Post on 29-Sep-2015
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
TALITA DANIEL SALVARO
DE GERAO EM GERAO E O LPIS NA MO: O PROCESSO DE
REVITALIZAO DA LNGUA KAINGNG NA EDUCAO ESCOLAR
INDGENA/ TERRA INDGENA XAPEC SC
Florianpolis
2009
ii
TALITA DANIEL SALVARO
DE GERAO EM GERAO E O LPIS NA MO: O PROCESSO DE
REVITALIZAO DA LNGUA KAINGNG NA EDUCAO ESCOLAR
INDGENA/ TERRA INDGENA XAPEC SC
Dissertao apresentada como requisito obteno do
grau de Mestre em Histria Cultural, Curso de Ps-
Graduao em Histria, Centro de Filosofia e Cincias
Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina.
Orientadora: Prof.a
Dr.a Ana Lcia Vulfe Ntzold
Florianpolis
2009
iii
AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa no se fez sozinha, ela faz parte de vrios momentos que acompanharam
esses dois anos de mestrado. Agradecer um gesto de gratido por todos aqueles que fizeram
parte dessa etapa e que como outros momentos permanecero na memria, para serem
lembrados com carinho. Agradecer dizer sinceramente muito obrigada por tudo.
Obrigada Deus por estar sempre ao meu lado e possibilitar essa caminhada com
sinceridade, amor e paz.
Aos meus pais Aldio e Edinalva, por terem me ensinado os verdadeiros valores de
um ser humano. Por todo carinho, apoio, preocupao e dedicao a mim todo esse tempo,
meu amor por essas duas pessoas eterno. Ao meu irmo Alencar e minha cunhada Dnia,
pessoas queridas e companheiras.
pessoa amiga, confidente, sria, engraada, dedicada que a Prof.a e orientadora
Ana Lcia. Obrigada por confiar em mim e sempre me animar com palavras, almoos, risos e
tambm muito trabalho, nosso dia a dia na casa LABHIN e o envolvimento com as pesquisas
se deram devido a algum que realmente tem um corao indgena.
Agradeo a todos da Terra Indgena Xapec/SC, que nos acolheram como uma famlia
nas sadas a campo, colaborando com as entrevistas e documentos para esse estudo. Aos
professores: Carlos Jacinto, Dalgir Pacfico, Getlio Narsizo, Jovelino de Oliveira Belm,
Leacy Lopes, Loreni Nokrig Paulo, Luciano Fernandes, Maria Virgnia Mendes, Pedro Kres,
Sirley Alves de Assis, Sonimara, Valdecir de Paula. As pessoas sbias dessa comunidade:
Avelino Alpio Fongre, Cezrio Pacfico, Divaldina Luiz Pinheiro (D. Diva), Joo Maria
Benedito (Major), Matilde Koito. A diretora Ansia Belino, Diretora Adjunta Cristina,
assistente Lrio. As merendeiras e serventes Doralina, Judite, Lorildes, Salete, e o vigia
Laudacir. A estas pessoas e toda a comunidade da TI Xapec minha eterna gratido, carinho e
saudade.
lingista Ruth Maria Fonini Monserrat e a assessora do Diretor de Educao Bsica
da SED/SC Jane Motta por contribuir com seus conhecimentos sobre a questo indgena.
iv
toda a equipe LABHIN por acompanhar o desenvolver desse estudo e fazer parte de
todos os momentos de socorro, Clvis, Jeniffer, Gabriel, Gabriela, Lucas Alves, Lucas Bond,
Ninarosa, Sandor. Aos agregados Elton e Pablo. A Helena integrante do laboratrio, colega de
mestrado, amiga que pude conhecer de perto, pessoa de corao bom em que se pode confiar,
Helena mulher de verdade. Jackson, pessoa admirvel por todas suas conquistas e por seu
dom mais que especial de ensinar.
Aos professores Jos Ribamar Bessa Freire, Maria Izabel de Bortoli Hentz, Marcos
Fbio Freire Montysuma pela contribuio na dissertao, enriquecendo este estudo.
Ao grupo de orao da UFSC, em especial ao Daniel, Rafael, Daiane, Larissa, Gisa.
Daiani, Caroline e Meiry por compartilhar o apartamento 202 e todas as peripcias
da vida de estudante.
A todos os amigos de Florianpolis e Meleiro, perto e longe, mas sempre presentes:
Aline, Andr, Bruna, Eduardo, Francieli, Gabriel, Hlder, Iracema, Jean, Juliane, Liziani,
Luiz Augusto, Paula, Rafael, Rejane, Sabrina, Samira, Sandra.
A todos os professores do Programa de Ps-Graduao em Histria/UFSC. Todos os
funcionrios, Nazar e Maurcio. Irma e Toninho do Departamento de Histria.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), pela
bolsa que possibilitou as participaes em congressos, pesquisa de campo e o resultado final
dessa dissertao.
v
RESUMO
Essa pesquisa tem como propsito perceber a lngua Kaingng em dois momentos
distintos que marcaram a histria dos Kaingng da Terra Indgena Xapec, localizada no
oeste catarinense. Durante o perodo de atuao do Servio de Proteo ao ndio/SPI, marcado
pela integrao do indgena sociedade nacional, a lngua Kaingng foi proibida e iniciou-se
o ensino da lngua portuguesa. Nesse perodo, a identidade indgena foi negada, pois a poltica
da poca era a de progresso e da buscas de uma identidade nica para o pas. Sendo assim, a
educao destinada aos Kaingng era como a das escolas rurais brasileiras. A partir da
promulgao da Constituio Federativa do Brasil de 1988, a educao abandona seu vis
integracionista e contempla uma educao diferenciada, bilngue, comunitria, intercultural e
especfica. Neste momento, o ensino da lngua Kaingng retomado nas escolas como um
fator de identidade tnica do grupo. Nosso recorte temporal abrange a data de 1941, quando
foi criado o Posto Indgena Xapec, e se estende at os dias atuais. Urdindo os relatos obtidos
nas entrevistas realizadas por meio da Metodologia de Histria Oral, documentos do SPI e
FUNAI, Atas de Pais e Professores da Escola Indgena de Educao Bsica Cacique Vanhkr,
materiais didticos elaborados pelos professores de lngua Kaingng e observaes durante as
sadas de campo, pretende-se mostrar como a lngua Kaingng ensinada na escola, as
dificuldades encontradas no seu ensino e aprendizagem e sua funo como fator de identidade
para essa comunidade.
Palavras-chave: Kaingng, lngua materna, identidade, escola, Histria Oral, etnohistria,
educao.
vi
RSUM
Cette recherche a pour intention de faire connatre la langue Kaingng deux moments
distincts qui ont marqu lhistoire des Kaingngs de la Terre Indigne Xapec, localise dans
louest catarinense (tat de Santa Catarina). Durant la priode daction du Service de
Protection de lIndien(SPI), marque par lintgration de lindigne dans la socit nationale,
la langue Kaingng ft interdite et dbuta alors lenseignement de la langue portugaise.
Durant cette priode, lidentit indigne ft dnie car la politique mene lpoque tait
celle du progrs et la recherche dune seule et unique identit pour le pays. Cependant,
lducation destine aux Kaingngs tait identique celle des coles rurales brsiliennes. A
partir de la promulgation de la Constitution Fdrative du Brsil de 1988, lducation
abandonne son ct intgrationniste et se tourne vers une ducation diffrencie, bilingue,
communautaire, interculturelle et spcifique. Actuellement, lenseignement de la langue
Kaingng est reprise dans les coles comme un facteur de lidentit ethnique. Notre
dcoupage dans le temps englobe lanne 1941, date laquelle ft cre le Poste Indigne
Xapec, qui dailleurs existe toujours. En montant les rcits obtenus lors des entretiens
raliss laide de la Mthodologie de lHistoire Orale, des documents du SPI et de la
FUNAI, des tmoignages de pres de familles et de professeurs de lEcole Indigne
dEducation Elmentaire Cacique Vanhkr, de matriaux et de mthodes pdagogiques
labors par des professeurs connaissant la langue Kaingng et dobservations fates durant
les excursions sur le terrain. Ainsi, on prtend montrer de quelle manire la langue Kaingng
est enseigne dans les coles, des difficults rencontres lors de son enseignement et de son
apprentissage et de sa fonction majeure comme facteur didentit pour cette communaut.
Mots cls: Kaingng, langue maternelle, identit, cole, Histoire Orale, ethnologie, ducation.
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LISTA DE COLABORADORES
Avelino Alpio Fongre (1933-). Kaingng, morador da TI Xapec na aldeia/sede Jacu, filho
de Augusto Alpio e Rosalina Fernandes, trabalhou como motorista da sade e auxiliar de
ensino no perodo do SPI.
Cezrio Pacfico Jagagl (1948-). Kaingng, morador da TI Xapec na aldeia/sede Jacu,
auxilia no registro de nascimento dos nomes Kaingng junto ao Posto Indgena da FUNAI na
TI Xapec h 32 anos.
Dalgir Pacfico Rnkn (1977-). Kaingng, nascido, criado e morador da TI Xapec na
aldeia/sede Jacu, professor de lngua Kaingng na Escola Indgena de Educao Bsica
Cacique Vanhkr. Cursa a faculdade de Pedagogia pela UNIASSELVI. Filho do senhor
Cezrio Pacfico Jagagl.
Divaldina Luiz Jacinto (1945-). Kaingng, conhecida como D. Diva, moradora da TI
Xapec na aldeia Pinhalzinho, curandeira, diagnostica a utilizao e aplicao das ervas
medicinais.
Getlio Narsizo (1979-). Kaingng, nascido, criado e morador da TI Xapec na aldeia/sede
Jacu. professor Kaingng na Escola Indgena de Educao Bsica Cacique Vanhkr. Cursou
Magistrio Bilngue em So Jos do Cerrito; Faculdade de Histria, porm, no a concluiu e
cursa atualmente Pedagogia pela UNIASSELVI. Primeiro indgena concursado como
Secretrio de Escola.
Jane Motta (1958-). No indgena, pedagoga com mestrado na rea de Educao.
Coordenadora do Ncleo de Educao Indgena/NEI de 2003-2007, atualmente assessora do
viii
Diretor de Educao Bsica da Secretaria do Estado da Educao de Santa Catarina -
SED/SC.
Joo Maria Benedito (1903-). Kaingng, conhecido como seu Major, uma das pessoas
mais velhas da TI Xapec. Nasceu no Canhado, prximo aldeia Pinhalzinho, reside na TI
Xapec na aldeia Paiol de Barro.
