119
SHUWRCZ. L. M. “Sob o Signo da Diferença: a construção ... op. cit. p. 96.
56
Esse modelo científico racial se constituiu na 2ª metade do séc. XIX e exerceu
forte influência sobre os ideólogos da nação brasileira. As obras de cientistas tais como: Nina
Rodrigues, João Batista de Lacerda, Silvio Romero, Euclides da Cunha, etc., estão repletas de
informações sobre o homem brasileiro que refletem o ideário racialista do século XIX.
Um dos expoentes do pensamento racial brasileiro do período, Raimundo Nina
Rodrigues é também conhecido como “fundador da antropologia afro-brasileira”. Era médico
e desenvolveu vários estudos sobre negros e mestiços vistos que para ele são “temas de
patologia médica” 120
. Numa de sua obras mais conhecidas “Os Africanos no Brasil”, os
negros são , antes de tudo, um objeto de estudo. Toma-os como seres prematuros em seu
desenvolvimento mental e incapazes de civilização, sendo esta uma das razões para a
inferioridade do Brasil. Daí a seguinte afirmação: “o que importa ao Brasil determinar é o
quanto de inferioridade lhe advém da dificuldade de civilizar-se por parte da população negra
que possui e se de todo fica essa inferioridade compensada pelo mestiçamento,...” 121
Deixa
transparecer, inclusive, um certo pessimismo em relação ao futuro do país ao salientar que “se
o futuro do Brasil dependesse de chegarem os seus negros ao mesmo grau de aperfeiçoamento
que os brancos, muitas vezes se poderia transformar antes os seus destinos de povo, se é que
algum dia se houvesse de realizar” 122
. Um ponto sobre o qual Nina Rodrigues se detém é
sobre a criminalidade dos negros. Estudando-a como algo que sobrevive a gerações, defende a
tese de que a mesma tem a ver com a fase evolutiva destes indivíduos e, por isso, os atos
criminosos destes devem ser julgados levando-se em conta a sua condição inferior.
A sobrevivência criminal é, [...] um caso especial de criminalidade, aquele
que se poderia chamar de criminalidade étnica, resultante da coexistência,
numa mesma sociedade, de povos ou raças em fases diversas de evolução
moral e jurídica, de sorte que aquilo que ainda não é imoral nem antijurídico
para uns réus já deve sê-lo par outros. [...] a contribuição dos negros nesse
tipo de criminalidade é das mais elevadas123
Não é demais lembrar que a obra de Nina Rodrigues teve influência significativa
na Criminologia brasileira.
120
SODRÉ, M. op. cit. p. 86.
121
RODRIGUES, R. Os Africanos no Brasil. 6. ed. São Paulo: Ed Nacional; Brasília: Ed Universidade de
Brasília, 1982, p. 264.
122
Idem, p. 265.
123
Idem, p. 273.
57
João Batista de Lacerda notabilizou-se pela defesa intransigente do
branqueamento como solução paro o Brasil. Segundo SKIDIMORE (1976), A “tese do
branqueamento baseava-se na presunção da superioridade branca”. O fato de a população
negra diminuir progressivamente em relação à branca era um fator que chamava a atenção dos
defensores do branqueamento. De igual modo estavam atentos ao fato de a miscigenação
produzir “naturalmente uma população mais clara”, fenômeno também acelerado pela
imigração branca, ou seja, a predominância branca seria favorecida. Lacerda soube articular
esses dados para desenvolver a tese de que num futuro próximo (100 anos) o país teria uma
população majoritariamente branca. No momento em que a miscigenação é vista como um
entrave para o país porque estava associada à degeneração, ele introduz uma hipótese otimista
de que a miscigenação traria também resultados positivos, tais como uma “população mestiça
sadia capaz de tornar-se sempre mais branca, tanto cultural como fisicamente” 124
.
João Batista de Lacerda atuou como delegado brasileiro no Congresso Mundial
das Raças, em Londres, em 1911. Defendeu, segundo SEYFERT (1996), o branqueamento da
raça, que, na sua versão científica, “era visualizado como um processo seletivo de
miscigenação que, dentro de um certo tempo (três gerações), produziria uma população de
fenótipo branco”.
Silvio Romero, ensaísta, escritor, defende o “branqueamento da „raça brasileira‟
pela seleção natural”, tese que desenvolveu na sua obra mais conhecida, a “famosa História
da Literatura Brasileira – na realidade uma obra de reflexão sobre o Brasil” 125
. Nesta obra
registra suas conclusões sobre as contribuições do branco, do negro e do índio para a nossa
formação histórica e literária do Brasil, afirmando que a mestiçagem não é de todo um mal, já
que proporcionaria o tipo de indivíduo mais forte mais adaptado ao nosso meio. Eis uma
pequena amostra de seu pensamento:
Alguns autores, ainda sob o domínio de certos preconceitos, negam todo e
qualquer valor intelectual, etnológico e social ao mestiço. [...] Em primeiro
lugar, não é a superioridade intelectual do mestiço sobre o branco que se
quer provar neste livro. O que se quer tornar o patente é que o branco, para
suportar a luta pela existência no meio brasileiro, para adaptar-se à sua nova
patria teve que reforçar-se com o sangue das raças tropicais. Daí o
cruzamento e daí o mestiço, que, como produto de uma adaptação, já é por si
mais próprio para o meio e, se é inferior ao branco pela inteligência, é-lhe
superior como agente de diferenciação, como elemento para a formação de
124
SKIDIMORE, T. op. cit. p. 81 (grifos do autor).
125
SODRÉ, M. op. cit. p.88 (grifos do autor).
58
um tipo nacional. José Bonifácio poderia ter mais talento do que Gonçalves
Dias, é possível que tivesse, do que aliás duvido; mas com certeza não era
mais brasileiro, mais nacional do que o grande poeta maranhense. Afinal, é o
branco que virá a prevalecer; porque é ele que nos trouxe a civilização; mas
para assegurar esta mesma vitória, para formar uma nacionalidade forte neste
meio, ele teve que diluir-se na mestiçagem, teve que alterar sua pureza de
sangue (...)126
Euclides da Cunha, autor do clássico “Os Sertões”, era seguidor de Nina
Rodrigues, evolucionista convicto e defensor do ideário social-darwinista. Era inclusive
favorável à imigração branca. Esta traria um “poderoso elemento étnico” para dar ao país um
outra feição.
É na sua obra mais conhecida – “Os Sertões” - que Euclides da Cunha expõe seu
ponto de vista sobre o brasileiro do interior – o sertanejo. Era também jornalista e é como tal
que faz a cobertura de Canudos, um movimento que ele, a princípio, considerou uma contra
revolução contra a jovem república. Opinião que muda quando lá chega e se depara com a
realidade da vida do sertão, vê que se trata mais do que um levante de mestiços ignorantes e
supersticiosos liderados por Antônio Conselheiro. Na verdade, vê essa revolta como uma
“demonstração dramática de poder existencial do homem do sertão vencido pelo poderio
militar das tropas do sul” 127
. Entretanto, a rebelião também era vista por ele como efeito da
instabilidade emocional do sertanejo. Esta instabilidade seria decorrente da mistura de raças,
um dos grandes perigos da miscigenação. Assim como seus contemporâneos, ele acreditava
na hierarquia das raças, por isso explicava o comportamento do sertanejo pelas suas origens
raciais. Segundo Lima e Hochman (1996), nessa obra “sobressaem elementos de força e
fragilidade – o sertanejo é um forte, mas é também rude e carente de civilização” 128
.
Mas o que é marcante na sua obra é análise que faz dos dois fatores que os
deterministas apontavam como os grandes problemas do Brasil – raça e clima. Retrata então
as dificuldades de sobrevivência do sertanejo advindas dos parcos recursos e das calamidades
naturais que o assolavam – a seca; e expõe a preocupação com a grande mestiçagem.
126
ROMERO, S. História da Literatura Brasileira.Apud SALLES, R. H.; SOARES, M.de C. Episódios de
história afro-brasileira. Rio de Janeiro: DP&A / Fase, 2005, p. 116.
127
SKIDIMORE, T. op. cit. p. 121.
128
LIMA, N.; HOCHMAN, G. op. cit. P.28.
59
PARTE II
O discurso da “raça” e a produção de subjetividade
1. Clínica e relações raciais
1.1. Uma articulação ainda incipiente
No Brasil, quando alguém vira uma figura pública, torna-se incolor. Temos
que discutir claramente o racismo, o desprezo pelos negros, a apatia de
muitos negros. E isso nem sempre se faz com paz e amor. Às vezes é
necessário uma dose de deselegância. Prefiro que sintam raiva, ódio do que
pena de mim. (MVBill - Raça Brasil – out/2004)
Marta129
é funcionária de uma instituição de ensino. Um dia, relatou-nos que seu
filho a tinha informado que estava se sentindo provocado por um colega de turma que o
instigava para a briga. O rapaz disse à mãe que, do jeito que as coisas estavam caminhando,
seria inevitável um confronto entre eles, e, se tal acontecesse, o outro levaria a pior, por ser
mais franzino. A mãe logo entrou em alerta e sentiu necessidade de tomar uma providência;
afirmava que se os meninos chegassem às vias de fato, certamente seu filho estaria fora do
colégio. Ela dizia que, no embate entre um aluno negro, bolsista do colégio, e um branco
pagante, é claro que seu filho estaria em situação de desvantagem. Temerosa do que poderia
acontecer, resolveu agir. Foi procurar o responsável pela disciplina no pátio do colégio e o
notificou sobre o que vinha ocorrendo e cobrou-lhe uma providência, mas a provocação
continuou. Na verdade, seu filho já o notificara do que vinha acontecendo, assim como
também o fora um professor que também não “ouviu” a reclamação. Marta foi então procurar
outro funcionário a quem relatou o que vinha acontecendo e também pediu que uma
providência fosse tomada, pois a situação estava ficando insuportável. Ela temia pelo que
pudesse vir a acontecer, porém, de modo algum expôs, com palavras, o que tanto a afligia.
Os responsáveis pela disciplina finalmente decidiram chamar os dois alunos,
confrontá-los e, assim, por um fim àquela demanda. No final os dois envolvidos são
considerados culpados pela situação criada porque, segundo chefe de disciplina, se eles
anteriormente eram amigos e passaram a se estranhar, de alguma forma os dois eram
responsáveis pelo que vinha ocorrendo.
129
Todos os nomes são fictícios.
60
Em tempo, Marta comentou que a desavença entre eles teve início quando o seu
filho teve notas melhores que o colega em questão. Foi a partir daí que a perseguição
começou.
A maneira como a situação foi conduzida, levou-a seguinte pergunta: por que seu
filho foi também culpabilizado, se foi o outro que começou a contenda?
Para nós uma questão está posta: que mecanismos sutis se escondem por trás
dessa aparente atitude de neutralidade dos responsáveis pela disciplina do colégio, frente aos
dois estudantes?
Este é um caso que ilustra como o racismo se mostra no cotidiano, sem cara,
travestido em atitudes de recusa da presença ativa e positiva do negro: freqüentar um colégio
classe média e, mesmo sendo bolsista, tirar boas notas. Para Milton Santos (2000), a ascensão
do negro desperta expressões veladas ou ostensivas de ressentimento (paradoxalmente contra
as vítimas).
Relatos desse tipo são comuns, tanto em encontros cujo objetivo é discutir as
dificuldades pelas quais os negros brasileiros passam nas mais variadas situações cotidianas,
quanto em conversa informal entre indivíduos ou grupos quando vêm à tona as experiências
dolorosas por questões de raça/cor.
O caso citado é paradigmático no sentido de ilustrar o que é deveras comum em se
tratando de relações raciais porque nele está contido aquilo que parece caracterizar o racismo
à brasileira, uma espécie de pacto de silêncio entre negros e brancos, qual seja, o de não
ferir o código implícito nessas relações: não tocar no assunto. Afinal, aqui é o país da
“democracia racial”. A este ponto ainda se pode acrescentar a acusação de se estar retomando
um tema já ultrapassado, que é o conceito biológico de raças.
A constatação da inexistência das raças e de que a diversidade intragrupos é
maior do que entre grupos diferentes, que a ciência vem nos revelando nos
últimos tempos, não tem impacto sobre as manifestações de racismo e
discriminação em nossa sociedade e em ascensão no mundo, o que reafirma
o caráter político do conceito e raça e a sua atualidade, a despeito de sua
insustentabilidade do ponto de vista biológico.130
Ora, acontece que este fato por si mesmo pouco mudou a vida dos que sofrem o
preconceito. Concordamos com CARONE (2002) quando afirma que “por mais que a ciência
venha a demonstrar que „raça‟ é uma construção social e ideológica quando se trata da espécie
130
CARNEIRO, S. - op. cit. p. 117.
61
humana, ainda assim não será fácil desmistificá-la no plano do cotidiano sócial.” 131
Ela
prossegue lembrando que os intelectuais negros americanos, em tom de pilhéria, costumam
dizer que “as suas pesquisas têm demonstrado a falsidade ideológica do conceito de raça, mas
isso não os ajuda a tomar um táxi no meio da noite...” 132
. Do mesmo modo afirmamos que no
Brasil isso não impede que os poucos alunos negros em instituições como a supracitada, se
sintam pressionados a todo tempo a ocuparem o lugar condizente aos estereótipos “raciais”.
Também não impede que Vilma, uma cliente, negra, confesse se sentir incapaz de
realizar algumas tarefas, em especial as que demandam maior empenho intelectual. Relata, em
seu depoimento, que se sentia muito inferiorizada por ser negra e que só começou a repensar
sua posição a partir do momento em que começou a obter outras informações acerca da
produção intelectual, artística e cultural de negros brasileiros, bem diferentes do que sempre
ouvira durante sua formação escolar, nas aulas de História do Brasil. Ou seja, Vilma começa a
desfazer a associação: negro/incapacidade para... . No entanto, ela. ainda se dizia sem forças
para traçar um outro percurso para a sua vida. As dificuldades que tem que superar são
enormes e algumas estão relacionadas ao desemprego, à moradia distante, ao acesso restrito a
cursos de formação e até mesmo a possibilidade de poder submeter-se ao tratamento
psicológico133
, o qual é apontado por ela como algo que há muito tempo gostaria de poder
alcançar e que só agora o consegue, daí tomá-lo como um passo a mais na sua vida.
As dificuldades de Vilma são comuns à maioria dos negros brasileiros e são o
fulcro de nossa inquietação, na medida em que carecemos de subsídios teóricos que abranjam
as questões suscitadas nos casos relatados. O que nos força a perguntar em que medida a
Clínica contempla a realidade do racismo à brasileira?
Bem talvez já tenhamos a resposta, conquanto entendermos que as dificuldades
que temos tido no âmbito de nossas pesquisas estão relacionadas ao contexto mesmo da nossa
sociedade no que concerne ao silenciamento e negação do racismo. Sendo assim, a clínica
psicológica não difere das demais instituições. A construção desta dissertação é, em si
mesma, uma amostra do que estamos afirmando. Quando iniciamos a pesquisa bibliográfica
sobre racismo e psicologia, encontramos muito pouco material em bibliotecas, e um reduzido
nº de teses e dissertações que abordassem o tema, principalmente no que diz respeito às
131
CARONE, I. Breve Histórico Sobre uma Pesquisa Psicossocial Sobre a Questão Racial Brasileira. In:
CARONE, I,; BENTO, M. A. Psicologia social do racismo. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 23.
132
Idem.
133
V. refere-se aqui ao tratamento de consultório.
62
práticas envolvendo a questão racial. Essa dificuldade, de certo modo, não causou surpresa;
para nós ela já se constitui num dado interessante para problematizarmos por ser também
reveladora do “racismo silencioso” a que estamos nos referindo.
Gostaríamos de destacar, que na nossa pesquisa constatamos a existência material
que trata de discutir esse tema no campo dos costumes e da antropologia. Muitos autores
consultados defendem a pertinência de se dar atenção especial às peculiaridades da sociedade
brasileira no que diz respeito à riqueza de manifestações culturais, nas quais estão presentes
crenças, hábitos, costumes e modos de vida que nos informam da influência de diversos povos
que aqui viviam há muito tempo - os índios, e os que para cá vieram ou foram trazidos – os
africanos, os europeus, os asiáticos, etc. Foi até sugerido que fizéssemos um estudo
relacionado com algum aspecto da ancestralidade africana. Não obstante, acharmos
interessante a idéia, conquanto entendermos que parte expressiva da população brasileira tem
uma compreensão de mundo bem particular, que é herdeira dessa tradição, achamos que o
mesmo teria um alcance limitado para o que nos propomos, ou seja, não problematizaria o
“racismo silencioso” e sua presença no campo das práticas psicológicas.
É por conta dos preconceitos, que as religiões de matriz africana foram vistas (e
ainda o são) como expressão do atraso134
. AUGRAS (1995), relata, em “Alteridade e
Dominação”, o quanto o etnocentrismo e a visão evolucionista sobre a diversidade humana
estão presentes em trabalhos de estudiosos que cuidaram, a seu modo, de dar uma explicação
aos fenômenos relativos ancestralidade africana, notadamente no que se refere ao transe
místico. Ela observa que
Os trabalhos clássicos dos antropólogos amiúde recorreram a conceituações
oriundas de teorias psicológicas, quiçá psicopatológicas. Foi o caso de
Raymundo Nina Rodrigues, que se apóia em Charcot para descrever o transe
místico como “estado de sonambulismo provocado, com cisão e substituição
da personalidade” (1900:81), estado este, de cunho nitidamente histeróide.
