Post on 21-Jan-2019
DE MARGEM A MARGEM: Memórias de Lavadeiras e as Normas da Modernização
(1960/1970)
FRANCISCO SOARES CARDOSO NETO1
RESUMO
Este artigo visa analisar as práticas das lavadeiras de roupa do rio Parnaíba, em Teresina, e
propõe indagar-se sobre como os discursos normatizadores, defendidos e resguardados na
emergência do urbanismo associado ao sanitarismo e à engenharia, oralizados pelos
administradores públicos, cronistas, entre outros, que fizeram parte do universo cotidiano de
Teresina, afetaram e silenciaram, e de forma direta alteram as práticas destas mulheres de
margens. O recorte temporal nesta pesquisa esta atrelado às memórias de mulheres que
consumiam estes espaços de margens e a discursos de caráter sanitarista encontrados em
jornais, como o Estado do Piauí, entre meados de 1960 e início da década de 1970. A
metodologia utilizada foi de história oral com utilização de entrevistas e transcrição das
mesmas, sendo estas confrontadas com as fontes documentais, tais como os jornais veiculados
na época do recorte feito pela pesquisa. Enfim, a pesquisa analisa como os costumes, práticas,
hábitos e fazeres de determinado grupo social, como os das lavadeiras, são afetados pela
norma vigente, que pregoará o que é feio e belo no que se pretendia ser a capital mais bela do
nordeste.
Palavra – Chave: Memória, Cultura, Lavadeira, Teresina.
Lavando e Cantando Memórias:
Quando visitamos a memória dos caminhantes da velha cidade de Teresina, dos
movimentos rápidos e passivos de seus consumidores, é possível conhecer outras veredas que
se desvelam, mostrando sempre novas possibilidades de olhar, reeducando nossas
perspectivas acerca daquela urbe que não volta mais. Ou seja, “podemos descobrir práticas
que vão sendo recriadas, reinventadas, nos interstícios de um tempo em que o sonho e a
1 Graduado em Licenciatura Plena em História pela Faculdade Piauiense – FAP/Teresina, Mestrando em História
pelo Programa de Pós Graduação em História do Brasil na Universidade Federal do Piauí – Campus Ministro
Petrônio Portela, Teresina – Piauí.
utopia, enquanto projeção de diferentes futuros parecem ter perdido sua força.”
(MONTENEGRO,2010:p.16).
2
As Vidas nas águas do rio Parnaíba se revelam para nos como narrativas de um tempo
real passado. A narrativa construída em torno de seus antigos consumidores, em especial, das
lavadeiras de roupas, vem a intercambiar as experiências de vida daqueles que praticavam
este espaço de forma efetiva. O narrar, sedimentado nas memórias dessas mulheres
trabalhadoras anônimas, vem a tentar criar visibilidade acerca da riqueza de detalhes,
experiências cotidianas que comumente se perdem na imensidão dos estudos históricos. Este
ato nos leva dizer que o narrador, ao falar de si e de suas experiências, organiza, edita e
seleciona na memória o melhor a dizer e a forma mais adequada.
A memória é, neste caso, um campo de imenso combate, em que se colocam em
questão as visibilidades, ou mesmo, as invisibilidades que se submergiram na insegurança de
uma história oficial. Nesta perspectiva, a história das vivências e das experiências das
lavadeiras de rio é uma forma de “cantar” a história da cidade de Teresina, já que cantar é
uma metáfora para montar a história de quem trabalha em voz alta.
A recordação, narrada neste artigo, provém dos invisíveis, dos pedantes, dos
representados, dos que liam a cidade sem mesmo saber. O recorda não significa reviver, mas
sim, estabelecer um vínculo de existência. Recobrar o lavar é na medida das sensibilidades,
lavar alma e o corpo. Suas recordações se assemelham a uma cebola, que precisa ser
despelada a fim que possa ser expor o que não pode ser revivido letra por letra. A recordação
é analisada aqui, numa dimensão humana e reflexiva, buscando dimensionar a visibilidade
acerca da prática de lavar. Ao recordar, o objeto da pesquisa redimensiona sua visão acerca
dos passos dados ao longo de seu labor.
Nesta perspectiva, quando, de pé ao lado de uma pia cheia de roupas - espaços
reinventados pelo modernismo pujante desde 1970 - ficamos deslumbrados com a força da
“experiência”, cantadas ao embalo das narrativas de vida, abalaram o tempo e o espaço e se
esforçam para continuarem a existir. As mulheres que esta pesquisa escutou com tanto
carinho, revelaram um pedaço de Teresina que encantou a cada nova entrevista. Cada
lavadeira de roupa que escutamos, tem uma Teresina inscrita em suas memórias. Uma
Teresina de poucas ruas, recortada em quadrados. Uma Teresina de apitos de barcas, dos
nossos rios com cheiro de vida, de uma cidade verde. Uma Teresina isolada, mas uma
Teresina que era feliz do seu jeito.
As experiências viraram narrativa na mão do aprendiz de historiador. Nossas
narradoras sucateiras buscam em suas memórias, elementos de sobra ao discurso histórico.
Neste caso,
3
[...] o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição, oficial ou
dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal consistir, então, na
transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao passado e aos mortos, mesmo –
principalmente – quando não conhecemos nem seu nome nem seu sentido.
