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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE
2009
Produção Didático-Pedagógica
Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE
VOLU
ME I
I
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO – SEED PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL –
PDE
PROFESSORA PDE: ELSA SCARPETA MATERIAL DIDÁTICO-PEDAGÓGICO PARA INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA NA ESCOLA: A LITERATURA DE AUTORIA FEMININA E A
DESCONSTRUÇÃO DA OPRESSÃO.
UMUARAMA 2009
Ser um homem feminino
Não fere o meu lado masculino
Se Deus é menina e menino
Sou masculino e feminino ...
(Baby Consuelo, Didi Gomes e Pepeu Gomes)
Material Didático-pedagógico para Intervenção Pedagógica Na Escola
Professor PDE: Elsa Scarpeta
Área PDE: Língua Portuguesa
Professora orientadora: Lúcia Osana Zolin
IES vinculada: UEM – Universidade Estadual de Maringá
Escola de Implementação: Colégio Estadual Monteiro
Lobato – Umuarama
Público objeto da intervenção: Alunos da 1ª série do Ensino
Médio
Título: A literatura de autoria feminina e a desconstrução da
opressão
Tema de estudo: A literatura de autoria feminina
Apresentação
Este Caderno Pedagógico tem como objetivo promover a reflexão
acerca da literatura de autoria feminina, historicamente emudecida e varrida da
história da literatura, em nome da cultura patriarcal. Impulsionada pelas
conquistas do movimento feminista, essa tradição literária foi aos poucos
ganhando visibilidade e, a seu modo, veiculando a voz feminina, discutindo,
denunciando e reagindo contra a opressão da mulher. Para tanto, pretende-se
lançar mão de análises de parte da obra da escritora brasileira contemporânea
Marina Colasanti. Nos seus Contos de Amor Rasgados, por meio de uma
linguagem concisa e metafórica, ela traz à tona essa discussão, numa espécie
de convite à reflexão desse tema. Apesar de tantas conquistas empreendidas
no feminismo brasileiro, tem-se muito a refletir, a reivindicar e a redimensionar
sobre os papéis sociais da mulher na contemporaneidade. A escritora em
questão parece muito consciente desse estado de coisas.
Este Caderno Pedagógico foi desenvolvido a partir de leituras e
pesquisas bibliográficas, e tem por finalidade subsidiar o trabalho pedagógico
com o aluno e trazer contribuições na abordagem da literatura de autoria
feminina.
Em vista disso, traça o percurso histórico da literatura de autoria
feminina, no Brasil, e propõe, por meio do reconhecimento dessa trajetória,
trazer à tona possíveis discussões sobre o porquê da invisibilidade e
silenciamento da voz feminina na literatura canônica, as chamadas “altas
literaturas”, tomadas como modelo.
Na UNIDADE I, é apresentado um texto sobre Relações de gêneros e a
(des)construção da opressão feminina, seguido de um debate sobre a
opressão. Para uma análise prática foi selecionado o miniconto Para que
ninguém a quisesse, de Marina Colasanti, que possibilita discussões acerca da
opressão da mulher na sociedade patriarcal e seu modo de representação na
literatura de autoria feminina. Nele, foi explorado o título, feito uma análise
estrutural e uma análise sob a perspectiva dos estudos feministas. Na
seqüência, há a sugestão de uma produção textual, seguida de um momento
para a socialização dos textos produzidos e selecionados. E, como atividade
complementar, há a sugestão da apresentação do filme A cor púrpura de
Steven Spielberg, baseado em uma história real, de Alice Walker.
Na UNIDADE II, há uma reflexão teórica que traz para debate a forma
como a literatura canônica, de até meados do século XX, tem representado a
mulher em algumas de suas produções literárias. E, principalmente, quais as
razões cristalizadas historicamente, e o papel exercido pela cultura patriarcal
na crescente opressão feminina, desvelando-a como resultante de uma
construção social e não como algo de ordem natural. Além de apresentar
subsídios teóricos para que o educando perceba a influência dessa cultura na
construção de personagens femininas na literatura canônica. Para tanto foram
selecionados alguns excertos das obras: Iracema, de José de Alencar; Dom
Casmurro, de Machado de Assis e O cortiço, de Aluísio Azevedo. Há a
sugestão da leitura dessas obras em sua íntegra, além de alguns links para
maior aprofundamento sobre as mesmas.
Na UNIDADE III, há uma leitura teórica sobre o que foi o feminismo, sua
essência, importância, a trajetória do Movimento Feminista aqui no Brasil e a
sua influência na prática literária de nossas escritoras. Para uma análise
prática, foi selecionado o miniconto Como se fosse na Índia, de Marina
Colasanti. Para tanto, foram propostos leitura, a exploração do título, uma
análise estrutural e uma análise sob a perspectiva dos estudos feministas. Para
fechar esta Unidade, foram sugeridas leituras informativas sobre algumas
práticas históricas indianas, tais como: a incineração das viúvas, junto aos
maridos mortos; o alto índice de infanticídios femininos e os casamentos
arranjados através da apresentação de dotes.
Na UNIDADE IV, Mulher Sujeito X Mulher Objeto, há uma reflexão e
proposta de debate acerca da objetificação das mulheres e de como a mídia
tem se posicionado ou disseminado esses valores. Tudo visando encontrar
respostas para alguns questionamentos, tais como: quando o indivíduo deixa
de ser sujeito e assume o papel de objeto? Isso ocorre consciente ou
inconscientemente? Até que ponto a exposição e a exploração da figura
feminina nas diversas mídias são aceitas naturalmente? E a publicidade, de
que forma apresenta e explora a figura feminina?
Sobre esse último questionamento, foi sugerida a escolha de alguns
anúncios publicitários para serem analisados e debatidos. Como leitura e
análise, foi escolhido o miniconto Ela era sua tarefa, de Colasanti. Para tanto,
foram propostos leitura, um olhar mais atento sobre o título, uma análise
estrutural e uma análise sob a perspectiva dos estudos feministas.
Na UNIDADE V, o desafio é o (re)conhecimento das três etapas da
literatura de autoria feminina, segundo a proposta da pesquisadora norte-
americana Elaine Showalter.
Ao aplicá-la às escritoras brasileiras, selecionou-se Júlia Lopes, como
representante da primeira fase. O conto escolhido foi A caolha, pois traz
evidência da reduplicação da visão patriarcal na representação da figura
feminina. Nele, foi explorado o título, feito propostas de análises, tanto
estrutural quanto sob a perspectiva dos estudos feministas. Houve a sugestão
de um vídeo, e como leitura complementar a apresentação, e a análise de uma
crônica de opinião: O vestuário feminino, de Júlia Lopes de Almeida, através da
qual se é possível conhecer um pouco sobre alguns aspectos da mulher do
final do século XIX e início do século XX. Para ilustrar a segunda fase foi
selecionada a escritora Clarice Lispector, e, como produção literária o conto
Uma galinha. Para melhor situar o leitor, foram sugeridos alguns links que
trazem uma análise crítica desse conto. Nele, foi explorado o título, feito uma
análise estrutural e uma análise sob a perspectiva dos estudos feministas. Para
fechar essa Unidade foram sugeridos links que trazem a última entrevista
concedida pela escritora no ano de sua morte, 1977. Para ilustrar a terceira
fase, foi selecionada a escritora Zulmira Ribeiro Tavares e o conto Cortejo em
Abril, Nele, foi explorado o título, feito uma análise estrutural e uma análise sob
a perspectiva dos estudos feministas. Para fechar essa Unidade, foi sugerido
um link, em que a Revista Veja traz uma reportagem sobre a escritora e suas
obras, principalmente sobre o conto aqui abordado.
Na UNIDADE VI, que fecha este Caderno Pedagógico, foi selecionada a
escritora Marina Colasanti tendo em vista seu engajamento em relação às
questões feministas. Os minicontos selecionados da obra Contos de Amor
Rasgados trazem implícita a denúncia e/ou o questionamento da opressão
feminina. Após apresentar referências biográficas da escritora, essa Unidade
traz uma reflexão teórica sobre as questões de gênero (homem/mulher).
Apresenta a capa da obra Contos de Amor Rasgados e faz uma pequena
análise sobre a mesma. Na sequência, apresenta alguns comentários sobre o
estilo utilizado pela escritora para compor os minicontos. O miniconto
selecionado para leitura e análise foi Sem que fosse tempo de migração. Nele,
foi explorado o título, feito uma análise estrutural e uma análise sob a
perspectiva dos estudos feministas. Para fechar essa Unidade foi sugerida
como leitura complementar de A palavra em foco, justamente, por ser a palavra
a matéria-prima de todos aqueles que a transformam em arte, transcendendo e
explorando suas múltiplas possibilidades semânticas, ou seja, suas
plurissignificações.
Não é objetivo dos estudos aqui propostos neste Caderno Pedagógico
esgotar todos esses desafios aqui elencados, mas contribuir para que tanto os
docentes quanto os discentes se sintam desafiados e instigados a aprofundar
mais seus estudos e, consequentemente, seus conhecimentos sobre esse
tema, impelindo-os a ler o texto literário com mais criticidade, percebendo a
ideologia existente por detrás das palavras. Esse é o grande desafio.
Sumário
UNIDADE I ....................................................................................................... 11 1. Reflexão teórica: Relações de gêneros e a (des)construção da opressão feminina ......................................................................................................... 11 2. Instigando o olhar crítico... ......................................................................... 16 3. Explorando o título do miniconto: Para que ninguém a quisesse .............. 17 4. Leitura ........................................................................................................ 17 5. Análise estrutural ....................................................................................... 18 7. Produção textual ........................................................................................ 19 8. Socialização do texto produzido ................................................................ 19 9. Atividade complementar ............................................................................ 19
UNIDADE II ...................................................................................................... 21
1. Reflexão teórica: Como a literatura canônica, de até meados do século XX, tem representado a mulher? .......................................................................... 21 2. Instigando o olhar crítico... ......................................................................... 23 3. Pesquise na internet sobre essa obra e socialize as suas descobertas com a turma. Sugestão de link: ............................................................................. 24 4. Instigando o olhar crítico... ......................................................................... 24 3. Conheça mais sobre esse clássico da literatura lendo a obra Dom Casmurro ou acessando o link sugerido 26 4. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ..................................... 26 5. Instigando o olhar crítico... ......................................................................... 28 6. Sugestão de endereço eletrônico para se conhecer mais sobre O Cortiço, de Aluísio Azevedo: ....................................................................................... 28
UNIDADE III ..................................................................................................... 30
1. Reflexão teórica: O que é feminismo e qual a trajetória do Movimento Feminista no Brasil? ...................................................................................... 30 2. Instigando o olhar crítico... ......................................................................... 33 3. Explorando o título do miniconto: Como se fosse na Índia ........................ 34 4. Leitura ........................................................................................................ 34 5. Análise estrutural ....................................................................................... 35 6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ..................................... 35 7. Curiosidades: ............................................................................................. 36 8. Pesquise: .................................................................................................. 36
UNIDADE IV ..................................................................................................... 40
1. Reflexão teórica: Mulher Sujeito X Mulher Objeto .................................... 40 2. Instigando o olhar crítico... ......................................................................... 41 3. Explorando o título do miniconto: Ela era sua tarefa ................................. 42 4. Leitura ........................................................................................................ 43 5. Análise estrutural ....................................................................................... 43 6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ..................................... 44
UNIDADE V ...................................................................................................... 47
1. Reflexão teórica: A trajetória da literatura de autoria feminina e suas principais representantes ............................................................................... 47
PRIMEIRA FASE ......................................................................................... 47 2. Referência biográfica de Júlia Lopes de Almeida – Representante da primeira fase literária (fase feminina) ............................................................. 47 3. Explorando o título do conto: A caolha ...................................................... 49 4. Leitura ........................................................................................................ 49 5. Análise estrutural ....................................................................................... 55 6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ..................................... 55 7. Sugestão de vídeo ..................................................................................... 56 8. Leitura complementar ................................................................................ 56 9. Análise estrutural ....................................................................................... 58 10. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ................................... 59
SEGUNDA FASE ........................................................................................ 59
2. Referência biográfica de Clarice Lispector – Representante da segunda fase literária (fase feminista) .......................................................................... 60 3. Explorando o título do conto: Uma galinha ................................................ 62 4. Leitura ........................................................................................................ 62 5. Sugestões de links para se conhecer comentários autorizados sobre o conto: Uma galinha, de Lispector: ................................................................. 64 6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ..................................... 65 7. Sugestões de links para que se conheça um pouco mais sobre a grande escritora Clarice Lispector ............................................................................. 66
TERCEIRA FASE........................................................................................ 67
2. Referência biográfica de Zulmira Ribeiro Tavares – Representante da terceira fase literária (fase fêmea ou mulher) ................................................ 66 3. Explorando o título do conto: Cortejo em Abril .......................................... 68 4. Leitura ........................................................................................................ 68 5. Análise estrutural ....................................................................................... 88 6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas ..................................... 88
7. Sugestão de link para que se conhecer um pouco mais sobre Zulmira Ribeiro Tavares e também sobre o conto Cortejo em Abril, aqui explorado .. 88
UNIDADE VI ..................................................................................................... 91
1. Referência biográfica (Marina Colasanti) ................................................... 91 2. Reflexão teórica ......................................................................................... 93 3. Capa do livro Contos de Amor Rasgados .................................................. 94 4. O estilo ...................................................................................................... 95 5. Explorando o título do miniconto: Sem que fosse tempo de migração ...... 96 6. Leitura ........................................................................................................ 96 7. Análise estrutural ...................................................................................... 97 8. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas. .................................... 97 9. Leitura complementar: A palavra em foco ................................................. 99
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 101 REFERÊNCIAS EM MEIO ELETRÔNICO (on-line) ...................................... 102
11
UNIDADE I
1.Reflexão teórica:
Relações de gêneros e a (des)construção da opressão feminina
Ao visitar a história da humanidade, em seus diversos contextos
histórico-geográficos, é possível perceber que a condição social da mulher está
marcada por discursos discriminatórios e segregativos no que se refere às
relações de gênero. A crítica especializada atribui tal discriminação em relação
à figura feminina ao fato de a História, na maior parte das vezes, ter sido
escrita do ponto de vista masculino.
Não há como dissociar um discurso da voz que o produz e esta é
sistematizada de acordo com os seus anseios e interesses, portanto não se
tem acesso a realidade pura, mas àquela que passa pela interpretação e pela
ideologia do produtor do discurso. E os vários discursos dominantes exercem
um controle sobre o sujeito.
Se nas culturas nômades a união do grupo, tanto de homens como de
mulheres, independente do gênero, garantia a sobrevivência de todos, na
Antiguidade, quando surgem as primeiras sociedades não-nômades, a força
física ganha relevância para a guerra, para a pesca, para trabalhos pesados
direcionados ao homem. Já aqui se registra a ruptura de igualdade de direitos
entre os sexos. Às mulheres coube cuidar da prole, cozinhar, tecer. Quando
esses homens dominam outros povos, tornando-os seus escravos, os mesmos
vão executar os trabalhos femininos e dessa forma surge um simbolismo
negativo com relação a ambos que os exerciam. Pois, aos homens couberam
os cargos de mando, de maior prestígio social, na área jurídica, governamental
e financeira. Já, o trabalho feminino, igualado ao do servo e, por isso, não-
remunerado, é banalizado. Essa desigualdade social ampliou-se com o
mercantilismo e o capitalismo.
Portanto, a dominação do homem sobre a mulher não consiste em uma
questão natural, mas em uma construção social que foi aos poucos se
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consolidando a partir de fatores econômicos, mais precisamente a partir da
divisão do trabalho que caberia ao homem e à mulher, com o desprestígio
deste último. Segundo Zolin, (2003, p. 43)
o fato é que o patriarcalismo tornou-se uma realidade tão bem-
sucedida, tão arraigada no inconsciente coletivo que, para muitos,
para não dizer a maioria, é impossível pensar as relações humanas
de modo que o macho não domine de direito e de fato.
Engels e Marx buscaram no estudo científico respostas para essas
inquietações, pois era quase unânime, até aquela época (século XIX) a
aceitação de que se encontrava na gênese feminina a sua condição para a
subordinação e dependência masculina.
A gênese das pesquisas de Engels e Marx, pensadores socialistas
alemães, está na obra O Direito Materno, 1861, produzida por Bachofen. Essa
obra escandaliza e choca a sociedade da época, extremamente machista e
conservadora. Nela o autor expõe a tese de que em certo período, nas
sociedades primitivas, teria predominado o matriarcado, ou seja, a ascendência
social e política das mulheres sobre os homens. Isso foi considerado uma
revolução para a época, pois até então a discriminação feminina era legitimada
e propagada até mesmo por princípios religiosos.
Engels (1891) escreveu embasado na descoberta de Bachofen, que nas
sociedades primitivas as mães eram os únicos genitores certos de seus filhos e
por isso tiveram uma posição social mais elevada, naquele período. Com isso,
ele comprova que a subordinação das mulheres foi uma construção processual
e histórico-social.
Outro pensador importante foi Lewis Morgan que afirma que a
discriminação da mulher não é um fato natural. Ele dividiu a sociedade em três
fases de evolução, as quais denominou de: 1- o estado selvagem; 2- o estado
de barbárie; 3- civilização. E, foi justamente nesse último que ocorre todo o
processo de submissão da mulher. É quando os clãs começam a se
transformar em tribos. Os homens se fixam e demarcam as terras próximas a
água onde pescam e buscam o sustento.
Ao longo de milênios couberam ao homem as estratégias de defesa da
tribo surgindo assim, na sociedade, a “superioridade” masculina. Ao passo que
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às mulheres coube cuidar de seus descendentes e com isso fica fora do
processo produtivo confinada ao trabalho doméstico, forjando uma sociedade
machista e conservadora.
Esse negativismo sobre a mulher se faz presente nos escritos da época
e vão fundamentar o cristianismo, o pensamento ocidental e os preconceitos
patriarcalistas e falocêntricos sobre as mulheres, repetidos e perpetuados até
hoje. Nos primeiros capítulos de Gênesis aparece a cultura machista, quando o
escritor diz que Deus fez o homem a sua semelhança e depois fez a mulher.
Outro fator relevante para a objetificação feminina foi o fato de os
homens não poderem legal e moralmente casar-se com suas mães e irmãs,
trata-se da proibição do incesto. Isso fez com que, nas sociedades primitivas,
elas se tornassem objeto de barganha, pois as mulheres de um grupo eram
trocadas por mulheres do outro.
Mas o que intriga é por que foram as mulheres a serem objetos de troca
e não os homens. E, a explicação mais plausível foi o fato de as mulheres
procriarem, amamentarem e terem uma ligação mais estreita com o filho
impedindo ou limitando sua mobilidade. Portanto, o fato de reproduzir a vida
não é visto como algo positivo, mas sim como fator que dificulta sua
dominação, segundo alguns estudiosos.
Se se considerar o Brasil como espaço geográfico, e o século XXI como
marco temporal e se analisar e comparar a situação da mulher de hoje à
mulher de outros tempos, perceber-se-á que muitas coisas mudaram, de que
conquistas foram realizadas. Seria ingênuo considerar que elas ocorreram
naturalmente. Pelo contrário, elas foram e são frutos da dedicação, do
empenho e da indignação de mulheres guerreiras, batalhadoras, obstinadas
que estiveram à frente de seu tempo e que anteviram a possibilidade e a
necessidade de lutar, de conquistar e de serem reconhecidas pelas suas ações
e não pelo gênero a que pertencem.
Apesar de a história ter negligenciado a participação da mulher brasileira
em muitos de seus construtos e de ter apagado séculos de sua participação
efetiva na construção histórica de nosso país deixando-as no anonimato e no
esquecimento, aparecem os primeiros registros de suas lutas no século XIX.
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Trata-se do Movimento Feminista, inaugurado no Brasil ainda nesse século,
porém não com essa denominação.
Esse foi um momento histórico marcante, que trouxe em seu bojo o
combate à opressão, em todas as suas formas de manifestações, e evidenciá-
la como uma construção social e não como de ordem natural, aceita até então.
