Post on 01-Dec-2018
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA
COORDENAÇÃO DE PESQUISA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
DÉCIO OVERARTH MACEDO DE MOURA
DANÇA E TRANSCENDÊNCIA: FRAGMENTOS DE ESPIRITUALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE
RECIFE\2015
DÉCIO OVERARTH MACEDO DE MOURA
DANÇA E TRANSCENDÊNCIA: FRAGMENTOS DE
ESPIRITUALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE
Dissertação para defesa pública, como requisito para obtenção do título de Mestre, no Mestrado em Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco.
Área do Conhecimento: Ciências Humanas.
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Sezino Douets Vasconcelos
RECIFE\2015
M929d Moura, Décio Overarth Macedo de Dança e transcendência : fragmentos de espiritualidade na
contemporaneidade / Décio Overarth Macedo de Moura ; orientador Sérgio Sezino Douets Vasconcelos, 2015. 116 f.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Católica de Pernambuco. Pró-reitoria Acadêmica. Coordenação Geral de Pós-graduação. Mestrado em Ciências da Religião, 2015. 1. Dança. 2. Transcendência (Filosofia). 3. Espiritualidade. I. Título.
CDU 248
DEDICATÓRIA
Primeiramente a Deus sempre, que permanece significando e completando a
minha existência. A Nossa Senhora de Fátima que tantas vezes recorro. A Maria Glícia Macedo
de Moura, a Marcus Kempes Macedo de Moura, a Marco Caetano de Barros Filhos, a Silvana
Helena (em memória). Pessoas imprescindíveis em minha vida, por toda luz, apoio,
compreensão, paciência e generosidade.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente e sempre a Deus por ter me concedido o privilégio de
existir e de me possibilitar amar e ser amado de múltiplas formas. Chegar até aqui e
saber que esta caminhada foi tão honesta e verdadeira, me sinto profundamente grato
por todas as pessoas que em algum momento da minha vida me ensinaram algo. Hoje
tenho a certeza que nada passou por mim despercebido e como me sinto feliz por saber
que agora eu só devo agradecer.
Agradeço a dança, por tudo aprendizado, por todas as pessoas me deu,
pela vida no palco, por todos os grupos que convivi, tantas parcerias e encontros a
Dueto Cia. de Dança, ao Ballet Moderno do Recife, ao Ballet Lúcia Helena D’Ângelo,
ao Espaço Cultural Ariano Suassuna, o Encontro e Dança e o Projeto Adote uma
Bailarina. As amigas-irmãs bailarinas Fernanda D’Ângelo e Polyana Moura e ao amigo-
irmão Fábio Rodrigues pela honra de tantas vezes ter divido o palco e tantos
aprendizados. Por cada coreografia criada, por cada espetáculo montado e realizado.
Agradeço por ver parte do meu trabalho sendo continuado através da minha irmã Lívia
Moura e minha afilhada Rafaela Estolano. A dança é como uma escola, uma escola
completa que além de nos preparar para vida, nos faz buscar transformá-la. Por ter me
deixado sempre em sintonia com Deus e com o amor ao próximo. Viver, amar, dançar,
valeu!
Agradeço a toda minha família, a minha mãe Maria Glícia e ao meu pai
José Geraldo e principalmente ao meu irmão Marcus Kempes que é também meu filho,
amigo, pai, grande incentivador, obrigado pelo amor de todas as horas. Aos grandes
amigos-irmãos parceiros, pela paciência e atenção Marco Caetano e Paulo Maurício.
Aos amigos e amigas de turma tantos aprendizados, especialmente aos
amigos Pedro Renato e Eduardo Rios.
A todos os professores de todas as disciplinas e seminários,
especialmente a professora Zuleica Dantas e ao professor Drance Elias. Principalmente
aos meus eternos grandes mestres do qual guardo um imenso orgulho e profundo
respeito desde a Teologia, Luís Alencar Libório, Gilbraz Aragão e Sérgio Douets. Ao
meu orientador Sérgio Douets por toda paciência, sabedoria e profissionalismo.
Universidade Católica de Pernambuco, ao Programa de Bolsas da Capes e aos
funcionários desta instituição.
Ao Colégio da Sagrada Família nas pessoas das Irmãs Vitória, Nita, a
Rejane Albuquerque, Ceça Ferreira e Katiane Gomes. Ao Colégio Marista São Luís nas
pessoas de Edmilson Pessoa e Juliana Silvestre. Ao Espaço Cultural Ariano Suassuna
nas pessoas de Graça Melo e Patrícia Dourado.
A Isaura Rodrigues que me encorajou, incentivou e se fez luz em um
momento decisivo para que eu me inscrevesse na seleção do mestrado.
Aos artistas pernambucanos entrevistados, que gentilmente concederam
parte de seu tempo e tornaram-se personagens indispensáveis para este trabalho. Muito
obrigado ao meu grande amigo Ivaldo Mendonça, a Maria de Fátima Guimarães, a
minha eterna mestra na dança e na vida Lúcia Helena D’Ângelo, a Julcélio Nóbrega, a
minha amiga-irmã Polyana Moura, a Alexandre Macedo, a Ana Miranda, a Maria Paula
Costa Rêgo e a Dielson Pessoa.
Obrigado a todas as pessoas que de alguma forma contribuíram para a
realização das etapas desse trabalho.
RESUMO
Pesquisar o tema “Dança e transcendência: fragmentos de espiritualidade na contemporaneidade”, tendo como motivação encontrar respostas ainda que provisórias e inacabadas, sobre a tentativa humana em sua busca existencial por sentido. A partir dos relatos das experiências de nove artistas da dança presentes no cenário pernambucano, foi possível estabelecer relações de suas trajetórias dançadas na contemporaneidade com as dimensões de transcendência e espiritualidade. A entrega de cada artista entrevistado revelou inspiradoras biografias construídas através da dança, o que possibilitou constituir o eixo desse trabalho. As escolhas dos artistas foram equivalentes às suas contribuições e a permanência de suas atividades em variados estilos e segmentos sociais. Os dados foram coletados em entrevista semiestruturada. Nas entrevistas, os artistas revelam uma espiritualidade e a relação com Deus, fora do contexto institucional religioso, o que reflete a dinâmica de transformação do fenômeno religioso na contemporaneidade. A imbricada dinâmica entre dança, transcendência e espiritualidade, permanece produzindo vias de acesso para que o ser humano possa encontrar o caminho de sua totalidade. Este trabalho revela de forma sintetizada, a complexa relação entre dança, transcendência e espiritualidade, sendo necessária a continuidade de novos estudos que possam aprofundar os conhecimentos em torno dessa problemática.
Palavras-chave: Dança, Transcendência, Espiritualidade.
ABSTRACT
Search the theme "Dance and transcendence: spirituality fragments in
contemporary times", with the motivation to find answers even if provisional and unfinished, on human attempt at existential search for meaning. From the reports of the experiences of nine artists Dance Gifts in Pernambuco scenario, it was possible to establish relationships of their trajectories in contemporary danced with the transcendence and spiritual dimensions. The delivery of each interviewee revealed inspiring artist biographies built through dance, allowing underpin this work. The choices of the artists were equivalent to their contributions and the permanence of its activities in varied styles and social segments. Data were collected in semi-structured interview. In interviews, the artists reveal a spirituality and relationship with God, out of religious institutional context, which reflects the dynamics of transformation of religious phenomenon nowadays. The intertwined dynamics between dance, transcendence and spirituality, remains producing access roads so that the human being can find his way full. This work reveals synthesized form, the complex relationship between dance, transcendence and spirituality, requiring develop new studies that could deepen the knowledge about this issue. Keywords: Dancing, Transcendence, Spirituality.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................................10
1 A BUSCA POR SENTIDO ATRAVÉS DA DANÇA:
UM ENFOQUE ANTROPOLÓGICO.......................................................................................20
1.1 O ser humano e a construção de sentido para a sua existência................................................20
1.2 A dança como tentativa de encontro com o vazio da existência.............................................25
1.3 A religião e a dança na contemporaneidade............................................................................34
2 A RELAÇÃO ENTRE DANÇA, TRANSCENDÊNCIA E ESPIRITUALIDADE NA
CONTEMPORANEIDADE.........................................................................................................39
2.1 A dimensão de transcendência aproximando o ser do mistério da vida..................................39
2.2 A espiritualidade e as transformações do tempo.....................................................................43
2.2.1 A espiritualidade e dança estabelecendo relações na contemporaneidade...........................46
2.3 Algumas percepções a partir dos depoimentos dos artistas pernambucanos sobre
transcendência e espiritualidade...............................................................................................50
2.3.1 Os caminhos da transcendência entre os artistas pernambucanos........................................52
2.3.2 Os fragmentos de espiritualidade entre os artistas pernambucanos......................................58
2.4 A espiritualidade através da dança e as contribuições sociais a partir
dos artistas pernambucanos......................................................................................................65
3 POSSÍVEIS ENCONTROS ENTRE DANÇA E O FENÔMENO RELIGIOSO
NA CONTEMPORANEIDADE................................................................................................72
3.1 As transformações do cenário religioso e a dança apresentando contornos sobre a
espiritualidade..........................................................................................................................72
3.2 A relação entre espiritualidade, transcendência e a totalidade do ser .....................................79
3.2.1 A dinâmica entre espiritualidade e transcendência...............................................................83
3.2.2 A noção de espírito e a espiritualidade do ser......................................................................92
3.2.3 Os caminhos para a totalidade do ser...................................................................................94
3.3 O ser humano como projeto aberto ao infinito........................................................................97
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................107
REFERÊNCIAS...........................................................................................................................112
APÊNDICE A..............................................................................................................................116
10
INTRODUÇÃO
Ao longo de sua trajetória, o ser humano, busca sentido para a sua existência.
Tal busca encontra-se marcada por processos que se complementam e acontecem
simultaneamente, numa dinâmica permanente de relações e construções para tornar o seu
mundo significativo. Todo o aparato, social e cultural onde o ser encontra-se inserido se
mantém em meio às tradições e as novas descobertas, obedecendo a um processo contínuo do
surgimento de novos paradigmas, das crises de identidade, de valores e de pertencimento, dos
avanços e retrocessos na política e na economia, na mudança de comportamento, do papel
exercido pelas religiões, artes, ciências e tecnologias, da sua relação com a natureza, com o
transcendente e com os seus semelhantes de modo que esses aspectos mencionados possibilite
o indivíduo elaborar o seu mundo. “O homem, precisa fazer um mundo para si. [...] Precisa
estabelecer continuamente uma relação com o mundo” (BERGER, 1985 P.18). Ao produzir
culturas, conhecimentos, linguagens e simbologias por meio destas, são estabelecidas relações
permanentes com a construção e a manutenção da vida em sociedade.
A dança e a dimensão transcendente e espiritual são compreendidas dentro
desse processo de construção e manutenção da “esfera social”, no qual, podem favorecer o
sentido existencial almejado pelo ser humano, sendo contrárias as experiências a partir do
próprio ego, ou de visões de mundo materialistas e reducionistas, que possam afastar o ser
humano do verdadeiro sentido de sua existência. A dança e a religião, por exemplo, quando
vividas a partir da experiência do próprio ego, correm o risco de não encaminhar o indivíduo
para o seu autoconhecimento e para sua dimensão de transcendência e espiritualidade.
De que maneira então o encontro entre dança e transcendência pode revelar
possíveis fragmentos de espiritualidade? Considerando fragmentos de espiritualidade o modo
como cada indivíduo poderá expressar o amor, a coragem, a sensibilidade, a gratuidade, o
cuidado, a dedicação, o equilíbrio diante das dificuldades, a busca por compreender-se e
compreender os outros, o esforço por meio do seu trabalho visando contribuir para uma
sociedade justa e fraterna, entre outros. Desse modo, fazendo-se perceber uma vida imbuída
de sentido, sendo capaz de incluir o outro nessa perspectiva.
É necessário compreender ou refletir a respeito de algumas dinâmicas que
podem circular nesse cenário que permanece em pleno movimento desde outrora. Convergem
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para a dança conceitos, símbolos, linguagens e cada artista ou cada indivíduo que dançam
estando envolvidos no espaço cultural e em seu tempo histórico, recebe influência ou
contrapõem-se a ele e passa a elaborar mecanismos conscientes e inconscientes os quais
estarão presentes no seu movimento. Alguém possivelmente advindo de uma realidade social
ou de uma estrutura onde cresceu de forma desfavorável a sua dimensão religiosa ou
espiritual poderá naturalmente não revelar de forma explicita nenhum nível de espiritualidade
em sua dança. Do contrário, alguém que teve condições favoráveis para o amadurecimento
dimensão religiosa ou espiritual, poderá revelar gratuitamente níveis profundos de sua
espiritualidade, em sua experiência com a dança. Nesse contexto observa-se uma
espiritualidade que pode se encontrar já presente ou não na vida do indivíduo que irá ser
demonstrada ou não em sua experiência com a dança. Sendo importante destacar, que o fato
de não ter tido uma experiência marcante de espiritualidade ou de religiosidade não exclui a
possibilidade de um indivíduo transbordar espiritualidade em seu movimento dançante, pode
acontecer que para ele próprio aquilo não seja espiritualidade ou religiosidade, ou por não
admitir, ou simplesmente por conceber tal experiência de maneira diferente.
Para um ponto de partida, de que corpo que transcende e que elabora níveis
espirituais, é possível se aproximar? Da relação, entre, religião, cultura e sociedade, inúmeros
aspectos irão emergir para a construção da identidade de um ser. É desta relação intrínseca
que se encontra situada à relação corpo, dança e transcendência, como uma das formas do ser
humano adquirir respostas – ainda que não sejam definitivas – para as perguntas em torno de
sua existência. Sendo possível na contemporaneidade aproximar-se de corpos que dançam
fora do contexto institucional religioso – mas, que não deixam de ser influenciados, e ou que
em algum momento encontram referências de valores humanos advindos das religiões – e
buscar perceber através de tal experiência como construir um sentido para a vida.
As religiões por tratarem de questões que acompanham todo o processo
existencial do ser, desde o seu nascimento até as concepções sobre a sua continuidade após a
morte, elas geram na história da humanidade uma larga possibilidade de meios de transcender,
que por meio da própria dança, da oração, da música, dos seus mitos, dos ritos e de suas
celebrações, aproxima o indivíduo de sua dimensão espiritual, e possivelmente do
conhecimento do que vem a ser a sua totalidade, este modelo, embora institucionalizado, entre
inúmeras tradições religiosas, refletem no modo como as pessoas vão elaborando e tomando
posse, daquilo que irá ajudá-las a compreender melhor a vida.
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Mesmo sem um pertencimento definido, em todas as sociedades os homens e
as mulheres fazem algum tipo de referência aos direcionamentos propostos pelas religiões.
Não obstante, é indispensável recordar que “a religião é a ousada tentativa de conceber o
universo todo como humanamente significativo” (BERGER, 1985, p.41). É nesse contexto de
dar significado a vida, ao universo e a existência, que o ser humano vai elaborando,
transformando e fazendo uso de sua criatividade, para manter ou garantir experiências
atribuídas de sentido. Um contraponto para refletir sobre a importância desta busca por
sentido seria apontando as situações de vazio, de materialismo, de vícios, de violência e da
falta de valores humanos, que vão gradativamente afastando o ser de si mesmo.
O vazio existencial permanece a espreita, na sobra do homem do
contemporâneo. Fazendo com que grande parte destes indivíduos se mostre deslumbrados
com os avanços tecnológicos e científicos, com o poder de consumo, priorizando valores
secundários em detrimento dos valores considerados pelas religiões como essenciais à vida. A
experiência do efêmero em lugar do duradouro, do relativismo, do individualismo e
materialismo, vão, ocupando cada vez mais um espaço de destaque, nas escolhas de parte da
sociedade contemporânea.
Neste mesmo cenário da contemporaneidade, encontramos outra grande
parcela da sociedade, excluída e sobrevivendo à margem dos grandes avanços de seu tempo,
sendo possível sugerir que a origem do vazio existencial pode ser visto no desespero do ter a
qualquer preço, gerando uma violência desenfreada, ou por atitudes de relativização dos
valores humanos que são fundamentais à vida. As pessoas são ameaçadas, violentadas e
mortas por motivos banais. São as contradições da vida contemporânea, os avanços no mundo
material e consumista, que não inclui a totalidade do ser, apresentando-se antigos problemas
sociais e relacionais que afligem a condição humana.
Sendo necessário o pensar a vida, buscando compreender que caminhos – além
dos anseios políticos, da legitimação dos direitos humanos e de uma educação que promova
mudanças – são possíveis de ser construídos para direcionar a existência humana a uma
experiência de sentido, que seja tão nobre e ao mesmo tempo tão simples, capaz de propor o
reconhecimento daquilo que de fato nos é necessário e prioritário para viver. Há milhares de
anos esses caminhos já tiveram o seu início, na dança da vida, ou na vida da dança,
incontáveis experiências levaram o homem a refazê-los e este fôlego diante do caminho
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existencial precisa ser renovado, é indispensável redescobrir meios que encaminhe o ser a
significação e ao sentido de sua existência.
É situado num contexto social contemporâneo contraditório e dinâmico, que
iremos encontrar corpos e experiências de vida com uma marca significativa de amor, doação,
esforço, dedicação, renuncia, erros e acertos no caminho nada fantasioso do universo da
dança. Serão apresentados, através da experiência de nove profissionais que atuam na área da
dança no Recife, possíveis momentos de transcendência e espiritualidade ao longo de suas
trajetórias. A escolha dos entrevistados não ocorreu de forma aleatória, para atender aos
objetivos da pesquisa foram estabelecidos alguns requisitos, selecionando os artistas com o
seguinte perfil: idade a partir de 30 anos e atuação comprovada por, no mínimo, 10 anos,
exercendo ou que tenha exercido simultaneamente o papel de bailarino (a) e coreógrafo (a).
Enfrentando as desventuras dessa belíssima forma de viver que, mesmo
esboçando para alguns uma inconstância em relação ao futuro, eles e elas simplesmente se
entregam, com uma força que não os permite deixar de acreditar e de produzir esperanças. As
transformações culturais, o lugar e o papel da dança em todo esse maquinário social, os levam
a uma constante busca de sentido existencial, provocando, entre os que assumem o ofício de
dançar a vida, cada vez, uma sintonia com o seu tempo. Algo de espiritual e místico conduz o
fazer dessa dança, o que poderá ser compreendido através das experiências dos artistas
pernambucanos, que na atualidade revela em seus trabalhos o superar de uma dança
simplesmente técnica e estética, ou meramente egocêntrica.
O presente trabalho tem como objetivo geral, analisar possíveis manifestações de
espiritualidade através da dança na contemporaneidade. Para o desenvolvimento do mesmo
foi necessária à estruturação de três objetivos específicos que nortearam a construção dos
capítulos da dissertação.
O primeiro capítulo traz um resgate antropológico a partir das experiências com a
dança desde sua origem até os dias atuais. Com o objetivo de problematizar o papel da dança
na tentativa humana de autotranscendência. Conforme o estudo realizado, a dança se
manifesta através do corpo em movimento, tal atividade pode prover mecanismos de
transcendência indispensáveis para que o ser humano construa elementos sentido para a sua
existência. A dança acontece no corpo, tornando-se visível e materializada, mas essa
manifestação é resultante da unidade entre corpo e espírito, o ser completo que mergulha no
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mistério profundo que o habita e transcende os limites do seu tempo-espaço, criando meios
para compreender a sua experiência de ser e estar no mundo.
O segundo capítulo foi construído com o objetivo de apresentar as experiências de
artistas pernambucanos da dança na contemporaneidade. A riqueza dos depoimentos foi
determinante para a construção de possíveis respostas ao entrelaçamento entre dança,
transcendência e espiritualidade. Certamente não são respostas definitivas, mas possibilitou
um recorte significativo de como a dança se mantém viva potencializando a dimensão de
transcendência e espiritualidade dos entrevistados. Biografias construídas através da dança,
que deixam transparecer a grandeza e a sensibilidade do ser, conduzidas por um trabalho
permanente que possa contribuir para o melhoramento da sociedade em vivem.
O terceiro capítulo foi desenvolvido com o objetivo de confrontar o tema proposto
com o fenômeno religioso. Apontando alguns elementos que interligam a dança as dimensões
de transcendência, espiritualidade e a busca pela totalidade do ser, presentes no universo
religioso. A discussão procura situar o ser humano pertencente a um cenário religioso
contemporâneo em constante transformação. O sentimento religioso, bem como a sua
pertença religiosa, assistem ao surgimento de novas formas de vivenciar a transcendência e a
espiritualidade. Mesmo estando fora do institucional religioso, o ser humano continua criando
vias de acesso para a sua dimensão de transcendência e para a sua dimensão espiritual que o
permite a busca por sua totalidade e inteireza.
O processo metodológico foi desenvolvido em três etapas: 1ª) Fundamentação
teórica, a partir da pesquisa bibliográfica, para seleção das produções escritas; 2ª) A coleta de
dados, por meio de entrevistas, à escuta, transcrição, processamento e análises dos
depoimentos orais; 3ª) Redação da dissertação, fornecendo a interpretação dos dados
coletados e a relação do tema proposto com o fenômeno religioso.
Na pesquisa de campo foram realizadas as entrevistas com os artistas
pernambucanos: Ivaldo Mendonça (Contemporâneo); Lúcia Helena D’Ângelo (Clássico);
Maria Paula Costa Rêgo (Popular); Julcélio Nóbrega (Clássico); Maria de Fátima Guimarães
(Clássico); Ana Paula Miranda (Popular); Polyana Moura (Clássico); Dielson Pessoa
(Contemporâneo) e Alexandre Macedo (Popular). Entrevista semiestruturada, composta por
um roteiro com 10 (dez) questões abertas, dividida em três etapas: O encontro com a dança e
a trajetória inicial; As produções e o processo de criação; Os níveis de transcendência e
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espiritualidade (Questionário no Apêndice A). A coleta do material por meio de gravação em
áudio e registro escrito. A transcrição completa dos relatos totalizam 57 páginas.
Nos encontros com os artistas entrevistados foi possível perceber a importância
que a trajetória e a atuação de cada um, possuem na vida de muitas pessoas e para o cenário
artístico-cultural do Estado de Pernambuco. O trabalho desses artistas é mantido a custa de
muitos sacrifícios, dedicação e amor pelo que fazem. Como em qualquer outra profissão, os
desafios, as crises, as dúvidas e os desentendimentos surgem, a vida através da dança não é
feita apenas por momentos de satisfação. Contudo, a pesquisa realizada, assim como está
descrito nos objetivos, manteve o seu foco nos aspectos que podem revelar os possíveis
fragmentos de espiritualidade.
Indispensável, embora de forma sucinta, apresentar cada artista mencionado que
contribuiu de forma valorosa para esta pesquisa. Ressalto que o repertório dos artistas
pernambucanos entrevistados é muito rico, tentei trazer nesse momento apenas um breve
resumo. As apresentações seguem a ordem das datas em que foram concedidas as entrevistas.
Ivaldo Francisco Mendonça pertence ao mundo da dança há 29 anos. Sua
trajetória iniciou aos 14 anos de idade com o ballet clássico, com o passar dos anos descobre e
passa a dedicar-se a dança contemporânea e o seu talento como bailarino e coreógrafo, ganha
espaço no cenário brasileiro e internacional. Atualmente as suas composições coreográficas
expressam inquietações sobre o papel da arte em propiciar reflexões para que “o mundo
avance”. Segundo Ivaldo Mendonça, avançar no sentido de saber conviver e compreender a
diferença entre as pessoas, um dos trabalhos que traduzem esse momento na carreira do artista
é intitulado “Encontro oposto”, nele é sensivelmente abordado a condição humana em torno
da sexualidade. O artista considera-se intuitivo, o que o faz muitas vezes coreografar em
excesso, seu trabalho também procura provocar sensações e reações, as mais diversas, para
quem tem a oportunidade de apreciar a excelência do seu movimento.
Maria de Fátima Guimarães se entrega a dança com convicção a partir dos seus 12
anos idade, atuando há quase três décadas. Seu trabalho é marcado por muita dedicação e por
um desejo de surpreender e envolver os seus bailarinos e a plateia com espetáculos
inovadores, mesmo quando faz a releitura de algum clássico, procura trazer uma tônica antes
não vista, para deixar as pessoas em estado de graça. Fundadora da Escola de Ballet e do
Grupo Endança, no momento Fátima Guimarães atua como diretora, professora e coreógrafa.
Seu trabalho chama a atenção pela qualidade técnica e artística. Sua arte não se limita apenas
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a linguagem clássica, desenvolve com requinte os estilos neoclássico e moderno. Ela percebe
que a dança traz em si a possibilidade de fazer um bem as pessoas e que isso deve ser levado
em todos os segmentos da vida não só no momento em que se dança. A artista acredita que o
palco é um lugar sagrado e inspira-se numa frase que norteia a sua relação com ele, “tudo que
eu faço fora do palco, é voltar para ele.”
Lúcia Helena D’Ângelo, aproximando-se de celebrar o seu 50º espetáculo de
dança, acontecimento inédito na cidade do Recife. Ainda criança aos 09 anos de idade,
participa de um concurso no Teatro de Santa Isabel, com 350 candidatas, nesta ocasião, a
escolha da música, a criação coreográfica, a composição do figurino e a interpretação, lhe
garantem o primeiro lugar. Segundo a artista, foi a partir dessa experiência que ela passou a
ter certeza de que a sua vida de alguma forma estaria ligada a dança, e essa certeza se
confirmou. O acervo da artista conta com aproximadamente 1.000 coreografias criadas
originalmente, os seus temas variam do clássico ao popular, e sempre buscando transmitir
sentimentos e emoções. A artista credita que a dança faz parte de um ciclo que não termina;
que é uma oração sussurrada pelo corpo e que através dela podemos refletir sobre os
acontecimentos da vida. Para tia Lúcia, o amor e Deus devem sempre estar presentes na dança
e também depois dela.
Julcélio Nóbrega, atuando profissionalmente com dança há 16 anos. Sente que
não escolheu a dança, mas que foi escolhido por ela. A sua origem com a arte do movimento
se deu já na época da escola, ex-aluno marista, desenvolveu as suas habilidades nas artes e
nos esportes, e a vida foi lhe proporcionando cada vez mais a certeza de pertencer a esse
universo. De formação clássica, já protagonizou inúmeros personagens de grandiosos
espetáculos na cidade e premiado em festivais de dança no Brasil. O bailarino e coreógrafo
tem uma marca que lhe confere um talento peculiar, transita com muita facilidade entre os
diferentes gêneros da dança. Os excelentes resultados de suas produções e criações ocorrem
devido à dedicação e a profunda entrega ao trabalho e ao estudo. Consciente do seu papel
como artista num país onde a dança não é reconhecida, mantém-se firme e compreende o seu
trabalho como uma missão. O artista declarou que a dança salva as pessoas, e que se sente
realizado por fazer parte desta forma de comunicação.
Polyana Moura, aos 07 anos de idade escutou uma música de ballet, fez uma aula
e percebeu que deveria pertencer aquilo. A sua trajetória profissional decorrem 20 anos, de
formação clássica, é considerada uma excelente interprete, no clássico e na dança de salão,
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afirma que encontrou o sentido de sua vida através da dança. Hoje sua atividade é voltada ao
exclusivamente ao público infantil e senti-se realizada quando percebe o crescimento de as
suas bailarinas na arte de dançar. A coreógrafa é muito dedicada a compreender os limites das
crianças e a propor em suas aulas além da técnica, de despertar nas crianças o lúdico, o
respeito e o amor pela dança. Reconhece que o seu trabalho em ajudar a formar futuras
bailarinas é muito sério, pois tem a responsabilidade de fazer a criança se encantar e ser feliz
dançando, por meio desse vinculo produz espetáculos que valoriza a arte, a boa música e
satisfação em dançar.
Alexandre Macedo encontra-se em atividade profissional há 35 anos. A sua
trajetória inicial é marcada por várias linguagens corporais, sua dedicação como bailarino o
fez perceber que poderia ajudar muitas pessoas a conhecerem e descobrir-se na dança, assim
continua desenvolvendo projetos que oportunizem pessoas a dançarem. Durante alguns anos
foi aprimorando-se na dança popular, apresentando-se fora do país. Fundou o Balé Brincantes
de Pernambuco. O coreógrafo é autor de vários espetáculos, um deles intitulado “Procissão
dos farrapos”, um importante marco na forma de fazer a dança popular no Recife.
Distanciando-se da conotação apenas folclórica que muitas vezes é dada as raízes da dança
popular. Seu trabalho agrega a linguagem e a técnica da dança contemporânea, segundo ele
um encontro necessário para que se mantenha viva a cultura popular brasileira.
Maria Paula Costa Rego atua profissionalmente há 33 anos. No mundo dança
desde criança na época de escola. Identificada com a cultura popular brasileira, tem em sua
experiência o encontro com Ariano Suassuna, onde juntos passaram a buscar dentro da arte
Armorial, uma identidade para a dança capaz de expressar os sentimentos profundos da arte
erudita e popular. É criado então o Grupo Grial, que através dele a bailarina e coreógrafa
compõe e atua em praticamente todos os seus espetáculos, alguns tiveram repercussão
internacional. A artista afirma que a existência do Grial é uma forma política de resistir e
fazer dança reverenciando a riqueza da nossa cultura, além favorecer o conhecimento da
mesma em vários segmentos da sociedade. A poesia, o movimento rico, forte, carregado de
simbologias e memórias, da criação e interpretação da artista mantém viva toda herança
deixada pelo seu grande mestre, um dos maiores defensores da cultura popular brasileira.
Ana Paula Rodrigues de Miranda, mantém a sua atividade profissional à quase 30
anos. Totalmente voltada e dedicada à dança popular, encontra no seu modo de fazer arte o
propósito de educar as pessoas por meio dela. Como bailarina pertenceu a importantes grupos
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de dança popular no Recife, ficando em cartaz em dezenas de espetáculos. Mas, sempre
percebeu a possibilidade de novos ciclos, ampliando assim a sua atuação e agregando cada
vez mais um número maior de pessoas que tiveram uma oportunidade de crescer na arte da
dança. Diretora da Escola de Frevo do Recife, a artista encontra-se a frente de inúmeros
projetos desenvolvido pela instituição, sendo também de sua responsabilidade idealizar os
espetáculos, que em muitas vezes tem uma repercussão internacional. Os desafios para
realizar o seu trabalho são muitos, porém com coragem e tenacidade ela concretiza os seus
sonhos e os sonhos de muita gente.
Dielson Pessoa de Melo, atuando como profissional da dança há 12 anos. Seu
talento e sua dedicação na dança contemporânea, o fez pertence a uma das mais importantes,
Cia de dança do Brasil. Onde o reconhecimento do seu trabalho ganhou projeções
internacionais. Considerou que tinha se dedicado tempo suficiente com bailarino e desejou
expandir sua arte, aprimorando suas criações coreográficas e como produtor de eventos
relacionados à dança. Suas composições trazem uma tônica psicológica marcante, os conflitos
e as possibilidades de evolução do ser humano são importantes condutores para o seu
processo artístico, perceber o ser humano de forma sensível em suas fragilidades e potenciais.
Um dos mais significantes trabalhos realizado pelo artista é intitulado “Silêncio e Caos”, onde
tornou público um drama em que ele mesmo viveu. O artista possui uma característica de
levar aos palcos importantes reflexões sobre a condição humana.
Os artistas pernambucanos entrevistados demonstraram sensibilidade e um forte
interesse pela vida humana. Suas trajetórias encontram-se de forma permanentemente ligadas
à formação de consciências e um desejo profundo de encontrar respostas plausíveis para si
mesmo e encaminhar pessoas ao encontro do sentido de suas vidas.
A fundamentação teórica foi construída a partir do conceito e das abordagens
sobre espiritualidade seguindo o pensamento de Francesc Torralba (2013). Para contextualizar
a relação do ser humano com a dança, foram utilizadas as contribuições dos autores: Roger
Garaudy (1980); Bernhard Wosien (2000) e José Gil (2011). Para compreender a relação do
ser humano com a transcendência e a espiritualidade na contemporaneidade, foram utilizados
os autores: Francesc Torralba (2013), Lima Vaz (2004), Leonardo Boff (2009) e Ferdinand
Rohr (2012).
As contribuições de cada autor e cada artista entrevistado foram imprescindíveis
para que fossem construídas algumas conclusões em torno dos aspectos propostos por esta
19
pesquisa. Visto que, o contexto contemporâneo no seu movimento permanente de
transformação, percebe-se uma dinâmica entre inúmeras noções e concepções sobre a vida, a
existência e o seu sentido ultimo.
A possibilidade de encontro do ser com sua totalidade separado do institucional
religioso é fértil, quando conduzida por meio da valorização e da prática de ações que
garantem aos indivíduos o reconhecimento da importância em cultivar a sua espiritualidade.
Ocorrendo de forma imbricada, os níveis de transcendência e espiritualidade por meio da
dança. A relação entre religião e dança permanece ativa em nosso tempo, adaptando-se aos
contornos culturais, mas, sem abandonar a essência de sua natureza transcendente e espiritual,
de abertura ao universo e encaminhar o ser ao sentido profundo de sua existência.
