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CÂMARA DOS DEPUTADOS
DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO
NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES
TEXTO COM REDAÇÃO FINAL
COMISSÃO DE RELAÇÃO EXTERIORES E DE DEFESA NACIONALEVENTO: Seminário N°: 738/2002 DATA: 13/8/2002INÍCIO: 14h16min TÉRMINO: 18h43min DURAÇÃO: 4h27minTEMPO DE GRAVAÇÃO: 4h27min PÁGINAS: 103 QUARTOS: 50REVISÃO: Andréa Macedo, Anna Augusta, Cláudia Castro, Eliana, Lia, Liz, Marlúcia, Monica,Odilon, Paulo Domingos, Rosa AragãoSUPERVISÃO: Ana Maria, Cláudia Luíza, Estela, Graça, J. Carlos, Joel, Luci, Márcia, MariaLuízaCONCATENAÇÃO: Débora
DEPOENTE/CONVIDADO – QUALIFICAÇÃO
LUIS FERNANDES – Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC), do Rio de Janeiro eDiretor-Científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Riode Janeiro – FAPERJ.OLIVEIROS S. FERREIRA – Professor de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católicade São Paulo – PUC._HÉLIO JAGUARIBE – Professor do Instituto de Estudos de Políticas Sociais – IEPES.ANTÕNIO CELSO ALVES PEREIRA - Professor da Universidade Veiga de Almeida.LUIZ AUGUSTO DE ARAÚJO CASTRO – Embaixador, Subsecretário-Geral de AssuntosPolíticos Multilaterais do Ministério das Relações Exteriores.
SUMÁRIO: Seminário Política Externa do Brasil para o Século XXI. Mesa 2. Tema: “AReconfiguração da Ordem Mundial no Início do Século XXI.” Mesa 3. Tema: “Perspectivas dasRelações do Brasil com as Organizações Internacionais.”
OBSERVAÇÕES
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Relação Exteriores e de Defesa Nacional - SeminárioNúmero: 0738/02 Data: 13/8/2002
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O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Solicito aos presentes que se
acomodem em seus lugares.
Antes de iniciarmos os nossos trabalhos, informo que a emissão do certificado
de participação neste seminário só será estendida aos que assinarem, durante todo
o período de sua realização, as listas de presenças pela manhã e pela tarde. Esta é
a decisão dos organizadores.
Informo ainda que há, na entrada do plenário, publicações do IPRI, da
Fundação Alexandre de Gusmão e de outras editoras universitárias. Solicito aos
presentes que mantenham seus celulares desligados.
Agradeço ao Brigadeiro Marco Antônio Oliveira, do Comando do Estado-Maior
da Aeronáutica, a presença.
O tema da tarde de hoje é “Reconfiguração da Ordem Mundial no Início do
Século XXI”, e serão abordados os impactos dos atentados de 11 de setembro sobre
a evolução das relações internacionais, a unipolaridade e os processos de
multipolarização na evolução do sistema internacional após o fim da Guerra Fria, as
perspectivas e os impasses do multilateralismo na nova ordem mundial e as
tendências da evolução da economia mundial.
Convido para tomar assento à mesa os expositores da tarde de hoje: Sr. Luis
Fernandes, professor da Pontifícia Universidade Católica — PUC, do Rio de Janeiro,
e Diretor-Científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro — FAPERJ; professor e escritor Oliveiros S. Ferreira, e
Hélio Jaguaribe, ex-Ministro, escritor, professor e estudioso do nosso País.
Abriremos os trabalhos da tarde de hoje com a intervenção do Prof. Luis
Fernandes. Em seguida, falará o Prof. Oliveiros S. Ferreira e, fechando, o Prof. Hélio
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Jaguaribe. Calculamos o tempo para cada uma das manifestações em
aproximadamente 20 minutos.
Agradecemos à FAPERJ o esforço e o apoio na promoção deste seminário,
possível graças à boa vontade do Prof. Renato Lessa, Diretor-Presidente, e ao
empenho do meu estimado amigo e Diretor-Científico da instituição, Prof. Luis
Fernandes.
Além deste, na próxima semana, a Comissão de Relações Exteriores e de
Defesa Nacional promoverá um seminário sobre política de defesa para o século XXI
e, no mês de outubro, também em conjunto com a FAPERJ, um outro sobre política
de inteligência, soberania e democracia no Brasil do século XXI.
Com a palavra o Prof. Luis Fernandes.
O SR. LUIS FERNANDES – Nobre Deputado Aldo Rebelo, Profs. Hélio
Jaguaribe e Oliveiros S. Ferreira, caros colegas, senhoras e senhores, deveria iniciar
agradecendo à Coordenação o convite, mas, como fui parte do desenho do evento,
não cabe fazê-lo. Quero, então, pelo menos manifestar a satisfação pela realização
deste seminário e pela oportunidade não só de ter ajudado a concebê-lo e organizá-
lo, mas também por ter a honra de participar desta Mesa que abordará o tema
“Reconfiguração da Ordem Mundial no Início do Século XXI”.
Quero dizer que, a exemplo do Prof. Hélio Jaguaribe, também fui disciplinado,
e entreguei à Mesa o disquete com o meu pronunciamento, que, aliás, está à
disposição dos senhores.
O próprio tema que abre as discussões desta tarde evoca a ordem no sistema
internacional, tema que é um clássico da filosofia política e da reflexão sobre as
relações internacionais.
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Na filosofia política, o tema da ordem está associado à problemática da
estabilidade geradora de condições para a sociabilidade e o convívio humanos, uma
problemática mais geral de ordem. O problema crucial da teoria política é justamente
como organizar politicamente essa convivência e como garantir as condições para a
convivência humana.
Neste seminário, porém, estamos analisando a problemática da ordem num
sentido um pouco mais restrito, que diz respeito às configurações das relações de
poder no sistema internacional, quer dizer, por esse ângulo, as ordens podem ser
definidas como determinadas configurações das relações de poder na evolução do
sistema internacional.
Nessa ótica, em um plano mais abstrato, podemos identificar na história da
evolução do sistema internacional três grandes ordens e uma em montagem, que é
a que estamos vivendo agora, no início do século XXI.
Uma primeira grande ordem — que, na verdade, caracteriza a evolução do
sistema internacional, desde o evento marcado como gênese do sistema
internacional moderno, a Paz de Westfália, até as guerras napoleônicas no início do
século XIX — era marcada por relativo equilíbrio de poder entre um punhado de
potências européias. O próprio sistema internacional era até então
fundamentalmente europeu.
Diante desse equilíbrio, a ordem era gerada pelos princípios e pela prática do
balanço de poder, com constantes movimentações no sentido de evitar que uma
entre essas poucas potências que dominavam o sistema internacional pudesse ter
predomínio completo no âmbito desse sistema.
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Essa ordem foi substituída, ao fim das guerras napoleônicas, por uma
segunda grande ordem que tem vários nomes possíveis e utilizados na literatura,
mas que resumiria com a seguinte formulação: uma espécie de era da hegemonia
britânica no sistema internacional. E essa segunda ordem foi caracterizada por
singular combinação, porque no cenário e no território europeus ela ainda praticava
política de balanço de poder, mas, para o restante do globo, o que se verificou foi,
por um lado, a dominação britânica dos mares, tanto por intermédio de sua marinha
de guerra como por intermédio de sua marinha mercante, combinada com a
expansão colonial para a incorporação de territórios não-europeus ao sistema
internacional que havia se originado na Europa. É o período da unificação
econômica e política do mundo, mas com esse formato básico de configuração de
poder: balanço de poder, ainda a prática predominante no território europeu, e
hegemonia britânica, tanto política como econômica, para o restante do sistema.
Essa ordem vigorou das guerras napoleônicas, início do século XIX, até o
advento da 1ª Guerra Mundial. Logo após, tivemos um breve interregno que
poderíamos caracterizar não propriamente como nova ordem, mas como o colapso
da tentativa de reconfiguração da ordem mundial com base nos princípios que
haviam dominado a evolução do sistema internacional no século XIX.