(GAGNEBIN, 2006: p.54)
Quando entre sabões e lençóis, dona Rita de Cássia Pereira Olegário, casada, nascida e
domiciliada no bairro Ilhotas, lavadeira de roupa a mais de 25 anos, nos diz que,
A gente lava, a gente ganha né ,principalmente para a gente que alguns tempos atras
não teve a mesma chance de homem branco, isso aqui caiu muito bem, pelo menos a
gente teve a chance de ter isso aqui para trabalhar, viver o dia a dia, ganhar seu
dinheiro. Porque todas nos lavadeiras tivemos filhos, tivemos netos, que continuam
trabalhando assim.2
Ela nos demonstrar a importância desta tradição, que, no sentido mais amplo da
transmissibilidade, ainda persisti em existir. O que as lavadeiras delegam a seus filhos,
mesmo não sendo a mesma tradição que outrora existiu, é carregada de simbolismos e
impressões da realidade. Na fala de Olegário (2012), fica impresso uma realidade comum ao
período analisado pela pesquisa, quando a mesma cita que as lavadeiras continuam lavadeiras
por não ter a mesma sorte de “homem branco”.
De que sorte está falando? Num período em que as diferenças entre ricos e pobres era
algo marcante e expressivo, a organização/ reorganização dos espaços urbanos de Teresina
fazem com que, tanto os pobres urbanos e suas práticas, como os próprios espaços de
pertencimento sejam normalizados. Com isso, as velhas práticas da cidade que se transformou
foram modificadas, assim como também seus praticantes. A “mesma sorte” que dona Rita nos
tenta demonstrar diz respeito às oportunidades e jogo que estas colocaram sobre os menos
favorecidos.
Produtores e Consumidores na cidade em Transformação
Armando este jogo de interesses que as memórias tentam desembaralhar, a marcha das
lavadeiras pela cidade em transformação nos mostra uma diferença que existe entre
produtores e consumidores da cidade (PESAVENTO, 2011: pág. 7). Como invenção, numa
dimensão humana, a cidade é armada e planejada por diretrizes e propostas de seus
interventores, homens letrados, administradores, médicos sanitaristas, entre outros, que
pensam Teresina numa perspectiva limitada e excludente. Eles, segundo esta análise, são os
2 OLEGÁRIO, Rita de Cássia Pereira. Depoimento concedido a Francisco Soares Cardoso Neto. Teresina,
novembro, 2012.
4
produtores da urbe, dando significado, função e sentido aos espaços urbanos. Isto não quer
dizer que os espaço públicos são usados conforme foram planejados.
A contramão está os consumidores, os praticantes anônimos dos espaços urbanos,
como as lavadeiras de roupa de rio. Elas (re) significam os espaços urbanos atribuindo aos
mesmos, características próprias das práticas delas em torno daquele lugar. Os cais do Rio
Parnaíba, por exemplo, enquanto espaço público, tem um projeto e intenção, embora distante
da representação que seu uso e prática elaboram. Ou seja,
[...] enquanto formuladores de propostas para a Cidade, os urbanistas e arquitetos
atribuem uma função e um sentido a seus projetos, que podem se distanciar, em
muito, das construções simbólicas feitas pelos usuários daquele espaço
transformado. (PESAVENTO, 2011: p.8)
Se formos analisar o cais enquanto lugar público, o mesmo servia - nos anos vindouros
da navegação a vapor - para recebimento de mercadorias que chegavam e saiam a todo o
momento, ponto de comercio e troca com o mercado central, porto de pequenas e grandes
embarcações, ponto de integração regional. Mas ficaríamos limitados somente ás construções
de sentidos dos produtores de cidades, que veiculam funções aos espaços, cuja
obrigatoriedade do uso naquelas circunstâncias fica normatizada.
De fato, aqui em Teresina entre 1960 e 1970, a normatização dos espaços urbanos é
uma forma simbólica de representar a modernidade desejada. Mas, o que se via a beira do rio,
eram cantos e seios, roupas e sabões, bichos e crianças, homens e mulheres operando a
contramão da cidade, (re)significando aquele espaço social, fugindo aos padrões
estabelecidos.
Quando se constroem outras significações aqueles espaços, feitas na maioria das vezes
pelos seus praticantes, consumidores, observasse uma fuga da norma, do disciplinamento dos
espaços urbanos. Teresina é um espaço disciplinado, o cais do rio Parnaíba é um lugar
disciplinado, pois “[...], a disciplina é um tipo de organização do espaço. É uma técnica de
distribuição dos indivíduos, através da inserção dos corpos em um espaço [...], classificatório,
combinatório”. (FOUCAULT, 2009: p.XVII). A normatização e disciplina dos espaços
urbanos em Teresina podem ser vista, como o maior emblema de sua modernidade.
Com isso, o que se vivenciava em modernidade em Teresina no período abordado pela
pesquisa, caminhava a passos lentos. A modernidade “é algo que se ouve falar, de que se tem
certo conhecimento, que se almeja experimentar, e que se consubstancia, por vezes, em um
único elemento convertido em emblema da tal modernidade.” (PESAVENTO, 2011: pág. 41)
Buscando este emblema para a modernidade, os gestores públicos de Teresina,
seguindo os ditames do período repressor progressista do Regime Militar iniciado em 1964,
5
anseiam em desmistificar a emblemática figura da pobreza, tanto urbano, quanto econômica e
social do Piauí, representado pelo atraso massificadamente visível em sua capital, por meio de
intervenções, tanto na estrutura física, quanto humana da capital piauiense.