20
1 A BUSCA POR SENTIDO ATRAVÉS DA DANÇA: UM ENFOQUE
ANTROPOLÓGICO
1.1 O ser humano e a construção de sentido para a sua existência
A relação entre religião, cultura e sociedade que se encontra imbricada na
contemporaneidade, poderá produzir nos indivíduos mudanças de comportamento, aquisição
de valores éticos e valores morais, construções subjetivas, melhoramento de suas capacidades
dialogais, entre outros aspectos que possam encaminhar o ser na construção de sentido para a
sua existência. No que se refere à religião quanto as possíveis contribuições na estrutura social
e na oferta de sentido para a existência do ser, encontrar-se-á ao longo da pesquisa dois
conceitos que nortearão as discussões apresentadas, um demonstrando a noção de religião na
esfera do sagrado transcendente e o outro apontando a noção de religião institucionalizada.
A construção de sentido ocorre abarcando uma sequencia de fatores, onde o ser
humano, ao mesmo tempo, que poderá influenciar a sociedade, também é inevitavelmente
influenciado por ela, esta dialética apresenta-se como uma condição permanente da vida em
sociedade. De acordo com Berger (1985), “a sociedade é um fenômeno dialético por ser um
produto humano, e nada mais que um produto humano, que, no entanto retroage
continuamente sobre o seu produtor” (p. 15). Isso porque considerando a analise do autor, “o
homem não pode existir independentemente da sociedade” (Ibidem). O indivíduo não se
constrói sozinho, ele só vem a ser por meio de suas relações, sendo por meio desse
mecanismo relacional que ele amplia os seus conhecimentos, sempre se situando e tendo
como ponto de partida um contexto cultural em que ele absorve ideias e legitima as suas
respostas perante os anseios e perante as dúvidas inerentes a sua condição humana.
Como resultado de sua relação com o mundo, o ser percebe-se que não está
pronto e precisa encontrar meios que garantam respostas para a sua existência. Tal busca de
acordo com Francesc Torralba é permanente e apresenta-se como uma característica
inseparável do ser humano:
A busca incessante, o anseio por uma vida plena, a aspiração à total realização, são característica perfeitamente identificáveis no ser humano. Elas se expressam de múltiplas maneiras, porém, em sua experiência de ser inacabado, o ser humano está sempre em busca de algo (2013, p. 67).
21
A construção de sua identidade admite uma série de incertezas, sofrimentos,
crises, como também, conquistas, acertos e realizações, que vão forjando este indivíduo
presente no mundo. O processo de socialização e de identidade do ser são construções que
não se esgotam. Em cada tempo histórico vão surgindo novos desafios e buscar compreendê-
los e superá-los são exercícios permanentes para o indivíduo, tais desafios incluem a forma
como este indivíduo se percebe socialmente e como contribui para sociedade a que pertence.
Por isso considera-se que “[...] a socialização nunca pode ser completa, que deve ser um
processo contínuo através de toda a existência do indivíduo” (BERGER, 1985, p. 29). Todo o
aparato construtor de sentido ao longo de sua existência mantém uma relação de dependência
com os demais indivíduos, nesse caso a formação de sua identidade e a compreensão sobre si,
mesmo possuindo alguns aspectos culturais, religiosos e familiares preservados,
inevitavelmente estará sujeito a mudanças, devido às relações estabelecidas em seu contexto
sociocultural.
Para que sejam mantidas ideias estruturantes de sentido, o indivíduo estará
sempre em conversação com os outros indivíduos, de modo contínuo confirmando e
reavaliando o que ele elegeu como meio significativo para compreender-se enquanto ser no
mundo. Tal atividade só poderá lhe ser possível, mantendo-se em contato com os outros,
assim “[...] o indivíduo se apropria do mundo em conversação com os outros e, além disso,
que tanto à identidade como o mundo permanecem reais para ele enquanto continua em
conversação” (BERGER, 1985, p. 29). Por meio da conversação o ser humano constrói e
compreende a realidade subjetiva. O processo de socialização vai possibilitando ao indivíduo
apropriar-se do seu mundo objetivo de modo que tal apropriação produz um ordenamento em
suas experiências subjetivas. Sendo em virtude dessa forma de apropriação que “o indivíduo
pode ‘dar sentido’ à sua própria biografia” (Ibidem, p. 33). A ausência de esforços e de novas
contribuições para a manutenção e o aprimoramento da vida em sociedade poderia provocar
consequências desastrosas no tocante a um crescente distanciamento do ser na busca por
sentido.
Quanto mais o indivíduo interage e mantém as suas relações interpessoais,
mais se aproxima de uma construção efetiva da ordem social, contribuindo assim para uma
compreensão adequada da realidade. Para o ser humano, “[...] viver num mundo social é viver
uma vida ordenada e significativa” (BERGER, p. 34). A organização social reflete no sentido
objetivo e subjetivo do indivíduo, garantindo-lhe estruturação para o desenvolvimento de sua
22
consciência individual que estará permanentemente em ação com o seu mundo coletivo.
Conforme Berger (1985):
A pressuposição antropológica disso é uma exigência humana de sentido que parece ter a força de um instinto. Os homens são congenitamente forçados a impor uma ordem significativa à realidade (p. 35).
O indivíduo que não encontrar-se em sintonia com esta condição própria da
natureza humana corre o risco de lançar-se num vazio de sentidos quanto a sua existência.
“Ser separado da sociedade inflige também ao indivíduo tensões e o perigo da ausência de
sentido” (Ibidem). O viver em sociedade garante aos indivíduos um equilíbrio e uma
compreensão sobre si mesmo que continuamente lhe prover de esperanças. A cada nova
situação ou experiência o ser humano pode valer-se da convivência social para não sentir-se
desamparado. O sentimento de abando e a impossibilidade de encontrar significados para a
sua vida são ameaças constantes no processo existencial do ser humano. Como afirma Berger:
As situações marginais da existência humana revelam a inata precariedade de todos os mundos sociais. Toda realidade socialmente definida permanece ameaçada por ‘irrealidades’ á espreita (1985, p. 36).
Na permanente necessidade de construir-se socialmente, o indivíduo cria
mecanismos para distanciar-se e não sofrer com a precariedade dos mundos sociais, a
constante tensão relacionada às ameaças que o cerca, produz nele o desejo de manter-se como
um construtor de sentido para o seu mundo. Como construtor de sentido, ele irá
aprofundando-se no autoconhecimento de suas dimensões existenciais, de modo a questionar
o seu mundo externo e buscar entendê-lo.
Tal experiência abrange uma existência que está para além do seu mundo
material, esse conceito aprimorado ao longo do tempo, fez o ser humano desenvolver a sua
relação com o mundo, de modo que este seja compreendido na esfera de um cosmos sagrado,
espiritual e transcendente. Assim, “quando se supera o nível das aparências acessíveis e se
chega às raízes mais profundas, tem início uma intensa vida espiritual” (TORRALBA, 2013,
p. 68).
O mundo concebido como um cosmos sagrado e uma vida interessada por sua
dimensão espiritual oferece uma possibilidade duradoura de sentido para existência. O mundo
material social, por si só, não é capaz de garantir a totalidade do ser, o reconhecimento do
sagrado presente no universo, ajuda os indivíduos a comprometer-se com este mundo social
que ele mesmo criou. Se, é possível afirma que a coesão social separada da dimensão do
23
sagrado transcendente não é capaz de garantir sentido profundo para o ser, igualmente, pode-
se dizer que o reconhecimento da dimensão do sagrado transcendente dissociado do mundo
social em que o indivíduo faz parte, negligencia a ideia de sentido e de totalidade do ser
presentes nas religiões institucionalizadas.
Concorda-se que “a religião é o empreendimento humano pelo qual se
estabelece um cosmos sagrado” e que “a religião é a cosmificação feita de maneira sagrada”
(BERGER, 1985, p. 37). Situamos o ser humano no reconhecimento de algo de lhe dar
sentido, presente em sua cultura e em seu meio social, mas que sempre lhe projeta para além.
Desse modo, o ser humano não está meramente condicionado por suas rotinas, ele percebe e
vive a necessidade do projetar-se para além, conduzindo as suas construções sociais e
culturais a um sentido mais amplo que inclui aqui o sagrado e a sua dimensão transcendental e
espiritual.
A ordem cósmica sagrada contrapõe-se ao caos, em cenários torturantes e
desafiadores promovidos por uma realidade sociocultural que cada vez mais se sobrepõe ao
individuo, o sagrado o permite ver além de. A noção de sagrado pode ser definida da seguinte
forma:
O sagrado é apreendido com algo que ‘salta para fora’ das rotinas do dia a dia, como algo extraordinário e potencialmente perigoso, embora seus perigos possam ser domesticados e sua força aproveitada para as necessidades cotidianas (BERGER, 1985, p. 39).
Ao incluir em suas experiências a relação com o sagrado proposto pelas
religiões, o ser humano, embora não sendo capaz de determinar essa força misteriosa que
advém dessa relação, ele percebe-se norteado e conduzido por um sentido, onde sua vida
ganha uma riqueza de significados. Como afirma Berger:
O cosmo postulado pela religião transcende, e ao mesmo tempo inclui o homem. O homem enfrenta o sagrado como uma realidade imensamente poderosa diante dele. Essa realidade a ele se dirige, no entanto, e coloca a sua vida numa ordem, dotada de significados (1985, p. 39).
Quando o ser humano permite e reconhece a possibilidade do sagrado, é
possível ir além, das experiências do sagrado que se revelam em uma determinada religião,
pois este não precisa necessariamente está em uma religião institucionalizada, a experiência
com o sagrado não depende desta forma como algo exclusivo e indispensável. De acordo com
Wunibald Muller, “[...] se deixar tocar pelo sagrado trata-se de uma capacidade que nada tem
24
a ver com o fato de alguém pertencer a uma religião ou confissão organizada” (2004, p. 9).
Essa experiência com o sagrado acontece por meio da capacidade natural.
Para Muller, “nós possuímos uma inclinação que nos permite experimentar o
sagrado, mesmo que em muitas pessoas esta capacidade só possa ser percebida como um
resquício de outros tempos” (2004, p. 22). Tal capacidade pode permitir que o ser humano
mesmo vivenciando as transformações do tempo e da cultura possa buscar essa experiência
com o sagrado e sentir-se impulsionado para a vida. “Durante toda a vida, nós buscamos esta
experiência, e é exatamente este anseio que também impulsiona nossa vida para frente, e
assim nos faz chegar mais perto da perfeição” (2004, p. 24). A experiência do sagrado
favorece aos indivíduos esse vislumbrar uma vida e uma convivência social harmoniosa,
ajustada, dotada de organização e sentido.
Visto que, o mundo social permanece numa dinâmica de constantes mudanças
e desafios, exigindo que o ser humano ponha-se em permanente atitude de enfrentamento
diante da desordem, dos conflitos e do caos próprio do convívio social. Conforme Berger
(1985), “[...] o sagrado tem outra categoria oposta, a do caos. O cosmo sagrado emerge do
caos e continua a enfrentá-lo como seu terrível contrário” (p. 40). Encontrando-se o sagrado
como meio de garantir a ordem ao cosmos, percebe-se o indispensável papel da religião na
construção da ordem social, sobretudo, no tocante ao sentido que ela propõe a vida.
A religião tanto institucionalizada como na esfera do sagrado transcendente,
desempenhou no decorrer da história da humanidade e se mantém em vigor até os dias de
hoje, como responsável por aproximar o ser humano de sua experiência com o sagrado. É
inquestionável o papel das religiões nesse processo de construção do sentido existencial do
ser, que culmina em suas demais relações e na construção do seu mundo. “A religião
desempenhou uma parte estratégica no empreendimento humano da construção do mundo”
(BERGER, 1985, p. 40). Essa construção de mundo leva o indivíduo a realizar-se, a
reproduzir e encontrar sentido no que vive e no que faz. Tomado por uma consciência de si
mesmo e dos seus semelhantes, resignificando a realidade.
É, também, intermediado pela religião ou por meios relacionados a ela, que o
ser humano percebe-se capaz de possuir uma vida alicerçada de sentido. “A religião
representa o ponto máximo da autoexteriorização do homem pela infusão, dos seus próprios
sentidos sobre a realidade” (BERGER, 1985, p. 41). O construir-se incluindo a religião, como
uma das dimensões importantes para o ser encontrar a sua totalidade e ou plenitude, poderá
25
oferecer ao indivíduo níveis de transcendência e espiritualidade que irão permitir o seu
autoconhecimento e a sua autoexteriorização, distanciando-o do vazio existencial que lhe é
inerente, entende-se nesse sentido, autoconhecimento, por nível mais aprofundado do
conhecimento próprio de si que se distancia da superficialidade. A compreensão sobre
autoexteriorização refere-se à forma que o indivíduo expressa através de si seu potencial
transcendente e espiritual sendo capaz de ser revelado por meio do seu corpo e de suas
atitudes, mostrando o que se é em sua genuína essência.
1.2 A dança como tentativa de encontro com o vazio da existência
A dança é uma atividade exercida desde os primórdios da humanidade, esteve
e se faz presente na relação do homem consigo mesmo, com a natureza, com os seus
semelhantes e com o seu Transcendente. De acordo com Pierre Michailowsky ao considerar
que a dança remonta a tempos imemoriais, pré-históricos, confundindo-se sua origem a
própria vida humana. “Desde as primeiras manifestações da comunhão mística do homem
com a natureza misteriosa, nasceu à dança, como a expressão espontânea e dinâmica das
emoções primitivas do homo sapiens” (MICHAILOWSKY, 1956, p. 25). Sendo neste bojo
inicial de descobertas por meio das mais variadas relações que surgem às primeiras
expressões dançadas.
Diante dos acontecimentos e da ação provocada pela natureza, o ser humano
foi impulsionado, a desenvolver a sua capacidade de fazer arte, mesmo sem possuir o domínio
do pensamento racional. “Registros encontrados nas cavernas indicam que a dança como
forma de expressão surge nos primórdios da história humana, ainda quando a humanidade não
detinha um pensamento racional” (SOUZA, 2012, p. 23). “Em muitas cavernas, a arte
rupestre representa mulheres dançando, talvez com finalidade religiosa” (ULLMANN, 1980,
p. 196). Essa forma de expressar-se foi gradativamente ganhando contornos e obtendo um
espaço significativo entre os primeiros humanos que habitaram a Terra.
Muitos estudiosos da gênese da arte atribuem-lhe um significado mágico-religioso. Para os grupos ágrafos, ela tem um sentido prático, do qual parece aprender a sobrevivência grupal. Tem também um caráter utilitário, como meio para vencer a natureza envolvente, superar os obstáculos e os perigos que os ameaçam, as angústias e os temores, através do domínio sobre os objetos e os seres vivos (MARCONI, 1989, p. 211).
É comum entre alguns estudiosos da antropologia cultural a afirmação da
presença da dança em atividades desenvolvidas por homens e mulheres em diferentes
26
contextos. Um desses contextos seria a proximidade da dança com o mistério da vida e da
natureza, num momento onde se compreendia a realidade cercada por elementos mágicos.
[...] as pinturas e desenhos encontrados nas paredes e tetos das cavernas habitadas pelos homens do Paleolítico Superior, onde não é raro ver-se a representação de figuras humanas disfarçadas de animais, numa atitude de executantes de danças mágicas (MENDES, 1987, p. 8).
Nesse mesmo período, as experiências se entrelaçam e sem se dar conta o ser
humano passa a utilizar-se do seu corpo para construir expressões através do movimento e do
ritmo, tal uso do corpo vai capacitando-o ao seu autoconhecimento e mesmo sem uma
intencionalidade passa a extrapolar os seus limites, associando a dança às outras atividades do
seu dia-a-dia.
Em especial nas sociedades primitivas há muito frequentemente uma estreita ligação entre a dança e as artes verbais. A dança tem sido descrita como ‘poesia em movimento’ e, tal como falar, a sua essência consiste em movimentos ritmicamente controlados do corpo ou de algumas de suas partes (TITIEV, 2009, p. 338).
Esse domínio inicial do movimento condicionará o homem a transcender, desse
modo possibilitando-o – além de produzir arte – criar meios para vivenciar sua dimensão de
religiosidade. Uma das características entre os povos primitivos onde se percebe claramente a
fusão entre dança e transcendência dar-se quando: “[...] a dança provoca histeria ou êxtase,
que faz os primitivos entrar em contato com os seus súperos. Assim sendo, ela assume um
caráter religioso” (ULLMANN, 1980, p.196), uma herança cultural entre os povos primitivos
teria possibilitado associar as procissões ligadas ao cumprimento de preceitos religiosos com
a arte de dançar. “A arte da dança está estreitamente ligada às procissões, à música
instrumental, às práticas religiosas e à estética em geral” (TITIEV, 2002, p. 338). O autor
também constata que a dança “pode gerar transe, hipnotismo das massas, êxtase ou frenesi. As
religiões primitivas fazem tão grande uso da dança que os termos ‘dança’ e ‘rito’ são
frequentemente utilizados como sinônimos” (Ibidem p. 339). Ao passo em que homens e
mulheres relacionavam-se com o seu meio, novos elementos vão sendo incorporados ao
dançar como forma indispensável para compreensão dos acontecimentos presentes no mundo.
O ser humano desde sempre anseia por encontrar significados para a sua
existência incluindo aqui o elo entre a sua capacidade de transcender que também se deu por
meio do corpo em movimento. Nesse sentido, “mitos, bichos, elementos da natureza,
ancestrais, deuses, todos juntos vivendo em cada coreografia uma função, um desempenho
necessário à compreensão do mundo” (SABINO; LOY, 2011, p. 33). A trajetória humana é
27
marcada por um desejo que lhe é inerente de dar sentido as coisas, buscar compreender os
seus sentimentos, os acontecimentos e o que está para além do mundo visível, assim os fatos
são dançados, para que seja mantida a memória, elaborando cultura e tradição.
Uma única dança possui uma dinâmica capaz de atrelar inúmeros sentidos em
um só tempo. São diferentes gerações e aprendizados que celebram experiências de vida, num
movimento transcendente capaz de oferecer gratuitamente sentido para a existência. Quando
por exemplo se dança em círculo, incontáveis elementos a respeito da vida são elaborados e
reelaborados. Sobre isso, é oportuno citar sobre as danças consideradas tradicionais:
Nas danças tradicionais há um sentido preferencial, que é o da roda, círculo, uma das formas mais antigas de dançar, talvez a mais antiga, capaz de reunir e de dar movimento, aos mais diferentes temas, indo das histórias das caçadas a um relato sobre a criação do mundo (SABINO; LOY, 2011, p. 47).
Nesse desenho coreográfico próprio da dança, é capaz de prover no espaço
físico um momento propício para uma experiência de transcendência. Ao criar entre os corpos
um encontro em que se estabelece a sintonia dos participantes numa atmosfera de ritmo e
movimento.
O desenho coreográfico é propriamente o percurso, a movimentação e onde se
situa cada um dos componentes, um jogo que se dá, em muitos casos, entre o distanciamento
e o agrupamento, acontecendo simultaneamente para provocar em sua culminância o sentido
comunitário e a importância do permanecerem juntos envolvidos e motivados pelos mesmos
desejos. “Seguindo o desenho coreográfico circular, a dança, nessa continuidade de ritmos, de
gestos e dinâmicas, possibilita ativar as memórias e traz com ela um sentimento de união e
fraternidade” (Ibidem). Dançando em círculo o ser humano é capaz de sintetizar a comunhão
fraterna, o pertencimento comunitário, um movimento que libera a harmonia e faz despertar a
consciência, a reflexão sobre a importância de vivenciar a união.
Surgem outras modalidades de expressão, a pintura, os artefatos, a mímica,
porém, a dança, nesse contexto, assumia com maior propriedade a relação do ser com o seu
meio social e o início do seu processo civilizatório. Como afirma Ernest Grosse (1943), em
seus estudos sobre as origens da arte, primeiro quando diz que “nenhuma outra arte primitiva
desempenha um papel prático e civilizador tão elevado quanto à dança”, e segundo ao
destacar que “toda cultura superior tem por base a colaboração bem ordenada de diversos
elementos sociais. A dança prepara os homens primitivos para essa colaboração” (GROSSE,
28
1943, p. 153). Fazendo-se presente na construção e organização social dos povos primitivos, a
dança favoreceu uma experiência de coletividade norteada por transcendimentos.
Ao ser transmitido esse caráter de força e mistério, através desses elementos, o
seu corpo, por meio da dança, dava forma aos seus sentimentos e anseios. Como também,
favorecia a ampliação de elementos necessários para organização e compreensão da vida
social, por exemplo, quando famílias dançavam juntas, quando se agradecia uma boa colheita
ou ao dançar a morte de um parente. Tal experiência marcava profundamente a vida do grupo,
sendo indispensável dançar aquele momento que poderia ter um cunho religioso ou não e em
seguida registrá-lo, utilizando num primeiro momento o recurso do desenho nas paredes das
cavernas.
Nesse contexto onde o movimento dançado vai se tornando significativo para o
homem, reside uma preocupação em torná-lo compreensível, e o desenho, antes realizado com
as imagens fixas sem a intenção de atribuir a ideia de movimento, ganha novos elementos.
[...] começaram as representações da vida coletiva. Como as pessoas passaram a ser representadas em suas atividades cotidianas, um novo problema se colocou para o artista: dar ideia de movimento através da imagem fixa. E o artista do Neolítico conseguiu isso de maneira eficiente, como se pode notar nas pinturas de cenas de danças coletivas, possivelmente ao trabalho de plantio e colheita (PROENÇA, 1999, p. 14).
Algumas pinturas rupestres que foram feitas a cerca de 4.500 a. C. apontam
para essa mudança que retrata a importância do movimento para o ser humano dentro do seu
contexto social. Uma vez inaugurada à experiência do movimento como meio propiciador na
busca por sentido, tornou-se necessário caracterizar de forma mais adequada às imagens,
atribuindo-lhes alguns aspectos de modo que não passasse despercebida a presença do
movimento.
A preocupação com o movimento fez com que os artistas criassem figuras leves, ágeis, pequenas e de pouca cor. Com o tempo essas figuras foram se reduzindo a traços e linhas muito simples, mas que comunicavam algo para quem as via. Desses desenhos surge, portanto, a primeira forma de escrita, a escrita pictográfica, que consiste em representar seres e ideias pelo desenho (Ibidem).
O processo de evolução dos grupos humanos primitivos que também se deu por
meio do movimento, garantiu à dança um status de colaboradora da organização social. Por
meio da dança como elevada expressão da estética, das ideias, do sentido de grupo, o ser
29
humano transcendeu os limites por ele imposto pelo ambiente vigente, portanto, tal processo
contribuiu para o desenvolvimento e organização social.
Enquanto a arte estatuária, de grande importância entre os povos civilizados, é insignificante entre as tribos mais primitivas, outra a arte, a dança, teve outrora uma importância social de que hoje dificilmente podemos formar uma ideia. [...] a dança primitiva é a mais imediata e poderosa expressão do sentimento estético (GROSSE, 1943, p. 141).
Os conhecimentos corporais e o sentido estético são construções resultantes da
presença da dança, antes, entre os primitivos e na contemporaneidade entre inúmeros povos
de todo o mundo. O ato de dançar montado a partir das experiências de vida deixou
significados marcantes até os dias de hoje. A dança é um processo de encontro que imprime
no próprio corpo a força, a vitalidade e a criatividade humana. Por isso, propiciou entre os
povos um meio transcendente capaz de produzir símbolos, sentidos e mecanismos de
organização coletiva.
O surgimento e a permanência da dança cumprem um papel essencial dentro
dos mais diversificados contextos em que ela se faz presente. Pois, a dança, não deve ser
pensada como uma experiência abstrata, mas que pode oferecer-se por meio da transcendência
e concretizar-se no corpo, expressando um momento presente de vida que situa e orienta o
homem para a sua totalidade. Nesse sentido, de acordo com Mariana Monteiro (2011): “É
preciso respeitar a natureza e a lógica interna dessa totalidade em que a dança se insere, evitar
pensá-la de forma abstrata, separada do seu contexto de criação, fruição e reprodução” (p. 45).
A dança mesmo sendo um mecanismo de transcendência, que lida com uma dimensão
abstrata da existência humana ela acontece imbricada na realidade considerada concreta e tem
o poder de tornar visível e compartilhado os sentimentos e as sensações mais íntimas do ser
humano. “A dança é uma atividade que torna possível ao homem encontrar-se com seu
interior e explorar os mais profundos segredos, permitindo que o mundo interior seja
revelado” (RANGEL, 2002, p. 23).
A dimensão reveladora da dança interessa ao homem em todos os tempos, o ato
de revelar-se, de exteriorizar-se ainda que seja carregado de simbologias a serem
interpretadas, é de grande valor para a construção de sentido e a aquisição de uma identidade
individual e coletiva. “A dança surge em meio a outras instâncias da produção simbólica,
revelando os diversos contextos em que se insere” (MONTEIRO, 2011, p. 223). O dançar em
si mesmo tem sua gênese na via relacional – corpo e movimento – e dar-se de fato por meio
da expressão e da comunicação. A dança resulta por mostrar-se. Fazendo-se visível mesmo
30
que num primeiro momento ela não seja óbvia, que para traduzi-la seja necessário atribuir
conceitos de interpretação para as possíveis linguagens contidas em seu movimento. Quando
uma dança é gestada dentro de uma cultura carregada de simbologias, onde circulam vários
elementos metafóricos e míticos, todos esses aspectos poderão ser transpostos para o
movimento – mesmo que de forma inconsciente – isso revela uma das vertentes da arte da
dança, que além de atrair para si uma grande diversidade de elementos culturais e sociais, na
qual, está inserida, ela os fazem acontecer de forma unificada, pois tudo será comunicado
através de um corpo que está em movimento, o ser humano ao dançar sintetiza em si mesmo
inúmeros fragmentos de sua cultura, religião e sociedade.
Uma sequência de movimentos dançados pode, por exemplo, recontar um
episódio da história religiosa de um povo, numa comunicação que acontece de forma
dinâmica e poderosa, capaz de despertar instantes significativos de transcendência, tanto no
que tange ao se transpor no tempo histórico e ativar a memória de um fragmento religioso,
como fazer emergir sentimentos, lançando o indivíduo em sua experiência com o seu
Transcendente.
A comunicação que a dança reproduz por seu mecanismo transcendente,
imprime na cultura e na sociedade um ser humano capaz de colocar-se para além do que ele
ver. A dança atrai para si o mistério que habita o homem e o universo, e esta mesma dança só
acontece rica de significados e formas, intermediada pela figura humana. Reside na dança
uma característica permanente em comunicar algo ao mundo, ao mesmo tempo em que se
expressa, comunica, mostra e a sua mensagem norteia e encaminha os que dela participam ou
se aproximam. Sendo a dança um caminho possível na busca por sentido, Torralba citando o
ponto de vista de Victor Frankl sobre os caminhos para encontrar o sentido da vida, afirma
que:
[...] o sentido da vida se caracteriza no verbo dar e em mostrar ao mundo que, com nosso ser e fazer, com o nosso modo de atuar, a vida ganha sentido precisamente nas coisas que fazemos no e para o mundo (TORRALBA, 2013, p. 73).
A dança é composta por uma teia de transcendimentos que inclui diálogos em
níveis corporais e verbais, diálogos que encaminham ao autoconhecimento e o conhecimento
dos outros, capaz de reproduzir entendimentos que atingem e transformam as experiências no
coletivo.
31
A dança é um fenômeno que sempre se mostrou como expressão humana, seja em rituais, como forma de lazer ou como linguagem artística. Neste sentido, ela é possibilidade de expressão e também comunicação que através de diálogos corporais e verbais, viabiliza o autoconhecimento, os conhecimentos sobre os outros, a expressão individual e coletiva e a comunicação entre as pessoas (BARRETO, 2008, p. 101).
Algo sempre permanece contido e gestando-se no íntimo do ser, que ao longo
de suas relações e experiências vão contribuindo para um desvelar-se. Nesse aspecto da
condição humana a dança e a transcendência desempenham funções fundamentais, sobretudo,
quando dança e transcendência apresentam-se intimamente relacionadas, para aproximar o
homem de si mesmo, dos seus semelhantes, da natureza que o envolve e do que cada cultura
poderá elaborar e ou identificar como sagrado-transcendente.
Das experiências que tornam possível o ser humano, conhecer sua dimensão
espiritual-religiosa, a dança produz no corpo esse conhecimento. Por meio da dança se
confirma que “[...] o corpo é o meio e a forma de expressão para a comunicação sagrada”
(SABINO; LOY, 2011, p. 75). O corpo tomado pela dança se abre e desempenha um papel
intransferível para a relação do ser com o seu Transcendente e com o seu meio social. “As
danças podem ter lugar como festividades sociais, para honrar uma divindade ou qualquer
outro poder abstrato sobrenatural, para ganhar a piedade do outro mundo ou como maneira de
pedir auxílio sobrenatural” (TITIEV, 2002, p. 339). Por exemplo, existe um costume entre
algumas tribos africanas de que quando uma menina atinge a puberdade, para marcar a sua
transição e apresentá-la para toda comunidade é realizado um ritual considerado pelos nativos
“como a dança da puberdade das raparigas” (Ibidem, p. 338). “Nas Ilhas da Malásia ou
Indonésia, assim como noutras partes do mundo, os dançarinos nativos entram naturalmente
em transe” (Ibidem, p. 339). Outra experiência ocorrida, entre os Índios Pueblo através das
danças kachina que são consideradas:
Essencialmente exibições religiosas, mas que incorporam um grande número de elementos estéticos e sociais. [...] são altamente prezadas pelos que dela participam como pelos observadores, tanto pelos valores religiosos como pelo seu apelo artístico (Ibidem, p. 341).
Sendo assim, é possível perceber a dança sintetizando a relação entre
elementos culturais, religiosos e sociais de um povo, as atividades citadas no parágrafo
anterior demonstram essa qualidade da dança em comunicar e resignificar experiências
quotidianas voltadas para dimensão transcendente do ser. Nas mais variadas tribos e culturas
são possíveis de perceber a ação eficaz do corpo em movimento direcionado ao mistério
transcendente nas práticas ritualísticas religiosas. Nos estudos de Evans-Pritchard, o autor cita
32
que: “Com o homem primitivo, não são as ideias que dão lugar à ação, mas sim a ação que dá
lugar às ideias. Assim, a religião não é tão pensada quanto dançada” (EVANS-PRITCHARD,
1978, p. 52). Por meio de tal afirmação, identifica-se a ampla presença da dança constituindo
meios de transcendência e favorecendo o desenvolvimento das práticas em torno da religião.
Sendo importante destacar a percepção do autor quando diz que a “ação” ocupa o lugar das
ideias, nesse período a dança acontece de forma livre e espontânea, como expressão máxima
dos sentimentos interiores.
Na obra “O homem e o sagrado”, Roger Caillois, apontando as relações entre o
sagrado e o profano, é relatado que na experiência do povo Hebreu, ao adquirirem um bem
realizavam rituais para poderem usufruí-lo. Caillois afirma que: “O ato de posse de um
edifício recentemente construído comporta riscos análogos. Muitas vezes uma dança de
sacrificadores liberta o solo da habitação” (CAILLOIS, 1988, p. 30). Nesta experiência do
povo Hebreu de acordo com Caillois (1988), podemos identificar a dança como um
componente necessário no ritual religioso, permitindo o ser humano estabelecer relação com o
mundo invisível. No livro: As formas elementares da vida religiosa, Émile Durkheim, que
trata da noção do sagrado, nos diz no momento em que se utiliza a dança para executar os
ritos piaculares:
Em vez de danças alegres, de contos, de representações dramáticas que distraem e relaxam os espíritos, o que se tem são prantos, gemidos, em uma palavra, as manifestações mais variadas de tristeza e angustia e de uma espécie de piedade mútua que domina a cena (DURKHEIM, 1989, p. 471).
Encontramos nesse fragmento mais um traço marcante da estreita relação entre
a dança e o modo como o ser humano utiliza-se do movimento para dar forma aos seus
sentimentos e expressar-se, a dança potencializa a comunicação, quando o ato de falar, não é
capaz de transpor tudo aquilo que se está sentindo no momento, a dança o torna mais nítido.
Pondo-se num processo continuo de revelação e comunicação condicionando
os homens a dizer com o movimento do corpo o que ele é e o que pode vir a ser, a dança,
permanece fomentando ao longo das experiências de vida entre mais diversificados grupos
sociais e tempos históricos, a inerente qualidade de abertura ao transcendental. Assim
justificando a possibilidade de estar sempre renovando e ampliando o conhecimento adquirido
em torno da busca pelo sentido de existir. Algumas formas do reducionismo cartesiano,
estabelecidas nas discussões sobre quem é o ser humano e qual o seu papel no mundo,
encontram aqui pela contundente atividade do corpo em movimento transcendente, inegáveis
33
contraposições, tão necessárias para que se construa e se amplie conhecimentos sobre o ser
humano e o seu estar presente no mundo.
A experiência por meio da dança permite que o ser humano possa utilizar-se de
sua dimensão transcendente. Devido ao fato de que a dança é por natureza uma atividade que
produz e liberta o movimento. Tal liberdade de movimento embora ameaçado em alguns
momentos históricos (GARAUDY, 1980), não foi capaz de interromper a necessidade do ser
de expressar-se por meio da dança. Reside no íntimo do ser um impulso vital que encontra na
dança um modo de torná-lo visível, esse movimento de tornar visível o que está contido no
profundo do ser acontece por meio da capacidade de transcender que se revela através do
movimento.