Com o advento da 2ª Guerra Mundial, e ao seu fim, constituiu-se nova
configuração de poder no sistema internacional, a chamada era da Guerra Fria,
terceira grande ordem na evolução do sistema internacional moderno. Era um
sistema marcado pela bipolaridade, como é sabido por todos, mas uma bipolaridade
particular e singular, não apenas de potências, países e poderes constituídos no e
através do sistema internacional, mas uma bipolaridade também desses sistemas
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mundiais antagônicos. Enfim, um tipo particular de bipolaridade, contrapondo um
mundo capitalista, liderado e hegemonizado pelos Estados Unidos, a um mundo
socialista, liderado e hegemonizado pela União Soviética. Como é do conhecimento
de todos, essa ordem entrou em colapso com o próprio colapso da União Soviética,
em 1991.
Portanto, estamos diante de uma nova ordem em gestação e consolidação: a
hegemonia americana no sistema internacional como um todo, marcada pelo triunfo
dos Estados Unidos na Guerra Fria e pelo amplo e exclusivo predomínio desse país
no sistema internacional, uma situação, na verdade, sem precedentes na evolução
do próprio sistema internacional. É a primeira vez em que se verifica o predomínio
amplo e quase que exclusivo de uma única potência, e essa singularidade evoca
temas cruciais para pensar a reconfiguração do sistema internacional no início do
século XXI. Até aqui, o predomínio exclusivo de uma única potência era atributo
próprio de formas imperiais de organização política; agora, temos sistema
formalmente estruturado no princípio da soberania da igualdade dos Estados, mas
com assimetria de poder político e econômico bastante acentuada na sua
configuração após o fim da Guerra Fria.
Portanto, ao pensar a reconfiguração da ordem mundial neste início do século
XXI, temos de fazê-lo diante do quadro no qual estamos inseridos. É diante desse
quadro que temos de nos posicionar. É esse quadro que temos de analisar e é nele
que devemos ver quais as tendências de consolidação, de desenvolvimento e de
desdobramento que anuncia para o mundo neste início do século XXI.
Vários autores, como é sabido, caracterizam essa nova ordem como unipolar,
seja pela unipolaridade referente à assimetria de poder de um Estado singular
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dentro do sistema, seja pela unipolaridade assumida por novas formas de império,
argumento de livro recente de Antonio Negri bastante badalado no mundo e no
Brasil.
Outros autores optam por fórmula que batizam de unimultipolaridade, uma
conjunção de tensão entre unipolaridade e multipolaridade no sistema internacional.
Um pouco na mesma linha, Joseph Nye formula a idéia de um tabuleiro
tridimensional no sistema internacional. Estaríamos diante de efetiva unipolaridade
na dimensão militar do sistema internacional contemporâneo. Essa unipolaridade
militar convive com multipolaridade na dimensão econômica, em que a economia
americana e o seu poderio econômico têm de conviver e negociar com vários outros
centros de poder na economia mundial.
Há uma terceira dimensão, que seria muito mais dispersa de poder,
característica das relações transnacionais, sejam elas econômicas, financeiras ou
até de interação da sociedade civil organizada em novos espaços de
encaminhamento de reivindicações. São formulações que tentam captar a
complexidade da nova ordem que se configura neste início de século.
Sou um tanto quanto crítico, talvez porque a minha área de competência
acadêmica dentro do estudo de relações internacionais seja de economia política
internacional, em relação a abordagens que segmentam a dimensão política e a
dimensão econômica e não analisam a interação crucial existente entre ambas,
mesmo porque elementos de poder político e militar estão presentes no poder e na
influência econômica. A dimensão financeira foi aquela em que todos os processos
de globalização foram mais adiante no mundo contemporâneo. Todos os mercados
internacionais de capital, sobretudo os monetários, operam tendo como referência
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moedas emitidas por Estados, sejam nacionais ou multinacionais, como o euro, na
Europa. Isso confere aos poderes políticos que emitem os valores que servem de
referência para o funcionamento desses mercados globalizados poder de
interferência efetiva e real na operação desses mercados. Sempre há uma interação
entre poder político, militar e econômico que deve ser incorporada a toda e qualquer
análise de evolução do sistema internacional.
Independente das diferentes classificações ou linhas de interpretação sobre a
reconfiguração de poder no sistema internacional, é consensual nas avaliações
atuais que estamos diante de quadro internacional marcado por profunda assimetria
de poder, tanto de poder econômico quanto político-militar.
Nessa assimetria, fruto do fim da Guerra Fria e do triunfo americano, a
agenda de poder dos Estados Unidos tem centralidade na reconfiguração da ordem
mundial do início do século XXI, dada a amplitude do predomínio que os Estados
Unidos alcançaram.
Parece-me lógico e coerente que qualquer análise da reconfiguração da
ordem mundial no início do século XXI tenha de analisar a evolução da agenda
externa de poder americano no período pós-Guerra Fria. E é sobre isso que
rapidamente vou falar.
De fato, se acompanharmos a evolução da agenda de política externa
americana pós-Guerra Fria, do início dos anos 90 até os dias de hoje, veremos que
houve importante flexão ao longo dos anos 90, sobretudo neste início do século XXI.
A derrota da União Soviética, o seu colapso e o do campo socialista ao fim da
Guerra Fria geraram proposição de agenda externa por parte dos Estado Unidos
centrada na criação do que então era chamado de nova ordem mundial, que
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substituiria a ordem bipolar da Guerra Fria. Esse conceito foi incorporado como eixo
estruturador da política externa americana pelo Presidente George Bush — o pai,
não o filho —, às vésperas da Guerra do Golfo, em 1990.
A proposição básica era a de que, finda a Guerra Fria e a bipolarização
sistêmica que a fundamentava, os variados fóruns multilaterais do sistema da ONU
poderiam e deveriam tornar-se o núcleo ordenador de uma nova ordem mais estável
no mundo, superando as tensões e os antagonismos que haviam marcado esses
fóruns durante a Guerra Fria.
Nessa perspectiva, o Conselho de Segurança da ONU assumiria nova
centralidade como fórum de negociação e resolução de todos os problemas
relacionados à paz e à segurança no sistema internacional, enquanto os organismos
econômicos do sistema da ONU, com destaque para o Fundo Monetário
Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, exerceriam o
papel fundamental de indutores e guardiões de mercados abertos na economia
mundial.
Esse parecia ser o formato mais adequado para o exercício da hegemonia
americana no pós-Guerra Fria, e era um formato sintonizado com o movimento
então vitorioso de reconfiguração do exercício dessa hegemonia via agendas de
liberalização econômica, não só comercial, mas também financeira com uma agenda
macroeconômica dominante em praticamente todo o globo.
Essa agenda, por sua vez, correspondia à necessidade estrutural de os
Estados Unidos conquistarem e consolidarem novos mercados de exportação para
seus produtos e capitais, em função da brutal contenção de níveis de salário real
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que acompanhou o advento das inovações tecnológicas da chamada “era do
conhecimento” na sua economia.
Ao longo dos anos 90, a agenda externa dos Estados Unidos foi se afastando
progressivamente, tanto no discurso quanto na prática, dos princípios ordenadores
dessa nova ordem mundial anunciada no início da década. Os Estados Unidos
passaram, ao longo da década e crescentemente, a buscar impor pela força e de
forma unilateral os seus interesses em diferentes regiões do mundo.
Esse desenvolvimento já se fazia sentir no próprio Governo Clinton, embora
predominasse um discurso de defesa dos princípios multilaterais e da adesão a eles,
mas a ruptura entre discurso e prática se fez sentir em episódios como os ataques
ao Iraque, em 1998. Os ataques ao Iraque foram movidos, em ações conjuntas dos
Estados Unidos com a Inglaterra, no momento em que o Conselho de Segurança
estava discutindo o relatório das comissões de inspeção que voltavam do Iraque.