A saber, o Piauí, desde os meados dos anos de 1950, passava por uma grave crise
econômica, desencadeada pela crise gerada desde o fim da segunda guerra mundial, onde o
comércio externo de cera de carnaúba e maniçoba teve um declínio muito grande. Esta
situação econômica insipiente “refletia-se na precariedade da própria estrutura física da
capital Teresina, carente de políticas urbanísticas e de recursos para realizá-las.” (MONTE,
2010: p.84)
Se fossemos traçar um panorama sobre as condições urbanísticas da capital do Piauí
em 1950, encontraríamos uma cidade, que frente a um panorama regional e nacional, estava
completamente atrasada, sem um sistema, mesmo que simples, de distribuição de água e
esgotos, ruas e avenidas sem camada asfáltica e outras tantas sem calçamento.
Os primeiros passos dados para retirar o Piauí desta situação de atraso foi no governo
do excelentíssimo governador Jacob Manoel Gayoso e Almendra (1955-1959), que foi
responsável pela organização da administração pública estadual e das finanças. Ele consolida
a organização por meio da criação da CODESE3. Com esta comissão,
[...]elaborar planos a longo prazo para a administração do Estado, tendo por
finalidade estudar e propor diretrizes para o desenvolvimento do Piauí. Em 1959, a
CODESE ampliou sua área de atuação, passando a contar com a participação de
representantes do setor empresarial e dos prefeitos da capital e de outras cidades
piauienses no processo de planejamento. (MONTE,2010:p.87)
Esta articulação entre os dirigentes da cidade para poder tentar sanar o estereótipo
nacional de pobreza depois dos anos de 1950 só vai ser consolidada em anos vindouros com
os insurgentes governos militares, que propõem uma transformação e um desenvolvimento
econômico, mesmo que para isso tenha-se que se reprimirem as liberdades individuais. Era
preciso que o estado se desgarrasse de suas raízes rurais, reprimindo as mazelas decorrentes
do extrativismo e tenta-se se inserir no complexo sistema macro econômico em que se dirigia
o Brasil.
Segundo Lima Monte,
A euforia nacional-desenvolvimentista refletia em nível local como uma nova
oportunidade para que o povo piauiense realizasse seus sonhos de progresso,
entendido como a possibilidade de implantação do processo de industrialização que
assegurasse o desenvolvimento econômico do estado e possibilitasse a tão almejada
modernização na malha urbana da capita. (MONTE, 2010; p.88)
3 Comissão de Desenvolvimento do Estado
6
Observa-se que o Piauí, a exemplo do Brasil, no período compreendido entre os três
decênios que se seguiram com o golpe, apresentou um afluxo populacional para as zonas
urbanas, com taxas muito negativas. As discrepâncias entre a razão da população local e o
número de migrantes que foram atraídos pela euforia desenvolvimentista mostram um
despreparo da própria malhar urbana para receber este contingente populacional. Veja que em
1950, apenas 20% da população se encontravam na zona urbana, e terminam os anos 80 com
um aumento percentual de 40,6% no total.
O Governador Helvidio Nunes,em 1968, trabalhando as questões urbanas da capital do
Piauí retrata que,
O abastecimento de água dos nossos principais centros urbanos é insuficiente para
atender à demanda do consumo, atual e futuro. O Governo concluiu em Teresina a
1º etapa da construção da rede de esgotos sanitários com a extensão de 82 km
saneando todo o centro urbano da capital piauiense. (NUNES, 1968: p. 15)
Este processo de urbanização acelerada foi provocado, como já citado, pelo fluxo
migratório contingencial que se sucedeu com o declínio da atividade extrativista. Além disso,
este processo se deu com forte expansão das atividades comerciais e de prestação de serviços,
sobretudo em Teresina, em função da maior integração do Piauí no contexto do
desenvolvimento brasileiro, integração esta, que dificultou o desenvolvimento de atividades
produtivas – industriais e agrícolas – mas que ampliou os serviços do setor terciário para
possibilitar o consumo de bens duráveis do sudeste.
Como resultado desse momento tem-se que durante as três ultimas décadas após o
golpe militar, crescimento elevado da PEA4 dos setores urbanos. Porém, a demanda de mão
de obra não cresceu na mesma proporção da oferta de trabalho, o que com isso, gerou nos
setores econômicos, uma queda na absolvição da PEA, que ficou por volta dos 27%5. Isso
gerou um aumento no setor informal de grande proporção no Piauí, onde uma gama variada
de atividades absorve uma parte dessa parcela. A saber, a tabela abaixo explica como as
atividades cresceram a parti de 1950:
Tabela 1: Taxas de crescimento dos setores econômicos de 1950 a 1980
SETOR 1950/1960 1960/1970 1970/1980
Primário 14,7 21,7 16,4
Secundário 29,3 81 98,2
Terciário 67,4 37,1 90,1
4 População Economicamente Ativa - PEA 5 BANDEIRA, Willian Bandeira. Política urbana e problemas urbanos. Teresina: CEPAC, 1988.
7
Mas qual o sentido desta grande elevação do setor terciário, principalmente o de
prestação de serviços, que abrangia uma gama de atividades, como de cabeleireiros,
engraxates, jardineiros e principalmente, o do nosso objeto de pesquisa, as lavadeiras de
roupa?
Com base no recenseamento geral de 1960, o estado conjuntural das pessoas de mais
de 15 anos, por atividade de ocupação nos demonstra que, da população economicamente
ativa que atuava no setor de prestação de serviços era de 49.458 pessoas, sendo que deste
total, 33246 eram mulheres, sendo que a maior parte das pessoas que estavam neste ramo de
prestação de atividades, só teve a oportunidade de estudar ate o primeiro ciclo de ensino,
antigo primário, o que nos sucinta uma analise sobre as condições sociais da população de
Teresina no período pesquisado.