A dimensão transcendente operada através da dança coloca-se contraria as
estruturas dominantes. Nesse sentido, enquadrar a dança e o seu potencial transcendente em
determinismos, é como negar a natureza do ser e consequentemente a força excepcional que o
habita. Utilizando o que Torralba (2013) nos diz sobre a pessoa que transcende, é possível
compreender como essa experiência ocorre através de quem dança:
Existe uma íntima relação entre autotranscendência e autodoação. A pessoa que se transcende a si mesma orienta-se para algo que não tem, não conhece, relativiza o seu ser e o põe a serviço de uma causa ou razão superior. No ato de transcender a pessoa dá o melhor de si, seus recursos e suas possibilidades a algo maior que ela mesma (TORRALBA, 2013, p. 90).
O ato de transcender presente na arte do movimento permite o ser extrapolar os
seus limites, tais limites podem encontrar-se primeiramente em si mesmo e em seguida em
seu contexto sociocultural. Desse modo, pensar o ser humano em seu processo existencial, se
faz necessário perceber que continuamente este ser é covidado a elaborar perguntas sobre si
mesmo e ao mundo a que pertence. Parte da construção das respostas sobre si e sobre o
mundo que pertence, pode ser construída por meio de sua experiência com a dança.
Por isso é tão necessário que a sua cosmovisão esteja sempre aberta ao diálogo
e interessada em sua possibilidade transcendente, pois esse diálogo e essa possibilidade
transcendente inclui sua autorreflexão. Ter um olhar construído sobre si mesmo para melhor
acompanhar as mudanças e os contornos nos processos socioculturais, do qual se é
inevitavelmente sujeito. Essa abertura também vai incluir uma relação com as outras culturas
e expressões que circulam no seu contexto social. Alguns condicionamentos socioculturais
sejam por influência da mídia ou pelo célere avanço científico-tecnológico, como é sabido
34
podem ofuscar o modo como o ser humano interpreta e vivencia a sua dimensão
transcendente e consequentemente a dança.
Há cada experiência vivida pelo ser humano ao logo de sua historicidade, a
dança se apresenta, configurando-se como atividade de significativo potencial transcendente,
permitindo que os indivíduos continuem elaborando e revitalizando mecanismos para
construírem uma adequada compreensão em torno de sua existência e do sentido da vida, no
tocante as suas experiências de religiosidade e espiritualidade, do encontro com o sagrado,
com divino, a dança em seu movimento transcendente favorece a construção de tal
compreensão.
1.3 A religião e a dança na contemporaneidade
A dança presente no tempo acompanha o ser humano em sua aventura inserido
no universo, ancorada na contemporaneidade a dança não deixa de atraí-lo, pois como toda
arte, depende do homem para tornar-se visível. A relação do ser humano com a dança é capaz
de produzir significados, permitindo que este ser promova através de seu próprio corpo
sentido para a sua existência. “Dançar é um modo de existir” (GARAUDY, 1980, p. 13).
Através da dança é possível estabelecer uma série de relações que ampliam as formas do
homem compreender-se em seu espaço-tempo. Para Roger Garaudy, “Dançar é vivenciar e
exprimir, com o máximo de intensidade, a relação do homem com a natureza, com a
sociedade, com o futuro e com seus deuses” (1980, p. 14). Para o empreendimento de tais
experiências, o ser humano vive uma relação intrínseca com seu próprio corpo, do qual
necessita de técnica que o permita obter domínios e habilidades. Conhecer os limites do seu
corpo é um passo importante para a sua relação com o mundo que o cerca. De acordo com
Marcel Mauss, “O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. [...] o primeiro
e mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo o meio técnico do homem é seu corpo”
(MAUSS, 1974, p. 217). Para a autora Jussara Miller: “Dançar é um registro de vida, força,
expressão, empenho, vontade e paixão que aprofunda cada vez mais os conhecimentos
corporais” (MILLER, 2012, p. 09). Compreender o corpo na vida como meio essencial para
se estabelecer relações, incluindo sua transcendência e imanência, é fundamental a busca por
compreender a dimensão espiritual presente neste corpo que dança.
Mas qual será o corpo que dança na contemporaneidade? Primeiro recordar a
incrível capacidade de adaptação que possui o ser humano, que em todo momento interage
com a realidade e os acontecimentos do seu tempo histórico, desse modo recai a toda
35
experiência humana influências, mudanças e avanços, sendo possível dizer que o corpo que
dança ao adaptar-se ao seu meio, não se elabora isoladamente, segundo Mauss, a busca
constante por adaptação, “é perseguida por uma série de atos montados, e montados no
indivíduo não simplesmente por ele mesmo, mas por toda sua educação, por toda a sociedade
da qual ele faz parte, no lugar que ele nela ocupa” (MAUSS, 1974, p. 218). José Gil diz que:
“[...] o corpo abre-se e multiplica suas conexões com o mundo” (GIL, 2001, p. 178), e ao
tratar da natureza da consciência do corpo que se abre para o mundo mantendo sua integração
com o universo, o autor afirma que “o corpo é um universo de pequenas percepções, com o
qual a consciência entra em conexão compõe-se de forças. O que oferece à dança, a
possibilidade de apreender o real de modo mais imediato” (GIL, 2001, p. 181). Ao servir-se
do seu próprio corpo, com as técnicas elaboradas ao longo de sua trajetória, o ser humano
dança e essa atividade lhe oportuniza perceber e produzir elementos de sua espiritualidade.
É possível afirmar que o corpo emprestando-se as técnicas e aos movimentos
capacita-se por revelar, o que Mauss considerou como a “a noção fundamental da vida
simbólica do espírito, esta noção de que temos da atividade da consciência como sendo, antes
de tudo, um sistema de montagem simbólica” (MAUSS, 1974, p. 218). Para Garaudy (1980,
p. 19), “Desde a origem das sociedades, é pelas danças e pelos cantos que o homem se afirma
como membro de uma comunidade que o transcende.” E o autor Bernhard Wosien vai mais
além e diz que: “O homem vivencia na dança a transfiguração de sua existência, uma
metamorfose transcendente do seu interior, relativa ao ser e também à elevação ao seu eu
divino” (WOSIEN, 2006, p. 27). A dança prepara o ser para experiências que o leve a
transcender, desse modo, tal experiência pode contribuir significativamente para o seu
autoconhecimento, e encaminhá-lo à sua espiritualidade.
A experiência humana a partir da dança na contemporaneidade pode revelar
elementos significativos de espiritualidade, pois sendo contínuo o processo de construção do
ser, e nesse processo o surgimento de as novas formas de vivenciar a espiritualidade, sendo
possível concordar com Wosien quando ele diz que:
A dança, ela sempre nos abre no tempo o acesso religioso, no sentido de recondução ao criativo original. Esta é uma dimensão da dança, que, em nossos dias é mais uma vez, conscientemente buscada e vivenciada (WOSIEN, 2006, p. 63).
A dança pode ser considerada uma via de acesso para uma experiência
profunda da espiritualidade, mesmo identificando que a sociedade contemporânea é
36
caracterizada por transformações nas ciências, nas tecnologias e nas culturas, a busca do ser
humano pelo sentido da própria existência permanece. Sendo possível na contemporaneidade
aproximar a dança e a espiritualidade e encontrar nesta relação às possibilidades de
transcendência e da sensibilidade de perceber a beleza da vida que imana no cotidiano.
Assim, considerando a dança mais uma possibilidade de experiência que leva o
ser humano ao encontro de sua espiritualidade, como na contemporaneidade é possível
descrevê-la? Que tipo de conceito a respeito da relação entre corpo, alma e espírito poderiam
reproduzir possíveis equívocos ao ponto de distanciar o homem de sua compreensão sobre sua
espiritualidade?
Com o desejo de compreender como a dança, na contemporaneidade, pode
servir o ser humano para aproximá-lo de sua espiritualidade, é necessário observar o que
firma Wosien, referindo-se ao perigo do nosso tempo histórico da não compreensão da
unidade entre espírito, corpo e alma:
Como contemporâneos de uma sociedade altamente apurada de um assim chamado sistema educacional científico, sofremos todos de uma divisão interior, da perda de unidade. Espírito- corpo -alma não vibram mais conjuntamente. Entre razão e consciência existe um desequilíbrio perigoso. Em alto grau nós transferimos nossas capacidades humanas às próteses de nossos espíritos, às maquinas. O pressionar de um botão é suficiente (WOSIEN, 2006, p. 64).
A falta de compreensão quanto à unicidade entre corpo, mente e espírito,
somado ao avanço tecnológico podem sugerir equívocos quanto a vivencia da espiritualidade
na contemporaneidade. É sabido que o aparato material tem uma importância e seu lugar para
a vida da humanidade, contudo, quando esses meios passam a substituir o papel do corpo –
sem esquecer que esse corpo pertence a uma unidade – corre-se o risco da sociedade
desprover-se de viver espiritualmente, e tal experiência pode provocar ainda mais na
sociedade contemporânea o que Wosien percebe como resultado da relação do ser humano
com o seu meio material:
Isto deveria expandir e enriquecer o nosso espaço de vida, contudo, realização de desejo e satisfação não se deixam sintonizar. Ao contrário, aparecem, num grau crescente, exigências muito grandes, estresses, crises existenciais, neuroses, doenças da alma e suicídios (WOSIEN, 2006, p. 64).
Aproximar o homem contemporâneo de si mesmo é sem dúvida uma urgência
do nosso tempo, aproximá-lo para resignificar o valor de todas as coisas que o torna humano,
aqui a dança por tratar-se de uma experiência engajada, não só corpo, mente e espírito, mas
37
também com tudo o que se faz presente no universo, precisa se manter como caminho, como
esperança para que a busca por sentido não se confunda e não se perca. Sobre isso Gabrielle
Roth nos diz de sua experiência com a dança: “Meu caminho é um caminho dançante”
(ROTH, 1997, p. 27), “Meu caminho é a dança” (Ibidem, p.32).
Tratando-se de como a dança se revela na contemporaneidade, Bernhard
Wosien, compreende a dança como um caminho para a totalidade o que implica perceber a
estreita relação da dança com Deus, sobre sua experiência com a dança e o que ele definiu
como resumo de sua trajetória enquanto artista da dança, ele assim se expressa:
No meu caminho da maestria da dança cheguei à conclusão básica de que a dança, como a manifestação artística mais antiga do homem, é um caminho esotérico. O trabalho do bailarino acontece no seu instrumento, ou seja, no seu próprio corpo. Trata-se do trabalho a partir da base, a partir do interior da imagem perfeita de Deus (WOSIEN, 2006, p. 26).
Uma experiência mística repousa na dança. Encontrar pelas vias da dança uma
profunda espiritualidade é preciso primeiro entender a dança como um caminho. Um caminho
que liberta e flui, é dinâmico e autêntico, ao mesmo tempo beleza e mistério. Miriam
Garcia Mendes reconhece a dança como um dom, que está presente no ser humano desde sua
origem, e afirma:
Dom que tornou o homem senhor da natureza, com todas as trágicas implicações que o fato atualmente representa. Mas o homem continua dançando, de uma forma ou de outra, e isto constitui uma esperança de vida (MENDES, 1987, p. 75).
Dançar constitui uma esperança, porque disso somos feito, por mais
desconcertante que se mostre a nuanças da vida, uma esperança sempre há de nos mover,
mesmo que cada homem encontre um nome diferente para essa esperança, que ela continue a
existir assim como a dança e ajude-nos a não aceitar a realidade parados, atônitos, incapazes...
Que a exemplo da dança presente na contemporaneidade estejamos em constante movimento,
numa dinâmica vital que nos leve a totalidade. Um movimento verdadeiramente dançado é
capaz de abarcar o ser humano por inteiro. O eleva de uma condição de pequenez perante o
mistério da vida, fazendo-o participar, tornando-o coautor da vida e criador de movimentos
tão urgentes e necessários há este tempo incerto e contraditório em que a existência se faz
presente.
A dança sem esperança seria uma dança sem transcendência e sem
espiritualidade, uma dança morta ou resultante apenas de mentes e corações vazios, como
38
muito ainda se ver. A dança que transcende e que faz transcender precisa manter-se viva,
carregada de uma força que a faz se mover e move os que estão a sua volta. Um poderoso
ciclo que transforma simples biografias em vidas carregadas de sentido, de um sentido fértil e
arrebatador.
Espera-se que o tempo da dança, seja indiscutivelmente o tempo daqueles e
desses homens e mulheres que transbordam o próprio tempo, de uma intimidade tão real que
denuncia, acalma, oferece, expressa e acolhe a vida num todo de ideais, reações e sensações,
contadas por um corpo que não é e que não está sozinho. Mas, um corpo que está com a
dança, e na dança está contida parte da essência do universo, que não é milagre sem esforço,
sem trabalho. A dança que remonta o ato criador, não está pronta no corpo do artista, e dele
veremos em momentos súbitos traços da criação. É preciso de posse desse corpo, adentrar no
profundo de si para compreender o papel do corpo para além do mundo material.
A figura do corpo não é uma qualidade meramente material, uma coisa do mundo. Está cheia de significado e revela o modo de ser profundo da pessoa. A pessoa que cultiva a inteligência espiritual é capaz de captar esse fundo que está além do aspecto físico (TORRALBA, 2013, p. 115).
A dança que não deixa de ser um ato criador é feita por pessoas de pés no chão,
que estão de forma imanente ligada ao contexto da vida. São também, por meio desses artistas
do movimento que se podem perceber centelhas de um sentido capaz de renovar o caminho
existencial de todos os seres. O trabalho e a persistência, envoltos ou não por uma crença
determinada, torna este fenômeno ainda mais rico de significado.
Algo maior torna essa dança, vivida na contemporaneidade, sobretudo, as que
se fazem fora dos núcleos e sistemas religiosos, um elo com o ser humano que não foi
interrompido com as mudanças do tempo. As pessoas que dançam verdadeiramente, mesmo
cercadas por tantos apelos, não perderam a genuína capacidade de revelar o que está oculto e
tantas vezes tão distante dos olhos e do coração daqueles que já não encontram mais o
verdadeiro sentido de estar aqui.
39
2 A RELAÇÃO ENTRE DANÇA, TRANSCENDÊNCIA E ESPIRITUALIDADE NA
CONTEMPORANEIDADE
A relação entre dança, transcendência e espiritualidade nos tempos
hodiernos, como será apresentado nesta parte da dissertação, requer o esclarecimento de que
tipo de dança, e conceitos sobre transcendência e espiritualidade constará na abordagem.
A compreensão em torno dança encontra-se direcionada a uma forma de arte
que pode encaminhar o ser humano ao encontro de sua totalidade (WOSIEN, 2000). Neste
percurso o indivíduo reproduzirá por meio do seu mecanismo transcendente sua
espiritualidade. Não havendo um estilo ou escola de dança exclusiva para que tal experiência
aconteça, não trataremos aqui de danças religiosas, embora esta modalidade permaneça em
plena atividade. A dança que se tornou foco da pesquisa é mantida fora do espaço diretamente
religioso e ou do institucional religioso. Apesar do distanciamento das tradições religiosas
institucionalizadas, tal forma de dançar mantém atrelada ao seu movimento, possibilidades de
expressar fragmentos de espiritualidade. Desse modo, os artistas pernambucanos
entrevistados, ao revelarem as suas experiências contribuíram de forma indispensável e
significativa com os objetivos da pesquisa.
O conceito de transcendência como uma possibilidade de abertura, capacidade
inata do ser humano, que poderá levá-lo a ultrapassar seus limites, projetando-o sempre para
além daquilo que visivelmente se mostra a ele. Apresentando a transcendência para além do
significado religioso (TORRALBA, 2013). Considerando o seu contexto sociocultural, que
poderá ofertá-lo estímulos ou desafios. Uma experiência de transcendência capaz de revelar e
contribuir para a sua espiritualidade e encaminhá-lo para a sua totalidade.
O conceito de espiritualidade utilizado apoia-se em uma espiritualidade que
não nega a transcendência. Tais dimensões, espiritualidade e transcendência entrelaçadas,
fazendo-se presente na busca por resposta aos questionamentos do ser sobre o seu devir
existencial. Sendo a espiritualidade um tipo de inteligência, desenvolvida pelo ser humano
que amplamente o capacita a compreender o sentido de sua existência (TORRALBA, 2013).
Outras definições de espiritualidade são apresentadas ao logo do texto para uma melhor
analise do contexto contemporâneo, como será, por exemplo, comentada a espiritualidade
entre ateus.
2.1 A dimensão de transcendência aproximando o ser do mistério da vida
40
A dança, tal qual como se apresenta no mundo hoje, se aproxima da mesma
responsabilidade que tem a educação e a religião para um povo, de mostrar a vida
participando dela, sem negá-la. Esforçando-se para cada vez mais ampliar as possibilidades
do corpo, do movimento, da consciência, dos níveis de transcendência e de espiritualidade, da
generosidade, do fazer o bem para si e para os outros, de pautar a vida no respeito mútuo, de
entender-se como parte de um todo, de estar junto, de promover a unidade, de mergulhar no
mistério de si e do universo.
A mística de acordo com Lima Vaz, “[...] diz respeito a uma forma superior de
experiência de natureza religiosa, ou religioso-filosófica (Plotino), que se desenrola
normalmente num plano transracional [...]” (VAZ, 2000, p. 9). Tal experiência não anula a
razão mais acontece além da razão e “mobiliza as mais poderosas energias psíquicas do
indivíduo” (Ibidem), permitindo que o ser humano transcenda e mergulhe no mistério
profundo que envolve a sua existência, indo além da razão “para uma realidade transcendente,
essas energias elevam o ser humano às mais altas formas de conhecimento...” (Ibidem). Essa
experiência revelada com maior incidência no contexto religioso, também poderá revelar-se
ainda que seja de forma fragmentada no mundo da dança.
Um dos grandes místicos, pertencentes ao contexto religioso, D. Helder
Câmara (1978), escreveu um poema sobre a importância de fazermos “bem aquilo que nos foi
confiado”, outro poema que diz “ultrapassa-te a ti mesmo”. Feliz também em sua fala quando
disse que “um artista só se curva para agradecer”. Em sua experiência de fé na tradição cristã,
e por toda a sua sabedoria escreveu um poema sobre o movimento presente no universo, onde
vários elementos dançam inclusive o seu próprio Deus: “Tu mesmo danças Senhor”.
Referindo-se ao movimento total, José Gil (2001), inicia um dos seus livros dizendo “No
começo tudo era movimento”. De tão estreita que é a relação da vida com o movimento, que
se apresenta desde o desenvolvimento de um feto na barriga da mãe, até os movimentos
permanentes da terra, é possível dizer que a dança é movimento decodificado, e que este
movimento é mistério e paira, para que em seguida o ser humano possa assumir com o seu
corpo o que lhe foi confiado, pois a sua existência encontra-se em movimento.
A mística transita no universo das artes, pois onde houver essa disposição para
ir além das estruturas convencionais da realidade empírica, entrar-se-á num campo mais
elevado para o entendimento da existência humana, uma fronteira que não nega a razão, ela
acontece de forma consciente, porém extrapola toda condição convencional da vida do ser,
41
por isso é uma dimensão mística, pois, invade e mantém-se interessada pelo mistério
profundo da vida.
Essa por sua vez, é necessariamente pluridisciplinar, pois a experiência mística é um fenômeno totalizante, no qual estão integrados todos os aspectos da complexa realidade humana. Como primeira aproximação, podemos dizer que a experiência mística tem lugar no terreno desse encontro com o Outro absoluto, cujo perfil misterioso desenha-se sobretudo nas situações-limite da existência, e diante do qual acontece a experiência do Sagrado (VAZ, 2000, p. 15).
Admite-se que a natureza da dança, quando desenvolvida a partir de uma
espiritualidade, penetra nesta dimensão mística e projeta o ser, fazendo-o participar deste
mistério. Uma dança pode escapar em instantes diante dos olhos, mas poderá ter provocado
um momento contundente de transcendência, fazendo o ser deparar-se com o que há de
infinito em sua natureza e que só poderá ser buscado ao utilizar-se de sua capacidade
transcendente. O ser humano possui como condição inata esta abertura transcendente (BOFF,
2009), que sendo vivenciada de forma profunda e consciente, pode levá-lo ao campo místico.
O ser humano pode abrir-se ao mundo, num primeiro nível relacional, expresso pela categoria da objetividade; pode abrir-se ao outro e à história, num segundo nível relacional, expresso pela categoria da intersubjetividade, finalmente, pode abrir-se ao Absoluto, num terceiro e mais elevado nível relacional, que se exprime pela categoria da transcendência (VAZ, 2000, p. 24).
A transcendência percorre vias por encontrar-se numa perspectiva de abertura
relacional, e mantém sintonia com a busca por respostas existenciais que não devem ser
definidas como verdade encerrada em si mesma, o caminho da transcendência abarca o
mistério, do contrário iria impor barreiras e impedir o ser humano de continuar sua realização
ao longo da história. Para o mistério que envolve o universo e habita o próprio ser, não existe
uma resposta exata e definitiva, é processo. O que é possível ser feito é aproximar-se dele –
enquanto mistério – através de mecanismos de transcendência e de uma profunda
espiritualidade que vão ao longo do tempo renovando-se e sendo reconstruídos.
Tal mistério que seduz o ser, e o leva a compor em suas histórias de vida
fragmentos que vão aos poucos, ao passar leve dos tempos, unindo-se a outras experiências
espiritualidade para compor uma noção provisória a cerca do que permanece oculto na
existência.
A busca de hoje permitirá que as futuras gerações possam ampliar e criar
sempre novos caminhos para o encontro do verdadeiro sentido de existir. Como essencial da
42
condição humana em qualquer tempo histórico, o buscar conhecer, é relacional, é movimento
permanente, buscar aproximar-se da perfeição, é buscar aquilo que culturas e tradições
construíram ao longo de milhares de anos, com todo esforço e o com os recursos que
dispunham.
Nesse processo antropológico, a cultura humana continua construindo por meio
de suas experiências meios para compreender o mistério da vida, de uma realidade ultima, de
um infinito que está para além de nós. Este movimento em direção ao mistério da vida ganha
formas explicáveis, também através da dança, formas explicáveis não significa dizer
definitivas e incontestáveis. Mas, através do universo da dança é possível apontar sinais na
contemporaneidade de uma experiência do corpo em movimento que revela transcendência e
espiritualidade.
Decorrendo a partir da analise dos resultados das entrevistas, alguns pontos
importantes emergiram. A transcendência como condição natural do ser, fica clara que poderá
ser experimentada por qualquer pessoa em distintas profissões ou contextos socioculturais
diferentes, porém vale a pena ressaltar que a transcendência sozinha não leva o ser ao
encontro de sua totalidade. Contudo, o fato de se experimentar com o próprio corpo em sua
unidade, a experiência de transcendência que pode vir a reproduzir fragmentos de
espiritualidade, tais fragmentos poderão encontrar-se como centelhas indicando o caminho
para a totalidade.
Os níveis de transcendência e espiritualidade entre os artistas da dança não o
transformam em seres superiores. Mesmo se entregando com amor ao que fazem, não estão
isentos de enfrentar os problemas e desafios comuns do quotidiano. A espiritualidade não é
garantia de uma vida plena e perfeita (JUNIOR, 2012). Do ponto de vista de possuir a
dimensão transcendente (BOFF, 2009) e a possibilidade de desenvolver a sua espiritualidade
(TORRALBA, 2013), os artistas são pessoas comuns, qualquer ser humano nasce com a
possibilidade de fazê-las. O que pode haver de extraordinário nas experiências de vida dos
artistas será a capacidade de tornar visível, no seu modo de viver, essa busca de forma
profunda e permanente por uma existência que contempla o espiritual. Fazer o uso da
dimensão espiritual é o que poderá levar o indivíduo a construir respostas plausíveis ante o
seu caminho existencial. Em conformidade com Francesc Torralba, quando diz que:
De acordo com sua perspectiva, as pessoas espiritualmente inteligentes buscam uma concepção do mundo, tendem a dar valor a suas ações e ao conjunto de seu itinerário e de opções de vida. A inteligência espiritual
43
permite, assim, atingir os significados profundos, considerar os fins da existência e suas mais elevadas motivações. É a inteligência do eu profundo que se coloca diante das questões sérias e, a partir delas, busca respostas plausíveis e razoáveis (2013, p. 38).
O como vai agir diante dos fatos decorrentes do processo existencial, expressos
no universo da dança é que poderão caracterizar a presença da espiritualidade nesse
movimento transcendente. Assim tendo o artista a intencionalidade de manter o seu trabalho
num fluxo permanente com o universo (GIL, 2001), ele poderá não cair em algumas
armadilhas próprias de sua condição finita, como, por exemplo, conduzir sua vida a partir do
seu ego. Quanto mais ele trabalhar para expandir a sua dimensão transcendente, percorrerá
caminhos que o leve ao encontro de sua espiritualidade.
2.2 A espiritualidade e as transformações do tempo
A espiritualidade na contemporaneidade acontece entre os indivíduos nos
diversos eventos e estágios da vida. Misturando-se às culturas e tradições, aos mais distintos
comportamentos, a espiritualidade se faz a partir do ser. “[...] a espiritualidade está baseada no
indivíduo” (ROHR, 2012, p. 37). As escolhas, os projetos, os sonhos, seu esporte, sua arte e
sua dança, podem tornar-se meios para que se transborde espiritualidade.
A contemporaneidade, embora marcada por velozes processos de
transformação em todos os setores da sociedade. “Estas transformações estão também
mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como
sujeitos integrados” (HALL, 2003, p. 9), não fez com que a espiritualidade desaparecesse,
pelo contrário, assiste-se a um retorno do religioso, da busca pelo sagrado (MARTELLI,
1995). Esta experiência de retomada por um discernimento religioso e espiritual moldou
algumas práticas relacionadas à espiritualidade. Questões religiosas, referentes ao retorno ao
sagrado, crenças mantidas fora da religião institucional, são colocadas na contemporaneidade
com acentuada frequência, visto que, existe uma maior abertura para se questionar
determinados modelos que podem não edificar a espiritualidade ou a religiosidade do ser.
Sobre esse aspecto, Ana Lisboa (2012), assim se expressa:
A religião institucional em alguns casos propõe um modelo baseado na negação de si mesmo, na remoção dos desejos, das emoções e da espontaneidade, o que pode levar a resultados destrutivos na personalidade individual e coletiva (LISBOA, 2012, p. 17).
A partir da reflexão feita por Ana Lisboa, amplia-se a noção em torno de uma
experiência espiritual e religiosa apartada das religiões, como meio de assegurar para aqueles
44
indivíduos que não se identificam com tais modelos, não perderem a possibilidade de
conhecer e praticar a sua espiritualidade. Assim, a espiritualidade não se encontra restrita ao
espaço institucional religioso, ela circula e ganha contornos amplamente variados. Uma série
de fatores tem permitido ou contribuíram para que a espiritualidade chegasse a esse estágio de
compreensão e prática no tempo presente. “A espiritualidade comunga com a religião a crença
em uma divindade, mas não se fixa em nenhuma forma específica dela” (ROHR, 2012 p.20).
É possível supor que a institucionalização da religião, consequentemente, pode impor limites
à forma de se vivenciar a espiritualidade, estando esta condicionada a regras rígidas que
venham a comprometer as relações interpessoais. A partir desse aspecto, de quando algumas
ofertas religiosas acabam restringindo a dimensão de espiritualidade, não significando dizer
que toda religião ou experiência religiosa impõe limites estreitos a espiritualidade, é
necessário identificar como a religião poderá situar-se na contramão de uma espiritualidade
capaz de levar o individuo a integrar-se relacionalmente. Para Ferdinand Rohr:
As formas que a própria religião às vezes assume podem até ser contrárias à espiritualidade. Isso acontece principalmente, quando a religião se fixa em dogmas, em regras de conduta bem determinadas, em inflexibilidade, em exclusão contra confissões de fé distintas, na imposição da crença aos outros, na luta pelo domínio, pelo poder através das forças divinas e na crença da própria superioridade diante dos outros homens, que pode até resultar na suspensão de normas éticas de relacionamento com os membros dentro ou fora da comunidade religiosa (ROHR, 2012, p. 20).
O distanciamento entre as práticas religiosas e a espiritualidade permanece em
vigor, na contemporaneidade, bem como experiências religiosas que podem contribuir,
significativamente, para uma espiritualidade carregada de sentido. Nessa direção, em qualquer
cultura ou tradição religiosa, o indivíduo poderá elaborar mecanismos favoráveis ou não para
a experiência de espiritualidade. A espiritualidade embora vivenciada fora do institucional
religioso, não elimina as formas de espiritualidade que se constroem a partir de uma crença
especifica. O que existe são situações dentro de uma comunidade religiosa que acabam
provocando uma dissonância entre espiritualidade e a conduta moral religiosa.
Espiritualidade não exclui, em princípio, nenhuma fé religiosa como forma especifica de vivenciar a espiritualidade. Por outro lado, nem tudo que se apresenta como religião também inclui a espiritualidade (ROHR, 2012, p. 20).
Desse modo, as experiências de transcendência e espiritualidade na
contemporaneidade sugerem que indivíduos possam expressá-las a partir de um cenário mais
ampliado de possibilidades, sem que uma forma de vivenciá-la não exclua a outra. Um
45
indivíduo poderá construir a sua experiência de espiritualidade a partir de uma fé ou não, do
contato que obteve de uma religião especifica em uma fase da sua vida ou simplesmente – e
não menos importante – por um despertar que se deu sem qualquer vinculo com uma religião.
“A espiritualidade envolve um tipo de fé. [...] essa fé não coincide necessariamente com a fé
religiosa” (ROHR, 2012, p. 22). Ao apreciar valores humanos presentes na sociedade – que
não se pode negar certa origem ou influência das religiões – indispensáveis para a vida é
possível a partir disso, buscar uma espiritualidade mais profunda. Como se discute, por
exemplo, a espiritualidade entre os ateus.
A espiritualidade estabelece relações permanentes com a vida dos indivíduos
independente de sua cultura e condição social. A espiritualidade se encontra presente na vida,
ela não tem razão de ser fora da vida, quanto mais se inclina para uma busca espiritual,
percebe-se que a sua construção ocorre a partir das experiências mais direcionadas ao ser
socialmente existente. Pensando este ser com todas as suas dimensões, religiosidade,
sexualidade, afetividade... Enfim a sua totalidade. É por meio desta condição – de abraçar o
ser por inteiro – que a espiritualidade faz-se presente no processo existencial de cada
individuo. “É uma espécie de dinamismo que nos move para buscar a plenitude, o perfeito
desenvolvimento de todo o nosso ser, a profundidade e o sentido do que fazemos, padecemos
e vivemos” (TORRALBA, 2013, p. 48). Desse modo, a espiritualidade quando contemplada
na vida do indivíduo, acrescenta Torralba: “Ela se expressa em uma profunda aspiração por
uma visão global da vida e da realidade que traga a integração, transcendência e sentido à
existência” (2013, p. 48).
A espiritualidade situada na vida irá servir-se de tudo que nela existe,
principalmente no aspecto relacional, a espiritualidade se faz engajada, partilhada, vida e
espiritualidade se completam, ou se autofavorecem.
A espiritualidade não está fora da vida, mas é parte dela. [...] Em nenhum lugar poderemos encontrar a dimensão espiritual separada do viver, pois não há um compartimento especial reservado para a mesma. Compreender isso já é parte da vivencia espiritual (JUNIOR, 2012, p. 81).
Os momentos individuais de busca e compreensão da espiritualidade, o ser
reflete sobre a sua vida, suas escolhas, de como conduz as suas relações, o seu
comportamento e as suas atitudes, em um nível individual, não significa individualista, tal
reflexão o leva pensar o seu modo de viver neste mundo por inteiro. A seriedade do como irá
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cultivar a sua espiritualidade poderá lhe propor inteireza e consciência da importância de sua
ação para o bem comum.
O cerne da espiritualidade não se encontra em ações determinadas, nem em estilos específicos de vida. Não é o conteúdo da opção de vida que mais importa, mas, sim, a capacidade de abraçá-lo integralmente e segui-lo de forma natural e comprometida, com a profundidade do nosso ser (JUNIOR, 2012, p. 83).
A consciência profunda de si pode encaminhar o ser a propor uma ação que contemple
o outro, e a sua espiritualidade esteja dimensionada no social. É possível dizer que um ser
caminha para a sua totalidade quando também se volta para o seu contexto social. As
dimensões do ser acabam por interligar-se o espiritual, o religioso e o social vão se
complementando na medida em que as experiências exigem e ou favorecem que ambas
aconteçam.
2.2.1 A espiritualidade e a dança estabelecendo relações na contemporaneidade
A presença da dança na contemporaneidade, bem como a espiritualidade – que
não depende exclusivamente da tutela das religiões institucionalizadas – podem proporcionar
ao ser humano uma forma de busca interior e de autoconhecimento.
É possível considerar que a construção da espiritualidade nos dias de hoje,
apresenta algumas características comum:
A rejeição do materialismo seja ele político, econômico, filosófico ou ateístico em geral; a crença em uma força superior ao homem, que confere sentido à vida; e no mínimo um distanciamento em ralação as religiões formais e tradicionais. (ROHR, 2012, p. 13)
Ambas, a dança e a espiritualidade continuam sendo construídas vinculadas ao
espaço institucional religioso, permanecendo inúmeros grupos diretamente voltados às
tradições e culturas religiosas que reforçam e mantém a dança nos rituais, celebrações, etc.
Das experiências separadas do institucional religioso, encontra-se a dança e a espiritualidade,
compondo-se, de novas linguagens, num processo antropológico de mutações e variações,
elaborando uma nova forma de expressar a busca pelo sentido da vida e da existência.