Três décadas mais tarde, vem Arthur Ramos (1934) introduzir o referencial
psicanalítico para interpretar os mitos iorubanos. Nele, o transe é ainda
enfocado como fenômeno patológico. É preciso chegar a Melville J.
Herskovits (1943) para que seja reconhecida a normalidade do transe, por ser
134
Sobre esta questão Jayro Pereira de Jesus afirma: “Passados 500 anos do “descobrimento”, a cosmovisão
africana continua a ser alvo da ação do racismo cultural-religioso que cada vez mais exacerba a sua afrateofobia
e se retroalimenta de forma cíclica e recorrente, atravessando todos os períodos históricos do Brasil. As barbáries
do racismo religioso se manifestam material e simbolicamente, ratificando continuamente preconceitos,
estigmas, estereótipos, [...] Como que num contínuo, a intolerância religiosa recrudesce potencialmente na
atualidade do século XXI, face ao crescimento vertiginoso das igrejas do campo neopentecostal, que se
notabilizam pelo fundamentalismo e proselitismo beligerantes, numa ação ostensiva notadamente contra
tradições religiosas de matriz africana”. (JESUS, 2003, P.188-189 – grifo do autor). Mais sobre o tema consultar:
JESUS, J. P. “Terreiro e cidadania: Um projeto de combate ao racismo cultural religioso afro e de
implementação de ações sociais em comunidades-terreiros” In Racismos contemporâneos. op. cit. p.185-201.
63
a possessão comportamento institucionalizado, ritualmente induzido e
treinado. Daí por diante, os estudos das comunidades de terreiro passam para
a alçada quase exclusiva dos antropólogos e sociólogos, norteados pelas
teorias e técnicas próprias de sua área.135
Augras prossegue, apontando, nas interpretações de estudiosos do porte de Freud
e Jung sobre o transe místico e os africanos, respectivamente, o eurocentrismo e a visão
evolucionista da humanidade. Afirma que o psicólogo que queira investigar mais sobre o tema
não disporia de apoio “por parte das teorias clássicas da psicologia da personalidade”, por
exemplo.
Poder-se-ia dizer, generalizando, que a própria visão de personalidade,
dividida em diversas instâncias, e fundamentada na cisão consciente e
inconsciente é a pura expressão do corte racionalista, marca inconfundível do
pensamento europeu.
Que dizer das escolas norte-americanas? Os behavioristas, com seu claro
pragmatismo e sua objetividade, não incorrem nos mesmos deslizes que
Freud e Jung. No entanto, se podem oferecer modelos interessantes no nível
do estudo da socialização – particularmente as teorias da modelagem social –
pouco têm a dizer, por enquanto, no que tange à dinâmica da personalidade.
(...)
Chegando a esse ponto, cabe perguntar: será que a psicologia, ciência euro-
americana por nascimento, possui, tal como está hoje, capacidade para gerar
um saber respeitável, sem submeter-se a uma funda revisão crítica? No
campo que nos diz respeito, as teorias da personalidade revelam - se
dominadas por implacável etnocentrismo.136
Conclui, afirmando que, para os fins a que se propunha, foi necessário buscar um
enfoque “baseado mais na perspectiva fenomenológica do que propriamente psicológica”. Na
pesquisa de campo sobre identidade mítica, preferiu o “enfoque fenomenológico e
compreensivo, como o único meio que assegurasse o respeito aos valores alheios e a
humildade em retratá-los” 137
.
Araújo (1999), em trabalho intitulado “Identidade Racial e Teoria Psicanalítica”,
faz referência à escassa produção brasileira sobre raça e psicanálise e afirma que as produções
existentes, a maioria norte-americana aponta que:
- Tal como já observado, as instituições psiquiátricas e/ou psicanalíticas são
marcadas pelo padrão cultural branco e que a prática dos profissionais é
fortemente marcada por preconceitos ou estereótipos raciais e/ou culturais,
havendo, portanto, a necessidade de desconstrução didática dos mitos raciais e de
135
AUGRAS, M. Alteridade e dominação no Brasil - Psicologia e Cultura. Rio de Janeiro: NAU, 1995, p. 48.
136
Idem, p. 50.
137
Idem, idem.
64
os profissionais reconhecerem em si mesmos e nas suas práticas a atuação desses
preconceitos.
- Entre os norte-americanos há quem afirme que há dificuldade de os psicanalistas
brancos se identificarem com o mal psíquico dos pacientes negros. Para tais
autores, pelo fato de não serem negros, estes psicanalistas não levariam em conta
o que seria mais relevante considerar nas queixas dos pacientes, entretanto há que
não concorde com esse ponto de vista.
- as idéias preconceituosas permeiam não só as instituições e as práticas como
também se refletem no pouco número de profissionais negros para os quais há
dificuldades de ingresso nos cursos de graduação138
.
- a orientação dada nas instituições de saúde em comunidades negras também
reflete o etnocentrismo da classe média branca que tem o racismo
institucionalizado139
.
O autor faz uma crítica a esses trabalhos pelo fato de a raça aparecer, ou melhor,
ser na maioria dos casos tomada como algo natural e que as questões ligadas à raça são
tomadas como algo que deveria ser ultrapassado para se chegar ao verdadeiro cerne da
doença, isto é, da causa do transtorno. Acentua que era esperado dos artigos clínicos algo
como uma
revisão metapsicológica sobre o peso do racismo da dinâmica psíquica, em
particular, nos processos identificatórios do Eu. Em vez disso, notamos que
quase todos, a despeito de suas diferenças, partilham irrefletidamente duas
premissas: 1) raça como algo natural – portanto, um conceito não
relativizável e 2) crença na idéia de que questões ligadas à raça no
processo analítico devem ser ultrapassadas, trabalhadas ou aproveitadas
em favor da busca do verdadeiro núcleo patógeno do transtorno
apresentado.140
138
Em trabalho recente, Moema Poli Teixeira, afirma que “se por algum critério metodológico , considerando
que na Universidade predominam os alunos brancos, fôssemos escolher o curso menos branco, o eleito seria o
curso de serviço social com apenas 55,2% de alunos brancos. (...) Enquanto o mais clarinho seria disparado o de
Medicina, com quase 90% de alunos brancos (88%0 e ainda na faixa dos 80% teríamos Odontologia (85,6%),
Informática (83,3%, Farmácia 81,9%, Engenharia e Psicologia (com 80,7 e 80,6% respectivamente)” In
TEIXEIRA, M. P. - op. cit p. 27.
139
Sobre a formação do Profissional “psi”, é bem vinda a leitura do trabalho de Vilhena et. all. Embora não trate
da questão racial, as autoras fazem uma reflexão interessantíssima sobre o descompasso que há “entre valores
que norteiam a cultura, as práticas e a formação do profissional do psicólogo e aqueles que estão presentes entre
os sujeitos pertencentes aos setores mais pobres da população” In VILHENA et all. “O trabalho do Psicólogo
com Comunidades: Cultura e Formação Profissional. Psicologia Clínica. Departamento de Psicologia, PUC-Rio
vol 12/1 Ano 2000, p.133.
140
ARAUJO, G. G. op. cit. p. 67.
65
Quanto à primeira premissa, já tratamos anteriormente. Sobre a segunda, o autor
discorre sobre a aceitação de associar raça com sofrimento, porém, ela é reduzida às questões
de cor e clinicamente sua relevância é reduzida a possíveis associações inconscientes, a
traumas precoces de outra ordem, Há tentativa de sempre afirmar que há algo por trás de raça.
Ela que parece estar em sintonia com a idéia de conflitos na esfera das
identidades sócio-culturais – como os conflitos provocados pela
discriminação racial – não têm o mesmo status explicativo ou descritivo das
causas ou razões responsáveis por conflitos afetivo-sexuais.141
Araújo ressalta ainda a dificuldade de os autores reverem os pressupostos da
crença que adotaram ao analisar o racismo na psicanálise, ou seja, não colocaram em questão
as bases de sua própria crença. Considera que isto tem a ver com a idéia de raça erigida no
século XIX (Ver Parte I) e com as implicações morais es estéticas que as categorizações
raciais sempre tiveram.
Sobre as bases da crença na existência de raças humanas, o trabalho de
AZEVEDO (2002) nos fornece uma rica contribuição ao discutir as implicações da utilização
das conceituações racialistas construídas na modernidade sem uma avaliação crítica de seus
pressupostos teóricos nos quais sobressaem os preconceitos sobre as raças ditas “inferiores”.
A autora problematiza, inclusive, o universalismo humanista que exclui vários segmentos de
pessoas, sendo ele mesmo que está no seio da teoria liberal.
BEZERRA (1987), ao referir-se sobre as peculiaridades dos usuários dos serviços
públicos de saúde mental, apontou alguns problemas diante do que é por vezes caracterizado
como “insucesso” do tratamento ali dispensado. Dentre alguns equívocos cita a “ilusão da
universalidade” que dificulta perceber “as verdadeiras fronteiras culturais que percorrem todo
o conjunto social demarcando modelos culturais e visões de mundo que apresentam entre si
diferenças de uma profundidade muito maior eu se possa parecer a um olhar mais
desavisado”. Continua, afirmando que, “o homem objeto das teorias do comportamento
individual não é um indivíduo dado, natural e universal, mas sim uma construção social,
historicamente datada e geograficamente pouco uniformizada”.142
O texto de Bezerra aponta para a diversidade dos usuários dos serviços públicos
em saúde mental, porém não adentra no que seria esta diversidade, tampouco fornece dados
que permitam dizer o quanto as formulações teóricas sobre as “raças”, elaboradas no séc.
141
Idem, ibidem.
142
BEZERRA JÚNIOR, B. “Considerações sobre terapêuticas ambulatoriais em saúde mental”. In TUNDIS, S.
A. e COSTA, N. Cidadania e Loucura – Políticas de Saúde Mental no Brasil . Petrópolis: Vozes, 1987, p. 140-
141.
66
XIX, ainda são atuantes na sociedade, ou melhor, ainda permeiam os saberes sobre essa
diversidade. Por conta disso caberia perguntar: em que medida as práticas “psi” põem em
questão essas teorizações?
Pensamos que um breve retorno aos primórdios da introdução da psicanálise no
Brasil pode nos ser de grande valia. De acordo com NUNES (1988), os princípios da
psicanálise começaram a ser adotados pela comunidade médica brasileira durante aos anos de
1920 e 1930. Período em que ganha força a idéia de que a teoria freudiana seria importante
para a compreensão dos distúrbios mentais. Porém, isso não chega a “promover mudanças na
ideologia psiquiátrica dominante”.143
Na verdade, o que se tem é uma adaptação do discurso
psicanalítico ao “projeto político mais global, pretendido pela medicina da época” 144
. Trata-
se do projeto de higiene social traçado no decorrer do século XIX, cuja grande preocupação
era a intervenção direta sobre o social, visando a transformação de hábitos e costumes da
população. Nesse contexto, o foco das atenções das autoridades médicas se voltava para
grande “massa populacional constituída de brancos pobres, estrangeiros, imigrantes, escravos
libertos, etc. que formava um proletariado nascente e uma população marginal” 145
cujos
modos de vida eram vistos como inadequados à nova ordem então se consolidando. A grande
preocupação era “com a formação de um novo tipo de indivíduo, para o melhoramento do
povo, para o aperfeiçoamento da raça brasileira” 146
. Neste contexto, a escola e a família serão
os espaços que vão merecer a especial atenção dos higienistas, para os quais a educação física
e moral da infância é condição para o país adequar-se às exigências dos novos tempos.
Com o objetivo de preparar as crianças para um futuro livre de aspectos
degenerativos e conseqüentemente para se alcançar um desenvolvimento
adequado, os higienistas vão propor regras minuciosas, cuidados constantes,
modificações nos hábitos familiares, mudanças nos sistema educacional, com
vistas a garantir uma boa formação física e moral de cada cidadão.
É nesse momento que a instituição psiquiátrica vai ganhar um lugar de relevo
nos discursos médicos.147
Nunes chama a atenção para o fato de a psiquiatria naquele momento estar muito
preocupada com a formação moral dos indivíduos e, nesse sentido, propõe medidas de higiene
143
NUNES, S. A. Da Medicina Social à Psicanálise. In BIRMAN, J. (coord). Percursos na História da
Psicanálise. Rio de Janeiro: Ed. Taurus, 1988, p. 61.
144
Idem, p. 62.
145
Idem, p.63.
146
idem, idem.
147
Idem, p. 64
67
nas quais estavam incluídos cuidados especiais que visavam defendê-los da “degeneração
psíquica, que seria uma desordem nos centros nervosos que produziria perturbações nos
sentimentos e pensamentos e tornaria os indivíduos inaptos à vida e improdutivos ou nocivos
à sociedade” 148
. Considerada como passível de ser transmitida hereditariamente, ou até por
falha na educação, a degeneração psíquica passou a ser um grande perigo a ser evitado. O que
vai justificar a necessidade de uma maior intervenção médica sobre a população. Daí por
diante, a medicina passa a tomar qualquer desvio de comportamento como manifestação desta
anomalia. Nota-se, contudo, que esse discurso, de início era voltado para as elites, visando “o
aperfeiçoamento de constituição de uma burguesia nacional livre de taras” 149
, vai aos pouco
atingindo os setores empobrecidos da população, cujos hábitos de vida são vistos como focos
de doenças e vícios.
Em 1923, com o propósito de dar assistência aos doentes mentais e ampliar os
trabalhos de prevenção e a educação dos indivíduos, foi fundada a Liga Brasileira de Higiene
e Saúde Mental. Nos anos seguintes, observa-se, claramente quea atividade da Liga ultrapassa
aos objetivos puramente assistenciais, posto que suas ações vão resvalar para projetos que
estimulam a eugenia. Projetos que podiam ser, desde campanhas contra alcoolismo, até
“projetos de estímulo à prática de esterilização de indivíduos considerados nocivos à
sociedade”.150
Observa-se que:
no centro destas formulações estava a preocupação com a raça brasileira,
com seus aspectos inferiores, selvagens e degenerados” (...) A eugenia foi
nesse período um tema nacional que alcançou grande repercussão, e que
tinha como base a preocupação com a constituição étnica do povo
brasileiro.151
É importante assinalar que esse período é marcado por intensas convulsões sociais
motivadas pela luta por melhores condições de vida de grande parte da população moradora
dos grandes centros urbanos. No entanto, com o afã de fortalecer as elites e conter a
insatisfação crescente das massas que colocava em risco a organização do Estado, parte da
intelectualidade brasileira tenta explicar os conflitos como efeito de fatores raciais que fariam
parte da constituição do povo. Dentre esses intelectuais vamos encontrar muitos expoentes da
148
idem, p.65.
149
Idem, idem.
150
Idem, p.67.
151
Idem, p.68.
68
psiquiatria brasileira que vão buscar na constituição biológica do homem brasileiro a
explicação para os problemas econômicos e políticos advindos do modo capitalista de
produção. Para esses intelectuais o homem brasileiro tinha se tornado indolente,
indisciplinado, preguiçoso, um perigo ambulante para a ordem e o progresso nacionais por ter
herdado aspectos degenerados das raças inferiores.
Nunes chama a atenção para o fato de que é nesse contexto que as descobertas
freudianas começam a ser introduzidas nos círculos de estudo, nas faculdades de medicina,
etc. Salienta que a maioria dos trabalhos que buscam divulgar a psicanálise a aponta como um
saber que pode ser auxiliar na pedagogia e num programa de melhoramento do povo em geral.
“esta ciência por permitir um acesso ao que haveria de mais profundo nos indivíduos, poderia
ser de grande importância nesse projeto de pedagogia moral do povo. E é esse aspecto que vai
ser enaltecido e destacado.”152
Para os psiquiatras, a psicanálise tornou-se um dos temas mais
relevantes para o saber psiquiátrico, embora lhes fizessem algumas restrições .
Se de seu aspecto meticuloso resulta que algumas demasias devam ser postas
de lado, fato é que proveitosíssima é a investigação que nos permite devassar
o pensamento alheio e apurar a grande influência que nos distúrbios dela
desempenham as questões sexuais. A psicanálise consiste em um método de
exploração diagnóstica em que se investiga o objeto do pensamento alheio.153
Esse aspecto de um saber que poderia desvendar a alma alheia agrada por demais
os médicos, pois entendem que isto pode ajudar nas medidas de prevenção de doenças desde a
infância e evitar possíveis desvios. Sendo assim, percebe-se que o interesse dos médicos
volta-se mais para este propósito do que para o uso terapêutico da psicanálise.