Opressão: essa é uma palavra que quando analisada fora de seu
contexto ganha uma infinidade de possibilidades semânticas que seria
praticamente impossível tentar aprisioná-la dentro de um conceito. Apesar
disso, não há ninguém que, mesmo inconscientemente, não sinta sua
negatividade. Segundo o dicionário Caldas Aulete; vol.IV; p. 2587:
OPRESSÃO, s. f. ação e efeito de oprimir. // (Fig.) Jugo; tirania exercida contra
outrem; estado do que vive sob o despotismo ou sob a prepotência de outrem;
[...]
Todas as possibilidades semânticas elencadas acima são possíveis
quando, fazendo um retrocesso histórico, se resgata as relações de poder do
homem sobre a mulher. Essa opressão, algumas vezes velada, mas, em sua
grande maioria, aceita como natural vem sendo rejeitada e questionada nos
últimos tempos.
Segundo Bonnici, (2007, p. 194)
A opressão feminina é o resultado de uma estruturação de poder
pela qual a ideologia masculinista e a Weltanschauung masculina
dominam a totalidade da sociedade humana, deixando a mulher
hierarquizada e restrita a funções societárias estritamente ligadas
à sua biologia.
Todos esses fatores se fragilizam diante de indícios arqueológicos
resultantes de escavações realizadas na Europa e no Oriente Médio que
demonstram que há cerca de vinte e cinco mil anos atrás as divindades eram
representadas por deusas/mulheres e de que as honrarias fúnebres não
Para se conhecer mais profundamente sobre esse assunto leia sobre O que
é feminismo? (p.17) e A Trajetória do Movimento Feminista no Brasil (p. 20).
15
levavam em consideração o sexo mas sim o seu prestígio social. Segundo
Bauer (2001, p.7),
sabemos de momentos em que essa sobreposição não existia,
tempos em que o homem não se localizava no processo de
reprodução e desconhecia sua participação na continuidade da
espécie. Tempos em que a descendência era identificada a partir da
mãe, numa estrutura social que se sustentava no matriarcado,
inexistindo a submissão. Porém ao descobrir a participação do
espermatozóide na procriação, os homens desempenharam o novo
papel, retirando da mulher toda participação significativa na
reprodução humana e relegando-a a simples receptáculo da nova
vida que eles criaram.
Portanto a mulher não apenas perdeu a função central na
continuidade da espécie, mas foi-lhe subtraída toda importância
social, instaurando-se uma sociedade em que o homem tornou-se
protagonista da história e, além disso, outorgou-se a si mesmo
legitimidade no exercício do poder sobre todos e, principalmente,
sobre a mulher.
Sob essa ótica percebe-se que os conceitos mudam ao longo do tempo
e que muitas noções e valores que permeiam e povoam a história da
humanidade, muitas vezes consideradas verdades absolutas, são altamente
questionáveis e passíveis de mudanças. Isso, por si só já é um avanço
gigantesco, pois possibilita um outro olhar sobre as relações humanas, sociais,
políticas, culturais, religiosas, enfim, nas mais variadas esferas, e que devem
ser pautadas no respeito e na igualdade de direitos tanto para homens quanto
para mulheres.
Esse novo olhar é que possibilitará não só detectar, mas também
combater e repelir toda forma de opressão que não consiste em uma questão
natural, mas em uma construção social que foi aos poucos se consolidando
deixando à margem não só a mulher, mas negros, indígenas, homossexuais,
ou seja, uma gama muito grande de pessoas.
Esta é uma página da história da humanidade que para ser reescrita terá
muitos obstáculos a serem vencidos, muitos (pré)conceitos a serem revistos,
muitos mitos a serem desconstruídos. E isso só se torna possível através da
informação, do conhecimento, de um olhar mais crítico e atento.
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2. Instigando o olhar crítico...
Debate sobre opressão:
a) Já foi vítima de algum tipo de opressão? Já foi agente dessa opressão?
b) Já presenciou em sua vivência e convivência familiar e social algum tipo
de opressão? Como se sentiu e reagiu?
c) Por que há opressão e quais fatores podem ser os vetores de tal
conduta?
d) O grau de opressão se intensifica dependendo do gênero
(homem/mulher) da classe social, do grau de escolaridade, ou, não tem
essa relação?
e) Qual é a melhor forma para se combater e tentar atenuar as
conseqüências resultantes da opressão?
Para materializar a histórica opressão feminina segue a apresentação de
um dos minicontos que compõem Contos de amor rasgados, de Marina
Colasanti, para que o leitor possa, ao lê-lo, se antecipar aos meandros que
serão percorridos e desbravados nesta empreitada.
Depois de levantados esses pontos, sugere-se um espaço para que os alunos
coloquem seus posicionamentos e sua percepção de como essas condutas se
instalam e qual é a melhor forma de combatê-la.
Porém, sugere-se que antes de se realizar a leitura do miniconto Para que
ninguém a quisesse da obra Contos de amor rasgados, o leitor se inteire do que
Marina Colasanti comenta sobre a produção dessa obra em sua estada em Uberaba
no dia 5 de abril ao participar do projeto Tim Estado de Minas – Grande Escritores,
no auditório da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro (FMTM). A escritora,
por essa ocasião concedeu uma entrevista exclusiva ao repórter André Azevedo,
gravada na manhã de 5 de abril de 2003 no hotel em que estava hospedada, onde
falou, também, sobre literatura, vida, amor e feminismo.
Disponível em: <http://azevedodafonseca.sites.uol.com.br/0514col1.html> Acesso
em: 20 de mar. 2010.
17
http://azevedodafonseca.sites.uol.com.br/0514col1.html
3. Explorando o título do miniconto: Para que ninguém a quisesse
O título, quer seja de um livro, de um conto, crônica ou de qualquer outro
gênero discursivo, nos sugere e nos faz formular antecipações cognitivas, tais
como: levantamento de hipóteses, criação de expectativas e é pelo título que
o leitor realiza a sua primeira interpretação.
Pensando nisso, que tal explorar e responder a alguns questionamentos:
a) Lendo apenas o título do miniconto, é possível descobrir sobre o que ele
relata?
b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o
miniconto e verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.
4. Leitura
Para que ninguém a quisesse
Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que
descesse a bainha dos vestidos e parasse de se pintar. Apesar disso, sua
beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os
decotes, jogasse fora os sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as roupas
de seda, da gaveta tirou todas as jóias. E vendo que, ainda assim, um ou outro
olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a tesoura e tosquiou-lhe os
longos cabelos.
Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, homem
nenhum se interessava por ela. Esquiva como um gato, não mais atravessava
praças. E evitava sair.
Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela, permitindo
que fluísse em silêncio pelos cômodos, mimetizada com os móveis e as
sombras.
Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus dias. Não
saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que tivera por ela.
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Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda. À noite tirou
do bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos.
Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais
em lhe agradar. Largou o tecido em uma gaveta, esqueceu o batom. E
continuou andando pela casa de vestido de chita, enquanto a rosa desbotava
sobre a cômoda.
5. Análise estrutural
Explorando os elementos da narrativa teça e registre informações, que
se põem depreender do texto, relativas aos seguintes questionamentos:
a) Quais são as personagens da história e como elas são denominadas?
b) Quais são as características das personagens?
c) Onde se passa a história?
d) Qual personagem lhe chamou mais a atenção? Por quê?
e) O narrador também participa da história? Quem narra?
f) Qual foi o conflito inicial?
6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas
a) Como a mulher é representada nesse miniconto de Colasanti?
b) Em que medida a escritora critica a ideologia patriarcal que oprime a
mulher?
c) Quais os papéis desempenhados por cada uma das personagens do texto?
d) Esses papéis são “naturais” ou construídos? Comente.
e) Pode-se afirmar que nesse miniconto houve a objetificação da mulher? Por
quê?
Fonte: COLASANTI, Marina. Para que ninguém a quisesse. In: Contos de amor
rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p. 111-2.
19
f) Retire uma parte do texto em que essa objetificação se apresenta com mais
evidência, com mais força.
7. Produção textual
Depois de ler o miniconto, de elencar as informações depreendidas da
leitura feita, e de tecer algumas reflexões pessoais, reconstrua essa
história mudando o foco narrativo para a primeira pessoa, isto é, seja um
narrador-personagem.
8. Socialização do texto produzido
9. Atividade complementar
Assista ao filme de Steven Spielberg A Cor Púrpura, baseado na história de
Alice Walker, vencedora do Prêmio Pulitzer. Veja a sinopse do filme:
Geórgia, sul dos Estados Unidos, 1906. Violentada por seu próprio pai, Celie
(Woopi Goldberg) torna-se mãe de duas crianças ainda na adolescência. Mal os
filhos nascem e são arrancados da mãe, a mesma acaba sendo doada a Albert
(Danny Glover), por quem continua sendo maltratada e escravizada. Cada vez mais
calada e solitária espera incansavelmente as cartas de sua irmã Nettie (Akosua
Busia), missionária na África, porém elas são interceptadas por Danny. Mas, com
ajuda de pessoas especiais Celie encontrará forças para lutar contra as portas que o
mundo lhe fecha. A Cor púrpura é um drama contundente adaptado para o cinema
por Steven Spielberg a partir da obra da obra da romancista Alice Walker, e marca a
estréia de Whoopi Goldberg no cinema. Não se engane com a distância que a
época do filme e o cenário podem impôr: A Cor púrpura, um filme sobre a vida, o
amor, é na verdade um filme sobre cada um de nós.
Depois dos textos produzidos, os alunos, em grupos de cinco, se reunirão por 15 minutos em um lugar da escola, escolhido pelo grupo, para que sejam feitas as leituras de todos os textos e escolhido o mais interessante, segundo o grupo. Ao retornar, cada grupo lerá o texto selecionado para os demais colegas de sala.
21
UNIDADE II
1. Reflexão teórica:
Como a literatura canônica, de até meados do século XX, tem representado a mulher?
Até meados do século XX a maior parte das manifestações culturais
reproduzia o discurso patriarcal e machista, aceito e disseminado como algo
natural. Nele o homem detinha o poder; a mulher e outras minorias eram
marginalizadas.
Sendo assim, é previsível que a literatura, como um dos principais
veículos de edificação da cultura, represente o poder instituído, machista e
patriarcal, sobretudo, a literatura canônica, aquela produzida essencialmente
por homens brancos, influentes e ocidentais. E é essa literatura que é
disseminada pelas grandes editoras, livrarias, revistas e estão presentes nos
livros didáticos e nos currículos escolares. Portanto, há que se considerar que
a quase total ausência de escritoras no cânone literário nacional, até as
primeiras décadas do século XX tem suas raízes na dominação masculina.
Fazer parte da literatura canônica é ter seu discurso aceito, ouvido,
tomado como modelo. Para autorizar essa assertiva é bom lembrar que o
adjetivo “canônica” deriva da palavra grega “kanon” termo este que designava
uma espécie de vara utilizada como instrumento de medida; mais tarde houve
uma evolução semântica do termo para “padrão” ou “modelo”. A primeira
utilização generalizada de cânone data do século IV, quando a igreja cristã
seleciona os textos que comporiam os Livros Sagrados que transmitiriam a
palavra de Deus e desta forma representariam a verdade e a lei que deveria
alicerçar a fé e reger o comportamento de seus seguidores. Após essa
“seleção”, o cânone bíblico torna-se hermético e inalterável. Mas, indica um
modelo a ser seguido, contudo, passível de ser questionado. Nesse sentido,
torna-se claro que um cânone veicula o discurso normativo e dominante num
determinado contexto, teológico ou não.
Quando se transpõe essa concepção e modelo de valor para a literatura,
o discurso por ela veiculado produz e reproduz valores patriarcais, até então
22
tidos e aceitos como verdades universais, mas que merecem ser questionados.
Segundo Bonnici (2007, p. 38),
Desmoronou a doutrina segundo a qual a formação do cânone
literário tem sido estritamente impessoal, objetiva, conforme regras
estéticas independentes. Constatou-se que o cânone é uma
fabricação submetida a limitações sociais, políticas e institucionais.
Atualmente, o esforço da academia internacional, inclusive a
brasileira, está dirigido para redescobrir escritoras oriundas de
diferentes raças e etnias que foram colocadas ao lado principalmente
por serem do sexo feminino. Constatou-se uma regra geral de que o
patriarcalismo, permeando a crítica literária, tendia a anular ou
marginalizar a escrita feminina.
Dentro de uma cultura com esse perfil, é óbvia a marginalização das
mulheres e de outras minorias, que são retratadas de forma depreciativa. Essa
recorrência, muitas vezes, faz com que a maioria acredite, realmente, que a
raça humana é formada por seres superiores e inferiores e, aceitando isso
como verdade absoluta, não perceba toda a manipulação social e cultural que
impera há séculos, mas, que pode ser desconstruída por meio do
conhecimento, da informação.
A literatura foi até há pouco tempo uma atividade exclusivamente
masculina regida por princípios patriarcais e falocêntricos, assim como, nos
períodos medieval, renascentista, barroco e neoclássico era uma atividade
exercida por nobres e religiosos. Desta forma, foram eles que estabeleceram
os conceitos teóricos a respeito da posição da mulher na sociedade.
E, até então, como essa mulher é retratada na literatura brasileira?
Para se buscar respostas a esse questionamento, teria que se visitar a
literatura produzida pelos escritores, aqueles que ganharam visibilidade e
prestígio e que povoam as bibliotecas de todo país. Tomando como exemplos
escritores como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio
de Almeida, Visconde de Taunay e outros, pode-se verificar que a mulher
geralmente, é representada como nascida para o casamento, para dedicar-se
ao lar, ao bem estar de filhos e marido. Há uma idealização da figura feminina
construída pelo imaginário masculino. Esperava-se que as mulheres da
23
sociedade da época se adequassem a esses papéis para não serem
execradas.
Nesse sentido, a mulher era retratada de modo maniqueísta, a partir de
dois extremos, ora como anjo, ora como demônio. A mulher dissimulada,
manipuladora, enigmática, pérfida, perigosa, uma ameaça às instituições
morais e sociais, até então vigentes, povoa e é facilmente encontrada e
reconhecida em romances de Aluísio de Azevedo, Raul Pompéia e,
principalmente, em Machado de Assis.
Já a mulher anjo pode ser facilmente encontrada na ficção do escritor
José de Alencar. No excerto abaixo, retirado de Iracema, romance indianista
pertencente ao Romantismo brasileiro, Alencar retrata a figura feminina de
forma idealizada, estereotipada.
Excerto I
[...]
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu
Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros
que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no
bosque como o seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as
matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O
pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra
com as primeiras águas.
[...]
2. Instigando o olhar crítico...
a) No excerto acima predomina a descrição, ou a narração? Comente.
b) Há uma clara idealização dessa personagem. Comprove essa assertiva com
partes do texto e teça argumentos que reforcem e que deem credibilidade à
seleção feita por você.
24
3. Pesquise na internet sobre essa obra e socialize as suas descobertas com a turma. Sugestão de link:
Se no Romantismo as personagens são, geralmente, retratadas como
criaturas dotadas de extrema beleza, e capazes de se doar ao ponto de se
anular como sujeito, isso não ocorre no Realismo. Esse movimento que tem
como marco inicial o ano de 1881, e a obra Memórias Póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis, inaugura uma outra forma de compor, criar e de
retratar o painel social da época. E quando se fala em Machado de Assis há
que se considerar, aqui, a sua segunda fase, ou seja, a fase de maturidade do
escritor. Não é foco deste trabalho, aprofundar a análise de sua obra, mas,
pode-se observar que Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba,
Dom Casmurro e Esaú e Jacó têm em seu título nomes próprios masculinos;
além disso, são obras que apesar dos protagonistas serem do sexo masculino,
são as mulheres as figuras enigmáticas, emblemáticas que têm em comum o
fato de transgredirem, ou de serem acusadas de transgressão. É bom lembrar
que elas são construídas sob a ótica de um escritor masculino; no caso de
Dom Casmurro, narrada por um narrador masculino, em primeira pessoa,
interessado em provar para si e para o/a leitor/a que sua mulher o traiu com
seu melhor amigo.
4. Instigando o olhar crítico...
a) Capitu traiu ou não traiu Bentinho?
b) E independentemente de se ter, ou não, havido o adultério no clássico
acima, como nossa sociedade lida com esse tema? O adultério tem o mesmo
peso tanto para homens quanto para mulheres?
c) O que mudou do século XIX, época de sua produção, aos nossos dias sobre
a questão do adultério?
d) Apesar de tanto se discutir sobre o fato de se ter ou não havido a traição,
será que o ponto mais relevante seria o adultério, ou os ciúmes de Bentinho?
http://pt.wikipedia.org/wiki/Iracema
http://pt.wikipedia.org/wiki/Iracema
25
Leia os excertos abaixo:
Excerto II: (capítulo XXXII / OLHOS DE RESSACA; P. 218)
[...]
─ Juro! Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de
cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas
dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim.
[...]
Excerto III: (CAPÍTULO CI / NO CÉU; p. 301)
[...]
Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto
de esperar, e vá espairecer em outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma
tarde de março, por sinal que chovia. Quando chegamos ao alto da Tijuca,
onde era o nosso ninho de noivos, o céu recolheu as nuvens e acendeu as
estrelas, não só as já conhecidas, mas ainda as que serão descobertas daqui a
muitos séculos. Foi grande fineza e não foi a única. São Pedro, que tem as
chaves do céu, abriu-nos as portas dele, fez-nos entrar, e depois de tocar-nos
com o báculo, recitou alguns versículos da sua primeira epístola: “As mulheres
sejam sujeitas a seus maridos... Não seja o adorno delas o enfeite dos cabelos
riçados ou as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração...
Do mesmo modo vós, maridos, coabitai com elas, tratando-as com honra,
como vasos mais fracos, e herdeiras convosco da graça da vida...”
[...]
Excerto IV: (CAPÍTULO CXXXI / ANTERIOR AO ANTERIOR; p. 330)
[...]
Foi o acaso que a minha vida era outra vez doce e plácida, a banca do
advogado rendia-me bastante, Capitu estava mais bela, Ezequiel ia crescendo.
Começava o ano de 1872.
26
─ Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão
esquisita? – perguntou-me Capitu. – Só vi duas pessoas assim, um amigo de
papai e Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai,
não precisa revirar os olhos, assim, assim...
Era depois do jantar; estávamos ainda à mesa, Capitu brincava com o
filho, ou ele com ela, ou um com o outro, porque, em verdade, queriam-se
muito, mas é também certo que ele me queria ainda mais a mim. Aproximei-me
de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não
me pareceram esquisitos por isso.
[...]
3. Conheça mais sobre esse clássico da literatura lendo a obra Dom Casmurro ou acessando os links abaixo:
4. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas
a) Como Capitu é retratada nesse romance de Machado de Assis?
b) Ela é construída e retratada sob a ótica de quem?
c) Quando Bentinho resolve narrar sua história, ele o faz à revelia de Capitu,
ou seja, a ela não é dado o direito de voz. O que isso pode sinalizar aos
leitores?
d) O que esse silenciamento tem a ver com a histórica opressão feminina?
e) Ao ler o romance e juntar as suas partes, é possível traçar o perfil de
Bentinho, um homem conservador, inseguro e mimado desde menino que vai
construindo seus conceitos levado sempre pela opinião alheia. Exemplifique
essa assertiva selecionando, para isso, partes dos excertos acima.
f) Que tipo de voz ideológica está presente no excerto III?
<http://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&source=hp&q=dom+casmurro&rlz=1W1ADBF_pt-BR&aq=0&aqi=g10&aql=&oq=Dom+&gs_rfai= > <http://www.livroclip.com.br/index.php?acao=hotsite&cod=4>
27
g) De que forma a mulher é estigmatizada nesse mesmo excerto?
Esses e tantos outros são valores que permeiam as relações humanas e
sociais, e que nem sempre são discutidos, repensados. Há muitos valores
morais e éticos que são relativizados, ou seja, ganham pesos diferentes e,
dessa forma, excluem, estigmatizam, pois se moldam conforme o gênero
(homem/mulher), etnia, nacionalidade, credo, orientação sexual...