Tratou-se, portanto, de ação não sancionada por aquele Conselho, diferentemente
da Guerra do Golfo, em 1991. Os ataques desferidos contra a Iugoslávia, em 1999,
também conduzidos pela OTAN, foram totalmente à margem do Conselho de
Segurança da ONU.
Essa escalada de ações unilaterais ainda nos anos 90 refletia as crescentes
dificuldades enfrentadas pelo Estado americano para impor a sua agenda externa de
forma consensual via instrumentalização indireta dos mecanismos de poder
estrutural de que aquele país dispõe na economia mundial, entre os quais se
destaca o papel central da sua moeda na operação dos mercados internacionais de
capitais. Entra aqui o tema da interação entre poder político e poder econômico a
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que me referia antes, ao falar da crítica à segmentação dessas dimensões no
tabuleiro proposto pelo Joseph Nye.
Essa forma de exercício do poder hegemônico passou a enfrentar, ao longo
dos anos 90, crescente resistências tanto de outros blocos e potências centrais,
como a União Européia e o Japão, quanto de novos pólos regionais de poder no
antigo campo socialista e nos países em desenvolvimento, com destaque para a
China, a Rússia e a Índia. Em resposta à dificuldade da construção do consenso por
meio dos fóruns multilaterais, a agenda externa americana foi assumindo cada vez
mais essa feição abertamente unilateral e coercitiva.
Os atentados de 11 de setembro forneceram, na verdade, o ambiente de
consolidação dessa opção preferencial da agenda externa americana pelo
unilateralismo e pelo recurso a políticas mais abertas de força no sistema
internacional. No clima de pânico que se formou na sociedade americana após os
atentados, fruto da repentina e traumática constatação de que a ampla superioridade
tecnológica e militar que os Estados Unidos possuem não era garantia de
invulnerabilidade do seu território, o novo Governo Bush consagrou a busca da
segurança, com todas as suas implicações, como valor e objetivo supremo da
política doméstica e externa do Estado americano. Isso implicou conferir nova
centralidade para os mecanismos e instrumentos de exercício direto da dominação
pela força no sistema internacional, em detrimento da opção predominante anterior
pelo exercício da hegemonia via recursos indiretos de poder estrutural.
Com base nessa nova orientação, a guerra global contra o terrorismo foi
transformada no eixo estruturador da agenda externa dos Estados Unidos. A própria
guerra movida contra o regime dos talibãs e a força do Al Qaeda no Afeganistão
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definiram o perfil mais concreto dessa nova agenda intervencionista. Por mais que a
ameaça à segurança do território americano fosse creditada a uma força terrorista
transnacional, um espécie de rede terrorista transnacional, que opera globalmente,
os alvos da retaliação militar foram absolutamente “territorializados”, visando
desarticular as estruturas de poder que estariam alimentando as ações terroristas no
Afeganistão. Ou seja, objetivos geopolíticos de controle de território pela força
continuam ditando a agenda de segurança dos Estados Unidos, apesar de todas as
referências ao mundo organizado em redes da pós-modernidade.
Esses objetivos agora são perseguidos de forma unilateral e inteiramente à
margem do sistema de segurança consagrado na ONU. Sob a égide do discurso de
que “quem não está conosco está contra nós”, a construção de coalizões
internacionais em torno desses objetivos geopolíticos americanos vem assumindo
cada vez mais a forma de parcerias ad hoc, pontuais e seletivas, montadas via
acertos bilaterais segundo as prioridades variáveis da agenda externa americana,
em detrimento da consolidação de sistema multilateral de segurança coletiva no
mundo.
Coerentemente, os objetivos da guerra global contra o terrorismo são
definidos de forma deliberadamente aberta e imprecisa, para permitir a contínua
eleição de novos alvos nos territórios dos sessenta países que supostamente
abrigam núcleos terroristas, conforme a posição do próprio Governo americano.
Não surpreende, portanto, a insistência da atual administração norte-
americana em afirmar que se trata de uma guerra sem prazo determinado para
terminar e que tende a ser muito prolongada.
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A consolidação dessa nova agenda de política externa na administração
Bush se dá no contexto de um amplo debate sobre a redefinição de sua estratégia
de segurança nacional. A agenda de política externa e de defesa do Governo norte-
americano é cada vez mais dominada por um núcleo coeso de dirigentes e
assessores de perfil ideológico ultraconservador, o que, na nomenclatura curiosa do
espectro político norte-americano, eles chamam de hawks, falcões, que têm
especial predileção pelo recurso de ações de força.
Esse núcleo, como é sabido, cultiva laços estreitos de relacionamento com a
indústria armamentista e petrolífera. Dentre os principais expoentes desse grupo,
estão o Vice-Presidente Dick Cheney, o Secretário de Defesa Donald Rumsfeld e
assessores como Paul Wolfwitz, entre outros, além da equipe que hoje domina toda
a área da América Latina no próprio Departamento de Estado Norte-Americano. E é
este núcleo duro que vai definindo os contornos da nova estratégia de defesa
nacional que será apresentada ainda este ano ao Congresso dos Estados Unidos
pela Assessora de Segurança Nacional Condoleezza Rice. A lógica da nova
estratégia já se evidencia e materializa na própria condução da guerra global contra
o terrorismo.
O eixo estruturador da nova agenda é impedir a todo custo a consolidação de
centros de poder que possam vir a ameaçar a condição de única superpotência do
sistema internacional alcançado pelos Estados Unidos ao fim da Guerra Fria, ou
também impedir a consolidação de centros regionais de poder que se possam
constituir em obstáculos para a realização dos interesses norte-americanos em
distintas regiões do mundo.
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Segundo esta nova orientação estratégica, o Estado norte-americano deve
estar preparado para recorrer a todos os instrumentos de força à sua disposição
para a consecução desse objetivos, incluindo a opção da utilização ofensiva de
armas nucleares, o que contraria a compreensão predominante sobre esse tipo de
armamento que vigorou durante a Guerra Fria, que o concebia como fator de
dissuasão de conflitos. Refiro-me àquela sigla MAD — Mutual Assured Destruction,
Destruição Mútua Assegurada, que, pelo horror da destruição mútua, poderia servir
de elemento de dissuasão de conflitos. Na verdade, ela é substituída hoje por outra
sigla, que também é reveladora, SAD — Self-Assured Destruction, atacar com a
segurança de que o inimigo será destruído e que a força que inicia a ação não
sofrerá qualquer tipo de represália. De fato, é sad, tanto na sigla quanto nas
conseqüências que isso tem para o sistema internacional em termos de viabilizar
ações de guerra ofensiva, envolvendo a opção de utilização de armamento nuclear.
Colocado em operação plena a partir dos atentados de 11 de setembro, a
nova doutrina estratégica norte-americana aprofundou a opção unilateralista da sua
política externa, que já se havia tornado prevalente, sobretudo na segunda metade
dos anos 90, conforme mencionei anteriormente.
Para além da sua tradicional posição em relação à ratificação do Tribunal
Penal Internacional — tema que será tratado em seguida, em outra exposição —,
os Estados Unidos se recusaram a assinar o Protocolo de Kyoto, de proteção
ambiental, e se retiraram da conferência da ONU sobre racismo realizada na África
do Sul. No que concerne aos regimes internacionais de controle de armamentos, o
Governo Bush se negou a endossar um instrumento de verificação do Protocolo de
Armas Biológicas e do Protocolo sobre Minas Terrestres, além de romper com o
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Tratado de Mísseis Antibalísticos — ABM, que foi a espinha dorsal dos acordos de
contenção da corrida armamentista firmados com a União Soviética nos anos 70.