Durante todo o período de formação político e social da capital do Piauí, se observa
que a maior parte da população se compunha de pessoas humildes, que necessitam entrar
diretamente no mercado de trabalho, sem o mínimo de qualificação possível. O que isso vai
gerar é um atraso com relação à qualidade de profissionais, principalmente com relação,
dentro do período de introdução do Piauí no rol nacional de políticas desenvolvimentistas, que
poderiam atuar nas indústrias que aqui se instalaram, tais como siderúrgicas. É fácil observar
esta argumentação quando o próprio governador do Piauí em 1968, Helvídio Barros Nunes,
diz que,
O serviço do Estado, procurando integrar a mão de obra marginalizada no sistema
produtivo local, e valendo-se, principalmente dos centros sociais em Teresina e em
quarenta municípios do interior do Estado, qualifica esta mão de obra através de
cursos e treinamentos, principalmente para soldador, eletricista instalador, torneiro,
carpinteiro, pedreiro, etc, com a decisiva participação do PIPMOI – PROGAMA
INTENSIVO PARA PREPARAÇÃO DE MÃO DE OBRA INDUSTRIAL.
(NUNES, 1968: p. 15)
Dentro destes aspectos, podemos perceber dois pontos críticos sobre este período, que
seria a qualificação dos profissionais para poderem se inserir neste novo rol de atividades que
aqui se instalavam e outro seria o contingente exponencial de mão de obra que chegava a todo
o momento para a capital. Vai ser este mistura de fatores que vai contribuir para o estopim de
pessoas trabalhando na informalidade, como as das lavadeiras de roupa de rio, que
desqualificadas para atuarem no mercado de trabalho moderno e exclusivo, necessitam bater
as roupas dos “grandes” urbanos para poderem sobreviver e crescer.
8
Para evidenciar este panorama, é necessário conferir o grau e espécie de formação
educacional das pessoas que atuavam no setor de higiene pessoal, como as lavadeiras, para
notar-se como a inserção destas profissionais, neste mercado de trabalho qualificado, era
complicada.
Tabela 2: Grau ou espécie do curso completo das pessoas de 10 anos ou mais, segundo os grupos e
subgrupos ocupacionais:
GRUPO: PREST DE SERVIÇOS FORMAÇÃO
SUBGRUPO: LAVADEIRAS ELEMENTAR FUNDAMENTAL SECUNDÁRIO
TOTAL: 363 347 16 -
As lavadeiras, caso principal de nossa pesquisa, têm a sua representação do trabalho
vinculada a perspectiva de instrumento principal para assegurar a sobrevivência e garantir o
reconhecimento no espaço público.
O trabalho, para estas mulheres, significa a extensão das obrigações familiares, o que
representa o complemento do orçamento doméstico. Mas, pelas próprias circunstâncias
encontradas pelo período, para muito além da ótica da referência doméstica, a necessidade de
garantir o consumo e a sobrevivência, percebe-se nas mulheres lavadeiras, uma clara noção de
ligação com o trabalho. O lavar não é uma obrigação, mas sim, uma necessidade.
É neste sentido que com base ainda nas informações levantadas durante a pesquisa,
foi-se constatado que a maioria destas mulheres, dentro de um determinado espaço amostral
significativo, ou eram casadas e com isso atuavam no sentido de complementação doméstica
do orçamento mensal, ou eram solteiras, e geralmente as solteiras eram filhas de lavadeiras,
ou mulheres livres e desqualificadas, e ainda neste contexto, existiam ás separadas, que
representava, um contingente ainda mais estereotipado, se formos comparar a situação delas
com os preceitos morais vindouros no período. A saber, a tabela abaixo demonstrar o estado
conjectural das pessoas de 15 anos e mais, por sexo e tipo da união, segundo o ramo da
atividade de dependência e condição de atividade:
Tabela 3: Estado conjectural das pessoas de 15 anos e mais, por sexo e tipo da união, segundo o ramo da
atividade de dependência e condição de atividade:
SETOR DE ATIVIDADES LAVADEIRAS, ENGOMADEIRAS E JARDINEIROS
SITUAÇÃO SOCIAL MULHERES CASADAS SOLTEIRAS SEPARADAS
9
TOTAL 33246 11627 14463
3222
ECONOMICAMENTE
ATIVAS 18953 3580 9762
2688
ECONOMICAMENTE
INATIVAS 14293 8047 4701
534
Justificada esta atividade num período de imensas transformações, é necessário agora
estranhar esta atividade na cidade em transformação. Quando resolvemos analisar as
lavadeiras, várias indagações nos vieram. Umas supérfluas, e outras extremamente
pertinentes. Quando vemos Teresina de 1960 e 1970, acompanhamos modificações que
tentavam sanar feridas históricas, reorganizar os espaços urbanos e conferir ordem à cidade.
Lavar roupa no Rio parecer uma prática banal, num primeiro olhar, e corriqueira de
qualquer parte do mundo, pelo menos no nosso imaginário. No entanto, essa prática
incomodou os representantes do discurso de modernização. Se observarmos o discurso do
moderno em Teresina, percebemos que ele é presente por um longo espaço de tempo, sendo
apresentado e representado em diferentes aspectos e formas, segundo o desejo dos
governantes e mesmo da população nos diferentes momentos da história da cidade, seja no
inicio do século XX, seja nas vésperas do centenário ou mesmo nos anos de 1970.
