Post on 29-Dec-2019
1
CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA
Prof. Marcos Aurélio Fernandes
UnB – Fil: 2019.1
TEXTO 9
3. O PENSAMENTO ORIGINÁRIO
3.8. PARMÊNIDES
Parmênides de Eleia (colônia itálica da Grécia no sul da Itália, atual Velia – ca.
540/530 – 470/460 a. C.), teria sido aluno de Xenófanes (c. 576/570)1, rapsodo jônio (de
Cólofon) que, depois de ter peregrinado pelas cidades gregas e passado um tempo pela
Sicília, se fixou em Eleia e ali morreu com cerca de 92 anos2. Entre os poemas de
Xenófanes estava um acerca da (phýsis). No livro I (c. 5) da Metafísica, Aristóteles
Aristóteles coloca os eleatas Xenófanes, Parmênides e Melisso, entre aqueles que
sustentaram acerca do Todo (- perì tou pantós) que era uma
realidade única (hos mias ouses phýseos). Diz que
Xenófanes, antes de Parmênides e Melisso, olhando para o alto, para todo o céu [isto é,
o céu na sua inteireza] (eis ton holon ouranon), disse que o Um
era o Deus (- tò Hén einai fesi tòn theón)3.
1 Aristóteles, Metafísica I, 5; Platão, Sofista. 2 Diógenes Laércio (IX, 21) relata também que Parmênides tenha tido convivência com Ameinias, um filósofo pitagórico, homem pobre, mas de absoluta retidão. Diz que Parmênides, quando este morreu, fez erigir para ele um “Heroon” (túmulo monumental, construído para um herói). E acrescenta: foi graças a Ameinias, e não a Xenófanes, que ele, Parmênides, se voltou para a quietude do recolhimento (- eis hesychían). Parmênides era de estirpe nobre e rica. Ele teria escrito as leis de sua cidade. 3 Karl Reinhardt sustentou a tese de que Parmênides desteologizou o pensamamento de Xenófanes.
2
Parmênides escreveu também um poema (perì phýseos), na esfera
da (phýsis). Este poema é mencionado por Platão, Aristóteles, Plutarco, Sexto
Empírico e Simplício. Este último diz que o texto já teria se tornado raro na sua época.
O que nos chegou são fragmentos. A edição crítica de Diels-Kranz (1903/1034) recolhe
19 fragmentos, 18 em grego e 1 em latim. O poema fora escrito em versos hexámetros,
marca do estilo épico. O poema está dividido em duas partes. No fragmento I, versos
29ss se lê algo que pode ser a chave do sentido desta divisão:
(Chreo dé se pánta pythésthai emèn Aletheíes
eukykleos atremés etor edè brotôn dóxas, taîs ouk eni pístis alethés) – “É necessário que
tu experimentes tudo, tanto o ânimo intrépido da verdade bem redonda, como as
aparências dos mortais, nas quais não há uma confiança desvelante”.
Os intérpretes da história da filosofia discutem o problema das duas partes.
Zeller e Wilamowitz entendiam que na segunda parte, Parmênides tencionava oferecer
não a verdade plena (a do ser), mas só hipótese mais prováveis que tornassem
compreensíveis o devir. Mas esta concepção está comprometida pela compreensão
epistemológica do século XIX. Esquece que, para Parmênides, em referência à verdade
não há graus, mas esta é absoluta, como o ser e o não-ser. Entre a verdade e a mera
aparência não intermédios, mas uma alternativa seca. Diels e Burnet eram do parecer
que, na segunda parte, Parmênides não estaria oferecendo uma explicação sua, mas
apenas referindo opiniões de outros (os pitagóricos?). Mas, será preciso advertir que
Parmênides teria entendendo estas opiniões apenas como opiniões, isto é, como
(meras) aparências, não como a verdade (do ser). K. Joel sugeriu que a segunda parte
seria apenas um exercício de erística, uma disputa que oferecia uma ocasião apenas
para ter razão e refutar os outros. Mas, pode-se supor que um pensador do nível de
Parmênides teria se rebaixado a tanto? Karl Reinhardt rejeitou estas interpretações e
indicou uma nova possibilidade: a segunda parte constituiria um elemento essencial da
teoria do conhecimento de Parmênides. O problema é que “teoria do conhecimento” é
algo por demais moderno. Mas, em todo o caso, pode-se tentar ver aí uma indicação
importante: tratava-se do problema da verdade. Acontece que a verdade, na
experiência grega, tem o seu nexo mais íntimo e profundo não com o problema do
3
conhecer, mas com o problema do ser. Em questão deve estar, assim, a verdade do ser
e o ser da verdade. Mas, ao ser da verdade pertence, essencialmente, a não-verdade?
O erro tem sua razão de ser? Como acontece o erro? Em todo o caso, a não verdade
pressupõe a possibilidade mais própria da verdade. O mutável e o devir e, com isso, a
(dóxa), a aparência, a opinião, deve pertencer também à verdade.
No poema de Parmênides, pois, está em questão o relacionamento de verdade
e ser, bem como de ser e pensar. O ser é aquilo de que trata o pensar. O pensar é o
pensar do ser. Através e dentro da única verdade – a verdade “bem redonda”, “esférica”
– se percebe o ser, que o Um, o único. E só em referência ao ser é que se dá e acontece
verdade. A deusa que guia Parmênides o exorta a ficar longe da outra via. E, no entanto,
ele deve compreender também a outra via. É preciso compreender tanto a via da
(alétheia) – verdade, quanto a via da (dóxa), aparência, parecer, opinião4.
A deusa admoesta o pensador a (krínein lógoi) – a realizar a crítica, isto
é, a discernir e decidir, em virtude e com base na meditação do pensamento e na sua
escuta, o que são e como são as duas possibilidades (cf. frag. VII). Em jogo está a decisão
– se o mortal quiser ser um pensador – a decisão pelo ser e pela verdade. Ser pensador
é uma escolha livre, uma autodeterminação do mortal, uma decisão pela verdade e pelo
ser, e, com isso, uma decisão pela transparência do próprio existir. Trata-se, pois, de
uma escolha e de uma decisão pela liberdade. Liberdade é o homem deixar agir em si as
possibilidades autênticas do existir humano. O pensamento é o exercício de uma
contínua libertação para a liberdade – uma libertação que se consuma no poder
questionar, buscar, investigar, e no poder pensar o sentido do ser, a verdade do ser. O
homem que assim vive é um (anér sophós), um homem maduro que é um
com o Um.
Tentemos, agora, um comentário ao poema de Parmênides.
4 Em grego são vários os significados de dóxa:
1. o aparecer e o dar-se do ente no seu ser; 2. o aparecimento extraordinário: glória e fama; 3. a consideração que alguém encontra no mundo da convivência; 4. o aspecto, a feição, com que algo ou alguém se apresenta (o eidos, a idea); 5. a visão que alguém tem de alguma coisa ou de alguém; 6. o parecer (a consideração) que alguém tem de alguma coisa ou algo; 7. a opinião.
4
No fragmento I temos a abertura do poema. Os versos de 1 a 21 preparam o
encontro do pensador com a deusa. O pensador é carregado por cavalos tão longe
quanto o ânimo de vida (- thymòs) alcança5.
Ele estava num envio, pois (daímones), cintilações do mistério,
doações e aparições extraordinárias femininas, tinham encaminhado o pensador a
trilhar um caminho (polýphemon) muito famoso, muito celebrado, um
caminho de glória. Glória é o aparecer, no sentido do esplendor e do brilho do ser. Não
se trata ainda da aparência no sentido do aparecimento em que algo chega e se torna
presente; nem da aparência como mera aparência, ilusão. Não se trata de um aparecer
que se acresce ao ser. Não. Trata-se de um aparecer que mostra o vigor e o brilho do
ser. O caminho a que Parmênides alude é o caminho em que se cumpre o disse Píndaro:
“torna-te o que tu és, aprendendo” – isto é: queiras mostrar-te como aquele que tu és,
aprendendo. Ou ainda: queiras nascer, crescere e aparecer na nobreza que é dada pela
sua proveniência a partir do ser e na grandeza que se funda nele – e faça isso,
aprendendo. Os poetas gregos magnificam os heróis, isto é, eles prestavam e
demonstravam consideração por eles, no sentido de trazer à luz o brilho e a consistência
do seu ser. Isso era, para os gregos, a fama. O modo de ser famoso do heroi não se
confunde com o que hoje é o modo de ser das celebridades da opinião pública, aqueles
que são promovidos pela imprensa, pelos meios de comunicação de massa, pelas redes
sociais no mundo virtual. Para eles, a poesia servia para magnificar a grandeza, a
consistência, o brilho do ser, que se manifestava nos heróis. As odes de Píndaro se dão
neste sentido. A fama é o aparecer que pertence ao ser. O ser vige também no aparecer.
O brilho do ser no aparecer é a (dóxa), não como parecer, opinião, mas no sentido
de glória, brilho de ser. Outra palavra para fama é, em grego, (kléos). Diz a fama
no sentido de notoriedade, renome, isto é, da perspectiva do ouvir e do evocar.
5 Filho da noite e do mistério, o cavalo é um arquétipo portador de vida e de morte. Está relacionado ao fogo. Fala da impetuosidade do desejo ardente. De origem infernal/ctônica (do subterrâneo), acabou se tornando um símbolo urânico (celeste) e solar. Um homem sábio (sapiente) que cavalga significa o iniciado, em que as forças do instinto e do espírito, da alma e do espírito, da animalidade e da racionalidade, se unem. Cavalos sensatos. O cavalo é, aqui, símbolo da força espiritual do desejo. Significa força, juventude, jovialidade, ardor, fecundidade e generosidade. Potência criadora: conotação tanto sexual quanto espiritual. Aqui não há separação entre corpo e espírito! Antes, ambos estão unidos! Sinal de maturidade: o filósofo é, aqui, o homem sapiente, individuado, amadurecido: anér sophón. Os cavalos puxam o carro do Sol e são consagrados a ele. É um atributo de Apolo, auriga do carro solar.
5
Heráclito diz: “Antes de tudo escolhem uma coisa os mais nobres: a fama (kléos) que
permanece constante frente ao que morre. A multidão está saciada, como o gado” (frag.
29).
O pensador é encaminhado neste caminho por (daimónes), deusas.
Não se trata dos “espíritos maus”, “espíritos impuros”, a que se refere o cristianismo. Já
vimos como Aristóteles, na Ética a Nicômaco, coloca entre as coisas que eram sabidas
pelos homens sábios dos antigos as coisas extraordinárias [(perittà)], ou seja,
coisas admiráveis [(thaumastà)], coisas difíceis [(chalepà)] e,
portanto,[(daimónia)]. As coisas concernentes aos (daimónes)
excedem o ordinário, são admiráveis e difíceis. Os (polloí), os muitos (a
multidão), se ocupam com os entes e com as vantagens que podem alcançar para si em
meio à lida com eles. Eles, no relacionamento com os entes, veem o ser, mas, ao mesmo
tempo, não o veem, isto é, elas compreendem o ente (o real), mas não notam, não
percebem, o ser (a realidade). Em contraste, os sábios são os que têm o ser no seu foco:
o in-comum, o excessivo, o maravilhoso, o difícil. É o que já sempre está se doando, em
cada coisa ordinária, comum. O ser brilha silenciosamente nos entes. O ser é o simples.
Mas só os sábios têm olhos para o simples. O ser se mostra em todo o ordinário, sem
ser ordinário. O ser não é a exceção. É o que há de mais simples e natural em tudo – o
que os gregos chamavam de (phýsis). É o de onde todo o ordinário emerge, em
que está suspenso, e para recai. (tò daimónion) é a doação originária da
(phýsis), o divino, o maravilhoso, o extraordinário dela. A palavra
(daímon), nome com o qual os gregos evocam a divindade de um deus ou de
uma deusa, o poder divino, mas também o nume tutelar (o gênio, para os romanos), e,
por conseguinte, o destino de cada um, remete ao verbo (daíomai), que quer
dizer dividir, partilhar, repartir, distribuir. O verbo (daío), por sua vez, significa
acender (fogo), arder, brilhar. Os (daimónes) são, assim, como que cintilações
do fogo do ser, que se divide, se partilha, em tudo o que está sendo. Se doam e se
mostram a partir da lareira da (alétheia), da verdade (revelação) do ser.
No caminho referido é encaminhado, diz o pensador, o homem que sabe -
(eidóta), isto é, o homem que sabe, por ter visto, por estar em constante e
consistente relacionamento com o des-encobrimento, a (alétheia) [palavra que
6
evoca a experiência grega originária da verdade]. O homem que sabe é o que está na
esfera do desencobrimento iluminador, no lume da verdade. Ao homem que sabe se
contrapõem “os mortais, que não sabem nada” (brotoì eidótes
oudèn), aos quais se refere o fragmento VI. Os “mortais, que não sabem nada” são os
que “trilham errantes”. Eles são chamados de “bicéfalos” – têm duas cabeças, estão
divididos, indecisos, irresolutos, indiferentes quanto ao ser e ao não-ser, quanto à
verdade e à aparência: “Uma confusão no coração deles dá testemunho de um espírito
confundível: são os que se arrastam, surdos e ao mesmo tempo cegos, estupefatos,
multidão sem decisão, a quem ser e não-ser vale como o mesmo e como o não-mesmo,
para quem o caminho de tudo é reversível” (VI).
O caminho do homem que sabe conduz para além das moradas dos mortais que
nada sabem (I). “Por este caminho eu era conduzido”, diz o narrador do poema, o
pensador. “Pois cavalos muito sensatos” (polýphrastoi hýpoi)
me conduziam, o carro se potencializando no embalo, moças, no entanto, mostravam o
caminho” (I). Os cavalos são sensatos, pois vêem a direção, mesmo no escuro e mostram
uma sabedoria instintiva, arcaica. Poderíamos tomar isso como evocação de uma
inteligência instintiva ou de um instinto inteligente que é dada(o) ao homem, como vigor
nascivo da mente (“bona mens” – bom senso)6?