Leacy Lopes Nofer (1965-). Kaingng, nascido em Nonoai/RS, reside na TI Xapec na
aldeia/sede Jacu. Cursou o Magistrio Bilngue em So Jos do Cerrito e Pedagogia Gestora
na Universidade de Palmas UNICS (PR). Professor de Lngua Kaingng na Escola Indgena
de Educao Bsica Cacique Vanhkr.
Loreni Nokrig Paulo (1960-). Kaingng, monitor bilngue formado pelo Centro de
Treinamento Profissional Clara Camaro, fazendo parte da terceira turma que comeou em
1977. Professor de lngua Kaingng na Escola Indgena de Educao Bsica Cacique
Vanhkr.
Luciano Rengr Fernandes (1966-). Kaingng, nascido na TI Xapec. Possui o 2o grau
completo e o Magistrio Bilngue em So Jos do Cerrito. Professor de Lngua Kaingng na
Escola Indgena de Educao Bsica Cacique Vanhkr.
Maria Virgnia Mendes Kaingng. Monitora Bilngue formada pelo Centro de Treinamento
Profissional Clara Camaro e professora de sries iniciais e lngua Kaingng na Escola
Indgena de Ensino Fundamental Pinhalzinho.
Sebastio Mendes (1941). Kaingng, morador da TI Xapec na aldeia/Sede Jacu.
ix
Pedro Alves de Assis Kres (1966-). Kaingng, nascido e morador da TI Xapec, formado
em Tcnico Agrcola, monitor bilngue formado pelo Centro de Treinamento Profissional
Clara Camaro e Pedagogia. Professor de Lngua Kaingng e sries iniciais.
Ruth Maria Fonini Monserrat (1939-). No indgena, professora de lingustica e
pesquisadora de lnguas indgenas aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pesquisadora associada do Laboratrio de Lnguas Indgenas da UNB, Universidade de
Braslia, coordenado pelo professor Aryon Rodrigues.
Sirlei Alves de Assis (1978-). Kaingng, nascida e moradora da TI Xapec, tem 2o grau
completo e Faculdade de Letras, professora de lngua Kaingng na Escola Indgena de
Educao Bsica Cacique Vanhkr. Irm do Professor Pedro Kres.
Valdecir de Paula (1971-) Kaingng, nascido no Rio Grande do Sul, na Terra Indgena
Votouro. Professor desde 1997 na Escola Indgena de Ensino Fundamental Paiol de Barro,
atualmente diretor dessa escola.
x
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 MAPA DO TERRITRIO TRADICIONAL KAINGNG COM
LOCALIZAO DA TI XAPEC....................................................................24
FIGURA 2 VISTA DA ALDEIA SEDE DA TI XAPEC...................................................31
FIGURA 3 MAPA COM LOCALIZAO DAS TERRAS INDGENAS
KAINGNG.......................................................................................................32
FIGURA 4 TRONCO LINGUSTICO MACRO J.............................................................54
FIGURA 5 PROFESSORA MARIA VIRGNIA MENDES................................................65
FIGURA 6 PROFESSOR LUCIANO FERNANDES...........................................................66
FIGURA 7 SENHOR CEZRIO PACFICO.......................................................................68
FIGURA 8 FREQUNCIA ESCOLAR DA PROFESSORA MARIA GUISSO
VELHO................................................................................................................71
FIGURA 9 PROFESSOR LORENI NOKRIG PAULO........................................................75
FIGURA 10 ESQUEMA QUE REPRESENTA A PARTE ENTRE EDUCAO
BILNGUE E NACIONAL.................................................................................77
FIGURA 11 ESCOLA DO BANHADO GRANDE..............................................................95
FIGURA 12 SENHOR JOO MARIA BENEDITO (MAJOR)...........................................97
FIGURA 13 DIVALDINA LUIZ PINHEIRO (D. DIVA)....................................................98
FIGURA 14 SENHOR AVELINO ALPIO FONGRE.........................................................98
FIGURA 15 EIEB CACIQUE VANHKR.........................................................................104
FIGURA 16 GINSIO DE ESPORTES DA EIEB CACIQUE VANHKR.....................105
FIGURA 17 CENTRO CULTURAL DA EIEB CACIQUE VANHKR..........................105
FIGURA 18 PROFESSOR DO PR ESCOLAR E ALUNOS....................................112-113
FIGURA 19 ATIVIDADES DO PLANO DE AULA DO PROFESSOR PEDRO KRES.
VOGAIS E ALFABETO.................................................................................114
xi
FIGURA 20 ATIVIDADES PRODUZIDAS PELO PROFESSOR LUCIANO
FERNANDES.................................................................................................117
FIGURA 21 ATIVIDADES PRODUZIDAS PELO PROFESSOR
PEDRO KRES .............................................................................................118
FIGURA 22 PROFESSOR LORENI, LEACY, DALGIR E JONATAS NA RDIO
KAIRU FM......................................................................................................120
xii
SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................................................13
1 CULTURA, IDENTIDADE E MEMRIA NO ESTUDO DA HISTRIA
INDGENA
1.1 . Os Kaingng da Terra Indgena Xapec ..........................................................................23
1.2 . A memria compondo a histria: Tempo Presente e a Metodologia de
Histria Oral......................................................................................................................35
1.3 . Cultura, etnicidade, identidade: o pertencer a um grupo tnico .......................................42
1.4 . Lnguas indgenas, Lngua Kaingng ...............................................................................52
2 A INSTITUIO ESCOLAR E A LNGUA KAINGNG
2.1 . SPI e a integrao nacional: educao como meio de nacionalizao..............................56
2.2. FUNAI: formao de monitores bilngues no CTP Clara Camaro e o Bilinguismo
de substituio....................................................................................................................69
2.3. Educao escolar indgena em Santa Catarina ..................................................................78
3 CONSTITUIO DE 1988: A LNGUA KAINGNG NA EDUCAO
ESCOLAR INDGENA
3.1 . A legislao brasileira e a educao escolar indgena......................................................83
3.2 . Palco de mudanas: a escola sede da Terra Indgena Xapec..........................................94
3.3 . Alfabetizao escolar: a oralidade e a escrita.................................................................107
3.4 . O ensino-aprendizagem da lngua materna como fator de identidade ..........................110
CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................122
FONTES E BIBLIOGRAFIA..............................................................................................125
ANEXOS................................................................................................................................135
INTRODUO
Nossa proposta de pesquisa decorreu da percepo da necessidade de entender os
efeitos da proibio do uso da lngua Kaingng e da introduo da lngua portuguesa no
ensino escolar durante o perodo de atuao do Servio de Proteo ao ndio e Localizao de
Trabalhadores Nacionais - SPI/LTN1, momento marcado pela integrao do indgena
sociedade nacional. Visa tambm a analisar em que contexto surgiu a questo lingustica, a
partir de 1970, e como o ensino da lngua Kaingng passou a ser ministrado aps a
promulgao da Constituio Federal (CF) do Brasil, de 1988, uma vez que, em seu contedo,
contempla aspectos da cultura indgena no ensino escolar2 dessas comunidades, inclusive sua
prpria lngua materna. Busca-se mostrar ao longo da histria, a lngua Kaingng como um
fator de identidade tnica, que vem sendo revitalizada por meio da educao escolar indgena.
Esta pesquisa foi desenvolvida com a etnia Kaingng, da Terra Indgena (TI) Xapec,
tendo como foco principal a EIEB Cacique Vanhkr, situada na aldeia Jacu, Sede do Posto.
Foi nessa comunidade, localizada no Oeste do Estado de Santa Catarina, que realizamos parte
de nosso estudo, cuja fase essencial deu-se graas colaborao dos seus membros. Sem a
confiana e o auxlio que nos depositaram, concedendo-nos entrevistas de Histria Oral e
tambm pela disponibilizao da documentao existente na escola, esse trabalho no
atingiria seu objetivo principal, qual seja, o de analisar a funo da lngua Kaingng na
educao escolar indgena em dois momentos: i) nos perodos de atuao do SPI (1941-19673)
e da Fundao Nacional do ndio (FUNAI) (1967-); e ii) aps a promulgao da CF do Brasil,
de 1988.
O corpo documental do presente trabalho so as atas de reunies de pais e professores
da EIEB Cacique Vanhkr4 (1988-2006); materiais didticos produzidos pelos professores de
lngua Kaingng; documentos referentes ao perodo de atuao do SPI e da FUNAI
localizados na Regional da FUNAI de Paranagu-PR; entrevistas realizadas com os
1 Criado em 1910, o rgo de proteo chamava-se Servio de Proteo ao ndio e Localizao dos
Trabalhadores Nacionais SPI/LTN, entretanto em 1914, no atendendo mais os trabalhadores nacionais, passou a utilizar a sigla SPI, o rgo fo i ext into em 1967, sendo substitudo pela FUNAI.
2 Nosso propsito no trabalhar com a forma de ensino min istrada pelos missionrios com objetivo
religioso, pois concentramos a pesquisa na instituio escolar concebida pela populao no indgena e inserida
na TI Xapec na dcada de 1940. 3 Assinalamos o ano de 1941, pois fora a data que o Posto Indgena do SPI instalou -se na TI Xapec.
4 Essa a atual nominao da escola da sede, porm existiram outras instituies em locais dife rentes da
rea com outras denominaes, que aparecem ao longo da dissertao. As atas de reunies de pais e professores
neste trabalho referem-se a escola atual pois permanecem arquivadas nesta.
14
professores de lngua Kaingng; professor de Histria e assistente de educao; idosos da
comunidade; e alunos da escola. Tambm colaboraram, concedendo-nos entrevista, a linguista
Ruth Maria Fonini Monserrat, que integra o Laboratrio de Lnguas Indgenas da
Universidade de Braslia, e a senhora Jane Motta, que foi coordenadora do Ncleo de
Educao Indgena (NEI) de Santa Catarina de 2003 a 2007, e atualmente assessora do
Diretor de Educao Bsica da Secretaria do Estado da Educao de Santa Catarina
(SED/SC).
Tambm utilizamos a iconografia como uma fonte que auxilia na compreenso do
tema de pesquisa. Nas fotografias muitas vezes est um olhar, um gesto, um objeto que
contm tambm a histria de um povo. Peter Burke em seu livro testemunha ocular: histria
e imagem traz vrias evidncias de pinturas e imagens fotogrficas que contm muito da
histria, ele ressalta que as imagens assim como textos e testemunhos orais, constituem-se
numa forma importante de evidncia histrica, elas registram atos de testemunha ocular5. As
fotografias aqui dispostas no so meras ilustraes e sim fizeram nos compreender muito da
comunidade e do sentimento Kaingng, principalmente por serem em sua maioria
fotografadas pela autora, que presente pode perceber o contexto do momento.