Assim como a dança, a espiritualidade foi adaptando-se as transformações do
século XXI. Nos contornos a cerca da espiritualidade na sociedade contemporânea percebe-se
que a “espiritualidade implica, no nosso pensar, levar em consideração a integralidade do ser
humano” (ROHR, 2012, p. 14), a noção de integralidade do ser é um atributo indispensável
47
para se compreender o homem hoje. Essa noção de integralidade também influencia o
entendimento das experiências advindas da dança. Ao identificarmos indivíduos praticando a
arte do movimento, sem uma relação direta com o religioso, torna-se instigante conhecer
como essa dança revela fragmentos ou sinais de uma profunda espiritualidade. Certamente
identificar, sobretudo, as raízes dessa espiritualidade ampliaria a compreensão em torno de tal
experiência.
A espiritualidade e a dança na contemporaneidade podem encontrar-se uma
servindo a outra, de modo que essa experiência conduza verdadeiramente o ser a alcançar a
compreensão sobre sua totalidade. Apesar de também se apresentarem fora do “diretamente
institucional religioso”, elas não acontecem de forma desinteressada, aleatória ou relativizada.
Uma forma de arte capaz de produzir significados e sentidos existenciais, para o próprio
artista ou para o seu público não é vazia, algo no mínimo encontra-se implícito em sua obra
que revela traços ou penetra em algum nível no mistério da vida.
No caso da dança, em seu movimento pode está contido o que há de profundo e
pensado pelo artista, a arte em si se põe para o mundo como forma de expressar anseios e
reflexões sobre a vida e é nessa atitude de pensar a vida, que se dança a vida (GARAUDY,
1980), uma experiência que integra razão e sentimento. Assim também uma espiritualidade
que acontece fora das instituições, se ela é capaz de apontar um sentido e fornece ao ser o
desvelar do mistério de si e da vida, não é uma espiritualidade vazia, possui um grande valor e
não deve ser comparada às formas de um espiritualismo ou esoterismo que circulam no
ambiente social e que nada acrescentam de profundo à existência humana.
Mesmo distante do institucional religioso a espiritualidade desenvolve-se e
eleva o ser, além de que, pertencer a uma religião institucional não é sinônimo de vivência de
espiritualidade profunda. Por partes dos seus membros a experiência da espiritualidade pode
ser ofuscada ou até esquecida, elaborando contornos diversos e apontando um ser que não
desenvolveu a sua dimensão espiritual. Alguns possíveis problemas podem está relacionados
ao não aprofundar-se na dimensão espiritual, um deles poderá ser, uma má interpretação da
relação entre as experiências de religiosidade e espiritualidade, um indivíduo que elabora para
si práticas de religiosidade sem a espiritualidade, corre o risco de ao longo de sua vida, não
conhecer-se em sua integralidade.
A dança e a espiritualidade precisam ser pensadas e praticadas a partir de uma
noção em que “os que buscam realizar-se na espiritualidade, acreditar que nossa existência
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não termina com a morte do nosso corpo físico e que o sentido da vida humana transcende a
nossa existência” (ROHR, 2012, p. 21). Será conhecendo e ampliando as formas de se
vivenciar a espiritualidade, que o ser contemporâneo estará cada vez mais buscando
compreender a sua relação com o cosmos e suas experiências de vida de forma integrada. Isso
porque, quanto mais o ser humano, separa as suas experiências de vida em “compartimentos”,
sem superar o dualismo corpo e espírito, irá naturalmente dissociar o espiritual de suas
diversas atividades cotidianas, o que será comum acarretar um distanciamento de uma
compreensão acertada frente ao seu desenvolvimento e conhecimento de si. Ao se encontrar
na contemporaneidade uma dança que superou essa lógica de divisão e separação entre o
corpo e o espírito, será possível perceber indivíduos fazendo a experiência de unicidade e
integralidade, propagando essa compreensão, de modo a resultar em caminhos oportunos para
uma espiritualidade que seja capaz de construir autoconhecimento e sentido.
A partir da compreensão entre a relação de espiritualidade e a dança, poderá ser
possível, por exemplo, perceber que, quando um artista declara o seu amor pela dança, o
mesmo está cultivando a sua espiritualidade e esse amor norteia o seu trabalho, esse artista da
dança está permitindo que o seu movimento esteja realizando-se resultante de uma
espiritualidade que ele desenvolve através do ato sublime de fazer por e com amor o que ele
se propõe.
A inteligência espiritual gera a consciência relacional [...] Permite tomar consciência da fraternidade de tudo que existe. Isso significa que o cultivo da mesma libera do cárcere do ego, rompe as fronteiras entre o que sou e que me separa do mundo, em um movimento de perdão, de generosidade, de entrega, de disponibilidade, de desprendimento e de amor (TORRALBA, 2013, p. 132).
Nesse aspecto, percebe-se que a dança e a espiritualidade se mantém num jogo
de trocas e complementaridades, necessárias ao entendimento do processo de existir.
Dança e espiritualidade na contemporaneidade despontam inúmeros
mecanismos – como a sensibilidade, a intuição, a criatividade, o amor, entre outros – para se
aproximar de uma compreensão adequada e possibilitar identificar quando elas se revelam
juntas. A sensibilidade aparece como um dos meios para que seja possível perceber esse
entrelaçamento “dança e espiritualidade”, o ser sensível é uma das características marcantes
de quem se percebe como artista no mundo.
A intuição, presente no individuo que dança e desenvolve a sua espiritualidade,
é um fato inexprimível que contribui para nos aproximar do amplo e complexo campo da
49
dimensão espiritual e que dela não podemos desenvolver respostas definitivas, mas buscar
compreender a confluência de vários meios comuns de percepção e das formas como se
apresentam ao longo do trabalho e das trajetórias de vida. Henri Bergson (1984), ao apontar o
elemento da intuição presente na vida do ser, percebe a impossibilidade de uma construção de
definição exata para ela. “Que não nos seja pedida, pois, uma definição simples e geométrica
da intuição” (p. 115). A intuição, por sua natureza, escapa ao determinismo, e para Bergson, é
possível nos aproximar da seguinte definição:
Chamamos aqui a intuição pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que ele tem de único e, consequentemente, de inexprimível (1984, p. 14).
A intuição se apresenta com uma das capacidades do ser, desenvolvidas
também a partir da relação entre transcendência e espiritualidade. Tal natureza procede de
mecanismos que se aproximam da linguagem do indizível, de uma mística, presente na
condição humana. As vias de encontro entre dança e transcendência; dança e espiritualidade,
sugere incluir sensibilidade e intuição, para que a linguagem do corpo continue sendo capaz
de dialogar com o mais íntimo do ser, assim exprimindo algo que escapa ao racionalismo. A
autora Cecília Meirelles, comenta sobre o papel da intuição na experiência dos artistas, “[...] a
harmonia rítmica que repousa no fundamento do Universo, e que só o olhar do artista é capaz
de surpreender e a sua intuição traduzir pela arte” (MEIRELLES, apud, MICHAILOWSKY,
1960, p. 11).
Não sendo a sensibilidade e a intuição uma condição mágica, ou um evento
fantástico realizado pelo individuo, são atribuições da humanidade do ser que tranzita ou
possui uma capacidade inata de captar determinadas nuanças da existência. Fator este que
potencializa a vontade de buscar conhecer-se e aprofundar-se espiritualmente entre os que
dançam. Um corpo e um coração frios não terão capacidade de prover um movimento
carregado de sentido. É preciso um pouco mais do que a técnica fria e cartesiana embora
alcançando a “perfeição” dos movimentos para se chegar à totalidade do ser.
O movimento dançante, vivido pelo ser na contemporaneidade precisa superar
algumas armadilhas próprias desse tempo, para que a dança continue possibilitando o
desenvolvimento da transcendência e culminando numa vida norteada pela espiritualidade. As
dimensões abstratas ganham formas através da dança, as experiências vividas por quem
dança, são feitas por unir transcendência, sensibilidade, intuição e espiritualidade,
estabelecendo conexões entre o ser social e a sua dimensão etérea.
50
2.3 Algumas percepções a partir dos depoimentos dos artistas pernambucanos sobre
transcendência e a espiritualidade
Tratemos aqui da possibilidade de quando tais atividades – o dançar, o
transcender e a espiritualidade – contribuem de modo favorável nesse processo de busca por
sentido existencial. Ao encontrarmos a figura humana motivada e entusiasmada pela vida,
utilizando a sua capacidade transcendente e espiritual para resignificar o sentido das coisas.
Supostamente o modo de olhar o mundo a que faz parte e a sensibilidade com a qual se
procura compreender o ato de existir, perpassa toda a construção de sua biografia que irá
inevitavelmente repercutir, em algum nível na coletividade. A forma de ver e compreender o
mundo quando relacionadas à sensibilidade, encontram nas artes e nas religiões um espaço
significativo para que se amplie tal virtude. Desse modo, o dançar, o transcender e o
exteriorizar a espiritualidade, poderão acontecer por meio de atitudes intransferíveis ou
resultantes de sensibilidade.
O ser humano que, apesar das adversidades da vida – misérias de toda
natureza, violência, desigualdade social – não perdeu a sua capacidade de lançar-se para além
do que ver, e ao mesmo tempo, encontra nos acontecimentos do seu quotidiano, elementos
essenciais que lhe servem como dispositivo para o seu ato transcendente, criativo e
transformador. Sem manter um olhar sensível direcionado à vida – seja a sua própria vida e as
demais formas de vida circundantes – o ser humano não poderia prover de sentido o seu gesto
de transcender e dançar ou de dançar para transcender. Também reside aqui um confronto
permanente com a condição de vida do seu tempo histórico, os momentos de transcendência
não se dão de forma aleatória, o corpo que dança ao mesmo tempo em que poderá encontrar o
caminho da espiritualidade no seu eu interior, também exterioriza essa espiritualidade – que
na contemporaneidade, devido os seus contornos culturais e subjetivos, podem ser
identificados apenas como fragmentos de uma espiritualidade, e em outros casos poderão ser
demonstrados por uma espiritualidade mais profunda – é um corpo que se encontra engajado,
num primeiro nível engajado em si mesmo, corpo, consciência e espírito e num segundo
nível, engajado na vida exterior, ao conjunto social de relações e com a cultura em geral.
Nos trabalhos realizados por esses artistas entrevistados faz-se perceber, que à
dança acontece dentro ou relacionada a um processo em cadeia, que vai desde o trabalho
permanente, de alguns profissionais, com as crianças e adolescentes, até outros com trabalhos
51
direcionados ao público adulto de cunho filosófico, cultural e ou social com projeções
internacionais.
Entre os artistas, durante cada percurso desenvolvido das inúmeras etapas que
abrange um trabalho de dança, seja a condução das aulas, bem como a transmissão das
coreografias, o contato direto com a música e a concentração nos exercícios, favorecem
momentos de transcendência. No dia-a-dia, ao ministrar as aulas, eles vão percebendo-se
dentro de uma dinâmica transcendente e, em alguns casos, a sensibilidade e o que estão
trazendo como reflexão naquele momento, contribui para que tal experiência aconteça.
Existe uma busca existencial permanente, além dos questionamentos sociais e
as diversas tentativas de conscientizar, ou pelo menos trazer a reflexão aos indivíduos sobre o
seu tempo presente, incluindo em tal reflexão os valores humanos, os ideais, as utopias e o
tudo que o direcione ao sentido verdadeiro da existência. É como se existisse um pano de
fundo na personalidade desses artistas que os fazem sentir uma necessidade em mostrar aos
outros o verdadeiro valor e sentido de estarmos aqui, neste mundo.
Ao longo das entrevistas, os elementos em torno da experiência com a dança
foram criando as possibilidades de aprofundamento da temática. Na conversa que fluiu com
alguns artistas, uma delas muito interessante, deu-se quando foi perguntado “em algum
momento existiu uma apresentação onde você se sentiu arrebatado?”. As experiências foram
excepcionais, por um nível de entrelaçamento entre transcendência, espiritualidade e mística.
Entre eles, ocorreram momentos extraordinários ao sentir-se extrapolando a lógica
convencional da realidade, caracterizando-se algumas situações da seguinte forma: não sentiu
o tempo passar; considerou-se conduzido por algo; ou na presença de alguém; de sentir-se
levitar; visualizado, esbarrado ou ter cumprimentado pessoas que não estavam em cena;
êxtase de sentimento; momento de emoção intensa; de choro e de um prazer incomum. Em
algumas experiências entre os artistas na dança popular o relato de si e ter presenciado
inúmeros bailarinos incorporando ao longo das apresentações.
Entre alguns artistas entrevistados foi declarado que a dança não se faz mais
cada uma em seu compartimento. As transformações culturais na contemporaneidade também
chegaram até a arte do movimento, em alguns momentos históricos os movimentos de
transformação acontecem como vanguarda nas artes. Logo após a Segunda Guerra Mundial, a
dança passou a se permitir significativas transformações (GARAUDY, 1980) e nos dias de
hoje o aspecto de permitir-se transformar continua presente, agora com um viés dialogal entre
52
as inúmeras linguagens do corpo, um movimento entre estilos de dança que cada vez atualiza
e amplia as percepções do ser humano com seu tempo.
Nos relatos, a partir de como foi optar pela dança, houve de início uma rejeição
em praticamente todas as famílias dos entrevistados. De um modo geral, por ser uma
profissão que não inspirava aos pais segurança quanto ao futuro e o seu próprio sustento e, no
caso dos bailarinos, a questão do machismo, que, infelizmente, inibe até os dias de hoje tantos
talentos masculinos despontarem no mundo da dança. Outro aspecto em relação a esse contato
inicial com a dança foi que, uma parte dos entrevistados, diz ter sido escolhido pela dança, a
partir do momento em que se aproximaram e viram o talento desenvolver; outra parte dos
entrevistados, foi sendo atraída pelo que via da dança e, de repente, já estavam imersos nesse
universo.
Os artistas da dança colocam-se como “janelas” à frente do seu tempo e cada
vez mais se amplia, entre eles, a necessidade de sempre buscar um novo trabalho que envolva
o maior número de consciências em favor de questões inadiáveis para a vida humana. E
realiza as suas atividades porque “[...] está em jogo a sua vocação, sua missão no mundo;
porque sente que deve fazê-las e porque fazê-las, sente-se plenamente realizado”
(TORRALBA, 2013, p. 146).
No mundo da dança, que lida diretamente com as sensações, emoções e
sentimentos de si e dos outros envolvidos, desde quem está mais próximo na equipe daquele
trabalho, bem como a plateia tanto a considerada fixa (que já acompanha os trabalhos dos
artistas), como a plateia considerada eventual, é possível criar meios para se construir
reflexões em torno de questões sociais, políticas, relacionais, psíquicas, explorando de forma
lúdica e poética, permitindo a possibilidade de se rever opiniões, às vezes construídas, sem
uma autocrítica necessária. Não existe um artista mais importante, dentro desse processo,
todos se lançam em direção ao corpo, à consciência, e a espiritualidade de si mesmo e dos
outros. Este outro que aprende, também ensina, e essa experiência se reflete no seu ser social,
ampliando as possibilidades de um melhoramento na convivência tanto por aspectos de
cidadania como de espiritualidade.
2.3.1 Os caminhos da transcendência entre os artistas pernambucanos
O mérito de fazer dança, de ser um corpo que dança dar-se por está em contato direto
com uma série de fatores, que o aproxima da dimensão transcendente, sua arte como proposta
53
que permanece em diálogo com o novo, o seu campo de atuação, o próprio espaço em que se
dá o trabalho propriamente dito que está em contato diário com a musicalidade, com a poesia,
com as suas intenções enquanto artista por manter um canal aberto e sensível ao cotidiano e
ao fluxo do universo.
Isso não isenta todo o esforço que deve ser feito pelo artista para se alcançar níveis
satisfatórios de transcendência e consequentemente revelar-se em seu movimento dançado.
De acordo com os entrevistados, essa construção é feita com muito trabalho, lapidar uma
ideia, reconstruir uma linguagem para um movimento novo, não surgem sem o sacrifício, sem
a entrega, sem a pesquisa para que a obra aconteça. Para compreender o processo de
construção do trabalho dos artistas foi realizada a seguinte pergunta: “O que é possível sugerir
como fonte de inspiração para a construção das coreografias e espetáculos?” (APÊNDICE A).
A inspiração que pode se tornar um ponto de partida para a construção de uma obra de arte,
ganha contornos através dos mecanismos de transcendência. A partir de algo que inspira o
artista, ele transcende e “transcender consiste em ir além, cruzar fronteira” (TORRALBA,
2013, p. 86).
De acordo com o artista Ivaldo Mendonça, o retorno, as origens do movimento
contribuem para se compreender e criar o movimento novo:
Eu sempre tento estudar a dança da forma mais arcaica possível, sempre busco ir lá atrás, no começo, para entender o corpo, entender o ritmo, para depois sair do ritmo. Entender o tempo, para depois sair do tempo. E aí eu acho que essas pessoas que começam a dançar hoje, eu acho que elas se fixam tanto na contemporaneidade do que é dança que elas esquecem que antes dessa contemporaneidade existem vários outros fatores que, mesmo que você não os utilize eles te dão um norte incrível para qualquer outra coisa que você faça.
A música é um importante mecanismo no processo de aquisição da
sensibilidade fazendo emergir canais criativos por meio da escuta dedicada e atenta
favorecendo a transcendência para a conclusão dos trabalhos coreográficos. De acordo com
Torralba, “a música possui uma capacidade especial para ativar a inteligência espiritual”
(2013, p. 195). O autor também afirma que “a escuta atenta da música afeta os níveis mais
profundos do ser” (Ibidem). A música por sua sonoridade e harmonia, possibilita a
concentração e permite que o indivíduo transcenda ao mundo imaginário e seja capaz traduzir
em movimento tudo aquilo que está escutando.
Sobre esta experiência com a música, a artista Polyana Moura assim se
expressa:
54
[...] eu mergulho no universo de música, se eu pudesse eu andava com um fone para todos os lugares. Eu não canso de escutar, escutando, aparece tudo, aparece até coreografia, primeiro, ela vem na minha cabeça e depois eu coloco como movimentação para as meninas, mas vem tudo, é como se eu sentisse tudo.
A música por ser uma arte abstrata e por sintetizar emoções e sentimentos, tem
o poder de possibilitar vias de transcendência. Tal recurso a partir da música poderá, em
conformidade com Torralba (2013), fazer o ser ir além da experiência de transcendência. O poder específico da música consiste em expressar sensações, situações de alegria e de dor. Somos transportados pela música, mas não sabemos até onde. Ela canaliza o movimento de transcendência, mas também o sentido de comunhão com o todo (TORRALBA, 2013, p. 196).
A influência musical da família contribuiu para que a artista Fátima Guimarães
começasse a associar a musicalidade ao movimento, o que a permitiu ter desde cedo o
encontro com a sua arte. A artista afirmou que:
[...] A cultura musical da minha casa era muito boa, porque, eu tive os pais que tinham vivido a Segunda Guerra Mundial, e tem um histórico musical muito grande ligado a isso aí. [...] algumas montagens são feitas com essas músicas, que estão tão inseridas em mim até hoje, eu sei cada compasso delas, aí nisso daí, eu vejo desde lá da minha infância, de que naquele momento que eu tava ali, quieta escutando, eu poderia até ta fazendo alguma coisa, mas eu tava ali com a música, eu via uma forma de transcendência, muito bonita, e eu levei para o resto da minha vida e isso está em mim até hoje, isso pra mim já por si só, talvez seja uma característica, quando eu faço uma coreografia, com uma determinada música que acontece essa magia, sei lá o quê, que é uma coisa maravilhosa.
A música também foi considerada fundamental para a construção crítica sobre
aspectos políticos e sociais e o seu processo de criação coreográfica que inclui a
transcendência, para Lúcia Helena D’Ângelo as músicas que escutava referentes ao período
da Ditadura Militar, por exemplo, permitiu que a mesma compreendesse melhor esse
momento histórico e aguçasse a sua sensibilidade, chegando a coreografar como forma de
protesto diante dos abusos cometidos nessa época. De acordo com a coreógrafa:
[...] As canções da época da ditadura militar trazem músicas lindas, tiradas da dor daqueles que participaram daquele momento tão triste, do nosso Brasil, a emoção, a sensibilidade desses compositores, que fizeram parte dessa época eles mostraram através de suas músicas, o quanto eles amavam a nossa terra, o quanto eles amavam o nosso Brasil. Essa passagem de canções do exílio “vem vamos embora que esperar não saber, quem sabe faz à hora...” Eu acho que politicamente eu não vou dizer a você que eu fui uma ativista, mas através da dança eu demonstrei e procurei demonstrar o meu descontentamento.
55
A relação entre música e dança pode ser comparada com um casamento bem
sucedido, a dança alcança momentos de rara beleza quando conduzida por uma música que
por si só já expressa uma grande carga de sentimentos. Sobre esta relação entre a música e a
dança, a coreógrafa Lúcia Helena, afirma que “já aconteceu, eu idealizo uma coreografia e
fico pesquisando uma música que seja capaz de dar vida aquele movimento.” Outra situação,
sobre a relação música e dança que ocorre na experiência de Lúcia Helena D’Ângelo, a artista
revela que: “Quando gosto muito de uma música faço sequências em excesso, quando menos
espero a música já terminou.” E completa: “Quando estou coreografando, uma bailarina ou
um bailarino permanecem comigo, para memorizar as sequencias, do contrário não consigo
repetir exatamente com aquela vez, não lembro mais.”
O encontro entre dança, música, transcendência e espiritualidade são difíceis de
delimitar. Isso porque a própria música se apresenta com o poder de levar o ser para além da
realidade. Para Torralba (2013): “A música tem o poder de transportar, de afastar o ser
humano de sua realidade cotidiana, de seu mundo circundante, para levá-lo a um território
enigmático, desconhecido, sem limites, sem fronteiras” (p. 196). O autor acrescenta que este
contato com a música pode ser considerado um exercício espiritual, ao afirmar que:
Ali se perde a si mesmo, se transcende, distancia-se de tudo o que existe, experimenta a superação da dualidade e sente que pertence ao Todo. Por tudo isso, a audição musical pode ser considerada um exercício espiritual (Ibidem).
Para conhecer como possivelmente ocorrem os níveis de transcendência na
experiência dos artistas, foi perguntado “É possível identificar em seu trabalho algum tipo de
relação com a transcendência ou com o mistério da vida?” (APÊNDICE A). Situando esta
experiência de transcendência, “Para além do significado religioso da palavra transcendência
[...], pois todo ser humano aspira superar os limites, [...] a introduzir-se em um campo
desconhecido” (TORRALBA, 2013, p. 87). “Transcender é uma atividade que se pode aplicar
em distintos âmbitos” (Ibidem). De acordo com Torralba, “Transcender significa, [...]
despojar-se do banal, do previsível, do contingente e necessário, para penetrar no essencial”
(2013, p. 88).
Nesse sentido, o ato de transcender do artista poderá construir um processo em
cadeia que vai ampliando a partir do seu núcleo de transcendência envolvendo os outros,
grupo e plateia vão sendo incluídos neste ciclo. Como relata Maria de Fátima Guimarães:
56
Então, quando se fala a palavra transcendência pra mim, eu também costumo ampliá-la, porque eu quero, quando eu estou ali, dentro da sala eu já me sinto em processo de transcendência. Para mim é um processo que é muito único, e você não pode explicar, você não consegue explicar, envolve muitas coisas, é sentimento, é amor, ódio, sufoco, nossa, tantas coisas, e você chegar até aquele outro ser que não é você, e você ser claro, pra ele entenda, o que dali você quer mostrar, para um, outro ser, entendeu, isso para mim já é um movimento bem interessante de transcendência. Como se fosse um ciclo, eu transcendo de uma forma a chegar a essa pessoa, essa pessoa tenta encontrar o caminho que eu estou buscando pra que ela também entre nesse ciclo de transcender, que vai levar esse movimento para uma plateia e envolver esta plateia, pra sentir essa transcendência junto com a gente aí se torna uma cadeia.
Uma das formas de perceber os níveis ou momentos de transcendência no
trabalho da artista Lúcia Helena D’Ângelo se dar quando o seu grupo está em cena, ao
corporificarem a sua criação coreográfica, para ela este momento não é apenas a técnica que
encanta, ali reside um jogo de emoções e sentimentos que invade o coração e provavelmente
aos que assistem e que se torna um momento único de transcendência.
[...] eu adoro quando eu sinto os meus bailarinos no palco fazendo aquele trabalho que eu fiz com tanto amor, com tanto carinho, e fazendo exatamente aquilo que eu estou sentindo no momento, eles estão envolvidos e envolvem a plateia. É lindo, transcende... Então tudo isso é muito mágico, isso não tem preço, é uma arte que só nos realiza, quem é coreógrafo, como você sabe o prazer que isso dar.
Na percepção do bailarino e coreógrafo Alexandre Macedo, a dinâmica de
transcendência é em alguns momentos simultânea e acontece de diferentes formas, ora
diretamente quando está em cena dançando, ou quando prepara as pessoas para estarem em
cena. Colocando como reflexão que o estar em cena quando não é meramente exibicionismo
provoca nas pessoas que dançam instantes significativos de transcendência, tornando a dança
algo sagrado, a experiência do artista revela para que se alcance a transcendência é
indispensável à superação do ego. Referindo-se a superação do ego, Torralba (2013) afirma
que “Ao transcender, a pessoa deseja ser o que ainda não é aspira a superar as barreiras do ego
para encontrara-se com os outros e consigo mesmo em um plano mais profundo” (p. 93). Em
consonância com o que afirma o autor, sobre a transcendência o coreógrafo Alexandre
Macedo diz:
O meu trabalho em mim, ele me transporta, transcende, criar um espetáculo, estar em cena, ou colocar outras pessoas em cena, eu acho que me transcende, me leva a outro local, e durante a própria execução mesmo, se eu estiver dançando, ou se os meus bailarinos tiverem dançando, eles sentem essa transcendência, há essa transferência de um local para o outro, eu até
57
acredito, como a dança sendo sagrada, é o sagrado da dança, é você está executando uma coreografia, que não seja puramente pela exibição, mas, cuja, a intenção seja transformar, tocar a plateia, uma dança mais social, e não o movimento pelo movimento, eu acredito que há a transcendência. A transcendência do criador, do interprete, e a transcendência que ultrapassa essa quarta barreira, atingindo também a plateia, eu acho que a plateia também transcende.
Referindo-se a experiência de transcendência no universo das artes, a artista
Ana Miranda identifica que através da dança popular, a experiência de transcendência
acontece de forma direta e com bastante frequência, sendo um dos motivos à possibilidade de
retorno as origens, aos antepassados. De acordo com Torralba (2013) “O símbolo é sempre
um significado que transcende o objeto [...]” (p. 141). “O símbolo [...] faz a pessoa voar para
além de seu ambiente, de sua localização histórica e cultural” (p. 142). A simbologia presente
na dança popular contribui para que a artista Ana Miranda realize a sua experiência de
transcendência. Assim a coreógrafa se expressa:
Quem trabalha com arte sempre passa por isso, uns mais fortes, outros menos. Na dança eu acho fortíssimo, e dança popular mais ainda, porque toda ela tem uma história de religiosidade por trás, [...] sempre tem, eu acho muito forte a transcendência na dança popular, e ela se você se deixar levar, você volta (origens, antepassados), busca naquele momento, aí você entende quem você é. De onde você veio. Você é quem você é agora, mas tem um passado aí, de coisas que você se identifica.
Na experiência do bailarino e coreógrafo Dielson Pessoa, a prática da dança vai
o envolvendo fazendo-o sentir-se num estado de leveza e que o aproxima de forças interiores
até deixá-lo em sintonia com o seu movimento transcendente, ao qual reconhece que é
misterioso. O reconhecimento do misterioso para Torralba (2013), “em sentido escrito, é o
que está oculto, o que não se percebe com os sentidos, nem se esclarece com a razão
científica” (p. 117), é preciso diante da realidade “senti-la profundamente a ponto de chegar
perceber o fascinante mistério que a habita” (p. 121). Desse modo, para Dielson Pessoa:
[...] quando eu danço eu sinto coisas muito boas, eu me sinto poderoso, eu me sinto mais próximo das forças mais primitivas do universo e isso para mim é muito bom essa proximidade com as forças mais instintivas, mais profundas. Eu não preciso explicar nada, simplesmente eu sinto e eu sinto de maneira muito pura, então quando eu estou dançando eu, eu tenho uma história mais chega um momento que a gente esquece a história, a gente se conecta com um fluxo de energia que só nos possibilita prazer e isso é muito misterioso.
As experiências de transcendência por meio da dança na contemporaneidade
permitem conduzir os artistas a uma prática de espiritualidade que permeia todo o seu ato
criador e relacional. É possível perceber que uma dimensão favorece a outra. As experiências
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de transcendência para este público faz despontar uma espiritualidade aberta que acompanha
as mudanças do tempo, favorecendo a aquisição de uma consciência crítica que incluem a
estética, a política e o meio social. Nas trajetórias da dança apresentadas pelos artistas
pernambucanos no que se refere à pergunta sobre transcendência foi possível perceber os
contornos que tal dimensão os oferece no exercício de sua profissão. Na dinâmica
permanente entre criar, pensar o mundo e sentir, provoca nesse movimento um
entrelaçamento com a transcendência e como será visto na próxima etapa desse trabalho, tal
entrelaçamento possibilitando o ser enquanto artista produzir fragmentos de espiritualidade.
2.3.2 Os fragmentos de espiritualidade entre os artistas pernambucanos
Os construtores da linguagem do movimento, arte que flui na imanência e na
transcendência, produzem, seguramente, inúmeras vias para transpor sua espiritualidade e
torná-la presente no exercício de sua profissão. Para que fosse possível conhecer uma
espiritualidade integrada ao trabalho e a vida dos artistas, foram apresentadas duas perguntas:
“O que lhe mantém na dança?” e “Os seus trabalhos traduzem, em algum nível, elementos de
religiosidade e espiritualidade?” (APÊNDICE A). As perguntas refletem a tentativa de
apontar a presença da religiosidade enquanto “uma experiência que emana do mais profundo
do ser” (TORRALBA, 2013, p. 152) e de uma espiritualidade capaz de “[...] atingir os
significados profundos, considerar os fins da existência e suas mais elevadas motivações”
(TORRALBA, 2013, p. 38).
Uma das formas de compreensão e prática da espiritualidade entre os artistas
ocorreu através do sentimento de amor que possuem pela dança, tal sentimento fortalece a
permanência dos mesmos nesse campo de atuação e contribui para que se atinjam níveis de
realização pessoal. O amor como extensão da espiritualidade, como uma das formas de
transpor a atividade advinda do espírito. “A inteligência espiritual nos faculta a amar para
além do instinto possessivo” (TORRALBA, 2013, p. 45).
A forma de sentir e praticar este amor através da dança faz com que a artista Maria
de Fátima Guimarães encontre em alguns momentos a sua totalidade. A percepção de sentido
que a vida vai elaborando a partir das experiências em torno da dança, tendo como motivação
fundamental o sentimento de amor. A coreógrafa afirma:
[...] o que me impulsiona a isso que eu faço é única e exclusivamente o amor que eu tenho pelo que eu faço. Como também, isso daí se depara com um momento muito grande, quando eu dançava, ou como no ano passado eu
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dancei, ou quando eu demonstro um exercício, pro meu aluno, eu nem sei te dizer o que é que eu sinto, eu sou eu na minha totalidade, entende só e somente eu, espero que de alguma forma esteja contribuindo para as pessoas, como a dança contribui comigo, pra tudo que faço na minha vida.
O profundo sentimento que Fátima Guimarães descreve ao falar sobre como a dança
contribui em inúmeros aspectos de sua vida, a artista aproxima tal sentimento como uma
forma de religião.
Isso daí de alguma forma se torna religião, não uma coisa imposta, mas uma coisa que aconteça naturalmente, pra que elas, para que em algum momento da vida delas, deles e delas, experimentarem o que eu experimento a cada exercício que eu mostro. Esse prazer, essa paz é tanta coisa que eu sinto quando eu estou dançando, é isso.
Para Lúcia Helena D’Ângelo a origem da arte está em Deus, certa vez em um
dos seus espetáculos escreveu que Deus é “o grande artista do universo”, e a partir dessa ideia
desencadeou coreografias que expressavam o sentimento de amor e de como a dança pode
deixar a pessoa mais perto de Deus. Essa noção de Deus relacionada ao amor presente em seu
trabalho faz com a sua dança encontre sentido. A dimensão de religiosidade e espiritualidade
poderá em conformidade com Torralba (2013), aproximar o ser humano ao Ser superior.
“Podemos chamar Deus ao sentido da vida, isto é, o sentido do mundo” (WITTEGENSTEIN,
apud TORRALBA, 2013, p. 154).
A artista Lúcia Helena, que atua profissionalmente à quase cinquenta anos,
revela com clareza e sabedoria a relação permanente entre o seu trabalho e a dimensão
espiritual.
[...] Porque a arte vem d’Ele, vem de Deus. [...] Exatamente o amor [...] a dança ela é uma oração, sussurrada pelo corpo, e nos deixa mais próxima de Deus do que imaginamos. [...] a parte espiritual mais forte, é que eu sinto todo aquele carinho, aquela força que vem do público pra mim e talvez eu retribua com o trabalho coreográfico.