Os cavalos puxam o carro do Sol e são consagrados a ele. É um atributo de Apolo,
auriga do carro solar. O pensamento de Parmênides, assim como o de Heráclito, se dão
na proximidade de Apolo: o deus da claridade meridiana da (alétheia), o
desencobrimento, a verdade. Carro (carruagem) é veículo, condução7. Tem a ver com
6 Cf. Descartes: “O bom senso é a coisa mais bem partilhada: porque cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles que são os mais difíceis de se acontentar em todas as outras coisas, não costumam desejar mais do que têm. Nisso, não é verossímil que todos se enganem; mas, antes, isso testemunha que a potência de bem julgar, e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente aquilo que se chama de bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; e assim a diversidade de nossas opiniões não vem do fato de que uns são mais razoáveis que os outros, mas somente do fato de que nós conduzimos nossos pensamentos por diversas vias, e não consideramos as mesmas coisas. Pois não é questão de ter o espírito bom, mas a questão principal é a de aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios bem como das maiores virtudes; e aqueles que não marcham a não ser com grande lentidão podem avançar muito além, se eles seguem sempre o caminho reto, em relação àqueles que correm, mas que se distanciam” (A.T. 1, 17- 2, 19). 7 Carro (carruagem) traz consigo um conjunto de significações fundamentais no mundo antigo. Na China, é símbolo do mundo. A base quadrada é a terra e a cobertura redonda, o céu. Na Índia, a base é o eixo do mundo, e as duas rodas, o céu e a terra. O carro é também símbolo do eu: sua destinação e sua condução no mundo (entre o céu e a terra). No budismo, quem conduz o carro do sábio é prâna (o espírito, o sopro)
7
via, viagem, experiência. Diz movimentação como encaminhamento, destinação, e
experiência (ser posto à prova, no caminho). Evoca o desafio de ser bem-aventurado na
viagem da vida (bem-aventurança: deslanchar do lance da existência). O carro é muitas
vezes associado ao sol, como acontece neste poema grego. Traz consigo a significação
do curso (correr) do céu. Desde os tempos pré-históricos o deslocamento do sol é visto
como uma curva (um arco) que une o oriente e o ocidente, o nascer e o morrer, a vida
e a morte. O carro do sol se torna o carro de Apolo, Deus da claridade, do desvelamento.
“Em Apolo, a clareza mais elevada e a escuridão devastadora da morte se equilibram
nos limites exteriores, nas profundidades se enfrentam com uma perfeita igualdade”,
diz Karl Kerényi.8
ou atmâ (o si-mesmo, o eu verdadeiro), ou buddhi (o intelecto). A palavra sânscrita Yana significa veículo – No budismo, fala-se de Hinayana, Mahayana, Vajrayana – diversos caminhos de iluminação. 8 Jung, C. G. e Kerényi, K. A criança divina: uma introdução à essência da mitologia. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 153-154.
8
Figura 1: Statue du type de l'Apollon sauroctone (« tueur de lézard »). Copie romaine du Ier siècle apr. J.-C. (?) d'un original de Praxitèle de 450 av. J.-C. environ, restaurations des XVIIe et XVIIIe siècles. Découverte à Rome au XVIIe siècle (?).
9
Figura 2: Apollo Belvedere - Roman copy after a Greek bronze original of 330–320 BC. attributed to Leochares. Found in the late 15th century.
10
A linha 5 do fragmento I diz: (kourai d’ hodòn
hegemóneuon) – Moças (condutoras da carruagem) indicavam o caminho.
(Kóre) significa menina ou moça. A arte grega arcaica celebra em estátuas
a figura da jovem. A jovem divina é um arquétipo da alma humana (C. G. Jung). Algumas
deusas do mito grego tinham o aspecto de moças. Artemis era uma dessas; Atena, outra.
11
Este era inclusive o epíteto de Perséfone9. Também haviam as Heliades, filhas de Helios
que, por sua vez, era filho do titã Hipérion e da deusa Théia, mãe de todo o brilho.
Figura 3: Helios in his chariot, early 4th century BC, Athena's temple, Ilion.
Helios era irmão de Selene (Lua) e de Eos (Aurora). E também está associado a
Apolo. Vejamos esta imagem, de uma pintura de Guido Reni (1614), intitulada Aurora.
Aqui Apolo tem Aurora à frente, é ladeado pelas “Horas” e acompanhado por
“phóphoros”: o portador da luz.
O Sol é uma epifania urânia (manifestação demônica celeste). Filho do deus
supremo. Olho do deus supremo. Coração do mundo. Centro da roda do zodíaco (as 12
constelações celestes). O sol imortal se levanta toda a manhã para o mundo dos vivos
(do desvelamento) e se deita toda a tardinha mergulhando no mundo dos mortos (do
velamento). Platão fez do sol a imagem do Bem. Para os ritos órficos, é a inteligência do
mundo. Os raios do sol significam o conhecimento intelectivo: o noéin. É fonte de luz,
de calor e de vida. Os seus raios são as influências celestes na vida da terra e dos terrenos
9 Cf. o poema de D. H. Lawrence, “Fidelity”: “a little torrent of life / leaps up to the summit of the stem, gleams, turns / over round / the bend / of the parabola of curved flight, / sinks, and is gone, like a comet curving into the / invisible” (uma pequena torrente de vida salta para o topo do caule, brilha, gira em torno da curva da parábola do voo curvo, afunda-se e desaparece, como um cometa curvando-se no invisível).
12
– mortais. O sol torna as coisas visíveis, as faz se tornar fenômenos. É o princípio e o fim
de toda manifestação, revelação, de todo o phainesthai (vir à luz, phôs). É pai e é rei
(monarca: o Um que governa tudo). Apolo é o deus solar por excelência. Sua flecha é
como o raio do sol.
No poema, ao ser referir às moças, Parmênides evoca as Heliades Meninas10 -
(Heliádes kourai):
O eixo flamejante no cubo colocava em movimento uma tonância vibrante de flauta (pois ela se acelerava de ambas as direções em duplos círculos dia-ferentes), quando as heliades meninas, deixando a morada da noite ser, e impelindo para trás com as mãos os véus de suas cabeças, se lançavam em me conduzir para a luz11.
10 Heliades ou Helíades – Filhas de Hélios (o sol) e da oceanide Climene. Nomes: Aiteria, Dioxipe (ou Lampetia), Febe, Hélia, Merope. Guiavam o carro e os corcéis de Hélios. 11 Leão, E. C. e Wrublewski, S (tradutores). Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópólis: Vozes, p. 43.
13
A roda fala da perfeição do círculo. Entretanto, é um círculo que gira. Fala, pois,
da perfeição do ser no mundo do devir. O devir é compreendido como ciclos, repetições
do mesmo, renovações do sempre o mesmo. O mundo é como uma roda na roda, uma
esfera na esfera (Nicolau de Cusa). A roda lembra a viagem cíclica dos astros. É um
símbolo solar: rodas de ‘carruagens de fogo’. Está relacionada com Apolo. O eixo imóvel
deixa rodar a roda. No centro: o imóvel. Na periferia: o imóvel. O centro da roda é o Um
que não está sujeito à transformação, pois a transformação pertence aos muitos. No
centro, tudo é Um e tudo é quieto. Só na periferia é que tudo é múltiplo e se agita no
correr cíclico do devir. A roda é, pois, símbolo da emanação do múltiplo a partir do Um.
As rodas do carro do sol no poema são duplos círculos que giram de modo
diferente entre si, produzindo um assobio que é como o som de uma flauta. A flauta é
uma invenção de Pan: daimon das grutas e dos bosques e dos pastores – filho de Hermes
(deus do velamento, do ocultamento, irmão de Apolo, deus do desvelamento e do
desocultamento), metade homem e metade animal12. Com a flauta ele entretinha as
ninfas, os deuses, os homens e os animais. Aparece também como companheiro de
Dionísio. Remete também a Orfeu: o deus da música. Não podemos deixar de aludir,
aqui, à significância ontológica da música para os gregos:
Os gregos foram quem deram ao Ocidente esta vigência ontológica da música. Na música eles não viam apenas uma expressão imediata da alma; nas vibrações do som e nas oscilações do ritmo sentiam desfazer-se os limites e as barreiras das realizações e viam brilhar um relâmpago sobre o abismo noturno da realidade onde brotam a vida e a morte, o mundo e o imundo, a ordem e o caos13.
Rilke, em seus Sonetos a Orfeu tornou poesia esta vigência ontológica da música:
12 Deus dos rebanhos e pastores. Às vezes descrito como filho de Hermes. Representado parcialmente com o corpo de bode. Amante das ninfas. Inventor da gaita de sete canudos (Syrinx). Despertava terrores súbitos nos que se movimentavam nas florestas e lugares desertos (pânico). Os romanos o identificaram com o Fauno. 13 Leão, E. C. Aprendendo a Pensar II. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 38.
14
Então elevou-se uma árvore! Pura elevação!
Orfeu está cantando! Uma grande árvore no ouvido!
E tudo silenciou! Mas mesmo no silêncio unânime,
Nasceu novo princípio, gesto e transformação!
Animais do silêncio se precipitaram
Da floresta livre e clara de ninhos e moradias:
E apareceu que, se estavam tão quietos,
Não era por medo ou astúcia,
Mas por escutar! Bramir, gritar, gemer
Pareciam pequenos a seus corações! E onde
Mal havia uma choupana para receber,
Um abrigo nascido do mais obscuro desejo,
Com um acesso de pilares trepidantes,
Aí criaste um templo na escuta!
Parmênides é conduzido pelas Heliades Meninas até um portal:
Lá é o portal das sendas da noite e do dia, moldura e umbral de pedra os mantém num contraponto; o portal, etérico, tem poderosos batentes; acerca dele dike – quem muito labora – mantém o ferrolho que abre e fecha.
Para os gregos, a Noite (Nyx) era a filha do Caos e a mãe dos dois deuses
primordiais: o casal Urano (céu) e Gaia (terra). Dela vem também o sono e a morte, os
sonhos e a angústia, a ternura e o engano. A ela os gregos sacrificavam uma ovelha
15
negra. Ela percorria o céu envolta em um véu escuro, sobre um carro com 4 cavalos
negros. Cortejavam as Fúrias, suas filhas, prontas a punir quem transgredisse os limites
da mortalidade com sua arrogância (a hýbris). Lembremos do fragmento 94 de Heráclito,
que dizia:
(Hélios ou hyperbésetai métra: ei de me, Erinyes min Díkes epikouroi exeurésousin)
– “o Sol não ultrapassará as medidas; se o fizer, as Eríneas, ajudantes de Dike, o
encontrarão”. Assim, a dimensão da claridade e do desvelamento, a dimensão de Apolo
e de Helios, por mais vigorosa que seja, provém, para o mito e o pensamento originário
grego, da dimensão noturna, abismal, da escuridão, do velamento - (léthe). No
cuidado pelas medidas está Dike: o vigor da articulação e da justeza, conforme já
interpretamos, quando meditamos o dito de Anaximandro.
Tudo provém da Noite da realidade. E a noite, por sua vez, provém do Caos. Já
refletimos sobre o sentido do Caos para os gregos. Apenas vamos tornar presente algo
sobre isso. O que está em jogo é o Chaos, como o abrir-se abissal da Imensidão, que
está aquém de toda a ordem e desordem. É, antes, o que possibilita, inaugura e instaura
toda a determinação e indeterminação, toda ordem e desordem. O chaos mantém o
kósmos em contínua realização e desrealização, gênese e perecimento, aparecimento e
desaparecimento, nascimento e morte. Ele vige como o abismo que está sempre se
abrindo, rasgando espaço para o emergir de tudo na dinâmica da diferenciação do
mesmo e de identificação do diferente, que faz aparecer a divergência convergente e a
convergência divergente de todas as coisas. É do abismo e da noite do caos que
emergem e vêm à luz a Terra e o Céu, e, com estes, todo o kósmos: a ordenação essencial
de terra e mundo, mortais e imortais.
A noite é filha do Caos, mãe do Céu e da Terra, de onde tudo surge: os mortais e
os imortais... A noite deve ser vista, aqui, ao modo grego, como velamento -
(léthe). O dia, por sua vez, há de ser tomado como a dimensão do desvelamento:
(alétheia). O portal recolhe as sendas do dia, isto é, do desvelamento, e da
noite, isto é, do velamento. Trazemos aqui uma foto da “Porta Rosa”, situada em Velia,
nome italiano para a antiga Elea:
16
O portal é a passagem entre dois mundos: o conhecido e o incógnito. Iniciação
ao mistério. Transição do profano ao sagrado. Acesso a um conhecimento superior. O
portal fala de caminho e de passagem. Diz transformação.
A guardiã o portal é (Dike). Ela é invocada pelo coro na tragédia Antígona,
de Sóflocles:
17
“Muitas são as coisas estranhas, nada, porém, há de mais estranho do que o homem.
Parte sobre as espumas da préeia-mar no meio da tempestade do inverno sulino e cruza as montanhas de vagas, que abrem abismos de raiva. Extenua a infatigabilidade indestrutível da mais sublime das deusas, a Terra, revolvendo-a ano após ano arrastando com cavalos para lá e para cá os arados. Sempre astuto, o homem enreda o bando de pássaros em revoada e caça os animais da selva e os agitados moradores do mar. Com astúcia domina o animal, que pernoita e anda pelos montes, subjuga o dorso de ásperas crinas do corsel e põe o jugo das cangas de madeira ao touro não domesticado.