Esta normatização é legitimada pelos administradores da cidade, que, com o advento
dos governos militares, tinham uma clara visam de ordem e espaço, visível até na forma como
os governos de 1966, 1971 e 1975 vão conduzir as políticas tanto estaduais quanto
municipais. A bola da vez era mudar, e mudar para eles significar embelezar, mesmo que para
isso se gere esquecimentos.
A cidade de Teresina conta uma história não verbal através da experimentação de seus
espaços sociais, e mesmo que eles tenham sido preservados em poucos aspectos, se alteraram
historicamente na forma, função e significado. A modernização vivenciada aqui se estrutura
numa complexa teia de elementos científicos e sociais, que associados, produzem uma nova
ordem tanto econômica, quanto cultural.
A modernidade, conceito que pretende ser civilizatório, traz consigo a modernização,
aplicação concreta, física da modernidade. Nesta passagem de tempo, velho e novo, antigo e
inovador são imagens recorrentes, à medida que o caráter civilizador do processo globalizante
de desenvolvimento econômico ao qual o Brasil estava inserido recorre à implantação de
10
novos padrões estéticos, tanto urbanísticos, na organização da cidade, como arquitetônicos, na
elaboração destas construções.
Analisando estas conjecturas é que nos prendemos a perceber o universo urbano que
as lavadeiras estavam inseridas. Para tanto, é necessário iniciarmos nossa análise, por uma
pequena notícia veiculada no Jornal Folha da Manhã, de 1964, ao qual o articulista, à
estranhar a figura de uma lavadeira, cós e chitas lavando roupas em meio a uma rua central de
Teresina, faz o seguinte apontamento,
Parece incrível, mas por incrível que possa parecer, temos aí uma humilde lavadeira,
no seu oficio pesado, trabalhando sol a sol, numa rua central de Teresina, que é a
Olavo Bilac. A impressão que a gente tem é que se trata do lugar onde as lavadeiras
se dirigem, nas margens do Rio Parnaíba, para lavar suas trouxas de roupa, a fim de
ganhar o feijão de cada dia.Mas isso é apenas impressão.A realidade é bem outra,
pois o flagrante colhido pela nossa objetiva nos mostra em que se situação se
encontra alguns trechos das ruas centrais de Teresina – paraíso das lavadeiras, que
não mais precisam dar longas caminhadas ate o rio. As ruas, diversas delas, têm tudo
que lhes facilita o trabalho: pedras para estender roupas, águas que correm e se
acumulam em grandes buracos, matagal para lhes esconder a semi-nudez. Soubemos
que o Ilustre Prefeito de Teresina já esta dando providencias para corrigir esta e
outras mazelas de nossa cidade.Se aqui registramos, não é,pois, com intuito de
critica,mas “ad posteritatem”[...]6
Teresina do século XX, como toda cidade, é algo mais amplo que os limites pensados
para ela. Ela nos mostra inúmeros espaços significantes, indivíduos operando entre si práticas,
maneiras de fazer, fazendo a cidade existi enquanto aglomeração urbana. Em qualquer leitura
já feita da expansão urbana de Teresina, iniciada em fases que remonta desde sua fundação,
em 1856, o centro da cidade aparece como núcleo mais antigo, salvo o próprio Poty Velho7, e
mais ativo da urbe teresinense. É partindo dos arrabaldes deste centro que saem caminhos que
se entrecruzam e experiências que teimam em se manter, maneiras de ser e fazer que ser
reinventaram ao jugo do tempo.
Ultrapassando os limites visíveis da paisagem retratada pelo jornal, adentramos por
outras veredas de uma espacialidade anônima. O planejamento urbano de Teresina, iniciado
em meados dos anos de 1960, através da proposta interina do Plano de Desenvolvimento
Local Integrado, a qual esteve à frente o Cel. Jofre do Rego Castelo Branco8, que seguindo
uma tendência nacional, firma contrato com uma empresa Baiana, COPLAN S/A Construções
e Planejamentos, onde a mesma executa um levantamento dos espaços urbanos da capital de
Teresina e propõe intervenções, não suprime aquilo que Certeau (1998) denominou de “artes
6 LAVANDO roupa numa rua central de Teresina. Folha da Manhã. s/n. Teresina. 26 janeiro, 1964. 7 Velho bairro da cidade e centro de expansão urbana da mesma. 8 Jofre do Rego Castelo Branco. Militar. Interventor. Ex-presidente da Câmara Municipal de Teresina. Nas
ausências do coronel Jofre, a Prefeitura foi dirigida pelo Chefe de Gabinete José Jesus Trabulo de Sousa,
bancário e jornalista.
11
de fazer”, “práticas de espaço”, que as próprias pessoas inventam a parti de uma leitura
específica do espaço edificado. Emergem então espaços cotidianos que muitas vezes
contradizem o sentido original do espaço praticado.
Partindo do argumento exposto, podemos apontar a estranheza do articulista ao
registrar pelas câmeras um elemento tão incomum aquele espaço. A expansão urbana de
Teresina partindo de uma reorganização de seu centro urbano não é uma novidade incomum
nos estudos já feitos sobre os processos de modernização da cidade. A forma ganglionar em
que se dar o embelezamento da cidade, a relação entre o crescimento populacional e o
incremento da urbanização, a tensão entre o público e o privado já foram temas bastante
explorados.