Alm da TI Xapec, a Regional da FUNAI, localizada em Paranagu-PR, foi tambm
um local de pesquisa, onde se encontra parte da documentao deste rgo e os arquivos do
SPI referentes a vrias aldeias do Estado de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paran e
outros estados brasileiros. O arquivo no est catalogado, o que dificultou o trabalho de
pesquisa, mas nele localizamos ricos documentos que contriburam para este estudo,
resultando em um melhor entendimento sobre o assunto, levando-nos a outras indagaes e
fontes.
Essa pesquisa encontrou respaldo na histria social da linguagem, uma rea nova
como pesquisa histrica, porm vem ganhando grandes dimenses por ser interdisciplinar,
abarcando reas como a Sociologia, Histria e a Lingustica. Segundo Bessa Freire6 a
abordagem da questo histrica da lngua s comeou a ganhar consistncia a partir dos anos
1960-70, com o desenvolvimento da sociolingustica, que permitiu analisar a lngua como uma
5 BURKE, Peter. Testemunha ocular : h istria e imagem. Bauru/So Paulo: EDUSC, 2004, p.17.
6 FREIRE, Jos Ribamar Bessa. Da Lngua Geral ao Portugus : para uma histria social dos usos das
lnguas na Amaznia. Tese de Doutorado (verso preliminar). Universidade do Estado do Rio de
Janeiro/Instituto de Letras, UERJ, 2003, p. 41.
15
instituio social, fazendo parte constitutiva da cultura, assim como das prticas sociais
cotidianas.
Anteriormente, a lngua era analisada apenas na sua estrutura lingustica, constituda por
fonemas, gramtica, lxicos, sem entend-la em suas funes sociais. O entendimento da lngua
como parte essencial da sociedade e suas funes sociais como tambm suas transformaes,
contato com uma ou mais lnguas, seu desaparecimento, crescimento e outros tantos elementos
constituem um rea de pesquisa histrica denominada pelo historiador Peter Burke como histria
social da linguagem ou histria social do falar. Momento em que a lngua percebida tanto pelos
seus grupos como uma forma de poder, como pelos historiadores por ser um elemento
importante de pesquisa que pode contar muito sobre determinado processo histrico e identitrio
de um grupo. Segundo Peter Burke7 diversos historiadores passaram a reconhecer a
necessidade do estudo da linguagem, especialmente por dois motivos: primeiro por
reconhecerem a linguagem sendo vista como uma instituio social, como uma parte da
cultura e da vida cotidiana. Em segundo por ser esse estudo um meio para a melhor
compreenso das fontes orais e escritas pela via da conscincia de suas convenes
lingusticas.
A linguagem carrega em si os emaranhados da histria de seu povo, po r meio dela
pode-se perceber que possvel a anlise dos grupos sociais, do seu processo histrico, das
mudanas, da oralidade e da escrita, dentro outros que se constituem de acordo com o foco de
cada estudo. Nesta dissertao a lngua Kaingng nos possibilita identificar a trajetria da
comunidade Kaingng em momentos diferentes e que abarcaram funes diferentes.
possvel percebermos a lngua utilizada pelo SPI para seu objetivo, qual seja de integrao
nacional e identificar a revitalizao da lngua como uma reivindicao para que ela no seja
extinta e que possa ser ensinada na escola como um fator cultural e de identidade do povo.
A etnohistria uma abordagem essencial nesse estudo, urdindo as evidncias
produzidas por meio da histria oral, documental, mitolgica e lingustica, procura
compreender a complexa dinmica das sociedades indgenas no presente8. Segundo Bessa
Freire9 a etnohistria estabelece tecnicamente a diferena entre as sociedades essencialmente
7 BURKE, Peter. A Arte da conversao. Trad. lvaro Luiz Hattnher. So Paulo: Ed itora da
Universidade Paulista, 1995, p. 9. 8 NTZOLD, Ana Lcia Vulfe (org.). O ciclo de vida Kaingng. Florianpolis: Imprensa Universitria
da UFSC, 2004, p. 2. 9 FREIRE, Jos Ribamar Bessa. Tradio oral e memria indgena: a canoa do tempo. In: Salomo,
Jayme (dir): Amrica: Descoberta ou Inveno. 4 Colquio UERJ. Rio de Janeiro, Imago, 1992, p.140.
16
orais e as sociedades onde predomina a escrita, para poder estudar melhor: as formas distintas
de armazenamento, transmisso e produo do saber, exigem procedimentos particulares de
abordagem. Nossa pesquisa trabalha com um grupo em que a cultura e todos os processos
educativos eram mantidos pela tradio oral, ou seja, um povo de oralidade, porm
atualmente a escrita tambm compe a histria Kaingng. Percebemos pela metodologia de
Histria oral que mesmo com a escrita, o modo de pensar por meio da oralidade se faz
presente, ou seja, o modo de lembrar, pensar e agir o de uma comunidade de tradio oral.
Respeitam nas suas lembranas o cronograma de suas memrias; os mitos e ensinamentos so
mantidos pelo falar e a credibilidade, diferente da nossa sociedade onde prevalece a escrita, se
d pela palavra.
A metodologia de histria oral cumpre sua funo de registro dessa memria mantida
pela oralidade, porm no se constitui pela fala oral, pois desde o momento em que gravada,
transcrita ela ganha outras dimenses que no so prprias da oralidade. Como ressalta Peter
Burke10, a lngua escrita um outro exemplo bvio de registro, pois de maneira geral trata-se
muito mais de uma traduo do que uma transcrio da lngua falada. A escrita uma
variedade distinta da lngua, com suas prprias regras, variando com o tempo, o lugar,
escritor, potencial leitor, tpico.
Este estudo compreende a educao escolar indgena, centrando a questo no ensino
da lngua materna como uma disciplina da grade curricular escolar. A educao escolar
indgena abrange todos os nveis educacionais desde a educao infantil at o ensino mdio e
uma modalidade de ensino que vem recebendo um tratamento especial por parte do
Ministrio da Educao (MEC), alicerada em um novo paradigma educacional de respeito
interculturalidade, ao multilinguismo e etnicidade11. uma educao diferenciada e
especfica, que contempla os conhecimentos universais, como matemtica, histria, lngua
portuguesa, e aspectos da cultura de cada etnia que so garantidos em lei, como o ensino da
lngua materna.
A opo por trabalhar com a temtica indgena se deu durante o curso de graduao
em Histria, cursado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde tive
oportunidade de participar como bolsista no Laboratrio de Histria Indgena (LABHIN)12.
10
BURKE, P. A arte da conversao. Op. Cit., p. 33. 11
Disponvel em: http://portal.mec.gov.br/secad/index.phoption=content&task=view&id=37&it emid=164, acesso em 12 de novembro de 2007.
12 O Laboratrio de Histria Indgena localiza-se no prdio do Departamento de Histria da
Universidade Federal de Santa Catarina. Informaes www.labhin.u fsc.br.
17
Em nosso Trabalho de Concluso de Curso (TCC)13 discutimos a questo lingustica na
educao escolar indgena, porm, na ocasio, centramos o estudo na legislao educacional e
no que ela continha sobre a lngua materna e seu ensino. Como no foi possvel responder
algumas questes pertinentes ao assunto, devido ao curto tempo de elaborao do TCC,
buscamos na presente pesquisa responder novos questionamentos no que se refere ao
conhecimento sobre o processo da lngua materna para os Kaingng da TI Xapec. A questo
lingustica tornou-se foco desse estudo, pois percebemos que, mesmo com a diminuio do
nmero de falantes na TI Xapec devido ao processo de nacionalizao e integrao durante o
perodo do SPI, a lngua estava presente com grande importncia nas atas das reunies de pais
e professores da escola como um fator cultural e de identidade, e, por isso, deveria ser
revitalizada e ensinada. O esforo desse processo foi visvel e mostra os mecanismos adotados
por lideranas polticas e educacionais nessa caminhada, alm do empenho dos professores de
lngua Kaingng em ministrar suas aulas apesar das dificuldades encontradas na aquisio e
elaborao de material didtico especfico para seu ensino.
Algumas questes podem parecer estranhas ao leitor, principalmente no que se refere
importncia que a lngua materna de uma comunidade tem, mesmo no sendo falada
fluentemente pela maioria das pessoas. Os conceitos de identidade e cultura que permeiam
este trabalho, no entanto, indicam que o sentimento de identidade no est apenas no falar a
lngua, nem em confeccionar artesanato ou em outros tantos elementos, mas sim no
sentimento de pertencer-se, reconhecer-se como indgena por si prprio e pelo seu grupo. A
princpio, consideramos a lngua de uma comunidade um fator cultural, mas, alm disso, ela
um fator de identidade, que mantm a coeso do grupo e o sentimento de pertencimento, pois
a lngua materna de uma comunidade um dos componentes mais importantes de sua
cultura, constituindo o cdigo com que se organiza e mantm integrado todo o conhecimento
acumulado ao longo das geraes 14.
Anterior instalao das escolas nas reas indgenas, o ensinamento da tradio
Kaingng baseava-se na oralidade, sendo repassadas de gerao em gerao a cultura e a
tradio do povo, como a lngua materna, o aprendizado do artesanato, os mitos, as lendas, os
rituais, o conhecimento das ervas medicinais, dentre outros, que eram aprendidos na prtica,
13
Trabalho de Concluso de Curso intitulado A importncia da lngua Kaingng na educao escolar
indgena: proib io e retomada, defendido em fevereiro de 2007 na Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientao da Prof.
a Dr.
a Ana Lcia Vulfe Ntzold.
14 Educao Indgena I Reunio do Consed. Recife-Pernambuco, Ministrio da Educao e do
Desporto, 1997, p. 6.
18
atravs da observao e da comunicao oral. Durante o perodo do SPI15, a instituio
escolar foi introduzida na rea indgena. Esse modelo de escola objetivava a que os indgenas
aprendessem a falar e a escrever a lngua portuguesa. Assim, a oralidade dividiu espao com a
escrita, provocando o decrscimo do ensino pela tradio oral. Hoje, muitas crianas no
falam a lngua materna, pois so filhos e netos de pessoas que viveram nesse perodo e
tiveram que aprender a lngua portuguesa.
Temos a escola como cenrio principal deste trabalho, haja vista ser essa instituio
um marco na vida das sociedades indgenas. Ela foi palco de mudanas que transformaram a
cultura Kaingng, como a insero da lngua portuguesa e da escrita. A instituio escolar, tal
qual a concebemos, comeou a difundir-se nas Terras Indgenas aps a criao do SPI, e para
os Kaingng da TI Xapec deu-se no ano de 1941, quando foi fundado o Posto Indgena (PI)
Chapec. Entretanto temos notcias de uma escola particular para indgenas que era mantida
pelo juiz de Direito Antonio Selistre de Campos.