A si mesmo encontrou tanto no soar da palavra e no pensamento, que, com a rapidez do vento, tudo abarca, como na ousadia, com que domina as cidades.
Igualmente pensou como escapar aos dardos do clima, bem como às inclemências do frio.
Pondo-se a caminho por toda a parte, desprovido de experiência, e em aporia, chega ele ao nada. A morte é a única agressão, de que ele não pode se defender por nenhuma fuga, embora consiga esquivar-se habilmente às penas da enfermidade.
Garboso muito embora, porque domina, mais do que o esperado, a habilidade inventiva, cai muitas vezes até na perversidade, outras vezes saem-lhe bem nobres empresas.
Por entre as leis da terra e a justiça dos deuses anda ele.
Ao ultrapassar o seu lugar, o perde, a audácia o faz favorecer o não-ser contra o ser.
Aquele que põe isso em obras, não se torne familiar de minha lareira nem tão pouco o meu saber compartilhe comigo o seu desvairar-se”.
O poema começa dizendo algo de inusitado para o senso comum: “Muitas são
as coisas estranhas, nada, porém, há de mais estranho do que um homem”. O homem é
18
a coisa mais estranha que existe: tó deinótaton. O homem se ergue sobre a Terra,
elevando-se para as alturas de sua capacidade inventiva, de sua habilidade produtiva,
de sua genialidade criativa (téchne). Ele não se aloja simplesmente na natureza. Ele abre
espaço dentro dela, cria mundo, gera cultura, institui um reino de produções, de arte,
de conhecimento. Aparece, assim, como senhor e dominador do real. Em meio ao vigor
da natureza, ele instaura o vigor da arte, da cultura. O auge e a consumação desse vigor
criativo humano se encontram, por sua vez, na linguagem e no pensamento. É pela
linguagem e pensamento que o homem, então, institui a Pólis: a comunidade de
convivência histórica, baseada na idéia da livre soberania do homem racional, da cor-
responsabilidade de homens livres.
Esse seu mundo familiar, entretanto, repousa sobre a estranheza de um abismo:
“Pondo-se a caminho por toda a parte, desprovido de experiência, e em aporia, chega
ele ao nada. A morte é a única agressão, de que ele não pode se defender por nenhuma
fuga, embora consiga esquivar-se habilmente às penas da enfermidade”. O homem, que
por toda a parte abre caminhos, encontra, então, o beco sem saída da morte (aporia). A
morte é, porém, o véu do nada. Ele, que vive continuamente em comunidade, na Pólis,
se torna só: ápolis. Se olharmos o homem nas alturas de sua vitalidade e de seu poder
inventivo, encontramo-lo dominando a Pólis. Se olharmos o homem nas profundezas,
nos abismos, de sua mortalidade e finitude, encontramo-lo “ápolis”: sem cidade, sem
abrigo, sem morada, sem-terra e sem-teto, apátrida.
Figura 4: Dike e Nêmesis perseguem um criminoso
19
A audácia do homem encontra o seu limite na Justiça. Traduzimos por “Justiça”
o nome Dike. Aqui, porém, não se há de entender a Justiça como virtude moral, muito
menos no sentido jurídico. A Justiça é aqui a justeza do Todo, a justeza da Natureza, da
Vida (Cf. o dito de Anaximandro, que já comentamos). Dike significa a articulação íntima
de todas as coisas, a ordem do universo, a harmonia invisível do cosmos. Existindo no
meio do espaço aberto da liberdade, o homem precisa, no entanto, sempre de novo
encontrar a justeza na articulação íntima de todas as coisas no universo. Dike é a que
mostra a justeza: a existência “nos eixos”, ajustada, integrada em si mesma e bem
encadeada com o real. O nome “Dike” vem de “dikéin”: lançar; ou de deiknymi: mostrar,
indicar. Dike é o lance que mostra ao homem o seu lugar no mundo, o que lhe está
disposto, isto é, destinado, e a que o homem deve dispor-se, para poder viver uma
existência histórica bem encaixada no universo, bem concatenada com todas as coisas,
bem articulada com o Céu e a Terra, bem integrada no Todo. A injustiça (adikía) é
desajuste, desatino, desarmonia, desintegração. Dike é, pois, a juntura. Juntura quer
dizer, em primeiro lugar, articulação. Mas podemos entender também como disposição,
destinação, indicação, a saber, do ser, da (Phýsis) [da realidade]. O vigor da
(Phýsis) se impõe ao homem. É na conjuntura dela que ele vive. O ser, a
(Phýsis), como vigor que se impõe ao homem, é a unidade originária que tudo
reúne, articula, dispõe, é o (Lógos), de Heráclito. Dike é a conjuntura que dispõe
tudo aquilo que é.
Dike punia os homens, não lhes abrindo a porta da verdade. As meninas, no caso,
com palavras afáveis, persuadem Dike a abrir ao pensador o acesso à morada da
Alétheia:
As meninas, falando palavras afáveis, persuadiram-na diligentemente a lhes descerrar com presteza o ferrolho trancado do portal; este, abrindo-se com ímpeto, fez com que a dupla abertura imensa das portas girasse os eixos de bronze nos cubos ajustados com cones e cilindros. Então através do portal as meninas mantinham o
20
carro e cavalos abertamente segundo a pertinência do caminho14.
A abertura do portal dá o ensejo para a revelação da deusa. O pensador é, então,
acolhido por ela:
E a deusa me acolheu com ânimo propício, tomou minha mão direita na sua; então ela, trazendo à fala a palavra (- épos fáto), se dirigiu a mim neste modo: Oh jovem (o kour’), companheiro de imortais condutoras de carro, que te trazem, com os cavalos, alcançando nossa morada: salve! Pois de nenhuma maneira uma moira () ruim te enviou a trilhares este caminho, - pois, em verdade, ele está para além do homens, fora da senda muito batida deles, - mas Themis e Dike.
É necessário que experimentes tudo: tanto o coração intrépido da verdade bem redonda - aletheíes eukýkleos atremés hêtor), quanto as aparências dos mortais (brotôn dóxas), nas quais não há a confiabilidade da verdade (pistis alethés). Mas é necessário, também, experimentares e estas coisas aprenderes: como aquelas coisas que aparecem necessitavam, de maneira adequada ao aparecer, ser o que reluz através de tudo levando tudo à consumação.
Com a abertura do portal, vem ao encontro do pensador, a deusa – ela é
simplesmente a deusa: (theà). Em grego há uma palavra semelhante a (theà),
a deusa - (théa): a visão. Esta semelhança, por sua vez, se parece com outra
semelhança: entre (biós), arco; e (bíos), vida (no sentido de vida humana,
histórica: marcada por vicissitudes e peripécias, destino). No fragmento 48, Heráclito
diz: (to oun tóxoi ónoma bíos, ergon dè
thánatos) – “o arco tem por nome a vida, por obra, a morte”. Aqui as palavras
14 Leão, E. C. e Wrublewski, S (tradutores). Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópólis: Vozes, p. 43.
21
(biós), arco; e (bíos), vida humana, são convertidas uma na outra. O nome
próprio para arco é (biós). Heráclito, no entanto, ouve (biós) como
(bíos). O arco evoca, em seu nome, a vida, no entanto, o que ele produz, na medida
mesma em que evoca a vida, é a morte. De fato, a vida do homem é uma vida mortal. A
mesma assimilação e conversão poderia ser feita, pensando-se o sentido, entre
(theà), a deusa - e (théa): a visão. A deusa evoca a visão. (théa) é a visão,
a saber, no sentido da visão que algo, o brilhar do sol, por exemplo, oferece de si. A visão
diz, aqui, o modo como algo aparece, brilha, e, assim, deixa e se faz ver, se mostra, se
dá a perceber. O ver, a visão, no sentido do perceber e da percepção do homem já é
uma resposta, uma correspondência, à visão, tomada originariamente, não como o
visto, mas como o aparecer e mostrar-se de algo. A visão, no sentido originário, é auto-
emergência e o auto-descobrir-se luminoso de algo: o vir-à-luz, o brilhar para o
descoberto. A visão originária, assim entendida, concede presencialização ao que se
presenta. Visão quer dizer aqui, originariamente, o auto-apresentar-se que emerge. O
verbo (theáo) significa um tal auto-apresentar-se emergente. Em contrapartida, o
ver no sentido de perceber, a visão no sentido de apreensão, se diz com o verbo
(theáomai): olhar, no sentido de observar, considerar, contemplar, perscrutar.
A experiência grega do divino - (tò theíon) – tem a ver com a visão
originária da (phýsis) e com a contemplação, a perscrutação dela, por parte do
mortal, o homem. (hoi theói) são, de certo modo, (theáontes),
aqueles que vêm para dentro da visão originária, do desencoberto, e, assim, dão um
aceno para o mortal. Neste sentido são (daíontes), os que oferecem aceno.
Assim, (theói) e (daímones) são as cintilações e aparições extraordinárias
cuja visão originária são um espetáculo digno acima de tudo de contemplação, de
perscrutação. Este extraordinário se oferece e dá o seu aceno ao homem a partir de seu
ordinário. Por isso é que os deuses, para os gregos, se oferecem na forma animal e
também na forma humana. Não se trata de antropomorfização. Não é assim que os
deuses são pensados como humanos, antropomorfizados. O que acontece, segundo o
sentido da experiência grega, é que a visão originária do deus – a sua mirada – irrompe
no homem, emerge nele. O deus é a visão originária – a mirada primordial – do mistério,
que irrompe, emerge, no homem e como humano. É que o homem não é um ente entre
22
outros entes, simplesmente. O homem é aquele ente cujo ser é determinado através de
sua relação com o próprio ser, que se auto-desvela, que auto-emerge, a (phýsis).
Porque o homem é assim determinado é que ele pode não só mirar e perscrutar o divino,
que o mira do fundo do mistério, como também pode aparecer como divino. Entre
deuses, imortais, e humanos, mortais, se dá assim uma mirada recíproca, um encontro
gracioso.
Entretanto, tudo isso só é possível graças à (théa), à visão originária, a visão
de todas as visões, a saber, a visão da (phýsis), que se dá como
(alétheia). A (theà), a deusa, é, assim, a (théa), a visão de todas as
visões, a (alétheia), a verdade.
A palavra para verdade é (alétheia); para verdadeiro, (alethés);
para dizer a verdade ou o verdadeiro, (aletheúein). A tradução de
(alétheia) para verdade, palavra portuguesa que remonta à palavra latina
veritas, que traz, por sua vez, a experiência da verdade no horizonte do juízo e do julgar,
encobre, mais do que desencobre a experiência grega de pensamento. Que experiência,
porém, está subjacente à palavra fundamental (alétheia), no mundo histórico
da lingua grega? Resposta: a experiência do desencobrimento. A palavra
(alétheia) é negativa em seu modo de significar, embora seja positiva no modo
daquilo que ela dá a compreender e no modo de ser a que ela se refere. Ela é, no seu
modo de significar, algo assim como a negação de uma negação. Diz o des (não)-
encobrimento. O encobrimento impede o acesso a algo. Palavras gregas cujas
significações direcionam para esta experiência do encobrimento: (lathón): o que
está oculto, o que se mantém escondido; (láthra): secretamente, de modo
velado, oculto; (lathráios): clandestino; (laithargós): o que morde
em silêncio, de soslaio, o falso, no sentide de mofino, covarde; (láthrios):
letárgico, indolente, preguiçoso, a qualidade de quem tira o corpo fora; (léthe):
encobrimento, esquecimento – no mito, é o nome de um dos rios do Hades.
Etimologicamente, a raiz indoeuropeia é: ldh. Esta se apresenta em grau A com
infixo nasal (n) no presente do indicativo, no verbo (lantháno): escapar da
atenção, passar despercebido, permanecer ignoto ou escondido, e, daí, não se dar
conta, não saber, e, daí, por sua vez, deixar-se escapar, negligenciar, esquecer. Em vez
23
da voz ativa, o que melhor dá a entender a experiência grega do esquecimento é a voz
medial: (lanthánomai), o esquecer no sentido de que algo está oculto,
mantém-se escondido, para alguém (aquele que se esquece). A raiz indoeuropeia ldh
aparece também em grau A sem infixo nasal (n) no aoristo15 forte ativo
(élathon), tendo esquecido. Aparece em grau E, no presente, (létho),
esqueço. É preciso, porém, captar o esquecer, na experiência grega, não a partir do
sujeito e de sua consciência. É preciso captar o esquecer como um evento. Como evento
constitutivo da experiência humana, esquecer implica no esquecimento do
esquecimento. O esquecer vige e vigora enquanto se esquece que se esqueceu. Esta
reduplicação do esquecimento, que vige e vigora como esquecimento do esquecimento,
vem à luz no verbo (epilantánomai): esquecer-se.
Da mesma raiz indoeuropeia ldh vem o verbo latino lateo, que se forma como
uma diminuição do mesmo radical com a perda da aspirada (h) e a mudança da labial,
de d para t. Lateo significa: estou oculto, escondido, latente. O verbo também traz a
significação de escapar a, ser desconhecido de; mas também, no mesmo sentido, de
estar em segurança, protegido, livre de, preservado. A palavra latens é formada como
particípio presente de lateo, e significa: escondido, oculto, secreto, misterioso. A
experiência grega da verdade, neste sentido, seria a de uma não-latência, de um não-
escondimento. O contrário de latens, em latim, é patens, que é formado como particípio
presente de pateo, e que significa descoberto, aberto, patente, exposto; evidente,
manifesto. O verbo pateo, com efeito, significa: estar aberto; daí: estar exposto, estar
acessível; ser evidente, manifesto, visível, patente; e, por extensão: estar disponível; ter
campo e caminho livre para...