Há, pois, uma certa adaptação das formulações psicanalíticas, de forma até mesmo
descontextualizada aos propósitos da psiquiatria. Não há sequer preocupação em atentar para
o fato de alguns conceitos freudianos entrarem em choque com as teorias psiquiátricas
hegemônicas no século XIX. Nas formulações da psicanálise sobre o aparelho psíquico, por
exemplo, não há lugar para que se continue falando de hereditariedade e degeneração,
entretanto, isto não encontra eco na comunidade dos psiquiatras. “Nossos autores não vão
abrir mão da idéia de que a causa etiológica fundamental dos distúrbios mentais são os
estigmas degenerativos que seriam transmitidos hereditariamente.”154
Alguns psiquiatras
152
idem, p.71.
153
ROXO, H. Psicanálise. Apud NUNES, S. A. op. cit. P. 71.
154
NUNES, S. A. op. cit, p.75.
69
defendem a psicanálise , extraindo de sua teoria o que acham interessante e útil, mas as
proposições básicas da psiquiatria permanecem intocadas: o binômio hereditariedade-
degeneração.
Elas estão nos tratados de medicina e psiquiatria que vão utilizar o negro como
objeto da Ciência como o fez Nina Rodrigues e Henrique Roxo. Para o primeiro, “quanto
mais mestiço, mais degradado, descaracterizado, débil, sujeito a toda sorte de doença. A
hereditariedade híbrida poderia produzir produtos ainda piores que os negros” 155
. Nina
Rodrigues até mesmo defendeu a tese sobre a responsabilidade penal dos negros e mestiços,
que segundo ele não poderia ser a mesma dos brancos porque aqueles eram menos evoluídos
que estes156
. Henrique Roxo, ao investigar algumas moléstias mentais que afirmava serem
próprias dos negros, atribui a causa das mesmas ao fato de os negros serem pouco ou nada
evoluídos.157
Na verdade, na vasta bibliografia existente sobre o período áureo do higienismo
no Brasil, as massas empobrecidas, nas quais se destaca o grande número de negros e
mestiços, são sempre vistas pela ótica do evolucionismo, pouco se lhe dão importância a não
ser enquanto corpo que deve ser tornado útil para o trabalho.
Como podemos notar, as investigações de Silvia Nunes acerca das práticas
psiquiátricas e eugênicas, nos dão conta do quanto elas estavam atravessadas pelos
preconceitos raciais.
Os pressupostos da “inferioridade” dos negros veiculados pelas teorias racialistas
estão presentes nas formulações de uma psiquiatria que, segundo Jurandir Costa, era “racista,
moralista, xenófoba, desejosa de imobilizar um povo tido como degenerado e
insubordinado”158
. Uma psiquiatria que se apoiava na antropologia criminal de Lombroso,
psiquiatra italiano que acreditava que as proporções do corpo eram o espelho da alma. Bento
nos lembra que “o biótipo do criminoso nato de Lombroso era o biótipo do negro, eram os
negros que estavam, sob o rótulo de criminosos, presos nas casas de detenções, submetidos à
155
LOBO, L. F. op. cit. p.67.
156
Nina Rodrigues, após discorrer sobre o que considera característico das chamadas raças inferiores, declara:
“A presunção lógica, por conseguinte, é que a responsabilidade penal, fundada na liberdade do querer, das raças
inferiores, não pode ser equiparada a das raças brancas civilisadas.” In RODRIGUES, N. As raças Humanas e a
responsabilidade penal no Brasil. Salvador:Livraria Progresso Editora, 1957, p.117-118.
157
Mais sobre as proposições de Henrique Roxo sobre os negros e algumas doenças mentais, consultar LOBO,
op. cit. p. 68-71.
158
Apud BENTO, M. A. op. cit. p. 36.
70
mensuração”.159
Esses pressupostos estão igualmente nos laudos, como o demonstra Maria
Clementina Pereira da Cunha em “O espelho do mundo – Juquery, a história de um asilo”.
Nos laudos dessa instituição, a mulheres internadas, quase todas negras, eram citadas como
degeneradas em função de suas características raciais: “Os estigmas de degeneração física que
apresentam são os comuns à sua raça: lábios grossos, nariz esborrachado, seios enormes e pés
chatos”.160
Se essas mulheres fossem encontradas viajando sozinhas eram diagnosticadas
como ninfomaníacas.
Convenhamos, tem razão BENTO (2002) quando afirma, apoiada em PATTO
(1997), que
estas são as bases de uma psicologia que se faz presente até hoje que explica
as condições dos que vivem em desvantagem, tidos como perdedores a
partir de distúrbios ou deficiências presentes em seu aparato físico ou
psíquico, absolutamente naturalizados [...] os psiquiatras são citados por ela
como nossos ancestrais, pois foram os primeiros a trazer a psicologia que se
aplicava na Europa n o século XIX161
.
Segundo BATISTA (2003), os laudos psiquiátricos e psicológicos do Juizado de
Menores atestam a vigência das bases da psiquiatria do século XIX. Sobre as equipes
auxiliares e técnicas das Delegacias e do Juizado de Menores e Funabem, compostos por
assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras e médicos, faz o seguinte comentário:
Estes quadros técnicos que entram no sistema para humanizá-lo, revelam em
seus pareceres (que instruem e têm enorme poder sobre as sentenças a serem
proferidas) conteúdo moralistas, segregadores e racistas carregados daquele
olhar lombrosiano e darwinista social erigido na virada do século XIX e tão
presente até hoje nos sistemas de controle social.162
Pensamos que, a partir dessas constatações, podemos retomar aqui algumas
conclusões de Araújo sobre a necessidade de “desconstrução didática dos mitos raciais por
meio de livros e seminários, além da busca permanente, por parte dos terapeutas, do
reconhecimento de seus próprios preconceitos e idiossincrasias.”163
Concordamos com este
ponto de vista, todavia entendemos que isto só será possível à medida em que denunciamos o
159
Idem, idem.
160
CUNHA, M. C. P. O espelho do mundo - Juquery, a história de um asilo. Apud BENTO, M. A. Op. cit. p. 36.
161
Idem, idem.
162
BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis – drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan,
2003, p. 117 (grifo da autora).
163
ARAÚJO, G. G. - op. cit. p.63.
71
racismo que permeia as relações sociais no nosso país, de uma forma tão perversa porque não
dito, mas profundamente arraigado nos costumes, nas expressões, nos laudos, nas crenças, na
distribuição e ocupação do espaço urbano, etc. Trata-se, pois, de uma escolha ética e política.
Estamos por certo falando de uma clínica na qual as questões do cotidiano têm
lugar, porque o terapeuta pode ouvir outras coisas além do sexual-infantil (RAUTER, 1998).
Esse posicionamento é efeito da problematização de práticas que vêem na organização
familiar, na qual os desejos, as referências giram em torno das figuras parentais, a origem de
traumas e conflitos de toda ordem. A tentativa é sempre a de explicar a realidade à luz da
estrutura familiar (GUATTARI; DELEUZE, 1976). Quando, ao contrário desse
posicionamento, entendemos que também o cotidiano deva ser considerado, apostamos numa
clínica que põe em questão a própria realidade, não se fixando em buscar o significado dos
fenômenos que nela ocorrem, mas em analisar os efeitos que eles produzem nas relações
sociais. Recusa-se assim a promover a interiorização e a intimização tão característicos da
subjetividade contemporânea. Ademais, nesta perspectiva clínica, o inconsciente faz mais que
simbolizar, ele é a própria realidade, posto que ele é entendido com o produtivo, maquínico.
O campo do inconsciente não é mais, nem menos importante que o campo do real histórico.
De sorte que ambos (inconsciente e campo social) são igualmente afetados porque não estão
separados. O campo social é também fruto do desejo (Idem), e este é, igualmente, produzido.
Quando alguém se queixa de discriminação, há que se ter em conta que tal
acontece em uma sociedade que produz indivíduos sujeitados a certos parâmetros e que as
formações inconscientes são continuamente atravessadas pelo campo social e vice-versa.
Quando tudo é remetido ao campo da linguagem, corre-se o risco de não levar em conta que
esses fenômenos de discriminação tanto dizem respeito à ação concreta dos indivíduos
envolvidos, à sua maneira de conceber a realidade que o cerca; como podem estar presentes e
sendo (re)produzidos nas práticas institucionais.
Pensamos que se pode discutir as implicações políticas164
de privilegiar uma
prática que ignora ou minimiza o social, o histórico e o político, e mais: tenta remetê-las a
significações pré-estabelecidas. Em se tratando da questão da negritude, cremos que propor
uma clínica que contemple outros modos de subjetivação ou, melhor dizendo, que considere o
modo de subjetivação capitalístico que faz parecer como estranhos, nocivos ou inferiores,
tudo o que não se enquadra na norma dominante, envolve alguns cuidados tais como o de não
entender essa admoestação como a reivindicação por mais uma especialidade clínica. Cremos
164
É bom lembrar aqui a observação de Rauter (1998, p.121) que “uma prática clínica é, antes de tudo política,
na medida em que a produção de subjetividade é política.”
72
ser importante pensar e investir na problematização de uma prática que, como toda a
sociedade, ainda é atravessada pelos estereótipos raciais e pelo silenciamento e negação que
envolvem o tema do racismo em nosso meio, e na construção de dispositivos teóricos e
clínicos que não podem mais ignorar que na nossa sociedade o lugar de cada um não pode ser
dissociado das concepções racistas que ainda vigem entre nós.
Acreditamos ser pertinente a propósito da luta contra o racismo o que KOLKER
(2002) afirma com relação à tortura: “Enquanto a nossa sociedade não se perceber atingida
pela tortura e pela impunidade, esta prática continuará a fazer vítimas e a comprometer a
democracia” 165
.
Foi o reconhecimento de que a prática da tortura fere os princípios democráticos
que impulsionou os membros da Equipe Clínico Grupal Tortura Nunca Mais a construir
estratégias terapêuticas junto aos pacientes vítimas de tortura. Frente ao fato de que os
repertórios existenciais e teóricos-técnicos acumulados até o momento não davam conta de
pensar as marcas da tortura, “lançamo-nos então, junto aos pacientes, à tarefa de construir
nossas estratégias terapêuticas” 166
.
Admitimos que isso só aconteceu porque houve uma disposição política que
tomou essas marcas como expressão de subjetividades produzidas no contexto
sócio/econômico/político das ditaduras militares dos países sul-americanos. Contudo, aceitar
essa demanda não implicava nem na “configuração de uma nova vitimologia, com
privatização e despolitização do dano, nem na construção de novas categorias
psicopatológicas ou de novos especialismos.” 167
Outrossim, implicava, certamente, em não
atribuir outros significados à tortura; tratava-se, pois, de discutir uma prática que, naquele
momento histórico específico, foi utilizada pelos defensores do regime para atender às
exigências do capital. O modelo de desenvolvimento adotado era apresentado como
necessário para o progresso, de sorte que seus opositores eram transformados em inimigos do
país. Foi um momento em que vê claramente como as forças sociais que administram o
capitalismo investem na produção de subjetividade posto que, naquele instante, o recurso à
tortura - uma forma de fazer calar (SIRONI, 1999) - foi um meio de regular a conduta dos
indivíduos, portanto tudo caminhava para a consolidação de um certo modo de viver. Dar
165
KOLKER, T. Ética e intervenção clínica em relação à violação dos Direitos Humanos. In: RAUTER,
C.;PASSOS, E.; BENEVIDES, R. (org). Clínica e Política: subjetividade violação dos direitos humanos.Rio de
Janeiro:IFB/ Te Corá Ed. ,2002, p.190.
166
Idem, p. 184.
167
Idem, idem, (grifo da autora)
73
outros significados à tortura remetendo-os à intimidade do lar, buscando relacioná-la às
estruturas do psiquismo é desconsiderar todo o campo social no qual individualismo e
consumismo são expressões da subjetividade dominante.
Por conseguinte, nesse tipo de abordagem, as questões do cotidiano são acolhidas
porque se parte do pressuposto de que elas são contingentes, não são naturais, são produções
histórico-sociais e como tais devem ser remetidas ao contexto de sua produção168
. Nesse caso,
têm lugar as práticas psi comprometidas com a produção de “novas questões, novas
problematizações, novos territórios, agenciamentos e subjetividades que não sejam meras
reproduções, mas que consigam afirmar-se no campo da singularidade” 169
. Contrariamente a
essa posição, havia (e pensamos que ainda há) quem procure relacionar a queixa do torturado,
ou de quem sofre qualquer discriminação por “raça” a conflitos intrafamiliares. Nós
preferimos pensar nos efeitos da influência do torturador (SIRONI, Idem), ou dos estereótipos
raciais.
Pensamos que esta observação vale também para pensar em como tratar os efeitos
do racismo, mesmo em sua expressão silenciada. Para isso reiteramos que é necessário
colaborar e insistir na necessidade de investir na análise da história e da realidade do país,
procurando tirar o véu de silêncio que encobre as profundas desigualdades raciais.
1. 2. Quando o silêncio fala mais alto
No ano de 2002, o Conselho Federal de Psicologia lançou um concurso cujo tema
foi: “Pluralidade Étnica: um desafio à Psicologia Brasileira”. Era uma convocação para um
aprofundamento do conhecimento acerca da questão étnica, para a produção de um saber
enraizado na nossa realidade social e cultural. Considerava ser o Brasil um país no qual as
“pluralidades étnica e cultural são as marcas de sua história enquanto nação”. Entretanto,
parte dessa pluralidade tem sido negada “quer pelas teorias do caráter nacional brasileiro, quer
168
Em relação à tortura, Sironi (1999) fala da necessidade de pesquisar a intencionalidade do torturador
(pensamos que poderíamos acrescentar, no contexto deste trabalho, os propósitos do racismo) que seria a
tentativa de “nadificação”, de fazer desaparecer tudo o que funda a singularidade. É um ataque à parte coletiva
do indivíduo, desintegrando a articulação entre o singular e o coletivo.
169
COIMBRA M. B. et al. Intervenção clínica quanto à violação dos Direitos Humanos: por uma prática
desnaturalizadora na teoria, na ética, na política. In: RAUTER, C. ; PASSOS, E.; BENEVIDES, R. op. cit. p,
115.
74
pelas concepções de Psicologia centradas em pressupostos advindos de continentes como
Europa e América do Norte”.170
Esta é uma realidade constatada, mas penso que a questão ainda pode ser ampliada
se houver a tentativa de investigar as razões dessa negação. Talvez SODRÉ tenha razão,
quando afirma que “persiste ainda hoje a utopia civilizatória da Europa” 171
ao comentar sobre
a incapacidade de parte da intelectualidade brasileira de reconhecer os valores das culturas
não européias, imputando-lhes uma suposta inferioridade.
Para AZEREDO (2002), falar de pluralidade étnica “torna-se um desafio,
sobretudo para a Psicologia, uma disciplina que tem privilegiado o enfoque individualista, não
prestando atenção às determinações históricas nem tampouco à dimensão política da
constituição do ser humano”. E vai mais adiante sublinhando que:
o enfoque individualista que tem sido geralmente privilegiado pela
Psicologia está em sintonia com a sociedade desigual que tem sido o Brasil
desde o tempo da colônia, e considero que permanecer nesse enfoque
significa compactuar com o processo que produz a desigualdade.172
No texto mesmo do CFP há a afirmação de que parte da pluralidade étnica
brasileira é negada, contudo pensamos que não basta esta constatação. Há a necessidade de
atentarmos para as práticas desenvolvidas, sobretudo nos serviços públicos, que é para onde
se dirige a maioria dos negros. E, então, perguntamos, estão estes serviços atentos às
especificidades deste segmento da população, no que concerne ao sofrimento psíquico
advindo das suas características “raciais”? Pensamos que não, porque, tal como quaisquer
outras instâncias da sociedade, ali também a negação e o silêncio sobre as desigualdades
raciais fazem parte do cotidiano. Sabemos que a célebre frase: “aqui é todo mundo igual”, é a
resposta, quando alguém ousa dizer que está sendo discriminado por causa da cor. É bom
lembrar o que já dissemos anteriormente sobre as manifestações sutis de racismo tão comuns
no nosso dia a dia! Assim como a perpetuação das desigualdades tem a ver com as práticas
individuais ou institucionais. Traremos a seguir alguns fatos que poderão ilustrar o que
estamos querendo mostrar.
170
Psicologia: Ciência e Profissão. Revista do Conselho Federal de Psicologia. Ano 22, nº 4, 2002 - Editorial.
171
SODRÉ, M. Op. cit. p. 33.
172
AZEREDO, S. M. da M. “O Político, o Público e a Alteridade como Desafios para a Psicologia”. In
Psicologia: Ciência e Profissão. Op. cit., p. 15.
75
Como atividade de pesquisa173
, durante algum tempo, acompanhamos de perto o
trabalho desenvolvido com adolescentes e jovens numa instituição voltada para o tratamento
de usuários de drogas. Em diversas ocasiões, os profissionais que lá atuavam chegaram a
comentar que a segurança de um supermercado próximo era reforçada quando os meninos iam
fazer compras. Atitude que era vista, pelos profissionais que os acompanhavam, como
decorrente do fato de serem usuários de drogas e terem eventualmente algum envolvimento
com o tráfico. Todavia, há alguns dados sobre esses meninos e a instituição que os acolhe que
também podem explicar o reforço da segurança. Trata-se de uma instituição pública e os
adolescentes ali atendidos são, em sua maioria, negros ou pardos. Fato que confirma as
estatísticas oficiais, pois, entre os que buscam os serviços públicos de saúde os negros e
pardos constituem a maioria (LIMA, 1999). Nenhum dos profissionais fez qualquer referência
a esse último item, a cor dos meninos. Silêncio, entretanto, não é novidade que o fato de
serem negros e pobres os torna suspeitos em potencial, são considerados perigosos, daí a
“necessidade” de maior vigilância.