De incio, o objetivo da escola era levar a civilizao e o ensinamento s populaes
nativas, visando a integr- las sociedade nacional. Hoje, porm, ela assume papel inverso,
pois a maioria das etnias indgenas reivindica-as, para servir como espao de fortalecimento e
valorizao da histria do seu povo e da identidade tnica. A escola, ento, mantm uma forte
relao com a comunidade, sendo que os mais velhos fazem parte da sua histria, pois so
considerados como detentores de sabedoria e da histria do povo. A instituio escolar um
lugar de difuso, reelaborao e elaborao do conhecimento. tambm fonte de renda, pois
emprega professores, funcionrios, merendeiras, vigias e auxilia na alimentao das crianas,
j que a merenda escolar fundamental para a maioria dos estudantes.
a partir da escola e do currculo intercultural, que contemplou a lngua materna
como parte do ensino diferenciado, que buscamos entender esse fator cultural e lingustico
como um processo scio cultural de identificao do grupo. Levamos em considerao a
grande diminuio dos falantes da lngua materna e o fato de que os mantenedores desse
conhecimento so os mais velhos, os quais, na sua maioria falam o idioma, e os professores
de lngua Kaingng, que falam e escrevem.
As lnguas indgenas fazem parte da cultura imaterial de cada grupo e, no Brasil,
tambm passaram por um grande processo de extino e reduo no seu nmero e no de seus
15
Utilizamos neste trabalho apenas a sigla SPI, pois nosso recorte temporal abrange o perodo em que o
rgo atendia apenas s questes indgenas.
19
falantes. No sculo XVI, eram em torno de 1.200, mas, devido ao contato com os no-
indgenas e com a interao entre culturas diferentes, esse nmero diminuiu. Hoje, h em
mdia 180 lnguas indgenas que compreendem uma populao indgena aproximada no censo
de 2000 em 734 mil pessoas (0,4% dos brasileiros) que se auto- identificaram como
indgenas16.
Algumas etnias encontram dificuldade na revitalizao de sua lngua pois, muitas
vezes, o nmero de falantes mnimo e so pessoas idosas que detm o conhecimento oral.
Vem cena neste momento o trabalho do linguista, que, atravs de pesquisas, passa a
documentar e registrar uma lngua. Este processo de trabalho muitas vezes desperta na
comunidade o interesse de aprender e ensinar a lngua materna na escola para que ela se
mantenha e seja valorizada.
Sobre o conceito de identidade, foco principal deste trabalho, partimos da premissa de
que a identidade algo construdo ao longo da vida do indivduo e que este no possui apenas
uma, mas sim vrias identidades, que so utilizadas no momento que lhe oportuno. Alm
disso, percebe-se que h identidades impostas e reivindicadas. Durante o perodo de atuao
do SPI, uma identidade foi imposta para os Kaingng com o objetivo de integr-los
sociedade nacional por meio da transio gradativa da sua cultura para a cultura dita
civilizada. Objetivamos tambm neste trabalho compreender de que forma, por meio do
ensino da lngua materna, a identidade indgena afirmada e como ela fortalece o grupo.
A presente dissertao est dividida em trs captulos: no primeiro, intitulado Cultura,
memria e identidade no estudo da Histria indgena, buscamos apresentar a etnia
Kaingng para que o leitor tenha conhecimento da histria deste povo e de seu modo de ser, o
que envolve a demarcao da terra, sua denominao, cultura, educao. Percebemos nas
falas de membros da comunidade as mudanas que se deram ao longo do tempo, seja na
paisagem, na alimentao, na educao, entre outros elementos que a identificam. Aps este
momento, consideramos ser necessrio discorrer sobre alguns conceitos que permeiam este
estudo, como: memria, cultura, grupo tnico e identidade.
16 Disponvel em:
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=506&id_pagina=1 , acesso
em 20 de maro de 2009.
20
Falar de memria perceber, por meio das entrevistas de histria oral, o que os
sujeitos participantes de seu prprio processo histrico tm a relatar e como podem contribuir
na pesquisa a partir desses mecanismos. A histria oral pode ser utilizada para alterar o
enfoque da prpria histria e revelar novos campos de investigao [...] pode devolver s
pessoas que fizeram e vivenciaram a histria um lugar fundamental, mediante suas prprias
palavras17. Este momento de recordar, possibilitado pela histria oral, foi significativo, pois
concedeu voz aos indgenas e nos encaminhou a novos questionamentos que contriburam
para o encaminhamento da pesquisa. Para conceituar o termo memria utilizamos como
tericos Maurice Halbwachs, Michael Pollack, Jacques Le Goff, e sobre histria oral e tempo
presente, Paul Thompson, Marieta Ferreira e Jos Sebe Bom Meihy.
Na perspectiva de falar sobre um grupo tnico, utilizamos como referencial a obra de
Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart, que mostram a origem do termo etnicidade, e
Frederick Barth, que apresenta o conceito de fronteiras tnicas. Segundo este ltimo, o termo
grupo tnico na bibliografia antropolgica geralmente entendido pra des ignar uma
populao que:
1. Perpetua-se biologicamente de modo amplo; 2. Compartilha valores fundamentais, realizados em patente unidade nas formas culturais; 3. Constitui um campo de comunicao e de interao; 4. Possui um grupo de membros que se identifica e identificado por outros como se constitusse
uma categoria diferencivel de outras categorias do mesmo tipo18
.
Considerando o 4o pressuposto apontado por Barth, partilhamos da noo de que
grupo tnico seria aquele em que os indivduos compartilham de um pertencimento
independente de um conjunto de fatores culturais comuns. Esse sentimento de pertencimento
atravs de smbolos o que forma um grupo tnico. Porm, apesar de o sentimento de
pertena ser significativo para a identidade do grupo tnico, no podemos ignorar os
elementos culturais que so compartilhados, j que entendemos a cultura como algo em
processo contnuo de elaborao e reelaborao. Segundo Barth19, nem o fato de falarem uma
mesma lngua, nem a contiguidade territorial, nem a semelhana dos costumes representam
17
THOMPSON, Pau l. A voz do passado. Histria Oral. Trad. L lio Loureno de Oliveira. So Paulo:
Paz e Terra, 1998, p. 22. 18
BARTH, Frederick. Grupos tnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe. & STREIFF-
FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade . 2a ed. So Paulo: Fundao Editora da UNESP, 1998, p. 189-190.
19 POUTIGNAT, P. & STREIFF-FENART, J. Op. Cit., p. 163.
21
por si prprios atributos tnicos. Apenas se tornam isso quando utilizados como marcadores
de pertena por aqueles que reivindicam uma origem comum. Estes elementos culturais
devem ser entendidos pelo grupo como parte de seu sistema cultural.
Nesse entendimento, temos o conceito de cultura a partir do que descreve Geertz20,
como uma teia de significados. Estes signos so compartilhados pelo grupo, pois j se nasce
num sistema cultural, porm essa cultura herdada se modifica, se adapta, construda pelo
sujeito. De acordo com Cuche21, cultura uma produo histrica, isto , uma construo que
se inscreve na histria, e mais precisamente, na histria das relaes dos grupos sociais entre
si.
Finalmente, mostramos alguns aspectos das lnguas indgenas no Brasil e da lngua
Kaingng, destacando o trato do linguista, o que corresponde ao sistema gramatical, sonoro,
descrio da lngua, estudo dos textos, percebendo tambm a lngua como um fator cultural
em constantes transformaes.
No segundo captulo, A instituio escolar e a lngua Kaingng, falamos sobre como
se deu a insero da escrita e da lngua portuguesa para os Kaingng. Nessa parte do texto
damos nfase ao perodo em que houve o decrscimo de falantes da lngua materna, haja vista
que as crianas tinham de aprender a lngua portuguesa, momento em que a oralidade dividiu
espao com a escrita, fazendo com que o ensino da lngua materna se tornasse cada vez mais
difcil. O perodo a que se refere essa seo do trabalho o da atuao do SPI (1941-1967) e
da FUNAI (1967-).
O indivduo considerado bilngue aquele que consegue articular fala, escrita e
entendimento em duas lnguas distintas. No caso aqui estudado, alguns podem ser
considerados bilngues, mas a maioria no o . Mesmo no bilinguismo, uma lngua se
sobrepe outra. Aquela mais utilizada no cotidiano e de uso efetivo tende a dominar.
Procuramos dar nfase criao do SPI e poltica de integrao nacional da poca,
para entender os ideais dessa instituio. Percebemos, ento, a educao como um meio
utilizado para a assimilao. A cultura no indgena transmitida por meio da escola e o ensino
20
GEERTZ, Cliford. A interpretao das culturas . Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1989,
p. 15. 21
CUCHE, Denys. A noo de cultura nas cincias sociais . Trad. Viv iane Ribeiro. 2 ed. Bauru:
EDUSC, 2002, p. 143.
22
da lngua portuguesa em detrimento da lngua materna colaboravam para a formao de uma
identidade nica para o Brasil, formando assim cidados brasileiros.
Como palco de mudanas, elegemos a EIEB Cacique Vanhkr para estabelecer um
histrico de algumas escolas da TI Xapec, tendo como focos a escola localizada no Banhado
Grande, que tinha como professor o indgena Felicssimo Belino, e uma escola situada na
aldeia Pinhalzinho, cujo professor era o no indgena Samuel Brasil. Este ltimo captulo,
denominado Constituio de 1988: A lngua Kaingng na educao escolar indgena, tem
por objetivo mostrar como a lngua materna dessa comunidade est sendo revitalizada na
escola, que hoje tem um sentido distinto daquele do perodo de atuao do SPI.
a partir da CF do Brasil, de 1988, que se d incio a uma poltica educacional que
contempla a cultura indgena. A lngua materna passa a ser uma disciplina da grade curricular,
sendo ministrada em trs horas/aula por semana em cada srie. So os prprios professores
que elaboram seus recursos didticos, pois h pouco material na lngua Kaingng.
Frente s dificuldades, a lngua Kaingng permanece presente no dia a dia da
comunidade, sendo a escola uma sua extenso. Segundo o professor de lngua Kaingng
Pedro Kres, a lngua tudo, na organizao, demarcao de terra, problema de terra, a vida
Kaingng, em tudo, a lngua Kaingng t em tudo 22. Portanto, essa visibilidade da lngua
Kaingng como um fator de identidade tnica, fortalecida por meio da educao escolar
indgena, e a funo que ela exerceu em dois perodos distintos que queremos abordar com
essa dissertao.
22
KRES, Pedro. Entrevista concedida a Talita Daniel Salvaro, em 21 de junho de 2006, Terra
Indgena Xapec/SC.