O sentido arcaico de (lantháno) como ficar oculto, manter-se velado,
encoberto ou escondido aparece no canto VIII da Odisseia de Homero. O rapsodo
Demódoco, depois do banquete festivo oferecido pelo rei dos Feácios ao desconhecido
que fora encontrado na praia nu e sem sentidos, cantando ao som da lira, conta sobre a
pesada sorte que caiu sobre os gregos diante de Tróia. A recordação daqueles tempos
15 O aoristo apresenta a significação de um verbo como ação pura, sem determinação. Tempo passado indefinido, indeterminado, na sua duração. Pode significar uma ação no seu caráter pontual, momentâneo.
24
cobre de tristeza o coração de Ulisses. Por causa de sua tristeza com a lembrança deste
tempo, Odisseu cobre sua cabeça com o seu casaco (v. 93). O texto grego diz:
A nossa tendência contemporânea é de traduzir: “Então ele derramou lágrimas,
sem que todos os outros o percebessem, Alcino unicamente viu e notou, sentado junto
dele...”.
Contudo, para render a experiência arcaica notável na tradução, é preciso outra
transposição. Decisivo aqui é o verbo (elánthane): ele escondeu. O verbo é
transitivo. Escondeu o que? Resposta: as lágrimas. Porque ele escondeu as lágrimas ele
passou despercebido pelos outros. Decisivo é o escondimento, o ter ficado oculto. Só
em virtude do escondimento é que Odisseu pôde passar despecebido em seu pranto por
parte dos convivas. Para respeitar a regência do verbo (elánthane): ele
escondeu, é preciso uma outra tradução. Façamos a tentativa de uma tradução que siga
mais de perto o modo de dizer grego: “então, de um lado, (Odisseu) manteve-se
escondido para todos os outros, derramando lágrimas; de outro, somente Alcino o
notou e soube, sentado junto dele...”. Nossa compreensão, porém, se centra no sujeito,
no agente, e na sua ação, no derramar lágrimas. A compreensão do grego se centra no
evento: no manter-se escondido16.
O mesmo desafio de compreensão nos vem ao encontro quando se trata de
entender o lema estoico: (láthe biósas). Nossa tendência é de traduzir:
“viva escondido”. Nosso foco está no sujeito-agente. O “escondido” segue o verbo
“viva”. Mas, para o grego, o decisivo é o modo de dar-se do evento na constituição da
experiência. Assim, o lema estoico, pensado neste horizonte, poderia querer dizer:
“permaneça velado no modo como conduzes tua vida”. Decisivo, aqui, é que o
velamento determine o modo de viver do homem entre os homens. O velamento e o
desvelamento concernem, primordialmente, ao ente – no caso, ao vivente, ao existente
humano – e não ao notar e saber. Para o grego, em toda realização do real a realidade
16 Outra passagem semelhante se dá na Ilíada X, 22, verso 277.
25
vige e vigora como mistério, isto é, como a unidade de velamento e desvelamento,
encobrimento e desencobrimento, latência e patência.
Para a experiência grega, (alethés), o verdadeiro, é o não-latente, o des-
encoberto, o des-velado, o des-vendado. A função negativa se dá com o alfa privativo:
o (a) da (alétheia). A verdade é, neste experiência, fundamentalmente um
evento, o evento do desencobrimento, ou melhor, é o evento como desencobrimento.
Bem antes de Hegel, os gregos já conheceram “a força extraordinária do negativo”.
Dizíamos que na palavra (alétheia) o modo de significar é negativo, mas o modo
de inteligir e o modo de ser a ele correlatos (falando em termos de gramática modista,
especulativa), são positivos. É o que se dá com palavras como “imortal”, “inocente”. A
significação se cumpre funcionando como uma negação da negação. O que significa de
modo positivo – “mortal” – dá a intelegir e se refere a um modo ser que é negativo. Já
o que significa de modo negativo – “imortal” – dá a inteligir e se refere a um modo de
ser positivo. No caso de “inocente” não há nem mesmo uma forma positiva de significar.
Não existe, com efeito, “nocente”. Só existe o adjetivo “nocivo”.
O entendimento da verdade como evento de desencobrimento que concerne ao
ente no seu ser ou ao ser mesmo aponta para quatro direções: 1) o desencobrimento
remete para o encobrimento – este, o encobrimento, permeia a vigência primordial da
verdade; 2) a verdade só vem à tona numa luta com a não-verdade (cf. o -
pólemos, em Heráclito, bem como a decisão pelo caminho da verdade contra o caminho
da aparência, em Parmênides); 3) A não-verdade, neste sentido, não precisa ser a
falsidade; pode ser também, por exemplo, a latência, o escondimento, o mistério; 4) o
desencobrimento não é a mera remoção do encobrimento, mas se dá como um chegar
a ser, um advento, um tornar-se presente. Trata-se, neste último sentido, de um
emergir, sim, de uma auto-emergência. Os gregos pensaram esta auto-emergência, este
chegar a ser e aparecer, como (phýsis).
Na experiência grega, enfim, verdade vige, vigora, essencialmente, como evento
de desencobrimento que diz respeito, antes de tudo, ao ente mesmo e ao seu ser. A
verdade no seu entendimento tradicional, concebida a partir do discurso e do
enunciado, não é da mesma essência que a verdade neste sentido da experiência grega
originária.
26
A experiência originária, a que nos remetem os gregos com a palavra (a-léth-eia), nada tem a ver com discurso ou conhecimento, com sentença, enunciado ou proposição, quer em suas funções de coerência e consistência, de completude e consequência, quer em seus papéis de correspondência e adequação, de conveniência e correção ou concordância. É que ser encoberto ou velado e ser des-encoberto ou re-velado não se movem num mesmo nível, nem pertencem ao mesmo plano de coincidir ou concordar com, de reger-se por ou de adequar-se a. Verdade, como revelação, e verdade, como correção, são processos ontológicos heterogêneos, por pertencerem a experiências de ser e realizar-se fundamentalmente diversas e essencialmente irredutíveis entre si, embora não sejam desconectadas nem disparatadas17.
Como, porém, perceber a conexão entre os dois planos de verdade, o originário
e o derivado?
Se partimos da quarta direção (o desencobrimento como auto-emergência,
como advento, isto é, um chegar a ser e aparecer), então talvez descubramos uma
possível conexão. O aparecer se dá numa ambiguidade. Vige como um brilhar e como
um mostrar-se. Neste sentido, do mostrar-se, requer, solicita, uma recepção e uma
percepção. Isso implica uma relação com os homens. A percepção apreende o que se
mostra a si mesmo. Pode-se se esquecer, porém, desta auto-mostração, e se ficar
somente com o percebido enquanto percebido. A ênfase pode recair no homem, que
percebe o real e não na auto-mostração e auto-emergência do real, do seu chegar a ser
e aparecer, do seu tornar-se presente.
Nos primórdios do pensamento grego, a verdade, no sentido de
desencobrimento, de abertura da dimensão em que se dá descobrimento e revelação,
pertence ao próprio ser. A verdade é a verdade do ser. A verdade do ser se encobre, no
17 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 52.
27
entanto, a si mesma, para proteger e revelar o ente em seu ser. É assim que se instaura
e se institui história.
A experiência originária da (a-léth-eia) é a realização inaugural, as primícias da constituição humana, em que o filho da terra rompe o silêncio da noite cósmica e o descendente de Prometeu des-cobre claridade nas e das próprias trevas. Trata-se de “algo” primordial e derradeiro. É o alfa e omega do mundo, o princípio e o fim da história dos homens18.
A verdade como desencobrimento, revelação, não é um acréscimo ao ser, mas
lhe pertence. Se a verdade pertence à vigência do ser, então o verdadeiro é, como tal,
ente. O verdadeiro é, neste sentido, o ente enquanto se mostra, se dá, se dá a perceber.
Com isso, além do relacionamento de ser e verdade, entra em questão a relação de ser
e pensar. Parmênides chama a percepção do ser de (noeîn): pensar. O pensar
não há de ser tomado, aqui, como uma faculdade humana meramente. O pensar, no
sentido da percepção do ser, é um acontecimento, em que o homem, nele acontecendo,
entra no acontecer historico como o ente que ele é, isto é, é o acontecimento em que o
homem mesmo chega a ser19. Neste sentido, o pensar não é uma propriedade do
homem, mas, antes o contrário: o homem é que é uma propriedade do pensar. Isto quer
dizer: o pensar é o acontecimento que constitui e que possui o homem. Este
acontecimento é o aparecimento do homem como histórico. Ele institui o homem como
o guardião do ser. A percepção do ser – o (noeîn) – , no entanto, requer o
(lógos), necessita-o. O (lógos), por sua vez, institui e funda a vigência da
linguagem. Isso constitui o fundamento fundante da existência histórica do homem no
meio do ente em sua totalidade.
A deusa, isto é, a (alétheia), verdade enquanto revelação do ser, toma
a mão direita do pensador em sua mão, dirigindo-lhe a palavra. A expressão grega é:
(épos pháto). O poema traz a integração das três formas fundamentais de
linguagem na experiência grega: (mythos),(épos) e(lógos). A
primeira forma, o (mythos), é a linguagem enquanto contar estórias, enquanto
18 Idem, ibidem. 19 Cf. Heidegger, M. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987, p. 165.
28
saga. Mítico é o desencobrir e encobrir salvaguardados na palavra que desvela e vela a
manifestação primordial da vigência fundamental do próprio ser. O poema de
Parmênides é, neste sentido, uma obra mítica. Ele deixa ser a percussão e a repercussão
do mistério do ser. A estória que Parmênides conta é uma estória que traz à linguagem
a destinação do pensamento sob a égide da revelação do mistério do ser, da
(alétheia). No (mythos) todo o jogo de relacionamentos de caos e
cósmos, de mortais (homens) e imortais (daimones e theói) se dá sob a égide da verdade
do ser. O (mythos) é a saga da linguagem, enquanto preserva e resguarda o
desvelamento originário da (léthe), isto é, da retração do mistério, do velado e
encoberto. O mito é, assim, uma experiência originária de verdade, de linguagem, de
pensamento. É originária, pois habita junto à origem, ao mistério do ser.
A segunda experiência de linguagem fundamental é o (épos): a palavra
cantada. Mas, o que é cantar? Ouçamos o testemunho de quem entende da coisa:
escutemos o Terceiro soneto a Orfeu, escrito pelo poeta R. M. Rilke:
Um deus pode! No entanto, dize-me como
Um homem há de segui-lo pela estreita lira?
O sentido lhe é bifurcação. No cruzamento de dois
Caminhos do coração, nenhum templo se ergue para
Apolo.
Cantar, como tu ensinas, não é cobiça
Nem conquista de algo que por fim se alcança.
Cantar é existir. Para um deus, muito fácil.
Mas nós, quando é que existimos? E quando ele
Faz voltar para nós a terra e as estrelas?
29
Jovem, amar ainda não é nada, -
Embora a voz te force a boca – aprende
A esquecer que en-cantaste. Isso se apaga.
Na verdade, cantar é um outro sopro.
Um sopro pelo nada. Um vibrar em deus. Um vento.
O (épos) é a palavra enquanto canto, enquanto poética. Poesia é criação.
A palavra poética é a que entoa a linguagem como canto, na dinâmica da criação.
“Poesia é todo deixar e fazer passar do não ser ao ser”, dizia Platão (Simpósio 205 b)...
Todas as criações de todas as artes são poesias e todos os criadores são poetas. Poética
por excelência e originariamente é a própria (physis). Toda a criação é repentina,
advento do inesperado. Toda criação nasce do impacto subreptício, oblíquo, da
realidade. Poética é, antes de tudo, a realidade em retração-escondimento,
(léthe), e em doação-desescondimento, (alétheia). A força inaugural de
toda a obra poemática está no poético do mistério do ser. Poetas e pensadores são
vigias da poética do mistério do ser.
A palavra da deusa dirigida ao pensador da-se como o vir à fala de um
(épos), de uma palavra cantada, poética. Escutemos novamente as palavras do
poema:
(kaì me theà próphon hypedéxato,
cheíra dè cheirí dexiterèn, hode d’ épos pháto
kaì me proseúda): e a mim a deusa recebeu
favorável e prenunciando, mão, com a mão,
porém, tomou a direita, disse então a palavra
e cantou para mim:...
30
O (mythos) é, aqui, o acontecer da linguagem como um apelo, uma
interpelação, graciosa, favorável, gratuita, benevolente. Na tragédia Aias (v. 522),
Sófocles diz: (cháris chárin gár estin he títous’
aeí) – a benevolência é o que sempre faz apelo à benevolência. O (épos) da deusa
é o entoar do apelo do mistério do ser e de sua revelação. Como, no entanto, soa este
apelo?
Oh jovem (o kour’), companheiro de imortais condutoras de carro, que te trazem, com os cavalos, alcançando nossa morada: salve! Pois de nenhuma maneira uma moira () ruim te enviou a trilhares este caminho, - pois, em verdade, ele está para além do homens, fora da senda muito batida deles, - mas Themis e Dike.
É necessário que experimentes tudo: tanto o coração intrépido da verdade bem redonda - aletheíes eukýkleos atremés hêtor), quanto as aparências dos mortais (brotôn dóxas), nas quais não há a confiabilidade da verdade (pistis alethés). Mas é necessário, também, experimentares e estas coisas aprenderes: como aquelas coisas que aparecem necessitavam, de maneira adequada ao aparecer, ser o que reluz através de tudo levando tudo à consumação.