O que se pretende aqui é envolver o nosso sujeito anônimo, que eram as lavadeiras de
roupa, na sua relação com o espaço, através de suas práticas cotidianas, e a cidade em
crescimento. Tenta-se aqui ver as modificações urbanas em Teresina na sua interação com o
“ordinário”. Para isso, o entendimento da organização espacial não é possível sem que se
analisem as formas de apropriação e uso que seus atores sociais, como as lavadeiras, assim
como tantos outros os fazem. Nossa reflexão se embasa naquilo que Certeau (1998) chamou
de “outra espacialidade”.
Esta outra margem emerge de inúmeros procedimentos denominados “maneiras de
fazer” – multiformes, resistentes, astuciosos e teimosos – que criam táticas, meios que visam
escapar aos instrumentos disciplinadores da cidade em crescimento. Meios que são antes de
tudo, inventivos, e que, não raro, atribuem novos significados as formas e estruturas urbanas.
Um cronista da época, quase que em meio a um apelo, pede, de forma singular e expressiva,
que a varrida urbana não apague o prazer de ver nas pontas da cidade bucólica, a operante
lavadeira de roupa do Parnaíba.
[...] As melhores condições de conforto e de higiene foram modificando, e até
extinguindo, muito dos rotineiros e primários hábitos e costumes de Teresina, [...]
mas alguma coisa vai resistindo as inovações impostas pela evolução. Mesmo com
as lavanderias mecânicas, as lavandeiras do Parnaíba devem ser preservadas. Elas
são componentes de nossa paisagem fluvial. São a nota alegre na tristeza congênita
das populações ribeirinhas e até mesmo do rio. São peças humanas de nosso
folclore, dignas de serem ajustadas ao patrimônio cultural piauiense. [...] 9
Existe, como se observa, um embate de opiniões nos espaços dos jornais, o que mostra
uma luta em torno das figuras das lavadeiras, que hora expressam práticas arcaicas e do atraso
e hora é um símbolo da identidade ribeirinha de Teresina. O que pode ser percebido é que não
9 JORNAL ESTADO DO PIAUÍ. Teresina, ano 1972.
12
havia do ponto de vista dos cronistas da cidade, um consenso sobre as lavadeiras e suas
práticas. Mas podemos insinuar e tornar visível o embate entre perspectivas sobre a cidade
que pontua esses dois discursos sobre essas mulheres e suas práticas.
O perigo existente nas histórias oficiais encontradas por nós, esta sentada na
problemática de poderes. É impossível problematizar uma história oficial sem falar de jogo de
poderes, de seletividade dos discursos, de garimpagem das informações. A história ÚNICA
cria estereótipos10. Acerca desse fato, podemos evidenciar que, muitas das práticas, tais como
lavar roupa no rio Parnaíba, realmente foram subjugadas pelos discursos normatizadores,
retirando dos lugares públicos, as práticas e comportamentos que deviam ser esquecidos.
Se formos analisar todo o período compreendido entre 1960 e 1970, chegaríamos a um
ponto em comum, de que, durante os anos 60, os olhares estranhos as beiras dos rios eram
pouco discutidos, voltando mais os olhares a questões referentes à administração pública e a
cidade de Teresina mais internamente, com seus problemas de escoamento e distribuição de
águas, ruas e pavimentações, questões estruturalistas ainda simplistas frente ao panorama de
modificações que os anos 70 trazem em jogo, aos quais, nossas beiras, e nossas personagens
entram em questão.
Durante a pesquisa foi evidenciado – pelas fontes hemerográficos - poucas
reclamações e discussões com relação à beira Parnaíba e suas práticas em 1960, nem mesmo
sobre as donas de pedras que lavavam roupas. O Rio parecia esquecido, ainda lembrado pelo
som das barcas que a todo o momento chegavam. As searas políticas eram mais voltadas para
questões econômicas, ate a própria normatização era mais interna.
Mas, a partir de 1970, na transição entre os governos e a chegada de Alberto Tavares
Silva11 (1971-1975) ao governo do Estado do Piauí e de Joel da Silva Ribeiro12 (1971-1975) à
prefeitura, tanto o Piauí como sua capital entram num período de intensas modificações. A
capital Teresina parece entrar num período que aqui ousamos chamar de “Belle Époque” das
transformações urbanas. A expectativa dos governos militares em colocar dois engenheiros no
10Ver entrevista da romancista Chimamanda Adichie em que conta a história de como descobriu a sua voz
cultural – e adverte que se ouvirmos apenas uma história sobre outra pessoa ou país, arriscamos um
desentendimento crítico. 11 Alberto Silva foi prefeito de Parnaíba, senador, deputado federal e também governador do Piauí,
impulsionando o desenvolvimento do Estado com a construção de obras de grandes vultos: Estádio Alberto Silva
(o Albertão), Maternidade Evangelina Rosa, Avenida Miguel Rosa, Asfaltamento da Avenida Frei Serafim,
Construção da sede da Universidade Federal do Piauí, Sede do Tribunal de Justiça do Piauí, Centro de
Convenções, Quartel da Polícia Militar do Piauí, Metrô de Teresina e Parque Potycabana. Engenheiro e político
de grande visão foi um dos maiores nomes da história do Piauí. 12 Prefeito de Teresina no período de 18.03.1971 a 18.03.1975 - Joel da Silva Ribeiro. Militar. Nomeado.
Substitutos eventuais: Adelma Vila, Cláudio Almeida e Avelino Neiva.