Igualmente silêncio sobre esta questão, quando se discutia a dificuldade de
inserção de algum deles em algum trabalho, o que era dificultado pela baixa escolaridade.
Mas nem de longe se estabelecia qualquer correlação entre o nível de escolaridade desses
meninos e a sua condição social, nenhuma menção ao fator racial como um dos determinantes
dessa realidade. Os dados oficiais estão aí a informar que o tempo de permanência na escola é
menor entre os negros174
. É comum a preocupação com o trabalho, o qual é geralmente
apontado como solução para o adolescente pobre. Quando se fala em escola é quase sempre
na perspectiva de preparação para o trabalho. Afinal é natural que esses meninos trabalhem.
Têm que cuidar do próprio sustento e ajudar em casa. Além disso, nem sempre lhes é
garantido o acesso à escola, e, quando tal acontece a chamada qualidade de ensino deixa
muito a desejar. A falta de recursos no setor ficou ainda mais acentuada nesses tempos de
economia globalizada e são os mais pobres que têm sofrido os efeitos das políticas neoliberais
de ajuste da economia de modo que é cada vez maior o fosso que separa ricos e pobres,
negros e brancos.
Esta mesma instituição também abrigava uma cooperativa de mulheres, a maioria
tinha filhos usuários do serviço ali prestado. Quando em algum momento se solicitava que
173
Pesquisa: “Produção da Violência e Subjetividade Contemporânea: construindo dispositivos clínicos
transdisciplinares” - UFF/Equipe Clínico Grupal Tortura Nunca Mais. Coordenação: Cristina Rauter. 2000 –
2004. 174
“A média da freqüência escolar da população negra é hoje de 4,4 anos” - RUFINO, A. “Configurações em
preto e branco” In Racismos Contemporâneos. op. cit. p. 30.
76
falassem algo de suas experiência de vida, se negavam a fazê-lo, alegando que nada tinham a
dizer. Quase sempre desqualificavam o próprio trabalho, como se para elas não fosse possível
sustentar o desejo de ter algo de sua autoria. Pensamos que esse posicionamento possa estar
relacionado também com a questão racial, entretanto, esse tema sequer era colocado; confesso
que eu mesma hesitava em provocar uma discussão sobre o assunto, embora sentisse
necessidade de fazê-lo, porque sentia ali como que pairando no ar um sentimento de
impotência tão comum entre os negros, quando se tem pela frente o desafio de estar numa
posição bem diversa da tradicionalmente ocupada, ou seja, nas profissões de menor prestígio
social. Mas eu temia o efeito de uma intervenção nesse sentido pelas razões mesmas já
apontadas, de ser acusada de estar importando um problema e aí o não dito (é uma prática)
tem força de manter tudo nos seus devidos lugares. Justificado pela urgência em resolver os
problemas relativos ao funcionamento da cooperativa qualquer discussão que não trouxesse
uma resposta imediata às dificuldades daquelas mulheres parecia não caber ali. Dificuldades
de trabalho, de transporte, par comprar remédios, de manter os filhos na escola, de moradia.
Ora, todo um contexto de uma população excluída de bens e serviços na qual os negros são
maioria. Outrossim, o modo como essas mulheres se viam naquele trabalho era demonstrativo
de como se sentiam “incapazes” para tal empreitada.
Apenas uma vez houve uma alusão clara e direta sobre raça naquela instituição.
Aventou-se a possibilidade de uma menina ter problemas em casa por ser “morena”; os pais,
adotivos, eram brancos. Entretanto a discussão não foi adiante.
Em uma outra instituição, diferentemente da que acabei de mencionar, esse tema é
abordado, e não teria como não sê-lo, pois e ali se desenvolve um trabalho cujo objetivo é a
valorização da cultura negra. Trata-se de um trabalho de assistência a crianças pobres
moradoras de alguns bairros da periferia de Niterói. São crianças que, via de regra, necessitam
de reforço escolar, em sua maioria pertencem à rede pública de ensino. O centro oferece
reforço escolar, atendimento psicológico, cursos de cabeleireiro, informática, manicure e
pedicure e oficinas de dança, pintura, etc. Tal como no exemplo anterior, a grande
preocupação dos educadores é com o “futuro” desses jovens (eles só podem ficar até os 16
anos), devido à proximidade deles com o tráfico. Portanto, encaminhá-los para o mercado
de trabalho o quanto antes se torna imperativo. Todavia, o baixo desempenho escolar tornam
menores as chances de esses jovens terem uma ocupação e/ou continuarem os estudos.
Continuar os estudos, na verdade, parece ser uma possibilidade quase que remota
para a maioria, na opinião de uma das educadoras. Ela revela com muita tristeza que isso nem
77
sequer se cogita no meio deles. Parece algo que não cabe em sua realidade. É como se
estivessem “destinados” precocemente ao trabalho, afinal são pobres e negros.
As duas instituições se assemelham, não obstante, na primeira, a questão racial
não ser colocada, verbalmente. Ambas discutem o “futuro” de sua clientela e, comumente, os
profissionais, apontam alguns fatores que limitam as oportunidades que esses jovens têm de
desenvolver suas potencialidades, e inviabilizam o próprio tratamento, ou o estudo. Dentre
esses fatores se destacam a falta de recursos e a ação do tráfico.
Todavia, não se discute as práticas ali implementadas, pouco de indaga acerca dos
vínculos que esses sujeitos mantêm com a instituição, esta lhes fornece o vale transporte, a
refeição175
e, às vezes, uma esperança de trabalho. Quase sempre o discurso é sobre a
preparação deles para enfrentar as dificuldades da vida. Mas de que vida está se falando? Que
caminhos lhes são apontados? Certamente os caminhos considerados os melhores, já que
eles não têm condições de outro melhor, leia-se, não podem querer outro. Em muitas
circunstâncias sequer chegam a conhecer outro caminho.Naturaliza-se assim sujeitos e
lugares.
Os caminhos apresentados como melhores passam quase sempre pela preparação
para o trabalho. Este é, quase sempre, tomado como fonte de redenção para adolescentes e
jovens das periferias das cidades.
Não obstante as transformações que ocorreram em nossa sociedade, observamos
que esta realidade pouco mudou. Não é de hoje que para as crianças pobres é apontado, não o
caminho da escola, mas o do trabalho, muitas vezes em condições pouco favoráveis ao seu
desenvolvimento integral. Trata-se de uma prática que se repete ao longo dos anos. Foi a
solução encontrada para os filhos dos escravos e libertos, como o é hoje para os filhos dos
excluídos dos bens e serviços, dos “consumidores falhos” (BAUMAN, 2001).
É comum a imagem de crianças trabalhando em qualquer época da história
brasileira, uma imagem que reflete muito bem o caráter excludente das políticas oficiais, que,
via de regra, sempre estiveram em consonância com os interesses das classes dominantes. Os
empobrecidos vão tendo acesso aos bens, dentre os quais podemos incluir a educação, na
medida em que, de alguma forma, isto vai torná-los indivíduos aptos à ordem burguesa. É a
partir desta perspectiva que se pode ter uma visão mais abrangente de uma sociedade
175
A questão que levanto é a seguinte: como esses “benefícios” chegam aos seus destinatários? Eles são meios
para os jovens alcançarem seus objetivos ou são dádivas de uma mão poderosa que os mantêm em seus devidos
lugares? O lugar da impotência, do não saber, do sonho não sonhado. Não será ainda a mão do “senhor” que
ainda persiste e se considera necessária, porque “esse pessoal” pouco ou nada têm a oferecer? Afinal, essa
massa iletrada e “inculta” precisa ser redimida.
78
organizada de tal forma que, para determinadas crianças e adolescentes, o abandono da escola
é visto como inevitável em decorrência da necessidade de trabalhar. Essa obrigação de
trabalhar é antiga, ela é inclusive parte da história dos empobrecidos deste país! Esta história
é, sem dúvida, a dos negros brasileiros os quais constituem 63% do total de pobres no Brasil
(RUFINO,2003)
CUNHA (1999) traça um painel de como se deu a inserção do negro no sistema
educacional brasileiro. Para tanto começa sua pesquisa, buscando na história da educação no
Brasil algo que a informe sobre tal fato, tendo em conta que até a abolição isso não se
colocava, pelo fato mesmo de que no sistema escravista, por razões óbvias, a escolarização
dos negros era descartada, isto é, o negro era proibido de freqüentar a escola por ter a
condição de escravo. Entretanto, observa que com a Lei do ventre Livre e a Abolição essa
interdição perderia seu efeito, porém é a partir daí que fica bastante evidente o caráter
excludente das políticas oficiais, pois, constatou a existência de leis que discriminavam os
negros e impediam seu acesso à escola. Mesmo após a Constituição de 1824 que considera
também os filhos da escrava e libertos como cidadãos brasileiros, e por isso também teriam
direito à instrução primária. Vejamos o que diz a Lei Magna de 1824:
Art. 6 São Cidadãos Brasileiros
I Os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos ou libertos.
No entanto, no dia 4 de janeiro de 1837, o então presidente da Província do Rio de
Janeiro, Paulino José de Souza sancionou a Lei – nº 1 que dispõe o seguinte sobre a Instrução
Primária:
Art. 3º São proibidos de freqüentar as escolas Públicas:
1º Todas as pessoas que padecerem de moléstias contagiosas.
2º O escravos, e o pretos Africanos, ainda que sejam livres ou libertos. 176
Cunha observa que as províncias gozavam de uma certa autonomia, e por conta
disso, podiam definir, a partir de suas leis, quem teria acesso à instrução primária. Os negros
em geral estavam excluídos da instrução primária, o que configura uma situação de
preconceito racial, tal como Ana Maria A. Freire afirma:
Assim com esta “coerência” a nossa sociedade estava perpetuando o
elitismo, o autoritarismo, a discriminação – perversos e injustos – que,
interditando corpos e negando direitos para proveito próprio, justificativa que
176
CUNHA, P. M. C. da . Da senzala à sala de aula: como o nego chegou na escola. In cadernos PENESB, nº 1.
Niterói: Intertexto, 1999.
79
a cor de suas peles indicava inferioridade intrínseca, proibindo-os de lerem e
escreverem.177
Cunha, tal como comentamos anteriormente, observa que “o Brasil independente
guarda traços de sua herança colonial. A elite que assumiu o poder era originaria dos ricos
proprietários de terra, interessados em manter a estrutura escravocrata”. Uma elite que
camuflava as desigualdades sociais com um discurso liberal e “que tentava acompanhar o
processo de modernização sem, no entanto, modificar a ordem social.”178
Por certo não faltaram leis dispondo sobre a instrução pública, o que não significa
que eram cumpridas, há que se levar em conta que no Brasil é comum o distanciamento entre
a formulação de uma lei e a sua regulamentação, mas de uma coisa não se tem dúvida, até a
abolição, o acesso dos escravos às escolas estava vedado. Parece ironia, mas é na condição de
abandonados que, após a lei do Ventre Livre, os negros vão ter acesso à instrução fornecida
nas instituições criadas para “ampará-los” - os asilos. Essas instituições cuidavam de
transmitir valores e princípios de comportamento, tendo em vista na verdade
o intuito de preparar essas crianças para a produção, uma vez que estando
formadas teriam que prestar serviço compulsório no estabelecimento por um
período de três anos e depois trabalhar em empresas ou fábricas. 179
Portanto, podemos constatar que mesmo para os nascidos após a Lei do Ventre
Livre, pouco ou nada mudou, em relação à obrigatoriedade ao trabalho.
Ao comentar sobre a infância da criança escrava, Cunha afirma que desde muito
cedo as crianças eram incumbidas de desempenhar tarefas como carregar trouxa de roupa
cuidar da cozinha, servir mesas, cuidar de crianças menores, vender mercadorias, etc. e as que
eram abandonadas na roda dos expostos que conseguiam sobreviver, eram enviados a
criadeiras que recebiam uma pensão da Santa Casa para criarem essas crianças até a idade de
07 anos, daí em diante, eram encaminhadas a famílias adotivas, sendo que os meninos
poderiam ser enviados ao Arsenal da Marinha e as meninas para o Recolhimento das Órfãs.
Em quaisquer dos casos, essas crianças deveriam trabalhar durante 7 anos gratuitamente, para
ter alimentação e teto. Só a partir dos 14 anos poderiam empregar-se recebendo salário.
Chamamos a atenção, contudo, que essa modalidade de assistência aos órfãos não
se restringe ao período anterior `a abolição, ela subsiste nas primeiras décadas do século XX.
Sobre o trabalho das meninas menores, BATISTA (2003), ao analisar processos de meninas
177
FREIRE, A. M. 1993 Apud CUNHA, P. M.C. - op.cit. p. 88. 178
CUNHA, P. M. C. op. cit, idem.
179
Idem, p. 89.
80
na Vara de Órfãos, entre 1907 e 1914, registra um fato que é também digno de nota: “a Vara
de Órfãos funcionava como uma agência de serviços domésticos, intermediando a colocação
de meninas abandonadas, que saíam do „Asylo de Menores‟ para trabalhar „a soldada‟180
em
casas de família.”181
A pesquisa de Cunha vai ainda pontuar que o trabalho também aparece como
alternativa para os filhos menores no próprio texto da Lei do Ventre Livre.
Promulgada em 28 de setembro de 1871 pela Princesa Imperial D. Isabel, a Lei nº
2040, a Lei do Ventre Livre, no artigo 1, parágrafo 1º, diz:
Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de
suas mães, os quais terão obrigação de cria-los até a idade de oito anos
completos. Chegando o filho da escrava a esta idade o senhor da mãe terá a
opção ou de receber do estado a indenização de 600, $ 00 ou a utilizar-se dos
serviços do menor até a idade de 21 na os completos [...]182
Cunha chama atenção para o fato de “a infância deste menor fica limitada à idade
de oito anos”; a partir daí, o senhor pode ser indenizado, em caso de o menor ser entregue ao
Estado ou utilizar-se de sua mão-de-obra sem nenhuma obrigação de pagar-lhe um salário. A
Lei diz que esses “ingênuos” podem ser, em caso de maus-tratos, entregues a associações que
também terão direito aos seus serviços. Consta no parágrafo 1º do Artigo 2º: “As ditas
associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 anos
completos”183
Pelo exposto, constatamos que a obrigatoriedade ao trabalho desde a mais tenra
idade parece ser uma norma que, há muito tempo, está presente nos modos de “cuidar” da
infância pobre no nosso país.
. Poderíamos então perguntar: e hoje, o que mudou? Infelizmente, neste nosso
século, o trabalho infantil ainda é uma realidade, e a educação em nosso país ainda não é
180
“A „soldada‟ era uma prática comum em que uma família tomava sob sua responsabilidade jovens com idade
entre 12 e 18 anos, comprometendo-se a „vesti-la, calçá-la, alimentá-la e depositar mensalmente em caderneta da
Caixa Econômica Federal” quantias que variavam de 5 a 10 mil réis. Um termo de compromisso era assinado
perante o Juiz, que portanto organizava e intermediava uma espécie de prorrogação dos serviços prestados
geralmente pelas jovens escravas do passado. Não se haviam transcorrido ainda vinte anos da abolição e não é
coincidência que a maioria destes processos se refira a jovens morenas ou pardas.” (grifos no original) In
BATISTA, V. M. - op. cit. p.66).
181
Idem, p. 65.
182
Apud CUNHA, P. M. C. - op. cit. p. 84.
183
Idem, idem.
81
prioridade; a situação das escolas públicas cujos freqüentadores são majoritariamente as
populações mais empobrecidas continua a desejar.
De um modo geral, o trabalho, tal como nos dois últimos séculos passados,
continua sendo visto como elemento recuperador nas instituições de atendimento aos jovens
pobres.
A preocupação com a formação profissional dos adolescentes e jovens é um traço
comum em instituições do gênero, desde as primeiras décadas do século passado. O período
compreendido entre 1930 e 1945 é considerado por Antonio Carlos Gomes da Costa como a
fase de implantação efetiva do Estado Social brasileiro. “Segundo ele, o período que se segue
ao Estado Novo fez das políticas sociais o instrumento de incorporação das massas urbanas ao
projeto nacional, liderado por Getúlio Vargas.”184
O sistema compreendia reformatórios, casas
de correção, patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos, que tinha no
SAM (Serviço de Assistência ao Menor) seu principal órgão articulador. É interessante notar
que nessas instituições, os jovens eram submetidos à rígida disciplina, e a formação para o
trabalho estava presente, já que o trabalho era vista como agente reabilitador. É inclusive sinal
de cura. A avaliação de uma psicóloga do Serviço de Liberdade Assistida sobre um jovem
morador de uma favela do Rio de Janeiro é exemplar, “ao considerá-lo „curado‟, afirma:
atualmente o jovem está trabalhando como engraxate e perfeitamente integrado à
sociedade”185
O veredicto acima parece inofensivo, todavia, ele expressa em poucas palavras o
que essa profissional pensa sobre o lugar desse jovem na sociedade. Dizer que ele está
perfeitamente integrado equivale dizer que ele está no seu lugar. Um lugar naturalizado
pelas práticas cotidianas nas instituições nas quais o chamado ensino profissionalizante
continua mantendo um sem número de jovens atrelados “a posições e ocupações subalternas”,
como nos alerta Batista ao constatar o tipo de atividades que são propostas aos jovens a título
de profissionalização. Guardadas as devidas proporções, as duas instituições a que nos
referimos neste trabalho se assemelham às dos processos analisados por Batista, no que
concerne à indicação ou preparação para o trabalho.