O pensador é chamado de (kouros), jovem. A ele é dada a juventude no
modo da jovialidade. Aquele que é conduzido e acompanhado pelas
(Heliádes kourai), moças filhas do Sol, é, ele mesmo, em virtude dessa condução
e dessa companhia, um (kouros), um jovem. Quem vive junto à fonte da luz e da
vida recebe e resguarda a jovialidade, a alegria de viver – a gaia ciência. Ao pensador é
destinada uma serenidade jovial e uma jovialidade serena, como dádiva divina. A
imagem do (kouros) marca a escultura grega dos primórdios.
32
Figura 6: Kouros anavissos
A deusa saúda o pensador chamando-o de Kouros, e dizendo-lhe: (chaîr’)
– isto é, “alegra-te!”, “salve!”, “viva!”. A bênção divina está com o pensador. Com ela, a
alegria, a jovialidade, a plenitude da vida, a saúde, a salvação. A saudação da deusa
comunica salvação. A (alétheia), a verdade, diz alegria, paz, salvação, pois vige
e vigora, essencializa-se, como liberdade. Livre significa preservado de... resguardado.
Libertar é resguardar. Resguardar, porém, não quer dizer meramente algo negativo: não
fazer nada com aquilo que se resguarda. Resguardar é algo positivo, é um deixar ser, no
sentido de entregar algo ao vigor de sua essência, é restituir algo ao abrigo de sua
essência. O homem é pacificado na liberdade da pertença à verdade. Nesse resguardo,
33
é-lhe dada a alegria, a jovialidade serena, a sernidade jovial. O brilho, o sorriso, do
Kouros guarda este segredo, talvez?
Entretanto, como elucidar esta bênção da (alétheia)? Qual é o seu
fundamento? A resposta da deusa é:
Pois de nenhuma maneira uma moira () ruim te enviou a trilhares este caminho, - pois, em verdade, ele está para além do homens, fora da senda muito batida deles, - mas Themis e Dike.
O pensador é bem-aventurado, encontra a beatitude, em virtude da
(Moira). O nome “Moira” remete ao verbo medial meiromai: dividir, repartir.
“Moira” significa, com efeito, a parte que toca, a porção que é assinalada, reservada e
destinada, a cada ente, também a cada homem, no todo, isto é. Daí: destino. Moira
nomeia, pois, a partilha, que resguardando, concede participações, deixa e faz ser
partes, no desdodramento do mistério do ser e de sua revelação. A parte que toca a
cada ente no Todo é recebida a modo de destinação, de envio, encaminhamento. O ser
é a via de todas as vias. Na via do ser são enviados os entes. Cada ente tem o seu
caminho de essencialização e de realização, a sua via, a sua viagem. Cada história de
cada ente é o mythos, a saga, desta destinação. Narrar a história ou a estória de cada
ente é dizer, isto é, mostrar como ele veio a ser o que ele é nas peripécias e vicissitudes
de um envio, de uma destinação. (Moira) é o nome para o ser, enquanto envio,
destinação. É o vigorar da vigência do vigente no modo do destino e da partilha
essencial, fundamental. Na partilha, tudo que está com-plicado no Um se ex-plica. A
(Moira), isto é, à destinação do ser, é um vigor que contém em sua mão e
resguarda tudo: todo o ente, céu e terra, o que subjaz no céu e na terra, os mortais
(homens) e os imortais (daimones e theoí). O ente no todo está sob a regência da
(Moira), isto é, da destinação do ser. No fragmento VIII (v. 37s) lemos:
...
(...epeì tó ge Moir’ epédesen
oulon akíneton t’ émmenai)
34
... Já que a Moira lhe impôs (ao ente)
Ser todo e imóvel.
A deusa diz ao pensador que não foi uma Moira ruim que o enviou à sua morada,
mas (Themis) e (Díke). Themis é uma titânide, filha de Urano e Gaia (Céu e
Terra), os pais primordiais. (Themis) é a que põe e institui as leis eternas dos
deuses. De fato, o seu nome tem a ver com o verbo títhemi: pôr, colocar. Significa, pois:
posição, colocação. Por isso, ela era a conselheira de Zeus e tinha a autoridade de reunir
e dissolver as assembleias dos deuses e dos homens. Themis gerou com Zeus as Moiras,
deusas do Destino.
Figura 7: Themis and King Aegeus, Athenian red-figure kylix C5th B.C., Antikensammlung Berlin
(Díke), como já vimos, é filha de (Themis) com Zeus. (Díke) é,
já acenamos, a justeza da articulação e estruturação, da conjuntura essencial e originária
de todas as coisas. (Díke) significa a articulação íntima de todas as coisas,
35
enquanto pertencentes, todas, nas suas realizações e desrealizações, ao Mesmo, ao
mistério do Ser.
Figura 8: Dike x Adikia (Justiça x injustiça)
(Díke) é a porteira do portal do dia e da noite. Ela é a guardiã da chave que
abre, des-vela, e fecha, vela. Ela rege a (alétheia), o des-encobrimento, como
também a (léthe), o encobrimento. Com ela se manifesta tanto o ser, que se des-
tranca, quanto o nada, que se tranca. Ela é a conjutura, portanto, do ente no ser, e a
conjuntura de ser e nada, bem como de verdade e aparência.
O (épos), a palavra cantada, da deusa continua:
Urge, porém, que saibas tudo, tanto o coração intrépido que descobre a verdade de circularidade perfeita, quando os pareceres dos mortais, a que não pertence confiança no desvelamento da verdade. Mas apesar de tudo, hás de aprender também o seguinte, que e como as aparências têm urgência de penetrar, em sua própria condição de aparência em todas as coisas através de tudo.
36
A deusa está dirigindo sua palavra ao pensador. Este é um mortal. A ele não é
dado saber e experimentar “o coração intrépido que descobre a verdade de
circularidade perfeita” - (aletheíes eukýkleos
atremés hétor) – sem ter que saber e experimentar, também os pareceres dos mortais -
(brotôn dóxas). A aparência não está fora, excluída, do ser. Ela pertence
ao ser. (phýsis) é tanto ser quanto aparecer, luz, (phós). O mostrar-se do
que aparece e se presenta pertence imediatamente ao ser. O ser se mantém no aparecer
do ente, atravessa-o com o seu brilho, consumando-o, levando-o à perfeição.
O ser é a verdade, isto é, a revelação de circularidade perfeita, a beleza esférica
(unidade simples e infinita). Ele perpassa todo o ente, todo o vigente, todas as coisas -
(tà eonta) –, tudo aquilo que aparece - (tà dokounta). E, no
entanto, algo pode aparecer como é ou pode aparecer como o que não é. No primeiro
caso, o ser coincide com o aparecer. No segundo caso, não. No segundo caso a aparência
é mera aparência, engano, ilusão. Algo aparece e, neste aparecer, parece ser isto ou
aquilo, parece ser assim e assim... e, no entanto, não é. Todavia, para que algo possa
aparecer de maneira ilusória, é preciso que algo apareça. Sem aparecer genuíno não há
um aparecer ilusório, que naquele se funda, a modo de uma distorção, de uma
dissimulação, de um simulacro. A aparência, no sentido do mero aparentar, não
pertence, contudo, ao ser. A mera aparência não só faz aparecer o ente como aquilo
que ele não é, de modo distorcido, dissimulado, e, nisso, enganoso, encobridor, como
ela também se encobre a si mesma, se dissimula a si mesma, apresentando-se como o
ser mesmo, sua revelação, sua consistência. A mera aparência passa-se pelo ser e pela
verdade. Ser um mortal é estar sob a constante necessidade de discernir o que é um
aparecer genuíno, consistente, verdadeiro, perpassado pelo vigor e pelo brilho do ser, e
o que é um aparecer no sentido da mera aparência, da distorção, da dissimulação, do
engano. Ser e aparecer são, assim, potências que estão ao encalço do homem na sua
existência cotidiana. O mortal é aquele que é urgido, constantemente, a fazer este
embate e discernir entre o ser e o seu originário aparecer e o mero parecer e a
aparência. Nos pareceres, isto é, nas opiniões dos mortais, neste sentido não mora uma
confiança desvelante. Os mortais são, fundamentalmente, seres errantes, expostos ao
37
engano, à equivocação. Pensar é comprometer-se, porém, com fazer da existência um
único e intrépido empenho de desvelamento do ser.
Passemos agora ao fragmento II:
Eis pois, que, eu vou dizer, tendo tu escutado cuida, porém da saga da linguagem (- mython), quais caminhos (- hodói) de investigação (dizésios) somente são para pensar (- noésai): um é como se dá ser e também, como não se dá não ser (- me eínai); é pista de confiança (peitoùs esti kéleuthos) – pois acompanha o desvelamento (- oletheíei) –; o outro, como não se dá ( - hos ouk estin), e também quão necessário é (hos chreón esti) se dar não ser (- me einai); esta, com efeito, proclamo ser (- phrázo émmen) uma vereda toda inacessível (- panapeuthéa... átarpón); pois nem poderias conhecer (- oute gar an gnoíes) o não ser (- to ge me eón), de vez que inacessível - ou gar anystón), nem dizer em palavras - oute phrásais).
Parmênides vai dizer, isto é, indicar, mostrar, tornar acessível o que concerne aos
caminhos do pensar. Aquele a quem ele dirige sua palavra é convidado a se colocar no
recolhimento da ausculta e, assim, a cuidar do (mythos). O (mythos) é a
saga da linguagem, enquanto preserva e resguarda tanto a (alétheia), o
desvelamento do ser, como (lethe), o velamento do não ser. Agora já não está em
questão a distinção de verdade do ser e aparência - dóxa), em que a não-verdade
se dá como distorção e dissimulação, como engano, ilusão, erro (no sentido de errância).
Agora está em questão outra distinção: aquela entre ser e não ser, ou seja, entre
verdade, no sentido de desvelamento, e não-verdade, no sentido de velamento,
encobrimento, mistério. Assim como a aparência pertence, de certo modo, e não
pertence, de certo modo ao ser (pertence, enquanto ser se dá num aparecer e o
38
aparecer precisa ser e precisa do que ser que aparece, mesmo para haver um parecer
que se mostra como sendo, enquanto, de fato, não é), assim também o não ser pertence
e não pertence ao ser. Tentemos entender como.
Ambos os caminhos, o do ser e o do não ser, são vias de investigação dignos de
serem percebidos, pensados (- noésai). Primeiramente, Parmênides indica o
caminho do ser. Ele atenta para isso: como se dá ser e como não se dá não ser. O
caminho do ser para o ser é o caminho da revelação, do desencobrimento, da verdade:
(alétheia). Estar numa senda de confiança fundada é seguir a revelação, o
desencobrimento do ser. Neste sentido, o não ser não se dá. O não ser não acontece,
pois, na via do ser, isto é, na via do desencobrimento, do manifesto.
O outro caminho de investigação que se há de ter em mira é o seguinte: como
não se dá ser e quão necessário é não se dar ser. Esta é uma vereda que não se pode
interpelar. Aqui está em questão o inviável, o insondável, o incognoscível, o inefável. É
a via inviável, por ser a via que leva ao não ser. O não ser, o nada, não é algo de ente –
o que não significa que ele deva ser tomado por uma nulidade. O caminho do nada não
pode ser seguido. Mas também não se carece de seguir. Se não não podemos ir ao nada
não significa que o nada não venha a nós. Na verdade, a vigência, a força do nada, está
sempre se dando. Tudo sempre é e não é. Nós mesmos, sempre estamos sendo e não
sendo. O não ser, o nada, não é o resultado de uma negação, embora sua força esteja
atuando, como condição prévia, em toda a negatividade. Enquanto não ente, o nada
tem a ver com o ser. Também o ser se diferencia do ente. Ser e não ser não são ente
nem nada de ente. Ser e não ser se pertencem – e, neste sentido, são o mesmo. Mas
não se trata de uma identidade sem diferença. Ser e não ser se diferenciam. Ser vige
como desvelamento - (alétheia); não ser, como velamento (lethe). O
velamento, a retração, a subtração do ser, se proclama, nas palavras de Parmênides,
como o não se dá ser. Tanto é necessário se dar ser – a sua doação, enquanto
desvelamento; quanto é necessário não se dar ser – o seu retraimento, a sua subtração
– o nada (?). Os dois caminhos, o do ser e o do não ser, são um e o mesmo. O caminho
de ser para ser e de não ser para não ser está sempre acontecendo. E nós estamos
sempre sendo interpelados a tanto seguir o caminho do ser, o do desvelamento, quanto
a não estranhar o caminho do nada, o do velamento.
39
Nós, os mortais, estamos de início e na maior parte das vezes voltados para o
ente. Conhecemos, sabemos, o ente, e nada mais. Nos relacionamos com o ente, e nada
mais. A dimensão do ser, isto é, do não-ente, nos é desconhecida, ignorada. Neste
sentido, para nós, o ser vale como não ser. Mas, uma vez que nós damos ouvidos à
verdade, e deixamos de percorrer a senda batida da aparência cotidiana, podemos
pensar, isto é, perceber ((- noésai) tanto o caminho do ser quanto o do não ser.
Talvez sejamos até capazes de perceber o caminho do ser e de saber este caminho – o
caminho do saber e do conhecimento ontológico. Se não fosse possível perceber o
caminho do ser como é que teria sido possível haver a filosofia e toda a sua história? No
entanto, o poema de Parmênides é ainda mais exigente, ao falar do caminho do não-
ser, do nada. O ocidente teve uma grande dificuldade de perceber este caminho. O nada
permaneceu apócrifo, em certo sentido, na filosofia, no pensamento do ocidente. Mas
no oriente é o tema fundamental do pensar. Por isso, evocamos, aqui, duas estórias de
Chuang Tzu, que nos convidam a tomar a sério o caminho do nada.