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poder segue um programa nacional de padronização das capitais e elevação das expectativas
econômicas. A saber, Mota (2010) nos diz que,
A escolha de engenheiros para a administração pública estava intimamente ligada à
posição de destaque que eles passaram a ocupar desde a implantação do regime
republicano. Em oposição aos bacharéis, que ocuparam cargos de alto escalão no
Império, e ao lado da figura do médico higienista, os engenheiros despontavam
como símbolo de civilidade urbano-industrial, detentores da técnica de modificar os
espaços, deixando as cidades longe das mazelas e da imagem de atraso. Eram
profissionais capazes de transformá-las por meio de intervenções planejadas e de
acordo com as normas higiênicas e de salubridade para uma cidade moderna.
(MONTE, 2010: p.98)
Existe todo um imaginário das lavadeiras levantadas por esta pesquisa sobre estes
governos, assim como muitos piauienses. Tanto Ilustríssimo Ex Governador do Estado,
falecido recentemente, como também o prefeito, trabalharam em conjunto numa ação paralela
para retirar o Piauí de um cenário de atraso e escassez econômica.
Isso fica bem claro e evidente tanto no discurso de posso do governo do Estado em
1971, quanto o da prefeitura de Teresina. O primeiro grande passo para superar esta mazela
social seria mudar a figura da provinciana cidade, por meios de intensas intervenções urbanas,
que, tanto agitariam internamente a cidade, como perseguiriam as beiras da mesma, afetando
ou assegurando, na medida de nossas analises, nossas lavadeiras de roupas.
Em 1971, no seu discurso de posse, o então governador do Estado do Piauí, eleito em
pleito indireto na Assembleia Pública Estadual, analisando a atual situação estrutural em que
se encontrava a capital do Estado, diz que Teresina iria entrar numa era do Turismo, a
principal meta seria retirar a capital da atual situação de atraso estrutural em relação a outras
capitais Brasileiras e colocar ela no rol de uma das mais belas capitais do Nordeste.
Do mesmo modo e seguindo a mesma lógica, o senhor engenheiro Major de Patente
Joel da Silva Ribeiro, prefeito de Teresina ao primeiro mandato do senhor Alberto Tavares
Silva, já conhecido no meio da sociedade Piauiense e Teresinense por suas ações frente ao 2º
Batalhão de Engenharia e Construção Civil, as construções das rodovias interestaduais, deixa
bem claro em seu discurso que,
O principal instrumento da ação governamental será o plano de Desenvolvimento
Local Integrado de Teresina, de onde foram retiradas e adaptadas as opções do
momento, as prioridades consideradas mais urgentes, em todos os setores da
atividade municipal. [...]13
Fica bem claro nos dois discursos, o caráter normalizador e normatizador da ação
Governamental e Municipal. Era preciso urgentemente integrar uma Teresina Arcaica e
transformá-la em um verdadeiro canteiro de obras, limpando a cidade, organizando-a e a
13 NOVO Prefeito da Capital. O Estado, Teresina, ano 20, n. 1346, p. 3, 21 março 1971.
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padronizando a um panorama nacional de desenvolvimento. Ainda no mesmo discurso, o
Major Joel Ribeiro continua,
Destaco aqui a Avenida Maranhão, entre as Avenidas Miguel Rosa e Joaquim
Ribeiro, e a Avenida Poti, entre a Alameda Parnaíba, e a Avenida Higino Cunha,
como também o preenchimento da Avenida Miguel Rosa como metas indispensáveis
a implantação de um sistema viário de Teresina.[...]14
Destacamos como pano de fundo dos olhos e das falas das lavadeiras, o recorte
espacial das que lavavam roupas a beira Parnaíba, nos seus cais ou portos que se distribuíam
por toda a extensão do rio. E no que tange a estes aspectos, a abertura e padronização tanto da
ruela que os Teresinenses chamavam de Maranhão15 e da Avenida Poti16, trouxe a tona, as
figuras que antes eram dispensáveis as preocupações urbanas. Lá, resguardadas pelas matas
que circuncidavam o leito do rio, nas pedras do velho cais, escondidas do urbano, mesmo
estando a beira dele, nada as incomodava, nem mesmo incomodava aos urbanos.
Longe desta proteção com a abertura da avenida, era preciso alocar estas mulheres. As
novas avenidas abertas pela prefeitura provocaram uma mudança na vida social das lavadeiras
de roupa. Maria Vieira Sousa, 56 anos, residente e domiciliada nesta capital, que foi lavadeira
de roupa no período em questão nos relata que,
[...]Quem iria lavar ropa ali meu fi, o povo todo vendo nos, gente passando,
muleques robando as ropas das patroas. Aquele não era mais nosso espaço. Seu
Alberto é que teve pena de nos, tirou a gente de lá.[...] Esta lavanderia devemos a
ele[...] Ela é nossa.[...]17
Ao analisarmos a fala de Sousa (2012), logo constatamos um inconveniente sobre a
abertura destas vias. Para o governo Estadual e Municipal, o maior empecilho na construção
destas avenidas seria com os comerciantes locais, pois a desapropriação do local seria muito
onerosa aos cofres públicos, sendo a saída mais conveniente apenas reduzir poucos metros a
fachada dos comércios e indenizar esta faixa. Mas neste aspecto a prefeitura e o governo
estariam negociando somente com uma classe, que aos olhos destes sairiam prejudicadas, mas
se voltarmos os olhares mais ainda para as beiras, viríamos que as mais prejudicadas seriam
as lavadeiras, quer teriam suas práticas expostas aos dizeres urbanos. O projeto de
urbanização daquele espaço tinha por objetivo, muito além da abertura do sistema viário de
Teresina, a construção de um lugar de sociabilidades.