23
CAPTULO 1 - CULTURA, IDENTIDADE E MEMRIA NO ESTUDO DA
HISTRIA INDGENA
1.1 Os Kaingng da Terra Indgena Xapec
O povo Kaingng um dos cinco maiores grupos indgenas em nmero de populao
do Brasil pertencentes ao tronco lingustico Macro J. Tradicionalmente ocupavam territrios
que compreendiam partes do Estado de So Paulo, Paran, Rio Grande do Sul, Santa Catarina
e parte de Missiones na Argentina, como mostra o mapa seguinte (Fig.1). Nestes estados, este
povo predominava nas partes mais altas do planalto.
Nosso estudo contempla a comunidade Kaingng da TI Xapec, localizada no Oeste
catarinense entre os municpios de Ipua e Entre Rios, com uma rea de 15.600 ha. No total
so 16 aldeias que constituem essa rea. Aproximadamente a 20 km do municpio de Xanxer
est a Sede da aldeia, que se chama Jacu, as outras aldeias so: Olaria, gua Branca, Fazenda
So Jos, Serrano, Cerro Doce, Pinhalzinho, Baixo Sambur, Linha Mato, Paiol de Barro,
Joo Veloso, Linha Guarani, Linha Limeira, Barro Preto, Placa e Pinheirinhos23.
A Escola da Sede, EIEB Cacique Vanhkr, a maior da rea, com aproximadamente
800 alunos. A TI Xapec conta ainda com unidades bsicas de sade, Associao Indgena
Kairu (AIKA), responsvel tambm pela sade, e uma cooperativa agrcola. A principal
liderana que representa essa rea e responsvel pelos principais assuntos no interior e
exterior da TI o cacique Waldemar Barboza, seguido pelo vice-cacique. Cada aldeia possui
os capites e major, que tambm so lideranas.
23
Conforme relato do prof.o Kaingng, Getlio Narsizo Tojf, em 25/04/2007, Terra Indgena Xapec
(SC). Apud. NTZOLD, Ana Lcia Vulfe. Olhar, escutar e tranar: o artesanato Kaingng de cada dia. IV
Encontro Regional Sul de Histria Oral, UFSC: 12-14/11/2007, p. 2. Disponvel em:
http://www.cfh.u fsc.br/abho4sul/, acesso em 15/12/2007.
24
FIGURA 1 Territrio Tradicional Kaingng com localizao atual da TI Xapec24.
24
Adaptao do Mapa de SILVA, Marcos Antnio da. Memrias que lutam por identidade: a
demarcao da Terra Indgena Toldo Chimbangue (SC) 1970-1986. Dissertao. (Mestrado em Histria).
Universidade Federal de Santa Catarina, 2006, p. 55.
25
Os Kaingng habitavam as regies mais altas de seu territrio devido abundncia de
araucrias, que tm por semente o pinho, o qual, segundo Pierre Mabilde25, constitua seu
principal e quase exclusivo alimento: fruto do pinheiro que assavam no borralho e depois
comiam. Tambm viviam da caa de animais como tatu, anta, porco do mato. Coletavam
frutas, razes e vegetais. Os territrios remanejados por Coroados26 e Botocudos27 foram alvo
das frentes de expanso que aconteceram durante o Imprio e a primeira Repblica no Brasil.
Estas frentes comearam no incio do sculo XIX com a criao de gado, e foi em torno desse
abastecimento para So Paulo que a Regio Sul do Brasil entrou no contexto dos interesses
econmicos nacionais, pois sustentaria as reas cafeeiras e de minerao, sendo tal territrio
caminho das tropas que levava o gado do Rio Grande do Sul para So Paulo.
A partir deste propsito, era preciso expandir os campos de criao. Para isso, sob o
comando do Tenente coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal, a expedio, cuja primeira
tropa partiu de Santos ainda em 1809, chegou aos campos de Guarapuava em 17 de junho de
181028. Essa interiorizao foi estimulada por D. Joo VI, que era a favor de uma guerra de
extermnio aos indgenas, pois considerava que essa populao no chegaria civilizao e
inviabilizaria os projetos desenvolvimentistas para o Brasil.
Dissertando sobre estas frentes de expanso, DAngelis29 destaca que, em 1837, o
Governo Provincial de So Paulo decidira pela descoberta dos Campos de Palmas 30, o que
oficializado na lei de 16 de maro daquele ano, pois a regio de Palmas e Guarapuava,
prprias para a criao do gado, apresentava grandes vantagens, em relao Provncia de
So Pedro, principalmente pela maior proximidade com os centros consumidores, o que
facilitaria o transporte de animais, um dos maiores obstculos dos tropeiros31. Para facilitar
as entradas nos campos de Guarapuava e Palmas, as expedies utilizavam-se dos indgenas
25 MABILDE, Pierre. Apontamentos sobre os ndios Selvagens das Naes Coroados do Mato da
Provncia do Rio Grande do Sul 1836-1866. So Paulo: IBRASA, p. 125. Pierre Mabilde fo i um engenheiro
Belga que conviveu com os indgenas no sculo XIX. 26
Nome pelo qual eram conhecidos os Kaingng, devido ao seu corte de cabelo em forma de coroa. 27
Os Xokleng eram conhecidos por botocudos, devido a um botoque que era colocado na parte inferior
do seu lbio por meio de um ritual de passagem da fase de criana para a vida adulta, apenas nos indivduos de
sexo masculino. Pertencem ao tronco lingustico Macro J. 28
DANGELIS, W ilmar da Rocha. Para uma histria dos ndios do oeste catarinense. In: Cadernos do CEOM: CEOM 20 anos de memrias e Histrias do Oeste de Santa Catarina. Chapec: Argos, 2006. Ano 19, n
o
23, p. 278. 29
Ibidem, p. 282. 30
Cf. DANGELIS. Idem. Naquele perodo anterior a demarcao de terras pertencentes ao Paran e Santa Catarina, dos Campos de Palmas incluem do Paran atual, apenas os municpios de Clevelndia e Palmas,
enquanto do atual estado de Santa Catarina abrange onze municp ios, de So Loureno do Oeste a Quilombo, a
oeste; at caador, Rio das Antas e Videira, a leste. 31
MARCON, Telmo. A trajetria Kaingng no Sul do Brasil. In : MARCON. Telmo (coord). Histria e
Cultura Kaingng no sul do Brasil. Passo Fundo: Graf. Ed. Universidade de Passo Fundo, 1994, p. 61.
26
chamados mansos na pacificao dos considerados arredios. Os primeiros eram atrados pelo
governo e nomeados com patentes militares32. Vitorino Cond foi um destes chamados ndios
mansos que ajudou os no-indgenas a aldear vrios grupos no Oeste de Santa Catarina.
Segundo DAngelis 33, Cond pertencia s hordas Kaingng que haviam aceitado a
convivncia pacfica com os fazendeiros em Guarapuava. Mostrando as consequncias atuais
que a aliana de Cond trouxe para seu povo, Ntzold 34 assinala que, naquele momento, os
Kaingng no tinham conscincia de ser uma nao, e Cond pensava estar beneficiando seu
grupo.
So desse perodo os aldeamentos que tinham por objetivo liberar terras para as frentes
de expanso e transferir os indgenas para espaos cada vez mais reservados, tendo assim seu
controle e, aos poucos, ir introduzindo-os na sociedade nacional por meio da sedentarizao
que se dava com a agricultura, criao de pequenos animais, utilizao de objetos no
indgenas. Durante a atuao do SPI, o nome aldeamento foi substitudo por povoaes
indgenas, as quais, porm tinham o mesmo objetivo dos aldeamentos do sculo XIX. Como
destaca DAngelis35, por volta de 1856 (ano em que Cond foi para Chapec), podemos
aceitar a localizao dos Kaingng na regio oeste catarinense pelo menos nos seguintes
locais: Toldo Xapec, Toldo Formigas, Toldo Jacu, entre outros no mdio Chapec e
Chapeczinho.
Devido aos conflitos referentes s fronteiras, no entanto, o governo percebe que deve
proteger o territrio contestado entre Brasil e Argentina e, em seguida, entre Paran e Santa
Catarina. O Governo Imperial resolve, ento, determinar a instalao das Colnias Militares
do Xapec e Chopim, que haviam sido criadas pelo decreto n.o 2502 de 16 de novembro de
1859. Em 02 de maro de 1882, a Colnia militar do Xapec instalada no Xanxer36, e
essa mesma colnia, querendo abrir uma picada para instalao de linhas telegrficas, contrata
como mo de obra barata os indgenas de Chapec e Clevelndia. No final desse servio, em
lugar do pagamento em dinheiro, o lder do grupo, Cacique Vanhkr, pediu que fossem dadas
terras para seu povo. nesse momento que se origina a rea da TI Xapec, que tem essa
denominao porque se encontra entre os rios Chapec e Chapeczinho, tendo origem atravs
32
Hoje ainda mantm-se algumas patentes dentro da rea indgena, como major, capito. 33
DANGELIS, W. da R. Para uma histria dos ndios ... Op. Cit., p. 285. 34
NTZOLD, Ana Lcia Vulfe . Nosso Vizinho Kaingng. Florianpolis: Imprensa Universitria da
UFSC, 2003, p. 75-76. 35
DANGELIS, W. da R. Para uma histria dos ndios... Op. Cit., p, 305. 36
Ibidem, p. 308.
27
do Decreto no. 7, de 18 de junho de 1902 (anexo 1), assinado pelo Presidente 37 do Estado do
Paran, Francisco Xavier da Silva. Nesta poca, a regio fazia parte do Paran, limites de terra
que se resolvem aps o conflito do Contestado.
Apesar da concesso da rea, os conflitos ainda continuaram e foram motivo de novas
medies de terra. A partir do incio do sculo XX, a explorao madeireira tem um surto na
regio oeste do estado, alm do aumento na povoao, pela vinda de indivduos do Rio
Grande do Sul, que adquiriram terras no territrio ocupado pelos indgenas atravs da compra
de ttulos das empresas colonizadoras. A venda de madeiras, principalmente de araucrias, foi
responsvel pelo desmatamento encontrado hoje na rea indgena. Um dos madeireiros
responsveis pela extrao dessas rvores foi Alberto Berthier de Almeida, de Passo Fundo
RS. Ntzold38 menciona este madeireiro em sua pesquisa, ressaltando que ele conseguiu
novas medies nas terras Kaingng e se apossou de uma parte do territrio com ajuda de
encarregados corruptos do rgo de proteo que colaboravam com os madeireiros e
fazendeiros. O antroplogo e pesquisador da temtica indgena Slvio Coelho dos Santos
aponta que:
[...] em Xanxer, municpio onde se localiza a reserva Dr. Selistre de Campos [...] at 1916, quando do acordo de limites entre o Paran e Santa Catarina, a regio tinha sua economia baseada na criao de gado e extrao de erva mate. Propriamente no havia pretenses da populao regional sobre a rea reservada aos ndios nas vizinhanas dos rios Chapec e Chapeczinho. Quando, entretanto a questo de limites resolvida, uma nova frente pioneira atinge a regio [...] a reserva comea a ser cobiada. A nova frente pioneira
baseava-se na atividade agrcola e na extrao de madeiras39
.