“És ou não és?”, a Luz perguntou ao Nada. O Nada era escuro e vazio. O dia todo a Luz experimentou ver. Mas não pôde ver o Nada. Auscultou. Mas não o pôde ouvir. Tentou tocá-lo. Mas não o pôde encontrar. “Oh!”, disse a Luz consigo mesmo, “isto é pois o máximo! Quem pode atingir uma tal altura?! Eu posso saber que não sei o que é o Nada. Não posso, porém, não saber que não sei o que é o Nada. Se sei que não sei o que é o Nada, resta sempre ainda o saber do meu não saber. Como pode alguém alcançar essa culminância?!
O professor Carneiro Leão reinventou esta estória. Vejamos como:
De certa feita, não saber foi visitar saber com a pergunta de uma provocação: o que é o nada? – Saber que sabe tudo não pode não saber que é o nada! E de fato saber respondeu de pronto: ora, nada é o que há de mais óbvio e evidente: nada é não ser. Mas não saber não ficou satisfeito com a resposta de saber.
Por isso contestou: mas, neste caso, para nada ser mesmo nada, precisaria ser e, sendo, já não
40
seria nada, seria ser. Saber, portanto, não é saber, é não saber. Pois como todo o saber não sabe o que é o nada. – Saber ficou invocado. Será mesmo que não saber o pegou pelo pé, pelo que saber tem de próprio, o saber? Ocorreu logo a saber o paradoxo do mentiroso, a doutrina das suposições de Guilherme de Ockham, a teoria dos tipos de Bertrand Russel e a lógica das funções da língua. Mas tudo isto se lhe afigurava mais vaidade do que validade. Pois não lhe valia para saber o que é o nada. Saber saiu, então, perguntando por toda a parte: é ou não é?, enquanto não saber repetia: é e não é! Saber aguçou os ouvidos, nenhum ruído. Abriu a boca, nenhum sabor. Fechou os olhos, nenhuma luz. Já ia desistir, quando de repente foi tomado por uma força: então, é isso! Claro que é isso mesmo! Mas é o máximo! Foi procurar não saber com a resposta: não posso saber o que é o nada, mas posso saber que não sei! Assim saber ainda estava vencido por não saber. O maior poder, pois, não é o não saber de saber, mas o saber de não saber! –
Não saber comentou apenas: com tanto poder, saber só não pode não saber o que é o nada!20
O pensar não vai ao nada pelo saber. Mas o nada vem ao pensar pelo não saber.
É a vigência do mistério. O pensador precisa aprender a experimentar ambos: o caminho
do ser, necessário. E o caminho do não ser, inviável, insondável. O mistério dando-se
enquanto mistério, isto é, retraindo-se, retirando-se, recusando-se, encobrindo-se, e,
nisso, protegendo o que está doado, desencoberto, desvelado. O pensar se dá entre
saber e não saber. O pensar experimenta tanto a clareira – a abertura livre, desbastada,
clara e ressonante – do ser; quanto o cerrado – a mata fechada, densa, escura, silenciosa
– do não ser. O humano no homem acontece como um estar entre a des-ocultação e a
ocultação. Na des-ocultação acontece patência do ente e des-velamento do ser. Na
ocultação a latência e o velamento do não ser. O homem precisa experimentar ambos:
a linguagem do ser, sua sonância e ressonância; como também a linguagem do não ser,
seu silêncio, seu retraimento:
20 Leão, E. C. Filosofia Grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 187-188.
41
O retraimento da Linguagem é a Linguagem do mistério em doação nos empenhos de ser e nos desempenhos de realizar-se. Por e para perfazer a força de qualquer dizer, a Linguagem tem de retirarse das falas e, ao fazê-lo, abre espaço e deixa lugar para o sentido correr pelos discursos das línguas. Desde o Tractatus Logico-Philosophicus de 1922, Wittgenstein não se cansa de repetir que os limites do dizer apontam para os limites do mundo, mas não da vida, de vez que a Linguagem sempre mostra o que o discurso não pode dizer. Este mostrar recolhe em si toda a impossibilidade de dizer das línguas. Por isso é que, num esboço para Mnemosine, Hoelderlin, o poeta da poesia, nos remete para a dinâmica do esquecimento no âmago da própria memória:
Ein Zeichen sind wir deutungslos,
Schmerzlos sind wir und haben fast
Die Sprache in der Fremde verloren!
Somos um sinal sem sentido,
Insensíveis à dor, quase perdemos
A língua no estrangeiro21.
Do oriente, da China de Lao Tsé, nos vem um poema do pensar poético que
celebra o mistério do nada e sua vigência fundamental na vida dos homens. Sem o nada
o ser mesmo perde sua vigência. Niilismo não é a celebração do vigor do nada. Niilismo
é a perda de vigência do ser no esquecimento do nada. E niilismo é a destinação que
tomou o pensamento ocidental, em virtude do esquecimento do ser e do nada, da
linguagem e do silêncio, tendo se aferrado unicamente ao ente e sua entidade, isto é,
ao vigente e sua vigência, ao presente e sua presença. Vejamos, pois, o poema de Lao
Tsé. Primeiro, na tradução Richard Wilhelm:
Trinta raios cercam o eixo:
a utilidade do carro consiste no seu nada.
21 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia contemporânea, p. 225.
42
Escava-se a argila para modelar vasos:
a utilidade dos vasos está no seu nada.
Abrem-se portas e janelas para que haja um quarto:
a utilidade do quarto está no seu nada.
Por isso o que existe serve para ser possuído
e o que não existe, para ser útil22.
Na versão poética (adensada) do prof. Emmanuel Carneiro Leão lemos:
Sustentados pelo aro, trinta raios rodeiam um eixo,
mas onde os raios não raiam que roda a roda.
Vasa-se a vasa e se faz o vaso,
mas é o vazio que perfaz a vasilha.
Levantam-se paredes e se encaixam portas,
mas é onde não há nada que se está em casa.
Falam-se palavras e se apalavram falas,
mas é no silêncio que mora a linguagem.
O ser presta serviços,
mas é o nada que dá sentido23.
O caminho do ser e o caminho do não ser são os caminhos de investigação que
o pensador precisa pensar, perceber - (noésai). Pensar é, aqui, (noeîn),
perceber, no sentido de dar-se conta da experiência já sempre feita de que não ser é
condição de possibilidade, é requisito de possibilitação para ser.
O fragmento III é fundamental. Ele diz, simplesmente:
22 Lao Tzu. Tao-te-King. Texto e comentário de Richard Wilhelm. São Paulo: Ed. Pensamento, 2006, p. 47. 23 Leão, E. C. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 188-189.
43
...
(...tò gár autò noeîn estín te kaì eînai).
... pois o mesmo é pensar e ser.
Esta sentença de Parmênides dá a pensar. Ela oferece, na verdade, a coisa
mesma do pensar, isto é, o que é a sua questão, a sua tarefa, o a-se-pensar. Esta
sentença fundamental para toda a história do pensamento ocidental carece de ser
elucidada em nossa meditação. Ela é por demais enigmática. Vamos buscar ajuda, para
a sua elucidação, num outro fragmento do poema. Tomemos em consideração o
fragmento VIII, numa perícope que abrange os versos 34 a 41.
O mesmo é pensar e aquilo graças a que o pensamento é;
pois sem o ser, em que foi dito,
não encontraríeis o pensar: pois nenhuma coisa é ou será ao lado ou de fora do ser, já que a Moira o amarrou, de modo a ser todo (inteiro) e imóvel: por isso, tudo será nome, (a saber) o que os mortais (a-)firmaram, convictos de ser verdadeiro: tanto o surgir quanto o sucumbir, tanto ser quanto não ser, e o alternar do lugar, e o mudar do que aparece através das cores.
44
Os versos, num primeiro momento, não elucidam, isto é, não esclarecem, o que
foi dito no fragmento III: ... (...tò gár autò noeîn
estín te kaì eînai) - ... pois o mesmo é pensar e ser. Como a tradição interpretou este
dito? A interpretação tradicional do dito se movimenta em três direções:
1) primeiramente, encontra-se o pensamento como algo que é, que ocorre,
simplesmente dado, como algo que jaz antes de qualquer operação, e, neste
sentido, é. O pensamento é contado como um ente entre outros entes, faz
parte do todo, cuja unidade é chamada de ser. Porque é ente igual aos
demais entes. Ele pertence ao todo homogêneo do ente, cuja unidade é o
ser. O pensar é igual ao ser. Ele pertence ao ente como qualquer outra
atividade humana. Tudo o que é, seja algo de humano, seja algo de não
humano, é ente – pertence ao todo do ente, cuja unidade é o ser. Ao lado e
fora desse todo nenhum ente é.
_ Acontece, porém, que Parmênides não diz que o pensar está incluído entre
os (os entes). Não afirma que o pensar é um ente entre outros entes,
que, igualmente, pertencem ao todo, cuja unidade é o ser. Não diz que o
pensar pertence às aparências (tà dokounta) – as coisas que
ora são, ora não são, e que, intermitentes, advêm e passam.
2) A segunda perspectiva de interpretação, típica da filosofia moderna, toma o
pensar como conhecer e o ser como a realidade efetiva. A impostação
dominante é, aqui, a da teoria do conhecimento. A filosofia moderna
experimenta o ente como objeto. O objeto é o representado do representar.
A representação fornece o objeto, o representado, ao eu, que representa.
Representar é perceber e apeter: é um apeter apreender (cf. Leibniz). Ser é
o que é percebido, isto é, o que é apreendido, representado. O ser é em
virtude do pensar, do representar. Esse est percipi (Berkeley). O ser é igual ao
pensar, na medida em que é constituído na consciência, capaz de atuar
representações, no modo do “eu penso alguma coisa”. O ser é afirmação do
pensar que se produz a si mesmo: pertence ao âmbito da “idea”, do ideal. O
ser é o mesmo que o pensar, no sentido de que o ser é o que o pensar enuncia
45
e afirma (cf. Hegel). Hegel considerou, em virtude disso, que é com
Parmênides que se inicia o filosofar em sentido próprio, embora fosse um
começo ainda turvo e indeterminado. Para ele, o pensar-se a si mesmo do
saber absoluto é pura e simplesmente a própria realidade. Tosco é o começo
da filosofia em Parmênides, segundo Hegel, pois ainda falta a dialética. Esta,
para ele, teria aparecido com Heráclito. Na lógica especulativa de Hegel a
sentença “esse est percipi” (ser é ser percebido, isto é, representado),
alcança sua realização incondicional.
_ Porém, é preciso atentar para algo aqui. Em ambas as passagens (III e VIII,
34), Parmênides enuncia primeiro o (noeîn), o pensar ou perceber, e
só depois o (eînai), o ser. Se Berkeley remete o ser ao pensar. Já
Parmênides confia o pensar ao ser. Para os modernos, pensar é representar
e ser é ser-representado. Para os gregos, pensar é um perceber reunidor, e
ser é a vigência do vigente (respectivamente, a presença do presente). Para
o pensamento originário, o pensar, no sentido do perceber, está remetido ao
ser, no sentido da vigência do vigente. O pensar está confiado ao ser.
3) A terceira perspectiva de interpretação provém de Platão. Para este, o ser é
a presença constante, a (ousía), e esta, por sua vez, se dá como
(idea), feição, ou (eidos), aspecto. As ideias são o constitutivo de
todo ente, são aquilo que está propriamente sendo em todo o ente, a
vigência do vigente. Elas, no entanto, não são visíveis, perceptíveis, como as
coisas sensíveis - (aisthetà). Elas só são perceptíveis, visíveis, no
(noein), no perceber intelectivo, ou seja, no pensar. Plotino, segundo
Platão, interpretou que, com esta sentença, Parmênides quis dizer que o ser
não é algo sensível. Também aqui o acento recai sobre o pensar, embora de
modo diverso, em referência à filosofia moderna. O pensar é um captar não
sensível. O ser é o pensado do pensar, isto é, é o correlato não sensível do
pensar. Para esta interpretação, a sentença de Parmênides, no que ela está
dizendo, está afirmando a pertença de ambos, pensar e ser, ao âmbito do
não sensível ou do supra-sensível, dos (noetà), isto é, dos inteligíveis.
Entretanto, é preciso deixar falar a sentença de Parmênides a partir do reino e
do domínio de sua morada, de sua estadia. Uma interpretação fenomenológico-
46
hermenêutica da sentença de Parmênides precisa se dar como um diálogo com o seu
pensamento, que não transponha a sentença e o seu dito para o campo de escuta e o
âmbito de visão da metafísica (do pensamento posterior em que o ser está sob a égide
do pensar e não o contrário); precisa se dar, pois, como uma conversa aberta, que lhe
concede liberdade para o seu próprio dizer e se permita corresponder ao apelo
questionador do pensamento originário. Precisa, pois, transpor-se para o campo de
escuta e o círculo de visão do pensamento originário e questionar este pensamento, no
sentido de solicitar, pedir, demandar dele o que ele tem a dizer.
Tentemos, pois, escutar o que diz a sentença de Parmênides. Algo que
primeiramente demanda a nossa atenção é que no fragmento III aparece o verbo
(einai), ser e, já no fragmento VIII (34s), aparece o particípio substantivado
(eón), sendo-ser ou ser-sendo. O (eón) não diz, simplesmente, o ente, mas a
duplicidade de ser e ente. Diz, assim, o ser do ente, ou o ente no ser. A palavra guarda
o vislumbre do que se confiou à linguagem em palavras como (physis),
(Lógos), (Hen). Esta duplicidade é a morada do pensar. É no interior dela,
de seu desdobramento, que o pensar encontra a sua estadia permanente. Trata-se, aqui,
da clareira ser do ente. É a abertura de um caminho de liberdade, que abre um campo
de escuta e um círculo de visão. Nela se dá toda a sonância e ressonância, todo
luzimento e reluzência. Embora ela seja a redondeza aberta em que tudo se descerra e
clareia, ela ficou cerrada e escondida, para o pensamento ocidental.