Na experiência de Lúcia D’Ângelo, a espiritualidade se faz presente – além do
reconhecimento da dimensão espiritual está vinculada a Deus – também ocorre por meio das
relações interpessoais permeadas pelo amor. Apontando o entrelaçamento entre amor, religião
e outros sentimentos, que para ela se tornam uma coisa só. Em concordância com a
experiência de Bernhard Wosien como bailarino e coreógrafo que percebeu na dança uma
forma de acesso ao religioso (WOSIEN, 2006). O autor também afirmou que o trabalho do
bailarino reflete a partir do seu interior a imagem perfeita de Deus (WOSIEN, 2006). Nesse
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sentido, a coreógrafa Lúcia Helena D’Ângelo identificou esse acesso ao religioso e a estreita
relação entre a dança e a espiritualidade, afirmando que:
[...] a dança ela tem uma relação muito grande com a espiritualidade, através da dança você consegue passar uma energia, uma formação para os seus alunos, de sentimentos muito altos, muito bons. Não consigo fazer um trabalho voltado pra alguma coisa que não seja positiva, e que não seja carregado de amor, eu acho que amor, religião, sentimento se tornam uma coisa só.
O artista Julcélio Nóbrega recorda o quanto a dança foi tornando-se capaz de
prover a sua vida de sentido. Para ele é fundamental que cada pessoa tenha condições de
descobrir esse sentido e que assim possa contribuir de alguma forma na sociedade a que
pertence, buscando na vida algo mais além do que o bem material, e essa busca pode fazer
com que a pessoa encontre o seu propósito na vida. “Quando alguém vive identificado com
sua missão, experimenta o entusiasmo para viver” (TORRALBA, 2013, p. 145). “Cada ser
humano é chamado a dotar sua existência de sentido [...]” (Ibidem, p. 68). “O ser humano em
virtude de sua inteligência espiritual, é capaz de interrogar-se pelo sentido de sua existência”
(Ibidem, p. 67). Encontramos nas contribuições de Torralba, uma relação com a experiência
do coreógrafo Julcélio Nóbrega, que assim se expressa:
A minha vida tem sentido, por que eu sei que eu posso contribuir para meu Estado, para o meu País, eu posso contribuir qualitativamente para o desenvolvimento da dança. Aí você ver sentido na sua vida! Como um político ver sentido na vida dele em contribuir para o crescimento do País em questões econômicas, políticas... Cada um tem que ver sentido na sua vida. Ninguém está aqui por acaso, só de passagem, só para ter um trabalho, emprego, ganhar um dinheiro. Não! Acho que você tem uma missão. Você tem que ter um propósito de vida, uma missão nessa existência, para contribuir com alguma coisa. No meu caso, contribuir para dança, contribuir para as questões artísticas.
O bailarino e coreógrafo Julcélio Nóbrega, revela que o amor que sente pelo o
que faz permitiu que ele tivesse a oportunidade de criar relações sinceras de amizade, que
foram determinantes em sua trajetória, sempre quando algo não estava bem à dança exercia a
função reverter tais momentos, trazendo-lhe leveza e coisas boas. Nesse sentido o artista
aproxima a dança ao amor e de sua crença religiosa. “[...] a busca e o encontro do sentido têm
no amor sua melhor expressão” (SANTIAGO, 2012, p. 283). O amor revela-se como o mais
alto valor da vida (BOFF, 1999).
O amor e a paixão que eu sinto, assim, pela dança, não tem explicação não. E como você já disse, senão, numa crise dessa eu já tinha jogado tudo pra cima eu já tinha ido fazer outra coisa. O amor pela arte, amor por essa forma de comunicação, amor pelo o que a dança já me deu. A dança me deu muita
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coisa e meu deu muita coisa boa e não estou só falando de bem material não, estou falando de pessoas que entraram na minha vida, a situação que eu estou hoje, as pessoas que eu conheço o círculo social que eu frequento de pessoas boas, de pessoas amigas, de pessoas companheiras e isso foi muita coisa, foi à dança que me deu. A dança ela salva a vida, a dança é quase como um Cristo na minha vida, como um Deus. Eu acho que ela salva. Se você está mal, péssimo, eu vou à dança, pronto, esqueço tudo, tá tudo bem!
No depoimento da artista Polyana Moura, é destacada a intensidade com a qual
ela sente amor por tudo que se refere ao mundo da dança. O ato de fazer a dança, ensinar
alguém a dançar e o de ler, estudar sobre dança, todos esses aspectos fizeram com que ela
percebesse que se não se vê no sentido profissional fazendo outra coisa.
Completamente o amor, unicamente o amor, nada mais que o amor, é a única coisa que me mantém na dança, chama-se amor, por tudo, por tudo amor. Quando eu falo em amor a tudo da dança, eu amo fazer desse mundo, eu amo ser parte disso, eu amo contribuir para que isso exista, eu amo ensinar isso para alguém, eu amo aprender um pouco mais sobre aquilo, eu amo as informações, as apresentações, as músicas, as coisas que já fizeram... Amo ler, estudar, fazer, amo tudo, amo mesmo... É única coisa que eu chego e faço, eu não sei explicar isso, é como se a gente respirasse isso. [...] Amo fazer parte disso, eu falar que sou parte disso, eu ser isso.
A forma como o artista Alexandre Macedo compreende a dança relacionada à
espiritualidade, dar-se a partir do sentir-se melhor como pessoa e por relacionar-se com o
outro, e neste encontro, acontece à possibilidade de transformar este outro e transformar-se
também, pois o artista afirma que sua dança é social. O sentido de propor e identificar-se com
um trabalho voltado para a transformação das pessoas é algo que o realiza, apontando nessas
experiências uma dinâmica que inclui a transcendência e a espiritualidade. Ao comentar como
Kathleen Noble reflete sobre a inteligência espiritual, Torralba (2013) afirma que “[...] Como
outros autores, ela destaca a capacidade que tem a inteligência espiritual para transcender o
ego e abrir-se aos outros [...]” (p. 40). E acrescenta que “a inteligência espiritual nos faz mais
abertos e permeáveis capazes de conectarmo-nos profundamente com os outros” (Ibidem).
Essa abertura ao outro, oriunda da espiritualidade, converge na experiência do coreógrafo
Alexandre Macedo:
Vejo sim e acho que é o mais interessante, muita gente começa a fazer dança, ou faz dança até hoje, por pura exibição, então eu danço para me sentir melhor como pessoa, para me sentir melhor fisicamente, para me sentir melhor com o outro, é essa busca pela minha dança, é muito por aí, por isso que eu falo que a minha dança, é muito social, é transformadora nesse sentido, de não ser meramente exibicionismo, ou em busca de aplausos, ou de grana. Ela é social, é transformadora, a transcendência da dança está aí.
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Alexandre Macedo encontra na dança um modo de viver que é para ele uma
forma de religião, destacando, sobretudo, a dedicação e a relação que se mantém com o
próximo. O artista nesse exercício diário de dedicação diz vivenciar através da arte a imagem
e semelhança de Deus, de Jesus. A imagem de Deus sendo revelada através do bailarino como
expressou Wosien (2006), também aparece de um modo significativo na dança de Alexandre
Macedo quando disse que:
[...] Sempre, inclusive de levar a minha dança como religião, religião no sentido de religação mesmo, de está ligado ao divino, como até a coisa do divino mesmo, de estar junto do próximo, de transformar o próximo, de deixar o próximo melhor... O bailarino, a plateia, eu mesmo, dançar pra mim é muito isso, não sei se seria muito forte dizer isso, mas ser como Deus, como Jesus mesmo ser a sua imagem e semelhança, só que no campo da arte, de usar essa coisa da arte pra fazer e de ser como o outro, de ajudar as pessoas, de me ajudar, de transformar, é muito por aí, minha dança é essa.
Na compreensão da artista Maria Paula Costa Rego, a sua experiência com a
dança a faz sentir-se praticando aspectos que são próprios da religião, a tal ponto de
considerar que a sua forma dedicação e entrega à arte do movimento, permite que a dança
assuma o lugar da religião.
[...] eu sou cristã, eu acho que a dança fica no lugar do ritual, é através da dança que eu tenho minhas relações de trabalho, relação de pessoas, é através da dança que eu faço o bem, é através da dança que eu respeito, o meu lugar, as pessoas, as pessoas antigas, o que as pessoas têm pra me contar, eu faço da minha dança, o veiculo pra me tornar uma pessoa do bem, é com certeza que através dela eu me torno uma pessoa lhe dando eternamente com a minha função na Terra.
Maria Paula esclarece que a dança lhe permitiu perceber que existe uma
interligação entre o ser artista, a sua obra e o universo. Por este motivo de está em conexão
com o universo, o artista busca elaborar respostas lúcidas através de sua arte, de maneira
essencialmente humana. A experiência que se faz enquanto artista de mergulhar numa
dimensão abstrata e de se alcançar algumas percepções sobre a ligação que há entre o ser
humano e o universo a que ele pertence, não é uma ficção, ou uma fantasia, é uma resposta
humana por meio da arte. “O desenvolvimento da inteligência espiritual permite tomar
consciência da íntima relação de tudo com tudo” (TORRALBA, 2013, p. 130). A bailarina e
coreógrafa Maria Paula, confirma em sua experiência o que Torralba (2013) aponta sobre o
sentido de pertença ao Todo. “Quem cultiva a inteligência espiritual é capaz de sentir-se
membro do grande Todo, estreitamente unido a qualquer entidade física, biológica, vegetal ou
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irracional” (Ibidem, p. 131). Sobre tal relação com o universo como fruto da espiritualidade
Maria Paula afirma:
[...] você, tem hora, que você se mistura ao átomo, a obra se mistura ao átomo, e a gente, o artista simplesmente e a obra simplesmente é. A obra se mistura ao artista, a obra e o autor, e o universo são uma coisa única, isso é muito raro, assim eu pelo menos estou eternamente buscando esse momento, é raro acontecer, acontece, mas ele tem que ser de uma grande lucidez e são artistas muito lúcidos. “Ele dar um salto para além, com os pés fixados na realidade” mais ele tem uma resposta a dar de maneira humana, a arte (resposta humana através da arte).
Ana Miranda destaca que o envolvimento com a dança contribui para ela
busque se entender melhor, e essa busca por entender-se a faz aproximar-se do dizem as
religiões a respeito do sentido da vida. A artista identifica-se inteiramente com a dança
popular por trazer inúmeros aspectos de religiões e tradições diferentes. Apontando como,
encontra-se, imbricada a relação entre o sagrado e profano. Na atividade de Ana Miranda ela
percebe o acesso ao religioso através da dança (WOSIEN, 206).
[...] que ela ajuda a acreditar, então a dança ela te faz, te entender melhor, e nesse se entender melhor você vai buscar à sua religiosidade ou as suas, porque eu sou muito é de várias, o que não me faz mal me fortalece. Buscar dentro das religiões, das diversas religiões que a gente vai ver, que vai expressar, a sua tranquilidade, o pedir, o orar, o rezar, o bater o bombo, o que seja que você vai estar, mais que aí vai te encaminhar. Traduz, dentro, eu não gosto de fazer apologia a nenhuma religião, mas dentro do trabalho da dança popular, está inserido todos os tipos de religião, a gente vive o carnaval essa fanfarra mas o carnaval é uma festa cristã, e as pessoas que estão dentro do trabalho elas precisam entender o que há de cristão ali, e que o é que tem de profano, e porque tem de profano. Até que ponto o profano não está misturado, casado, e andando lado a lado com o cristão com o religioso?
Ana Miranda acrescenta que conviver com crenças diferentes em seu trabalho é
algo muito comum, e que a dança popular por já ter uma raiz religiosa favorece a aceitação de
credos diferentes. Ao citar o exemplo da Escola de Frevo do Recife, da qual é atualmente
diretora, afirma o quanto se faz necessário o respeito pela crença do outro e que não há uma
religião especifica predominando, o que é priorizado entre os membros da escola são as
atitudes de espiritualidade comum a todos. “O que fica mesmo são momentos, atitudes de
espiritualidade, pois a espiritualidade circula mais fácil, do que uma religiosidade bem
definida”, afirma a artista.
Para Dielson Pessoa a sua forma de viver a arte encontra-se totalmente voltada
a Deus, o que o permite de forma consciente exercitar a sua espiritualidade através da dança,
tal exercício acontece no nível individual, ele e Deus, e no nível coletivo com as pessoas que
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convive diretamente, e um coletivo mais amplo que abrange a sociedade, a humanidade como
um todo. Fazendo o artista perceber que essa prática ocorre impulsionada pelo amor,
sentimento que para ele é a melhor definição de espiritualidade. O amor como melhor
definição para se compreender a espiritualidade, encontra sentido quando recordamos uma
afirmação de Teilhard Chardin, para ele “[...] O amor é a mais universal, a mais formidável e
a mais misteriosa das energias cósmicas [...]” (CHARDIN, apud STEIGER, 2006, p. 2006).
Marià Corbí, referindo-se a capacidade sensorial do corpo, sendo o corpo capaz de captar e
transmitir o amor, como uma forma de sutileza da espiritualidade afirma que “[...] Toda a
nossa carne pode comover-se, toda ela pode se transformar em coração, em amor” (CORBÍ,
2010, p. 250). Nesse sentido o bailarino Dielson Pessoa nos diz:
Eu entendo Deus na minha arte o tempo todo e a minha arte me liga a Deus, por que eu faço isso por amor! Acho que o amor, para mim é a maior definição de espiritualidade. Se conectar com o divino, com essa força cósmica e a minha arte, tanto individual, quanto coletiva, quando eu me disponho... Ela tem essa função de fazer bem as pessoas, então a minha arte é completamente relacionada à questão espiritual, pela minha concepção do que é espiritual, do que é divino.
As experiências realizadas com a dança envolvem transcendência e
espiritualidade, imbricadas, elas são influenciadas e influenciam a condição do ser na cultura
e na sociedade. Não sendo apenas uma relação de proximidade entre dança, transcendência e
espiritualidade, juntas, se complementam, formando a identidade do ser, ou a essência do ser.
Algo tão grandioso que não se limita ao ser individualmente, extrapola, segue em direção aos
outros, concretizando-se através de posicionamentos críticos e questionamentos perante a
vida. Cada artista pernambucano entrevistado ao seu modo estabeleceu o como se
compreender neste mundo, embora suscitando os contornos em como o seu trabalho reproduz
a espiritualidade, foi unanime a compreensão e a prática de uma espiritualidade que inclui o
outro, como condição intransferível para que tal espiritualidade aconteça e permaneça.
O reconhecimento da importância da vida do outro (realização e felicidade),
produz entre os artistas níveis mais elevados de espiritualidade, encontrando na sua forma de
ver e viver o mundo um interesse indispensável pela condição do outro. Tal reconhecimento
da condição do outro imprime um comprometimento com este ser na sociedade. O artista irá
pensar e agir para que este outro esteja encaminhado e capaz de alcançar níveis de realização
e felicidade enquanto ser social. A noção construída de que a espiritualidade acontece
imbricada no conjunto amplo de relações, encaminha o artista da dança a assumir o seu papel
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e a realizar aquilo que ele entende como sua contribuição por uma sociedade melhor, mais
humana, sensível e amorosa.
2.4 A espiritualidade através da dança e as suas contribuições sociais a partir dos artistas
entrevistados
A espiritualidade assim como a arte acontece na vida. Impressa no próprio
corpo, a arte do movimento se volta para questões que transcendem a pele, que buscam
alcançar um patamar muito mais elevado do que o puramente estético, ou do movimento pelo
movimento. Existem pessoas vão mais além, e estes artistas se propõem com suas vidas
contribuírem para uma sociedade melhor, consciente, inclusiva e de pessoas felizes. Isso por
que:
A inteligência espiritual, longe de ser uma capacidade que isole o ser humano de seu ambiente natural e social, é um poder, que utilizado corretamente, alcança o efeito contrário: torna-o mais receptivo, mais sensível, mais plenamente integrado ao seu ambiente (TORRALBA, 2013, p. 263).
Para identificar se os artistas entrevistados estariam de algum modo
direcionando a sua espiritualidade para contribuir com o social, foi realizada a seguinte
pergunta: “A sua experiência com a dança lhe permite contribuir de algum modo com o
social?” (APÊNDICE A).
A cada trabalho e experiências apresentadas se o espiritual manteve-se
imbricado, o social também permaneceu pensado, inspirando e provocando uma
intencionalidade que conduza o outro a uma reflexão capaz de melhorar o seu ser no mundo.
Um dos trabalhos do bailarino e coreógrafo Ivaldo Mendonça intitulado
“Encontro Oposto”, que esteve em uma turnê percorrendo inúmeras cidades do Brasil, foi
inspirado na condição do ser que a princípio sofre discriminação por sua opção sexual. Esta
composição coreográfica tem como um dos objetivos fazer a plateia de inúmeras idades,
pensar o quanto é destrutivo julgar os outros a partir de sua condição sexual. Inúmeras cenas
trazem o drama e o sofrimento de quem é perseguido na sociedade por escolher viver a sua
homossexualidade. O trabalho descreve nitidamente o encontro entre dança, espiritualidade e
sociedade.
[...] alguns trabalhos como “Encontro Oposto” ao final, não só é uma pessoa presa, mas não só presa no sentido literal físico, mas preso dentro de uma sociedade que não te aceita, porque já é o homem declarado assumido que é
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gay, é, ma então ele preso fisicamente e preso dentro de uma sociedade que ele pode andar, mas que de repente, ele ta sofrendo várias situações, e ao mesmo tempo é como se ele estivesse pedindo, rezando, mesmo ele sendo gay, que conseguisse ter uma vida tranquila como qualquer outra pessoa, então de alguma forma, termina, atingindo o lado religioso, mas eu acho que não é dança necessariamente que provoca isso, mas acho que a vida, como eu termino traduzindo em dança, em movimento, na arte o que eu vivencio na vida, eu acho que a vida é que me traz e não o contrário.
A artista Lúcia Helena D’Ângelo desenvolveu inúmeros espetáculos fazendo
críticas sociais, desde a condição da mulher, como a causa indígena e a política. Uma de suas
criações foi inspirada nos trabalhadores do nosso país, com o título “Brasileiro: profissão
esperança”, os trechos apresentados refletiam sobre a desvalorização de inúmeras profissões
tão necessárias ao nosso tempo. Além da crítica social que desenvolve em alguns de seus
espetáculos, a artista tem uma preocupação com as pessoas que se aproximam da arte de
dançar, e no seu dia-a-dia ao ministrar as suas aulas, se esforça para que as pessoas encontrem
a felicidade por estarem envolvidas com a dança.
Através dela eu acredito que nós conseguimos fazer com as pessoas se sintam mais felizes, plenas, elas sentem um prazer imenso em está dançando numa sala de aula, independente até de irem para teatro, elas sentem um prazer em estar dentro da sala de aula, que faz com que elas saiam daqui mais leves, mais felizes...
Para Julcélio Nóbrega, a dinâmica da sociedade revelam situações que
inspiram seu trabalho coreográfico, a decorrência de problemas sociais, as críticas que se
formam a partir de sistemas políticos, as transformações urbanas, esses aspectos contribuem
para que o artista amadureça as suas ideias e transfira para as montagens. Outro aspecto
refletido sobre a relação com o social, foi à percepção de que seu trabalho pode mudar a
forma das pessoas pensarem os valores que praticam no dia-a-dia, ao direcionar o seu trabalho
aos diferentes grupos, procura ajudá-los propondo a noção de conjunto, união e a importância
da coletividade.
As experiências pessoais e sociais. Experiências de vida, as experiências de vida não se esgotam nunca, eu posso passar por uma experiência pessoal e aquilo me servir de inspiração e experiências pessoais não vão se esgotar nunca. Eu posso passar por uma experiência social, eu posso está vivendo um contexto social na minha cidade que aquilo possa me inspirar profundamente e me inspira... Problemáticas sociais, problemáticas políticas, problemáticas urbanas, problemáticas críticas a cerca de tudo, isso nunca se esgota. Por que a sociedade é dinâmica, a vida é dinâmica e isso é fonte de inspiração para qualquer artista. [...] Então eu sempre trabalhei em cima desse senso, dessa noção de conjunto, de união de que todo mundo está no mesmo barco e isso muda a vida das pessoas, isso muda! Mudam os valores, eu acho. Você pensa mais coletivamente.
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A dança é um veiculo de expressão artística que está presente em inúmeros
setores da sociedade, e desse modo, atingindo os mais diferenciados públicos, desde crianças
que começam a dar os primeiros passos na dança com apenas dois anos de idade, ou entre
jovens e adultos que vivem em situação de vulnerabilidade social e ingressam em projetos de
dança que pretendem resgatar os jovens da criminalidade ou da dependência das drogas. Não
há como estabelecer critérios definitivos para afirmar que público teria mais urgência em
dançar, e nem determinar que tipo de profissional ou que estilo de dança, ocupa um lugar de
superioridade na organização social. A dança está presente nas culturas comunicando e
possivelmente contribuindo na formação do ser, em diversas camadas da sociedade.
Desse modo, cada profissional da dança com o seu público, consegue
estabelecer vias de reflexão para ajudar o individuo a tornar-se mais consciente frente às
múltiplas questões da vida. O exemplo da artista Polyana Moura, que se dedica ao público
infantil de classe média alta, poderia ser considerado um trabalho sem tanto impacto para o
que se espera em torno das transformações sociais. Contudo, seu trabalho enfrenta o desafio
de lhe dar com a ausência dos pais, que devido ao excesso de compromissos não possibilitam
aos seus filhos uma convivência que garanta verdadeiramente aprender sobre o respeito, a
afetividade e o cuidado que se deve ter com os outros. Diante desse aspecto em sua
experiência com o seu público infantil que inclui a família como um todo, Polyana Moura, se
mantém sensível em sempre propor composições coreográficas que desenvolva através da
música escolhida uma reflexão sobre o sentido da vida, sobre a importância da família.
[...] eu procuro uma música que não seja religiosa, mas que tenha a mensagem que quero passar, mas no fundo eu finalizo o espetáculo, com aquela mensagem que quero passar. Porque eu acho que hoje em dia, são três, quatro minutos de música que você coloca e que tem adultos que descompensam, que durante só nesses minutos passa uma vida na cabeça, uma vida do que eu estou fazendo, do que eu faço, será que eu estou com a minha família, tem gente ali que chora e não emoção só por causa da música ou porque a filha está ali é um filme que passa ali na cabeça dela que agente não sabe... Ali despertou, e um tempinho de nada, mas que com certeza, é uma ajuda para que se pense em alguma coisa, ali eu tenho pais muito ausentes na vida daquelas meninas, trabalham muito, não posso deixar de passar essa reflexão, é uma questão de família que influencia a sociedade. Então naquele a gente está fazendo também que eles pensem, valorizem, ou repensem como estão conduzindo as coisas. É um momentinho de nada, mas a gente sabe a mensagem que quer deixar, e a gente deixa, em uns mais intensos, em outros menos, mas a gente sabe que a gente consegue.
Para Alexandre Macedo, a relação entre o trabalho que desenvolve e o social é
direta e completa. A forma como constrói a sua arte, sempre incluiu o outro, como ponto
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fundamental para a composição dos seus espetáculos, bem como para o que ele aponta como
crescimento espiritual. O fato de desejar viver em uma sociedade mais justa reflete
diretamente nos seus projetos, para o artista a condição do outro lhe interessa, principalmente
se tal condição necessita de transformação, ele acredita que oportunizar o desenvolvimento de
um talento, permeado pela motivação, companheirismo, o sentido de grupo e o olhar que deve
ter diante das injustiças sociais, são meios essenciais para transformar o outro e se transformar
junto. “A consciência social se fortalece na medida em que desperta na pessoa o viver para os
outros e se alimenta na vida espiritual” (TORRALBA, 2013, p. 271). A espiritualidade
encontra um dos seus propósitos na participação da vida social. O individuo que dança
encontra-se integrado no seu tempo-espaço, o movimento expressa, a partir do que pensa
Alexandre Macedo, a sociedade que você pertence.
Acho que essa vontade de pesquisar, de estar buscando o novo, mas sempre com os pés na tradição também, acho que a manutenção de uma tradição numa modernidade, acompanhar a este ciclo de vida que é o meu ciclo de vida também, o que me mantém é estar vivo, o que me inspira é a minha vida, é a vida do meu próximo, é o que estar ao meu redor, então e o grande amor pela arte. É inspirador observar o ser humano, aprender com o ser humano, aquela coisa que o corpo fala e você observar o corpo do outro, no espaço, ver o comportamento social, ver as injustiças sociais, buscar uma mudança dessa condição humana, a partir da arte para mim é muito importante, mostrar em meus espetáculos algumas coisas, algumas realidades, que poderiam ser modificadas, com justiça social, com outros fatores, a minha dança reflete também isso, essa busca que é também uma busca minha, também até filosófica, a busca do conhecimento, de procurar crescer espiritualmente a partir da arte, transcender, modificar comportamentos também, a minha dança ela tem atualmente, há muito tempo mudando a vida de muitas pessoas, eu trabalho, muito com jovens, muito com crianças e consegui transformar a vida de muita gente. [...] a partir desse trabalho, muitos enveredaram pela dança, nesse caminho que eu trilhei e venho trilhando, você mudar a vida do outro é, ou transformar, ou ajudar a transformar, é muito importante, é uma, outra coisa que me inspira, é poder de transformar o outro e me transformar junto, evoluir junto.
A artista Maria Paula Costa Rego, entende que a forma como pensa e defende
os seus ideais políticos, encontra-se em sintonia com a sua espiritualidade, não há um
distanciamento entre esses aspectos, respeitar o outro e pensar no bem da humanidade, são
frutos da construção do modo como ela se percebe na vida, e que expressa tudo isso através
do seu movimento. A consciência política faz parte do modo como estamos inseridos em
nossa cultura, ou como pretendemos nos inserir, para ela os seus trabalhos refletem essa
forma de viver. A dança não é, e nem pode ser um aspecto isolado das várias questões que
envolvem o ser, o corpo de quem dança reflete a sua verdade, aquilo que se acredita torna-se
nítido através do movimento. A coreógrafa associa a sua consciência política e social com o
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sentir-se feliz consigo mesmo e poder de alguma forma contribuir para que o outro também
tenha condições de encontrar a sua felicidade. A felicidade se encontra relacionada com a
realização dos valores e ideias que se acredita, “com a experiência de cumprir com o próprio
dever, com a sensação interior de viver uma vida com sentido” (TORRALBA, 2013, p. 289).
Desse modo, por meio da atividade do seu Grupo de Dança a artista explica que:
O grupo Grial é um grupo de dança, mas é um grupo político, minha arte, é uma arte política, eu sou um político socialista, eu penso no bem da humanidade enquanto espiritualidade, enquanto cidadão, eu não sou aquele político que pensa em que você tem que construir, não sou, o tipo da pessoa que pensa no material, eu sou na verdade, eu penso no bem humanístico, eu penso no bem humano, a partir do momento que eu tento entender, que o brasileiro será muito mais inteiro, feliz e apto a fazer as suas próprias escolhas, isso é autônomo, quando se reconhecer negro, índio e branco, europeu. A partir do momento que se reconhecer, eu acho ele vai ter outro tipo de gostar, outro tipo de gosto musical, artístico, de relação, eu que ta ficando cada vez mais difícil isso mais a gente em algum momento tomou o caminho errado. Então, isso tem muito de espiritualidade, porque a espiritualidade ta ligado a você está feliz com você mesmo, a você respeitar o outro, por mais que você seja branco do olho azul, você tem que respeitar o seu vizinho, que ele é negro e tem o cabelo cacheado, o outro é com cara de índio, o outro é... Eu acho que isso tudo pra mim é espiritualidade, quando a gente lida com o espirituoso.
Para Ana Miranda, desde os seus primeiros contatos com a dança, ela percebeu
uma relação do movimento com a liberdade, dançar lhe deixava livre e com o passar do tempo
essa percepção foi amadurecendo. De acordo com Ana, encontrando no pensamento do
educador Paulo Freire, a forma como ela conduz um dos seus projetos que é a Escola de
Frevo do Recife, no que se refere o possibilitar às pessoas a buscarem a sua autonomia, a
liberdade, de não perder a capacidade de sonhar e ter um olhar sensível ao mundo a que
pertence. Nesse projeto uma das prioridades é oportunizar o contato com a dança, de modo
que a dança possa na vida daquele indivíduo tornar-se algo que possa ser libertador, que seja
capaz de ampliar o olhar e as perspectivas de vida, ajudando o ser humano, a se melhorar
como pessoa na convivência, no respeito, na aceitação das diferenças, e também possibilitar
uma carreira profissional, de modo que este ser encontre através da dança a sua dignidade. O
trabalho desenvolvido pela artista Ana Miranda, descreve bem a relação da espiritualidade
com o social por meio de uma dança que educa o indivíduo, para ela, a educação deve ser
permeada pela espiritualidade, assim “[...] o educando aprende a situar-se gradualmente como
membro da comunidade e a interagir com os outros para edificar projetos com sentido”
(TORRALBA, 2013, p. 271). Por isso a coreógrafa descreve o seu trabalho da seguinte forma:
70
Eu trabalhei a minha vida toda, desde que eu comecei com a dança, como liberdade, como um movimento libertador, um momento Paulo Freire, eu acho que isso é o mais social de todos. Eu acho que a dança, ela tem que ser oportunizada a todos, esse trabalho aqui da escola de frevo, que não paga, que aceita todo mundo, a escola que aceita da forma como eles são, a gente luta muito, mas eu acho que isso aqui é um social, não é só um social porque é da prefeitura, mas porque aqui a gente descobriu que a gente pode dar a eles outras oportunidades, um projeto “dança ao alcance de todos”, nesse projeto era aos sábados [...] com vários tipos de dança. Esse projeto atendia uma classe mais simples que ganha às vezes um salário mínimo [...] Pretende retomar o projeto ano que vem, a partir do encontro de múltiplas e linguagens e formas de dançar. [...] O meu trabalho é social, o social é dignificar a dança e dar as pessoas a oportunidade.
A concepção de Dielson Pessoa, além de considerar que seu trabalho é
completamente desenvolvido a partir da clareza espiritual com qual busca conduzir a sua vida,
o artista acrescenta que a arte desenvolve algo a mais que as profissões utilitaristas e, isso
acontece, porque permanentemente a arte reflete sobre questões profundas da existência
humana. Para ele, o artista é um ser extraordinário, que pode através da forma como se
expressa contribuir para evolução da sociedade. A noção sobre o seu trabalho reflete o que é
possível perceber do espiritual na arte, pois “ao criar, o artista expressa, seu mundo, um
mundo que emerge de sua inteligência espiritual” (TORRALBA, 2013, p. 181).
Paixão e a responsabilidade que eu me coloco como artista na sociedade. Com eu estava falando, agente tem a capacidade de apontar soluções para problemas profundos e refletir o nosso próprio comportamento. Normalmente uma profissão utilitária, ela não promove uma reflexão sobre o comportamento. A arte dá essa possibilidade, mesmo que seja de maneira estética. Você vai num teatro, você vai ver ali peças que tentam refletir o comportamento humano de maneira profunda. Desde uma escolha política até uma apreciação abstrata e eu me entendo responsável por continuar com um tipo de atividade humana que é responsável muito pela evolução da sociedade. [...] Fazer arte para mim já é uma ação extraordinária, diante do contexto de uma sociedade. Artista já é um indivíduo extraordinário, para minha compreensão do que é extraordinário, de não está atrelado à experiência rasa da vida.
As experiências contadas que remontam momentos vividos de pessoas que
assumiram o compromisso de buscar entender-se, entender o outro e de fazer algo por ele.
Sendo oportuno citar Torralba quando afirmou que “[...] Na alma do artista repousa uma
riquíssima vida espiritual que encontra sua forma de expressão na obra criadora” (2013, p.
180). Essa capacidade própria dos artistas indica, que a sua obra não é aleatória, que ela pode
expressar um sentido. Tal sentido emerge de si e desloca-se em direção ao outro. O artista por
meio do seu ofício é capaz de conduzir e transformar vidas, agregando valores humanos que
extrapolam a estética e beleza do que faz. A arte que permanece entrelaçada por uma
71
espiritualidade contribui significativamente com as necessidades do nosso tempo. Sobretudo,
no que concerne o sentido da existência, produzindo fragmentos de espiritualidade nos mais
diferentes contextos sociais e culturais. No próximo capítulo será analisado como tais
aspectos estabelecem relações com o fenômeno religioso na contemporaneidade.
72
3 POSSÍVEIS ENCONTROS ENTRE A DANÇA E O FENÔMENO RELIGIOSO
O que existe de religioso na dança que é realizada fora do espaço
institucionalizado das religiões, são as práticas dos valores humanos, das crenças, dos níveis
de transcendência que são amplamente explorados e a espiritualidade como forma de conduzir
o trabalho exercido e a própria vida. Ao perceber nas teias relacionais construídas na
contemporaneidade a partir da dança é possível sugerir que a mesma encontra-se imbricada
com o fenômeno religioso. A dança revela o que há de divino e sagrado dentro do próprio ser.
O mistério que o habita vai revelando-se à medida que o seu movimento encontra o seu
sentido, fazendo o ser humano perceber-se em sua totalidade e plenitude.
3.1 As transformações do cenário religioso e a dança apresentando contornos sobre
espiritualidade na contemporaneidade
Embora situada num contexto complexo e dinâmico, a espiritualidade e a dança
não perderam a sua essência e importância entre os seres humanos. Em cenários culturais em
plena transformação a espiritualidade e a dança passam a circular com maior liberdade em
espaços não diretamente religiosos. Sendo possível considerar o quanto é positivo e
necessário para as estruturas sociais, visto que, os benefícios advindos da espiritualidade para
as relações interpessoais são muitos, e podem com grande eficácia contribuir amplamente
para o melhoramento da coletividade. A dança como a arte do movimento, presente na
contemporaneidade, pode ser compreendida via de acesso, promoção e produção de
espiritualidade.