O período pós-atentados assistiu ainda a ações de forças sem precedentes
por parte do Governo norte-americano, para afastar personalidades consideradas
não-alinhadas com seus interesses e orientações na direção de organismos
multilaterais. O caso mais evidente foi a demissão do Presidente da Organização
para Proscrição de Armas Químicas — OPAQ, o diplomata brasileiro José Maurício
Bustani — estava prevista sua participação neste seminário, mas parece que
infelizmente isso não será possível —, pelo simples fato de ter aberto um canal de
negociação para incorporação pacífica do Iraque a esse organismo. Tal atitude se
contrapunha ao interesse dos Estados Unidos e da administração norte-americana
em fomentar um clima de guerra com aquele país, com base no argumento de que
ele não aderia — e não adere — ao regime internacional de controle e erradicação
de armas químicas.
A mesma doutrina estratégica que elevou o unilateralismo da frente externa
dos Estados Unidos a novo patamar alimentou o seu perfil belicista e
intervencionista. No período pós-atentado, o Estado norte-americano passou a se
envolver em múltiplas ações de forças, em diversas regiões do planeta
simultaneamente, em nome da guerra global contra o terrorismo.
A principal iniciativa foi sem dúvida a guerra deflagrada no Afeganistão, mais
uma vez conduzida totalmente à margem do Conselho de Segurança da ONU e que
resultou na derrubada do regime dos talibãs, embora o novo governo, como se sabe,
venha enfrentando enormes dificuldades para consolidar o seu controle em todo o
território do país.
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Esta ação vem sendo seguida pela preparação de novas ações militares de
grande envergadura contra os países identificados pelo Presidente Bush como
integrantes do chamado Eixo do Mal. Aqui se destaca, evidentemente, a preparação
de um ataque militar contra o regime de Saddam Hussein, no Iraque, que é uma
preparação tristemente em curso.
A lista de envo lvimentos seria bastante grande e ocuparia muito tempo da
exposição se eu me centrasse nela. Destaco, entretanto, pela sua proximidade e
importância estratégica para o Brasil, o crescente envolvimento militar norte-
americano nas ações de combate ao narcotráfico na região andina e o seu estímulo
em busca de uma solução militar para a crise colombiana, o boicote e a
inviabilização das tentativas de produção de uma solução negociada política para a
crise colombiana.
Não apresentarei outra parte desta exposição por causa da limitação de
tempo, mas saliento que, a essa agenda crescentemente intervencionista e
unilateralista da política externa norte-americana, soma-se uma agenda
crescentemente intervencionista na sua economia doméstica, tanto através de
medidas protecionistas várias, como da reinserção do Estado no controle de
diversas esferas da economia norte-americana. Por exemplo, o pacote de ajuda
para as companhias de transporte aéreo envolveu a compra de ações de empresas
por parte do Estado norte-americano que voltou a tornar-se um Estado proprietário e
produtor.
A sua política econômica tem sido crescentemente não liberal do ponto de
vista doméstico e também do ponto de vista das suas relações econômicas com os
demais países.
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Excluirei a exposição oral de parte da apresentação, que depois poderá ser
lida no texto escrito.
Quero concluir com duas observações que considero importantes para a
nossa definição da política externa brasileira para lidar com essa reconfiguração em
curso do sistema internacional e da ordem internacional.
A primeira reflexão é sobre como caracterizar essa agenda americana. O
debate tradicional na política externa norte-americana se deu em dois eixos. Por um
lado, opções isolacionistas versus opções mais intervencionistas no globo; de outro,
opções unilateralistas contrapostas a opções multilateralistas na agenda externa
norte-americana.
O que caracteriza a atual agenda norte-americana e que assume papel
central na reconfiguração da ordem mundial é um perfil simultaneamente
intervencionista e multilateralista. Espécie de agenda do unilateralismo e
intervencionismo no mundo é o que caracteriza essa agenda norte-americana que
está no coração da reconfiguração da ordem mundial em curso. Isso implica o
retorno a formas mais tradicionais do exercício político e econômico que se supunha
terem sido superadas pelo advento dos processos de globalização. Estamos
assistindo hoje no mundo a uma espécie de renascimento da geopolítica, que volta a
ocupar papel central na definição de agendas de política externa e agendas para
lidar com a evolução do sistema internacional.
O segundo ponto, para nós fundamental, é se essa ordem, configurada dessa
forma, tende a se consolidar e estabilizar ou se, pelo contrário, trata-se de uma
ordem que tende à instabilidade e à desagregação. A resposta a essa questão é
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absolutamente crucial para a definição de uma política externa brasileira, a fim de
definir como o Brasil deve-se relacionar com essa nova ordem em gestação.
Tal situação contrapõe duas visões no debate sobre a teoria internacional.
Uma fortemente presente nas teorias mais contemporâneas sobre a globalização,
expressas no livro, já citado, do Neri e do Hart, sobre império, que aponta para a
possibilidade da consolidação mais estável dessa ordem, dado o grau de
assimetria de poder que em se constitui o sistema internacional contemporâneo.
Contra essa avaliação e esse diagnóstico opera o senso comum das teorias
que predominaram no estudo das relações internacionais ao longo do século XX ,
seja na sua versão realista clássica, seja mesmo neo-realista. Por essa ótica,
qualquer movimento de constituição de poder unipolar, no sistema internacional,
inevitavelmente gera contramovimentos, no sentido de combater ou pelo menos
enfraquecer o poder unipolar constituído. Portanto, a tentativa de configuração de
uma ordem unipolar por essa agenda norte-americana tenderia a provocar, insuflar
e gerar múltiplos movimentos de resistência, que constituiriam movimentos de
multipolarização no mundo.
No trabalho desenvolvo mais um pouco a questão, mas essa é a última
perspectiva mais adequada, apesar dos grandes êxitos que a curto prazo essa
agenda norte-americana alcançou e conquistou, mesmo em relação à guerra do
Afeganistão, em que, por exemplo, eles conseguiram estabelecer uma presença em
regiões como a Ásia Central, onde os Estados Unidos historicamente sempre
tiveram muita dificuldade em consolidar a presença militar e/ou influência. Tem
havido uma aproximação da Índia, da Rússia e de países aliados da Rússia na Ásia
Central. A agenda norte-americana na guerra contra o terrorismo nesse primeiro
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momento tem sido importante triunfo, mas quero crer que se trata de um triunfo que
tem profundas contradições para se consolidar.
Concluindo, quero retomar o ponto de abertura sobre a evolução das grandes
ordens. Talvez a primeira grande ordem seja a do balanço do poder, que, de
maneira geral, durou em torno de duzentos anos; a era da hegemonia britânica, cem
anos; a era da Guerra Fria, cerca de cinqüenta anos. Parece-me que estamos diante
de um processo histórico de redução da expectativa de vida das ordens
internacionais e sempre pela metade. Se for isso, quem sabe o mundo não estará
vivendo em 2015 a transição para uma nova ordem em que os princípios da não-
ingerência, do respeito ao multilateralismo, da busca pela solução pacífica de
conflitos, dêem a tônica na evolução do sistema internacional.
Espero que o Brasil, por meio da sua política externa, possa dar a sua
contribuição para esse desfecho.
Agradeço a todos a atenção e peço perdão por me ter excedido no tempo.
(Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Muito obrigado pela sua
exposição, Prof. Luis Fernandes.
Passo de pronto a palavra, também agradecendo contribuição que dá ao
nosso seminário, ao Prof. Oliveiros S. Ferreira.
O SR. OLIVEIROS S. FERREIRA - Muito obrigado, Sr. Presidente. Embora
tenha agradecido pessoalmente o convite, faço-o mais uma vez.
Estou numa situação extremamente delicada, porque estou entre Silas e
Calípedes. (Risos.) Não sei bem o que vou dizer depois da exposição do Sr. Luis
Fernandes. Terei que bater à porta em algumas ocasiões e dizer: “Dá licença para
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eu entrar?” Outras vezes, vou dizer: “Desculpem-me, mas estou contornando”. Mas
creio que, no fim, como ele fez um elogio à geopolítica, terei alguma desculpa. Creio
que, somente a partir de considerações geopolíticas, é que se poderá responder à
afirmação de o Estado ter morrido ou não e atentar para a mudança — se é que de
fato existiu — na posição dos Estados Unidos e de sua participação no poder global.