Durante esse perodo, foram introduzidas serrarias na rea indgena e, com isso, deu se a
derrubada de muitos pinheiros. Entre 1966 e 1968 estima-se a derrubada de 60.000
pinheiros 40.
37
Aps a Proclamao da Repblica, as provncias passam a se chamar Estado, porm os governadores
destes lugares continuaram a ser chamados de presidentes. 38
NTZOLD, A.L.V. Nosso Vizinho... Op.Cit ., p. 84-85. 39
SANTOS, Slvio Coelho dos. A Integrao do ndio na sociedade regional. A funo dos postos
indgenas em Santa Catarina. Imprensa Universitria da UFSC, 1970, p. 81. 40
SANTOS, Slvio Coelho dos. Educao e Sociedade Tribais . Porto Alegre/RS: Movimento, 1975, p.
28.
28
As modificaes no meio em que vivem, consequentemente, trazem outras
transformaes em vrios aspectos da tradio indgena. Os registros de Pierre Mabilde
referentes metade do sculo XIX registram que os alojamentos dos Kaingng,
[...] so formados de ranchos com vrios tamanhos e configuraes. Todos so cobertos com as folhas do gerivaseiro (Arecastrum (cocos) Romanzoffianum) ou com fetos arborescentes (Alsophyla arborescens). Fazem ranchos de forma prismtica a que, entre ns, chamamos de ranchos de beira do cho. Estes, em geral, so os ranchos dos caciques e dos selvagens que tm mulher em sua companhia, os ranchos de beira do cho, cuja construo conhecida, so de tamanhos diversos e proporcionados ao nmero de indivduos que deve conter. Em geral, tm mais ou menos de 15 a 25 palmos de comprimento, 10
palmos, mais ou menos, de altura, e de 10 a 12 palmos de largura, na base41
.
Os ranchos dos indgenas solteiros so menores e feitos com varas atadas com cip e
depois cobertas com a folha do gerivaseiro.
A organizao social Kaingng marcada pelas duas metades exogmicas, Kam e
Kairu, duas metades que se complementam e que perpassam toda a vida desse povo. O mito
de origem Kaingng contado de diversas maneiras, pois passado de gerao em gerao e
cada pessoa repassa o mito com algumas modificaes, mas sem que perca o sentido. Os
detentores desse saber podem ser considerados, segundo Le Goff 42, como homens e
mulheres43 memria, com importante papel de manter a coeso do grupo, pois a memria
construda de acordo com o contexto da poca, sendo tambm seletiva e reelaborada. A
memria, medida que traz a tona elementos do passado, tambm colabora na construo da
identidade. Pollak44 aponta que a memria um elemento constituinte do sentimento de
identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela tambm um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerncia de uma pessoa ou de
um grupo em sua reconstruo de si. Segundo os mais velhos, o povo Kaingng surgiu de um
buraco, onde:
41
MABILDE, P. Op. Cit., p. 39. 42
LE GOFF, Jacques. Histria e memria. II vol. Lisboa: Ed ies 70, 1982, p. 14. 43
Grifo meu, pois mes mo que homens possam tambm englobar o sexo feminino, ressaltamos que as mulheres tambm perpassam os mitos e tradies de seu povo.
44 POLLAK, Michael. Memria e identidade social. Estudos Histricos: Rio de Janeiro, vol 5, n.
o 10,
1992, p. 5.
29
certo dia, bem de manhzinha quando o sol estava nascendo, a terra se abriu formando um buraco e nasceu um grupo, olharam e viram o arredondado do sol e deram ao grupo o nome de Kanhru. tarde, quando o sol estava se pondo, a terra tornou-se a abrir formando outro buraco e nasceu outro grupo, que olharam e viram os raios do sol e deram o nome do grupo de Kam. Esses dois grupos se uniram e esto vivendo at hoje e por isso que o povo
Kaingng tem a cor da terra45
.
As pessoas correspondentes a mesma metade so consideradas como irms, por isso os
casamentos devem ser realizados entre pessoas de cada metade: Kam, representado por um
risco preto, s pode casar-se com Kairu, representado por um crculo vermelho, e vice-versa.
Hoje, porm, na TI Xapec so raros os casos que levam em considerao essa ressalva no
matrimnio. Essas duas marcas tambm so pinturas corporais para as danas e rituais.
Antigamente, extraiam a cor preta do carvo do pinheiro queimado e aferventado na gua e a
vermelha da planta sete sangria ou do cip guabiroba. Hoje, devido falta de matria-prima,
utilizam outras formas de colorao nas pinturas corporais, como as tintas artificiais.
Um dos principais rituais Kaingng o Kiki, ritual de passagem dos mortos aps um
ano ou mais de seu falecimento. Durante o Kiki, so realizadas rezas feitas por rezadores, e o
som marcado pelo marac, instrumento sagrado feito de porongo, em cujo interior so
colocadas pedrinhas ou sementes que, ao balanar, emitem um som. As rezas so iniciadas
pela famlia cujo membro tenha morrido naquele perodo. Os rezadores so as pessoas mais
velhas das duas metades e conhecedores das oraes. O ritual do Kiki demanda vrios dias
para que possa ser realizado. Segundo Curt Nimuendaj, em seu trabalho etnogrfico sobre os
Kaingng:
Esta festa se realiza geralmente uma vez por ano, logo que o milho na roa d para fazer a bebida Kik [...] Os rezadores se renem alguns dias antes da festa cada noite e narram a tradio do princpio do mundo que com todas as suas mincias serve de base e justificao para os diversos atos da cerimnia da festa [...] Limpam dois lugares, da aldeia para o lado do Oriente, numa distncia que de um no se enxerga o que se passa no outro, servindo um lugar para os Kam, o outro para os Kaer prepararem o material. As pessoas nomeadas para este fim procuram rvores ao leste da aldeia, os Kam uma canela brava, os Kaer um pinheiro... Preparado tudo, especialmente tambm o Kk num coxo grande, comea a dana no dia seguinte. Todos se reunem na casa grande, diante da qual se faz uma fogueira comprida [...] Formam-se os dois grupos, dos Kaer e Kam. Primeiro rompem os Kner, saindo danando da casa grande, mas chegando num certo ponto, param e esperam os
45
NTZOLD, Ana Lcia Vulfe. & MANFROI, Ninarosa Mozzato da Silva. (orgs). Ouvir memrias,
contar histrias: Mitos e lendas Kaingng. Santa Maria/RS: Pallotti, 2006, p. 22-23.
30
Kam que passam por eles, e em seguida os dois cls tomam seus lugares de
ambos os lados da fogueira46
.
O ritual religioso tem por finalidade uma boa passagem para os mortos e tambm para
que seu nome seja liberado e utilizado por outras pessoas. O ritual seguido de oraes e
danas. O ltimo Kiki realizado na TI Xapec se deu em 2004. Desde ento no mais
aconteceu, devido morte de rezadores.
As mudanas culturais, ambientais e alimentares na TI Xapec se deram de forma
mais intensa aps a instalao do posto indgena, durante o perodo de atuao do SPI, sendo
que a paisagem foi se modificando rapidamente devido ao desmatamento. O senhor Sebastio
Mendes, hoje com 66 anos de idade, morador da aldeia sede da TI Xapec, ao re ferir-se ao
tempo passado, diz que muita coisa mudou:
[...] no passado tinha (pinho). Na poca aqui at tigre tinha na vereda desse rio a. Desse alagado a porque era mato. Mas depois entro a os, como se diz os branco entraro e da demoliro com tudo, de resto s aquele ali oh. Da pra
conta aqueles pinheiro que tem ali oh47
.
Por meio de seu relato, pode-se perceber um olhar diante das mudanas decorridas na
rea que compreende a TI Xapec (Fig.2), posterior insero do PI Chapec (1941), em que
o entrevistado refere-se a um ambiente que se modificou rapidamente desde o tempo em que
era criana. Essa rea passou por transformaes que no atendem mais as necessidades
daquela poca. Por exemplo, hoje h extino e escassez de matria-prima para o artesanato,
para a colheita de ervas medicinais utilizadas como remdios, e de frutos e razes utilizados na
alimentao. O modo de viver tambm j no o mesmo, pois as pessoas esto inseridas num
meio transformado e precisam adaptar suas necessidades s mudanas ocorridas.
46
NIMUENDAJ, Curt. (organizao e apresentao de Marco Antonio Gonalves). Etnografia e
indigenismo sobre os Kaingng, os Ofai-Xavante e os ndios do Par. Campinas: Editora da UNICAMP,
1993, p. 67- 68. 47
MENDES, Sebastio. Entrevista concedida a Ninarosa M. da Silva M.; Talita D. Salvaro;
Jackson Alexsandro Peres, em 23 de abril de 2007, Terra Indgena Xapec/SC.
31
O ambiente atual que presenciamos durante as pesquisas de campo 48 o de um
territrio com pouca mata nativa, sendo que as araucrias quase no existem mais. As casas
so na sua maioria de madeira. H estradas de cho que ligam as aldeias uma com as outras e
com a cidade, mas apresentam grande precariedade, principalmente nos dias chuvosos. Nem
todas as comunidades tm energia eltrica. A aldeia Paiol de Barro foi atendida apenas em
2006, atravs do projeto do Governo Federal Luz para todos.
FIGURA 2 - Vista da aldeia Sede da TI Xapec, com a EIEB Cacique Vanhkr e o ginsio de esportes em primeiro plano49.
A etnia Kaingng, com uma populao aproximada de 29 mil pessoas50 ocupa cerca de
30 reas reduzidas, distribudas sobre seu antigo territrio histrico. (Fig.3).
48
Pesquisas de campo realizadas durante o perodo de pesquisa de projetos desenvolvidos pelo
LABHIN em parceria com os Kaingng e pesquisa do TCC e mestrado. Estas sadas so acompanhadas pela
Profa. Dr
a . Ana Lcia Vulfe Ntzo ld e integrantes do laboratrio.
49 SALVARO, T. D. Aldeia Sede da TI Xapec. Ipua, 2006. Acervo da autora. 1 fotografia color
digital. 50
Disponvel em http://www.portalkaingang.org/index_povo_1htm acesso em 08 de fevereiro de 2008.
32
FIGURA 3 Mapa com a localizao das Terras Indgenas Kaingng51.