(physis krýptestai phílei). O desencobrimento já tende ao
encobrimento. O desencobrimento permanece, ele mesmo, encoberto, para os homens.
Por outro lado, o encobrimento do mistério, a (lethe), ela mesma fica ainda mais
encoberta. Passa despercebido que não pode se dar (alétheia),
desencobrimento, sem (lethe), encobrimento.
O fragmento III diz, de maneira precisa e concisa, que pensar pertence a ser.
Como se dá este pertencimento? O fragmento diz: (tò gàr autò)... “pois o
mesmo...”. O fragmento VIII, 34, por sua vez diz: (tautòn): “o mesmo...”. Eis a
palavra enigmática em todo o pensamento de Parmênides. Uma interpretação
fenomenológico-hermenêutica desta palavra requer escutá-la e deixá-la resguardar-se
em si mesma enquanto enigmática. Em jogo não está, simplesmente, a posição
47
tradicional de que a identidade é o pressuposto claro, dotado de uma evidência
meridiana, da pensabilidade de todo o pensável. Em jogo está, ao que parece, o
pertencer do pensar ao ser. No fragmento III, Parmênides fala do ser: (einai); no
fragmento VIII, fala do (eón): a duplicidade de ser e sendo(ente). No fragmento III,
ele fala do pensar (noeîn). No fragmento VIII, (noeîn) evoca
(nóema): o tomado em atenção de um perceber atencioso. O (eón), a
duplicidade de ser-sendo ou sendo-ser, é dito (hoúneken esti
nóema): em virtude de que e por mor de que vige pensamento. O pensamento vige a
partir da duplicidade ser-ente e se encaminha para ela. A duplicidade mesma reclama,
requer, para si mesma, o pensar. O Mesmo vive na e da pertinência recíproca de pensar
e ser. O pensamento pertence ao ser na medida que vige tomando em atenção o ser e
encaminhando-se para a duplicidade.
O pensamento não pode ser sem o ser. O ser é o seu medium, isto é, o seu
elemento. Como o peixe pertence à água, como o pássaro pertence ao ar, como a
minhoca pertence à terra, assim também o pensar pertence ao ser. O pensar se move
no ser. Pensar é compreender, isto é, recolher, reunir a doação do ser. É (lógos).
Os que não escutam o (Lógos), que vige como o (Hen Panta), o Um-
Tudo, são ditos, no fragmento 1 de Heráclito, (axýnetoi)24: os que não
compreendem. O (Lógos) é a con-juntura universal de todo o ente (sendo) no
ser. Por isso, a compreensão do ser, é o seguir e ter em atenção esta conjuntura
universal, comum a tudo o que é. Em virtude disso, a compreensão do ser é, ela mesma,
universal, isto é, aberta para a imensidão, a altura e a profundidade, e a originariedade
do ser, que tudo reúne na sua unidade. Aquele que não escuta o (Lógos), a
conjuntura comum de tudo o que é, tem uma compreensão privada, particular:
(tou
lógou d’ eóntos xynou zóousin hoi polloì hos idían échontes phrónesin): “mas enquanto
o Lógos vive em con-juntura, a massa vive como se tivesse um entendimento próprio e
particular” (fragm. 2). Destes diz o fragmento 34: “Sem compreensão: ouvindo parecem
surdos, o dito lhes atesta: presentes estão ausentes”. Os que não ajuntam o conjunto
24 Esta palavra provém da negação (a-) de (syníemi): pôr junto, ajuntar, e, daí, perceber, ouvir, entender, apreender, conhecer, compreender.
48
de tudo o que está sendo na unidade do ser equivalem, aqui, a surdos. Como não estão
atentos à presença que tudo permeia, embora sendo presentes, é como se não fossem.
Falta-lhes a presença de espírito. São como ausentes. O (Lógos) é a conjuntura
do ser, em que se ajuntam todos os entes. É a juntura em que se articulam todos, nas
suas diferenças. Em Parmênides o (Lógos) é dito (tò eón): o ser (o vigorar
que rege a duplicidade de vigência e vigente, de ser e ente). É chamado, no fragmento
V, de (xynón), presença reunida, a conjuntura, que reúne tudo em si e o mantém
junto. O fragmento V diz:
(xynón dé moí
estin, hoppóten árxomai: tothi gar pálin híxomai authis): “o comum me é dado, de onde
sempre inicio; pois para lá eu irei retornar de novo”. O pensar provém do ser, se
encaminha para o ser, e se movimenta, se encaminha, no elemento do ser.
Parmênides, no fragmento VIII, diz:
(tautòn d’ esti noein kai houneken esti
nóema) – o mesmo é o pensar, a percepção, o recolhimento, e aquilo em virtude do qual
o pensar, a percepção, o recolhimento, se dá. Ser diz vir e estar na luz, aparecer, entrar
na revelação e no desencobrimento - (alétheia), verdade. Onde o ser vigora e
reina dá-se também o viger do pensamento.
Ainda é dito:
(ou gar
aneu tou eóntos, em ho pephatisménon estin, euréseis tò noein) – com efeito, sem o ser,
em que foi dito (o ser), não encontrarás (alcançarás) o pensar, isto é, o perceber que
reúne, isto é, o compreender. O (noein), o pensar, no sentido do perceber, se
funda no (légein), no recolher e deixar subjazer. O (nóema) é o
(nooúmenon) do (noein): o percebido é o que está sendo captado
pelo perceber pensante, isto é, pelo pensar perceptivo, intuitivo). Se, contudo, o
(noein), o pensar perceptivo, intuitivo, se funda no e vige a partir do
(légein), do recolher e deixar subjazer, então, o (nóema), o percebido, é
um (legómenon), algo que está sendo recolhido, e, assim, algo que está
subjazendo, e que, deste modo, pode ser falado, dito, enunciado. Mas, para que isso
seja possível e aconteça, é necessário que o (tò eón), o ser, tenha se tornado
49
fenômeno. O ser vem ao dizer – (phánai), isto é, ele se mostra, no ente. Algo pode
ter sido dito, sem ter sido pronunciado. Algo pode ter sido dito silenciosamente. No
entanto, se algo foi pronunciado, este pronunciamento se funda num ter sido dito. O ser
se dá como (phásis), como a saga do dizer, isto é, do mostrar, do trazer à luz, do
deixar e fazer aparecer ao modo de um brilhar. O ser se dá, pois, como a aparição
originária - (phasma). Somente com base nisso é que pode acontecer um dizer
no sentido de (phásko) – este verbo significa dizer, afirmar, mas precisa ser
experimentado como um deixar aparecer, na dinâmica de um chamar, convocar, evocar,
celebrar. Em grego, o verbo (phemí), eu digo, dizer, tem a ver com a dinâmica de
trazer à luz, deixar e fazer aparecer, mostrar. Vige neste verbo o mesmo que no verbo
(légo), falo, no sentido de: recolho, deixo subjazer, trazendo à luz.
Parmênides fez a experiência do (noein) como
(pephatisménon): como o dito no ser. O pensar foi trazido à luz no ser.
No vir à luz do ser aconteceu o trazer à luz do pensar. Não se poderia achar, encontrar,
descobrir o pensar a não ser no viger do ser, de sua auto-abertura, de sua auto-
emergência - (physis), de sua auto-revelação - (alétheia), de sua auto-
iluminação. O pensar pertence à auto manifestação do ser. Parmênides diz:
(ou gar aneu tou eontos... euréseis to
noein): não podes encontrar o penser sem o ser/sendo. O pensar é provocado pelo ser.
Ele é suscitado pelo ser como destinatário de seu apelo, de sua convocação. O pensar é
nomeado pelo ser para ser o seu lugar-tenente.
O pensar não capta e recolhe qualquer coisa. O pensar reúne apenas “uma
coisa”, o Um único que tudo reúne, o ser. O fragmento VI diz:
(chrè tò légein te noeîn t’ eón émmenai) – “é
necessário tanto dizer (trazer à luz) quanto pensar (perceber), que o ente é”. Com outras
palavras: é necessário tanto o dizer quanto o pensar que traz à luz e perscruta isto: o
ente em seu ser. Na lingua de Parmênides, porém, se lê assim:
50
Necessário
Tanto o dizer como o pensar
Ente
Ser
Não se trata de uma leitura sintática, mas, antes, paratática. Poderíamos ler
também assim: “urge: tanto o dizer como o pensar: ente no seu ser”. Urge tanto o trazer
à luz e recolher e deixar subjazer quanto o tomar em atenção. O (noeîn) se
desdobra no(légein). O tomar do perceber é um deixar advir daquilo que é
subjacente. Por outro lado, o (noeîn) é contído no (légein). A atenção, em
que o pensar toma o ser, pertence à concentração, ao recolhimento, em que o
subjacente enquanto tal está resguardado. Neste sentido podemos ler a sentença de
Parmênides assim: (chrè tò légein te noeîn te...) –
“urge: o deixar-subjazer tanto como o tomar em atenção...”.
Entretanto, a que se referem este deixar-subjazer e este tomar em atenção e sua
mútua implicância? A sentença se completa com: (eón émmenai). Falta o
artigo a (eón). É a forma arcaica de (on). No (e) está evocada a raiz *es: ser, no
sentido de viver, respirar, estar animado, ter fôlego ou alento. As duas palavras finais da
sentença poderia ser lida assim: : eón : émmenai) – “ente: ser”. A palavra
(eón) é um particípio. Ele é ambíguo, por concernir à duplicidade de sendo-ser. De
acordo com esta duplicidade, o ente (o que é, o que está sendo) vige (vigora e perdura)
no ser, e ser vige como ser do ente. Ente, na experiência grega, quer dizer: vigente-
presente; já ser, diz: viger, vigorar-perdurar, permanecer. É a partir do viger do vigente,
do (émmenai) do (eón), que fala, agora a palavra inicial da sentença:
(chré) – “é necessário”, “urge”. O ser do ente, o viger do vigente, se serve do
(légein), do deixar subjazer, e do (noein), do tomar em atenção.
51
Estamos tentando meditar a respeito do fragmento III:
(...tò gár autò noeîn estín te kaì eînai). Para
nós, isso soa assim agora: “nomeadamente, o mesmo é o tomar em atenção, assim
como aquilo a caminho de que o perceber atencioso está, o viger do vigente (o ser do
ente)”. O pensar vige ele mesmo em referência ao ser, ele pertence ao ser, serve ao ser.
Ele vem à luz no ser, vive em virtude dele e se encaminha para ele. O pensar, no entanto,
se cumpre num dizer, isto é, num mostrar, num deixar vir à luz. Dizendo, deixa subjazer
e recolhe. É (phasis) e (lógos). Nisso se consuma um descobrir. Os gregos
chamam de (alétheia), verdade, a este descobrir. Retornamos, assim, à deusa
do poema de Parmênides.
Pensada a partir da (alétheia), a sentença deixa de encontrar o seu
suporte, o seu sustento, o seu “sujeito” no pensar e passa a encontrar na palavra
enigmática: (tò autò): o Mesmo. (tò... autò... estin) – “o
mesmo... é”. Isto quer dizer: “o Mesmo vige, guarda e resguarda”. O Mesmo é o Simples
– o sem dobras. Mas o Mesmo vige deixando se dar o desdobramento de dizer e pensar
e ser (no sentido da duplicidade de ser e ente). Tanto o dizer, que recolhe e deixa
subjazer, quanto o pensar, que toma em atenção, quanto o ser do ente, se dão como o
desdobramento do Mesmo.
O fragmento VI diz:
(chrè tò légein te noeîn t’
eón émmenai: esti gàr eínai). O que se acrescentou agora é: esti gàr
eínai). A tradução literal seria: “é, pois, ser”. Se nos atemos ao que nos está mais
próximo, ao que nos aparece no cotidiano, o ser parece não ser. Para nós, de início e na
maior parte das vezes, é como se o ser não fosse. E, no entanto, o pensamento de
Parmênides diz: o ser é. Se o é deve ser dito propriamente de “algo”, então deve ser dito
do ser. O ser, pois, é. O desafio é, agora, não representar o ser como um ente. Por isso,
em vez de dizer “é, pois, o ser” ou “o ser, com efeito, é”, poderíamos, agora, dizer: “dá-
se, pois, ser”. A história só acontece em virtude da doação e, ao mesmo tempo, da
retração, do ser. A história é a destinação da doação (e da retração) do ser. Cada época
é o modo como acontece a retenção - (epoché) – do ser. A história, assim,
convida a vislumbrar pelo espírito o ausente como presente (cf. fragmento IV).
52
O fragmento VIII começa assim:
Mas então permanece apenas a saga da linguagem de um percurso, de como se dá ser; neste percurso, com efeito, são muitos os discursos, sobre como ser é sem nascer e sem perecer, pois se dá tanto todo inteiro quanto intrépido e ainda sem nenhuma possibilidade de aperfeiçoamento; nem foi outrora, nem será noutra hora, pois no agora de qualquer hora, se dá todo junto, todo unido, todo contido.
O que é dito do ser, aqui, são (sémata). Não se trata de sinais nem de
predicados do ser. São acenos. Eles acenam para que se tome em atenção o ser nele
mesmo a partir dele mesmo. O uso de negações, a saber, de (alfa) privativo, de
(oudé), de(medé), de (ou) e de (me) serve para, por meio de
retiradas, de subtrações, conduzir a atenção pensante para a positividade inaugural,
plena, originária, do ser. A vigência do ser é inaugural. Ela se dá em toda a presença e
em toda a ausência, em toda possibilidade e impossibilidade, em toda a necessidade e
contingência. Sem ela não se daria nenhum aparecer nem nenhum devir. Sem ela não
se daria pensar e dizer. Não se daria nenhuma afirmação nem nenhuma negação. Não
se daria nenhuma posição, oposição e composição. A vigência do ser se dá como firmeza,
solidez, consistência, concentração em si mesma. A Moira firmou o ser e determinou-o
para viger como todo e como imóvel, em sua quietude. Estes muitos acenos do ser -
(sémata tou eontos) – não são signos ou sinais que remetem a
outra coisa. São o brilho múltiplo do Um, do Mesmo, do Simples, que vigora na
duplicidade de ser e ente.