A partir do permanente jogo entre dança, transcendência e espiritualidade, onde
a dança busca encontrar formas de transcendência e a transcendência flui através da dança,
tornando a dança uma janela que se abre ao movimento do universo. Assim também a
espiritualidade encontra vias na dança, um movimento sutil dançado pode despertar em
alguém uma reflexão profunda sobre si e sobre os outros. A dança não pretende está só, a
harmonia dos ritmos e da beleza estética encontra seu sentido maior quando conectada a
dimensão de espiritualidade. Sendo importante destacar como os artistas pernambucanos
expressam a espiritualidade em sua dança. Os artistas pernambucanos entrevistados admitiram
que a dança, possui um caráter formador, o senso crítico e a sensibilidade diante das
adversidades sociais indicam essa perspectiva da dança.
73
O bailarino Ivaldo Mendonça, percebe a dança “como um veiculo de
transformação da sociedade, ou seja, deixa de ser só entretenimento e passa a ser um veículo
de discussão e reflexão diante do que o público passa.” O artista define que todos os seus
trabalhos “[...] são densos, tensos e intensos. Eu lido diretamente com o humano, com ações e
reações, e todos os trabalhos eu vivi direta ou indiretamente.” Reforçando que a sua arte tem
um sentido.
A coreógrafa Maria de Fátima Guimarães considera que o amor pelo que faz
lhe mantém na dança. “O que gera essa palavra amor, gera a palavra segurança, eu tenho
muita segurança no que eu faço.”
Experiência bem próxima, para a artista Lúcia Helena D’Ângelo, quando
afirmou que é “exatamente o amor que eu sinto por ela, [...] e gostaria que as pessoas
entendessem que a dança é uma oração sussurrada pelo corpo, e nos deixa mais próxima de
Deus do que imaginamos.” Para a coreógrafa Lúcia Helena D’Ângelo, “a dança tem uma
relação muito grande com a espiritualidade, [...] eu acho que amor, religião, sentimentos se
tornam uma coisa só.” Os artistas ao buscarem ampliar o seu olhar sobre a vida, tornam-se
pessoas espiritualmente sensíveis, pois reside o fato de “[...] não se contentarem com um
conhecimento superficial a respeito das coisas, do mundo e daquilo que a cerca”
(TORRALBA, 2013, p.47).
A noção de espiritualidade que não nega a transcendência e que pretende
encaminhar o ser ao sentido profundo de sua existência, presente nas experiências dos artistas
entrevistados, encontra-se em consonância com a compreensão de espiritualidade com
Francesc Torralba. “A vida espiritual é profundidade, movimento rumo ao desconhecido,
interesse pelo que está oculto, pelo que é invisível aos olhos” (TORRALBA, 2013, p. 47).
Desse modo destacamos também que a dimensão espiritual:
[...] é a saída de si, a penetração na estrutura das coisas. É o que permite fluir, permite que a pessoa se desprenda de si mesma e se entregue. A vida espiritual não é fechamento, intransigência, menos ainda autismo. É bem ao contrário, fluidez, doação e abertura. (TORRALBA, 2013 p. 47).
A espiritualidade na contemporaneidade apresenta algumas características
novas antes talvez impensáveis, se compararmos a momentos históricos na cultura ocidental
em que a espiritualidade era estreitamente ligada à religião institucionalizada. Sabe-se que
hoje a espiritualidade, poderá ser construída fora do espaço institucional confessional
74
religioso. Sendo, desse modo, uma espiritualidade que, muitas vezes, é buscada sem um
vínculo direto com as comunidades de fé ou culturas religiosas. Propondo uma experiência
entre indivíduos que possuem uma crença, mas não participam, diretamente, de uma religião.
Como também, por indivíduos declaradamente não crentes, que assumem, até
mesmo, o seu ateísmo, mas que se encontram inclinados a conhecer a sua dimensão espiritual
e a buscar o sentido da vida. “O fato de não crer em Deus não me impede de ter um espírito,
nem me dispensa de utilizá-lo.” (COMTE-SPONVILLE, 2009 p.127). Mesmo que pareça um
contraditório, para algumas camadas da sociedade, na contemporaneidade se faz a experiência
de uma espiritualidade também entre ateus. Para André Comte-Sponville (2009, p. 27), “Uma
sociedade pode seguramente viver sem deus (es) e, talvez sem religião; nenhuma pode viver
duradouramente sem comunhão.”
De acordo com André Comte-Sponville (2009), o fato de não ser depositado crença
em Deus ou na religião como os mais importantes, isso não significa torná-lo desinteressado
pela vida espiritual.
Terminemos pelo mais importante que não é Deus, pelo menos para mim, nem a religião, nem o ateísmo, mas a vida espiritual. [...] Não crer em Deus não é motivo para nos amputar de uma parte de nossa humanidade – ainda mais essa! (2009, p. 127).
Simultaneamente à experiência citada no parágrafo anterior, que aponta a
espiritualidade entre os ateus, às religiões, continuam oferecendo mecanismos para a busca de
uma espiritualidade profunda, o fato de existirem novos caminhos para esta busca não exclui a
possibilidade de se aprofundar espiritualmente a partir do pertencimento a uma religião ou da
própria crença vivenciada separadamente do religioso institucional. Esta, talvez, seja uma das
marcas significativas da contemporaneidade, as possibilidades são múltiplas, o tradicional e o
novo encontram-se presente nas sociedades, ora complementando-se, ora gerando conflitos e
promovendo debates indispensáveis para as transformações culturais que encaminhe o ser
para a sua totalidade. Poderá haver uma totalidade sem a dimensão religiosa? Sem dúvida,
uma pergunta difícil de responder, contudo, se vê que mesmo entre os ateus essa possível
totalidade poderá ser buscada por meio de um caminho espiritual que dar sentido a existência,
embora exclua a dimensão religiosa do ser. Certamente inúmeros encontros e desencontros
poderão surgir a partir das formas de como se busca a totalidade do ser, a espiritualidade já
desponta caminhos tão diferentes para este processo.
75
Entre os que dançam na contemporaneidade – embora não sendo o caso dos
artistas pernambucanos entrevistados – afirma-se que por meio da dança é possível encontrar
um caminho espiritual, mas, se é possível dizer “totalmente” desligado da religião
institucional. A bailarina e coreógrafa Gabrielle Roth, afirma:
[...] Não tenho tradições, não tenho raízes, não tenho uma velha alma tribal para me dar conselhos. Elas foram queimadas na fogueira, séculos atrás. [...] Minha bíblia é o corpo, porque o corpo não pode mentir. Meu mestre é o ritmo. Não há dogmas na dança (ROTH, 1997, p. 32).
A opinião de Roth confirma, que na dança também se constrói uma
espiritualidade sem “Deus”, e sem as imposições de uma tradição religiosa, o seu ponto de
vista deixa claro, que a forma como ela utiliza-se da dança há um rompimento com o religioso
institucionalizado. Entre a crença e a não crença declarada, foi apresentado um aspecto
interessante, ou pelo menos curioso, existem artistas, que não percebem, ou não construíram
uma visão de relação direta entre a dança e o sagrado ou o transcendente. O bailarino e
coreógrafo, pernambucano Ivaldo Mendonça, declarou que: “Deus, o espiritual para mim sim,
mas na dança não, o movimento pelo movimento não, na dança em si não”. Para ele, embora
possuindo uma crença declarada, ele não associa a forma como se utiliza dança, como
expressão do “transcendente”, o movimento é livre dessa condição de encontrar-se
obrigatoriamente ligado ou conduzido por “Deus”.
Fazendo-se perceber uma elaboração cada vez mais complexa no contexto da
espiritualidade, pois a espiritualidade continua sendo uma importante dimensão buscada,
conhecida e aprofundada, entre os seres humanos em todas as culturas. Neste cenário marcado
pela diversidade encontramos os pertencentes das mais variadas religiões, os que não possuem
religião, mas acreditam num Ser Supremo e também entre os ateus. Comumente as tradições
religiosas no seu processo histórico-antropológico tornaram-se responsáveis diretas pela
dimensão espiritual do ser humano. Em face de uma determinada religião se construía
inúmeras experiência, a religiosidade, o sentido de comunidade, a aquisição de conhecimentos
sobre a origem de sua crença, a prática de valores humanos e entre elas a espiritualidade.
Mesmo reconhecendo que o pertencimento religioso contribui para crescimento espiritual, é
importante destacar que nem tudo que se constrói dentro de um contexto religioso apresentar-
se-á como espiritualidade.
[...] Espiritualidade não exclui, em princípio nenhuma fé religiosa como forma específica de vivenciar a espiritualidade. Por outro lado, nem tudo que se apresenta como religião também inclui a espiritualidade (ROHR, 2012, p. 20).
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Sendo importante observar que, a religiosidade pode fazer-se fortemente
presente num determinado indivíduo ou contexto sociocultural e não se está envolvida pela
espiritualidade. É possível perceber o religioso sem o espiritual, quando é inegável a ausência
da prática de valores humanos, quando os rituais e as regras são colocados como superiores à
condição humana. Nesse cenário, as relações de discriminação, exclusão, a falta de diálogo, o
desinteresse pela vida, podem ser reflexo de uma religiosidade praticada sem espiritualidade,
por isso a religião e a religiosidade não são determinantes para um fecundo desenvolvimento
da vida espiritual.
Isso acontece principalmente, quando a religião se fixa em dogmas, em regras de conduta bem determinadas, em inflexibilidade, em exclusão, em intolerância contra confissões de fé distintas [...] (ROHR, 2012, p. 20).
Contudo, verifica-se que durante muito tempo se vivenciou um tipo de
espiritualidade atrelada diretamente à religião e hoje por uma série de fatores de mutações
culturais, as experiências advindas da dimensão religiosa estão pulverizadas e amplamente
diversificadas na sociedade contemporânea. Tal mudança continua num processo permanente
de transformação. São contornos próprios de uma civilização em estado constante de
fragmentação e de reconstrução. As novas formas de pensar a realidade não se esgotam em
determinismos. Desse modo, verifica-se que as experiências apresentadas em torno da
espiritualidade na cultura atual, são consequências ou desdobramentos de experiências vividas
anteriormente no decorrer da trajetória do homem e a sua dimensão religiosa.
Pensando nas possibilidades de uma espiritualidade entre os ateus, por
exemplo, tal espiritualidade é fruto de um conjunto de mudanças e construções que se deram
ao longo do tempo e em algum momento ela possui aspectos comuns com a espiritualidade
decorrente das tradições religiosas. Parte da espiritualidade contemporânea possui as suas
raízes na espiritualidade das religiões, o interesse pela espiritualidade, enquanto dimensão do
ser poderá ser algo, relativamente recente para algumas correntes ateístas, contudo a dimensão
espiritual e as práticas que delas transbordam nas mais variadas civilizações e culturas não
tem nada de novo, o interesse pelo crescimento espiritual do ser, nas religiões é tão antigo
quanto muitas delas, sobretudo se citarmos a riqueza da espiritualidade na cultura oriental.
Note-se sem dúvida o crescimento de uma espiritualidade dissociada da
religiosidade, o que não a torna superior ou inferior às demais possibilidades de busca da
espiritualidade. O fato de indivíduos declaradamente religiosos não desenvolverem a sua
espiritualidade, não desvalida a experiência de outros que conseguem aprofundar a sua
77
espiritualidade e encontrar o caminho para a sua totalidade. Como também, entre os que não
são crentes que apresentam uma busca espiritual não os tornam superiores ou inferiores diante
das demais experiências em torna da espiritualidade.
Na dança as experiências contadas pelos artistas pernambucanos, os discursos
não são de cunho religioso institucional, a possibilidade de se impor uma forma exclusiva ou
superior de crer está descartada entre esses artistas, porém em quase sua totalidade, existe sim
um pano de fundo ligado ao espiritual, que tem uma raiz em alguma denominação religiosa. O
discurso e a prática caminham por aceitar as experiências religiosas distintas, não há uma
identidade religiosa específica que deve declaradamente conduzir a manutenção daquele
trabalho ou grupo. Isso porque, de acordo com o bailarino Ivaldo Mendonça, “[...] a dança
pode ser um veículo de transformação da sociedade, ou seja, ela deixa de ser só
entretenimento e passa a ser um veículo de discussão e reflexão diante do que o público
passa.” Um dos motivos que se pode reconhecer essa reflexão voltada para a sociedade,
acontece quando o artista que possui as suas convicções religiosas, deixa transparecer em seu
trabalho apenas aquilo que agrega e não fere a religião, ou o caminho espiritual do outro.
A busca espiritual de cada artista também inclui o favorecimento de que outras
pessoas sintam-se em condições de conhecer-se e participar dessa experiência de
espiritualidade mesmo sem propor momentos e nomes específicos para isso. Na experiência
do artista Ivaldo Mendonça apesar da linguagem do seu trabalho não dizer diretamente
“espiritualidade”, não deixa de propor e contribuir para espiritualidade de si mesmo e dos
outros, ao afirmar que “todos os meus trabalhos eles são densos, tensos e intensos. Eu lido
diretamente com o ser humano, com ações e reações, e todos os trabalhos que eu faço todos
eu vivi direta ou indiretamente”. Na fluidez da própria dança, as aulas, os processos de
criação, o papel da coreografia, o grupo reunido, a conscientização de que o seu movimento
não é banal, vai promovendo naqueles espaços de convivência momentos significativos de
espiritualidade. O não declarar e não estabelecer uma denominação religiosa, em nada
desfavorece a maturidade espiritual dos artistas, pelo contrário o próprio gesto e o cuidado de
lhe dar com a condição social, cultural e religiosa do outro, é um sinal sutil de uma
espiritualidade rica e profunda. Como, por exemplo, no trabalho da artista Fátima Guimarães,
ao sentir-se convencida que “O amor pelo que faço. O que gera essa palavra amor gera a
palavra segurança, eu tenho muita segurança no que eu faço. Pode não ser nada, mas eu tenho
segurança.” Na condução das atividades da artista Lúcia Helena D’Ângelo percebe-se uma
aproximação mais declarada ao religioso, à coreógrafa diz manter-se na dança “Exatamente
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pelo amor que sente por ela [...] E gostaria muito que as pessoas entendessem que a dança ela
é uma oração sussurrada pelo corpo, e nos deixa mais perto de Deus do que imaginamos.”
As mais diferentes identidades assumidas no contexto do grupo onde todo
trabalho acontece, termina sendo enriquecido pelas diferenças, ali não está em jogo à
preferência ou prevalência de que o aspecto religioso determine as relações interpessoais.
Contudo, existe um cerne que possibilita e agrega as múltiplas biografias, é através do
movimento dançado, que os possíveis sentimentos religiosos existentes concedem espaço para
o espiritual comum. Na percepção da coreógrafa Lúcia Helena D’Ângelo, isso ocorre porque
“a dança ela tem uma relação muito grande com a espiritualidade, através da dança você
consegue passar sentimentos muito altos, muito bons [...] eu acho que amor, religião,
sentimento se tornam um só.”
É nesse caminho quase que de renúncia, mas, não de negação do que o há de
mais genuíno religioso na construção de cada indivíduo, que o respeito e o fazer juntos
acontecem e se mantém como prioridade. Talvez a base para se compreender até que ponto o
religioso alicerça o espiritual, seria perceber que essa espiritualidade que dá sentido as vidas
entrelaçadas pela dança, se oferecem em amor por aquilo que fazem, e a forma com a qual
abraçam às suas causas, torna-se o mais importante.
Há uma diferença acentuada em desconsiderar o papel das religiões na cultura
e na sociedade e construir uma espiritualidade que não depende de uma religião institucional.
O fato de não depender dos dogmas de uma religião, bem como da participação em seus
rituais, não torna estéril a ligação do homem com o seu sagrado transcendente. Pode ocorrer
uma construção equivocada ou fechada em si mesma, quando no pensar a espiritualidade se
excluir completamente o que as religiões apontam como sendo o sagrado e o divino presente
no universo.
A existência de diferenças entre a forma de utilizar-se ou de compreender a
espiritualidade não anulam os seus aspectos comuns. Crer ou não em “Deus”, perceber ou não
o “Sagrado” não exclui o que há em comum, na beleza da relação entre espiritualidade e vida.
Nas diferentes formas de pensar a espiritualidade, o que emerge do espírito possibilita sentido
existencial, algumas concepções ousarão ir mais além da vida material apresentada tal como
ela é, outras irão limitar-se a razão, buscando explicações para o seu sentido apenas nesse
mundo concreto. Sem dúvida a via que amplia o horizonte existencial para além desse mundo
79
material concreto, no qual parece residir algo que é mistério e que está oculto, mas, não
inexistente.
Entre os pontos comuns nas formas como os homens se utilizam da própria
espiritualidade, encontra-se a o interesse pela vida, a busca por uma felicidade e o amor, a
partir desses aspectos podemos supor uma espiritualidade como condição do ser, esta
dimensão humana ocupa um lugar de destaque, pois por meio dela se vitaliza todas as outras
dimensões. A espiritualidade no pensamento ateu, “Podemos prescindir de religião, mas não
de comunhão, nem de felicidade, nem de amor. [...] Não ter religião não é um motivo para
renunciar a toda vida espiritual.” (COMTE-SPONVILLE, 2009 p. 127). O espiritual sem uma
crença determinada também se encontra presente na dança. “Ao deixar que seu corpo dance,
você, imediatamente, se despoja das mentiras e dos dogmas até que todos sejam entregues ao
próprio espírito da vida.” (ROTH, 1997 p. 32). As formas de pensar a espiritualidade e
praticá-la são resultantes de inúmeras variantes, cada contexto sociocultural poderá favorecer
uma tendência, aproximando ou distanciando o indivíduo de uma espiritualidade que se
constrói a partir de uma crença. Na perspectiva de uma espiritualidade advinda ou alimentada
por uma crença, encontra-se o indivíduo diante de sua totalidade e inteireza. Pensar o ser
como uma “obra aberta”, como “mistério”, como “inacabado”, tal reconhecimento o faz ser
lançado em níveis que estão para além do seu tempo-espaço, e neste devir estão dimensões
que extrapolam este ser que não é apenas matéria e racionalidade, algo o eleva para além
tornando um só com o universo e com o mistério profundo da vida.
3.2 A relação entre espiritualidade, transcendência e a totalidade do ser, por meio da dança
A espiritualidade quando vivenciada pelo o indivíduo o faz despertar por um
modo de viver que o transforma e o faz buscar um sentido profundo para compreender o seu
papel no mundo, e contribuir com ele. Para aquisição das experiências de espiritualidade
profunda, alguns homens e mulheres utilizarão a dança com via de acesso para que esta
aconteça. Entre alguns indivíduos a espiritualidade pode emergir a partir de uma cosmovisão
que inclui a dimensão transcendente e favorece todo o seu percurso em busca de sua
totalidade, entendendo esta totalidade, como sendo o homem por inteiro, um ser de abertura e
relacional.
Para Klaus Vianna, a dança pode oferecer ao indivíduo esta noção de inteireza,
ao dançar estão incluídas inúmeras dimensões, e seguramente o movimento não é aleatório.
Por meio de sua experiência com o movimento afirma que “a dança não se faz apenas
80
dançando, mas também pensando e sentindo: dançar é estar inteiro” (KLAUS, 2008, p. 32). A
dança se oferece como meio que integra a condição corpórea e terrena do homem ao etéreo ou
abstrato, a dança na experiência de bailarinos e coreógrafos expressa-se por meio de um
conjunto de situações capaz de traduzir o que está oculto ou implícito na realidade cotidiana e
será revelada pelo corpo em seu movimento.
Tal movimento não acontece apenas com representações do que está posto na
realidade visível, o movimento parece traduzir em algum nível o abstrato, lançando-se ou
incluindo-se a dimensão etérea.
A dança está relacionada com o prazer do corpo, e isto tem a ver com a aceitação de viver nesta dimensão terrena. Dançar é mover o corpo, movê-lo pelo espaço, expressar emoções e sentimentos, escutar melodias e corporificá-las, respirar e escutar respirações, perceber e expressar ideias. Dançar é trazer o pensamento – o que está sendo anunciado em uma dimensão mais etérea ou abstrata – para a carne; e uma vez que todas as células viveram o pensamento e o expressaram completamente, o descanso tem lugar (ROBIN, 2004, p.88).
O corpo que dança na contemporaneidade lança-se ao sensível e ao imaginário
e constrói noções para expressar essa dimensão abstrata, contribuindo para que o ser humano
não exclua a sua capacidade de ir além de sua realidade material. “[...] o corpo tem a
capacidade fisiológica para produzir fenômenos que não tem correspondente no mundo
material” (SUQUET, 2009 p.513). Desta relação com o sensível e o imaginário o corpo
produz novos corpos poéticos que poderão suscitar interpretações necessárias ao seu tempo.
“O sensível e o imaginário nele dialogam com infinito refinamento, suscitando interpretações,
ficções perceptivas que dão origem a outros tantos corpos poéticos” (ibidem p.516). O corpo
que dança na contemporaneidade pode ser um corpo que participa de um movimento total,
que não se podem negar além do seu espírito, as suas capacidades transcendentes em diálogo
com realidades abstratas. Para José Gil “O movimento dançado compreende o infinito em
todos os seus movimentos”, e acrescenta que:
[...] o corpo do bailarino é transportado pelo movimento porque se insere nele, numa linha começada antes dele, antes do seu próprio movimento, e que se prolonga depois dele, depois da ação corporal marcada por uma paragem (GIL, 2001, p. 15).
O prolongamento do movimento operado por meio do corpo que dança, faz o
movimento em forma de arte tornar-se visivelmente imanente. “Dançar é criar a imanência
graças aos movimentos [...]” (GIL, 2001, p. 53). Nesse plano imanente os movimentos se
81
concretizam, tornam-se reais, assumindo as formas para traduzir o invisível. São movimentos
que:
Sendo os mais concretos, e circulando no plano de imanência, transportam em si próprios o sentido, as emoções e as imagens que os movimentos, graças às suas intensidades [...] Dançar é fluir na imanência (GIL, 2001, p. 55).
A dança tal como se apresenta na contemporaneidade, mantém uma relação
permanente com a sensibilidade para ver e julgar o seu próprio meio social e cultural e as
dimensões abstratas, fora desse contexto não é possível compreender as relações que a dança
pode vir a estabelecer com a transcendência e a espiritualidade que juntas podem vir a
culminar na totalidade do ser. O ser humano de natureza transcendente encontra-se com a
dança que lhe fornece vias para transcender, por isso, capazes de produzir situações
imanentes, onde a dimensão espiritual permeia toda essa atividade.
Além do fruir da dança em situações imanentes, encontramos no
entrelaçamento da vida social, a capacidade de manter um olhar sensível perante os
acontecimentos. Entre alguns artistas paira um espírito profético que consegue por uma
sensibilidade mais aguçada traduzir o que parece oculto aos olhos de pessoas comuns. A
intuição dos artistas exerce uma parte significativa na experiência com o movimento dançado,
que serão expressas por meio de suas obras – não somente por denunciar o tempo presente –
podem anunciar reflexões significativas para contribuir com o futuro da humanidade. A
dimensão intuitiva dos artistas, remonta fora do espaço institucional religioso, um elo com
verdades mais profundas que dizem respeito à existência humana.
O que continua sendo realizado no contexto de inúmeras tradições religiosas ao
longo do tempo, que por meio da intuição e da capacidade de enxergar o mundo com
sensibilidade, a exemplo de líderes e místicos religiosos, também é visto na
contemporaneidade entre os artistas.
Na história da humanidade eram intuitivos aqueles que, através de seu espírito profético, enxergavam as origens ocultas das ideias e das leis por trás do mundo dos fenômenos, revelando-as através de suas obras, ou seja, traduzindo-as para a nossa realidade (WOSIEN, 2000, p.127).
É possível sugerir que, da sintonia do mundo socialmente construído com o
mistério da vida, se apresenta uma natureza oculta, abstrata, em que por meio do
reconhecimento dos mecanismos de transcendência o ser humano é capaz de traduzi-la.
82
Por meio da arte o ser humano cria tal oportunidade, mas esta experiência de
totalidade e inteireza não se faz negando sua dimensão transcendente ou até mesmo religiosa.
Para que seja alcançada essa visão profunda sobre as verdades da vida, o indivíduo precisa
seguramente encontrar-se no caminho de sua totalidade. O que também inclui o
desenvolvimento de suas inteligências de modo especial sua espiritualidade.
Uma pessoa cultivada espiritualmente é capaz de viver a si mesma e as relações com os outros e com o mundo de um modo significativo e distinto. O desenvolvimento integral e pleno de uma pessoa é possível apenas se forem estimuladas todas as faculdades e inteligências. Isso exige trabalho da inteligência espiritual. Os benefícios são múltiplos e justificam exaustivamente o esforço (TORRALBA, 2013, p. 205).
Por meio da arte, uma das dimensões do ser, pode revelar incontáveis sínteses
de etapas da experiência existencial do homem, com uma gama inesgotável de variantes que
sempre incluem amplas influências dos cenários sociais, culturais e religiosos. Tais
influências impulsionam o ser a revisitar-se, a interiorizar, meditar, fazer o confronto,
questionar a existência. A arte por seu poder expressivo poderá dizer muito sobre o intimo
humano, e assim aproximar o ser de sua totalidade. Por meio de sua arte o indivíduo poderá
fazer descobertas que não estão visivelmente expostas em seu mundo material.
Aproximar-se de sua totalidade é um caminho que exige trabalho e esforço.
Um desprendimento necessário do mundo materialmente construído, para que o mergulho no
interior de si mesmo seja profundo e revelador.
O conhecimento sobre si mesmo é abertura para dentro, enquanto que o conhecimento das coisas é abertura para fora. Uma dupla abertura, pois, dá-se no ser humano: para o mundo interior, que conduz ao conhecimento de si mesmo, e para o mundo exterior, que leva ao cultivo das ciências (TORRALBA, 2013, p. 103).
Quando se busca o conhecimento profundo sobre e si, um novo olhar começa a
ser desenvolvido sobre o sentido das coisas. As relações com as pessoas e com o mundo
circundante ganham possibilidades e se descortina algo para além das aparências, a
experiência de encontrar sentido na existência, não ocorre de maneira significativa se buscada
sem que se tenha feito esse percurso ao profundo de si mesmo. Por meio das artes tal
mecanismo pode ser amplamente alcançado, pois toda arte verdadeira revela algo
significativo para alguém.
Na trajetória do bailarino e coreógrafo, Bernhard Wosien ao afirmar que: “Na
arte aparece-nos a essência das coisas. Não é a visão do nosso mundo quotidiano que nos é
83
revelado, mas, sim, uma, outra verdade mais profunda” (WOSIEN, 2000, p.127). Esta noção
de verdade mais profunda, que brota da necessidade de encontrar o sentido da existência, não
acontece isoladamente, o ser humano se faz síntese de uma série de acontecimentos e ao
mesmo tempo se põe a caminho. Na dança tal caminho poderá ser construído, desde que
esteja reconhecido o encontro entre a transcendência, à espiritualidade e a sua arte.
O artista expressa a beleza por meio de sua obra e busca a melhor forma de expressá-la. Essa busca é precedida sempre de sofrimento e por vezes, de angustia, porém só pode expressá-la a partir da obra se a percebeu em seu interior (TORRALBA, 2013, p. 113).
O ser humano não está completamente pronto e este saber lhe garante buscar,
mergulhar naquilo que o inquieta e este mergulho inclui sua origem, sua biografia e as
perspectivas do seu “fim”, a sua morte ou parte daquilo que nele morre, para que se
compreenda e se prepare para tornar-se um com o universo, com o infinito, ainda que de
forma orgânica. Mas este ser não é apenas físico e orgânico, ele tem seu auge em seu espírito,
por isso transcende, por isso toca ou se aproxima do Sagrado, do Divino, do Transcendente e
se deixa tocar.
O seu espírito e a sua capacidade de transcendência o eleva a uma condição
extraordinária de seu existir. Pois o seu espírito o torna inacabado e uma vez lançado ao
mistério profundo que o habita, ele também se percebe como mistério, e ao mistério não
ousamos ter certezas. Cabe ao ser humano aprofundar-se em sua natureza espiritual e
transcendente, para que seu corpo e sua mente encontrem as pistas para uma possibilidade de
equilíbrio perfeito com o todo do qual é parte.
3.2.1 A dinâmica entre espiritualidade e transcendência
A aceitação da condição finita do ser humano, porém transcendente, poderá
possibilitá-lo ampliar as fronteiras de sua realidade visível. Reside no ser do homem algo que
o capacita projetar-se além do seu tempo e de seu corpo físico, e neste projetar-se se inclui o
autoconhecimento e a autorrealização. O ser se mantém lançado na construção de
conhecimentos, ele deseja construir, realizar e suas atividades não se fazem a parte de sua
dimensão transcendente, por meio de sua autorrealização ele pretende alcançar a sua
totalidade. Sendo “a autorrealização uma tarefa na qual, por definição, o homem está
empenhado na totalidade do ser”, (VAZ, 2003, p. 161). Direcionado a encontrar os caminhos
que o levem a sua totalidade, o ser passa a agir, impulsionado por seus anseios, ele vai a cada
tempo histórico aprimorando e refinado as suas ações, sem elas não seria possível dar
84
continuidade ao profundo conhecimento de si. Sem a ação, este ser poderia encontrar-se
estagnado no tempo. “[...] o homem se realiza agindo, isto é, existindo na ação pela ação.”
(Ibidem p. 162).
A ação humana dar-se por meio de um movimento transcendente, pois
ultrapassa o seu eu individual e se encaminha para relacionar-se com o todo que o cerca.
Cultural e socialmente o ser reproduz de modo continuo uma dinâmica de espiritualidade
transcendente, pois está no mundo, lhe confere níveis relacionais, que o permite sair de si para
transformar, criar, moldar a história a partir do que pensa e sente. Ao ser não seria possível
expressar, cultivar e dar frutos de sua espiritualidade sem a dimensão transcendente. O estar
no mundo lhe confere estabelecer relações e tais relações quando se busca melhorá-lo e
transformá-lo, ocorrem por meio de mecanismos ao mesmo tempo transcendentes e
espirituais.
O homem é um ser que está no mundo e com o mundo. Se apenas estivesse no mundo não haveria transcendência nem se objetivaria a si mesmo. Mas como pode objetivar-se, pode também distinguir entre um eu e um não-eu. Isso o torna um ser capaz de relacionar-se; de sair de si; de projetar-se nos outros; de transcender. Essas relações não se dão apenas com os outros, mas se dão no mundo, com o mundo e pelo mundo, nisso se apoiaria o problema da religião (FREIRE, 1981, p. 81).
Na contribuição de Paulo Freire, é possível perceber um indivíduo que
estabelece relações com o mundo no qual está inserido e a forma com a qual ele irá construir
o seu pertencimento ao mundo, desejando participar e transformá-lo, esta ação lhe confere
níveis de transcendência e de espiritualidade. A educação transmitida, sobretudo, nas escolas
deveria contemplar conhecimentos referentes à transcendência e a espiritualidade. Em alguns
setores da sociedade existem adolescentes e jovens que nunca ouviram falar sobre a dimensão
transcendente do ser e sobre espiritualidade enquanto natureza dimensional.
O desenvolvimento das potencialidades do indivíduo deve ocorrer, de maneira
integral. Não se pode desejar conviver em sociedade de forma justa e equilibrada, quando
milhares de pessoas desconhecem as suas próprias dimensões. Sendo pertinente ressaltar a
importância de oportunizar as pessoas, de modo geral, conhecer e dialogar sobre as suas
próprias dimensões. Na busca por mudanças em nossa cultura educacional, a da disciplina de
Ensino Religioso ou de Cultura Religiosa nas escolas, incluindo as da Rede Pública de ensino,
estas se tornam um veículo onde se é possível ao menos apresentar esses aspectos ao grande
público estudantil. Favorecendo, também, projetos que possam ser desenvolvidos na própria
85
escola e nas comunidades a partir de temáticas onde o corpo transcende, seja nas artes, nos
esportes e ou em atividade de cunho espiritual.
A sabedoria do místico e poeta D. Hélder Câmara, no convite que faz a todas
as pessoas em um dos seus escritos, a buscarem ultrapassar-se a si mesma, constrói uma ideia
de transcendência que irá contribuir para que o ser humano possa pensar e agir em favor do
mundo ao qual faz parte. Ressaltando o papel do indivíduo que se lança no coletivo de
maneira consciente e responsável, buscando entender com humildade o seu papel na
sociedade, que não acontece sem a ação. Assim escreveu o dom da paz: “Ultrapassa-te a Ti
mesmo, a cada dia, a cada instante... Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação
sagrada de contribuir sempre mais e melhor, para a construção do mundo” (CÂMARA, 1978,
p. 62). O exercício de ultrapassar-se a si mesmo é correspondente à busca por autorrealização
que por intermédio da transcendência permite que ser humano se utilize de seus potenciais,
num movimento vital para a sua existência e permanência neste mundo. Ampliando a noção
de transcendência ao ponto de ser percebida imbricada na vida.
A transcendência pode levar o ser à superação, a vencer os seus próprios
limites, tais disposições da transcendência encontram-se ligadas às relações interpessoais, aos
eventuais enfretamentos da vida como doenças e sofrimentos, e também na dedicação à
realização de sonhos e projetos para o futuro. A transcendência, também pode ser associada a
escolhas conscientes que podem dar sentido a existência humana, esta dinâmica entre
transcendência e busca de sentido não acontece separada da espiritualidade.