Em outras palavras, dar uma resposta a uma pergunta simples: os Estados Unidos
são uma potência hegemônica ou um império? São realidades diferentes.
Carl Schmitt, em livro pouco conhecido e pouco divulgado, que se chama "El
Nomos de la Tierra", na tradução espanhola, apresenta uma visão não ortodoxa da
geopolítica, mas essencialmente geopolítica. Por isso, creio ser útil citar algumas
passagens suas, que nos permitirão apreciar sob outras luzes os fatos da vida
internacional.
Que mundo se construiu em 1648 com os Tratados de Westfália? O que se vê
são Estados soberanos, definidos pela porção de terra continental que ocupam. Isso
é importante em todo o raciocínio de Schmitt. A soberania decorre da ocupação da
terra. Essa ocupação dá ao príncipe títulos suficientes para governá-la sem
interferência estrangeira. Os tratados consagraram o princípio cujus regio, ejus
religio, “a religião é de quem tem é a região”, na feliz tradução de Paulo Rónai. Ao
fazê-lo, abriram caminho para que se lançassem as bases do Jus Publicum
Europaeum, que, consagrando o domínio incontrastável do senhor da terra, permitiu
que todos os soberanos se considerassem iguais. E, mais importante, que se
criassem as condições para que a guerra passasse a ser assunto de Estados e não
mais entre milícias privadas. Essa passagem do campo privado para o campo
público acabou por fazer que a guerra se tornasse como que regulamentada.
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Estabeleceu-se, entre outras coisas, que os civis, como particulares, não poderiam
ser molestados em represália a atos praticados pelo soberano. Mais importante
ainda: a agressão de um Estado contra outro não poderia ser vista como crime
passível de punição por normas do Direito Penal Interno. Esta é a tese de Carl
Schmitt. Para ele, a importância dos tratados radicaria neste aspecto: a partir deles a
terra passaria a ser um affaire de Estados e não privado — o que significa que a
guerra é travada entre soberanos, cada qual considerado pelo outro como um
justus hostis, um inimigo justo. Não apenas as soberanias consagradas pelos
Tratados de Westfália influem nas alterações que se dão no quadro europeu; a
descoberta do Novo Mundo terá capital importância da transformação, lenta, segura
e fatal para a Europa, do Jus Publicum Europaeum. É que, na realidade, o novo
horizonte de Colombo, Cortez ou Cabral permite que se veja o universo terrestre
como um globo, não à maneira de mito, mas, como diz Schmitt, "comportável como
fato científico e mensurável praticamente como espaço". Por estarem fora do
continente europeu, as novas terras não têm dono, exceto aqueles que delas se
apropriam, obedecendo às diretrizes papais ou simplesmente as ignorando, e
ignorando os ensinamentos de Vitoria, que negava legitimidade ao pretendido direito
de ocupação — como poderia ser válido esse princípio, se sua aceitação legitimaria
que os índios, se porventura chegassem à Europa, reclamassem também sua
posse? Disso tudo segue-se que a soberania sobre as colônias descobertas não
decorreu da ocupação da terra, mas é dada como um fato jurídico.
Delimitando a terra ocupada e convencionando o domínio de seu ocupante,
os Tratados de Westfália fizeram que a posse da terra reforçasse a idéia que
sustentou a política européia desde meados dos séculos XVI, afirmando-se no XVII:
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a idéia de equilíbrio, base da política da “balança de poder”. A noção de equilíbrio,
regendo as relações internacionais, não foi criada por nenhum cientista político
interessado em estabelecer regras para o comportamento dos homens de governo
ou de Estado. Morgenthau, por exemplo, data de 1553 o emprego da expressão. A
idéia tampouco é de um príncipe mais esclarecido sobre os negócios internacionais;
é difundida por todas as cabeças coroadas.
A balança de poder, assim, faz parte da história européia — que, convém
ressaltar, é desde Westfália uma história de Estados soberanos — e, como parte
dela, transmitiu-se de geração em geração, adaptando-se às situações criadas pela
descoberta do Novo Mundo e, depois, pela independência das colônias européias,
fossem inglesas, espanholas ou portuguesas. É sempre interessante observar como
o Novo Mundo, quando decide nascer e fazer parte do concerto das nações, cumpre
seu amargo destino e é considerado parte do sistema europeu — ainda que
contribua, mais tarde, para que os princípios mesmos do Jus Publicum Europaeum
sejam subvertidos, especialmente aquele que cuidava da guerra e de sua
inimputabilidade. Até o momento em que os Estados Unidos mostram seus caninos
e adquirem personalidade internacional, fazendo a guerra contra a Espanha, os
estadistas europeus, sobretudo aqueles de países que tinham o domínio dos mares,
os ingleses, tratam as Américas como um peso que pode ser usado para
restabelecer o equilíbrio europeu.
O Novo Mundo não podia ser mais colocado à parte, sobretudo depois da
entrada dos Estados Unidos, ou não podia ser mais colocado num dos pratos da
balança européia, porque nele se consolidara o “sistema americano”, expressão com
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que Jefferson fundamenta seu argumento a Monroe, auxiliando-o no enunciado de
sua doutrina — e cito Jefferson:
“A América, tanto a do Norte quanto a do Sul,
possui um conjunto de interesses distintos dos europeus e
inteiramente peculiares. Deveria ter, por conseguinte, um
sistema separado, próprio, distinto do da Europa.
Enquanto essa última trabalha para ser a sede do
despotismo, nossos esforços, indubitavelmente, deveriam
tender a fazer de nosso hemisfério um domicílio da
liberdade”.
Mais significativo da separação entre os dois sistemas e da impossibilidade
em que a Europa se encontrava de fazer o jogo da balança de poder contando com
os Estados Unidos, é o discurso de Wilson, em outubro de 1916:
“A guerra não foi provocada por nenhum fato
individual; no fundo, é todo o sistema europeu que tem a
responsabilidade pela guerra, sua combinação de
alianças e entendimentos, uma rede complicada de
intrigas e espionagens que certamente chegou a envolver
toda a família dos povos “.
A maioridade internacional dos Estados Unidos foi, sem dúvida, um dos
fatores que contribuíram para abalar o já fragilizado padrão da balança de poder. As
grandes transformações que se dão no Jus Publicum Europaeum, consagradas no
Tratado de Versalhes e na criação da Sociedade das Nações, não foram devidas
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apenas à longa duração do conflito. Mais importante foi a entrada dos Estados
Unidos na guerra.
A entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial significou, para a
Europa dos Tratados de Westfália, a irrupção do “sistema americano”, cujo princípio
constitutivo era antagônico àquele que se havia firmado, no “sistema europeu”,
desde 1648: a soberania não mais considerada em função da ocupação da terra,
que deixou de ser fator determinante da vida dos Estados, mas tida como função de
um ato jurídico, legitimado por um princípio político ou moral. Mais importante talvez
tenha sido a transformação da guerra, do conceito de guerra: pouco faltou para que
Wilson invocasse o Direito Natural do século XVIII para legitimar a cruzada que
travava para acabar com as guerras. Wilson não viveu a história da Europa;
negociará em Versalhes, visando realizar seu grande desejo de estabelecer uma
paz perpétua e liquidar com as pretensões expansionistas daqueles que
consideravam a guerra como um assunto normal nas relações entre os Estados.
Ao reclamar que Guilherme II fosse julgado “por violação suprema da
moralidade internacional e da natureza sagrada dos tratados”, art. 227 do Tratado
de Versalhes, as potências vencedoras deram um largo passo no caminho de fixar
as mudanças no Jus Publicum Europaeum que se vinham noticiando desde a
Conferência de Berlim sobre o Congo, em 1885. É de notar, nessa disposição de
espírito, que os vencedores em 1914 fizeram uma clara distinção entre ”crimes de
guerra” — crimes cometidos durante a guerra contra o jus in bello — e o” crime da
guerra”, isto é, o crime de ter começado uma guerra injusta, isto é, a guerra que não
atendia às formas estabelecidas e sobretudo não era travada em legítima defesa.