De qualquer forma, o jovem que não se conforma ao que ele pode querer, torna-se
motivo de preocupação ou é visto como portador de alguma patologia. Que tal se, ao invés de
olharmos nossos jovens como possíveis desajustados, ajustássemos nossas lentes para
184
Apud BATISTA, V. M. op. cit. p. 71
185
Idem. p. 122 (grifo da autora).
82
percebermos o quanto as instituições que os atendem em nada diferem da sociedade que os
discrimina.
Para AZEREDO,
Ao invés de ter mais dados, precisamos, então aprender a levantar as
questões que poderão abrir caminhos para resolvermos os enormes
problemas do racismo e sua complexa relação com outras formas de
dominação e exploração. Precisamos fazer perguntas e também, o que é
muito importante, aprender a escutar as respostas, com ouvidos abertos para
a diferença”186
Todavia, esse exercício tem sido dificultado por algo que pode ser considerado
como efeito do “mito da democracia racial”: a negação e o silêncio sobre o racismo no Brasil.
1. 3. Subjetividade individuada: a marca do nosso tempo
Tudo o que foi discutido até o momento exige problematizar a prática que
comumente acontece nos serviços de atendimento, sejam eles públicos ou não. Aqui,
referimo-nos, naturalmente, ao que se oferece aos usuários nesses serviços, à escuta do
profissional “psi” e, por conseguinte, ao que é considerado material de intervenção. Penso que
isso pode estar relacionado com o lugar e o papel da Psicanálise na sociedade.
Sobre o papel e o lugar da Psicanálise, o texto de BEZERRA (1999) nos fornece
alguns elementos valiosos que considero pertinentes para este trabalho. Para este autor a
psicanálise tem sido constantemente acionada para opinar sobre os mais variados aspectos da
vida. O uso crescente das palavras, expressões e concepções da psicanálise tornou-se cada vez
mais comum. Embora presente em diferentes países, a psicanálise apresenta por isso mesmo
feições distintas, e essa diferença tem a ver com o modo como foi introduzida e com as
condições históricas e culturais em que se desenvolveu.187
Há entre nós uma “cultura
psicanalítica” cuja expressão se faz sentir na presença de uma certa lógica de pensamento, um
código para emoções e um modo de falar próprios à psicanálise e que permeia todo o tecido
social.
186
AZEREDO, S. M. da M. op. cit., p. 16.
187
Quanto a este ponto, creio que analisar como se deu isso no Brasil merece uma atenção especial, até pelas
peculiaridades de uma sociedade onde as teorias racialistas deram sustentação às práticas higienistas
implementadas nos séculos XIX e XX. Na atualidade, as tecnologias “psi”, para RAUTER E JOSEPHSON
(1990), continuam, de certa forma o projeto higienista, porque “dispõem de um instrumental mais sutil e
especializado de ação no interior dos sujeitos e das famílias”.
83
Quanto a este ponto, o trabalho de RAUTER e JOSEPHSON (1990) é ilustrativo
de como essa “cultura” está fortemente arraigada, em especial no modo como o terapeuta
acolhe a fala do sujeito. O que foi observado é que em muitos casos, há por parte do terapeuta
um não reconhecimento de um “problema psicológico”, se na fala do cliente não há referência
alguma a um problema de ordem familiar, infantil ou sexual. As pesquisadoras constataram
que
Muitas vezes os terapeutas demonstram frustração ao verificarem que seus
clientes falam menos do que deveriam, e quando falam, sua fala lhes parece
vazia, “conversa de comadre”, um simples descarregar de problemas, etc.
Quais seriam, para os terapeutas, as falas adequadas? Ao nosso ver existem
dois “temas nobres”, valorizados pelos terapeutas como pertinentes ou
proveitosos do ponto de vista do tratamento: as falas que se referem à vida
familiar e à sexualidade. Além disso, é à luz destes dois referenciais que a fala
do cliente será “traduzida” ou interpretada, mesmo quando a eles não se refira
explicitamente.188
Outrossim, há que se levar em conta que o interesse também se volta para o que
haveria no íntimo de cada um, sobre o que de fato seria a “causa” dos seus problemas. O
cotidiano desses sujeitos é por vezes, ou quase nunca, valorizado, já que o sexual-infantil
passou a ser valorizado como algo relevante na constituição do sujeito.
Para BEZERRA (1999), a concepção de sujeito como um ser dotado de
interioridade, um “eu”, passou a existir no início da era cristã, entretanto, somente na época
moderna essa idéia deixa o plano da reflexão e das práticas restritas para se impregnar
lentamente na cultura e no tecido social, passando a habitar a consciência dos indivíduos e dos
agentes sociais. “É nesse mundo moderno que se criam as condições sociais que, de certa
maneira, permitem, ou melhor, levam o sujeito a se pensar como indivíduo. É nele que essa
configuração particular do ser humano se „naturaliza‟”.189
A questão que se tem a levantar é como e por que se tornou hegemônica essa
versão de homem? Sobre este ponto, o autor faz uma referência a Foucault e à sociedade
disciplinar, considerando que as técnicas disciplinares revelam não só controle e repressão,
mas também criação, ao produzirem uma certa subjetividade afinada com a ordem social
emergente. Este fato pode ser constatado nos vários processos de individualização das figuras
do louco, do criminoso, etc, e na criação de instituições voltadas para o tratamento
188
RAUTER , C e JOSEPHSON, S. – “Mulher e Psicologia: Reflexões Sociopolíticas” – Cadernos do ICHF nº
14, Niterói, UFF , 1990.
189
BEZERRA, B. Subjetividade Moderna e o Campo da Psicanálise. In BIRMAN, J. (org). Freud – 50 Anos
depois. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 1999, p. 227.
84
individualizado dos seus objetos de intervenção, sem falar nas práticas também
individualizadas que sustentavam essas instituições. “No nível do conhecimento, dos saberes,
as ciências humanas correspondem a uma das dimensões deste fenômeno de múltiplos tempos
e múltiplas faces: a invenção do homem moderno” 190
.
Esse homem moderno é, na verdade, um produto da nova modalidade de poder
que se instaura, o poder disciplinar, imprescindível para ajustar os indivíduos aos novos
tempos, à ordem burguesa em processo de consolidação. É oportuno destacar que o homem
como objeto de saber surgiu com o desenvolvimento capitalista e sua exigência de controle
dos corpos e dos desejos.
A normalização da sociedade é o imperativo para a afirmação da nova ordem
burguesa que se estabelece a partir da introdução de novas formas de produção econômica,
com o sistema agrário feudal sendo paulatinamente substituído por um novo sistema que
privilegiava as corporações profissionais, os agrupamentos urbanos; enfim, os primórdios da
industrialização já se faziam presentes. Esse processo implicou na revolução da imagem da
sociedade e na sua hierarquia de valores. Entretanto, mais do que apontar o alcance das
transformações que ocorreram ao nível das técnicas ou nas formas públicas de relacionamento
social, o que mais interessa ressaltar “é o quanto esse processo de normalização da vida social
invadiu os indivíduos, „organizando‟ também seu espaço interno, „criando‟ uma subjetividade
ordenada em novos moldes, internalizando uma nova idéia de mundo, do homem e das suas
relações”. 191
Surge uma esfera privada da existência, vivida em torno da família, da casa; um
mundo sentido como autônomo e onde os sujeitos podem viver a sua individualidade sem
constrangimento. O espaço doméstico passa a ser o lugar da exploração dos afetos e da
educação, posto que está livre das tarefas produtivas. A economia aparece então, como uma
instância separada da vida dos indivíduos, algo que lhes escapa, uma realidade que transcende
à sua existência, já que o homem perdeu o domínio sobre os meios de produção; sua
subsistência é garantida por um salário, porém a mercadoria que produz pouco ou nada tem a
ver com a sua própria vida, pelo menos é isto que é tomado como realidade, ou seja, trabalho
e vida como instâncias distintas. Entretanto, é a instituição família que se torna forte aliada na
consolidação da ordem burguesa na passagem do século XIX para o XX. A privatização da
vida familiar é um dos pilares desse processo.
190
Idem, p.230.
191
Ibidem, p. 230.
85
A subjetividade individuada, o modo de viver a experiência subjetiva que se
tornou naturalizada na consciência dos indivíduos é uma das características da sociedade
moderna. Ela não é uma idéia sobre o homem, mas uma realidade, um modo de viver sempre
reforçado pela experiência cotidiana. A “posse de um verdadeiro vocabulário de introspecção,
e uma „linguagem da intimidade‟ abundante em adjetivos e advérbios... e fortemente centrada
na utilização da primeira pessoa do singular (eu) como sujeito do discurso”, 192
tanto da parte
de quem busca atendimento psicológico como de quem o atende expressa o quão naturalizada
está a vivência subjetiva na atualidade.
Colocar em discussão alguns aspectos da clínica, no que concerne ao lugar que
ocupa na contemporaneidade, se faz necessário, conquanto ela pode ser também considerada
como um dispositivo de consolidação da ordem burguesa. E tal pode acontecer quando se
exclui, por exemplo “o modo se subjetivação que não se encaixa ao Instrumental Psi” 193
, ou
quando questões do cotidiano não são “ouvidas”, se não remetem a uma interioridade.
Exemplificando: Nas visitas que foram feitas a algumas instituições durante a
pesquisa citada havia, num primeiro momento, uma negativa por parte dos profissionais em
relatar de que forma a violência vivida (ou não) pelos usuários dos serviços de saúde, e quiçá
pelo próprio terapeuta, estaria sendo levada em conta na intervenção clínica; depois éramos
informados, que comumente assuntos relacionados a questões de trabalho, moradia, violência
doméstica, etc. seriam da alçada da assistente social e para ela, portanto, encaminhadas.
Ou ainda, quando não se põe em questão “uma das características das teorias do
psiquismo que é a de pensar o homem enquanto sujeito psicológico universal”.194
Em outras
palavras, as chamadas leis que regem o psiquismo humano foram elevadas a categorias
aplicáveis ao ser humano em geral, desconsiderando-se o contexto sócio-político e cultural em
que as mesmas foram instituídas, ou seja, na Europa; pois, na verdade, por muito tempo se
pensou que a “humanidade” estava lá.195
Era de onde emanava todo conhecimento, cultura e
saber. Não se pode esquecer que o eurocentrismo se fortaleceu a partir do conhecimento de
outras possíveis humanidades.Talvez isso possa explicar o silenciamento sobre o “outro”
racial, e a desqualificação de outras formas de organização familiar que não expressem o
192
BEZERRA, B. op. cit.
193
RAUTER, C. “Clínica do Esquecimento: Construção de uma Superfície”. TESE. Programa de Estudos Pós -
Graduados em Psicologia Clínica. PUC-SP, 1998.
194
BEZERRA, B. op. cit., p.140.
195
SODRÉ, M. op. cit., p. 29.
86
célebre triângulo: papai-mamãe-édipo, protótipo da típica família burguesa, ainda tão
valorizada na atualidade.
Abrir-se, pois a um outro conhecimento de outras possíveis humanidades. Aqui
me reporto a FOUCAULT (1999), quando nos obriga a pensar na emergência do homem tal
como o concebemos hoje; ele é datado, não existiu desde sempre e sendo assim pode
desaparecer. O homem - sujeito e objeto do conhecimento - surgiu num determinado
momento da história e isto faz ver, no nosso entendimento, quanto são frágeis as concepções
que este tem sobre os “outros”. Afinal, quem são esses “outros”?
1. 4. A força dos estereótipos
Malcom X – líder negro norte-americano – em sua autobiografia fala das pressões
que sofrera no colégio, em especial quando quis ser presidente de sua turma no ginásio.
Confessa que não podia agir naturalmente, pentear-se conforme os costumes de sua família;
era obrigado a portar-se segundo o padrão estético dominante, ou seja, apagar em si mesmo
tudo que denunciasse a sua singularidade, a começar pelos cabelos, os quais tiveram que ser
alisados; era o jeito de tentar igualar-se aos brancos para obter seu reconhecimento. Eis seu
depoimento:
Foi o primeiro passo realmente grande para o caminho da autodegradação:
suportar toda aquela dor, literalmente queimar minha carne só para fazer com
meus cabelos ficassem parecendo com os de um branco. Eu me juntava à
multidão de homens e mulheres negros da América que sofreram uma
lavagem cerebral tão grande até acreditarem que os pretos são inferiores e eu
devem até mesmo violar e mutilar os corpos que Deus criou para tentar
parecer “bonitos” pelos padrões dos brancos.196
Malcom X nos revela ainda que ele só conseguiu mudar o que pensava acerca de
si mesmo e mudar seu posicionamento, buscando expressar-se livremente, quando ele
abandonou o ideal de ser o que a sociedade esperava dele, quando deixou de desejar ser
branco, quando parou de incorporar em sua vida valores e tradições tidos como melhores, mas
que pouco lhe acrescentavam, no sentido de expandir suas possibilidades de crescer enquanto
pessoa.
Pensamos que o depoimento de Malcom X ilustra de forma sucinta um processo
eu vem de muito longe, que é a submissão de outras culturas à européia – ocidental e branca –
a qual se atribui uma positividade, um ideal de beleza, uma racionalidade, etc. forçoso nos é
196
HALEY, A. Autobiografia de Malcom X com colaboração com Alex Haley. Rio de Janeiro: Record, 1992.
87
entender que tudo isso se sucedeu como se fosse natural que assim se processasse, sem jamais
desconfiar que essa “brancura” transcende o branco, que ela é reificada e como tal tomada
como realidade autônoma e não como algo inventado num dado momento da nossa História.
Quase sempre se faz referência à produção de saberes sobre o negro, não se
considera que também a brancura é uma invenção, ela não é natural; no entanto tudo o que se
refere ao branco é visto como a expressão de humanidade, daí “a brancura ser vista pelos não-
brancos como sinônimo de pureza artística, nobreza estética, majestade moral, sabedoria
científica, etc.”197
Não é pequeno o repertório de ditos populares e piadas que difundem esse ideal de
civilidade. Eles estão, de tal forma, disseminados no meio social que muitas vezes quem os
profere, ou quem os ouve, pouco se apercebe o quanto eles veiculam preconceitos e
informações deturpadas sobre índios e negros. Sobre os últimos o repertório é vastíssimo!
Há que se acrescentar, contudo, que a brancura não é assim percebida apenas
pelos não-brancos, ela o é também pelo colonizador que, via de regra, jamais considerou a
possibilidade de “os outros” também possuírem uma arte, uma estética, uma moral, um saber,
uma ciência, etc.
O encontro dos europeus com “os outros” resultou no aniquilamento destes, não
porque os primeiros fossem mais competentes, mais inteligentes, ou melhor, adaptados que os
segundos (pressupostos racialistas), mas porque se tratava de uma luta desigual, eram dois
mundos que se confrontavam, com concepções bem distintas. Eduardo Galeano, em seu
memorável “As Veias Abertas da América Latina”, dedica um capítulo inteiro a traçar um
panorama de como foi o início da conquista das Américas que redundou no massacre das
populações nativas. Para os primeiros que aqui chegaram - espanhóis e portugueses – a nova
terra era como a bênção dos céus , o coroamento de sua saga pela conquista do novo mundo,
do qual logo cuidaram de apoderar-se das riquezas, leia-se: ouro. Objeto da cobiça de muitos
povos desde a antiguidade, na América, o ouro estava nas paredes de suntuosos palácios, na
ornamentação de templos, na forma de curiosas esculturas, enfim, grandeza e glória! Porém,
era mais como oferta aos deuses que expressão de poderio dos homens.
Havia de tudo entre os indígenas da América: astrônomos e canibais,
engenheiros e selvagens da Idade da Pedra. Mas nenhuma das culturas
nativas conhecia o ferro nem o arado, nem o vidro e a pólvora, nem
empregava a roda, a não ser em pequenos carrinhos. A civilização que se
197
COSTA, J. F. Violência e psicanálise. Apud NASCIMENTO, M. C. Cada um no seu lugar! Que lugar? Uma
reflexão sobre como se produziram alguns costumes relativos à presença de negros em determinados lugares.
Trabalho de conclusão do curso de graduação em Psicologia. UFF/ Niterói, 1999.