14 NOVO Prefeito da Capital. O Estado, Teresina, ano 20, n. 1346, p. 3, 21 março 1971. 15 Avenida localizada entre as avenidas Miguel Rosa e Joaquim Ribeiro. Ate a década de 1970 era apenas uma
ruela onde passavam transeuntes que vinham pelas barcas que a todo momento chegavam a capital pelo antigo
porto fluvial. 16 Avenida localizada entre as avenidas Alameda Parnaíba e Higino Cunha. 17 SOUSA, Maria Vieira. Depoimento concedido a Francisco Soares Cardoso Neto. Teresina, novembro, 2012.
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Por espaço, nos entendemos que “cada sociedade produz um espaço, o seu. E esse
espaço deve ser pensado a parti do seu conteúdo material e social, ou seja, como
materialização do processo histórico” (LEFVRE: 1974 p. 48). Logo, isso demonstra que ao
articularmos o espaço rio Parnaíba e todas as suas materialidades históricas, estamos criando
um vínculo deste rio com as nossas lavadeiras. A Avenida Maranhão, tal qual a outra avenida
que corta o rio que abraça o Parnaíba, é um espaço criado e normatizado pela elite
Teresinense, e o cais, as pedras e o próprio rio, é um lugar inventado pelos seus múltiplos
praticantes, como as lavadeiras.
Se aquele espaço se torna estranho aos seus praticantes, elas passam a ser não lugares,
e seus praticantes tornassem alheios aqueles espaços, tanto que, como em toda a década de
1960 a figura da lavagem de roupa era algo comum pelo próprio estado econômico do Piauí,
em 1970, devido ao arroio do milagre econômico, aquela prática se torna estranha e pensasse
numa solução da norma para ela. É a partir deste momento que as normas da modernização
começam a alterar os costumes, os gestos, as práticas e as táticas das lavadeiras de roupa do
Rio Parnaíba.
(In) conclusões
A questão das lavadeiras virou então questão pública. Elas já não eram mais uma
figura alheia ao urbano, mas sim, faziam parte integra deste. A questão central de nossas
análises das transformações urbanas e suas ações chegaram ao ponto central de debate. Com a
abertura da Maranhão e da Avenida Poti, futura Marechal Castelo Branco, as lavadeiras de
roupa dos rios passariam a ser alvo das administrações públicas, e isso fica bem claro, quando
percebemos mais uma vez como os jornais locais, extremante partidários, viam estas
mulheres.
A questão da mendicância não deve esta veiculada a interesses políticos, ate porque
mendigo não vota [...] Num mundo ostensivo e obscenamente despido, a nudez
simevelada das Lavadeiras do Parnaíba não fere a sensibilidade visual de ninguém
[...] A mendicância – problema social complexo – não é de tão fácil solução porque
depende da decisiva cooperação da comunidade. A instalação de lavanderias, sendo
da alçada dos poderes públicos, governo ou prefeitura, não apresenta maiores
dificuldades, dependendo apenas, de limitados recursos financeiros. Para ambos há
soluções exeqüíveis, valendo apena enfrentá-los. 18
Observem que a questão da mendicância de Teresina se arrolou com as questões das
lavadeiras de roupa. A definição de pobre e lavadeira de roupa é pesada sobre o mesmo
estigma de atraso. Mas de certo as crônicas deixam bem claras que esses problemas começam
18 A MENDICANCIA em Teresina: as Lavandeiras do Parnaiba. O Estado, Teresina, ano 20, n. 1386, p. 7, 15
agosto 1971
16
a se torna interesses políticos, ferindo o que se tinha por objetivo. Resolver a situação dos
pobres urbanos como as lavadeiras começou a ser política de “boa fé”. É neste sentindo que a
criação das lavanderias públicas vai servi aqui em Teresina. Verdadeiros currais eleitorais de
Alberto Silva, que em muitos sentidos, é considerado uma espécie de salvador para as
lavadeiras de roupa do pé de rio, como também por vezes é o vilão da história.
Entende-se que a questão da lavagem de roupa é justificada historicamente no Piauí no
período recortado pela pesquisa, e que, como bem mostrado, esses discursos de norma e de
moderno transformaram as práticas em sentidos de representação e identificação das próprias
lavadeiras, domesticando seus comportamentos e refazendo seus espaços de ser.
Fontes
Outros
Dados Estatísticos do Censo Demográfico – IBGE: referente às décadas de 1960 a 1970.
Relatórios, Estudos, Livros e Revistas da Fundação CEPRO.
BARROS, Helvidio Nunes. O Piauí hoje. Piauí Municipal. Teresina. Vol. 6, s/n, p. 15- 16.
1968.
BANDEIRA, Wiliam Jorge. Política urbana e problemas urbanos. Cepac . Teresina. 1982.
Depoimentos
OLEGÁRIO, Rita de Cássia Pereira. Depoimento concedido a Francisco Soares Cardoso
Neto. Teresina, Novembro,2012.
SOUSA, Maria Vieira. Depoimento concedido a Francisco Soares Cardoso Neto. Teresina,
novembro, 2012.
Pesquisa Hemerográficas
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Jornal Folha da Manhã (1964)
Referências
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17
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moderna. In: SCHWARCZ, Lília Mortiz. História da vida privada no Brasil: contrastes da
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2007