Schmitt aponta que os representantes norte-americanos na Comissão que estudava
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a “Responsabilidade dos autores da guerra” tiveram posições conflitantes ao
analisar os artigos 227 e 228. Na polêmica sobre o art. 228, que cuidava dos crimes
de guerra, na antiga acepção — aqueles cometidos contra o jus in bello, como, por
exemplo, as normas que regulavam a guerra marítima, os direitos dos prisioneiros e,
em linhas gerais, a Convenção de Haia sobre a Guerra Terrestre.
No que diz respeito ao art. 227, que inovou o sentido da guerra, a posição
era diferente, conforme se vê pelo texto de Schmitt, citando a posição dos norte-
americanos. E aqui leio uma parte do discurso norte-americano.
“Os supremos mandatários das potências centrais,
animados pelos desejos de apoderar-se de territórios e
direitos soberanos de outras potências, aventuraram-se
a uma guerra de conquista, uma guerra que, por sua
extensão, sua destruição desnecessária de vidas e
propriedades humanas suas crueldades implacáveis e os
sofrimentos insuportáveis que produziu, supera todas as
guerras dos tempos modernos. As provas desse delito
moral contra a humanidade são convincentes e
conclusivas. Moderadas pelo respeito ao Direito, que é
inseparável do sentimento de justiça, as nações que
sofreram tão cruelmente não teriam forças para castigar
adequadamente os culpados pelos meios legais. Mas os
que provocaram esta guerra vergonhosa não devem
passar à história sem ser marcados. Por isso deveriam
comparecer perante a opinião pública mundial para
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sofrerem a condenação que a humanidade decida contra
os autores do maior crime perpetrado contra o mundo”.
A indicação segura de que o antigo Direito das Gentes tinha sido
transformado está, segundo Schmitt, no fato de que no citado art. 217, que incrimina
Guilherme II, diz, no § 3º, que o tribunal que venha a julgar deverá guiar-se pelos
motivos mais elevados da política internacional e não da lei internacional.
Essa mudança no sentido da guerra e na tentativa de responsabilizar
penalmente o adversário derrotado, mesmo que não havendo leis penais ou
processuais internacionais que permitissem, à luz dos antigos princípios do Jus
Publicum Europaeum, apontar os perdedores como responsáveis pela deflagração
de conflito armado ou processá-los, essa mudança decorreu da transformação que
se vinha dando no Direito das Gentes. A dificuldade que, em 1945, os vencedores
tiveram para instalar o Tribunal de Nuremberg e encontrar as bases legais e
processuais que permitissem o julgamento dos que eram acusados de crimes de
guerra evidencia, por um lado, essa visão da guerra para consagrar-se capaz de
legitimar julgamentos formais por atentados contra a "política internacional". E
também evidencia, por outro, as profundas transformações que se registraram no
Direito das Gentes europeu, que desde os fins do século XIX acabaram por desligar
o Direito das Gentes, a ocupação da terra por Estados, como razão de seus direitos
soberanos sobre o solo ocupado.
As transformações verificadas no Jus Publicum Europaeum, alterando
posições acatadas no campo do Direito e na prática da política de poder, foram
acompanhadas por mudanças significativas na economia mundial. Schmitt — e o
livro dele é do fim dos anos 40, começo de 50 — resume tais alterações numa frase
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que espelha o sentido do processo que começou no século XIX e prossegue até
hoje sob outro nome que recobre idêntica realidade: não mais cujus regio ejus
religio, mas cujus regio eius economia, para não dizer, como acentua em outra
passagem, cujus economia, ejus regio , inversão que lhe parece “extremamente
moderna”. A análise que faz do processo que se iniciou em 1885, por ocasião do
Congresso de Berlim, é extremamente sedutora, assinalando a importância que teve
na formação de um novo Direito das Gentes a sua fragmentação em diversos
direitos “continentais” (o primeiro dos quais é o americano, cuja distinção do europeu
é apontada por latino-americanos), que depois se fundiram num Direito das Gentes
“universal”, e a transformação dos territórios africanos, excluídos do território
europeu, em “territórios estatais”, a igual título que o do Estado colonizador. Essa
mudança de status está relacionada a um tempo com o comércio e com a guerra,
pois nenhuma potência européia estava disposta a reconhecer “tecnicamente” como
“neutra” qualquer colônia africana de país europeu contra o qual lutasse. Assim,
Schmitt vê a evolução do Direito das Gentes ligada às transformações econômicas:
“...Desde o Tratado de Cobden, em 1860, entre França e
Inglaterra, a idéia de uma economia liberal e uma
globalidade comercial era natural para o pensamento
europeu e habitual para o modo geral de pensar. (...) Os
numerosos obstáculos e limitações à economia liberal que
já então se manifestavam, como os sistemas aduaneiros
e protecionismo de toda classe, eram considerados como
meras exceções que não punham em dúvida o progresso
permanente e seu resultado final. A posição predominante
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da Inglaterra e o interesse desse país num comércio
mundial livre e no tráfego marítimo livre representava uma
sólida garantia para uma semelhante imagem do mundo.
A cláusula de nação mais favorecida (...) parecia ser um
excelente veículo desta evolução econômica para um
mercado unificado. Em breves palavras: por cima, por
baixo e ao lado dos limites político-estatais de um Direito
das Gentes político de aparência puramente interestatal
se estendia, penetrando tudo, a área de uma economia
livre, ou seja, não-estatal, que era uma economia
mundial.”
O golpe final contra o Jus Publicum Europaeum foi dado pela ascensão do
hemisfério ocidental, vale dizer, dos Estados Unidos como potência dominante, cuja
política internacional atendia a princípios outros que os do “nomos” da terra que
tinha regido o Direito das Gentes europeu. Schmitt vê a predominância norte-
americana da perspectiva da ocupação da terra que tinha marcado a história
européia. O hemisfério ocidental nada tem a ver com a Europa. No entanto, são
pequenos países latino-americanos que decidem, na Sociedade das Nações, a
fragmentação do espaço europeu (Alemanha e Áustria-Hungria), seguindo a política
de Wilson de autodeterminação dos povos, princípio jurídico e moral não
determinado pela ocupação da terra por um soberano. Ausentes da Sociedade das
Nações, os Estados Unidos estão, todavia, presentes, influindo nos destinos da
Europa.
E diz Schmidt:
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“(...) A Liga de Genebra estava ausente da
América; em compensação, dezoito Estados americanos
estavam presentes em Genebra. A potência
preponderante na América, os Estados Unidos, não se
encontrava oficialmente presente em Genebra; porém,
onde se reconhece a Doutrina Monroe e se acham
presentes outros Estados americanos, os Estados Unidos
não podem estar, de fato, totalmente ausentes”.
Os Estados Unidos também terão presença na tentativa de solução da crise
financeira alemã e no conflito da Mandchuria, expressas na chamada doutrina
Stimson, formulada em nota dirigida ao Japão e à China com o mesmo texto em
janeiro de 1932.
Depois de analisar a nota, Schmidt conclui:
“A prática do Direito público europeu cuidava de
abordar os conflitos no marco de um sistema de equilíbrio;
agora, em troca, são universalizados em nome da
unidade do mundo. (...) Do novo ponto de vista (...)
estavam justificadas as intervenções que envolvem todas
as questões políticas, sociais e econômicas importantes
da terra”.
Ou, como disse o Presidente Hoover, em 1928: “Um ato de guerra, em
qualquer parte do mundo, é uma injúria aos interesses do meu país”.
A guerra de 1939 — uma guerra européia que se transformou, em 1941, na 2ª
Guerra Mundial — não tem mais o Direito das Gentes a regulá-la, visto que uma
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ação aérea de dimensão inimaginável, entre 1914 e 1918, tem papel preponderante
na condução das operações, transformando-a de fato em guerra total. As teorias de
Ludendorf sobre a guerra total ficam muito aquém da mobilização geral das
populações civis e da inversão nas relações entre a economia e a política
observadas. A guerra aérea é, essencialmente, uma guerra de destruição
(descartada enquanto predominou o Jus Publicum Europaeum) e seu objetivo não
é ocupar o território do inimigo, mas submetê-lo pelo terror.