88
abateu sobre estas terras, vinda do além-mar, vivia a explosão criadora do
Renascimento: a América aparecia como uma invenção a mais, incorporada,
junto com a pólvora, imprensa e bússola, ao efervescente nascimento da
Idade Moderna.198
Os europeus, na sua febre pela anexação de terras aos seus domínios, tiveram
como aliados a pólvora, o racismo e também o assombro que provocaram sobre a população
nativa.
Os indígenas foram derrotados também pelo assombro. O imperador
Montezuma recebeu, em seu palácio, as primeiras notícias: um grande
“monte” andava mexendo-se pelo mar. Outros mensageiros chegaram
depois: “...muito espanto lhe causou ao ouvir como dispara um canhão, como
ressoa estrépido, como derruba as pessoas; e atordoam-se os ouvidos. E
quando cai o tiro, uma bola de pedra sai de suas entranhas: vai chovendo
fogo...” (Segundo os informantes indígenas de frei Bernardino de Sahagún,
no Códice Florentino, Miguel Leon-Portilha, Visión de los vencidos, México,
1967.199
Sabemos o quanto foram e ainda são comuns nos manuais didáticos os
comentários jocosos sobre a reação dos indígenas à chegada dos europeus. De igual modo
esse tipo de informação se estende aos africanos, retratados, via de regra, como indivíduos,
cuja contribuição teria sido apenas a de braços nas lavouras e nas minas. E África, como terra
do atraso, quase sempre é apresentada como “lugar de onde vieram os escravos”, como se
esses homens e mulheres pertencessem a uma categoria de seres com atributos próprios à
escravidão, prontos a executar o projeto do branco; este sim, apresentado não só como grupo
capaz de produzir cultura, mas de redimir os demais. Em nome da chamada civilização
ocidental cristã, impérios foram devastados, povos dizimados, vidas reduzidas a simples
máquinas de produzir trabalho, não sem antes assegurar o domínio das riquezas – matéria-
prima para a acumulação capitalista (GALEANO, 1983).
Os “outros” não foram subjugados por inferioridade racial como se tornou comum
afirmar, mas pelo confronto de posições políticas, culturais e religiosas.
Assenhorear-se de bens, tais como, terras, minas de ouro e prata, diamantes,
construir cidades e fortalezas, em suma, intervir sobre a natureza é um fato comum a todas as
culturas, o que as diferencia é a maneira com são realizadas estas ações, o que expressa a
relação que cada cultura tem com a natureza. E a partir do encontro dessa diversidade que os
homens vão inclusive melhorando as condições de vida. O intercâmbio cultural entre
europeus, asiáticos e africanos é de longa data, o que proporcionou o surgimento de
198
GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p.28.
199
Apud Idem. idem (grifos do autor).
89
entrepostos comerciais, povoados e verdadeiros impérios. Podemos, portanto afirmar que os
africanos não foram meros fornecedores de matéria-prima, inclusive braços, eles utilizaram os
conhecimentos e práticas conhecidos no árduo trabalho que lhe foi imposto.
A África, à época dos descobrimentos abrigava uma diversidade de povos e
culturas.
No século XV, podemos afirmar que algumas populações africanas já
haviam atingido um processo de evolução em tecnologia de transformação,
de manipulação do ferro, na produção agrícola de subsistência e no manuseio
do minério, por exemplo, que superava qualquer prognóstico das sociedades
européias. Nesse período, grandes reinados e impérios bem desenvolvidos
podem ser reconhecidos no continente africano. Destaca-se pela refinada
produção artística e pelas relações comerciais com sociedades árabes,
indianas e asiáticas. Tais relações tiveram grande influência nas sociedades
africanas das regiões Norte e Centro-oeste do continente.200
Todavia os negros foram obrigados a esquecer tudo isso, ou melhor, lhes foi
negado conhecer a história de seus antepassados.
Assim como os povos indígenas, as “tribos” africanas foram por muito tempo
consideradas como seres sem história. Como dissemos anteriormente, são modos diferentes
de relação com o mundo. Predominavam nas culturas africanas a tradição oral, o que foi
interpretado pelos ocidentais, não por acaso, como ausência de informação sobre o passado,
apenas porque não transmitido em documentos escritos. Porém, o que dizer dos africanos
islamizados? Alfabetizados em árabe eram letrados, conheciam o Alcorão e como tal
despertaram a ira dos colonizadores. Segundo João José Reis, “foi duro para uma sociedade
onde a etnia dominante, os brancos , continuava predominantemente analfabeta, aceitar que os
escravos africanos possuam meios sofisticados de comunicação.”201
É em torno do Alcorão
que se dá, na Bahia, a revolta dos Malês, 1835.
Foi também o encontro com o Islã que provocou a transformação na vida de
Malcom X. Quando se deu conta do quanto desconhecia da história de sua gente, percebeu
que poderia construir uma nova vida, sem se envergonhar de sua aparência nem do passado de
seu povo.
A idéia de um sujeito escravizado por que vindo de uma terra atrasada, incapaz de
produzir cultura, impede que os brasileiros, em especial os negros, tenham uma apropriação
200
SILVA, M. R. Reflexos da diáspora africana no Brasil. In: NOGUEIRA, J. C. História dos trabalhadores
negros no Brasil. Vol. 1. são Paulo: CUT, 2001, p. 20.
201
REIS, J. J. Rebelião escrava no Brasil. Apud BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Rio d
Janeiro: Revan, 2003, p. 24.
90
positiva de sua história. A desqualificação de sua cultura e de sua história o faz desejar ter
nascido branco, ou, na medida do possível, igualar-se ao branco.
Desejo que, nos depoimentos colhidos por Neusa Santos Souza (1983), aparece
nas falas de seus interlocutores – homens e mulheres negros – cujas histórias de vida são uma
amostra de como esses sujeitos são continuamente forçados a negar (ou esquecer) as próprias
origens. Outrossim, as experiências de vida retratadas no texto são uma amostra viva de como
operam os estereótipos raciais, de modo que, na sua totalidade, os entrevistados falam de si
mesmos a partir das expectativas que a sociedade branca, racista têm para com eles. Como a
própria autora afirma:
Autodesvalorização e conformismo, atitude fóbica, submissa e
contemporizadora são experiências vividas por nossos entrevistados,
humilhados, intimidados e decepcionados consigo próprios por não
responderem às expectativas que se impõe a si mesmos, por não possuírem
um Ideal realizável pelo Ego.202
A reversão desse estado de coisas é a condição de possibilidade de os negros
alcançarem a saúde psíquica. O que ocorrerá mediante a recusa em submeter-se às exigências
de uma sociedade que os coloca em condição de inferioridade, obrigando-os, aberta ou
sutilmente, a recorrerem a uma série de artifícios para compensar o “defeito” de ter nascido
negro, o que vai se dar à custa de muito sofrimento, posto que “o negro que elege o branco
como Ideal do Ego engendra em si mesmo uma ferida narcísica, grave e dilacerante” 203
. Para
reverter esse estado é preciso uma atitude de recusa frente às demandas que lhe são impostas.
Segundo Neuza, a condição de cura dessa ferida exige do negro a
construção de um outro Ideal de Ego. Um novo Ideal de Ego que lhe
configure um rosto próprio, que encarne seus valores e interesses, que tenha
como referência e perspectiva a História. Um Ideal construído através da
militância política, lugar privilegiado de construção transformadora da
História.204
1. 5. Uma situação desconfortável, porém não incomum
Vivemos num país em que o acesso à educação é antes visto como privilégio de
classes do que como um direito de todos. Embora desde a primeira carta constitucional após a
202
SANTOS, N. S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1983, p. 41.
203
Idem, idem.
204
Idm, p. 44.
91
independência declarar que cabe ao Estado a garantia da educação básica a todos os cidadãos
brasileiros, a realidade de grande parte da população denuncia a não regulamentação a
contento desse princípio constitucional. Dentro desse contexto, tornou-se comum o
surgimento de instituições que têm como objetivo atender às demandas dessa população.
Pensamos que podemos aqui destacar aquelas iniciativas ligadas principalmente aos colégios
confessionais que, via de regra, eram freqüentados pelos filhos das classes mais abastadas,
cabendo aos demais, o atendimento em anexos dessas instituições nos quais o ensino
profissionalizante, tal como nos referimos anteriormente, ocupava o lugar central. Podemos
afirmar que a lógica de funcionamento nesses espaços é a mesma que foi instaurada nos asilos
e casas de correção de “menores”, nos quais o trabalho é visto como fator de
recuperação/inclusão. Só um detalhe: isto não é passado, é atualíssimo!
Um olhar atento para a arquitetura desses espaços de “educação” pode ser
revelador de como estão demarcados os limites numa sociedade hierarquizada como a nossa;
vai inclusive, detectar a atualidade da “casa grande” e da “senzala” embora esses termos
tenham saído de uso por fazerem referência a uma relação de trabalho já “superada”. No
entanto, nesses espaços é como esses dois mundos permanecessem ativos. É assim que, num
evento onde se discutia a realidade do negro brasileiro por ocasião do 13 de maio, neste ano,
uma participante do encontro falou de sua impressão ao adentrar naquele local, um desses
espaços de atendimento aos filhos das chamadas classes populares. Ela, com lágrima nos
olhos, falava de como se sentira ao percorrer o caminho para chegar ao local do encontro cujo
acesso é dificultado pelo fato de estar implantado numa área mais distante do prédio principal
da instituição do qual é parte integrante. Como se voltasse no tempo, ela se vira, como se nada
tivesse mudado, era nítida a separação entre aqueles dois mundos; era como estivesse
caminhando para a senzala, tal maneira com se dispõem esses espaços. Ali, na senzala ela se
sentia no meio dos seus, empobrecidos, humilhados pela grandiosidade da casa grande, a
cujos portões não têm acesso, salvo em condições especiais - que são cada vez mais raras -
quando interessa aos habitantes da casa grande afirmar algum projeto de inclusão social
Na verdade, constatamos que são dois mundos, no entanto, eles são expressão de
uma mesma realidade, pois se atravessam continuamente, apesar de distanciados pela situação
de classe. Com o seu depoimento, aquela participante chamou a atenção de todos para o
“lugar” que sistematicamente os negros vêm ocupando na sociedade, e com que naturalidade
isto é encarado. O que é revelador da particularidade do racismo à brasileira cuja insistência
em negá-lo favorece a reprodução da “ordem hierárquica diferenciadora entre brancos e
negros, ampliando as desigualdades sociais e nutrindo uma série de tropos sociais para a
92
raça.”205
Por mais bem intencionadas que sejam, as práticas desenvolvidas nos espaços sobre
os quais estamos nos referindo mais consolidam lugares e fortalecem as fronteiras de classe
do que contribuem para que os sujeitos que ali freqüentam tenham uma visão crítica de sua
realidade. É no cotidiano dessas instituições que se pode notar como as relações sociais são
atravessadas por preconceitos, os quais são reveladores da falta de informação, ou de
informação deturpada sobre o outro.
Telma - educadora de uma dessas instituições - fez o relato de um episódio
vivenciado por um aluno que, num certo dia, lá chegara desesperado, chorando muito e quase
não conseguindo explicar o que tinha ocorrido. Com alguma dificuldade, conseguiu dizer o
que tinha se passado numa aula de história do Brasil na escola onde estuda, quando um colega
o identificou e também sua mãe às figuras de escravos estampadas no livro. Eram as figuras
de um negro amarrado ao tronco, com as calças abaixadas em situação humilhante, sendo
açoitado por um feitor, e uma mulher com um cesto enorme de frutas na cabeça. O menino,
negro, não gostou da comparação e, sentindo-se ofendido, acabou batendo no colega, sendo
por isso levado até à direção da escola, onde foi repreendido. Segundo ele, a direção da
escola lhe teria dito que comunicaria o fato à instituição supracitada. Por conta disso ele
estava tão assustado, achando que poderia ser dali afastado.
Telma, juntamente com outros educadores, vêm, já há algum tempo, trabalhando
com as crianças e adolescentes daquela instituição, questões relativas à problemática e cultura
negras e pensa que este foi o motivo do encaminhamento do caso para ela pela coordenadora
da instituição que havia acolhido o menino. Ela ouviu o menino, procurando acalmá-lo,
apontando aspectos positivos da obra dos trabalhadores, cuja maioria enfrenta condições
precárias de trabalho: não têm boa aparência, são mal vestidos, ficam sujos, etc. Falou da
importância do trabalho dos seus (nossos) antepassados para o país; insistia, portando, para
que ele se desvencilhasse das imagens que tanto o constrangera.
O menino negro quase foi suspenso da escola porque bateu no colega, Certamente
o motivo da briga será minimizado, o menino – o “agressor” foi humilhado, passou por
constrangimento por ser negro. No entanto, prevalecerá a sua atitude “agressiva”. A primeira
agressão não foi considerada, (pelo menos que se saiba). A atitude da direção do colégio, ao
ameaçar o “agressor” com a suspensão o despontecializa quando ele tenta defender-se ao se
sentir ofendido e fortalece o outro na sua posição de superioridade por ser branco.
205
GUIMARÃES, A. S. A. op. cit. p. 63
93
A coordenadora da instituição encarregou-se de encaminhar o caso. Entretanto,
Telma acha pouco provável que ela tenha entrado em contato com a escola para investigar o
ocorrido, também não teve notícia de que o colégio onde o menino estuda tenha contatado
aquela instituição, conforme havia sido prometido ao menino. O tempo foi passando e
nenhuma providência tinha sido tomada. De qualquer forma, Telma acha que esta seria uma
tarefa para o grupo de estudos206
. Seria, pois, uma tarefa do grupo e não dela individualmente,
no que concordam os demais membros do grupo. Estes chegaram a sugerir que poderiam
tomar esse tipo de episódio como material para possíveis intervenção em escolas.
O interessante foi percebermos que, tal como em situações semelhantes, tudo
caminha para o “desfecho” habitual, ou seja, a questão principal, a humilhação - o
constrangimento que o indivíduo sofre por ser negro - vai sendo posta no esquecimento,
silenciada. A rotina de adiamentos é característica desse tipo de ocorrência. No momento em
que o fato ocorre há uma espécie de consternação geral, falas indignadas, denúncia de fatos
semelhantes, etc, para, em seguida, uma falta de interesse, ou melhor, o assunto “perde”
substância;é logo substituído por outros mais “relevantes”. E assim vão se somando aos
assuntos pendentes... Mas no grupo de estudos o assunto suscitou o interesse dos participantes
que chegaram a discutir sobre o conteúdo de imagens veiculadas nos desenhos e quadros
ilustrativos do período colonial207
. Outrossim, consideraram chegada a hora de intervirem,
posto que, passados já quase dois meses, não houve iniciativa por parte da coordenação em
avançar a investigação sobre o assunto. Acharam aquele episódio tão emblemático que o
utilizaram como tema de oficina em encontro anual de educadores daquela instituição. Muitos
participantes dessa oficina afirmaram já ter vivido aquela experiência.
Acreditamos que a experiência vivida por aqueles meninos nos fornece algumas
pistas sobre os efeitos de um discurso veiculado por meio de gravuras e desenhos sobre os
negros no período da escravidão. Ainda comuns nos compêndios escolares, essas figuras,
reproduzem, até mesmo de forma caricaturada, um certo olhar e um certo saber sobre o negro.
Em que pese o impacto que esse tipo de material pode provocar, pensamos que o mais
preocupante é o uso que é feito dele pela escola, porque ele - o material (livro didático,
cartazes, revistas, etc,) - serve como auxiliar do professor no desempenho de sua tarefa – a de
206
Grupo de Estudos Ngunga.Trata-se de um grupo de estudos formado a partir de nossa participação junto aos
educadores daquela instituição. O objetivo do grupo é estudar as questões relativas ao negro na sociedade
brasileira, o racismo e problematizar as práticas que o legitimam.
207
Tomou-se por referência a reflexão da autora do texto em estudo: SCHWARCZ, L. M. Sob o signo da
diferença... op. cit.
94
educador. Infelizmente, a Lei nº 10.639/03 que determina o ensino da História da África
nas escolas de ensino fundamental e médio, ainda não é cumprida, e são tímidas as
iniciativas no sentido de efetivá-la. Entendemos que a implementação dessa lei seria um
recurso importantíssimo no sentido de promover uma outra percepção e um outro olhar sobre
a África e, por conseguinte, sobre o negro.