Por mais que alguns conceitos morais, nesse caso o adultério, tenham
ganhado um discurso novo atualmente, ele não difere muito das concepções
do século XIX. No caso do homem, essa atitude é vista até, com certo mérito,
uma marca de superioridade sobre os outros homens. Por isso divulgam suas
conquistas, quando não as criam para tornar visível sua condição de macho-
dominador. Isso é social. São valores que são disseminados sem os devidos
questionamentos, problematizações e, principalmente, reflexões. Ou seja, a
mesma conduta recebe veredicto e penas diferentes quando é praticada por
um ou por outro gênero.
Depois de conhecer a representação do perfil de uma das personagens
mais polêmicas da obra machadiana, que tal adentrar e conhecer a sua
construção sob a ótica naturalista na obra O cortiço, de Aluísio Azevedo.
Excerto V:
[...]
“Jerônimo levantou-se, quase que maquinalmente, e, seguido por Piedade,
aproximou-se da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Aí, de
queixo grudado às costas das mãos contra uma cerca do jardim, permaneceu,
sem fugir nem mugir, entregue de corpo e alma àquela cantiga sedutora e
voluptuosa que o enleava e tolhia, como à robusta gameleira brava o cipó
flexível, carinhoso e traiçoeiro.
E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia. Surgir de
ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento,
envolvendo-a com sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça
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melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita
toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher”.
[...]
5. Instigando o olhar crítico...
a) Você já leu alguma obra do escritor acima citado? Qual/quais ?
b) Quando você está lendo uma obra literária, se atenta para a existência de
ideologias, de vozes sociais povoando essa obra? Comente.
c) Todo enunciado discursivo vem carregado de outras vozes, sociológicas,
filosóficas, religiosas, midiáticas, etc. que cabe ao leitor/receptor percebê-las.
Qual voz pode-se perceber nitidamente no último período, do excerto V, e
também no excerto III?
d) Qual seria a razão pela qual a cultura patriarcal/machista perdurou sem
muitas contestações por tanto tempo? Comente.
6. Sugestão de endereço eletrônico para se conhecer mais sobre O Cortiço, de Aluísio Azevedo:
http://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&source=hp&q=Ocorti%C3%A7o+-
+an%C3%A1lise+cr%C3%ADtica&rlz=1R2ADBF_pt-
BRBR331&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai=
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/cortico
30
UNIDADE III
1. Reflexão teórica:
O que é feminismo e qual a trajetória do Movimento Feminista no Brasil?
Segundo Bonnici, (2007, p.86) “o feminismo poderá ser definido como
uma crença e convicção na igualdade sexual aclopada ao compromisso de
erradicar qualquer dominação sexista e de transformar a sociedade.” BONNICI,
(2007, p.86).
O termo feminismo começa a ser usado no Brasil por volta de 1905, mas
já era utilizado em alguns países europeus, como França e Inglaterra, desde o
século XIX, por volta de 1890. Por ser um movimento de grande amplitude, e
que ocorreu em muitos lugares, simultaneamente ou não, vem carregado de
ideologias e reivindicações próprias. Porém, todos têm em comum a luta pela
igualdade de direitos entre os sexos.
Esse movimento visa combater o binarismo que divide o mundo em dois,
resultado da cultura patriarcal em que o homem é o dominador e a mulher é a
dominada. Reduzir todas as possibilidades e pluralidades individuais e
situacionais de uma forma tão simplista é no mínimo duvidoso. Portanto, há
que se considerar o feminismo em sua pluralidade, pois as necessidades, a
realidade de uma mulher africana não é a mesma de uma mulher que habita
em qualquer outro lugar do planeta. Esse espírito de embate, de combate aos
conceitos de dominação que são colocados como naturais, e, portanto
indiscutíveis ganham evidência e força e se tornam uma bandeira de luta,
contra qualquer tipo de opressão, de violência.
E, como afirma Wallerstein, (2004, p. 10)
O feminismo vem mostrando um aspecto positivo do pensamento,
um aspecto de reconstrução de um mundo menos violento, menos
agressivo, menos opressor. E tudo isso feito através de um
pensamento ferozmente crítico. O pensamento feminista é um
pensamento crítico na medida em que ele desconfia das coisas que
nos parecem como sendo naturais. Se a junção mulher-corpo é
natural, desconfiemos dela. E ao desconfiarmos dessa naturalidade,
estamos abalando uma estrutura opressora que faz que essa junção
31
pareça natural, pois atende a interesses opressores. O feminismo
aparece assim como um pensamento da diferença que promove a
mudança. Uma crítica que não aceitando sequer que o social ou o
real sejam o limite, reinventa o mundo de formas criativas e
diferentes.
É equivocado pensar que o feminismo é um campo de batalha de
identidade de mulheres contra homens, mas sim o combate a uma ideologia
que apregoa que há vantagem em ser homem. Por si só essa ideologia não se
sustenta e necessita ser investigada, repensada e desconstruída, pois ela
legitima toda a forma de exclusão e de preconceitos construídos sob a ótica de
um modelo patriarcal em relação às mulheres.
Revisitando a trajetória percorrida e construída por feministas brasileiras,
Duarte (2003), com um olhar atento sobre o Movimento Feminista, de avanços,
pausas e recuos, detecta momentos específicos aos quais ela chama de
ondas.
A primeira onda feminista que tem como reivindicação básica o acesso
à cultura, ao conhecimento, ou seja, à educação formal até então reservada
apenas ao sexo masculino. Para uma classe pequena e seleta, o acesso às
letras se restringia a uns poucos conventos ou a aulas nas casas de
professoras. Data de 1827 a primeira legislação autorizando a abertura de
escolas públicas femininas, graças à luta das primeiras pioneiras “feministas”.
Conforme Duarte, (2003, p. 3),
foram aquelas primeiras (e poucas) mulheres que tiveram uma
educação diferenciada, que tomaram para si a tarefa de estender as
benesses do conhecimento às demais companheiras, e abriram
escolas, publicaram livros, enfrentaram a opinião corrente que dizia
que mulher não necessitava saber ler nem escrever.
O nome de destaque desse momento é o da capixaba Nísia Floresta
Brasileira Augusta que tem textos publicados em jornais da época. Ela afirmava
que as desigualdades vêm da educação e circunstâncias da vida, ou seja, ela
preconizava e atribuía a diferença de gêneros a uma construção sociocultural,
portanto, passível de ser desconstruída, alterada.
A segunda onda feminista surge por volta de 1870 com um número
expressivo de jornais e revistas que aderem a esse movimento e publicam as
32
reivindicações favoráveis ao direito ao voto, à educação superior e à
profissionalização feminina.
Segundo Duarte, (2003, p.8),
movida por uma mesma força e idealismo, esta imprensa terminou
por criar – concretamente – uma legítima rede de apoio mútuo e de
intercâmbio intelectual, e por configurar-se como instrumento
indispensável para a conscientização feminina.
Se no final do século XIX são muitas as reivindicações, a primeira
metade do século XX surge com algumas conquistas resultantes da terceira
onda. O governador do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, se antecipa
ao governo federal e concede, às mulheres de seu Estado, o direito ao voto em
1927. Isso incita a luta em outros Estados. Em 1929 é eleita a primeira mulher
no Brasil. Isso repercute até no exterior, pois Alzira Soriano será a primeira
prefeita, fato este inédito não só no Brasil, mas também na América do Sul.
Foi necessário esperar mais cinco anos para que esse direito se
estendesse a todos os Estados brasileiros. Somente em 1932 as mulheres de
todo o Brasil conquistam o direito ao voto, mas só poderão exercê-lo em 1945,
pois Getúlio Vargas havia suspendido as eleições durante esse período.
A década de setenta foi marcante. A chamada quarta onda, segundo
Duarte, (2003) revolucionou radicalmente os costumes brasileiros. Temas
polêmicos: tais como, liberdade sexual, aborto, planejamento familiar, controle
da natalidade foram abordados. Naquele momento histórico fez-se necessário
que elas se posicionassem contra a ditadura militar, a censura e lutassem pela
redemocratização do país e pela anistia dos exilados políticos. Foram grandes
os enfrentamentos do feminismo brasileiro contemporâneo naquele período,
pois, além de toda ideologia patriarcal discriminatória tinha também a Ditadura
Militar, ou seja, a liberdade cerceada por duas frentes poderosíssimas. Há um
fervilhar de mobilizações, inquietações, de reivindicações. Em 1975 é instituído,
pela ONU o Ano Internacional da Mulher. Nesse mesmo ano, é fundado, no Rio
de Janeiro, o Centro da Mulher Brasileira, com a participação de diversas
ONGS. Em 1995, há em Beijing a IV Conferência Mundial da Mulher. Tudo isso
contribuiu para dar um pouco mais de visibilidade às questões femininas. Não
só visibilidade, mas novos posicionamentos, mesmo que discretos quanto à
33
violência doméstica e à impunidade masculina, direito à saúde, direitos
reprodutivos, ampliação do quadro de mulheres eleitas em todos os níveis
políticos, a luta por cargos e salários iguais, enfim, igualdade de direitos sem
discriminação de gênero. Todo esse movimento e envolvimento contribuíram
para dar mais equilíbrio à sociedade brasileira, tornando-a menos excludente,
com mais mulheres no poder e nas instâncias de decisão, porém distantes da
situação ideal.
Foi também um período fértil para a literatura em que textos de autoria
feminina invadem as academias e são premiados. Eles estão lado a lado com
obras de autoria masculina disputando o mercado. As piores batalhas, enfim, já
haviam sido travadas a fim de que a literatura de autoria feminina conquistasse
esse espaço.
2. Instigando o olhar crítico...
Debate sobre questões femininas:
a) Até as primeiras décadas do século XIX não havia escolas públicas
femininas e era recorrente a “crença” de que mulheres não necessitavam saber
ler nem escrever (DUARTE, 2003, p.3).
O que você pensa sobre essa “crença”?
Em sua opinião, a quem interessaria disseminar essas ideias?
O fato de as mulheres serem excluídas do acesso à educação formal,
até então, trouxe prejuízos as mesmas? Quais? Comente.
b) É bandeira de luta das feministas da década de setenta, o combate à
violência doméstica contra as mulheres e a impunidade masculina.
Você já presenciou esse tipo de violência? Comente.
Quais fatores contribuem para que esse tipo de prática continue
ocorrendo?
O que fazer diante deste tipo de violência?
Diante das inúmeras violências contra a mulher apresentadas pela
mídia, qual mais lhe chamou atenção? Por quê?
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c) As estatísticas apontam que as mulheres, de uma forma geral, ganham
menos do que os homens, mesmo exercendo as mesmas funções,
O que você pensa a esse respeito?
O que é necessário para mudar essa concepção?
Apesar de tantos pontos ainda pendentes sobre a igualdade de direitos,
houve muitos avanços e conquistas. Como já se mencionou, a década de
setenta foi um período bastante fértil para a literatura de autoria feminina. E a
conquista desse espaço propiciou condições favoráveis para que escritoras
engajadas às questões femininas pudessem, através da literatura, denunciar
violências impostas à mulher. Violências estas que, quando levadas a
extremos, desrespeitam o direito ao bem maior que é a vida e, muitas vezes
com o silenciamento e a conivência da própria vítima que ao aceitar a
superioridade masculina, como sendo natural, não se opõe aos seus
desmandos. Veja como Colasanti denuncia isso em seu miniconto abaixo:
3. Explorando o título do miniconto: Como se fosse na Índia
.a) Lendo apenas o título do miniconto, é possível descobrir sobre o que ele
relata?
b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o
miniconto e verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.
4. Leitura
Como se fosse na Índia
Quando ele soube que ia morrer, comprou uma serra, um formão, e
durante semanas, com as poucas forças que lhe restaram, empenhou-se em
Depois de levantados esses pontos, abre-se um espaço para que os alunos
coloquem seus posicionamentos e sua percepção de como essas condutas se
instalam e qual é a melhor forma de combatê-la.
35
destruir os móveis do apartamento, reduzindo armários, mesas, cadeiras,
molduras e consoles em cavacos de pau que ordenadamente empilhava no
centro da sala.
A mulher acompanhava o labor, varrendo o entulho, cuidando para que
ele não se cansasse demais, sempre disponíveis na bandeja a xícara de
cafezinho ou o copo d’água. E estando tudo pronto afinal, quando já esgotava o
tempo do homem, subiu ela no alto da pilha, atenta para não derrubar o
cuidadoso arranjo.
Deitada lá em cima, ainda tirou com a mão uma teia de aranha do
lustre. Depois vasculhou o bolso do avental, e estendeu para o marido a caixa
de fósforos.
5. Análise estrutural
Explorando os elementos da narrativa teça e registre informações, que
se pode depreender do texto, relativas aos seguintes questionamentos:
a) Quais são as personagens da história e como elas são denominadas?
b) As personagens são caracterizadas física ou psicologicamente? Como elas
são caracterizadas?
c) Onde se passa a história?
d) Qual personagem lhe chamou mais a atenção? Por quê?
e) O narrador também participa da história? Quem narra?
f) Qual foi o conflito inicial?
g) E o desfecho final?
6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas
a) Como a mulher é representada nesse texto de Colasanti?
Fonte: COLASANTI, Marina. Como se fosse na Índia. In: Contos de amor
rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. P.135.
36
b) Em que medida a escritora critica a ideologia patriarcal que oprime a
mulher?
c) Quais os papéis desempenhados por cada uma das personagens do texto?
d) Esses papéis são “naturais” ou construídos? Comente.
e) Pode-se afirmar que neste miniconto houve a objetificação da mulher? Por
quê?
f) Retire uma parte do texto em que essa objetificação se apresenta com mais
evidência, com mais força.
7. Curiosidades:
9. Pesquise:
a) Atualmente ainda perduram essas ações, ou, isso é coisa do passado?
b) Os casamentos arranjados aparecem em alguns romances brasileiros
c)
d)
e)
8. Pesquise:
a) Atualmente ainda perduram essas ações, ou seja, as viúvas ainda são
queimadas junto ao marido morto, ou isso é coisa do passado?
b) Os casamentos arranjados aparecem em alguns romances brasileiros
produzidos no século XIX. Levante informações a esse respeito e traga-as para
a sala.
O miniconto Como se fosse na Índia faz uma analogia à forma extrema de
execração do gênero feminino. Na Índia os corpos vivos das esposas eram
queimados junto na pira funerária de seus maridos mortos em prova de seu amor e
fidelidade. Observe que o oposto não era exigido por essa mesma sociedade.
Percebe-se um dualismo escancarado com atitudes e reações divergentes para a
mesma situação. Lá, uma prática comum é que os casamentos sejam arranjados de
acordo com interesses materiais, ou seja, o marido escolhe a esposa de acordo com
o tamanho do dote que a acompanhará. Além disso, as mulheres já são educadas
para obedecerem tanto pais quanto maridos, pois, depois de casadas só poderão
voltar à casa paterna, mortas.
37
c) Outra prática considerada comum lá, na Índia, era o infanticídio de crianças
do sexo feminino.
Isso ainda ocorre?
Se ocorre, quais as prováveis causas e por que são aceitas?
O que você pensa sobre essas práticas? Argumente.
d) Ideologias histórico-filosóficas como essas atreladas a uma educação
castradora podem ter sido vetores da não visibilidade da voz feminina nos
constructos históricos da humanidade. Comente argumentando e justificando
seu posicionamento.
No estruturalismo, essa divergência entre os gêneros (homem/mulher) é
chamada de binarismo, que segundo BONNICI (2007)
é um dos pontos básicos do estruturalismo, consiste dois termos
mutuamente excludentes, mas hierárquicos: direita/esquerda;
homem/mulher; branco/preto; natureza/cultura. O estruturalismo
mostra que essas oposições são básicas em todos os fenômenos
culturais e que conhecemos um termo porque se refere ao outro
contrastante. Essas premissas foram, contudo, rechaçadas pelos
críticos desconstrucionistas, os quais argumentam que o significado
não é oposicionista tanto quanto os estruturalistas asseriam. Com
referência à posição estruturalista da construção hierárquica no
binarismo, o termo “homem” é considerado positivo e privilegiado,
enquanto o segundo é negativo e subalterno. As feministas utilizaram a
perversidade e a instabilidade dessa posição para mostrar como foi
construído o patriarcalismo e, portanto, o conceito de mulher como
negativo e periférico.
No miniconto, anteriormente analisado, Colasanti desmascara essa
forma, já, historicamente arraigada na maioria das culturas, tanto oriental
quanto ocidental, da supremacia do homem em detrimento da mulher. É como
se as pessoas estivessem em estado letárgico impossibilitadas de questionar
ao ponto de atos como os ali mencionados não causar estranhamento, repúdio.
Nele estão presentes todos os indícios de como a sociedade, e aí
entram todos sem exceção, tem disseminado comportamentos pertinentes e
38
adequados às mulheres e aos homens. Às mulheres está destinado o
casamento, o cuidar da casa, da família, a se submeter às ordens dos homens
sem questionamentos ou restrições.
Apesar do espaço profissional que aos poucos as mulheres vêm
conquistando, resta-lhes, para a grande maioria, a dupla jornada de trabalho,
pois o cuidar da casa e da família continuam concebidos e cristalizados como
tarefa, majoritariamente, feminina.
40
UNIDADE IV
1. Reflexão teórica:
Mulher Sujeito X Mulher Objeto
O ser humano é um ser de cultura. Ele se constitui no convívio com o
outro. Dentre as espécies vivas, e, especificamente os mamíferos, os bebês
humanos são os mais imaturos e que ficam mais tempo dependentes de seus
ascendentes, tanto de cuidados físicos quanto psicológicos. Portanto, não há
como dissociar os posicionamentos de cada indivíduo (homem/mulher) ao
longo de sua vida, dos papéis sociais imputados a cada um, dependendo de
seu gênero. Isso é social e é muito forte. Romper com estigmas de que a
mulher nasceu para depender do homem, para cuidar da casa, dos filhos e
tantos outros estereótipos, suscitam bastantes esforços. E, dependendo do
contexto e das relações humanas e sociais as quais esse indivíduo vivenciou e
ficou exposto, isso certamente se evidenciará em suas tomadas, ou não, de
decisões ao longo de sua vida. Quando oriundo de um meio social em que não
é aceito em suas singularidades, facilmente se tornará um ser “objeto”, ou seja,
subordinado à vontade e aos mandos alheios, perdendo, dessa forma, a
oportunidade de ser sujeito de sua vida, de suas ações e escolhas.
Vive-se em um mundo globalizado em que a pressão midiática é muito
forte. Por isso, valores morais, éticos, comportamentais por ela disseminados,
são incorporados quase que inconscientemente sem maiores reflexões pela
grande maioria das pessoas. Isso é bastante pernicioso e pode se alastrar de
forma voraz comprometendo as relações humanas quando a tônica é a de se
levar vantagem sempre, e, portanto a exploração, o “uso” do outro acabam
sendo incorporados e aceitos como naturais e sem muita reflexão. Nisso, a
história está repleta de exemplos.
Quando se menciona “ser sujeito”, pode-se abarcar a concepção de ser
como ente, organismo, essência daquilo que se encontra no eu, no interior do
espírito. Porém, é praticamente impossível manter-se a posição de sujeito
tempo integral, entendendo-a como aquele que de posse da mesma age de
acordo com valores inerentes apenas a ele e livre das amarras sociais.
Escolhas, opções nunca são aleatórias, elas estão revestidas e impregnadas
41
de outras vozes que estigmatizam e direcionam o comportamento humano.
Reconhecê-las torna-se essencial para poder reforçá-las, quando construtivas,
e combatê-las quando forem depreciativas e excludentes.
Ao se afirmar que é praticamente impossível manter-se na posição de
sujeito o tempo todo, isso se refere a aquelas pessoas que dizem ter feito suas
próprias opções. Porém, não adianta ser sujeito na hora de escolher se no
contexto essa escolha lhe coloca numa posição de subordinação.