A natureza transcendente do ser o faz criar formas renovadas para o que ele
busca, enquanto resposta para si e para o seu tempo. A sua permanência neste mundo o faz
manter-se num estado quase que permanente de protesto diante das realidades que possam
sufocá-lo, ou impedi-lo de realizar-se. De acordo com Leonardo Boff, “[...] somos de natureza
transcendente, e por isso estamos sempre para além e protestando contra limites impostos”
(BOFF, 2009, p. 11). Assim, embora esteja o ser humano impelido a viver situações em que
sua liberdade e realização encontrem-se ameaçadas, este poderá prevalecer-se de sua condição
transcendente para buscar transpor tais limites e romper as aludidas realidades. De acordo
com Torralba, “a inteligência espiritual permite identificar os limites e resistências que
permanente acompanham a vida humana”, sendo assim, ao passo que a espiritualidade nos
ajuda a perceber os entraves da vida, a transcendência põe o individuo na condição de poder
superá-los.
86
Por mais coagido que esteja o ser humano, o desejo de não sucumbir mesmo
estando preso a uma determinada realidade, ele irá colocar-se numa atitude de protesto, de
não aceitação e de não conformismo. “Protestamos contra a realidade na qual estamos
mergulhados porque nos sentimos aprisionados por ela e, ao mesmo tempo, para além dela e
transcendentes a ela” (Boff, 2009, p. 11). O reconhecimento da dimensão transcendente
poderá ser marcado por inúmeros fatores, entre eles, quando percebemos sistemas sociais ou
culturais fechados, mas, que ainda sim, são enfrentados pelos indivíduos.
Ao longo da história incontáveis homens e mulheres enfrentaram ou
entregaram a própria vida por não concordarem com sistemas opressores ou intransigentes.
Tal enfrentamento pode ser impulsionado por sua capacidade de transcendência, pois ao
lançar-se em busca de uma transformação, na superação de algo que o impede de realizar-se,
este ser está transcendendo. Desse modo, “[...] não há sistema social, por mais fechado que
seja, que não tenha brechas por onde o ser humano possa entrar e fazer romper essa realidade
fechada” (BOFF, 2009, p. 11). A dimensão transcendente do ser encontra-se atrelada aos seus
desejos, sonhos e utopias, e não pode ser considerada como uma fuga da realidade, pois se
transcende a partir dela, os desejos, os sonhos e as utopias encontram o seu sentido justamente
por estarem alinhadas com a realidade, por mais que a realidade se mostre contraditória e
carregada de enfrentamentos.
Por mais aprisionado que esteja, nos fundos da Terra ou na ilha mais deserta, mesmo aí o ser humano transcende esta situação. Porque, com seu pensamento, ele habita as estrelas e, com seu desejo, suspira por outros espaços abertos. Por isso, nós temos uma existência condenada à transcendência, à liberdade e à superação dos limites impostos (BOFF, 2009, p. 11).
Sabe-se que a transcendência ela pode vir a ser acionada sempre que o ser
humano desejar transpor acontecimentos, limites impostos, barreiras sociais, situando-se fora
do contexto diretamente religioso.
Sendo importante refletir que, devido às religiões utilizarem-se do mecanismo
transcendente, pois a maioria das religiões aponta o Transcendente, e nesta relação se elabora
o pressuposto da fé religiosa, foi sendo elaborada na contemporaneidade, uma compreensão
equivocada a respeito da transcendência, quando se interpretada que tal dimensão seja uma
exclusividade das religiões, que a dimensão de transcendência origina-se na crença na crença
em Deus. Este fato pode levar os indivíduos que negam a crença, a negarem a própria
capacidade de transcendência. Um ateu pode aproximar-se das expressões imanentes e da
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espiritualidade e facilmente excluir a dimensão transcendente, se esta culturalmente estiver
apenas compreendida a partir da transcendência religiosa. Assim como a espiritualidade, a
transcendência não é exclusividade das Tradições Religiosas ou das pessoas que possui uma
crença religiosa. “A vida espiritual não é patrimônio das pessoas religiosas. Todo ser humano,
pelo simples fato de existir, é capaz de vida espiritual, de cultivá-la dentro e fora do âmbito
das religiões” (TORRALBA, 2013, p. 49).
A transcendência que é condição do ser faz parte de sua natureza humana, que
de forma espontânea poderá ser conhecida e explorada ao longo de sua vida. Assim como a
espiritualidade também a transcendência não são monopólios das religiões, embora se
reconheça que as tradições religiosas na sua forma de ser no mundo lidam continuamente e
em algumas circunstâncias com bastante propriedade no que tange a espiritualidade e a
transcendência. Nesse sentido, como identificar o que estaria equivocado quanto à
transcendência e as religiões? Para Leonardo Boff (2009, p. 12):
[...] todas as religiões nos viciaram, pois sempre se referiam à transcendência, mas nos passaram uma visão distorcida dela. Transcendência para a maioria das religiões era o céu, o outro lado, o lá em cima, o lugar próprio de Deus e de seus anjos. A imanência era contraposta à transcendência. Era aqui em baixo, a Terra, o mundo sublunar, natural e humano. Passaram-no a ideia de que ambos se contrapõem. São dois mundos separados.
Tal construção transmitida onde transcendência e imanência não se
complementam, consideradas independentes, pode gerar entre os indivíduos uma ideia de que
a transcendência só poderia acontecer quando houvesse um desligamento do seu mundo
cultural e socialmente construído. Por outro lado – embora esta visão tenha predominado e
certamente ainda se mantenha em algumas camadas das tradições religiosas – as religiões ao
estruturarem a fé dos indivíduos permitem que estes estabeleçam relações entre
transcendência e mundo próprio que se vive. Desse modo, é possível perceber uma relação
imbricada entre transcendência e espiritualidade. As atitudes que revelam espiritualidade não
se dão aleatoriamente, para que aconteçam é necessário o desenvolvimento de níveis de
transcendência. Mesmo uma experiência de espiritualidade fora do contexto religioso, e sem a
transcendência religiosa, depende da capacidade transcendente para demonstrar-se.
A transcendência e a imanência possuem características distintas, visto que a
transcendência ela opera utilizando-se das dimensões abstratas e a imanência são eventos
concretos que se dão diante dos nossos olhos. Porém não se realizam como opostos,
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transcendência e imanência podem apresentar-se com grande estreiteza, por exemplo, uma
criança que luta contra um câncer, ao mesmo tempo em que transcende os seus limites para
vencer a doença, é um acontecimento imanente para quem ver, pois concretamente se tem
uma criança transpondo os seus limites para sobreviver.
Outro exemplo referente à relação de simultaneidade entre transcendência e
imanência, seria quando o casal de bailarinos está no palco, não é possível sem conhecer a
trajetória de ambos, mensurar todos os limites que tiveram que ultrapassar para estarem juntos
naquele momento da apresentação, os anos de dedicação, abdicação, angustia etc. Quando se
assiste a apresentação, aquela dança não ocorre isenta de altíssimos níveis de transcendência e
ao mesmo tempo ela é extremamente imanente, pois está acontecendo ali diante de todos.
Com relação aos dois exemplos, tanto a criança que luta contra o câncer e o
casal de bailarinos em sua apresentação, são situações transcendentes e imanentes, tanto para
eles que vivem a experiência, como para as pessoas que a partir da experiência deles, poderão
entrar num processo de transcendência e reproduzir novas situações imantes. O que resulta do
encontro entre transcendência e imanência é considerado espiritualidade.
As bailarinas e coreógrafas entrevistadas no segundo capítulo do trabalho,
tanto Fátima Guimarães, como Lúcia Helena D’Ângelo e Maria Paula Costa Rêgo, afirmaram
perceber com outras palavras essa cadeia de transcendência que a dança é capaz de fazer, a
cena dançada provoca, na plateia um estado de êxtase, transcende quem dança e
consequentemente quem ver a dança, são estímulos que provocam reações no corpo, corpo
este percebido de maneira completa, em unidade, quando o corpo vibra para transcender estão
juntos, consciência e espírito. Tal experiência também ocorre fora dos espaços diretamente
religiosos, fazendo-se perceber que a transcendência não algo exclusivo de uma determinada
cultura, a transcendência ela acontece no ser e se acontece no ser revela seu espírito.
[...] a transcendência não pode ser reduzida apenas ao campo das religiões, porque trabalham diretamente com o conceito de “Deus” cuja realidade está para além de qualquer limite e por isso é transcendente. A transcendência é um dado antropológico. Define nosso ser essencial. Ninguém possui ou detém o monopólio da transcendência. Ela é dada a todos, todos se realizam nela e todos a revelam (BOFF, 2009, p. 17).
Em torno das vidas que transcendem e fazem conjuntamente outros
transcenderem e reproduzem cenas ou situações imanentes, e este gesto imanente ele é
carregado do espiritual, para ser um ato completo capaz de dar sentido é necessário se ter a
clareza do papel do espírito que anima este ser e o mantém transcendendo e produzindo
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imanências ao longo de sua trajetória. “Nossa existência histórica revela, pois, as duas
dimensões: a transcendência e imanência. Mostra nossa abertura infinita e, ao mesmo tempo,
sua concretização finita” (BOFF, 2009, p. 16).
Certamente inúmeras biografias sobre extraordinários (as) artistas da dança
poderiam confirmar estas proezas advindas da relação do ser que pertence ao mundo que vive,
por meio do seu corpo que transcende e ao transcender não o faz sem o espírito. Ao afirmar
que o ser transcende e que o ser é transcendente, percebe-se a genialidade de muitos (as) dos
(as) que dançaram e de tantas outras áreas, em que este ser que transcende se aproximara da
perfeição daquele determinado tipo de movimento, arte ou profissão.
Permanecendo com o exemplo das biografias construídas através da dança, é
pertinente citar a trajetória do bailarino Li Cunxin, contada no livro “Adeus China, o ultimo
bailarino de Mao” (2007), em que o garoto chinês em plena Revolução Comunista sob o
comando de Mao Tsé-tung, enfrenta todos os desafios para transformar o que aparentemente
estaria reservado ao seu destino. Declarou em sua biografia, que rezava para não ser
eliminado nas fases dos testes e o quanto se manteve num processo de constante superação
dos seus limites. Nesse sentido, “[...] a força para superar determinados limites, para
transcender as resistências da natureza e cansaço corporal têm sua origem no cultivo da
inteligência espiritual” (TORRALBA, 2013, p. 187), considerado a afirmação de Torralba,
torna-se perceptível à relação profunda entre transcendência e espiritualidade, alguém
motivado a superar-se, busca uma força advinda do espírito.
Uma trajetória marcada por múltiplas formas de transcendência que reproduziu
incontáveis situações de imanência, certamente não se pode afirmar que sem o lançar-se de
forma transcendente, se o mesmo teria conseguido firmar-se na sua arte e em sua
autorrealização. Porém é inegável que a partir do contexto em que estava vivendo, algo maior
foi buscado para que ele conseguisse enfrentar a distância da família, da cultura, a pressão
política do governo da China, do qual recebeu ameaças de ser deportado durante os anos que
permaneceu nos Estados Unidos, para alcançasse o caminho de sua totalidade. “[...] somos
seres que rompem barreiras, violam interditos, se lançam para além de todos os limites dados”
(BOFF, 2009, p. 17). Li Cunxin descreveu que onde vivia na China era um cruel e injusto, e
que no fundo do coração, guardava uma esperança. Ele afirmou que “[...] a semente de
esperança resistiu e se aninhou em minha mente. Ela tem força. Ela me fez sentir que, um dia,
tudo daria certo” (CUNXIN, 2007, p. 33), Li Cunxin adentrou no caminho de sua totalidade
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quando transcendeu e experimentou a liberdade por meio de sua dança. “[...] o ser humano se
descobre um projeto infinito (transcendência), realizado no finito (imanência)” (BOFF, 2009,
p. 22). O que deixa ser perceptível o quanto a transcendência encontra-se enraizada na vida,
uma abertura no ser que o encaminha para construir as relações do seu mundo social e
cultural.
É o seu lado de abertura, é sua capacidade de ultrapassagem, é sua ousadia de romper interditos; é sua liberdade essencial. Essa dimensão convive com a outra: é um ser situado no espaço e datado no tempo; é um ser enraizado nos limites da realidade; é um nó concreto de relações (BOFF, 2009, p. 22).
A partir do exemplo, do bailarino Li Cunxin, sabe-se que ao longo da história,
são inúmeras as experiências que o ser humano nos mais diferentes cenários culturais se põe
ao enfrentamento sem deixar-se enquadrar por realidades que anulem a sua possibilidade de ir
além, de realizar-se existencialmente, de construir totalidade.
[...] o ser humano nunca se deixa enquadrar por nenhum arranjo existencial, por nenhuma compreensão da realidade, por nenhuma religião, por nenhuma sociedade, por nenhuma definição (BOFF, 2009, p. 23).
A reflexão feita por Leonardo Boff remete a um estado permanente de não
aceitação a tudo aquilo que venha a ferir a natureza humana. Não há medida para um sonho,
nem para o desejo que habita o ser, somos seres de desejo. E este ser humano que deseja, vai,
em busca de alcançar, de realizar, de fazer, e neste processo encontra-se em jogo uma série de
mudanças e de transformações necessárias para aquisição de identidade e ou a manutenção
dela.
Construir e enfrentar o mundo com a sua identidade são atos transcendentes
que não são construídos fora das necessidades da vida. O desejo perante a vida, por encontrar-
se e situar-se no mundo, procede de um vazio existencial, que continuamente o homem quer
dar-lhe resposta, como se a cada passo dado pelo homem ele avaliasse se esta caminhada de
vida lhe fornece sentido, se suas construções sociais, culturais e religiosas estão sendo capazes
de aquietá-lo. É imprescindível atribuir a esse ser humano o desejo de encontrar sua
totalidade, ele encontra-se movido por uma realidade concreta, porém para além dela, e em
seu mundo imanente que dialoga com a sua dimensão transcendente produzindo frutos dessa
relação, ainda não capazes de deixá-lo como uma obra concluída, terminada, algo parece
sempre escapar.
Nós nos referimos ao ser como um ser situado e ao mesmo tempo aberto em totalidade, um ser desejante. Há um vazio nele do tamanho de Deus, pois
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nada do que encontra em sua experiência empírica o preenche. Quer a totalidade e somente encontra fragmentos (BOFF, 2009, p. 39).
Os fragmentos dessa totalidade pretendem dar respostas para preencher esse
vazio que – embora, apresentando-se como vazio – consegue orientar o ser humano, pois ao
longo da existência ele vai tentando preencher-se e percebe que algumas de suas escolhas o
preenche ilusória ou temporariamente, por isso o seu processo de busca em tentar preencher
esse vazio que faz parte de condição humana parece não ter fim.
Diante dos apelos da vida, algumas religiões conseguem propor caminhos que
levem os seres humanos a tornarem-se coerentes e que isso se reproduza em atitudes ao longo
da existência. Em alguns casos, pessoas que vivenciaram uma espiritualidade aberta,
construída no pertencimento ou não de uma religião, conseguiram ser a diferença no mundo
da descrença, do consumismo, do individualismo, das sociedades hipócritas e ou insensíveis
ao sofrimento e a condição do outro.
Na contemporaneidade assistimos as religiões buscando continuar de maneira
ousada o seu papel, e de algum modo à forma como elas interpretam sua relação com o
Transcendente continuam produzindo, ainda que pequenos reflexos na vida das pessoas,
pertencentes ou não de uma determinada tradição, uma inquietação, uma reflexão para dizer
que se as religiões não são capazes de oferecer respostas perfeitas para a condição humana,
também fora delas nenhuma outra, nem a ciência nem os sistemas políticos nos países com
grandes potenciais econômicos o farão.
Na contemporaneidade as religiões exercem o seu papel ao mergulhar no
mistério profundo da vida, aproximando o ser humano do sentido que ele tanto deseja e
procura. Ao construir afirmações, as religiões propõem caminhos.
[...] É o caminho das religiões ou da sabedoria dos povos. Elas mostram uma inaudita ousadia de dar nome ao obscuro objeto de desejo humano. Chamam-no de Javé, de Alá, de Shiva, de Brahma, de Tao, de Olorum. Numa palavra de Deus. Deus só tem sentido se significar a resposta existencial ao desejo radical do ser humano, a sua dimensão de transcendência (BOFF, 2009, p. 41).
São também por meio dos caminhos construídos pelas religiões que as
experiências de transcendência e espiritualidade estão presentes nas culturas e sociedades, tal
inserção continuará fornecendo a sua contribuição na formulação de possíveis respostas para
as questões existenciais.
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[...] a experiência de fundo que subjaz a todos os caminhos espirituais e a todas as religiões e que representa a secreta Energia que move para cima e para frente à existência humana. Esta energia funda a capacidade permanente de transcendência do ser humano. Efetivamente ele só encontra um correlato a ele, em Deus mesmo, fonte de todo ser. Aí então repousa e encontra o lar de identidade (BOFF, 2009, p. 43).
Os níveis de transcendência apresentados e percebidos entre as experiências do
ser humano permanecem presente na cultura contemporânea de forma direta ou indireta as
religiões continuam assegurando a possibilidade de tal dimensão ser conhecida e explorada,
afim de que os indivíduos motivados por se encaminharem para a sua totalidade não neguem a
sua dimensão transcendente e espiritual. “Somos um movimento que vai sempre mais longe”
(TORRALBA, 2013, p. 155). E este movimento de sempre buscar ir mais longe, depende do
reconhecimento da capacidade de transcender motivada pelo cultivo da espiritualidade.
3.2.2 A noção de espírito e a espiritualidade do ser
A dimensão do espírito presente e sendo o próprio ser, declara ao homem à
possibilidade de uma forma superior de vida, que se faz num primeiro momento dentro de si,
no seu interior. “O espírito como princípio interno de vida ou como forma superior de vida.”
(VAZ, 2004, p. 183). Do espírito transborda a espiritualidade. A partir do espírito o ser
humano passa a entender que a vida possui um sentido tão belo quanto grandioso.
O espírito como vida, como inteligência, como ordem da razão e como consciência-de-si, que se unificam os traços fundamentais da existência espiritual na qual tem lugar a pré-compreensão do espírito (VAZ, 2004, p. 185).
Além de encorajar o ser diante dos desafios individuais e coletivos, parece que
uma espiritualidade profunda se deixa acontecer por meio de uma síntese das inúmeras
virtudes, sentimentos e reflexões. São os aprendizados adquiridos ao longo da trajetória, as
marcas, o recomeçar, o desprendimento, um processo constante e inacabado, para deixar o ser
humano diante de sua própria humanidade, isto é sem dúvida uma condição do espírito que
anima o homem. É por meio do seu espírito que ele abra-se ao universo transcendente.
Com categoria do espírito [...], atingimos o ápice da humanidade do ser humano. É nesse nível que o ser do homem abre-se necessariamente para a transcendência: trata-se de uma abertura propriamente transcendental [...] um ser estruturalmente aberto para o Outro (VAZ, 2004, p. 181).
Quando os indivíduos passam a transparecer a sua espiritualidade, estão dando
fragmentos de sua completude, o que foi construído de mais nobre naquele ser, é entregue aos
93
demais, sem máscaras, sem segundas intenções. O que faz o ser encontrar-se com sua
natureza, com a sua humanidade.
A espiritualidade não visa, pois, a superarmos ou transcendermos nossa condição humana, mas, pelo contrário, a entrarmos profundamente em contato com a nossa humanidade, em tudo que esta possui de luminoso e sombrio. A vida espiritual é um chamado a experiência de inteireza de nosso ser, a nos tornarmos familiarizados conosco mesmos, de modo a incluir conscientemente em nosso ser todas aquelas dimensões que negamos ou ignoramos (JUNIOR, 2012, p. 83).
A espiritualidade não surge do nada, e também não se apresenta com garantias
de uma vida sem desafios, ela poderá se desenvolver como resultado de renuncias, do sair de
si para perceber o outro na condição de diferença, do mergulho ao mistério profundo de si e
da essência da vida, das inquietações, do desanimo, da alteridade, da resiliência, da
transitoriedade e também da fé, e sem dúvida sendo buscada continuamente, assumindo o seu
tempo presente.
O cultivo da espiritualidade não traz a promessa de uma vida sem problemas e desafios, mas permite o ser humano viver plenamente o presente com ele é. [...] A espiritualidade não é um compartimento separado de nós mesmos. Nós estamos nela e ver isso só depende do modo como nós mesmos resolvemos viver (JUNIOR, 2012, p. 82).
O começo para um desenrolar espiritual pode ser contraditório, algumas
espiritualidades podem partir de tragédias pessoais, das perdas materiais, ou do contrário, ela
pode iniciar a partir de uma história de vida considerada feliz, de uma sucessão de conquistas,
de êxitos pessoais, de uma profissão que deu certo, de uma família afetuosa. Os cenários
possíveis para o desenvolvimento da espiritualidade são diversos, porque pertence à
construção social e cultural do homem que imprime variantes. “A espiritualidade abre-se em
todos os instantes da vida” (ROHR, 2012, p. 39). O seu meio poderá prover estímulos que
facilitarão ou não, o favorecimento para florescer uma espiritualidade integrada à vida,
promotora do sentido de coexistência e de interculturalidade.
Uma espiritualidade embora desenvolvida individualmente, mas que atinge e
retroage ao seu meio social e pode abrir-se a princípios éticos tão necessários ao convívio
social. São através das relações estabelecidas com as estruturas sociais de que faz parte, que
poderá colocar em prática a sua espiritualidade, ou mesmo os seus fragmentos.
No comportamento em espaços sociais, bem como na avaliação ética de conceitos e teorias que dizem respeito à coletividade humana. Essa ética, apropriada na dimensão espiritual, é a base para uma criação de estruturas humanas na sociedade e na comunidade (ROHR, 2012, p. 38).
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O aprimoramento da espiritualidade depende de uma escolha consciente que
estará permanentemente entrando em conflitos, com os seus meios relacionais, com as suas
crises e enfrentamentos, fazendo com que o seu discernimento esteja sempre em diálogo com
os acontecimentos que podem o afastar do seu ideal de autorrealização.
Participando de diversos ‘universos culturais’, o homem contemporâneo experimenta, de modo muitas vezes dramático, a fragmentação do seu ideal de autorrealização entre objetivos de vida que, nas tarefas da existência, disputam a primazia e solicitam a soma de maior de suas energias (VAZ, 2003, p. 169).
Para que se atinja um estágio de maturidade espiritual, a dedicação e o
empenho são condições essenciais nesse processo. A espiritualidade abre caminhos para o
encontro com sua totalidade. Mas não será uma tarefa fácil, será sempre exigido do ser uma
consciência e um desejo por sua autorrealização. “[...] a autorrealização uma tarefa na qual,
por definição, o homem está empenhado na totalidade do seu ser” (VAZ, 2003, p. 161). Em
meio a uma rede de relações que o envolve continuamente, por meio de seu esforço e
trabalho, o ser poderá elaborar fragmentos dessa totalidade.
3.2.3 Os caminhos para a totalidade do ser
A religião e a dança são produtos humanos presentes nas culturas e sociedades
contemporâneas, possuidoras cada uma ao seu modo – com as suas devidas semelhanças – de
meios capazes de conduzir o homem ao conhecimento do mistério que o habita e que também
se encontra presente no universo. Estando o ser num processo de busca, ele se depara com a
possibilidade de mergulhar em sua totalidade, aqui encontramos um dos pontos significativos
comum entre a dança e a religião que podem ajudar o ser no caminho para esta totalidade.
Estando a construção social do ser relacionada com a religião, esta experiência
será revelada através do como este ser se expressa para comunicar as suas dores e as suas
esperanças. “A dança é então um modo total de viver o mundo: é a um só tempo,
conhecimento, arte e religião” (GARAUDY, 1980, p. 16). Permanecendo na
contemporaneidade este entrelaçamento entre a dança, a religião e o modo de viver não
apenas como afirmação conceitual, mas assumindo o seu papel social e existencial
transformador. A coreógrafa pernambucana Lúcia Helena D’Ângelo como foi citado
anteriormente, percebe em sua experiência o que Roger Garaudy afirmou sobre o modo total
de viver o mundo. Na experiência da artista Lúcia Helena D’Ângelo, ela afirma:
95
[...] procurei na minha dança tudo que eu poderia demonstrar em termos de sentimentos, alegria, de prazer, também de dor. Passei por várias experiências em que era necessário colocar isso através da dança. Então nesse meu tempo de experiência de trabalho nós passamos por vários momentos em que a dança me levantou, e eu consegui realmente renascer, eu devo muito a dança, superar um pouco a perda de um filho e isso me fez bem, a partir do momento que eu fiz a coreografia, especialmente pra ele, é como se conseguisse me libertar e ao mesmo tempo ter um diálogo com ele, através da dança, através da coreografia.
O modo de viver conduzido por uma dança consciente permite que o ser
humano manter experiências de espiritualidade e transcendência “A dança exprime a coesão e
o poder transcendente da comunidade” (GARAUDY, 1980, p. 20), produza para si e para os
outros níveis de espiritualidade. Propondo mudanças e descobertas valiosas para seu
crescimento e amadurecimento. Como afirma Junior:
O cultivo da espiritualidade pode nos proporcionar viver neste mundo de um modo inteiro e completo, desde que entendamos que esta plenitude se refere ao nosso ser. Tal completude se revela em nossa vida em situações simples (JÚNIOR, 2012, p. 82).
Para que seja compreensível ao ser o entrelaçamento e a interdependência, das
formas que constitui a unidade como totalidade, ele terá que reconhecer a presença do espírito
que se deixa conhecer através do modo como vive a vida e manifesta sua criatividade,
sensibilidade e intuição. “[...] só pelo espírito o homem opera humanamente e produz obras
propriamente humanas.” (VAZ, 2004, p. 191). É por meio do seu espírito que o ser humano
poderá buscar formas para transpor a sua essência, não haverá outra via para este espírito
manifeste sua totalidade senão por linguagens humanas. Assim como acontece entre os
dançam na contemporaneidade, nada tão espiritual e transcendente como transferir emoções e
sentimentos para o movimento, que é um movimento humano, através do corpo, que é um
corpo humano. “A presença espiritual como presença reflexiva confere à linguagem sua forma
especificamente humana de manifestação” (Ibidem, p. 190).
No nível do espírito o ser-no-mundo do homem é um ser de linguagem, entendendo-se aqui linguagem num sentido amplo como sistema de signos e significações. Portanto, o mundo no qual o homem existe pelo espírito é o mundo da linguagem ou das formas simbólicas: nele se desdobram as três dimensões do nosso ser-no-mundo: o Eu, a Sociedade e a Natureza (VAZ, 2004, p. 191).
O ser humano em unidade, praticando sua humanidade e inteireza vai
descortinando os mistérios que o envolve, desde o trajeto que faz para dentro de si, mas, sem
limita-se a ele, até o reconhecimento da necessidade de estabelecer relações com todo o
conjunto do que lhe é exterior, incluindo o seu ser espiritual.
96
São também por meio das atividades consideradas espirituais que o ser humano
encontra-se como o grande desbravador de si mesmo. “É a atividade espiritual em nós, por
meio da qual transluz a essencialidade” (HENGSTENBERG, apud VAZ, 2004, p. 220). O
que é essencial ao ser, apenas poderá ser descoberto por ele mediante o reconhecimento e a
abertura ao seu espírito. O ser que é espiritual no âmago de sua essencialidade, ao mesmo
tempo interiorização e projeção (abertura), prepara o homem para a transcendência, esta
relação o faz produzir sentido ou reconhecer o sentido. Ao considerar que: “O espírito, pois,
sendo abertura transcendental ao ser, é, no ritmo mais profundo de sua vida, inteligência e
amor” (HENGSTENBERG, apud VAZ, 2004, p. 223). É por meio deste espírito que a vida
deixa de ser compreendida como o acaso, e se abre a possibilidade de que a existência não é
aleatória. A partir do espírito se produz vida, que se expressa de forma imanente.
Como ato imanente, o ato espiritual é, assim, o ato vital por excelência, e é nele que, a vida emerge definitivamente sobre suas formas biopsíquicas, mostra-se como perfeição simples ou transcendental [...] (HENGSTENBERG, apud VAZ, 2004, p. 222).
As experiências de vida em que os indivíduos desenvolvem as suas
capacidades seja no campo das artes, ciências, ou da própria experiência de espiritualidade e
busca com dedicação a sua realização, esforço tal que supera a satisfação do ego, e percebe
que a sua existência está em sintonia com o conjunto de relações que o cerca, vencendo assim
todo tipo de mesquinhez ou uma vida que seja reduzida apenas ao bem material, será visto
desse modo, uma vida transbordando a partir do que advém do espírito. O ser humano
vivendo a partir do espírito e revelando-se cada vez mais humano. Quando mais se volta ao
espírito vencendo as superficialidades a que está sujeito, se constrói uma existência
verdadeiramente humana.
O ato espiritual é o ato pelo qual se exerce e se manifesta no homem a vida do espírito. Como tal ele é, por excelência, o ato humano, e seu fundamento é a estrutura ontológica total do ser humano (VAZ, 2004, p. 219).
É possível que o dualismo e as dicotomias nas construções do pensamento ao
longo da história, ainda possam causar dificuldades em alguns contextos culturais, sobre a
noção da humanidade do ser, que se revela integrada ao espírito, ou como manifestação
consciente e buscada a partir dele.
O ato espiritual é o ato pelo qual se exerce e se manifesta no homem a vida do espírito. Como tal ele é, por excelência, o ato humano, e seu fundamento é a estrutura ontológica total do ser humano (VAZ, 2004, p. 219).
97
Ao atingir o nível de maturidade espiritual, parece brotar uma coerência no ato
de existir. Quanto mais humano se mostra, mais está desnudando o seu espírito. Ao agir de
forma humanizada em suas relações, sua inteireza se concretiza. O não reconhecimento do
espírito pode gerar entre os indivíduos, independentemente de sua cultura, um distanciamento
de sua capacidade em desenvolver-se humanamente perante o seu contexto social e diante dos
desafios que se apresente em sua vida.
A partir do contexto dos artistas pernambucanos entrevistados, apresentado no
capítulo anterior, foi possível, a partir dos resultados, sinalizar histórias de vida que através da
dança – e toda a rede de relações que com ela se estabelece – biografias em construção,
porém, capazes de demonstrar que a relação de transcendência vivida, favorece a
espiritualidade e ousaria afirmar a partir do aprofundamento neste estudo que foi constato
fragmentos de totalidade em parte dos entrevistados.
3.3 O ser humano como um projeto aberto ao infinito
Permanece na contemporaneidade a relação entre aquilo que uma parte da
humanidade busca compreender ou afirmar sobre o Transcendente para construir a sua relação
com o mundo. Como sempre se manteve ao longo de todo tempo histórico. Parte do mistério
profundo do ser e de “Deus” são sutilmente interpretados na dança. Para algumas religiões o
seu próprio Deus também pode manifestar-se na dança. Permanecendo vivo no movimento
que acende o mais íntimo de todo ser humano. O ser humano que a Ele se volta, seja qual for
a sua cultura, elaborando uma mística que transcende as leis, a razão e o cientificismo. Que a
Ele oferece o que constrói, pois, não o faz sozinho. Uma dança capaz de devolver ao mundo
um pouco de beleza e harmonia tão ameaçadas e desgastadas. A pobreza do reducionismo que
enquadra o que se julga saber sobre mistério da vida.
Apesar de todos os perigos do qual o homem está sujeito, ao construir suas
experiências a partir de um Deus ou de uma religião, é preciso não negar essa construção nas
culturas, aceitando as suas expressões e interpretações, incluindo o que se revela na arte de
dançar. Um movimento autêntico e comprometido com a vida que continua gestando no seio
das sociedades o ato de criar, de refazer a existência e que torna o homem livre, para descobri-
se e descobrir o que está para além da vida. Nesse sentido, cada cultura ao seu modo buscará
meios para aproximar-se daquilo que ela vai construir sobre “Deus” ou sobre o mistério
profundo da vida, embora nenhum somatório a respeito do que se julga saber sobre Ele ou
sobre o mistério da existência, não seja capaz de determinar o Ser de Deus.
98
Cada religião possui sua identidade e o seu jeito próprio de dizer e celebrar a experiência mística. Mas como Deus não cabe em nenhuma cabeça, pois desborda de todas elas, podemos sempre acrescentar algo a fim de melhor captá-lo e traduzi-lo para a comunicação humana. Por isso as religiões não podem ser dogmáticas e sistemas fechados (BOFF, 2009, p. 55).
A mística em torno do ser de Deus, quando captado pelo ser como origem e
sentido para o universo e tudo o que nele existe, pode encontrar lampejos interpretativos
através da dança, porque existe e resiste na contemporaneidade uma dança se moldando ao
tempo, mas, sem eliminar do seu movimento os meios transcendentes e espirituais, que
permitem as experiências contemporâneas estarem situadas num território de permanente
abertura, de busca, de renovação.
Assim a dança extraordinária da vida tem a sua continuidade para além de si
mesma. Sendo possível estabelecer relações de inúmeras situações da existência com o
movimento dançante, permitindo o ser ter olhar sobre a vida a partir de sua dança. Por
exemplo, a chegada da morte põe o espírito em movimento é uma dança, um ritual cheio de
vida, porque a morte é movimento. O regresso, a partida, o retorno, a continuação das coisas,
o tempo, o agir, a dinâmica do amor, tudo está em movimento. Em nenhum instante vemos a
existência parada, pensamos, falamos, corremos, sofremos, amamos, encontramos,
desencontramos, vamos, voltamos, colhemos, perdemos, plantamos, ganhamos, sonhamos...