Anterior denominao Kaingng, estes indgenas j foram chamados de Chiquis,
Gualachos, Coroados. A denominao atual foi includa na literatura por Telmaco Borba, o
qual diz ser o primeiro a utiliz- la, porm em suas pesquisas, o historiador Lcio Tadeu
51
Mapa com as Terras Indgenas Kaingng. Disponvel em
http://www.socioambiental.org/pib/epi/kaingang/loc.shtm, acesso em 07 de novembro de 2007.
33
Mota52 mostra que Frei Luiz de Cimitile e Alfredo D Escragnolle Taunay usaram, na mesma
poca, em seus escritos, tal nominao. Tanto Borba como Cimitile j haviam sido
informados pelos Kaingng de sua autodenominao e de que no gostavam de ser chamados
de Coroados.
Elles porem no gostam deste appelido, e a si mesmos chamam-se Caingang, que em lngua portuguesa quer dizer ndio ou antes Aborgene, elles tambm se chamam Caingang-p (ndio legtimo) e Caingang-venher (ndio cabello cortado) mas os historiadores sempre o tratam pelo nome de Cams, palavra
cuja etymologia ainda no conhecemos53
.
A nominao que determina a etnia, assim como o nome que cada indivduo possui,
representa uma forma de identificao. No apenas denomina o grupo, mas o cria,
estabelecendo sua coletividade. Poutignat e Streiff-Fenart54 destacam em seus estudos sobre
etnicidade que a nominao no somente um aspecto particularmente revelador das relaes
intertnicas, ela por si prpria produtora de etnicidade. E, ainda, segundo Barth55, a
etnicidade uma forma de organizao social, baseada na atribuio categorial que classifica
as pessoas em funo de sua origem suposta, que se acha validada na interao social pela
ativao de signos culturais socialmente diferenciadores. Estes signos so pertencentes
cultura do grupo que, por mais que seja reelaborada e transformada, mantm a coeso pelo
seu lao de pertencimento.
O nome do indivduo em Kaingng importante para seu povo, pois nele est
registrada sua identidade. A nomeao da criana acontecia em um ritual bem simples, no
qual o pai escolhia o nome da criana, reconhecendo assim a paternidade, e passava o recm-
nascido s mos da me56. Os partos eram realizados por parteiras, porm hoje a maioria
acontece no Hospital, por meio da cirurgia cesariana. O nome em portugus e em Kaingng
so registrados no PI Xapec, localizado na aldeia Sede, administrado por funcionrios da
52
MOTA, Lcio Tadeu. A denominao Kaingng na literatura antropolgica, histrica e lingstica.
In: MOTA, L. T.; TOMMASINO, K.; NOELLI, F. S. Novas contribuies aos estudos interdisciplinares dos
Kaingng. Londrina: Eduel, 2004, p. 8-11. Mota tambm assinala que o militar Camilo Lellis da Silva registrou
o nome Caegang quando da sua viagem de demarcao da futura estrada que deveria ligar Guarapuava ao rio
Paran. 53
Cf. Frei Luiz de Cemitile. Memria sobre os costumes e religio dos ndios Cams ou Coroados que
habitam na Provncia. In: Catlogo dos objetos do Museu Paranaense remettidos exposio Anthropologica do
Rio de Janeiro. Curit iba, 1882. Apud. Mota, L. T. A denominao Kaingng ... Op.Cit., p. 6. 54
POUTIGNAT, P. & STREIFF- FENART, J. Op. Cit., p. 143. 55
Ibidem, p. 141. 56
NTZOLD, A. L.V. O ciclo de vida... Op. Cit., p. 26.
34
FUNAI. O nome na lngua materna dado pelo Senhor Cezrio Pacfico, que tem 60 anos de
idade e, h 32 anos, trabalha no posto auxiliando no registro do nome Kaingng. L os pais
chegam com os filhos e pedem para que ele coloque um nome indgena. Esse nome s vezes
vem de casa j escolhido pelos pais, e outras vezes o prprio senhor Cezrio que nomeia:
Importante para ns ter um nome de ndio, pra nunca terminar que se ns no ponha nome de ndio no comprova l fora, l fora voc tem que ter o nome de ndio pra voc comprov que ndio, at documento tem que ter nome de ndio, da comprova que voc tambm nascido aqui, nessa reserva, se voc nascido no Rio Grande, Nonoai, tambm tem no documento, nascido tal dia, na Reserva Indgena Nonoai e o nome assim de ndio n, qualquer lugar que voc nasceu no Posto de Mangueirinha, no posto de Palmas, tambm tem tudo o dia que voc nasceu e o nome de ndio. Voc nasceu l, ento no documento comprova se voc nascido l tal lugar, e meu nome t aqui, da voc pode chegar em qualquer delegacia, qualquer, s vezes voc t viajando, voc procura o lugar e no pode achar, da voc vai numa delegacia eu sou ndio assim, assim, talvez voc no levou a portaria do posto, mas na tua identidade
voc comprova que ndio57
.
Est presente na fala do senhor Cezrio a preocupao na afirmao de sua identidade
frente ao no indgena, pois frente ao diferente que a identidade realada. De acordo com
Pollak58, a construo da identidade um fenmeno que se produz em referncia aos outros,
em referncia aos critrios de aceitabilidade, e uma das maneiras de afirmao por meio do
nome. Cada nome tem um significado, podendo ser nome de madeira, de flor, de animal,
como por exemplo, Kapur, que significa rvore seca, ou Karro, que simboliza tempestade, e
Kres que quer dizer cesto ou balaio.
As mudanas citadas acima no desqualificam os Kaingng como pertencentes a sua
etnia, pois a cultura modifica-se ao longo do tempo, sendo construda de acordo com o
contexto de sua poca. O importante a assinalar nesse momento que os Kaingng so
pertencentes a um grupo e que esse lao de afetividade se d tambm por fatores culturais,
mas principalmente pela coeso mantida pela idia de pertencimento.
57
PACFICO, C. Entrevista. Op. Cit. 58
POLLAK, M. Memria e Identidade social... Op. Cit., p. 5.
35
1.2 - A memria compondo a histria: Tempo Presente e a Metodologia da Histria Oral
Este momento dedicado aos percursos do trabalho com a Metodologia da Histria
Oral que, juntamente com fontes escritas, compem esta pesquisa de mestrado. As fontes
orais a que nos referimos so entrevistas, que tambm constituem uma fonte escrita, pois, de
acordo com a Metodologia que utilizamos, aps o processo de gravao, so transcritas 59.
Nesta etapa, passam a compor um documento, como outros que os historiadores esto
habituados a analisar em arquivos, bibliotecas, acervos pessoais, sejam estas fontes
iconogrficas, multimdia, documentos oficiais, jornais, cartas. Sendo assim, no momento da
transcrio, a entrevista produzida de acordo com os critrios metodolgicos, constitui-se em
uma fonte histrica, com os problemas, cuidados e anlises requeridos por qualquer outra. O
diferencial dessa fonte em relao a outras que o historiador participa de seu processo de
construo e, por seu intermdio e uso da metodologia da histria oral, esta se torna um
documento. Todas as fontes histricas so produzidas de alguma forma por algum; so fruto
de um contexto, de uma poca e de uma interpretao.
Enumeramos alguns pontos que demonstram a importncia da utilizao de
entrevistas neste trabalho: 1) contempla um tema contemporneo, principalmente para a
educao escolar indgena; 2) possibilita visibilidade aos agentes da histria, nesse estudo, os
Kaingng da TI Xapec; 3) mostra diferentes pontos de vista sobre um mesmo assunto; 4)
contempla o vis social; 5) abre um leque maior de investigaes por si mesma em dilogo
com outras fontes.
A histria oral auxiliou na construo da histria do povo Kaingng, no que se refere
principalmente educao escolar indgena, uma vez que os sujeitos participantes de seu
prprio processo histrico contriburam para o enriquecimento da pesquisa por meio dos
relatos e interpretao dos fatos questionados, fazendo parte do dilogo desta dissertao. A
histria oral compe um campo de investigao juntamente com demais fontes, pois esse
corpo documental pode nos levar a vrias outras interrogaes que ajudam a elucidar a
pesquisa. Thompson60, ao discutir o uso dos relatos orais como fonte, mostra que a entrevista
se constitui em um meio para descobrir documentos escritos e fotografias que, de outro modo,
59
Em nossa pesquisa utilizamos a transcrio, mtodo em que a g ravao passa para a escrita sem
modificaes do transcritor. 60
THOMPSON, P. Op. Cit., p. 25.
36
no teriam sido localizados, sendo que muitas vezes esto sob posse da pessoa ou de sua
famlia, e que podem ser documentos essenciais para mapear a pesquisa.
Este tema de mestrado insere-se na histria do tempo presente e utilizamos, como
citado acima, a Metodologia de Histria Oral, que utilizada como uma ferramenta no estudo
da histria contempornea. O tempo presente designa-se aqui por um perodo que se
manifesta na memria da comunidade Kaingng da TI Xapec e que reflete o tempo passado
no presente. Portanto, o perodo em que a lngua materna foi proibida durante o SPI e o
perodo em que ela foi garantida em lei e retomada na escola exercem importncia para que
atualmente se perceba a valorizao e a identidade tnica, mantida por meio do ensino da
lngua materna nas escolas, questes do presente trazem tona o passado, dando-lhe um
sentido e uma funo.
O tempo presente no pode ser definido para um grupo sem que ele tenha significado.
Como nos coloca Le Goff61, o marco do que contemporneo ou do que se pode chamar de
presente depende da conscincia nacional do povo ou da sociedade. Cabe ao historiador
delimitar na sua pesquisa aquilo que ele entende como tempo presente para o seu estudo e
verificar se o grupo estudado tem essa delimitao como um fator hodierno nas suas
memrias.
A histria do tempo presente foi tida no sculo XIX e XX como histria de amadores.
Em contrapartida, havia a histria dita cientfica, aquela produzida por meio de fontes escritas
e documentais. A histria medieval e moderna eram consideradas como matrias que
requeriam especializao para serem estudadas, portanto, foram na poca, o campo de estudo
de historiadores com formao profissional, ao contrrio da histria contempornea, que era
produzida por amadores. Por esse motivo, segundo Marieta Ferreira62, com base na delegao
da impossibilidade de lhe serem aplicadas regras cientficas, foi recusado histria
contempornea, o estatuto de histria. Alm disso, a histria era tida como o estudo do
passado. Sendo assim, o que era denominado como Histria eram fatos que j aconteceram e
que esto arquivados.