É inconteste a assertiva da objetificação da mulher nas diversas mídias,
principalmente na televisiva. Quando as ações ganham corpo, cor, raça, credo
e tantas outras roupagens, as mesmas ações se revestem de valorações
ambíguas, disformes e preconceituosas dependendo do perfil e do gênero de
quem as praticou.
Segundo BONNICI (2007, p. 192),
A objetificação (lat. Objectum, objeto; facere, fazer) é a maneira pela
qual indivíduos ou grupos de indivíduos tratam os outros como
objetos. É a prática própria da ideologia patriarcal e da ideologia
colonial de tratar o outro (diferente na cor da pele, na raça, na etnia,
na religião, no gênero) como inferior. Portanto, em sociedades
reprimidas o relacionamento entre as pessoas não é visto na base
de reciprocidade, ou seja, sujeito-sujeito (SARTRE, 1943). Na teoria
feminista, os participantes (o homem e a mulher) são hierarquizados
de tal forma que o homem e seu discurso se petrificam como
sujeitos, enquanto a mulher e seu discurso são reduzidos a objeto.
2. Instigando o olhar crítico...
Só para instigar... De que forma a mídia, principalmente a televisiva, tem
representado a mulher em seus anúncios publicitários?
Sugere-se que cada grupo composto por quatro alunos, selecione uma
propaganda em que fique evidenciada a objetificação da mulher; traga-a para a
sala e apresente-a aos colegas utilizando para tanto a TV pendrive, o datashow,
ou o vídeo. Depois de realizados esses passos o grupo desafiará os demais
colegas a encontrarem vestígios da exploração da figura feminina, tendo como
norte os seguintes questionamentos:
42
a) Houve a objetificação da mulher? Caso tenha ocorrido, essa objetificação
aparece de forma implícita ou explícita?
b) De que forma a figura feminina foi objetificada?
c) Há a conivência feminina nesta objetificação? Caso sua resposta seja
afirmativa, essa conivência é universal? Justifique sua afirmação, se possível,
com dados resultantes de pesquisas midiáticas ou de campo.
d) Leia a seguinte assertiva: “O fato do “objeto” ter escolhido ser objeto não
elimina o contexto de objetificação.” Busque ancoragem no quarto parágrafo do
texto acima e relacione-o à propaganda selecionada materializando e
explicitando essa afirmação.
É importante ratificar que essa objetificação quando se cristaliza, ganha
outras proporções e invadem outros segmentos sociais. É bastante comum nos
relacionamentos entre homens e mulheres, aqueles se sentirem e agirem como
se fossem seus proprietários e não parceiros. E desta forma, interferem na
maneira de como elas devem se vestir, se comportar, se relacionar com as
pessoas, onde devem frequentar, enfim, são inúmeras as exigências como se
as mesmas não tivessem vontades próprias. Essa invasão do espaço da
mulher em sua forma de ser, de agir e em suas relações sociais, sugerem que
seus parceiros as consideram como sua propriedade.
Essas concepções foram sendo construídas lentamente e estão
arraigadas no ideário das pessoas. Criar-lhes novas ressignificações é um
processo lento e que demanda tempo, além do envolvimento coletivo. Para
isso se tem que sair da zona de conforto e aceitar o desafio.
3. Explorando o título do miniconto: Ela era sua tarefa
Para melhor tal explorá-lo, responda aos questionamentos abaixo:
a) Lendo apenas o título do miniconto, é possível descobrir sobre o que ele
relata?
b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o
miniconto e verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.
43
4. Leitura
Ela era sua tarefa
Desde sempre, o dia chegando vinha encontrá-lo ali, no começo da
encosta, já empurrando e rolando sua esposa para cima, longo esforço em
direção ao cume.
Desde sempre, resvalando lentamente para a noite, o sol desenhava a
sombra embolada do corpo da mulher que, mal chegada ao alto despencava
novamente pelo flanco do monte.
Desde sempre. Até o momento em que cravando os dentes e agarrando
as unhas nas pedras daquele cimo árido, a mulher contém seu destino. E
erguidas aos poucos as costas, mal equilibrada ainda sobre si, faz-se de pé.
Desaparece quase a luz do sol, o último alento vermelho tinge a mão do
homem. Que se levanta. E firme, empurra a mulher pelas costas, monte
abaixo.
3. Depois de realizada a leitura, responda:
5. Análise estrutural
Explorando os elementos da narrativa teça e registre informações, que
se pode depreender do texto, relativas aos seguintes questionamentos:
a) Quais são as personagens da história e como elas são denominadas?
b) As personagens apresentadas nesse miniconto se fazem conhecer pela
caracterização psicológica apenas. Essa caracterização sofre alterações à
medida que a narrativa avança. De que forma isso se evidencia nesse
miniconto?
c) Onde se passa a história?
d) Qual personagem lhe chamou mais a atenção? Por quê?
Fonte: COLASANTI, Marina. Ela era sua tarefa. In: Contos de amor rasgados.
Rio de Janeiro: Rocco, 1986. P.99.
44
e) O narrador também participa da história? Quem narra?
f) Qual foi o conflito inicial?
g) E o desfecho?
6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas
a) Em quais parágrafos observa-se nitidamente a objetificação de mulher? O
que há neles que justifique a sua escolha?
b) Em que parágrafo a mulher deixa de ser um ser objeto e torna-se sujeito?
Comprove com partes do texto?
c) Essa conquista foi fácil ou difícil? O que a/o fez chegar a essa conclusão?
d) O que abrevia ou interrompe essa conquista?
e) A atitude tomada pelo marido no último parágrafo era previsível, ou não? Por
quê?
f) Depois de todos esses estudos realizados, o que se pode inferir quanto à
repetição proposital da locução adverbial de tempo: Desde sempre que
aparece no início dos três primeiros parágrafos?
g) O que se pode depreender da expressão que inicia o quarto parágrafo:
Desaparece quase a luz do sol, analisando-a no sentido literal (denotação) e
no sentido figurado (conotação)?
h) Dentro do contexto, explique o significado da última expressão do penúltimo
parágrafo faz-se de pé.
Quem é o sujeito (agente) dessa ação?
Ele representa um sujeito singular ou universal? Por quê?
i) Leia, analise e comente: E firme, empurra a mulher pelas costas, monte
abaixo.
Em nossa cultura o que permeia ideológica e moralmente agir pelas
costas de outra pessoa?
45
A expressão negritada anteriormente, neste contexto, ela se apresenta
em sentido denotativo ou conotativo. Comente.
47
UNIDADE V
1. Reflexão teórica:
A trajetória da literatura de autoria feminina e suas principais representantes
Em relação à trajetória da literatura de autoria feminina, Elaine Showalter
(1985), baseada na literatura inglesa, aponta três etapas:
PRIMEIRA FASE
a) Fase de imitação – A esta primeira fase, ela denominou de feminina, pois
percebe-se nessas obras literárias a internalização e a imitação dos valores e
padrões vigentes da ideologia patriarcal, ou seja, as escritoras, ainda sem ter
como referencial o Movimento Feminista, reduplicam em suas obras o sistema
de opressão feminina vivenciado na sociedade da época. Transpondo-a para a
literatura brasileira em que escritoras trazem em seus romances personagens
femininas que refletem os valores vigentes no que tange a valores éticos e
ideológicos da época. São elas: Maria Firmina dos Reis, Úrsula (1859); Júlia
Lopes de Almeida, A Intrusa (1908); Carolina Nabuco, A sucessora (1934).
2. Referência biográfica de Júlia Lopes de Almeida – Representante da primeira fase literária (fase feminina)
JÚLIA LOPES
Fonte:
Júlia Lopes de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em 24 de setembro de
1862 e recebeu toda educação formal em sua casa como era comum a
mulheres que faziam parte das classes mais abastadas da época, pois a
grande maioria vivia à margem sem acesso a qualquer tipo de formação mais
http://www.diaadia.pr.gov.br/tvpendrive/arquivos/File/imagens/2010/lingua_portuguesa/julia_lopes.jpg
48
elaborada. Foi com o apoio de seu pai que estreou no jornal Gazeta de
Campinas com apenas 19 anos e foi aprimorar os seus estudos na Europa.
Casou-se com o poeta Felinto de Almeida e voltou a morar no Rio de Janeiro,
onde passou a colaborar em diversos semanários, principalmente em A
Semana. Publica em Lisboa, em 1886 o seu primeiro livro, Traços e Iluminuras.
Considerada como pioneira das letras, teve o reconhecimento em sua
época como escritora e jornalista mulher que circulava entre a elite literária do
século XIX. A sua obra era destinada principalmente ao público feminino, por
retratar a conduta de diversas gerações de mulheres brasileiras, mas debateu
em seus livros temas políticos importantes como a abolição da escravidão, e
também o difícil acesso das mulheres à educação e os limites inerentes aos
papéis de mãe e esposa. José Veríssimo, importante crítico literário da época,
considera suas obras como prosseguimento natural de Machado de Assis e
Aluísio de Azevedo, e pouquíssimas mulheres no período oitocentista tiveram
este privilégio.
Em 1886 lança Livro das noivas e conquista um grupo de leitores fiéis,
grande o suficiente para torná-la um dos poucos literatos - junto com Olavo
Bilac, Coelho Neto e João do Rio - a fazer conferências públicas. Alguns anos
depois, faz a abertura do II Congresso Internacional Feminista, clamando pelo
voto feminino e pelo reconhecimento das mulheres no espaço político e
cultural.
Apesar de todo seu envolvimento com as questões sociais de seu
tempo, ela reduplica os valores patriarcais de sua época em sua produção
literária na qual é visível os papéis femininos que vêm bem demarcados e que
valoriza a mulher dona de casa e que cuida do bem estar do marido e dos
filhos. Dessa forma, ela seria uma autêntica representante da chamada
primeira fase da literatura de autoria feminina, que Elaine Showalter denominou
de “feminina”, em que as obras literárias imitam a ideologia patriarcal, ou seja,
as escritoras, ainda sem ter como referencial o Movimento Feminista,
reduplicam valores pré-existentes sem conseguir transpô-los totalmente.
49
3. Explorando o título do conto: A caolha
O título desse conto, obviamente, lhe sugere e lhe faz formular antecipações
cognitivas. Pensando nisso, que tal explorar e responder a alguns
questionamentos:
a) Lendo apenas o título do conto, é possível descobrir sobre o que ele relata?
b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o conto e
verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.
4. Leitura
A caolha
A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto
arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos
pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho;
unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o
branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser
áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço
longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.
O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não
tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha
um defeito horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera
mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente
porejante.
Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa
destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda a
gente.
Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa
oficina de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o
serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os
pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que
ia crescendo, ia-se-lhe a pouco e pouco manifestando na fisionomia a
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repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho,
declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora...
Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.
Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.
Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe
apagasse com um beijo todas as amarguras da existência?
Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para
o seu triste coração de mãe! Mas... os beijos foram escasseando também, com
o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos bracinhos e enchia-
lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde
não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!
Ela compreendia tudo e calava-se.
O filho não sofria menos.
Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia,
começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo - o filho
da caolha.
Aquilo exasperava-o; respondia sempre.
Os outros riam-se e chacoteavam-no; ele queixava-se aos mestres, os
mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los - mas a
alcunha pegou, já não era só na escola que o chamavam assim.
Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou de outra janela dizerem: o
filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!
Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que,
industriadas pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o
viam passar!
As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o
lunch, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros e, muitas vezes,
afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam,
estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:
─ Taí, isso é pra o filho da caolha!
O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais
palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em
coro, num estribilho já combinado:
─ Filho da caolha, filho da caolha!
51
O Antonico pediu à mãe que o não fosse buscar à escola; e, muito
vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio
os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e
faziam caretas de náuseas!
A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.
Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com
os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma
oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a
chamá-lo o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.
Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e
desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda; os seus ex-colegas
agrupavam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o
caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz
expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais
sobre o pobre Antonico!
Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo,
deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre
bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta
poupava-o: tinha medo de que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos
braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais
forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz
mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não
deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!
Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos
companheiros; quando o mestre dizia: Sr. Antonico, ele percebia um sorriso
mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse
sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.
Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até
aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma
resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas.
Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! amava como um louco a linda
moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros
como veludo e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser
assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia, em
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que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto
da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento de
esquecida ternura.
Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a
encontrar o seu querido filho! - pôs-se a cantar toda a tarde e nessa noite, ao
adormecer, dizia consigo:
─ Sou muito feliz... o meu filho é um anjo!
Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de
amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se
esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjeturas.
Ao princípio pensava:
─ "É o pudor". - Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim
recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua
mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações
confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito
conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia
sujeitar a ser alcunhada em breve de - nora da caolha, ou coisa semelhante!
O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha
tivesse pensamentos tão práticos!
Depois o seu rancor voltou-se para a mãe.
Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a
sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante
sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher
tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; considerar-se-ia
humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo
de vez em quando vê-la à noite, furtivamente...
Salvava assim a responsabilidade de protetor e, ao mesmo tempo,
consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu
consentimento e amor...
Passou um dia terrível. À noite, voltando para casa, levava o seu projeto
e a decisão de o expor à mãe.
A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo
engordurado. O Antonico pensou: "A dizer a verdade eu havia de sujeitar minha
mulher a viver em companhia de... uma tal criatura?". Estas últimas palavras
53
foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para
ele o rosto e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:
─ Limpe a cara, mãe...
Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:
─ Afinal nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!
─ Foi uma doença - respondeu sufocadamente a mãe, - é melhor não
lembrar isso!
─ E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?
─ Porque não vale a pena; nada se remedeia...
─ Bem! Agora escute: trago-lhe uma novidade - o patrão exige que eu vá
dormir na vizinhança da loja... Já aluguei um quarto. A senhora fica aqui e eu
virei todos os dias a saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma
coisa... É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!...
Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado
e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o
trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras
toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olho desconfiado e
medroso.
A caolha levantou-se e, fixando o filho com uma expressão terrível,
respondeu com doloroso desdém:
- Embusteiro! O que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu
também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!
O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a
mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente,
obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.
Ela acompanhou-o, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só,
encostou-se cambaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.
O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.
Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve
coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados
pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo
do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho - e sujo de pus. Via a sua
atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com
energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande
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fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe
atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o
perigo de outra semelhante.
Providencialmente lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas
Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo que houvera.
A madrinha escutou-o comovida; depois disse:
─ Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse
a verdade inteira; ela não quis, aí está!
Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho - queria
mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz arrependera-se das palavras que dissera
e tinha passado toda a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou
passasse apenas... Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a
amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarram-lhe
toda a ação.
A madrinha do rapaz começou logo:
─ O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve
aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já
deverias ter-lhe dito!
─ Cala-te! – murmurou com a voz apagada a caolha.
─ Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz,
quem cegou tua mãe foste tu!
O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:
─ Ah, não tiveste culpa eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço,
levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse
evitar a catástrofe, tu enterraste-lho pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido
o grito de dor que ela deu!
O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe
acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:
─ Pobre filho! Vês? Era por isto que eu não lhe queria dizer nada!
Fonte: MARICONI, I. Os cem melhores contos do século. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
55
5. Análise estrutural
Explorando os elementos da narrativa teça e registre informações, que
se pode depreender do texto, relativas aos seguintes questionamentos:
a) Quais são as personagens da história e como elas são denominadas?
b) Ao se omitir o nome próprio da personagem principal deste conto, o que isso
pode sugerir ao leitor?
c) Qual é a personagem principal e como ela é descrita?
d) Essa descrição é, predominantemente, física ou psicológica? Por quê?
e) Ao descrevê-la o narrador emite juízo de valor. Retire as partes descritivas
nas quais isso ocorre.
f) A história se passa em um lugar restrito ou ocorre em diversos espaços
geográficos? Qual(ais)?
g) Qual personagem lhe chamou mais a atenção? Por quê?
h) Sabendo que há dois tipos de narração que são as mais comuns e as mais
exploradas: as em primeira pessoa e as em terceira pessoa. Na narração em
primeira pessoa há um narrador-personagem, ou seja, narra e também faz
parte da história. Já na narração em terceira pessoa o narrador é chamado
de narrador-observador porque apenas observa e relata os fatos sem participar
da história. Diante disso, diga que tipo de narrador o conto apresenta e
justifique sua escolha fazendo os comentários cabíveis.
i) Retire as marcas temporais presentes no texto e que demarcam o avanço
narrativo.
j) Qual foi o conflito inicial?
l) E o desfecho?
6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas.
a) Como a mulher é representada nesse texto de Júlia Lopes?
b) Em que medida a escritora reduplica em sua obra a ideologia patriarcal até
então vigente?
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c) A reflexão feita na Unidade II sobre a representatividade da personagem
feminina na literatura canônica que, geralmente a caracteriza, principalmente
no Romantismo e no Realismo, ora como símbolo de perfeição, ora como o
mais sórdido dos seres. De que forma isso se evidencia na construção da
personagem feminina do conto aqui estudado?
d) Pode-se afirmar que nesse conto houve a objetificação da mulher? De que
maneira ela se manifestou no texto?
e) Houve um momento no conto em que a personagem se manifesta contra
essa objetificação. Encontre e retire a parte em que isso ocorre.
f) Depois de ter conhecido um pouco sobre Mulher sujeito X Mulher objeto
(Unidade 4; p. 23), responda:
Pode-se afirmar que a personagem feminina consegue romper com as
barreiras que lhe são impostas tornando-se e mantendo-se sujeito de
suas ações? Por quê?
g) É foco de discussão e de questionamentos a dupla jornada de trabalho de
muitas mulheres. Pois, ao assumir um trabalho formal, fora de casa para
contribuir, ou até mesmo sustentar a família, não deixa de realizar as tarefas de
casa, tidos como femininos.
Isso também ocorre nesse conto. Encontre e retire parte do texto que
comprova a assertiva anterior.
7. Sugestão de vídeo
8. Leitura complementar
Para se conhecer algumas curiosidades e costumes da sociedade carioca do final do século XIX e início do século XX, sugere-se a leitura da crônica de opinião abaixo, de Júlia Lopes de Almeida.
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O vestuário feminino
É uma esquisitice muito comum entre senhoras intelectuais, envergarem
paletó, colete e colarinho de homem, ao apresentarem-se em público,
procurando confundir-se, no aspecto físico, com os homens, como se lhes não
bastassem as aproximações igualitárias do espírito.
Esse desdém da mulher pela mulher faz pensar que: ou as doutoras
julgam, como os homens, que a mentalidade da mulher é inferior, e que, sendo
elas exceção da grande regra, pertencem mais ao sexo forte, do que do nosso,
fragílimo; ou que isso revela apenas pretensão de despretensão.
Seja o que for, nem a moral nem a estética ganham nada com isso. Ao
contrário; se uma mulher triunfa da má vontade dos homens e das leis, dos
preconceitos do meio e da raça, todas as vezes que for chamada ao seu posto
de trabalho, com tanta dor, tanta esperança, e tanto susto adquirido, deve
ufanar-se em apresentar-se como mulher. Seria isso um desafio?
Não; naturalíssimo pareceria a toda a gente que uma mulher se
apresentasse em público como todas as outras.
Basta ver um jornal feminista para toparmos logo com muitos retratos de
mulheres célebres, cujos paletós, coletes e colarinhos de homem, parece
quererem mostrar ao mundo que esta ali dentro um caráter viril e um espírito
de atrevidos impulsos. Cabelos sacrificados à tesoura, lapelas (sem flor!) de
casacos escuros, saias esguias e murchas, afeiam corpos que a natureza
talhou para os altos destinos da graça e da beleza.
Os colarinhos engomados, as camisas de peito chato, dão às mulheres
uma linha pouco sinuosa, e contrafeita, porque é disfarçada.
Médicas, engenheiras, advogadas, farmacêuticas, escritoras, pintoras,
etc. por amarem e se devotarem às ciências e às artes, porque hão de
desdenhar em absoluto a elegância feminina e procurar nos figurinos dos
homens a expressão da sua individualidade?
Há certas mulheres, precisamos convir, que têm desculpa na adoção
dos murchos trajes masculinos, porque para elas isso não representa uma
questão de estética, mas de incontestável necessidade - as exploradoras, por
exemplo.