Os últimos anos do século XX e o primeiro deste século evidenciam a nova
estrutura das relações internacionais, que já não são mais regidas por um Direito
Internacional fundamentado na ocupação da terra e na consideração de que a
guerra se trava entre “inimigos justos”, tal qual resultara dos Tratados de Westfália,
muito menos pelos princípios abstratos que tinham sido introduzidos após a 1ª
Guerra Mundial. Essa nova estrutura começa a alinhavar-se a partir da 2ª Guerra
Mundial. É um outro mundo que vem sendo construído depois de Ialta e que não
pôde mais ser compreendido à luz do Jus Publicum Europaeum ou do Direito
Público abstrato. Em primeiro lugar, porque o inimigo não será mais “justo”, mas sim
a encarnação do mal, qualquer que seja o governante que faça esse juízo prenhe de
conseqüências. Depois, porque a soberania não é mais definida pela ocupação da
terra ou por princípios abstratos do Direito Internacional. A Europa Oriental será um
conjunto de quase-Estados, reconhecidos como Estados porque o Exército
Vermelho garantia um novo Direito que assentava, como se verá em 1956 e 1968,
no princípio da “soberania limitada” que Brezhnev imporá à Checoslováquia, após
Kruchev ter sufocado a revolução húngara. A aceitação desse princípio em boa
medida decorreu também do fato de que o Direito do “sistema americano” tinha
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estabelecido situação bem próxima para parte do mundo não soviético. Finalmente,
esse mundo pós-Ialta também será novo porque o espaço recoberto pela economia
mundial que começara a se estabelecer antes de 1º de setembro de 1939 foi
diminuindo pela implantação do regime socialista na Europa Oriental e pelo triunfo
de Mao Tsé-Tung na China.
A Doutrina Truman e o Plano Marshall comprometeram para sempre a política
exterior dos Estados Unidos com um determinado tipo de ordem. Essa nova ordem
implica, tanto além quanto aquém Atlântico, adesão a um novo sistema internacional
erigido sob a guarda da dupla águia, cujo princípio imposto à Europa não era a
propriedade privada, embora o seja, a par do livre comércio, para a América Latina.
A águia conquistadora, convém lembrar, estivera presente nas “areias de
Montezuma e nas praias de Tripoli”, como se ouve no hino dos fuzileiros navais
norte-americanos, como que prenunciando intervenções futuras em defesa dos
interesses do Estado e assegurando a liberdade dos mares contra incursões de
piratas, hoje terroristas.
Recordemos a frase de Hoover: “Aquilo que em 1928 parecia ser uma bravata
(sobretudo porque logo depois veio 1929) expressava, no fundo, a idéia que o
Estado norte-americano fazia de como deveria se organizar o mundo e de qual
deveria ser, nele, a sua posição.” Essa idéia, uma verdadeira Weltanschauung, veio
se formando desde a Independência e se firmou, em 1823, com a Doutrina Monroe,
que não apenas afirmava o interesse norte-americano pelo controle das Américas —
ela sempre sinalizou para o fato de que a posse de um território não era mais
importante para que um Estado decidisse soberanamente sobre que política ali
deveria aplicar: a soberania não decorre mais da ocupação da terra.
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O conceito europeu de soberania, o domínio de um príncipe sobre um pedaço
de terra, já não vigorava na América. O novo império que se construiu lentamente a
partir do enunciado da Doutrina Monroe criava, de fato, uma associação de Estados
ligados por tratados de segurança mútua na qual o poder maior contava ter um
aliado certo e submisso em cada Estado considerado juridicamente como soberano.
A soberania passou a ser função do poder — e que assim era, demonstrou-se pelo
empenho de todas as administrações norte-americanas pós-Monroe em fazer com
que a comunidade internacional reconhecesse a Doutrina como parte integrante do
Direito Internacional, o que foi feito em Versalhes. Em Versalhes, a Europa cedeu
sem atentar para o que estava por trás da exigência de Wilson.
Foi em Versalhes que os Estados Unidos assumiram de fato a função de
Imperator com uma diferença sobre os costumes romanos: agora, o Imperator era
declarado tal não fora dos limites da cidade, mas, sim, nela, e tinha direito a seu
triunfo quando e como desejasse, sem necessidade de que Senatus Popolusque
Romanorum autorizassem a entrada das legiões. No que tange à América Latina,
talvez seja possível dizer que, mais que Imperator romano, os Estados Unidos
assumiam a função de rei de um império oriental, em que os outros Estados eram
vistos como meras satrapias. Houve mais, porém, em Versalhes: os Estados Unidos
também assumiram a condução da política e da governança mundiais, na medida
em que estabeleceram para o mundo o seu conceito de soberania, de Direito e,
sobretudo, de guerra. Tudo apoiado, por cima, por baixo e ao lado dos limites
político-estatais de um Direito das Gentes de aparência puramente interestatal, por
uma economia livre, ou seja, não estatal, uma economia mundial, como tinha
entrevisto Schmitt.
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A Guerra Fria, no contexto da preponderância norte-americana nos campos
militar e econômico, apenas reafirmou como realidade as palavras do Presidente
Hoover.
Os atentados de 11 de setembro de 2001 encerraram uma fase da história
diplomática em que o refinamento do diplomata (como diria Aron) apenas escondera
a rudeza do general. As posições do Governo George W. Bush não devem ser vistas
como gestos aleatórios e desconectados, expressos sob uma crise moral conjuntural
provocada pelo abalo da confiança na invulnerabilidade da fortaleza americana. O
relatório da Comissão Hart-Rudman, elaborado pelo Congresso dos Estados Unidos,
tinha advertido, meses antes dos atentados, da possibilidade de ataques contra
objetivos no solo norte-americano. Sucede, como assinala Paul Kennedy, que ele foi
alegremente ignorado pela população e pelo governo “obcecado por seu caprichoso
desejo de criar um escudo no céu contra ataques de mísseis”. Cabe refletir: se o
Congresso era capaz de prever um ataque contra o território norte-americano, pondo
fim à certeza da invulnerabilidade da fortaleza americana, seguramente estudos do
Estado Maior Combinado deveriam ter apontado para o mesmo risco, embora nem
um nem outro estudo pudesse prever como e onde se daria o ataque, como não se
sabe, ainda hoje, como e quando se dará o segundo ataque se vier a ser
desfechado.
O projeto de escudo antimísseis não foi abalado pelo que sucedeu em Nova
Iorque. Pelo contrário. Ao desfraldar a bandeira da luta contra o terrorismo, o
Governo George W. Bush conseguiu obter o apoio, ainda que com ressalvas, do
Governo Putin, que também concordou em ser admitido na OTAN numa condição de
menoridade estatutária, além de prestar ao Governo de Washington o apoio
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necessário na Ásia Central. Esse projeto antimíssil não pode ser visto isoladamente
como uma manifestação de teimosia da Casa Branca; ele se enquadra na nova
doutrina militar dos Estados Unidos, estudada pelo Estado Maior Combinado, a
pedido do Congresso. Um estudo dessa natureza, convém ter presente, não é um
brinquedo nas mãos de generais e almirantes: tende, por sua própria natureza, a ser
definidor da política externa do país. Não é este o momento de entrar na discussão
sobre o que seja uma política de Estado e uma política de Governo. O que importa
assinalar é que qualquer doutrina de defesa, que exige aprovação dos comandos
militares e do Presidente da República, revela-se em políticas de Estado, podendo
sofrer variações na sua execução, mas nunca um desvio de rota. No Governo
George Bush pai definiram-se objetivos nacionais que continuaram sendo os
mesmos no Governo Clinton e nada indica terem sido alterados no Governo George
W. Bush: estender mundialmente a noção de direitos humanos, o combate ao
narcotráfico, a democracia de mercado, descobrir nichos para aplicação de capitais
norte-americanos em vantagem sobre seus concorrentes — o que implica, no que a
nós, brasileiros, interessa, fazer com que a ALCA seja uma realidade o mais
rapidamente possível, a fim de reforçar a presença norte-americana nas Américas. O
atual Governo Bush pode ter relegado a plano secundário a efetivação de alguns
desses objetivos, como, por exemplo, a plena realização dos direitos humanos em
todo o mundo — não significa que tenha riscado esse item da pauta diplomática,
podendo voltar a ser preponderante quando e se o Governo norte-americano julgar
conveniente.