Com a gerao de historiadores conhecida como cole des Annales que a histria at
ento centrada nas questes citadas acima comeou a tomar novos rumos. Essas mudanas
61
LE GOFF, J. Op. Cit., p. 207-208. 62
FERREIRA, Marieta de Moraes; ABREU, Alzira Alves [ET all] (coord .). Entrevistas: abordagens e
usos da histria oral. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1998, p. 2. Disponvel em: http://www.cpdoc.
fgv.br, acesso em 07 de outubro de 2007.
37
no chegaram a modificar o uso das fontes orais no sentido de sua utilizao, mas opuseram-
se histria positivista, trazendo tona concepes do econmico e do social. Foi de 1965 a
1977 que se assistiu a um extraordinrio desenvolvimento dos centros de histria oral nos
EUA, em 1967 foi criada a American Oral History Association e em 1973 foi lanada a Oral
History Review63. Os questionamentos direcionados histria do tempo presente se deram
sempre em direo a sua cientificidade, credibilidade e fidedignidade das fontes. Porm,
mesmo com todas as discusses em torno desses fatores, a histria do tempo presente vem
obtendo espao no campo historiogrfico, sendo fundamento de muitas pesquisas.
O historiador Paul Thompson publica em 1978 a obra A voz do passado, pioneira
sobre a temtica de histria oral no que se refere s questes metodolgicas e abre uma
discusso sobre o uso de fontes orais. Thompson atribui histria um vis social pertinente s
questes contemporneas, situando a histria oral como um mecanismo que contribui para
esse propsito. Segundo o mesmo autor, o desafio da histria oral relaciona-se em parte com
essa finalidade social essencia l da histria64. Para Thompson, a histria adquire sentido ao
dar pesquisa uma funo social. Buscamos focar essa funo social no momento em que
nossa pesquisa atinge a sociedade trabalhada, trazendo- lhe questionamentos sobre o seu
prprio grupo: i) no retorno da pesquisa; ii) no conhecimento compartilhado; iii) na auto
estima das pessoas quando percebem que esto contribuindo para o registro da sua prpria
histria e; iv) de acordo com Thompson65, utilizando a histria oral para alterar o enfoque da
prpria histria e revelar novos campos de investigao. Dessa forma, pode devolver s
pessoas que fizeram e vivenciaram a histria um lugar fundamental diante de suas prprias
palavras.
A histria oral inserida no campo da histria na medida em que a historiografia passa
a contemplar a histria social e cultural. considerada uma metodologia recente
principalmente porque para sua efetivao necessria a utilizao do gravador 66, que por si
s uma inveno moderna.
A legitimidade dessa metodologia ainda questionada, apesar de seu uso frequente em
pesquisas que tratam especialmente de alguma dimenso social e cujos sujeitos sejam
63
Ibidem, p. 4. 64
THOMPSON. P. Op. Cit., p. 21. 65
Ibidem, p. 22. 66
A primeira mquina de gravar, chamada fongrafo, foi inventada em 1877, e o gravador em fio de
ao, pouco antes de 1900. Na dcada de 1940 tinha-se a fita magntica e tinha sido posto venda o primeiro
gravador de rolo. Os gravadores de cassete aparecem na dcada de 1960. Ver em THOMPSON, P. A voz do
passado, p. 84. (Hoje tambm se utilizam gravadores digitais, mp4).
38
coetneos. Sua utilizao pode ser notada em trabalhos com as chamadas minorias, grupos e
indivduos que no apareciam como sujeitos no processo histrico e, portanto, no eram
privilegiados nos estudos, como operrios, negros, indgenas e mulheres, que agora passam a
fazer parte do conhecimento histrico. A histria privilegiava os grandes heris e as pessoas
mais importantes da sociedade como polticos, burguesia, e mesmo no incio da utilizao da
histria oral estes personagens que foram entrevistados.
Anterior utilizao da histria oral, os relatos de que temos conhecimento sobre as
populaes indgenas eram obtidos por meio do outro no indgena, e refletiam a sua
concepo e o contexto da poca. O dizer do indgena, ento, no era relatado. O que se
verifica, portanto, que a histria oral possibilita para os pesquisadores um leque maior de
investigao e representa para estes povos a possibilidade de serem escutados a fim de que se
produza um conhecimento histrico a partir do relato da narrativa, do que o ndio tem para
expressar67, percebendo, assim, o seu prprio pensamento sobre sua histria.
As discusses em torno da evidncia oral so um ponto em voga, com questes que
abarcam desde a sua credibilidade e utilizao, at a metodologia. Ao remeter-se
fidedignidade das fontes e ao compar- la anlise de outras, Thompson68 mostra que:
[...] do mesmo modo que o material de entrevistas gravadas, todos eles (outros documentos) representam, quer a partir de posies pessoais ou de agregados, a percepo social dos fatos, alm disso, esto todos sujeitos a presses sociais do contexto em que so obtidos. Com essas formas de evidncia, o que chega
at ns o significado social, e este que deve ser avaliado.
A histria oral uma metodologia, uma ferramenta a mais para se trabalhar com a
histria do tempo presente69. Ela auxilia na interpretao dos fatos em que as pessoas que
deles participaram so nossas contemporneas e podem contribuir com a sua memria sobre
os acontecimentos, dialogando tambm com as fontes documentais. Meihy70 define a histria
oral como um recurso moderno usado para a elaborao de documentos, arquivamento e
estudos referentes experincia social de pessoas e de grupos. Ela sempre uma histria do
67
FREITAS, Edinaldo Bezerra de. Fala de ndio, Histria do Brasil: o desafio da Etno -Histria
Indgena. In: Revista da Associao Brasileira da Histria Oral, no. 7,vol. 7 / junho de 2004. So Paulo:
Associao Brasileira de Histria Oral, p. 184. 68
THOMPSON, P. Op. Cit., p. 145. 69
A histria do tempo presente pode tambm ser feita atravs de documentos e no necessariamente
com o uso da histria oral. 70
MEIHY, Jos Carlos Sebe Bom. Manual de Histria Oral. 4 ed. So Paulo: Ed ies Loyola, 2002,
p.13.
39
tempo presente e tambm reconhecida como histria viva. No vamos identificar verdades ou
mentiras nos relatos de nossos colaboradores, mas sim o modo como o fato foi percebido e
descrito, ou seja, as circunstncias dos relatos. Meihy71 assinala que a narrativa para a histria
oral uma verso dos fatos e no os fatos em si.
No qualquer entrevista, conversa, vdeo ou mesmo entrevista gravada sem a
permisso da pessoa entrevistada que pode ser considerada como fonte. Sendo uma
metodologia, h critrios que definem a histria oral. Esses critrios podem divergir em
alguns aspectos, de acordo com regies e tericos utilizados para fundamentar a metodologia.
Em nossas entrevistas, utilizamos o Manual de Histria Oral de Meihy72, que divide a histria
oral em quatro momentos: 1) elaborao do projeto; 2) gravao; 3) confeco de documento
escrito; 4) sua eventual anlise.
O projeto o diferencial da histria oral. o meio pelo qual o registro oral no vai
compor uma mera entrevista gravada, mas sim que esta tem por finalidade uma pesquisa,
exercendo uma funo social e que, principalmente, estar regada de critrios que a tornam
uma fonte. Nossas entrevistas no comportam um projeto especfico voltado diretamente a
cada uma, porm deixamos claro que essa seria uma das metodologias utilizadas. De acordo
com Meihy73, o projeto o principal diferenciador entre a histria oral e as demais reas que
trabalham com entrevistas, pois de acordo com um estudo sobre a temtica que se mapeiam
as pessoas que podero colaborar para a pesquisa, alm do que, o projeto viabiliza um melhor
roteiro de questes.
A gravao consiste no registro da oralidade por meio de um gravador, seja ele
magntico ou digital. O momento da gravao requer alguns cuidados tcnicos como o uso do
aparelho de gravao, quantidades de fitas ou disponibilidade de horas a serem gravadas.
importante escolher um espao silencioso para a gravao, a fim de que no haja
interferncias, mas isso tambm varia conforme o espao indicado pelo entrevistado, que
dever ser aquele onde ele mais se sentir vontade.
A confeco do documento acontece quando a oralidade passa para a escrita. H trs
modelos, segundo Meihy, para essa fase. 1). a transcriao: digita-se como falado, mas sem
as questes do entrevistador; 2). a textualizao quando se retiram os erros gramaticais e
71
MEIHY, J.C.S.B. Op. Cit., p. 100. 72
Ibidem, p. 76. 73
Ibidem, p. 162.
40
sons alheios; e 3). a transcrio, em que as palavras e sons so regis trados de acordo com as
palavras do entrevistado. Optamos por esta ltima, pois, ao escutar ou ler a entrevista, mais
fcil de as pessoas se identificarem com seus relatos. Os sons tambm so importantes para
contextualizar o espao e o que se passava no momento daquela entrevista. importante na
histria oral que no momento da produo do documento no se perca o sentido do relato oral.
Ainda de acordo com Meihy74, so trs os elementos que formam a relao de histria oral: 1)
o entrevistador; 2) o entrevistado; 3) a aparelhagem de gravao.
Nossas entrevistas tiveram como objetivo central verificar como era a educao
escolar no perodo do SPI e o reflexo hoje da proibio da lngua Kaingng na educao
escolar indgena, e principalmente como acontece a sua revitalizao atualmente. Portanto,
centramos nossas atenes em algumas pessoas mais velhas da comunidade, cujas falas
poderiam contribuir para o primeiro ponto citado acima, e com professores de lngua
Kaingng e alunos da escola que compartilham desse perodo atual, em que a lngua
ensinada na escola. O interessante que esses dois grupos, separados apenas pela faixa etria,
como sujeitos eleitos para as entrevistas se intercalam no tempo e no centram suas narrativas
apenas no perodo sugerido, pois os mais velhos hoje percebem a importncia do ensino da
lngua que a eles fora proibida, e os mais jovens percebem a falta do uso social da lngua,
retomando-a para fortalecimento da identidade, necessidade sentida por ambos os indivduos.
O que queremos mostrar, portanto, que o tempo passado est to presente como o tempo
presente necessita do passado, e que a memria compartilhada pelo grupo. As narrativas
representam essa memria, principalmente pela tradio oral indgena, Delgado diz que:
[...] narrativas sob a forma de registros orais ou escritos so caracterizadas pelo movimento peculiar arte de traduzir em palavras os registros da memria e da conscincia da memria no tempo. So importantes como estilo de transmisso, de gerao para gerao, das experincias mais simples da vida cotidiana e dos grandes eventos que marcaram a Histria da humanidade. So suportes das identidades coletivas e do reconhecimento do homem como
ser no mundo75
.
A tica do entrevistador essencial para um bom trabalho. importante que o
colaborador se sinta vontade com a pessoa e que no haja nenhum tipo de hierarquia entre
eles. A simplicidade essencial para que