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A essas, as saias impediriam as passadas e os saltos, no labirinto
enredado dos cipoais, entre todos os obstáculos das florestas eriçadas de
espinhos e cortadas de valos a transpor.
As calças grossas e as altas polainas são para elas, portanto, não objeto
de fantasia, mas de comodidade e salvamento. O pano flutuante do vestido
prendê-las-ia de instante a instante aos troncos e às arestas do caminho, e,
quando molhado, pesar-lhes-ia no corpo como chumbo.
Por exigências de comodidade no trabalho, também escultoras e
pintoras se sujeitam muitas vezes a vestirem-se assim e só quando executam
obras de grandes dimensões. As calças facilitam então as subidas e as
descidas de andaimes e de escadas.
Rosa Bonheur, conta-nos um seu biógrafo, surpreendida no atelier pela
notícia de que a imperatriz Eugênia entrava em sua casa para oferecer-lhe a
Legião de Honra, - viu-se atrapalhada para enfiar às pressas os trajes do seu
sexo e poder receber respeitosamente a soberana.
Só de portas a dentro ela abusava dessas entradas por seara alheia,
para usar com liberdade de todos os seus movimentos; mas desde que a
artista era procurada por estranhos, ela aparecia como mulher.
Nas cidades, sobre o asfalto das ruas ou o saibro das alamedas, não
sabe a gente verdadeiramente para que razão apelar, quando vê, cingidas a
corpos femininos, essas toilettes híbridas, compostas de saias de mulher,
coletes e paletós de homem... Nem tampouco é fácil de perceber o motivo por
que, em vez da fita macia, preferem essas senhoras especar o pescoço num
colarinho lustrado a ferro, e duro como um papelão!
9. Análise estrutural
a) Pesquise a concepção de crônica e conto e responda:
Fonte: O vestuário feminino, crônica de opinião, de Júlia Lopes. Disponível em:
<http://www.biblio.com.br/conteudo/JuliaLopesdeAlmeida/mlivrodasdonas.htm>
Acesso em: 01 jul. 2010
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O texto lido anteriormente O vestuário feminino, de Júlia Lopes,
trata-se de um conto ou de uma crônica? Justifique sua escolha buscando
Indícios de um ou de outro gênero dentro do texto estudado.
10. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas
a) O que se evidencia na escritura de Júlia Lopes que faz com que alguns
críticos literários a considere pertencente a primeira fase da literatura feminina?
b) Transcreva partes do texto em que se evidencia e há o aval explícito à
concepção patriarcalista de que o homem é superior à mulher.
d) Conheça um pouco sobre Rosa Bonheur acessando o link abaixo, e
responda: hhttp://www.lilithgallery.com/arthistory/realism/Rosa-Bonheur.html
Por que ela foi considerada como uma das figuras mais originais
de seu tempo?
Quais as regras do século XIX (1822 – 1899), que ela teve que
transgredir para atingir seus objetivos?
e) Segundo a escritora, como deveria ser a roupa feminina?
Fonte:
Fase de ruptura – A segunda fase, chamada de feminista caracteriza-se
A trajetória da literatura de autoria feminina e suas principais
representantes
SEGUNDA FASE
b) Fase de ruptura – A segunda fase, chamada de feminista caracteriza-se
pela ruptura, pelo caráter de luta, de protesto contra os valores e os padrões
vigentes e em defesa dos direitos e dos valores das minorias. Clarice Lispector,
Rosa Bonheur Disponível em hhttp://www.lilithgallery.com/arthistory/realism/Rosa-
Bonheur.html
O vestuário feminino, crônica de opinião, de Júlia Lopes. Disponível em:
<h ttp://www.biblio.com.br/conteudo/JuliaLopesdeAlmeida/mlivrodasdonas.htm
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por meio de sua obra, segundo Zolin, (2005) inaugura outra forma de narrar
dentro de um espaço tradicionalmente fechado à mulher. Suas obras trazem
críticas evidentes aos valores patriarcais, tornando visível a repressão feminina
nas práticas sociais. Em muitas de suas obras as personagens femininas estão
enredadas em um ambiente alienante, quando de repente surge algo novo,
inusitado, que faz com que essa personagem reflita de uma forma intensa,
introspectiva e angustiante sobre sua condição humana. Romances e contos
de Lispector com esse perfil: Perto do coração selvagem (1943), Cidade Sitiada
(1949), Laços de família (1960), Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres
(1969). Há também outras escritoras, cujas obras apresentam características
desta fase, são elas: Lya Luft, As parceiras (1980), A asa esquerda do anjo
(1980), Reunião de família (1982), Quarto fechado (1984); Márcia Denser,
Diana caçadora (1986); Sônia Coutinho, Atire em Sofia (1989); Helena Parente
Cunha, A mulher no espelho (1985), As doze cores do vermelho (1988);
Marilene Felinto, Mulheres de Tijucopapo (1987) e Nélida Piñon, A casa da
paixão (1972)
2. Referência biográfica de Clarice Lispector – Representante da segunda fase literária (fase feminista)
CLARICE LISPECTOR
Fonte:
Clarice Lispector chega ao Brasil, muito criança, e sua família se instala
http://www.diaadia.pr.gov.br/tvpendrive/arquivos/File/imagens/2010/lingua_portuguesa/clarice.jpg
61
na região Nordeste do Brasil, onde a escritora vive por onze anos. Depois,
mudam-se para o Rio de Janeiro. Lá, ela ingressa na faculdade de direito.
Estreia como escritora em 1943, com a publicação do romance Perto do
coração selvagem. Em 1946, publica O Lustre, em 1949, A cidade sitiada e
muitos outros. Em 1952 publicou alguns contos. Dentre seus contos os que
mais se destacam são Laços de família e Felicidade Clandestina.
Ela escreve seu livro A hora da estrela, em 1977, ano de sua morte.
Veja também o que Clarice Lispector nos adianta sobre essa produção,
Clarice Lispector surpreende a todos com o seu jeito peculiar de
escrever e de abordar os conflitos humanos, principalmente os femininos.
Numa busca incessante de uma maior compreensão da consciência individual,
cria personagens extremamente introspectivos. Sem se preocupar com a
linearidade da narrativa e com os fatos em si, mas sim o que determinados
fatos podem desencadear no interior da personagem quando ela toma
consciência de sua individualidade, do seu “eu”, esse é sempre um momento
de uma grande desordem interior, de buscas e de anseios.
Para o leitor esses momentos se apresentam de forma bastante
complexa, intercortados, cheios de lacunas que precisam ser preenchidas por
aquele que lê a obra de Clarice Lispector.
Segundo Waldman (1993),
(...) o modo de apreensão artística da realidade se faz a partir de um
centro que é a consciência individual, daí resultam características
tais como o monólogo interior, a digressão, a fragmentação dos
episódios, que caracteriza a ficção moderna em geral, e inclui a
totalidade da obra de Clarice Lispector.
Graças à escolha desse centro, a experiência interior passa para o
primeiro plano da criação literária e com ela a temática da existência.
Ao lado desse tema, a linguagem, a arte e a morte são, em geral, os
Conheça mais detalhes sobre A hora da estrela acessando o link abaixo:
http://www.youtube.com/watch?v=ptCJzf20rbY&feature=related
Veja também o que Clarice Lispector nos adianta sobre essa produção, a qual
denomina de novela nordestina. Esta foi a última entrevista da escritora que neste
ano de 1977 morre afetada por um câncer. Acesse o link abaixo para conhecer a
fala da escritora:
http://www.youtube.com/watch?v=TbZriv5THpA&feature=related
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acionadores das digressões que retardam a narrativa, instâncias
sempre retomadas com o intuito de atingir uma expressão à altura da
percepção da escritora tem do mundo.
3. Explorando o título do conto: Uma galinha
Através da apresentação do título há a possibilidade de se formular
antecipações cognitivas, tais como: levantamento de hipóteses, criação de
expectativas e, é pelo título que o leitor realiza a sua primeira interpretação.
Pensando nisso, que tal explorar e responder a alguns questionamentos:
a) Lendo apenas o título do conto, é possível descobrir sobre o que ele relata?
b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o conto e
verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.
4. Leitura
Uma galinha
Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove
horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não
olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram,
apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou
magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi, pois, uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo,
inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um
instante ainda vacilou – o tempo da cozinheira dar um grito – e em breve
estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou o
telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A
família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma
chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer
esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de
banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o
telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A
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perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais
de um quarteirão de rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a
galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum
auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais
íntima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda,
concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e
enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade, tinha tempo de se refazer
por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que
é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É
verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria
contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que
havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão
igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz
alcançou. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo
por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa
violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo.
Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que
fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o
ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu
coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de
tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e
assistiu tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do
acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
- Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o
nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem
parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem
alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum
sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem
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propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça
de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
- Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na
minha vida!
– Eu também! Jurou a menina com ardor.
A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar
com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem
interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se
lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-
se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e
o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a da apatia e a do
sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido,
enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga e circulava
pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo,
embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho
susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha
que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses
momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às
fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora
nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no
descanso, quando deu à luz ou bicando milho – era uma cabeça de galinha, a
mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.
5. Sugestões de links para se conhecer comentários autorizados sobre o conto: Uma galinha, de Lispector:
Fonte: Clarice Lispector, Laços de família. Rio, Francisco Alves, 2ª ed., 1961.
Matéria publicada em 01/02/2001 - Edição Número 18
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6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas
a) Depois de ler os comentários acima fica mais fácil lançar um novo olhar e
novas possibilidades de leituras desse conto. Considerando-se que a tentativa
de fuga da galinha poderia ser uma metáfora da tentativa da mulher de se livrar
da realidade que a oprime há séculos, relacionando a primeira com a segunda
parte. Enumere-as adequadamente:
Primeira parte
(1) Discurso em que se evidencia a supremacia masculina sobre a feminina.
(2) Discurso que retrata a insegurança da personagem.
(3) Discurso em que faz uma analogia à maternidade e aos cuidados familiares,
como funções ditas nobres por uma cultura machista, e, atribuídas à mulher.
Segunda parte
( ) Um instante ainda vacilou – o tempo da cozinheira dar um grito – e em breve
estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou o
telhado.
( ) Não vitoriosa como seria um galo em fuga.
( ) Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha
mãe habituada.
( ) Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé.
( ) Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista.
( )Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem
triste ...
( ) ...em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula,
escolhia com urgência outro rumo.
( ) A galinha tornara-se a rainha da casa.
( ) Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se
fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente.
http://www.artigos.com/artigos/humanas/artes-e-literatura/seria-apenas-uma-
galinha-?-917/artigo/
http://recantodasletras.uol.com.br/teorialiteraria/607511
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b) Leia o excerto abaixo e responda:
"Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda,
concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e
enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por
um momento. E então parecia tão livre”.
Analisando a expressão sem pai nem mãe, a que semanticamente ela
nos remete literalmente (sentido denotativo) e figurativamente (sentido
conotativo)
E então parecia tão livre. Através dessa assertiva, pode-se depreender
que essa liberdade é real, concreta, ou apenas fictícia? Qual elemento
(palavra) desse período autoriza a sua escolha? Comente.
7. Sugestões de links para que se conheça um pouco mais sobre a grande escritora Clarice Lispector
Assista a última entrevista de Clarice Lispector concedida no mesmo ano de
sua morte (1977), acessando:
(1ª parte da entrevista)
http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqyok
(2ª parte)
http://www.youtube.com/watch?v=TvLrJMGlnF4&feature=related
(3ª parte)
http://www.youtube.com/watch?v=ZVwj3pHAi_s&feature=related
(4ª parte) – A Hora da Estrela
http://www.youtube.com/watch?v=ptCJzf20rbY&feature=related
(5ª parte)
http://www.youtube.com/watch?v=TbZriv5THpA&feature=related
(fotos de Clarice)
http://www.youtube.com/watch?v=uUgY8j1FUfU&feature=related
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1. Reflexão teórica:
A trajetória da literatura de autoria feminina e suas principais
representantes
TERCEIRA FASE
c) Fase da auto-descoberta - A terceira fase, denominada de fêmea ou
mulher (female) é a etapa da auto-descoberta, da busca pela própria
identidade. Nessa terceira fase, pode se dizer que entram as obras publicadas
a partir da década de 1990. No entanto, mesmo a partir desse período, é
comum as escritoras se expressarem em consonância com a postura da
chamada fase feminista, ou seja, fase de protesto e luta contra a opressão da
mulher. Como escritoras e obras representativas desta fase, temos: Nélida
Piñon, A república dos sonhos (1984); Adélia Prado, O homem da mão seca
(1994); Lya Luft, A sentinela (1994), O ponto cego (1999); Patrícia Melo, O
matador (1998), Inferno (2000); Zulmira Ribeiro Tavares, Jóias de família
(1990).
2. Referência biográfica de Zulmira Ribeiro Tavares – Representante da terceira fase literária (fase fêmea ou mulher)
ZULMIRA RIBEIRO TAVARES
Fonte:
TAVARES, Z. R. Cortejo em Abril. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
68
Zulmira Ribeiro Tavares nasceu em São Paulo, em 1930. Além de
colaborações em livros coletivos na área de ficção e não-ficção, publicou
Termos de comparação (Perspectivas, 1974; prêmio Revelação de Literatura
da APCA); O japonês de olhos redondos (Paz e Terra, 1982); O nome do bispo
(Brasiliense, 1985; prêmio Mercedes-Bens de Literatura; traduzido para o
alemão); O madril (Brasieliense, 1988); Jóias de família (Brasiliense, 1990;
prêmio Jabuti de melhor autor e melhor romance; traduzido para o alemão e o
italiano); Café pequeno (Companhia das Letras, 1995), e Cortejo em Abril.
(Companhia das Letras, 1998).
3. Explorando o título do conto: Cortejo em Abril
Para uma melhor reflexão sobre o que se pode depreender desse título,
que tal realizar as seguintes sugestões:
a) Pesquise o significado de cortejo. De posse dessa informação e lendo
apenas o título do conto, é possível descobrir sobre o que ele relata?
b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o conto e
verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.
4. Leitura
Cortejo em Abril
(...) No anfiteatro do Centro de Convenções
Rebouças, em frente ao Instituto do Coração do
Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, o
porta-voz da presidência da República, jornalista
Antônio Britto, anunciou, às 22h30, o falecimento do
presidente Tancredo Neves após uma internação de
39 dias, primeiro no Hospital de Base de Brasília e,
depois, no Instituto do Coração. Assim, José Sarney,
que ontem mesmo decretou hoje feriado nacional,
torna-se presidente da República Federativa do Brasil.
69
O Estado de S. Paulo, edição extra, 22 de abril de
1985. Transcrito por IstoÉ-Senhor, "São Paulo, 110
Anos de Industrialização─1880-1990", Ivan Ângelo
No dia seguinte ao domingo em que morreu Tancredo Neves, o
Consertador de Tudo saiu de casa como sempre para responder a um
chamado. Mas havia pedido à mulher, que atendera o telefonema, para
avisar ao senhor do outro lado da linha que ele ia demorar um pouquinho
porque tinha outro chamado já combinado antes. Mentira. Ele soubera
pelo rádio que o cortejo com o corpo passava pela avenida Brasil, depois
seguiria pela avenida Pedro Álvares Cabral a caminho do aeroporto. Ele
cortaria caminho pelo parque do Ibirapuera e esperaria a passagem do
cortejo. O dia estava limpo, muitas pessoas acorriam de dentro das casas
com a mesma intenção. A mulher pediu para ir também. Nem por
sombras, disse o Consertador de Tudo com autoridade. Tenho cá para
mim que hoje, um dia depois de um homem tão santo ter chegado ao
reino de Deus, é dia de sorte. Vão chover chamados.
O Consertador de Tudo morava numa ruazinha torta atrás da rua
Afonso Brás, para os lados de Vila Uberabinha. Morava na divisa, entre
um lado nobre, Vila Nova Conceição, e o outro lado nobre, Moema. Muita
gente que morava em Vila Uberabinha gostava de dizer que morava em
Moema. Ele conhecia esses macetes das pessoas para subirem na vida e
não culpava ninguém. Ele próprio falava do seu pequeno prédio
encortiçado como ficando "para os lados de Moema". Dobrando-se uma
outra pequena rua que saía da sua, dava-se de cara com o córrego do
Uberabinha, e lá do outro lado com a favela, erguida à margem. Na
margem de cá, e acompanhando-a em parte, havia se formado uma
grande lixeira horizontal, como se a favela explicasse a presença da lixeira
e a justificasse, tirando dos ombros dos habitantes desse lado, afinal seus
provedores, a responsabilidade por sua existência. Todos os moradores
deste lado mostravam o maior desprezo pela lixeira, o córrego, a favela. O
Consertador de Tudo também, mas é verdade que tinha alguns fregueses
na favela, por onde se chegava dando uma larga volta. Muitos deles não
pagavam, outros pagavam em espécie, ele porém insistia que lhe traziam
70
sorte e dizia que depois de atender a um favelado choviam chamados dos
grandes prédios. Já a mulher se apavorava dele entrar na favela; além do
mais, essa história de sorte ela a conhecia bem, levava a parte alguma,
ela pelo menos não saía do lugar, sempre presa ao telefone e de ouvido
atento à porta. Às vezes também os dois, em horas mortas, carregavam
algum lixo mais obstinado, que se negava a entrar nos sacolões de
plástico, lá para a Grande Lixeira. No inverno e em dia sem vento podia-se
esquecer a Grande Lixeira e por conta esqueciam-se também o córrego
do Uberabinha e a favela do Uberabinha. Era só não dobrar a pequena
rua torta que ia desembocar na outra; caminhar exatamente para o lado
oposto, logo ali alguns quarteirões adiante onde grandes prédios se
erguiam. Mas no verão, vindo o vento dos lados de Moema, ao passar
pela favela, arrepiar as águas do córrego e soprar na lixeira, como um
ladrão pé-de-vento deles roubava certo cheiro pestilento com um
misterioso fundo doce. Era então o tempo das moscas de asinhas de arco-
íris e dos pernilongos assobiadores que se encarregavam também de lhe
lembrar que morava bem no centro de Vila Uberabinha.
O Consertador de Tudo de tanto conversar com os moradores dos
altos prédios em Vila Nova Conceição e no Itaim-Bibi tinha adquirido um
jeito especial de abordá-los, muito bonito. Inclinava o corpo um pouco para
o lado e fazia um ar pensativo antes de dar o orçamento. Parecia estar
meditando, voltado muito para dentro de si mesmo, recusando as altas
cifras que lhe sobrevoavam tentadoramente o coração e escolhendo entre
elas a menor, de pouco peso, para oferecê-Ia com deferência ao freguês
ou freguesa. Se ainda assim o freguês ou freguesa simulasse um grande
susto e pusesse em dúvida o orçamento, o Consertador de Tudo tinha,
para essas ocasiões, atitudes e respostas variadas, muitas imponentes.
Diante de um velho fogão, por exemplo, podia olhá-Io então com certa
ternura e compaixão, soltar mesmo um suspiro e, corroborando as
palavras do freguês ou freguesa, dizer que talvez fosse mesmo o caso de
consertá-Io, era de alta qualidade (elogiava sempre indiscriminadamente
tudo o que encontrava pela frente para consertar), marca excepcional e
estava "muito bem conservado", mas era um fogão usado, muito vivido, e
71
quem sabe fosse o caso de comprar um novo, ainda que ele
pessoalmente, pela experiência que tinha no assunto, não dava dois
tostões de mel coado por essas engenhocas novas, coloridas, cheias de
botões, mas sem tutano, sem ossatura, e que com uma leve sacudidela
se desmontavam. Porém se apesar disso o Consertador de Tudo perdia a
visita porque o freguês se mostrava estupidamente teimoso, mesmo
assim não se abalava e apresentava um ar tão ou mais amável do que
quando entrara. Dizia que não era seu costume cobrar a visita, não lhe
deviam nada, despedia-se sem mostrar rancor e pedia apenas licença
para antes de sair lavar as mãos. O que perdia aqui, ganhava ali, e não
baixava o nível.