Podemos fazer uma leitura da reação dos estudantes envolvidos no incidente
supracitado. À primeira vista poderíamos apenas pensar no fato de o menino branco ter
utilizado uma imagem estereotipada para ridicularizar o negro e este ter se sentido humilhado
frente a algo que, de alguma forma, lhe dizia respeito, afinal ali estava retratado um pedaço da
história de seus antepassados. Contudo pensamos que a reação do segundo pode ser tomada
como uma recusa em colocar-se no lugar da submissão, da impotência. O lugar que lhe é
conferido no modo de subjetivação dominante
É nas engrenagens de produção de subjetividade que vamos incluir as atitudes de
professores e dirigentes escolares quando fazem calar o aluno que “atrapalha” a aula. Por que,
ao invés de retirar o aluno de sala e enquadrá-lo na tarja de aluno de mau comportamento, não
se buscou olhar para o que a reação desses meninos estava sinalizando? Podemos detectar na
ação dos profissionais de educação aquilo que GUATTARI e ROLNIK (1989) chamam de
atitude normalizadora que é a de tomar o ocorrido como apenas um problema de menor
monta, dar-lhe um significado e integrá-lo dentro das rotinas estabelecidas. Uma outra
maneira de conduzir a questão seria o que chamam de atitude reconhecedora e, neste caso, a
saída seria tomar reação do aluno negro como uma recusa em ocupar um lugar que a
subjetividade dominante – manifestada na fala do branco - estava lhe impondo. A partir daí,
tentar desfazer as estratificações dominantes, os estereótipos, os lugares estabelecidos, as
“verdades” veiculadas nos livros didáticos e nos meios de comunicação, etc. Desse modo,
aquele material até poderia ser utilizado, desde que para discutir outros elementos da
realidade que aquelas imagens também veiculam. A reação do negro foi bater no colega, mas
quem garante que aquilo também não incomodou outros alunos, mesmo os brancos? Só que
não se manifestaram do mesmo modo. Podemos vislumbrar em certos comportamentos – até
numa agressão física - a expressão de uma singularidade, de uma maneira de existir de modo
autêntico. A atitude reconhecedora cuida de “fazer a gestão dos fenômenos de singularidade
presentes na situação”.208
208
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. - op. cit. P. 51
95
CUNHA (2001), defende com muita veemência a necessidade de introdução de
conteúdos no ensino de História nas escolas, desde as séries iniciais, que levem em conta a
grande diversidade cultural de nossas crianças, considerando que a grande maioria dos nossos
livros didáticos pouco tem a oferecer em termos de uma abordagem menos racista com
relação a participação dos africanos na formação da sociedade brasileira. É urgente que se
que sejam fornecidas aos alunos - negros e brancos - informações menos carregadas de
preconceitos.
Um ponto é interessante considerar: muitas informações que temos acerca do
cotidiano nos tempos coloniais nos foram fornecidas pelos muitos viajantes estrangeiros que
aqui vieram, muitas vezes com o intuído de observar como se desenvolvia a vida nas colônias.
Não podemos esquecer que a presença desses indivíduos também se explica pelo interesse em
justificar o prognóstico pouco animador que faziam acerca do futuro do país, devido a grande
miscigenação que aqui acontecia. Isto era visto como sinal de um futuro pouco promissor,
posto que acreditavam que a miscigenação era responsável pelo declínio das civilizações.
Mais do que isto, as raças “inferiores” não seriam sequer capazes de construir uma
civilização, de sorte que nas imagens que faziam dos indivíduos pertencentes a essas raças
transparecia todo o preconceito que tinham com relação aos negros e índios.
Embora não disponha de dados estatísticos que comprovem o efeito, sobre a vida
de crianças e jovens negros, de certas imagens ainda veiculadas, inclusive nos livros
didáticos, temos a convicção – a partir do ocorrido naquela escola - de que algo precisa ser
feito. Constatamos que a implementação da Lei nº 10.639/03, cujo objetivo é o de
proporcionar aos estudantes uma compreensão mais realista dos processos históricos, a partir
da aquisição de conteúdos mais significativos e mais coerentes, pode também contribuir para
a alteração desse quadro. Talvez se possa perguntar: em quê isso influenciaria, no atual estado
de coisas? Muitos dirão: “Ah!... isso são águas passadas!” Entretanto, essa água continua
inundando nossas mentes e pautando nossas ações. A reação dos estudantes aqui relatada está
aí a demonstrar o quanto os estereótipos raciais são atuantes e, portanto, produtores de
realidades. Eles são produto de uma engrenagem muito poderosa, de uma máquina que produz
gente, a maioria convencida de que os conteúdos dos livros traduzem a realidade. Não nos
damos conta de que o que está documentado nos livros é uma certa versão da história, que
atende a interesses nem sempre confessáveis, e talvez um deles seja esse mesmo, produzir a
sensação de impotência frente aos fatos e às “fotos” (gravuras, desenhos dos tempos
coloniais). Cabe aqui pontuar que com relação aos negros brasileiros há um grande
silenciamento e uma certa versão ainda dominante sobre a sua presença e atuação na
96
construção do país. Via de regra, o que sabemos está circunscrito ao contexto de produção de
saberes sobre os chamados elementos formadores do povo brasileiro. Nele o negro é
costumeiramente visto como escravo, como mero cumpridor de ordens e seu saber é
continuamente “desqualificado em função de outros interesses e racionalidades.”209
De um
modo geral, “não se credita a ele (escravo ou liberto) a invenção de modos de vida ou
intervenção sobre os costumes, e tampouco é visto como ser capaz de pensar sobre a sua
própria condição.”210
Nas palavras de CUNHA: “associou-se à idéia do escravo, a do
africano e do negro, como sinônimos e a estes apenas a idéia do escravo como fator de
produção”211
de sorte que, se depender tão somente das informações constantes nos manuais
didáticos, pouco se tem sobre nossa história, cujo desenrolar comportou o trabalho escravo,
porém, a relação que havia entre escravizados, libertos e homens livres foi bastante intensa212
de modo que muito se construiu no sentido de um intercâmbio de saberes, de produção de
modos de vida, além da participação conjunta em irmandades, quilombos, festas, etc. Há
ainda que levar em conta que a história do povo brasileiro é também uma história de lutas,
revoltas e insurreições, algumas delas protagonizadas por escravos sublevados. Entretanto, o
cotidiano de lutas do povo brasileiro é desqualificado e posto no esquecimento, em função da
veiculação de informações que tem o objetivo claro de produzir a impotência, a submissão; tal
como nos aponta COIMBRA (2001), a produção do esquecimento também faz parte das
estratégias de produção de sujeitos aptos à ordem capitalista.
Cremos poder afirmar que temos pelo menos duas leituras dos acontecimentos,
podemos dizer uma oficial, a que serve aos interesses editoriais, educacionais, ou políticos e
outra que seria a que se transmite entre os interessados em extrair da história algo que os
fortalece em suas lutas por melhores dias. Neste caso, é comum recorrer-se aos personagens
209
CHALHOUB, S. medo branco de almas negras: escravos e libertos e republicanos na cidade do rio de
Janeiro. In: Discursos sediciosos: crime direito e sociedade. Instituto carioca de Criminologia. Rio de Janeiro:
Relume Dumará. Ano 1, n. 1, 1996, p. 169.
210
NASCIMENTO, M. C. Memórias silenciadas: devoção e cultura na Irmandade de são Benedito de Angra dos
Reis. Monografia de Conclusão de Curso (Especialização: Raça Etnias e Educação no Brasil). UFF. Niterói,
2003, p.31.
211
CUNHA, H. Etnia afrodescendente e o ensino de História do Brasil. In: MARTINS, J.; LIMA, M. J. R. (Org).
educação, etnias e combate ao racismo. Cadernos de Educação, n.3. março 2001, p. 59.
212
Flávio dos Santos Gomes (1996) refere-se à existência de uma complexa rede social, a qual denominou
“campo negro”. Uma rede que podia envolver, em determinadas regiões escravistas brasileiras, inúmeros
movimentos sociais e práticas sócio-econômicas em torno de interesses diversos. O “campo negro”, construído
lentamente, acabou por se tornar palco de luta e solidariedade entre os diversos personagens que vivenciaram os
mundos da escravidão. Mais sobre o tema, consultar: GOMES, F. S. Quilombos do Rio de Janeiro no século
XIX. In; GOMES, F. S. (Org). Liberdade por um fio. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
97
do passado, nos momentos em que se faz necessário o apego a algo que potencialize os que
comungam de um mesmo ideal. RAUTER (1998) afirma que “a história produz o futuro
quando ela serve de ferramenta para a ação, como nos momentos em que os povos tomam um
herói do passado para construir o futuro” 213
. Nesse ponto pensamos que seja possível darmo-
nos conta do estrago que o racismo produziu (e produz) nas mentes e nos corações dos
brasileiros. Zumbi dos Palmares foi morto pelas forças da ordem em 1695 e por muito tempo
seu nome foi associado à assombração, só a partir do trabalho de resgate de sua memória ele
passou a ser cultuado como herói, como figura de referência para o movimento de libertação
do povo negro. O resgate do lugar de Zumbi na história de lutas dos brasileiros é também
uma outra leitura sobre os povos escravizados, um outro saber sobre o negro, é a
desconstrução da idéia ainda dominante sobre os negros, e igualmente sobre os índios, pois
são os dois grupos que não estão incluídos na “norma psico sócio-somática criada pela classe
dominante, branca ou que se autodefine desta maneira” 214
. É, sobretudo, recusar os heróis
produzidos a partir da manipulação dos fatos históricos em favor dos interesses das classes
dominantes, leia-se, do capital. Trata-se de uma tarefa exaustiva, porque a imagem de Zumbi
incomoda, ela perturba, porque em seus traços não estão presentes aquilo que o Ocidente
consagrou como ideal de beleza, de humanidade, de caráter. Talvez para alguns, Zumbi ainda
encarne a subversão à ordem estabelecida, quando se a toma como a ordem, ou ainda é
assombração. Para outros, a figura de Zumbi ainda é utilizada para ridicularizar o negro, tal
como aconteceu durante a visita de um grupo de alunos a uma instituição na qual havia a
figura de Zumbi afixada à porta de uma sala de aula intitulada “sala Zumbi dos Palmares”.
Logo que avistaram tal figura, os estudantes começaram a caçoar do único negro presente
entre eles. O menino ficou muito sem graça e o professor nada falou. Achamos que o fato
por si só é explicativo do que acontece na nossa sociedade e expressa o racismo nela presente.
213
RAUTER, C. op. cit, p. 72.
214
COSTA, J. F. Violência e Psicanálise.Apud NASCIMENTO, M. C. Cada um no seu lugar... - op. cit, p. 9.
98
2. Apostando na possibilidade de construção de outros mundos
Todo corpo possui a sua própria essência, única, singular, nunca genérica ou
específica, mas diferente de todas as outras, e até diferente de si mesma na
medida em que se desenvolve no tempo, no passado e no futuro. É por isso
que a filosofia estóica privilegia as diferenças e destitui as Idéias universais
ou as Identidades dos objetos gerais. (FUGANTI, 1990)
Pensamos que um desafio se coloca àqueles que estão envolvidos no ensino das
ciências sociais ou psicológicas e aos que desenvolvem trabalhos no campo social. Porque
duas alternativas aí se colocam: ou serem simplesmente mantenedores da ordem ou serem
comprometidos com a desconstrução da mesma. No primeiro caso, estão incluídos aqueles
que nos sistemas terapêuticos ou nas universidades agem como simples depositários ou canais
de transmissão de um “saber científico”; uma posição que reforça os sistemas de produção de
subjetividade dominante. No segundo, os que se interessam por atividades voltadas para a
transformação subjetiva, os que se envolvem em trabalhos voltados para a construção de
estratégias de resistência frente aos processos subjetivos de captura, para a construção de
linhas de fuga.
Mas então, que fazer? Que estratégias adotar para termos uma sociedade sem
racismos? É isso possível? Como concretizar esse desejo?
Bem, não é nosso propósito responder a essas perguntas, como se isso se bastasse
ou se fosse possível respondê-las satisfatoriamente. Sugerimos antes um exercício de pensar,
ou mais que isso: admitir que é possível outras formas de sociabilidade.
Sem querer traçar caminhos, lembramos, de início, ser fundamental ter em mente
que a luta contra as diferentes formas de segregação também tem que se dar “ao nível em que
se articula, efetivamente, a construção, a produção de subjetividades.”215
É nesse ponto que
GUATTARI e ROLNIK entendem ser frutífera, na luta contra o racismo, o abandono de uma
posição defensiva , que apenas reivindique direitos, mas que se adote uma posição ofensiva,
indo mais fundo na questão evocando devires (seja ele negro, mulher, criança, índio, etc.),
entendendo que qualquer um pode entrar num devir negro, por exemplo, porque o devir não
tem nada a ver com cor da pele ou qualquer outra característica física. Não tem nada a ver
com as estratificações dominantes ou com as representações. Na verdade estas são as
215
GUATTARI, F; ROLNIK, S. Op. cit. p.78.
99
instâncias que estão constantemente aprisionando os processos de singularização216
e os
enquadrando em “referências de equipamentos coletivos e segregadores”.
Todavia, é preciso estar atentos para não transformá-las em modelos; seria uma
espécie de “recaída” num processo de “cura”. Portanto, ao invés de perscrutar um modo de ser
“genuinamente” negro, que tal enxergar – invocando o “olho vibrátil” – “faíscas de negritude”
por entre as chamas de nossa “brasilidade” tão ávida por fazer-se, mas sistematicamente
abortada pelos arautos de um Brasil civilizado aos moldes europeus.
“Faíscas da negritude” – devires intensos – que fizeram dos quilombos, das
irmandades de negros, da capoeira, das escolas de samba, dos cortiços, etc. espaços de
criação e de solidariedade. O mesmo sentimento de solidariedade que vimos/vemos presentes
nos mutirões para reerguer casas e roças derrubadas pelas intempéries e/ou pelo latifúndio,
nos lamentos das senzalas...
“Faíscas de negritude” presentes no jongo, congada, lundus, batuques, choros,
jazz, spirituals, samba, blues, hip hop, funk, ritmos destrutivos, por isso “perigosos”, uma
outra estética que se fazia e se faz presente, contagiando qualquer um que se deixava e se
deixa afetar pelo que não pode ser reduzido, nem codificado porque é sopro vital. Por mais
forte que seja a tentativa do capital, no sentido de extrair ao máximo tudo o que pode
transformar em mercadoria, para alimentar sua sede insaciável de lucro, a fonte de onde tudo
isso emana mantém-se viva. Podemos comprovar isto na produção incessante dos nossos
artistas, dos nossos jovens, na revitalização de certas formas de convivência comunitária que
pareciam não ter mais lugar no mundo globalizado.
Devir intenso porque não tem pátria, nem família, aliás, estas são abstrações
oriundas de um poder que separa os homens, impedindo-os de serem fraternos e portadores de
alegria. Devires que eclodem em quaisquer lugares e provocam alterações – às vezes
imperceptíveis – na “pele” que recobre a subjetividade. No entanto, sabemos que o “corpo”
por eles tocados jamais voltará ao “estado originário” porque aí se produziu uma dobra e uma
nova constelação se configura, uma outra paisagem se descortina, um ser humano cuja
existência é uma multiplicidade e por isso mesmo não redutível a referenciais pré-
estabelecidos.
216
“O termo „singularização‟ é usado por Guattari para designar os processos disruptores no campo da produção
do desejo: trata-se de movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalística, através da
afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outra percepção, etc. Guattari chama a atenção para a
importância de tais processos, entre os quais se situariam os movimentos os quais, as minorias – enfim, os
desvios de toda espécie.” Idem, p. 45.
100
“Faíscas de negritude...” nas trancinhas, no gingar da passista, do mestre-sala e da
porta bandeira, do rei congo, da baiana, da mãe preta, no gostinho bem brasileiro da feijoada,
do angu, da cocada, do acarajé, da pipoca, de tanta coisa...
Devires intensos...múltiplas saídas, mil modos de fazer-se, inúmeras formas de
estar, de ser negro/negra , posto que nossa proposta é a de não apegarmo-nos a formas pré-
estabelecidas, mas juntamente com os envolvidos construirmos dispositivos que
desnaturalizem os lugares estabelecidos, ou que, pelo menos, provoquem rupturas com o
modo de subjetivação dominante.
É nas nossas andanças, encontros, conversas informais, reuniões, debates,
consultório, grupos de estudo, em suma, é no cotidiano, que damo-nos conta do quanto os
lugares e os sujeitos estão naturalizados, de como a “raça” e a cor “negra”, estão aí a lembrar
uma certa estética, um certo ideal de beleza, um certo modo de ser nem sempre valorizados.
De igual modo, não faltam depoimentos de negros e negras que se dizem pouco à vontade nos
espaços onde atuam, que se sentem diminuídos em sua condição “racial”, que vivem situações
de contínuo stress por causa da cor, que têm dificuldades de reivindicar direitos, etc.
São diversos os momentos de ocorrência de situações desconfortáveis, de
discriminação mesmo. Após o relato de alguma experiência, uma questão fica: que fazer?
Pergunta muitas vezes acompanhada da sensação de que não há saída ou de que esta situação
ainda vai perdurar muito, principalmente quando se trata de episódios nos quais a atuação da
polícia é explicitamente racista. Foi assim que um mestre de capoeira fala da revista a qual
apenas ele foi submetido, quando de uma batida policial no ônibus em que retornava para
casa. Conta que se sentiu mais ameaçado ainda quando indagou ao policial sobre o porquê de
haver se dirigido diretamente a ele, após passar pelos demais passageiros. Foi “convidado” a
calar a boca, caso contrário a situação iria piorar para ele, para quem não restou outra saída
que não fosse deixar-se revistar. Nessas situações percebe-se na prática policial a atualidade
do discurso racista. Parece-nos que a ira do policial faz sentido na medida em que a figura do
capoeirista era ela mesma um discurso, a afirmação de uma “negritude”. Suas roupas, seu
penteado rastafari, seus colares, tudo lembrava e afirmava uma certa estética; uma forma de
expressão que ainda suscita no aparelho policial a “necessidade de vigilância”. Isto só vem a
confirmar que o saber produzido nos órgãos de vigilância e controle da população fornece
aos mantenedores da ordem – a polícia - os instrumentos necessários para exercer seu papel.