Muitos nomes e reflexões certamente surgirão ao se aproximar do mistério da existência. Sem
dúvida também, será visto a dúvida, a pobreza não apenas de crença, mas, de coragem, para
fazer esse mundo fluir na presença do mistério maior que o envolve.
A vida assumida segundo o espírito poderá aproximar o ser, do mistério
profundo da existência. Logo, ao se negar o espírito, latente no ser distancia-se de uma forma
mais ampla de se compreender a sua existência.
Sendo a vida o próprio existir do vivente, ela se manifesta em suas operações. A vida segundo o espírito será, portanto para o homem, o exercício dos atos que manifestam o espírito como o princípio mais profundo e essencial da vida humana. Esses atos do espírito ou atos espirituais descrevem, na variedade de suas formas e de sua intensidade, a curva ou o itinerário fundamental da vida de cada homem, e assinalam os pontos segundo os quais é possível traçar o perfil de sua personalidade (VAZ, 2004, p. 218).
A vida que manifesta o espírito é capaz de revelar o que há de mais humano no
ser. Revelar o espírito, não é promover acontecimentos extraordinários, sobrenaturais. O
desenrolar de uma vida admitida no espírito, não significa contar com intervenções fantásticas
99
para que ela aconteça. O espírito se mostra tal como se é. Sem perder de vista que o ser deve
sempre ser comparado a uma obra aberta, inacabada, pois quanto mais se avança no
conhecimento profundo de si, mais temos coisas novas a revelar. Muito do que
verdadeiramente somos já reside em nossa dimensão espiritual, precisando ser explorada, para
ser revelada. Alcançar nossa essência é uma tarefa humana. Por isso quanto mais
desenvolvermos meios de acesso ao espírito ou de “escuta” desse espírito, mais nos veremos
como seres humanos.
O homem que sensível ao seu tempo e desejando contribuir com ele, buscar
discernir com justiça, amor e responsabilidade sobre as situações da vida, estará
demonstrando e desenvolvendo os seus potenciais contidos na natureza do espírito.
Infelizmente ainda se ver na contemporaneidade uma vasta manipulação no contexto
religioso, em torno da dimensão e da natureza espiritual, como se esta se revelasse em
acontecimentos extremamente distintos da natureza humana. O ser espiritual é um ser
sensivelmente humano. Ao reconhecer o seu papel no mundo, torna-se capaz de se superar e
colocar-se a serviço na construção de algo para além de si mesmo. Sobre essa possibilidade,
Torralba diz que:
Quando me coloco a serviço de alguma coisa, tenho presente esse algo e não a mim mesmo, e no amor ao semelhante, perco de vista a mim mesmo. Apenas posso ser plenamente homem e realizar minha individualidade na medida em que transcendo a mim mesmo em relação a algo ou alguém que está no mundo (2013, p. 89).
Um ser consciente e sensível, voltando-se para o bem de si e da coletividade
poderá demonstrar traços de sua natureza espiritual, o que se revela do espírito no e com
corpo é um evento humano. O melhoramento nas relações humanas é um exemplo
significativo da importância em conhecer a dimensão espiritual.
Considerando pertinente tecer uma reflexão sobre a tolerância perante uma
diversidade de culturas e de credos. Perante um cenário social cheio de transformações,
contradições, violações e comportamentos intransigentes é possível dizer que os esforços para
a construção da tolerância seria um passo para um florescer do espírito, pois quando se volta
de forma profunda à natureza do espírito, o ser pode ir mais além do que simplesmente,
conviver de forma tolerante diante das diferenças. Porque tolerar às vezes pode parecer que o
espírito desistiu ou não consegue mais amar, por exemplo. Como se a tolerância fosse o
máximo que alguém pudesse fazer frente a uma determinada circunstância sociocultural.
100
Nesse caso poderia estar se correndo o risco de limitar a capacidade do espírito. Que se
manifesta na cultura e na sociedade, pois, é parte integrante do ser do indivíduo.
O constante buscar ir além de uma existência superficial, colocando-se em
movimento perante a vida. O reconhecimento de sua capacidade espiritual e transcendente o
levará a superar possíveis impedimentos. O que se origina no espiritual, conduz o ser a ir
além, para Torralba a atitude de cultivar a inteligência espiritual:
Põe em movimento a pessoa, a totalidade de seu ser na direção do que está além de tudo aquilo que é imediato e superficial. Estimula a pessoa a superar-se a si mesma, a dar-se, a transgredir os comportamentos estanques. A vida espiritual é dinâmica e abre a pessoa para novos horizontes, salva-o da atrofia e da monotonia, da instalação num mesmo (2013, p. 91).
Desse modo, o indivíduo que se reconhece no espírito poderá transpor para as
suas experiências de vida algo mais significativo e duradouro. Um corpo espiritual, não está
imerso numa vida rasa e sem propósito, algo constitui esse corpo que o eleva a uma condição
superior do seu existir. O corpo em unidade, caminhando para o completo conhecimento de si,
tornará este ser “enraizado no chão da vida e simultaneamente aberto, jovialmente, à
totalidade” (BOFF, 2099, p. 38).
É uma síntese que nunca se fecha. Não é círculo, mas uma parábola que possui dois pontos de equilíbrio. Sustentá-la permanente faz nossa existência dinâmica, dramática e fascinante. Não seremos deuses, mas simplesmente humanos. (BOFF, 2009, p. 38).
O humano encontra-se posto a preencher o seu vazio existencial. As
incontáveis conquistas e realizações adquiridas em sua vida podem não satisfazê-lo
completamente, por essa razão, o ser trava com si mesmo uma luta, pois ao se perceber
sempre em busca de alcança novos desejos, ele nunca está completamente satisfeito. Esses
desejos não são construídos apenas na guisa do individual, alguns desejos podem vir à tona
incluindo projetos coletivos, mas que, mesmo assim, também são desejos e realizá-los não é
garantia de uma satisfação plena. O ser humano está de fato condicionado a viver como um
ser finito, porém aberto, aberto há algo muito maior e intenso que muitas vezes ele deseja,
mas, não consegue alcançar de forma definitiva. “O ser humano como um eterno protestante,
sempre insatisfeito, um projeto infinito” (BOFF, 2009, p. 39).
Nós nos referimos ao ser humano como ser situado e ao mesmo tempo aberto em totalidade, um ser desejante. Há um vazio nele do tamanho de Deus, pois nada do que encontra em sua experiência empírica o preenche. Quer a totalidade e somente encontra fragmentos (BOFF, 2099, p. 39).
101
São as experiências capazes de traduzir os fragmentos dessa totalidade, que
impulsionam o ser humano a viver em busca de sua completude. Utilizando-se dos
mecanismos que dispõe, o ser lança-se em variados universos construídos socialmente ou em
dimensões abstratas para que a partir delas consiga traduzir seus esforços e tudo o que é capaz
de criar em sentido que o complemente. No mundo dos esportes o indivíduo se ver no
exercício constante e insubstituível para alcançar ou manter resultados à medida que, por
meio do seu corpo físico que possui uma unicidade, vence os seus próprios obstáculos e
desafios. O processo de preparação para a aquisição de uma vitória dar-se mediado por níveis
de transcendência e espiritualidade que podem gerar fragmentos dessa totalidade que o ser
tanto almeja.
No universo das artes, inúmeros momentos podem ajudar a compreender os
fragmentos da totalidade do ser. Um artista plástico diante de uma tela em branco, ele será
capaz de sintetizar inúmeros mecanismos que o compõe enquanto ser para tornar aquela tela
uma obra extraordinária. O artista será capaz de transpor para quadro parte de si que está em
sintonia com o universo e com dimensões para além dele, nesse processo está empenhado
todo o seu ser, os seus movimentos transcendentes e espirituais, também farão parte da
construção de sua obra. Ele não transfere meramente um jogo de técnicas para agradar
esteticamente a quem ver. De acordo com Ana Lisboa Cavalcanti (2009):
[...] A pessoa que faz arte, ou seja, o artista, interpreta os vários momentos e os aspectos do homem, das relações com os outros homens, enfim, da vida, segundo os seus anseios, sua percepção, seu conhecimento de mundo, sua criatividade, sua maneira de pensar a vida (CAVALCANTI, 2009, p. 18-19).
Essa experiência de vida poderá ser capaz de provocar mecanismos para
encontrar os fragmentos de sua totalidade. Assim, outras modalidades das artes também
poderão ser percebidas a conquista de fragmentos da totalidade, nas produções de livros, de
esculturas, músicas, coreografias, etc. Cada processo estará reproduzindo a síntese deste ser
inserido no mundo, sem desconsiderar o privilégio de colocar-se aberto ao infinito. O
universo religioso é considerado um lugar propício para que o ser produza ou alcance
fragmentos de totalidade.
A síntese existencial do ser humano também deve ocorrer quando este se
entrega de igual para igual aos seus “dois mundos”, o mundo material que compreende a
realidade visível e mundo transcendental onde residem as dimensões consideradas abstratas,
sendo mais interessante perceber estes “dois mundos” como unidade, um completando o
102
outro, e não vê-los como compartimentos separados, sem relação e interação. Nestes dois
mundos em constante processo de relação o ser ultrapassa as barreiras do visível e penetra no
invisível, tal dinâmica ocorre de transcendência e espiritualidade pode ser considerada o auge
da exteriorização humana, portanto quando transcende eleva o seu espírito a um status
superior aos condicionamentos e limitações do seu ser infinito. Por consequência do espírito é
possível mergulhar no mistério do Espírito.
O Espírito permite captar a interligação de todos os seres entre si, formando um cosmos cuja grandeza a um tempo o fascina e também o aterra. Pelo espírito capta o Espírito que atravessa, na forma de beleza, de sentido e de propósito, toda a criação, especialmente o ser consciente e livre. Para onde dirigir a atenção do espírito, descortina um horizonte sem horizonte, a infinitude do real, seu lado misterioso e não manipulável por nenhuma força ou vontade. Esta percepção o leva à contemplação e à reverência face ao mistério de todas as coisas do Todo, do qual somos parte (BOFF, 2009, p. 74).
Tal experiência de relação entre o ser humano e o mistério infinito é mais
direta quando mediada pela religião, pois nela se constroem os elementos do crer e os
pressupostos da fé. Por meio das crenças, legitimasse essa relação processual entre o ser e o
seu Ser Superior. Para muitos indivíduos um processo construído de forma equilibrada e
satisfatória, sem causar conflitos em seu modo de existir, pelo contrário fornece sempre a este
individuo condições para que ele possa encontrar caminhos para a sua totalidade.
A prática espiritual e religiosa se constitui também num lugar privilegiado de encontro com o Infinito. As religiões se dirigem diretamente a Ele. Não podem nem devem objetivá-lo nem entificá-lo, como tem ocorrido com frequência na história (Ibidem).
Nos momentos em que ocorrem determinadas tentativas de manipulação ou
controle da relação do ser humano com o seu Transcendente, por parte das religiões
institucionalizadas, percebe-se que o Ser Transcendente apresentando-se como Mistério
inefável, abre-se e manifesta-se em qualquer tempo e lugar que o indivíduo desejar captá-lo.
Mesmo apontando a incontestável importância das religiões em promover de forma
privilegiada o encontro do ser com o Infinito e sua totalidade, ainda se vê inúmeros
desencontros e uma falta de leitura libertadora e coerente da relação do indivíduo com a
espiritualidade e a transcendência. Dos perigos que rondam uma má interpretação dessas
dimensões e as consequências desastrosas que tais interpretações podem suscitar, se percebe o
quanto é necessário buscar analisar o fenômeno religioso na contemporaneidade através de
experiências de vida que em seu processo existencial manifestem relações e práticas concretas
a partir da transcendência e da espiritualidade.
103
Um olhar sensível para tentar identificar que lugar ocupa as religiões nas mais
complexas e diferenciadas sociedades, diríamos que em algumas realidades a religião
apresenta-se no topo da cosmovisão de um povo, ou seja, cosmovisão como sendo a maneira
de interpretar os acontecimentos a partir de um determinado conjunto de ensinamentos
oferecidos. Para outros povos, a religião, apresenta-se como base no engendrar daquela
determinada cultura, ou por fim não exerce função ou interferência direta na vida dos
indivíduos. Estando em qual for o patamar, as religiões ao longo dos milênios teceram uma
enorme teia de relações, o que faz com que os seus valores consigam estender-se as mais
improváveis experiências humanas.
O ser humano continua sendo um mistério, do qual não se pode mensurar ou
qualificar com determinismos até que ponto alguém em sua condição cultural e social
aproxima-se verdadeiramente do mistério transcendente e o deixa revelar-se por meio de suas
atitudes perante vida. Do mesmo modo o Transcendente, também se apresenta como mistério,
ao qual nos é possível recolher fragmentos, e conseguir apontar o que não é d’Ele.
[...] a religião que se ampara numa experiência espiritual reconhece Deus em seu caráter de Mistério inefável que transcende cada palavra e ultrapassa toda representação. Supera assim a metafísica e se alimenta do pensamento originário que se do Ser e não dos entes (BOFF, 2009, p. 74).
Desse modo, toda religião e toda pessoa que se mantém integrada ao seu tempo
e renova seu fôlego na experiência espiritual poderá ter condições necessárias para manter-se
em diálogo com as transformações decorrentes da contemporaneidade. Se tanto o ser humano
como as religiões se autocompreendessem como construções finitas e abertas ao infinito,
poder-se-ia vislumbramos tempos de encontros, de realização coletiva, de utopias necessárias,
de religiões feitas de gente e de sociedades e culturas que saberiam viver em harmonia,
completando-se. As próprias religiões precisam viver buscando a sua totalidade, elas não
devem apenas, reconhecerem-se como promotoras de caminhos para os outros, mas, de se
porem a caminho também.
Neste jogo tão complexo em que alicerça a vida humana em meio há tempos
tão incertos, deve se ampliar as formas de garantir ao mundo socialmente construído que tal
construção não é apenas material, com alicerces rígidos na dependência do poder econômico e
de relações efêmeras, artificiais como se apenas o memento presente tivesse valor. É preciso
continuar os esforços para que cada vez mais se amplie a reconstrução de um mundo possível,
no qual se reconheça e se valorize a sua dimensão de unidade.
104
Dividir com o mundo toda a beleza e perfeição que ele abriga e que a
destruição e a falta de sensibilidade não continuem a distanciar o homem de si mesmo, sem
que se tenha enfrentado o caos de modo criativo e renovador. Sendo o seu ato criador um
meio para contribuir nessa reconstrução do mundo, o ser humano pode dançar e dançando
manifestar para si e para os outros fragmentos de sua espiritualidade e totalidade.
O homem deve dançar, porque uma alegria de viver transbordante, irresistível, arranca os seus membros do torpor muscular; ele quer dançar, porque ele sente com a dança nascer uma nova força mágica que lhe dá: a vida, a saúde, a felicidade (CURT SACHS, apud MICHAILOWSKY, 1960, p. 22).
Neste desejo de construir algo novo, do não conformar-se com estruturas tão
fortemente arquitetadas que reproduzem cenários de sofrimento e descaso com a vida,
encontra-se na dança e na religião através das vias promotoras da transcendência e da
espiritualidade, presentes na contemporaneidade, meios de fortalecer o indivíduo para ele
tenha uma existência comprometida com este mundo. Mundo que permanece em movimento
e o seu movimento continua sendo revelador, sendo urgente captá-lo e tão necessário
transmiti-los aos demais indivíduos. Uma parte daquilo que é se revela no movimento. “Nada
é mais revelador do que o movimento. O que você é se expressa no que você faz” (MARTA
GRAHAM, apud RIBEIRO, 1998, p. 37).
Da força do movimento que permanece no cosmos, encontramos na
contemporaneidade o extraordinário encontro entre a arte da dança e a religião. Para alguns
autores, a relação entre dança e religião possui um caráter espiritual, revelador e
existencialmente profundo. “Através da dança não se diz, mas se é... e a dança é a mais alta
expressão do ser, aquele que dança conhece o poder de Deus” (TED SHAWN, apud
RIBEIRO, 1998, p. 37). “A lenda do Deus dançante, por meio de sua dança divina, cria o
próprio universo e faz reinar a ordem cósmica... [...] ‘Quem sabe a dança vive em Deus’,
como diz o provérbio Hindu” (CURT SACHS, apud MICHAILOWSKY, 1960, p. 23). A
dança, além do seu caráter espiritual revelador, mantém a inata capacidade de agregar os
indivíduos, que ao permanecerem com sentimentos e desejos em comum, podem elaborar
sentido para a vida da comunidade.
A presença do movimento dançante na religião poderá possibilitar aos
indivíduos meios de permanecer em sintonia com o transcendente e com os seus semelhantes.
Em conformidade com Michailowsky (1960), ao citar um trecho extraído dos Apócrifos dos
Apóstolos, a dança é colocada visivelmente como elemento de comunhão.
105
Segundo os “Apócrifos dos Apóstolos”, o próprio Jesus, depois da Ceia Sagrada, e antes de cumprir o sublime sacrifício, ordenou aos seus discípulos formar a cadeia de mãos em redoe d’Ele, dançando. Durante esta união sagrada proferiu: ‘Dancem todos! Aquele que não dança, não sabe o que se passa. Tu que danças estás comigo, estás em mim!’ (MICHAILOWSKY, 1960, p. 23).
A força motora que conduz a inspiração e transforma o sentimento humano em
arte pode ser, admitida, por uma relação entre o Deus criador e sua criatura, expressa assim
numa perspectiva aliada com a tradição judaico-cristã, mas, que encontra os seus inúmeros
contornos e interpretações em tantas outras culturas e sociedades. A dádiva que se faz
presente comunica através das obras de arte algo que condiciona o ser a compreender seu
destino. O dom presente no mundo renova e alimenta as ideias, encorajando o ser a reproduzir
de forma sempre atualizada seus anseios mais profundos.
Segundo uma experiência mística mergulhada na cultura cristã, se apresenta
uma compreensão sobre a arte como dom de Deus, e desse modo, essa experiência que não se
apresenta como unívoca, pode servir para que qualquer outra cultura possa compará-la e
estabelecer relações com outros pontos de vista, para que se fomente uma rede, ou uma teia
conhecimentos a esse respeito e ajude a situar o ser humano diante do complexo mundo em
que vive. Na experiência cristã, que não se faz isolada do mundo, foi construída uma
compreensão de que é necessário perceber a participação ativa do próprio Deus como grande
mentor e condutor da arte. Como percebeu, Dom Helder Câmara, em um de seus poemas, de
1982 referindo-se a dança, neste poema o dom da paz revela sua arte com grande mística
espiritual:
Amas a dança, Senhor Deus! Tu mesmo conduzes o ballet das estrelas e a dança do vento e das nuvens. Dançam, sob teu olhar complacente, as ondas do mar, as aves, no azul do céu, as árvores parecem imóveis e são exímias bailarinas. Dançam, na mais pela de Tuas preces, os Teus anjos. És todo harmonia e ritmo! Tu mesmo danças, Senhor! (Dom Helder Câmara, Jornal Igreja Nova, n° 115 – Ano XIV – janeiro/fevereiro 2005).
Certamente a dança não depende desse status para continuar presente nas
culturas, mas, sem dúvida a citação a cima em destaque, contempla um aspecto interessante
explorado nas fronteiras da mística, quando aponta a dança mergulhada nesse mistério, pois a
dança não é atributo somente humano, existe na dança uma essência que a mantém como
mistério. Por mais que o ser se entregue e conquiste reconhecimento por meio de sua arte, ela
deverá se manter como um mistério que não se esgotou. Por isso, quando o ser humano se
volta para a dança, cadeias de relações permanecem imbicadas, inclusive o mistério próprio
106
da existência, isso põe a dança como uma das formas de possibilidade de se estabelecer
conexões com o cosmos, com o universo inteiro e com as dimensões que estão para deles.
São necessárias sensibilidade, espiritualidade e transcendência para
compreender a dança favorecendo esse acesso ao Transcendente. Como foi apontado pela
maioria dos artistas pernambucanos entrevistados. A dança pode revelar-se como dom de
Deus ela concretiza a força de um sentimento, mas, não se trata de uma expressão ou virtude
que se apossa do ser humano negando-o, como se este fosse um mero transmissor. A dança
quando se faz e se revela ela depende do ser em seu pleno estado de inteireza, o ser engajado,
completo e buscando a sua totalidade.
Existe uma construção de sentidos que emergem das artes seja na pintura, na música,
como também na própria dança, juntas revelam traços marcantes de um espírito que pulsa no
universo e em sintonia com ele. E a capacidade de abertura do ser para transcender pelas vias
da dança permanece na contemporaneidade, em algumas experiências como fragmentos e em
outras de forma mais intensa e profunda, revelando mais do que fragmentos de
espiritualidade, mas, fragmentos de totalidade.
107
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir de um cenário dinâmico no qual se apresenta a contemporaneidade, foi
possível elaborar meios para buscar uma possível compreensão em torno de experiências de
vida capazes de revelar fragmentos de espiritualidade. Os resultados demonstram que toda
contribuição até aqui alcançada, não são respostas definitivas, o ser humano e sua obra se
situam numa perspectiva de abertura, de projeto infinito.
O debruçar-se no conhecimento das experiências do ser permanece como um
ato inesgotável. As analises das trajetórias construídas nos aproximam da capacidade que este
ser possui de inquietar-se com as condições do seu contexto sociocultural e recriá-lo, numa
atitude corajosa diante dos desafios da sua existência. Nesse sentido, de inquietação e
protesto, do desejo profundo de compreender-se o ser humano vai desenvolvendo meios para
que o seu mundo seja significativo.
Lançando-se no universo das artes, o individuo propõem através do seu
movimento sensível imprimir sua marca, de modo que outros seres possam aprender sobre os
caminhos da transcendência e vislumbrar um tempo de esperança, de transformação no agora,
na realidade em que está inserido.
Os acontecimentos mediados ou imbricados decorrentes da relação entre dança,
transcendência e espiritualidade, mantém o ser humano na contemporaneidade em pleno gesto
transformador. Os desafios próprios do seu tempo que tantas vezes invertem os valores que
são essenciais à vida, não foram suficientes para dizimar no ser a sua capacidade
transcendente. As situações próprias da vida e as correntes filosóficas contrárias a esta
dimensão – a transcendência – estão distantes de fazer com que o ser humano abandone tal
abertura que lhe é inerente. Com os devidos contornos e as suas variantes a transcendência
permanece favorecendo o ser na busca pelo sentido de sua existência e nas formas de
exteriorização da espiritualidade.
Utilizando-se do seu corpo na dança, superando o dualismo e sendo
compreendido este corpo como unidade, a presença da espiritualidade ocorre de maneira
nítida entre os artistas entrevistados, essa pesquisa originou-se a partir de um interesse em
identificar possíveis fragmentos de espiritualidade, e por meio do contato com os artistas
apresentados, foi identificando-se através de suas experiências, uma riqueza de
108
espiritualidades. Cada trajetória analisada revelou que o modo de vida dos artistas encontra-se
norteado por sua espiritualidade. Revelando, uma proximidade com a mística e com a
totalidade do ser.
A relação dança e transcendência favorecendo a busca de sentido e de
espiritualidade, não apenas no nível individual, uma experiência profunda que encaminha o
artista a pensar e agir direcionado ao coletivo. Assim a contribuição social apresentou-se
como fruto da coerência e da clareza de sua espiritualidade.
No fazer processual da dança não se encontra isenta a dimensão espiritual e em
alguns casos, também, se inclui, diretamente, a religiosa. Muitos artistas entrevistados
reconhecem o lugar e a importância de sua crença religiosa, considerando-a pessoal e sem
interferir no convívio com os diferentes modos de crer. Os artistas declararam respeito às
opções religiosas dos participantes dos grupos em que atuam, fazendo com que trabalhos
específicos sobre aspectos diretamente religiosos sejam evitados, com a exceção das danças
populares, que já trazem a dimensão religiosa tradicionalmente. Desse modo, ficando mais
evidente uma construção em torno da transcendência e da espiritualidade, mais do que o
diretamente confessional religioso, como foi previsto o foco dessa pesquisa.
Os estudos a partir das entrevistas revelaram uma necessidade de conhecer as
raízes da espiritualidade dos indivíduos, visto que, não foi objetivo desta pesquisa perguntar
sobre os credos de cada artista e de como são conduzidas as experiências religiosas de cada
um. Mas, sendo possível sugerir nessa amostra que ao longo do exercício do seu trabalho,
desde os processos criativos até as relações diretas com as pessoas envolvidas, a
espiritualidade desenvolvida teve sua origem em religiões específicas e as transformações e os
desdobramentos foram acontecendo de acordo com as suas necessidade e oportunidades.
Nos trabalhos realizados por esses artistas entrevistados faz-se perceber, que a
dança acontece dentro ou relacionada a um processo em cadeia, que vai desde o do trabalho
permanente, de alguns profissionais, com as crianças e adolescentes, até outros com trabalhos
direcionados ao público adulto de cunho filosófico, cultural e ou social com projeções
internacionais. O individuo enquanto ser presente no mundo, assumindo uma identidade de
alguém que revela com o seu próprio corpo a sua arte, estará continuamente sintetizando
sensibilidade, percepção, consciência e espiritualidade.
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A dança como movimento transcendente está imbuída por um mistério que
ultrapassa a lógica e a razão. É possível afirmar que ao dançar o ser humano explora as
fronteiras de suas dimensões abstratas, mergulha no universo interior e de lá condiciona o
movimento, que é exteriorizado no e pelo corpo, que se encontra situado de forma física e
material, e este está situado, inclui a sua coexistência, enquanto ser vivente e praticante de
gestos concretos perante uma realidade social que hora o alegra, hora o deixa triste, e nestas
idas ao seu íntimo interior influenciado ou não pelos acontecimentos externos poderá revelar
elementos de sua espiritualidade. É com o corpo presente e dinamizado pelo movimento que a
dança se torna visível e permite que o ser por meio dela faça uso de sua capacidade
transcendente.
Vidas contadas por meio do trabalho com a dança que eclodiu em
significativos instantes de transcendência e espiritualidade. Os eventos de transcendência e
espiritualidade não ocorreram dentro de um espaço sagrado, não sendo tais experiências
diretamente conduzidas por uma pertença religiosa institucional, contudo, cada entrevistado
possui uma raiz religiosa, uma maneira de crer que o tempo ajudou a adaptar aos espaços de
trabalho e as pessoas com as quais os entrevistados se relacionam para realizar as suas
atividades.
A riqueza das experiências demonstra o significativo papel da dança na
construção individual do ser, como também a sua contribuição na transformação social no
nível coletivo. Transformação social esta, pensada a partir de indivíduos que trazem consigo
uma sensibilidade em olhar o outro, poder conduzi-lo, e poder encaminhá-lo nas escolhas e no
conhecimento de si.
No fazer processual da dança não se encontra isenta a dimensão espiritual e em
alguns dos casos, também, se inclui, diretamente, a religiosa. Muitos artistas entrevistados
reconhecem o lugar e a importância de sua crença religiosa, considerando-a pessoal e sem
interferir no convívio com os diferentes modos de crer. Os artistas declararam respeito às
opções religiosas dos participantes dos grupos em que atuam, fazendo com que trabalhos
específicos sobre aspectos diretamente religiosos sejam evitados, com a exceção das danças
populares, que já trazem a dimensão religiosa tradicionalmente. Desse modo, ficando mais
evidente uma construção em torno da transcendência e da espiritualidade, mais do que o
diretamente confessional religioso, como foi previsto o foco dessa pesquisa.
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É possível sugerir que a espiritualidade desenvolvida entre os artistas
entrevistados, embora ocorrendo fora do institucional religioso, possui uma raiz na tradição
religiosa, para este público a espiritualidade que praticam recebe ou recebeu a influencia de
uma religião ou de várias denominações religiosas.
O ser consciente do artista, a sensibilidade e o amor com o qual abraça a sua
profissão, apesar de muitos não se conhecerem pessoalmente, alguns aspectos das entrevistas
apresentavam-se como se todos se conhecessem intimamente e tivessem conversado antes
sobre a pesquisa para conceder as entrevistas. Para este público, dança, transcendência e
espiritualidade encontram-se imbricadas. Alguns artistas falavam abertamente de suas
convicções espirituais atreladas e expressadas no todo que envolve o universo da dança. São
limites difíceis de serem mapeados com exatidão, porque cada indivíduo percorre um
caminho e neste caminho os reflexos de tudo que viveram acabam por condicionar as escolhas
e as formas de agir diante do seu tempo, elaborando uma intencionalidade crucial para
alcançar os níveis de transcendência e espiritualidade.
Impressionante como esta pesquisa abriu portas e janelas para inúmeras outras.
Esta relação dança e transcendência como propiciadora de revelar fragmentos de
espiritualidade na contemporaneidade, fez vir à tona incontáveis assuntos a serem abordados,
esclarecidos, pesquisados, não apenas para atender ao público da área das Ciências da
Religião e o público da dança, mas a sociedade como um todo, como seria pertinente uma
pesquisa interdisciplinar a partir desta temática. A pesquisa apontou que pelas vias da dança,
se encontra diversos entrelaçamentos com: a mística; as relações sociais; os diferentes credos;
os diferentes estilos; o direito ao acesso às artes e a com as questões relacionadas a Deus.
Uma das questões do fenômeno religioso na atualidade, quanto ao diálogo e o
respeito aos diferentes credos é percebida pelos artistas, em alguns casos, ficou bem
específico como eles agem diante de situações que envolvem a religião. Os discursos e a
convivência caminham para uma espiritualidade mais ampla e aberta, porém sem abrir mão de
suas respectivas crenças. Entre os entrevistados, alguns mais e outros menos, os respectivos
trabalhos são assumidos de uma forma espiritual bastante consciente. Muitas experiências,
decorrentes dessa clareza espiritual os mantém na dança até hoje frente à superação, a
persistência e a busca por vencer os desafios comumente apresentados por viver desta arte
ainda não tão valorizada no Brasil, e com atenuantes para o nordeste.
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Os artistas pernambucanos entrevistados não se veem fazendo outra coisa.
Quase de forma unanime, inclui-se, para alguns, além da dimensão espiritual, a religiosa e a
mística. De forma declarada, no que diz respeito à transmissão do amor, do cuidado, da união,
o desejo de viver em uma sociedade mais justa e fraterna. Pela dança ter se transformado para
alguns como uma “religião” propriamente dita, devido aos rituais elaborados, as orações em
determinados momentos, da relação com outro, da certeza que a dança resgata e transforma a
pessoa, que ela contribui para o encontro do seu sentido de vida e por aproximá-los do
transcendente. Tal aproximação com o transcendente os faz ter fé, pedir proteção e serem
gratos pela dádiva de estar no mundo e poder dançar.
Aqui se inclui a manutenção das experiências de transcendência e uma
urgência do nosso tempo em propor uma espiritualidade que promova a unidade, a reflexão, o
exercício da alteridade e o reconhecimento de uma força extraordinária que está para além do
nosso plano material, contudo sem separar-se e sem negar a importância e a beleza desse
mundo do qual se faz parte, é a partir das realidades deste mundo que se dão os mecanismos
de transcendência, a maturidade e o aprimoramento da espiritualidade que transborda no
trabalho e não reside numa abstração. O momento transcendente e espiritual encontra-se,
efetivamente, em função de uma realidade que o convida a ser, a pensar, a reconstruir, a
devolver o belo, o divino, o sensível aos corações e mentes de todos que fazem parte desse
mundo.
O tema abordado, embora atingindo os objetivos a que se propôs, continua
como um projeto inacabado e aberto a tantas novas possibilidades e abordagens, devido a
imensurável riqueza da relação do ser humano com a sua arte e os seus níveis de
transcendência e espiritualidade. Sendo indispensável destacar o quanto a dança que acontece
fora dos espaços diretamente religiosos, revelam tantos aspectos advindos do contexto próprio
das religiões. Diante da existência humana e a busca por seu sentido na contemporaneidade
percebe-se o quanto permanece fértil e vital, suscitar esperanças, sonhos e utopias diante dos
fragmentos de transcendência, espiritualidade e totalidade encontrados ao longo desta aludida
pesquisa.
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APÊNDICE A
Modelo de Questionário para Entrevista
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA
COORDENAÇÃO DE PESQUISA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
01.) Como se deu o seu encontro com a dança? Como a dança lhe atraiu? O que despertou para dançar?
02.) Fale um pouco sobre a trajetória da sua experiência com a dança. Como foi se entender, escolher e perceber-se no mundo dança?
03.) Em algum momento você vivenciou uma “crise” por ter optado pela dança?
04.) O que é possível sugerir como fonte de inspiração para a construção das coreografias e espetáculos?
05.) O que lhe mantém na dança?
06.) Como você vê a repercussão do seu trabalho na plateia, nas pessoas?
07.) É possível identificar em seu trabalho algum tipo de relação com a transcendência ou com o mistério da vida?
08.) Você vê alguma relação entre dança e religiosidade humana, na busca por sua transcendência?
09.) Os seus trabalhos traduzem, em algum nível, elementos de religiosidade e espiritualidade?
10.) A sua experiência com a dança lhe permite contribuir de algum modo com o social?
11.) Em algum momento você sentiu-se arrebatado pela dança? (Um momento em que sentiu algo extraordinário acontecer). Como foi essa experiência?