A mulher lhe deu antes de partir mais uma dose de café forte que ele
nunca recusava. Fumou dois cigarros, um atrás do outro, pegou sua
maleta de trabalho e partiu. Era um homem magro, entre trinta e cinco e
quarenta anos, mas talvez tivesse entre quarenta e cinco e cinqüenta, ou
mais, não se sabia ao certo, dependia um pouco do ângulo e da distância
de que o olhassem, era um pouco parecido com aquelas regiões: ora
mais novo e desempenado como o prédio que subia à esquerda, ora, se
encarado bem de perto, mostrava trazer no rosto um maceramento de
coloração escura e irregular, e mesmo a postura adquiria certo ar de coisa
desabante mas que fica, a forma incerta dos barracos do outro lado do
córrego.
Claro que havia um exagero naquilo dele consertar tudo. Mas sabia
lidar com fogões, máquinas de lavar, de escrever, trocar torneiras. Tinha a
mão, o dom para fazer as coisas quebradas funcionarem de novo, como
se dizia na vizinhança.
Quando saiu de casa sentiu que apesar do dia limpo o vento lhe trazia
aquele cheiro duvidoso da Grande Lixeira, com um misterioso fundo doce.
Pensou então no Santo Homem sendo levado do Instituto do Coração
para o aeroporto de Congonhas, deixou de vê-lo reinando entre os anjos
para pensá-lo destinado à terra, com a qual aos poucos iria se
assemelhar, e nela se perder, sentiu certa angústia envergonhada.
72
Na véspera, no domingo, dia da morte de Tiradentes, o Consertador
de Tudo, tomando a sua cerveja à noite, havia tido uma sensação
medonha como disse à mulher depois, quando aquele homem bonito e
moreno, olhando fundo nos olhos dele de dentro da televisão, tinha dado a
notícia; com muito respeito e sem fazer bulha. Grande novidade ela não
era, era de espantar então que produzisse espanto daquela forma como
se fosse a notícia menos esperada do Brasil. A mulher começou a chorar
loucamente e ele mesmo tão fora do sério ficou que se abrisse a boca não
responderia por si, foi procurar café na cozinha.
Pensou então com rapidez vertiginosa nas mil vezes em que tinha
visto o Santo Homem na televisão. Primeiro nem dera muito por ele. Era
baixinho, meio corcunda, barrigudo, tinha olheiras fundas, careca. Depois,
como aparecia cada vez mais, começou a prestar mais atenção. Era
impressionante como não se atrapalhava com as palavras, os repórteres
podiam perguntar qualquer coisa, qualquer coisa do mundo que ele assim
que a pergunta terminava começava a resposta; as respostas saíam de
sua boquinha engraçada, sem se atropelarem, sem atraso, sem erro, sem
engano, uma após outra, uma após outra, uma após outra. Depois,
quando o Santo Homem caiu doente foi aquilo que se viu. Na televisão
entrava médico, filho, político, o próprio homem sorrindo, o próprio
homem de antes da doença, o homem na doença sentado num sofá ao
lado da mulher e do médico, posando para uma foto com jeito de foto de
família. Ele trazia um sorriso meio vago e idiota, assim pareceu quando a
foto começou a repinicar na televisão e nos jornais. Depois se entendeu:
era santidade pura. E vieram as entrevistas de muito antes, de quando o
Santo Homem ainda não estava no Instituto do Coração e ninguém sabia
da sua santidade. E ele dizia coisas que o Consertador de Tudo ouvia
com muita, muita atenção, para aprender e fazer igual. De onde lhe vinha
tanta saúde? E o Santo Homem respondia: tenho por hábito depois do
banho tomar uma ducha gelada. Alimenta-se bem? E o Santo Homem
dizia sim e falava de uma certa farofinha, um certo tutu de feijão, coisas
que apreciava muito. Médico só o seu, antigo, de confiança, que visitava
vez por outra mais para dar notícia da saúde, quando aproveitava para
73
comentar algum incômodo antigo, sem importância, também de
confiança. E a televisão mostrava de novo o Santo Homem andando por
toda parte do mundo, conversando com os grandes, os grandes eram
grandes também no tamanho, mas o Santo Homem lhes passava por
entre as pernas com desembaraço, mal erguia a cabeça, parecia como
sempre estar procurando um alfinete ou fósforo perdido no chão, e dizia
coisas sem cessar para os grandes com aquela sua boquinha engraçada,
e sorria de um jeito só seu, e os grandes e abismavam. Grandes Bobos
eram o que eram.
O momento em que o Santo Homem começou a morrer não se sabia
ao certo. As televisões, os jornais, fuxicavam que ele já estava começando
a morrer quando conversava com os Grandes Bobos. Quando tomava sua
ducha gelada, comia sua farofinha, seu tutu de feijão. Que absurdo diziam
outros: ele só começou a morrer quando se sentou para aquela foto
estapafúrdia com aquele sorriso esquisito que não se sabia ainda que era
santidade. Os repórteres contaram que presos nele e bem escondidos
atrás do sofá havia muitos fios fazendo o seu sangue correr por dentro do
corpo, seu coração bater, suas águas não fugirem para fora. No tempo em
que ele não parava de falar (e como falava bem!) ele sempre olhava para
o chão como se procurasse um alfinete ou fósforo perdido, mas naquela
foto ele estava mudo - não mudo como as pessoas são obrigadas a ficar
nas fotos -, mas diferente, já não olhava para o chão, olhava para a frente
com aquele ar, meu Deus do Céu, aquele ar! Olhava para fora da vida e
naturalmente mesmo de dentro da foto tinha se calado para escutar e
enxergar o lado de fora da vida, que era diferente de tudo o que se podia
imaginar.
Um dia, numa das muitas vezes em que o Santo Homem saía e
voltava a entrar na sala de cirurgia de maca, disseram que ele havia
falado a alguém segurando-lhe a mão (mão de repórter, na certa, tinha
observado a mulher do Consertador, mas este não estava assim tão
seguro): eu não merecia isso. E agora, hoje, lembrando a frase, o
Consertador de Tudo reconhecia que mesmo um homem santo tem seus
74
limites. Que ninguém é de ferro. E seu coração se apertou.
Ele corria como podia na direção do Ibirapuera, muita gente ia junto,
seu coração estava apertado de dor e sua boca amarga com gosto de
cigarro velho, acendeu dois cigarros, um depois do outro para tirar o
gosto, não largava a maleta e estava com medo de perder a hora. Se
embarafustou por um dos portões do Ibirapuera ao lado da República do
Líbano e continuou apressado.
Ali atrás de um matinho de bambus ele escutou um barulho. Deu uma
ligeira parada já sem fôlego e espiou entre os bambus. No chão, sobre a
grama, um casal se amassava de uma maneira particular, como se
fossem duas almofadas viventes, dois bonecos de ar e de plástico vendo
qual estourava o outro primeiro; sem nem por um momento deixar de
bater firme, mexiam-se com incalculável leveza de lá para cá. Ele ficou um
pouco tonto, esqueceu naquele instante o que fazia no meio do parque
num feriado nacional com a maleta de serviço na mão. Depois, a sua
alavanca lá embaixo no meio das pernas deu um pequeno salto como se
quisesse avançar por conta própria, mas ir em direção a quê? Ficou muito
alegre de repente e mais ainda sem fôlego, seus dois ovos cantarolavam,
só que não era hora de fazerem nenhum omelete, ah seus pivetes, seus
malandrinhos! Dois pares de olhos rancorosos o estavam espiando de
volta lá do chão. Ao redor, ficara tudo agora tão quieto, até demais, as
folhas de grama e de mato por ali, espetadinhas e alertas como pequenas
criaturas verdes à escuta, à espera de que a função continuasse. Ele
recuou, quase caiu, virou-se num repelão e retomou a direção da avenida
Pedro Álvares Cabral, para os lados do obelisco aos Mortos de 32, da
Assembléia Legislativa, do Departamento de Trânsito, por onde iria passar
o cortejo levando o corpo de Tancredo Neves para o aeroporto, que
destino, pensou impressionado.
O povo achava-se apinhado e se acotovelando perto do meio-fio,
separado da avenida por cordões, e eis que o cortejo já apontava ao
longe na avenida Brasil. Ele foi se embarafustando, abriu caminho com o
seu corpo magro e conseguiu chegar perto dos cordões. Lá vinham!
75
Todas as cabeças estavam voltadas para aquele lado. Vinha gente a pé e
gente de carro portando faixas, bandeiras. Passou um caminhão com
faixas enormes que iam de ponta a ponta do veículo, as pessoas de pé e
de braços abertos traziam os queixos erguidos, olhavam adiante algum
ponto perdido entre o céu e a avenida. O cortejo agora avançava
lentamente, quase parava, o carro fúnebre com a bandeira brasileira por
cima veio vindo, chegou, foi passando. Mas o automóvel logo a seguir,
com homens de ternos e gravatas escuros atrás dos vidros erguidos até
em cima, foi que chamou a atenção do Consertador de Tudo. Olhavam de
olhos arregalados para o povo apinhado no parque. Não faziam qualquer
movimento, só o automóvel lentamente se movimentava levando-os,
todos de escuro, os pescoços torcidos para o lado do parque onde a
multidão era maior. O Consertador de Tudo lembrou-se de quando uma
vez havia ido passear no Simba Safári no jipe de um feirante amigo e
tinha sido assim. Eles dois haviam se fechado no jipe que se deslocava
muito devagar e a todo momento tinham a impressão de que os leões
sentados preguiçosamente na relva, soltando longos bocejos, iriam se
levantar e dar taponas nos vidros. Esperavam por isso. Mas havia leões
que até dormiam e outros que lhes davam o traseiro abanando-lhes a
cauda com desinteresse. Não que aqueles entre os quais se encontrava,
acotovelando-se à passagem do cortejo, lembrassem leões dorminhocos.
Pareciam antes macacos espertos, cada um cavando o melhor lugar para
si. Nem ele e o amigo do jipe estavam naquele dia do Simba Safári de
gravata e ternos escuros. Traziam camisas floridas abertas até quase a
barriga e tomavam pausadamente em pequenos goles a cerveja gelada de
lata. Mas o Consertador de Tudo lembrava-se de como olhavam para fora
do jipe de um jeito que deveria ser igual ao daqueles homens de escuro
com os olhos grudados nos que se amontoavam no meio-fio. O cortejo
percorreu a avenida Pedro Álvares Cabral tomando o rumo da avenida
Rubem Berta. O povo dispersava-se aos poucos, o Consertador de Tudo
olhou o relógio e foi caminhando de volta pelo parque na direção de seu
compromisso em um prédio de Vila Nova Conceição. Impressionante,
não? Comentou uma mulher velhusca ao lado. As pessoas falavam umas
com as outras, ele seguia ao lado da mulher, ela lhe disse, nunca vai ter
76
outro homem assim. Ele concordou com um aceno, sorriam agora um para
o outro mas a todo momento sacudiam desconsoladamente a cabeça
espantando o sorriso para mais adiante voltarem a sorrir, era uma mulher
gordinha, de tailleur azul-marinho e cabelos brancos com tintura azul, uma
mulher com a qual ele nunca pudera imaginar que haveria de estar
passeando pelo Ibirapuera, conversando, ela devia ter saído de um dos
casarões da própria avenida, era do tipo de mulher que o Consertador de
Tudo encontrava muito quando ia a serviço e que costumava ficar do seu
lado, calada, só apontando com o dedo o defeito, o quebrado. Sabe, lhe
disse a mulher, ele devia era ser enterrado aqui, em São Paulo. Mas era
mineiro! lembrou o Tudo. Nem por um instante esqueci o fato, disse a
mulher, mas foi aqui em São Paulo que sofreu o martírio! - Isso foi, disse o
Consertador, e agora está indo para Minas. Não agora, falou a mulher, e
chegou bem perto dele: vai antes para Brasília, onde tudo começou! Acho
ridículo, disse o Consertador de Tudo com um à vontade que mesmo a ele
espantava, passar por Brasília antes, é como um amigo meu que faz
trabalho externo na Prefeitura mas tem de ir todo dia na repartição assinar
o ponto; passar por Brasília só para lembrar que era presidente? - Quase
presidente, divergiu a mulher do cabelo quase azul. - Se é para ir para
Minas, por que não vai então de uma vez? É a casa dele!, teimou o
Consertador de Tudo. - Antes ficasse aqui, suspirou a mulher. O senhor
viu esse nosso povo que educação, como respeitou a passagem do
cortejo? É, concordou o Consertador, só choravam. - E eu também não
chorei? disse a mulher. Veja os meus olhos. O Consertador de Tudo olhou
bem de perto o rosto da mulher com o seu cabelo meio azul puxado para
o alto e afirmou com segurança, a senhora chorou, estou vendo. Pois se
não faço outra coisa há duas semanas, e ontem então. Os dois
continuavam pela grama do parque, o Conserta dor de Tudo diminuía o
passo para a mulher não ficar atrás e ela acelerava o seu. Ele sentia pela
mulher uma amizade tão grande, mais forte do que sentira tempos atrás
pelo amigo feirante dono do jipe. Era como se ele e ela conhecessem tudo
sobre o Santo Homem, e quando diziam, o Tancredo, por que o Tancredo,
sabiam muito bem do que falavam. Despediram-se. A mulher ainda
repetiu, ele devia ser enterrado em São Paulo, no cemitério da
77
Consolação onde está enterrada a marquesa de Santos, depois de tanto
sofrimento merecia; quando chegar em Minas vai ser um deus-nos-acuda
porque o povo de lá assistiu ao martírio de longe, não vão se contentar em
chorar, pode até sair gente pisoteada, amassada, ouça o que eu digo. O
Consertador de Tudo pensou no que vira atrás do pequeno bambual ainda
há pouco, distraiu-se nas lembranças. Bem, vou indo, repetiu a mulher,
bom dia para o senhor. Estou desesperado! gritou-lhe o Consertador de
Tudo do seu jeito rouco de quem sempre gritou para dentro e jogou para
dentro do coração muito fumo, como se a quisesse segurar um pouco
mais ao seu lado conversando sobre o Santo Homem. Não se desespere!
respondeu-lhe a mulher já se afastando, a voz apertada de quem tira
rapidamente lições do mundo cortando-o com os dentes em tiras finas e
as devolvendo em seguida com rapidez ao próprio mundo. Foi a vontade
de Deus!
O Consertador de Tudo atravessou a avenida República do Líbano de
volta e foi caminhando por ali atrás do número que procurava. Parou
diante de um prédio comprido, circular e estreito como uma chaminé, de
tijolos entre rosa e ocre, com muitos vidros esfumados. Mas já há muito
ele não mais se espantava com esses prédios que não pareciam prédios e
com certas casas que pareciam navios. O senhor demorou, disse o moço
ao lhe abrir a porta, e foi fechar a tevê. Tinha barba e cabelos
encaracolados e usava uns minúsculos óculos sem aros, perfeitamente
redondos. -Minha patroa não lhe avisou que eu tinha um outro chamado
antes? estranhou o Consertador de Tudo, entrando, pisando com gosto no
tapete macio. É, disse o moço, mas assim mesmo cheguei a pensar que
não vinha mais, o senhor veio a pé? - A bicicleta estava tendo problema
na direção por isso ficou em casa mas costumo circular nela por aí, e
disse circular desenhando círculos com a mão no ar, de um jeito que
levava alguém a pensar antes num artista de circo, num malabarista, ou
em um dos freqüentadores do parque do Ibirapuera, entretidos em
exercitar cabriolas perigosas e proibidas; tanto que o moço comentou: É
um esporte ótimo para o equilíbrio e a musculatura das pernas. E ainda
disse: Eu não ia incomodá-Io em um dia de feriado nacional (que dia,
78
abanou a cabeça o Consertador de Tudo), mas me contaram que para o
senhor não existia nem domingo nem dia santo; que o senhor é incrível,
conserta tudo que se põe na sua frente. Bem, comentou o Tudo: tudo,
tudo... não vamos exagerar. Bom, disse o moço, de qualquer forma acho
que não é tão complicado assim. A minha Olivetti quebrou no meio de
uma redação, sempre é o mesmo defeito, o espaçamento não funciona, o
rolo não gira, e quando mando para o Serviço Autorizado eles devolvem
só depois de duas semanas, fazem o diabo com ela, inventam serviços
que eu não pedi e no fim falam sempre no Tirante da Entrelinha. Ora, ora,
acalmou-o o Consertador, uma limpeza vez por outra não acho ruim,
agora exageros não são comigo. O senhor usa muito a máquina? Sou
arquiteto, disse o moço, mas escrevo também artigos sobre arquitetura, a
vida na cidade, dou aulas, e tudo o que escrevo é com essa máquina. Oh,
disse o Consertador de Tudo, então esse prédio é do senhor? Fui eu que
o projetei mas não é meu. Muito, muito bonito, elogiou o Consertador de
Tudo, muito bonito e muito moderno; diferente dos outros; quero dizer,
diferente de uns, parecido com outros. Ótimo, disse o Arquiteto com uma
ponta de irritação na voz, mas logo se corrigiu e comentou com
urbanidade (à medida que ia limpando a sua mesa de trabalho, retirando
livros e papéis, para o Consertador poder começar o serviço): enquanto
esperava o senhor chegar procurei verificar se dava para ver daquela
janela o cortejo passar mas acabei abrindo a televisão, da televisão
sempre se enxerga do melhor ângulo. E quando terminou a frase, pelo
olhar do Consertador, que deu um passo à frente como se fosse falar, e
outro atrás, como se tivesse se arrependido, o Arquiteto entendeu que
ele, Consertador, tinha estado vendo passar o corpo de Tancredo Neves
para fora de São Paulo, ao vivo. Ficou desconfiado, pensou por sua vez o
Consertador de Tudo. Não gostava de começar um conserto debaixo da
desconfiança do freguês, fosse de qual tipo fosse a desconfiança, e foi
sua a vez de sentir uma ponta de irritação mas logo se corrigiu: o senhor
mora aqui sozinho? Daqui a duas semanas me caso, revelou o Arquiteto
sorrindo, mas até lá... , minha diarista também não veio, hoje estou só,
não a culpo, a morte do Tancredo, deve ter sido isso, e olhou nos olhos
do Consertador de Tudo para ver se ele abria o jogo, mas o homem ficou
79
pensativo, a morte do Tancredo; e pelo seu rosto macerado, de diversos
tons sombrios, abateu-se um novo tom escuro cobrindo os demais, como
a breve sombra de uma asa de avião varrendo a terra quando o avião
corre baixo no céu sob o sol, abrigando por vezes um morto entre os
vivos; como aquele que em Congonhas iria levantar-se do chão com o
corpo do Santo Homem, sob o barulho ensurdecedor das turbinas,
apontando com a grande face metálica voltada para o sol- o Reino de
Deus.