101
A polícia sabe a quem se dirige, conhece seu alvo, por isso pode agir. Esta é a máxima que
baliza as ações policiais217
.
De igual modo, a polícia está sempre desconfiando dos que tradicionalmente não
podem ser donos. Uma senhora presente numa dessas discussões afirmou que
sistematicamente a polícia pede os documentos do seu filho. Este é motorista particular, leva
o filho do patrão para a escola todos os dias, estaciona no mesmo lugar, mas quase sempre é
interpelado pela polícia; conta que certa vez, ele só se viu livre do policial quando o menino
saiu do colégio, veio ao seu encontro e confirmou que ele estava ali a trabalho. Ela conclui,
com uma certa resignação, que foi preciso uma criança branca para livrá-lo de uma ocorrência
policial.
Nesses fatos do cotidiano podem ser verificados o quanto as personagens
envolvidas estão aprisionadas aos estereótipos raciais. Mas prossigamos, reportando agora a
situações em que os protagonistas desenvolvem trabalhos voltados para a temática do
enfrentamento do racismo.
Numa das reuniões do grupo de estudo Ngunga, sobre o qual já nos referimos
neste trabalho, três mulheres falaram sobre trabalho que tiveram e têm com seus filhos devido
a dificuldades por eles enfrentadas nos espaços que freqüentam, em especial no colégio e na
igreja, pelo fato de serem negros, falam da necessidade de estar a toda hora marcando um
lugar. Uma delas fala que sempre estava insistindo em sentar-se nos bancos da frente, quando
lhe era apontado um lugar mais atrás, ocasião em que se valia da sua posição de catequista
para ocupar aquele lugar, numa igreja cujos freqüentadores são majoritariamente brancos.
Fala da dificuldade de seus filhos no colégio, no qual eram por vezes pouco aceitos por suas
características físicas (cor, tipo de cabelo). Acha que sua filha, embora use trancinhas,
assimilou a mesma postura e gestos “brancos”, no modo de ajeitar os cabelos, balançá-los,
torcê-los sobre o pescoço e colo. Gestos característicos das meninas brancas do colégio, cujos
cabelos lisos e longos são constantemente manipulados (alisados, alongados) com as mãos ,
ou seja, jogados ao vento, com um balançar de cabeças; gestos que vemos repetir-se
217
Neste ponto que Fabiano Monteiro (2003), coordenador do Cerena*explica que a trabalho feito com os
policiais no sentido de “conscientizá-los” de suas práticas racistas deveria ter um outro enfoque. Ao invés de
falar dessas práticas, problematizar com os policiais a forma como eles percebem e concebem a ocupação dos
espaços urbanos, especialmente por aqueles sujeitos que tradicionalmente são alvo das suas ações.
*CERENA – “Centro de Referência Nazareth Cerqueira” órgão vinculado à Secretaria de estado de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro. Dentre os programas ali propostos, desde sua criação no ano 2000, o Disque-Racismo
foi o que mais se destacou. Houve também um esforço, por parte dos participantes do programa, em desenvolver
trabalho voltado para a formação dos policiais, no sentido de propor mudanças no tratamento com negros,
mulheres, deficientes físicos, homossexuais, etc.
102
freqüentemente na televisão, em especial nas propagandas de xampus e cremes, exaltando um
certo ideal de beleza.
Outra mãe comenta que tem duas filhas. Considera que uma delas, cujos traços
“brancos” são bastante evidentes, não teve dificuldades em inserir-se no grupo dominante.
Contudo, acha que esta tem consciência de sua ascendência negra, pois ela – a mãe - nunca
sentiu de sua parte qualquer rejeição por ser negra. Entretanto, sua outra filha teve mais
dificuldades no colégio, nela os traços “negróides”, em especial os cabelos, são bem evidentes
e embora ela afirme ter resolvido essas questões, já é inclusive uma universitária, ela (a mãe)
acha que não é bem assim. A jovem vive “brigando” com o cabelo, alisando-o a todo custo e
não aceitando qualquer sugestão dela sobre como cuidá-los. A mãe percebe que existe mais
do que um cuidado com o cabelo, vê no fato de querer alisá-lo o desejo de escondê-lo, que ela
se sente diminuída com o cabelo que tem. Esta mãe se angustia um pouco porque não
consegue conversar com sua filha sobre tudo isso.
A referência a este “tipo” de cabelo fez com uma das mães dissesse que já fora
abordada e questionada sobre porque não “melhorava” a aparência de seu cabelo (ela os deixa
ao natural). Ao que ela retrucou, dizendo que assim é o seu cabelo, que assim se sente bem e
bonita; pontuou que ela o trata, sim, mas que não pretende alterá-lo, se sente bem com o
cabelo que tem; embora não sendo liso, ele tem também beleza. É isto. Uma coisa bem
simples, ela tem um jeito de cuidar de sua beleza, um modo de se articular com o que a
rodeia, com o cabelo, com as roupas, com as palavras,... é a sua singularidade!
Elas falaram, a seguir, dos efeitos da hegemonia de um certo ideal de beleza, dos
padrões europeus, brancos, sobre o comportamento das crianças e jovens com os quais
trabalham. Estes têm dificuldades de se retratarem positivamente, isto é, fazem o desenho de
si mesmos e dos colegas a partir dos estereótipos que lhes são impostos. Difícil fazerem um
auto-retrato onde apareçam os traços “negróides” sem caricatura. O rosto é o mais difícil de
fazer, quase sempre desistem de desenhá-lo.Por tudo isso concluem que, nos aspectos
relativos à “raça”, há muito que trabalhar.
O rosto é o mais difícil de fazer! Todavia ele subsiste, nos incontáveis homens e
mulheres que na diáspora africana cuidaram de mantê-lo vivo através dos anos. É o rosto do
trabalhador do campo e da cidade, do migrante, dos sem-terra, do prisioneiro, dos deserdados
da sorte, mas é também o rosto do poeta, do músico, do médico, da mãe-de-santo, da
professora, do jornalista, do escritor, da dona de casa, etc.. São incontáveis os rostos “negros”,
como também incontáveis os rostos “brancos” e de outras cores que compõem a humanidade
tão rica e variada em sua expressão. Talvez a dificuldade de delinear esses rostos possa ser
103
minimizada se tentarmos não nos fixar em modelos, mas os tomarmos como expressões
momentâneas, fugazes, porque essas formas não estão adstritas a uma “raça” e seu contorno
está em constante mutação. Embora certos traços sejam mais freqüentes entre os membros de
determinado grupo, eles não devem ser vistos como algo em si mesmo., o bastante para
definir um tipo “racial” supostamente inferior ou superior. Não é tarefa fácil, posto que
estamos constantemente bombardeados com imagens que nos remetem a modelos, à formas
tornadas símbolos de beleza, de comportamento, etc.
Urge desfazermo-nos das representações e com isto libertamo-nos das prisões nas
quais fomos jogados pela subjetivação capitalística. Em se tratando da clínica psicológica,
livrarmo-nos do engodo de ver, na dificuldade de desenhar o rosto “negro”, a expressão de
algo de ordem interna do sujeito. Os episódios relatados foram vividos pelos envolvidos em
suas existências particulares, no entanto dizem respeito a uma construção que é social. É no
coletivo que elas estão sendo colocadas, é ali que precisam ser discutidas e os membros desse
coletivo chamados a problematizar e desconstruir essas formações.
Estamos como que amarrados às significações que nos são impostas desde a mais
tenra idade; desde muito cedo as crianças são bombardeadas com imagens e sons que lhes
conformam a uma certa organização de mundo. Um mundo redondo no qual supostamente
vão encontrar respostas às suas dúvidas, desejos e necessidades. Sem dúvida que não é fora do
mundo que cada um vai construindo a sua existência, todavia, a maneira como isso vem se
dando, não tem nos levado não à felicidade, mas a uma certa tristeza de existir; não nos leva a
explorar todas as nossas potencialidades, mas a nos encolhermos sob a tirania de um “destino”
que nos aponta uma determinada direção a seguir e que nos força a nos olharmos as nossas
diferenças como motivo para provarmos uma suposta superioridade de uns sobre outros, ao
invés de tomá-las como algo enriquecedor de nossa experiência, enquanto seres capazes de
forjar uma existência mais humana, exatamente porque somos diferentes.
Forjar uma existência mais plena, forjar um rosto cujas linhas de expressão não
estejam previamente determinadas, ao contrário, deixar que linhas se cruzem livremente e
configurem desenhos cujos contornos não sejam meros decalques de uma realidade já
codificada, um modelo a ser seguido. Talvez aí se encerrem as dificuldades de os meninos
desenharem o próprio rosto, de descambarem para a caricatura quando confrontados com o
“molde” no qual são instados a se conformar. Mas que molde é este? Não seria também a
caricatura uma forma de expor como eles percebem a própria singularidade? Lembremos que
nossa sensibilidade e percepção são efeito de uma produção de subjetividade na qual uma
certa estética é valorizada em detrimento de outras consideradas menores. Mas há algo aí que
104
mereceria a nossa reflexão porque, se por um lado esses meninos têm dificuldade de desenhar
os traços singulares da negritude, por outro eles a expressam muito bem de outros modos, seja
na capoeira , na dança afro ou nos ritmos percutidos nas carteiras, etc., enfim há infinitos
modos de expressar o que lhes é peculiar, de modo que a expressão gráfica através do
desenho é apenas uma delas. Há também que se discutir as circunstâncias em que esses
desenhos são solicitados e levar em conta que nem todos estejam naquele momento em um
“devir desenhista”.
De tudo o que até agora nos reportamos, penso que é chegado o momento de não
permitir que o sentimento de inferioridade, o estado de angústia, de dor quase física, de quase
abandono de um projeto de vida, tão bem expresso por uma jovem que veio ao consultório
falar de seu desejo de superar a situação de crise que estava atravessando no trabalho e na
universidade. Na ocasião, afirmava que se sentia diminuída por ser negra, ocasião em que
procuramos mostrar-lhe, a partir do próprio relato que fez das conquistas que até então já
obtivera, que ela não era menor que ninguém e que poderíamos pensar saídas para tudo aquilo
que ela trazia. Ela trazia, com certeza, uma questão que não era dela somente, mas de muitos
brasileiros.
Brasileiros que não se sentem acolhidos num país que não é uma “pátria mãe
gentil”, porque “expondo-os à desigualdade, ao racismo, ao preconceito”, não lhes fornece um
ambiente bom o bastante para viver; pelo contrário, restringe, na verdade o seu potencial
criativo e abre “espaço para desequilíbrios e decorrentes doenças psíquicas, psicossomáticas e
até físicas.” 218
. .
Talvez este possa ser uma pista, no sentido de propor estratégias em nossa prática
que contribuam para a construção de um ambiente favorável à criação, enfim, há que buscar
saídas para as situações nem sempre propícias à expansão da vida.
Na verdade, se fizermos uma retrospectiva histórica, damo-nos conta que as saídas
sempre existiram, embora em momentos precisos se tenha a sensação de que os negros tinham
sido fragorosamente derrotados.
São ecos, são vozes, são batidas fortes ou toques sutis quase imperceptíveis. São
traçados, são linhas que se cruzam aqui e ali, formando mosaicos que se desfazem em
milhares de pontos que subitamente se juntam, recortando um novo perfil que nada mais é, na
verdade, mais uma faceta de algo que se perpetua ao longo dos anos e, por alguns instantes
218
GUIMARÃES, M. A. C. Tradição religiosa afro-brasileira como espaço de equilíbrio. In: SILVA, J. M da
(Org) Religiões afro-brasileiras e saúde. Centro de Cultura Negra do Maranhão. 2003, p. 46-47.
105
(ou anos), foi impedido de manifestar-se. No entanto, refaz-se de outros modos até então
impensados por quem se acostumou a uma única expressão de vida, como se esta tivesse
existência estática e passível de aprisionamento em códigos, escrituras, leis, monumentos,
religiões, significados, significantes, etc.
Evidentemente há a necessidade de um pouco de sedentariedade, ninguém
sobrevive no caos total; “é necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se
recomponha a cada aurora” 219
. O que é bem diferente de abraçarmos a todo custo a
organização que aí está, ou lançarmo-nos na busca frenética daquela que pensamos ser a ideal.
Nada mais contrário ao que vimos insistindo até então: livrarmo-nos das representações e
coações que o “corpo social” nos impõe (GUATTARI, 1981).
Trata-se de “abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento,
circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidades,
territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor” 220
. É permitir que o
traçado do rosto comporte linhas de quaisquer direções, pois, ali se conjugam forças/fluxos de
diferentes matizes que podem a qualquer instante entrar em conexão com outras, e outras, ...
e assim novas paisagens se configurando.
Não tanto valor à significância e à interpretação, apenas o suficiente para “opô-las
ao próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive
as situações nos obrigam” 221
, mas agir livremente, de acordo com as exigências da vida em
cuja dinâmica estamos inseridos.
Pensamos que não importa saber se quando algumas escravas “azedavam” a
comida de suas senhoras, fugiam, ou, na pior das hipóteses, se matavam, ou empreendiam
qualquer ação para tornar suas existências mais suportáveis, tinham a medida exata do que
isso iria acarretar. Importa sim, ter em mente que agiam segundo o que, no limite, lhes era
exigido para se manterem vivas. O que parece um ato de crueldade era, naquele instante, a
saída para quem não é mero expectador da vida, mas nela está mergulhado e de alguma
maneira intervém no seu curso. Foram os pequenos gestos, aparentemente sem importância
para o conjunto da sociedade que aos poucos foram minando o edifício escravista, de sorte
que chegou o momento que outra paisagem se configurou.
219
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Rio de Janeiro: Ed 34, 1996,
p. 23. 220
Idem, idem.
221
Idem, p. 23.
106
“Trata-se sempre de liberar a vida onde ela mesma é aprisionada ou de tentar faze-
la num combate aberto” 222
Na verdade, a história dos africanos e seus descendentes no Brasil está repleta de
situações que são uma amostra de como esses indivíduos souberam inserir, nos interstícios da
cultura dominante, elementos fortes das suas tradições223
, os quais permanecem até hoje e são
continuamente atualizados.
Depreende-se daí que cabe-nos então experimentar as oportunidades que nos são
postas diuturnamente. Por mais insignificantes que possam parecer. Cada gesto, movimento,
atitude pode ser algo que vai provocar pequenas alterações ou “desordens” no que estamos
habituados a tomar como bom ou mau. Sendo que, no primeiro caso, temos a tendência de
querer conservar, daí o risco de absolutizá-lo e, no segundo, igualmente, com o agravante de
que, nas más situações, nem sempre damo-nos conta de que se podem construir linhas de
fuga a partir das quais se podem construir outros territórios existenciais.
Porque a vida, o sopro vital, o axé não estão submetidos a quaisquer instâncias de
comando, por isso por mais que os massacres que os africanos sofrem em África e seus
descendentes na diáspora, a vida continua se fazendo. E novos rostos vão se configurando,
mas este processo só se dá à medida que abandonamos o já estabelecido, que não ficamos
debruçados sobre o que se passou, imersos na dor que sentimos um dia, porque só há devir
quando nós abandonamos o estrato, quando deixamos de ser alguém. Trata-se de cada vez
mais - insistimos - de produzir o estranhamento, de evitar o reconhecimento sob qualquer
rótulo, de permitir que outras experiências tenham lugar. Deixar de ser alguém significa
abandonar o que nos é imposto, tendo em vista que o rosto, a forma homem que conhecemos,
foi produzida em um dado momento da história, isto é, o rosto é histórico, ele não existiu
desde sempre. Daí, desfazer o rosto é possível, desde que não nos prendamos às limitações
impostas por quaisquer categorias, sejam elas de gênero, de faixas etárias ou raciais.
Se temos um destino, este será o de escaparmos ao rosto, às formas estabelecidas,
aos modelos, permitindo que outros rostos (muitos rostos) se configurem.
222
DELEUZE, G; GUATTAR, F. Apud ROLNIK, S. Instaurações de mundos. In: TUNGA. Tunga 1977-1997.
223
Em diversas localidades brasileiras, onde os reisados e as congadas ainda persistem, o azul e o branco são
muito utilizados e estão associados às cores de Maria; são coes que não refletem a matriz cultural africana. Isso
nos permite inferir que, quando da criação desses grupos, se abrir mão destas cores para preservar outros
elementos culturais que lhes eram mais caros, porque é o toque dos tambores, o canto e a dança que fazem a
diferença. Nossos antepassados não podiam tocar para seus ancestrais ou para os orixás, então tocavam para são
Benedito ou N. Sra do Rosário. Na brecha que se abria no culto, criou-se um meio de expressar sua cultura. Cf.
NSCIMENTO, M. C. op. cit. p. 53.
107
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