O Mesmo é o (eón), a duplicidade ser-ente, em Parmênides; o
(Lógos), em Heráclito; e (Tò Chreón) em Anaximandro. Os três falam
da (phýsis), do vigor de ser, a partir de e como (alétheia) e (léthe),
desencobrimento e encobrimento (do mistério). Para Heráclito, physis é lógos, a força
de reunião que perpassa e domina tudo, força que reúne o que tende a contrapor-se,
que mantém numa constância o que oscila, a harmonia inaparente e mais forte, que
disciplina os contrastes e que impede que o todo se disperse e se perca num mero
53
amontoado25. Ora, segundo Heidegger, ao contrário do que se costuma a ensinar,
Heráclito e Parmênides pensaram e tentaram dizer o mesmo. Este mesmo que Heráclito
pensou como a força de reunião, de unidade que domina desde o íntimo da physis, por
ele denominada de lógos, foi experimentada e pensada por Parmênides como hen, um,
ou, simplesmente, como einai (ser), isto é, como “a própria solidez do consistente,
concentrada em si mesma, não atingida por nenhuma inconstância nem mudança”26 . O
ser se contrapõe ao vir-a-ser e ao aparecer. Entretanto, ao mesmo tempo, o vir-a-ser e
o aparecer co-pertencem ao ser e vice-versa. O vir-a-ser é o aparecer do ser; e o
aparecer é o vir-a-ser do ser. O ser é presença. O vir-a-ser é o chegar à presença e o sair
dela. O aparecer é o apresentar-se que se clareia e brilha. Assim como o vir-a-ser e o
aparece co-pertencem ao ser, também o não-ser, o nada, pertence ao ser. Ser e não-ser
se co-pertencem como presença e ausência, como emergir e submergir, como
manifestação e ocultação (Cf. IM, p. 140-141)27. O homem está em meio a tudo isso.
O pensador conhece o caminho do ser e do não ser. Ao mesmo tempo, enquanto
mortal, ele precisa ser advertido pela deusa (alétheia) para não se deixar
enveredar pelo caminho batido dos mortais, o das aparências, de modo a descuidar do
caminho do ser e do não ser. Neste caminho, o pensamento se retira e a linguagem se
defasa. No fragmento VI traz à fala o caminho batido dos mortais, o caminho das
aparências, em que o pensamento, isto é, o tomar em atenção o dar-se do ser, se
ausenta e a linguagem, entendida como lógos, isto é, como recolhimento e deixar
subjazer do ser, cede lugar para a lingua, no sentido da fala vazia, da tagarelice. O
fragmento VI adverte contra o perigo da ausência de pensamento:
Urge tanto dizer quanto pensar o sendo no ser; pois ser (- einai) se dá, nada - medèn), porém, não se dá; é o que eu mando pronunciar para ti, pois deste primeiro caminho de pesquisa te afasto, ms ainda também deste que, então, mortais, que nada sabem, cursam, bicéfalos. Pois um desamparo no peito lhes guia o senso hesitante, paralisados, porém, se arrastam broncos e cegos, bando de indecisos para os quais o ser e também o não ser valem o mesmo e não valem o
25 Heidegger, M. Introdução à Metafísica (IM). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987, p. 157-158. 26 Idem, p. 124. 27 Idem, p. 140-141.
54
mesmo, mas, assim, porém, a pista de todas as coisas é ida e volta.
Urge tanto o dizer, em sua dinâmica de recolher e de deixar subjazer, quanto o
pensar, no sentido de perceber, de tomar em atenção o ser. Dá-se ser. É o acontecer do
mistério em sua doação inaugural. Ao ser pertence o “é”. O nada não é: não lhe pertence
o “é”. O pensador é interpelado, advertido, é-lhe chamada a atenção. Primeiramente,
ele há de afastar-se deste caminho de investigação, e, também, mais ainda, do caminho
da (dóxa), tomada no sentido da aparência. Neste caminho, o ente se deixa ver
ora de uma maneira ora de outra. É o reino do parecer e dos pareceres. As aparências
do ente são intermitentes. No domínio delas falta a estabilidade de conexão e de
coesão. Aí impera a debilidade e a inconstância, a liquidez, a inconsistência, a dispersão.
Por aí caminham “os homens que não sabem”, estes “bicéfalos”, isto é, homens
divididos em sua mente, que não sabem se orientar, que vão sendo empurrados ora
para lá ora para cá, errantes. Sem presença de espírito, são como ausentes. Sem
capacidade de recolher-se na escuta, são como que surdos; sem capacidade de ver o
que há de mais luminoso, são como que cegos; sem atenção para o ser, cambaleiam no
ente, como tontos. Têm um espírito confuso. Não sabem distinguir, separar. São
impressionados por tudo o que aparece. Não têm decisão. Vivem na indiferença quanto
ao que concerne ao ser e ao não ser. Para eles tanto faz o curso das coisas ir para um
rumo ou para o outro. Aqui impera o anti-ser, o pseudo-ser, a inessência do ser.
O fragmento VII, por sua vez, adverte contra a defasagem da linguagem.
Primeiramente, como no fragmento VI, o pensador é advertido a não tomar o não-ser
como algo que é, como um ente, isto é, como alguma coisa (ou, o que daria no mesmo,
como uma mera negação ou ausência de coisas, mesmo que seja de todas as coisas):
“Pois jamais poderás urgir isto, que o não-ser seja; tu, porém, afasta o pensamento
deste caminho de investigação”. Em seguida, de novo, como no fragmento VI, é
acrescentada uma outra advertência:
“e o costume muito perito não te deve de forma alguma forçar em direção desse caminho [nota: da aparência]. Pois tu te perderias a ti mesmo num olhar que não vê e num ouvir ensurdecedor e
55
na facilidade da lingua (glossa). Decide-te antes separando, colocando diante de ti, recolhido numa unidade, a indicação do conflito que te proponho”.
Nesta passagem estão em oposição: o (lógos), a linguagem e a
(glóssa), a lingua; a palavra que diz e a tagarelice que nada diz; o que mostra e
o que não mostra; o que deixa brilhar e o que faz opaco; o que recolhe e o que dispersa;
o que deixa subjazer e o que intervém arbitrariamente no curso das coisas e da história.
No exercício do (lógos), o homem é capaz de crítica, isto é, de (krínein):
de separar, distinguir, diferenciar, de cindir, no sentido de de-cidir, a partir da unidade
com o Um, isto é, a partir da concentração que se recolhe na unidade da reunião do ser.
No exercício do (lógos) o homem colhe, recolhe, e, ao mesmo tempo escolhe o
que é digno de ser pensado e dito e o que urge resguardar e abrigar. E esta escolha se
dá a partir da escuta e da visão do ser. A escuta e a visão das aparências são perturbadas.
A visão acontece como se fosse cega: olha-se e não se vê. A audição se dá como se fosse
surdez, como se os rumores e ruídos da comunicação humana zunissem de modo
ensurdecedor. Aí impera o verbalismo e a dissipassão. A compulsão, a repetição estéril,
não deve poder se impôr com violência sobre o pensador. O pensador precisa de vigor
firme e decidido para não se deixar levar por uma tal imposição e decidir-se pelo reino
da verdade do ser contra o reino das aparências e suas distorções e dissimulações. É
preciso muito vigor crítico, isto é, de cisão e de decisão para exercer o discernimento e
do desvelamento e para conservar, resguardar e guardar, a manifestação do ser e o
mistério do não ser.
No entanto, é preciso que voltemos ao que a deusa diz ao mortal Parmênides no
fim do proêmio do poema:
É necessário que experimentes tudo: tanto o coração intrépido da verdade bem redonda - aletheíes eukýkleos atremés hêtor), quanto as aparências dos mortais (brotôn dóxas), nas quais não há a confiabilidade da verdade (pistis alethés). Mas é necessário, também, experimentares e estas coisas aprenderes:
56
como aquelas coisas que aparecem (- tà dokounta) necessitavam, de maneira adequada ao aparecer, ser o que reluz através de tudo levando tudo à consumação.
O mortal é o lugar de encontro, a encruzilhada, o trevo, de três caminhos: do ser,
do não-ser e das aparências (- tà dokounta). Por isso, a ele não é dado
nem viver puramente no brilho e na glória do ser nem puramente na escuridão do não
ser. A ele só é dado viver no lusco-fusco. Por isso é que a coruja é o animal totem da
existência humana e da filosofia, que é o empenho mais autônomo e, ao mesmo tempo,
mais finito da existência humana em sua referência ao todo. A coruja é o animal que voa
no lusco-fusco do entardecer. No domínio do aparecer (- tà dokounta) é
que se encontram e se cruzam os caminhos de ser e não ser. Por isso, o homem precisa,
sempre de novo, discernir entre ser e não ser e entre ser e mero aparecer (meras
aparências, enganos, errâncias). E carece de, em meio ao caminho de inconstância dos
mortais, aos quais ele também pertence, dar chances ao pensar do ser e do não ser nas
e entre as aparências. É somente no e a partir do aparecimento das aparências que se
desvelam ser e não ser. É o apelo que nos diz:
Mas é necessário, também, experimentares e estas coisas aprenderes: como aquelas coisas que aparecem (- tà dokounta) necessitavam, de maneira adequada ao aparecer, ser o que reluz através de tudo levando tudo à consumação.
Enfim, dá-se, para o pensador, no trevo da existência humana, o cruzamento de
três caminhos. A deusa (alétheia) lhe indica, de modo tríplice, mas unitário,
este cruzamento:
O caminho para o ser é incontornável, inevitável, imprescindível.
O caminho para o Nada é inacessível.
O caminho para a aparência é sempre acessível e o mais batido mas evitável.
57
O pensador se torna um (sophós), um sábio, quando se torna bem
experiente a respeito deste trevo, deste cruzamento dos três caminhos.
Um homem verdadeiramente sábio não é aquele que perssegue cegamente uma verdade. É somente aquele que conhece constantemente todos os três caminhos, o do ser, o do não-ser e o da aparência. Um saber superior e todo saber é superioridade, só é concedido àquele que experimentou o ímpeto alado do caminho para o ser. Que não estranhou o espanto do segundo caminho para o abismo do nada. E que aceitou, como constante necessidade, o terceiro caminho, o da aparência28.
Um homem sábio é um homem humano. É quem descobre sua humanidade no
trevo do cruzamento dos três caminhos. É quem não corre atrás, bronco e cego, de uma
única opinião, que ele tem por verdadeira. Mas é quem percorre, num só percurso, o da
viagem da vida, os três caminhos: o do ser, o do não ser e o da aparência. O seu saber
é, pois, um saber de experiência feito. É o saber do sabor de ser, de não ser e de
aparecer. Nesta experiência, ele é lançado para fora de si e para além de si, é instigado
a superar a si mesmo, sempre de novo, nunca se contentando com méritos e conquistas,
mas se alegrando com a dádiva do ser, do não ser e do aparecer. Em tudo isso, ele segue
o envio da (Moira) do (eón): do destino do ser. E, seguindo, entra no diálogo
sem fim do pensamento. Sem fim é este diálogo pois inesgotável: sempre de novo, de
maneira nova, dá a pensar. Na disposição deste diálogo, o pensador não tira o corpo
fora do seu tempo, isto é, das tempestades do ser, não recusa a angústia do não ser, e
não despreza a contingência do aparecer e parecer, em todas as situações da existência
histórica.
Este homem humano sabe-se, antes de tudo, como mortal. Morte e silêncio são
afins. No veias da linguagem criativa corre o sangue do silêncio. O homem que exerce o
(lógos) está sempre se calando, mesmo quando fala. É que o homem está sempre
morrendo, mesmo quando vive. O homem é o mais finito dos entes, pois é o ente que
sabe o sabor da finitude. Sendo homem humano, ele experimenta, porém, a infinitude
28 Heidegger, M. Introdução à metafísica, p. 139.
58
na finitude e a finitude na infinitude. O silêncio da linguagem é “a terceira margem do
rio” (João Guimarães Rosa) na travessia do homem humano.
Por tudo isso, o pensamento, sendo exercício finito do mais finito dos entes,
nunca encontra a finitude como falta, deficiência, carência. Mas celebra a finitude como
o resguardar do infinito:
A conversa com Parmênides nunca chega ao fim; não apenas porque muito se mantém obscuro nos fragmentos preservados de seu poema, mas porque também o que neles se disse é sempre ainda digno de se pensar. Um diálogo sem fim não é falta. É sinal do ilimitado que resguarda, em si e para o pensamento, a possibilidadde de uma transformação de destino.
Quem, no entanto, só espera do pensar um asseguramento, e calcula o dia em que o pensamento possa ser preterido e deixado de lado, esse só é capaz de exigir do pensamento auto-aniquilamento. Essa exigência aparece sob uma estranha luz, quando se considera atentamente que o vigor essencial dos mortais está convocado a concentrar-se no apelo de serem os que chegam a morrer. Enquanto possibilidade mais extrema da presença humana, a morte não é o fim do possível, mas a cordilheira mais elevada (a montanha reunidora) do misterioso chamado para um descobrir29.
29 Heidegger, M. Ensaios e Conferências, p. 226.