O Consertador de Tudo começou com segurança a desmontar a
máquina, envolto numa nuvem de fumaça de cigarro. O arquiteto apoiou o
cotovelo na janela e ficou olhando para fora, um pouco para deixá-lo à
vontade, um pouco para respirar o ar limpo de abril, nesse dia de um luto
claro de feriado nacional. Por vezes volvia levemente o rosto procurando
fisgar com o canto do olho como estaria indo o serviço e então a luz de
fora, batendo-lhe nos óculos, virava-os em duas lágrimas graúdas,
refulgentes, perfeitamente redondas, não lhes desciam pela face nem
secavam. Se acontecia de o Consertador de Tudo voltar-se para a janela
em um daqueles momentos, seus olhos batiam então em cheio nos dois
pontos de luz suspensos de cada lado do nariz do Arquiteto. Se os fosse
tocar com as mãos sujas de graxa tinha a certeza de que lhe
desmanchariam nos dedos em água e sal. Os seus próprios olhos
ardiam de fumo mas não só de fumo e pensar que o Santo Homem teria
de bater ponto em Brasília antes de ir para os braços dos seus; longe,
onde havia de estar uma mulher muito fina, também no falar, que iria
olhar para baixo do alto, de uma das janelas mineiras, e exortar a
multidão a ter muita calma: Meus filhos! Cuidado! - Diria também a
intervalos: Tancredo! Tancredo! - O enterro será na sua terra natal, uma
cidade histórica, lhe estava informando o Arquiteto e começou a recitar,
com a voz um pouco fanhosa, as histórias e os tesouros de São João deI
Rei, quando, tendo-lhe o rosto se voltado inteiramente para dentro da
sala, as duas lágrimas nele se apagaram quietamente. Mas o
Consertador de Tudo apenas via a mulher, Risoleta, enfeitada e
sofredora à janela de um segundo andar, ele já a conhecia da televisão,
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vira-a muitas vezes nos últimos tempos portando enormes óculos de sol,
lembrava-se particularmente dela em uma missa repleta de autoridades,
pouco antes do dia marcado para a posse, quando o Santo Homem a
seu lado (e sem que ela desse conta do fato), com a cabeça muito
abaixada - pensara-se então que para melhor se devotar (disfarçando
modestamente os altos pensamentos) às intrincadas causas brasileiras e
às de Deus -, havia, com as mãos cruzadas na frente, segurado
cautelosamente a barriga. Sabia-se agora que a morte, como uma
ratazana pestilenta, já ali se escondia, refugiando-se do esplendor da
nave.
A campainha da porta soou às costas do Tudo mas este mostrou o
seu empenho no serviço permanecendo do mesmo jeito; firme na cadeira
só tinha olhos e mãos para a máquina. O Arquiteto atravessou a sala num
passinho rápido e ao abrir a porta o Consertador o escutou dizer: ah, é
você! - Uma voz forte de homem comentou: também aproveitando o seu
feriado, heim? Estou vendo - e depois: obrigado pelo livro, voltou inteiro,
verifique você mesmo; e que belas fotos e croquis! Invejo a sua profissão
de artista. - Pelo amor de Deus! exclamou o Arquiteto, ontem expliquei
que não tinha pressa nenhuma e hoje você já o traz de volta! Não quer
entrar um pouco então? Não fique aí parado na porta, estou com uma
pessoa consertando a minha Olivetti, vamos entrar... - À palavra "uma
pessoa" o Consertador nem assim se deu por achado e continuou firme de
costas. Outra vez, outra vez, resmungou a voz forte, outra hora. (Se não
fosse eu estar aqui com certeza entrava, pensou o Consertador com uma
ponta de orgulho. Ora! Que volte outra vez mesmo.) Porém, quando a voz
forte tornou a falar não era ainda para se despedir, dizia, soube pelo
zelador que você casa este mês, terá ele se enganado? Não, não se
enganou, respondeu o Arquiteto. Pergunto não é por nada - esclareceu a
voz - quer dizer, nada de importância, é porque talvez você vá precisar de
uma empregada fixa agora, e estou justamente com uma que é muito
amiga da empregada de minha sogra, pessoa de toda a confiança, você
pode pegar tranqüilo (jogando conversa fora, pensou o Consertador de
Tudo, não respeita o sossego dos vizinhos; tal qual prosa de portão de
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Vila Uberabinha; e num prédio do porte deste!), isto é, se não se importa
de pegar pretas, como diria minha sogra. - Me caso com uma, respondeu
brevemente o Arquiteto. Como assim? fraquejou a voz forte - e depois de
uma pausa prolongada: se entendi bem sua noiva se emprega em uma
empresa, é empregada de, de... , uma empregada de... Não uma
empregada. Uma preta. Me caso com uma. - Aaahhh - e em seguida a
outra pausa prolongada: uma de nossas belas morenas... -Moreno sou
eu, moreno é você, moreno é aquele ali (mas o Consertador de Tudo,
com o seu rosto sombrio de coloração irregular abaixado para a máquina,
nem assim mudou de posição); uma preta, estou dizendo. Sem pinga de
sangue branco. Chega daqui a duas semanas, e então vamos decidir as
coisas da casa. Vem da África. - Da África vem! - a voz parecia falar solta,
desassistida da garganta. - Sim, da África do Sul, estudou sociologia na
moita, você conhece as coisas como são por lá. Ela é do grupo do Nelson
Mandela, na prisão há séculos, luta para a sua libertação, sabe de quem
se trata. Siiimmm... hesitou a voz. - Aliás, continuou o Arquiteto, um preto
que é tudo menos preto, mulato claro, o que quiserem; nem por estar
sofrendo cativeiro eterno, pretejou; preto é o pai de minha noiva, esse
sim, a mãe, essa sim, a irmã, o irmãozinho, esses sim (e olhe que são de
um povo de língua banto que não é lá essas coisas em matéria de
pretura...), para não esticar, uma família de pretos; numerosa. Mas por
que fica aí parado de pé na porta, não entra de uma vez Rodolfo? intimou
o Arquiteto, diante do quê, a voz nomeada, tão forte de início, fraquejou
mais fundo e repetiu oscilando: outra hora, outra hora. - Minha noiva é
zulu! - gritou-lhe ainda o Arquiteto (e pareceu ao Consertador de Tudo
que o fazia de fora da sala, do corredor, como se perseguisse a voz); e
sabe o que quer dizer zulu? CÉU!
Aquela conversa animou o Consertador de Tudo de uma forma
extraordinária. Assim que o Arquiteto fechou a porta trancando-a com
duas voltas bem dadas, ele, sempre sem levantar os olhos do serviço, e
ainda um pouco vacilante de fala na sua nova disposição de fazer
confidências (adquirida tão recentemente à passagem do cortejo, junto da
mulher velhusca que azulava nos cabelos), permitiu-se informar com
82
fingido aborrecimento: veja o senhor como é a vida: já a minha patroa é
alvinha demais. Filha de pernambucano que no passado se misturou com
holandês, não pega sol de jeito nenhum, só sardas; avermelha mas não
escurece, como ela fica zangada com isto! e o Tudo abanou a cabeça com
falso desânimo. O Arquiteto foi se chegando para perto sem comentários
mas o Consertador se embarafustava nas lembranças e suas mãos pela
primeira vez descansaram na mesa ao lado da máquina. Viu-se num
domingo de verão de há muitos anos passados, ao lado da mulher
sentada de shorts com as pernas cruzadas perto do rádio de onde saía
uma musiquinha esperta. A sala estava toda fechada para não entrarem
os mosquitos assobiadores, e como anoitecia as luzes já haviam sido
acesas e fazia muito calor ali dentro. A mulher sentada com as pernas
cruzadas balançava o corpo de lá para cá. Suas pernas gorduchas eram
um pouco moles e assim apertadas uma na outra lembravam, das coxas
aos joelhos, um grande coração de ricota, pulsando. As carnes brancas
tremiam mas ele gostava era mesmo assim, e à lembrança a pequena
alavanca escondida deu novamente um salto como se fosse pular fora, o
que o obrigou rapidamente a recorrer aos pensamentos tristes daquela
segunda-feira para as coisas se aquietarem debaixo da mesa. O barulho
que haviam feito na sua família de morenaços quando a mulher chegara
com aquela fala descansada e aquela brancura toda. Como é alvinha! se
admiravam - e nordestina! - contava ele para o Arquiteto, e tal como abria
sua alma para o outro, assim lhe ia abrindo a máquina e mostrando os
seus segredos: Tenho certeza como o senhor não sabe limpar os tipos da
máquina, vou ensinar como se faz, estão sujinhos como unha de criança.
De permeio conversavam um pouco sobre o Santo Homem. Com as
duchas frias que tomava no fim do banho, sempre apreciando comida
caseira e sem o médico da família precisar passar receita para nada,
como foi lhe acontecer uma coisa dessas? admirava-se o Consertador de
Tudo. Já o Arquiteto nutria sérias dúvidas sobre a saúde do Santo
Homem. Olhe só aqui, dizia cutucando com o dedo uma letra do teclado
da máquina, ele de perfil era desse jeito, um S exato, corcunda e
barrigudinho, nunca reparou? E as olheiras! - O Consertador se abismava,
não havia reparado que fosse um S. Acendia um cigarro depois de pedir
83
licença, que o Arquiteto concedia mas sem deixar de dizer de cada vez, o
senhor exagera! - Qual nada, meu cunhado diz que sou movido a fumo e
café forte, se parar caio! respondeu numa das vezes o Tudo, e o Arquiteto
então prometeu que logo iria preparar um cafezinho para os dois, depois
do que conversaram longamente sobre cigarro e café forte. Finalmente o
Consertador de Tudo confessou que no caminho para chegar ali ele não
havia resistido à tentação de fazer um desvio para dar uma espiadela no
cortejo levando o Tancredo Neves pela avenida Pedro Álvares Cabral, o
Arquiteto o que pensava da idéia? O Arquiteto deu uma resposta à altura:
Fez muito bem, disse, é um espetáculo que não se repete - e em seguida,
limpando na fazenda da camisa as lentes dos minúsculos óculos
redondos, considerou: Então viu mesmo passar o caixão... - Do caixão só
cheguei a ver pedaço mínimo porque vinha embrulhado na bandeira
brasileira, mas o que me deu uma impressão ruim foram os que vinham
logo atrás num automóvel. Hummm... , família? - Olhavam para a gente...
- E o Consertador de Tudo vacilou. E então? impacientou-se o Arquiteto;
olhavam como? - Olhavam como... - Aí na certa o Consertador não
encontrou a palavra buscada porque debruçou-se mais sobre a máquina.
Então, então, muito tristes? - insistiu o Arquiteto passando a mão na
barba encaracolada. - Muito... nem eu sei bem o quê ... - hesitou o
Consertador soprando fala e fumo para dentro da Olivetti. - Mas o que
vocês todos estavam fazendo ali, que espécie de zoeira afinal de contas?
- o Arquiteto parecia desgostoso com a própria ausência, e ocupado por
testemunha tão insatisfatória. - Como vocês estavam afinal, aos gritos? -
Quietos, esclareceu com uma ponta de orgulho o Consertador; o cortejo
chegava lá da avenida Brasil muito devagar, povo, automóvel, gente de
caminhão, e eu pude ver bem quando passaram, o automóvel de trás
vinha com os vidros fechados até a tampa, nem sei como se respirava lá
dentro, e eles olhavam para fora de um jeito ... confesso ao senhor que
cheguei a perder a atitude ... - E o Consertador, para desviar a própria
atenção e a do Arquiteto dos homens encerrados no automóvel com as
cabeças viradas teimosa e fixamente para o parque do Ibirapuera, deu
um pequeno inesperado tranco na máquina e a deixou de pé. A Olivetti e
o coração iam juntos naquele processo de remeximento do que traziam
84
dentro, mas ele já agora se desviava dos homens de escuro (rolariam por
qual céu ou estrada do país naquele exato momento, teriam se perdido
do cortejo talvez) para encarar de frente o fim do serviço. Até o momento
tinha se ocupado só com a limpeza e os ajustes, porém eis que chegara a
hora do Tirante da Entrelinha. De uma vez por todas o que é o Tirante da
Entrelinha? - lhe havia perguntado minutos atrás o Arquiteto batendo
aborrecido com as costas da mão num papelucho timbrado, enquanto ele,
Tudo, desaparafusava aqui e ali para melhor parafusar depois. - Veja,
continuara, leia na nota fiscal, é o que sempre escrevem os do Serviço
Autorizado: colocação de um novo Tirante da Entrelinha; peça nova e
mão- de-obra, preço cobrado em separado. O que é esse Tirante, se
posso saber? - Isso havia se passado um pouco antes de a voz que
atendia pelo nome de Rodolfo se fazer ouvir pela porta entreaberta. Na
ocasião o Tudo o acalmara: vai saber logo mais. E agora finalmente tirava
o estojo da maleta de serviço e o abria.
Que ridículo era o Tirante da Entrelinha! Pequeno, uma pecinha de
nada, um anzol de fio de cabelo, uma bobagem; e o Consertador de Tudo
segurou nos dedos manchados de graxa, com extrema delicadeza, a
Coisa Insignificante, erguendo-a contra a luz da janela como uma hóstia
para o Arquiteto poder examiná-Ia bem. Depois, baixou a mão e realizou o
serviço com atenção concentrada e lentidão respeitosa, mas todo o
processo não durou mais que segundos. O Arquiteto estava simplesmente
maravilhado; e furioso. Sim senhor, o Tirante da Entrelinha, ora vejam,
quem diria; calou-se logo após, no que foi acompanhado pelo Consertador
de Tudo. Sem exteriorizarem um para o outro o que continuavam
pensando do Serviço Autorizado, assim permaneceram de olhos fixos na
Olivetti, guardando o minuto de silêncio. Em seguida o Arquiteto convidou
o Conserta dor a ir com ele até a cozinha para o café combinado, o que
este aceitou de pronto, pedindo contudo licença para antes lavar as mãos.
Porém durante o café, com o ar limpo de abril entrando pela janela,
entraram de volta, farfalhando levemente como folhas soltas de jornais, a
vida e a morte do pequeno homem. Para muitos, um Santo; para outros,
85
um Sestroso, um Fala-Solta; para outros ainda, um Sábio, um Político,
um Ilustrado, um Mineiro, um Doutor, uma Raposa Velha; Estafeta da
Redemocratização para os invejosos, e havia também os azedos e
desencantados que o chamavam simplesmente de Coisa Insignificante,
sem poder contudo evitar breve recuo supersticioso seguido de arrepio na
espinha, como se nele, pequenino, figurasse a redondeza leve de
estearina da hóstia erguida na consagração. Dúvidas, dúvidas, dúvidas; e
assim, pequenino, testa abaulada, com aquele engraçado nariz virado
para cima, o que pensar dele para Presidente? É verdade que havia o
caso anterior, antigo, do dr. Getúlio Vargas, cuja figura também não
combinava com os altos encargos e a envergadura das estátuas, e do
qual até hoje se falava pelos cotovelos e pelos contrários, não se tirando
nada a limpo completamente. Ele foi amigo do Getúlio, ocupou cargo nos
tempos dele, mas antes lhe fez oposição, na ditadura, informava o
Arquiteto, e o Tudo fazia sim com a cabeça, sabia que era um dado a
mais para não se pôr de lado, sim, dava importância à informação. E na
certa àquela mesma hora em que o Arquiteto e o Consertador de Tudo
tomavam o seu café forte, os dois de pé, comentando o caso (pois como
pensar e falar muito tempo de outra coisa qualquer), no Brasil inteiro
também se murmurava, bisbilhotava, recordava. E se dizia que no
Instituto do Coração, os homens de branco haviam aberto o relógio da
vida de Tancredo Neves e virado os ponteiros para trás, para prender a
sua alma na engrenagem, soltando-a só no domingo, dia do aniversário
da morte de Tiradentes. Certo, aventava o Arquiteto pensativo, para
aniversariarem juntos, certo, mas aqui, aqui da Terra (não do Alto, como
quer o senhor), para as comemorações irem juntas, dando cada uma
maior força à outra. Porque, veja o senhor, e o Tudo via sim, encostado
na parede de azulejos amarelos: - O cortejo veio vindo pela avenida
Brasil, passou pelo monumento às Bandeiras, pegou a avenida Pedro
Álvares Cabral, passou pelo obelisco aos Mortos de 32, são datas,
percebe, tudo são datas e nomes por esses lados do mundo; ainda assim
confesso que tive muita pena, muita; muita! Punha esperança na coisa
toda. - Não se desespere! consolou-o o Consertador pensando na
mulherinha do parque cujos cabelos brancos irradiavam luz azul! Deus
86
quis! - Não tenho por que estar alegre com esta decisão de Deus,
respondeu o Arquiteto secamente, e o Consertador, pelo sim, pelo não,
concordou com a cabeça (sem apanhar bem no ar o que o Arquiteto
pensava de Deus), pois a última lembrança que um freguês deve guardar
de um consertado r tem de ser a melhor, a ótima das ótimas, para chamar
de novo.
Terminado o café, e assim a visita, ao voltarem para a sala, o dia
mostrou-se ao Consertador de Tudo com desalento; um coador murcho
lembrava, esvaziado de si. Aquela segunda-feira iniciava uma semana
tão diferente das outras dos últimos tempos. A companhia telefônica de
São Paulo, a Telesp, não iria mais dar várias vezes ao dia os boletins da
saúde do Santo Homem como se fossem os boletins do tempo, como no
rádio ao cair da noite as ave-marias. Não eram os boletins da saúde
afinal, eram os boletins da morte, mas disso não se tinha conhecimento
então. Se tivessem todos prestado mais atenção naquela fotografia com o
Santo Homem sentado de pijama e roupão no quarto do hospital de
Brasília, olhando para a frente e por cima da cabeça dos brasileiros com
aquele sorriso esquecido na cara, só Deus sabe para onde, só Deus sabe
para onde!, teriam guardado distância, escutado menos vezes a Telesp,
não teriam criado hábito. E o hábito era um negócio danado de feio que
quando arrancado sem cerimônia de uma pessoa podia arrastá-Ia
consigo; só Deus sabe para onde; só Deus sabe para onde.
Já na porta de saída o Consertador de Tudo acendeu um cigarro e se
encostou no batente, assim um pouco inclinado balançando a maleta de
serviço com a outra mão; meio torto e desabante como alguns dos
barracos da favela do Uberabinha erguida ao lado do córrego do
Uberabinha, mas não sem a elegância de certas velhas casas das regiões
mais distantes dos Jardins (... Europa, arredores) com suas paredes de
pedra gasta, sombria, de coloração irregular, seus telhados pontudos de
duas águas esperando pacientemente o dia em que nevasse em São
Paulo.
Por isso sabia como lidar com as palavras finais de um encontro
87
daquele tipo, mas esse tinha sido um encontro muito especial pelo fato de
o dia ser o dia que era, e ele caprichava jogando as palavras com
displicência para o alto como se fossem fumaça, deixava um pedido no ar,
sem insistência, como o fumo azul indo embora, se o doutor Arquiteto
tivesse a bondade, fizesse o favor de recomendá-lo aos conhecidos, aos
vizinhos, como aquele que ainda há pouco batera à porta, mas aí o
Arquiteto soltou uma exclamação que o assustou, teria a bondade, sim,
lhe faria favor, sim, não dizendo uma palavra sobre ele ao outro, era um
carrapato, um cacete de marca, na certa ainda por cima seria mau
pagador. Então não havia percebido como tinha precisado espantá-lo com
a história da África para pô-lo a correr e ver se desencantava de vez?
Como assim? chegou a perguntar o Tudo, abismado, mas logo calou
o seu espanto meditando: o Arquiteto então havia mentido sobre a mulher
que chegava dali a duas semanas para casar, ele não sabia até onde ia a
mentira; mas da própria mulher, da sua, o que dela dissera também não
combinava com o que era; pois a que havia chegado de Pernambuco tão
alvinha a ponto de surpreender a sua família, e na certa ter provocado a
admiração do Arquiteto, na contagem dos anos foi tendo a pele aos poucos
encoscorada como chapa coberta de ferrugem. Sim, sim, sim, estava o
Arquiteto esmurrando o batente, não me dá sossego, é aposentado do
serviço público, não tem o que fazer, e o senhor acha que se tocou com a
morte do homem? (. .. santo, santo, santo, se permitiu acrescentar baixo o
Consertador, numa jaculatória, pois aquele havia sido um dia realmente
diferente dos outros, de espetáculo único como bem dissera o próprio
Arquiteto, que não se repete, e ele o tinha podido admirar ao vivo, parado
no meio-fio da avenida, mas não o freguês à sua frente, destemperado). O
carro mortuário seguido dos outros ia passar novamente à noite na
televisão, e amanhã, e depois, porém ele havia feito um largo desvio pela
grama do parque, quase sem poder respirar tão depressa ia, o seu coração
até agora apertado no esforço, bem lhe dizia a mulher que ainda ia morrer
do fumo jogado em cima, sabia que perdia a respiração todos os dias um
pouco, que principiara a perdê-Ia mais naquele dia sobre a grama do
parque, com o verde por baixo dos pés e o amarelo do sol por cima, cada
88
vez mais ia ficando sem ar, ele o ia perdendo com as coisas que se
perdiam lhe passando diante dos olhos escancarados, uma atrás da outra,
vagarosas como passa um cortejo.
5. Análise estrutural
Explorando os elementos da narrativa teça e registre informações, que
se pode depreender do texto, relativas aos seguintes questionamentos:
a) Quais são as personagens da história e como elas são denominadas?
b) Ao denominar a personagem principal dessa forma, quais as possíveis
hipóteses que podem ser levantadas por a escritora ter feito essa opção?
c) Onde se passa a história?
d) Que fato histórico permeia essa narração?
e) O narrador também participa da história? Quem narra?
f) Qual foi o conflito inicial?
g) E o desfecho final?
6. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas.
a) A mulher é representada nesse conto de Zulmira Ribeiro Tavares?
b) Por que isso ocorreu? Levante algumas hipóteses tendo em vista todo o
estudo realizado anteriormente.
c) Em que esse conto difere dos demais textos e excertos literários
selecionados para esta proposta de trabalho?
d) O que se evidencia na escritura de Zulmira Ribeiro Tavares que a possibilita
representar e pertencer à terceira fase e não as demais fases aqui estudadas?
Fonte: TAVARES, Z. R. Cortejo em Abril. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
89
7. Sugestão de link para que se conhecer um pouco mais sobre Zulmira Ribeiro Tavares e também sobre o conto Cortejo em Abril, aqui explorado.
http://epoca.globo.com/edic/19980921/cult4.htm
91
UNIDADE VI
1. Referência biográfica (Marina Colasanti)
Para se fechar este Caderno Pedagógico foi selecionada, dentre tantas
outras escritoras de relevo, Marina Colasanti por sua visão crítica e porque,
para a escritora, o feminino é mais do que tema ou assunto literário, é
essência.
MARINA COLASANTI
Fonte:
Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, em 1937. Aos dois anos
foi para a Itália e aos doze veio para o Brasil. Estudou na Escola nacional de
Belas Artes (gravura em metal) e ingressou na imprensa em 1962, como
redatora, ilustradora e colunista. Nesse período inicia sua carreira literária, com
a publicação de seu primeiro livro: Eu sozinha, publicado pela Gráfica Record
Brasileira, Rio, em 1968. Publicou suas crônicas no “Jornal do Brasil” e seus
contos em diversas revistas e suplementos. Trabalhou na revista “Nova”, como
editora e redatora onde permaneceu de 1977 até 1991.
Traduziu dezenas de livros e é autora de várias obras, dentre os quais
destacam-se: Zooilógico (1975), A Morada do Ser (1978), Uma Idéia toda azul
(1979), livro este que lhe rendeu o Primeiro Prêmio da Crítica (1979) em São
Paulo, de muitos que estariam por vir.
Desde os primeiros tempos como jornalista, Marina Colasanti volta sua
atenção para a questão da mulher. Seu pensamento feminista a levará a
: http://www.diaadia.pr.gov.br/tvpendrive/arquivos/File/imagens/2010/lingua_portuguesa/marina.jpg
92
realizar palestras em todo o País, e essa temática se encontra bastante
evidente nas obras produzidas pela escritora na década de 80. Nesse período
ela mantém um intenso e estreito diálogo com suas leitoras, que será base
para quatro de seus livros: A Nova Mulher (1880); Mulher Daqui Pra Frente
(1881); Aqui entre Nós (1988); Intimidade Pública (1990). De 1985 a 1989
Colasanti foi membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Na apresentação de seu livro A Nova Mulher em abril de 1980, Colasanti
afirmou que começou a falar para mulheres quase paralelamente ao início de
sua atividade jornalística, ou seja, em 1962 e que falar para elas transformou-
se em falar delas e com elas. Escreveu livros de contos, fez televisão onde
atuou como entrevistadora, redatora e apresentadora de programas
jornalísticos ou culturais. Por sete anos foi também publicitária, atividade esta
que lhe rendeu mais de vinte prêmios. Mas nunca rompeu o fio dessa conversa
que se mantinha através de revistas, palestras, cartas, e que na revista Nova
teve o seu maior veículo de propagação de seus ideais feministas. Afirma que
levada por profissão, ela se viu aos poucos aproximada por afeto. Descobriu,
no infinito reflexo de tantas e tantas outras mulheres, o seu eu mulher. E que
floresceu, comovida, um sentimento de irmandade que a liga indissoluvelmente
às do seu sexo.
No prefácio de seu livro Mulher daqui pra frente (1981), comenta que em
suas conferências e nos contatos que fazia com universitários brasileiros e do
exterior ela sempre abordava as questões inerentes às mulheres esmagadas
por problemas de sobrevivência, operárias, domésticas, camponesas,
prostitutas e faveladas, para as quais o problema da condição feminina é
menor frente à necessidade de reformulações sociais. Reformulações estas
que sempre compuseram a sua bandeira de luta.
Em matéria publicada no Revelação (jornal-laboratório do curso de
Comunicação Social da Universidade de Uberaba) n. 245, em 6 de maio de
2003, o entrevistador André Azevedo da Fonseca perguntou à Colasanti qual
era o papel do movimento feminista naquela época. Ao que ela respondeu:
Primeiro a gente tem que dizer em que países. Se é no Brasil, a
expressão “movimento feminista” prescreveu, não se usa mais.
Agora usam-se as expressões “estudos de gênero”, “questões de
93
gênero”, e isso é muito sintomático. Porque quando se dizia
movimento feminista, tratava-se de um movimento que lutava pelos
direitos das mulheres, defendia os direitos das mulheres. Era um
movimento de mulheres para mulheres. Quando se passa a falar em
questões de gênero, já deslizamos para um outro universo
semântico, e não à toa. Ou seja, estamos dizendo que vamos nos
ocupar de questões de homens e de mulheres, questões de
cidadania ligadas ao feminino e ao masculino. Com essa abertura,
proposta, aceita e estabelecida sobretudo no encontro de Beijing
(China), o que aconteceu foi que as questões do feminino que
estavam em aberto, que não estavam resolvidas num país onde a
miséria é um problema de primeiríssima linha, e onde, portanto, as
mulheres estão num estado terrível – porque sempre que há pobres,
os mais pobres são as mulheres, os mais sacrificados são as
mulheres – num país nessa situação, o enfraquecimento daquilo que
era trabalho em cima do feminino, cravado no feminino, insistindo no
feminino, foi muito ruim. Os movimentos praticamente se desfizeram,
as militantes montaram as suas ONGs, nós temos as coisas
governamentais, os centros de estudos, mas os grupos militantes
que existiam, já não há mais, ou os que há são muito raros. Não há
uma visibilidade, um avanço desse trabalho.
2. Reflexão teórica
Quanto ao conceito de gênero, citado e definido acima pela escritora,
seria pertinente confrontá-lo, para melhor entender os estudos de literatura de
autoria feminina, com o que diz Bonnici (2007, p.128)
Gênero é a maneira como uma cultura vê a mulher (e o homem) e
como esta é construída culturalmente. O estudo de gênero não
analisa biologicamente a mulher. Ou seja, o fato de mulher ter seios
e útero não faz parte do objeto de estudos de gênero. Referindo-se à
mulher como naturalmente passiva, tímida, intuitiva, chorona,
dependente, sem iniciativa, a reduz automaticamente a um série de
papéis. São os tradicionais papéis femininos, os quais, construídos
culturalmente, foram atribuídos a muitas gerações de mulheres.
Como Bonnici afirma, tais conceitos foram “construídos culturalmente”.
Tudo isso nos autoriza a desmitificar e desestereotipar antigos conceitos, que
muitas vezes passam por atuais, principalmente, na visão daqueles que não
94
conseguem acompanhar as evoluções de seu tempo e nem tampouco fazer
parte da vanguarda pensante de sua época. Pois, não há como conviver com
antigos (pré)conceitos sem indignar-se.
Toda essa indignação, todo esse desejo de mudança, e, a certeza de
que só há crescimento nas divergências é que faz da obra de Colasanti um
capítulo à parte da literatura canônica brasileira que merece ser investigado e
estudado. Contos de Amor Rasgados, de Marina Colasanti, que teve sua
primeira edição publicada pela editora Rocco, em 1986. Trata-se de uma
coletânea de noventa e nove contos, cujo título já revela seu caráter
provocador e ao mesmo tempo desconstrutor pela possibilidade polissêmica do
adjetivo rasgados. Nessa obra, Colasanti apresenta minicontos, pequenas
fábulas e até mesmo pequenos poemas em prosa.
3. Capa do livro Contos de Amor Rasgados
Fonte:
O aspecto provocador é comprovado já na escolha da ilustração da capa
que foi feita por Ana Maria Duarte, a qual reproduz um casal com suas línguas
enroladas de tal forma que parecem não mais se desatar. Há, a meu ver, uma
possibilidade de ambiguidade nesta imagem, pois o roçar de línguas em uma
relação a dois pode demonstrar uma eroticidade, uma demonstração de amor,
de desejo, mas uma observação mais atenta poderá nos levar a outras leituras
inclusive a de revide nessa relação tão complexa entre homens e mulheres na
busca incessante do amor ideal, da completude, feitos de encontros e
COLASANTI, Marina. Contos de Amor Rasgados. Rio de janeiro: Rocco, 1986.
95
desencontros que a vida e a literatura nos presenteiam ou nos estarrecem com
suas histórias.
4. O estilo
Nesses minicontos que compõem a referida obra, as relações humanas
nos são apresentadas sem meias palavras. Elas são colocadas sem nenhum
pudor, sem nenhum artífice, sem eufemismos, ou seja, são colocadas em seu
estado bruto, primitivo, sem supostas preocupações e preconceitos. Há um
desvelamento explícito.
À semelhança do que vem ocorrendo na literatura de autoria feminina,
conforme demonstram vários estudos, a literatura produzida por Marina
Colasanti também retrata e representa os modos de estar de homens e
mulheres na sociedade. Nosso objetivo, portanto, ao estudar os minicontos que
compõem Contos de Amor Rasgados, de Marina Colasanti, é reconhecer esses
fenômenos relacionados à cultura machista e patriarcal.
Para compor suas narrativas, Colasanti utilizou-se de uma linguagem
metafórica repleta de simbolismos, sugestões, inventividades; enfim, viva,
aberta, e, em contínua exploração e construção. Nelas ela retrata um pouco do
universo existencial feminino, de suas buscas, anseios, transgressões,
insatisfações e até mesmo de revide a uma sociedade castradora e hipócrita.
A escolha desses minicontos não foi aleatória. Essa ordem demarca o
avanço que a mulher vem conseguindo e conquistando sua autonomia
rompendo com a opressão milenar que marcou a sua trajetória ao longo da
história da humanidade.
Os três primeiros contos mencionados, no retângulo acima, já foram
analisados no decorrer dos trabalhos explorados, neste Caderno Pedagógico,
Os contos selecionados para tal estudo e investigação foram: Para que ninguém a
quisesse (p.111); Como se fosse na Índia (p.135 ). Ela era sua tarefa (p. 99); Sem
que fosse tempo de migração (p. 203).
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portanto, para fechar os desafios até então propostos, conheça o último
miniconto selecionado para este trabalho.
5. Explorando o título do miniconto: Sem que fosse tempo de migração
Para melhor explorar o título responda aos questionamentos abaixo:
a) Lendo apenas o título do miniconto, é possível descobrir sobre o que ele
relata?
b) Liste as hipóteses que o título lhe sugere e registre-as, depois leia o
miniconto e verifique se elas se concretizaram. Socialize sua experiência.
c) Pesquise o significado da palavra migração e, depois de realizada a leitura,
teça comentários sobre a escolha e sua presença no título do miniconto Sem
que fosse tempo de migração e se a mesma se mostra coerente no desenrolar
da história. Por quê?
6. Leitura
Sem que fosse tempo de migração
Embora vivendo na gaiola há tantos anos, sua esposa não cantava. Nem
ele a culpava por isso. Bastava-lhe a presença vivificando a casa.
Com quanto amor cuidava dela, trocando sua água todo dia,
providenciando alimentos que só bem lhe fizessem à saúde. Com quanto
encantamento a admirava na hora do banho, apesar do gesto habitual com que
ela, sacudindo dos cabelos pingentes de cristal, o obrigava a trocar os jornais
com que forrava o fundo. E era sempre com doçura que à tardinha, dando o dia
por encerrado, cobria a gaiola com um pano.
Sim, a vida conjugal era cheia de alegrias, repetia para si mesmo
quando, chegando em casa com um pacotinho de uvas, deparou com a
portinhola aberta. Vazia, a gaiola pareceu-lhe subitamente inconsistente, agora
que nada havia para reter seu olhar entre as varetas.
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Chamou, sabendo que não teria resposta. Procurou nos quartos, olhou
atrás de móveis e portas, lugares onde ela não estaria. Depois debruçou-se à
janela como se ela tivesse podido voar, e em alguma cornija ou fio ainda o
esperasse.
Mas lá embaixo as pessoas iam a suas vidas. E nenhum rosto era o
rosto da mulher.
Então colocou uma cadeira debaixo de gaiola, subiu, ergueu uma perna
esgueirando-a com cuidado, levantou-se na ponta do outro pé, puxou para
cima o resto do corpo.
Só depois de entrar e fechar com cuidado a portinhola, percebeu que
ninguém viria trazer-lhe a noite com um pano.
7. Análise estrutural
Explorando os elementos da narrativa teça e registre informações, que
se pode depreender do texto, relativas aos seguintes questionamentos:
a) Quais são as personagens da história e como elas são denominadas?
b) Onde se passa a história?
d) Qual personagem lhe chamou mais a atenção? Por quê?
e) O narrador também participa da história? Quem narra?
f) Qual foi o conflito inicial?
g) E o desfecho?
8. O texto sob a perspectiva dos estudos feministas.
a) Como a mulher é representada nesse texto de Colasanti?
Fonte: COLASANTI, Marina. Sem que fosse tempo de migração. In: Contos de
amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. P.203.4.
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b) Em que medida a escritora critica a ideologia patriarcal que oprime a
mulher?
c) Quais os papéis desempenhados por cada uma das personagens do texto?
d) Esses papéis são “naturais” ou construídos? Comente.
e) Pode-se afirmar que neste miniconto houve a objetificação da mulher? De
que maneira ela se manifestou no texto?
e) Retire uma parte do texto em que essa objetificação se apresenta com mais
evidência, com mais força.
f) O que levou um dos personagens a crer que a vida conjugal ia bem?
d) Esse comportamento pode ser considerado como um fato isolado, ou, uma
prática comum nas relações marido/ mulher? Por quê?
g) Depois de ter conhecido um pouco sobre Ser sujeito X Ser objeto (Unidade
4; p. 23), responda:
Em qual parágrafo percebe-se que a personagem feminina torna-se
sujeito de suas ações? Comente.
Geralmente as ações ou atitudes das personagens são materializadas e
se fazem representar, quer no discurso oral quer no discurso escrito de
narrativas, por meio de verbos. Qual o motivo provável para que
Colasanti, nesta produção, optasse por omitir ações verbais explícitas à
personagem feminina? Que efeito essa escolha causa ao texto?
h) O desfecho da história ocorre nos dois últimos parágrafos. Ele lhe causou
surpresa? Por quê?
i) Os textos literários apresentam, geralmente, uma linguagem
plurissignificatica, isto é, uma linguagem em que as palavras apresentam mais
de um sentido. Sabendo-se que a metáfora é uma figura de palavra que
consiste em utilizar-se uma palavra ou uma expressão em lugar de outra, por
haver entre elas uma noção de semelhança, além de ser uma espécie de
comparação implícita, em que o elemento comparativo (como) não aparece, se
atente para o desafio a seguir:
99
A escritora utilizou-se de uma linguagem metafórica para compor este
miniconto. Encontre a metáfora que propriamente retrata e denuncia a
opressão da personagem feminina.
Dentro deste contexto narrativo, cite algumas das possibilidades
semânticas, ou seja, as plurissignificações que podem ser depreendidas
da metáfora encontrada anteriormente.
9. Leitura complementar: A palavra em foco
Toda e qualquer manifestação ou produção literária faz uso de uma
linguagem própria. A maioria dos pesquisadores vê a literatura como uma
manifestação artística que tem como matéria-prima a palavra.
A palavra é, pois, para o homem de letras, o material intrínseco para
realizar e alcançar seu objetivo artístico.
A escritora em estudo soube como ninguém trabalhar com a palavra,
matéria-prima da arte literária. E sobre isso, na escritura de seus minicontos,
Colasanti diz que são textos muito exigentes pois nada pode sobrar, nada pode
faltar. Se faltar ele fica hermético; se sobrar ele borra. Tem um ponto certo, ele
tem que ficar penetrável senão ele rejeita o leitor. Essa preocupação da
escritora é louvável, pois,
[...] Toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo
fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige a
alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e
do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao
outro. [...] A palavra é território comum do locutor e do interlocutor
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1999, p. 113).
E, para tanto, há que se considerar que a palavra, no texto literário, vem
carregada de significado e necessita de um leitor preparado para desvendar
essa polissemia recorrente nos textos literários. Para isso o escritor escolhe e
manipula as palavras para além de seu significado objetivo, para que ela,
embora embasada em situações reais, dê vida e credibilidade ao ficcional e ao
imaginário que é na verdade a recriação do real. Ele capta a realidade através
100
de sua percepção de mundo, de sua sensibilidade e explorando todas as
possibilidades lingüísticas, tanto no campo semântico quanto fonético e
sintático, ele cria o texto literário. Ao criá-lo o mesmo vem carregado com o
estilo subjetivo de cada autor que interpreta a realidade sob o seu ponto de
vista ou, ainda, analisando o ponto de vista ideológico de uma determinada
sociedade e em uma época específica a transpõe para sua obra.
Desta forma, a literatura como instrumento de comunicação transmite e
registra os conhecimentos e a cultura de um determinado povo possibilitando
que gerações posteriores possam lhe dar vida desvendando o seu percurso de
avanços e de recuos através da leitura dos mesmos.
As obras literárias nos ajudam a compreender nós mesmos, as
mudanças do comportamento do homem ao longo dos séculos, e a partir dos
exemplos, refletir sobre os construtos e a ideologia veiculada pelos formadores
de opinião em determinado tempo e lugar.
As palavras estão carregadas de conteúdo ideológico, elas “são tecidas
a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as
relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1999, p.
41).
Para desvelar as ideologias e vozes presentes nos textos literários há que
se estar atento às palavras que os compõem e a maneira como elas estão
distribuídas ao longo do texto, mas, principalmente, ser um leitor assíduo e
atento dos mais variados gêneros discursivos e composicionais.
101
REFERÊNCIAS
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ASSIS, M. de. Memórias Póstumas de Brás Cubas; Dom Casmurro. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
BAKHTIN, M. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi. 9 ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
BAUER, C. Breve história da mulher no mundo ocidental. São Paulo: Edições Pulsar,2001.
BONNICI, T. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá: EDUEM, 2007
COLASANTI, Marina. Contos de Amor Rasgados. Rio de janeiro: Rocco, 1986.
DUARTE, C. L. Literatura Feminina e Crítica literária. In: GAZOLLA, A. L. A Mulher na Literatura, 1990.
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LISPECTOR, C. Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2. ed., 1961
MARICONI, I. Os cem melhores contos do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
TAVARES, Z. R. Cortejo em Abril. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
WALDMANS, Berta. Clarice Lispector – a paixão segundo C. L. São Paulo, Editora Escuta, 1993.
WALLERSTEIN, V. Feminismo como pensamento da diferença. 2004.
ZOLIN, L. O. A literatura de autoria feminina. Maringá: EDUEM, 2005.
ZOLIN, L. O. Desconstruindo a opressão: A imagem feminina em A República dos sonhos, de Nélida Piñon. Maringá: EDUEM, 2003.
102
REFERÊNCIAS EM MEIO ELETRÔNICO (on-line)
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DIAADIA. Imagem de Clarice Lispector. Disponível em: <http://www.diaadia.pr.gov.br/tvpendrive/arquivos/File/imagens/2010/lingua_portuguesa/clarice.jpg>. Acesso em: 10 maio 2010.
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