Não compreenderemos a política norte-americana se afastarmos de nossas
considerações aquilo que expus, tentando mostrar como nela existem certas
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constantes que não podem ser desprezadas. Não só não podem e não devem ser
desprezadas, mas devem ser examinadas lado a lado com a situação interna norte-
americana — porque assim foi sempre as dissensões entre imperialistas e não
imperialistas, traduzindo apenas divergências maiores no plano interno. Com isso,
quero dizer que, ao propugnar por uma política externa contrária ao multilateralismo
— e se arriscando a aparecer diante do mundo como um governo voluntarioso,
preocupado apenas com seus interesses —, o Governo George W. Bush está de
fato preocupado com sua continuidade política, vale dizer, com as eleições para
renovação da Câmara e parte do Senado, cujo resultado será sumamente
importante para o futuro político da atual administração.
Observo, no entanto, que a preocupação eleitoral não é a única determinante
desse comportamento: a inspirá-lo está, com certeza, a tentativa de um grupo
político de fazer da política externa norte-americana o instrumento capaz de permitir
que o Império, embora respeitando a aparência de soberania dos demais Estados,
imponha sua visão cultural ao mundo, custe o que custar, para que não haja nação
ou conjunto de nações que pretenda se lhe contrapor em influência e poder.
Quando falo em visão cultural, quero dizer uma concepção do mundo, uma
Weltanschauung mais do que uma ideologia, uma visão do que deve ser o mundo,
construída agora por intelectuais e homens de empresa de um Estado que tem em
seu ativo de realizações em defesa da civilização ocidental — signifique isso o que
signifique — ter decidido a 1ª Guerra Mundial, contra a barbárie guilhermina, a 2ª
Guerra Mundial, contra a barbárie nazista, e levado o comunismo, inimigo jurado da
civilização cristã (assim foi apresentado durante a Guerra Fria) ao desastre final sem
guerra.
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É esse ativo que fundamenta a nova doutrina militar fundada no emprego
seletivo da arma atômica quando e se for necessário a juízo dos Estados Unidos
para sua defesa e a de seus aliados contra ações de Estados irresponsáveis. O
problema subjacente a esse tipo de proposição militar e diplomática é que, ao decidir
que os Estados Unidos serão os defensores de seus aliados e amigos contra
ataques de Estados irresponsáveis, o Governo norte-americano passa a imaginar
que não lhe é necessário o apoio de outros governos, especialmente daqueles de
países que, econômica e politicamente, podem fazer face, ainda que dentro de anos,
ao Império. Quero dizer que a opinião dos outros não lhes interessa porque os
Estados Unidos são militarmente fortes o suficiente para decidir os destinos do
mundo e são a única potência que pode dar garantias — e cumpri-las — de
defender a Europa, Israel, Coréia do Sul e Taiwan contra ataques vindos de onde
vierem. A esse sentimento, junta-se um outro: o de que os governos desses países,
especialmente os europeus, acreditam que isso tudo é verdade.
Estes são os elementos que devem ser levados em consideração na análise
da atual situação mundial. Sem dúvida, outros poderão ser acrescentados e com
certeza o serão. Mas se pretendemos dar alguma contribuição para que se
compreenda o momento que vivemos, não podemos deixar de considerar que os
Estados Unidos, lentamente ao longo dos decênios, mudaram o sentido seiscentista
da soberania e construíram um Império que nada tem de romano — e nada tem de
romano porque reconhece a peculiaridade das culturas com as quais
necessariamente entra em contato apenas no discurso com viés antropológico,
discurso esse que colabora com a manutenção da estrutura hierárquica no sistema
internacional. Esse império também não pode consentir que surja no horizonte um
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Estado que, solidamente ancorado numa outra visão de cultura, possa oferecer
alternativa aos pretorianos do século XXI.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Agradeço ao Prof. Oliveiros
S. Ferreira a brilhante exposição.
Quero registrar a presença, desde a manhã de hoje, do amigo Embaixador da
Palestina no Brasil, Dr. Mussa Demes. Muito obrigado pela sua presença. E também
registro que o resultado deste seminário será publicado pelos organizadores e que o
Instituto de Pesquisa e Relações Internacionais — IPRI do Itamaraty, do prezado
amigo Cardin, cuidará da organização dessa publicação, que estará naturalmente
disponível para os que compareceram e para um público mais amplo, interessado no
tema.
Agradeço mais uma vez ao estimado Prof. Hélio Jaguaribe a presença, a
quem passo a palavra.
O SR. HÉLIO JAGUARIBE – Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados,
senhoras e senhores, vou procurar, com a brevidade que me foi recomendada,
discorrer sucintamente sobre o problema relacionado com a política externa
brasileira para o século XXI.
A intenção de abordar a política externa brasileira no quadro tão amplo de um
século só é viável se adotarmos imensas simplificações. O número de variáveis em
jogo é praticamente ilimitado e nenhuma consideração será possível se não se
adotarem simplificações muito estreitas. Essas simplificações serão
fundamentalmente no sentido, primeiro, de considerar o século XXI como tendendo
a se dividir em duas etapas. Uma primeira, na qual nos encontramos, uma etapa
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final e uma intermediária, de transição entre a primeira e a segunda. Seria insensato
querer prever os decênios que essas etapas vão conter. Pode ocorrer que esse
intervalo se situe em meados do século, um pouco antes ou um pouco depois, mas
creio que se pode afirmar, como razoável simplificação, que o século apresentará
duas etapas: a inicial e a final, e um período de transição.
Por outro lado, no que se refere à tecnologia, que vai ter desenvolvimentos
imprevisíveis, uma vez mais seria impossível dizer de que forma essa tecnologia vai
alterar as relações internacionais. É evidente que vai superprivilegiar os já
superprivilegiados. Assim mesmo, é razoável supor-se que entre importantes centros
de poder o desenvolvimento tecnológico se reparta com certo equilíbrio, ou seja,
quanto mais equilíbrio e poder venha a se configurar no mundo, mais a
probabilidade de equilíbrio ecológico se apresenta. Quanto mais assimétricas forem
as relações de poder, mais assimétrica igualmente será a repartição das inovações
tecnológicas.
No que diz respeito ao nosso País, estas opções se definirão com muito mais
serenidade do que a nova ordem mundial: se ele se encaminha numa direção de
autonomia ou para a inserção satelitizada dentro do sistema norte-americano. As
duas alternativas estão abertas. A segunda, parece-me, é mais poderosa, mas há
elementos importantes que preservam a viabilidade da primeira.
Finalmente, em relação à ordem mundial que se vai configurar no curso deste
século, como foi muito bem dito pelo primeiro orador, creio que se podem admitir
três grandes hipóteses, mais uma vez com uma simplificação que me parece
razoável. A primeira, já mencionada na primeira palestra desta tarde, é de que se
venha a consolidar e universalizar o predomínio do sistema americano. Essa
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hegemonia, como já foi mencionado, foi chamada por Samuel Hundington de
unimultipolar. É o unilateralismo, ainda contido por remanescentes de
multipolarismo, que se pode converter no curso do século XXI no unipolarismo total.
Pode haver uma longa paz americana, que começará a se consolidar no curso do
século e definirá um longo período histórico. Não será permanente, como nada na
história é, mas poderá facilmente ocupar a totalidade do século XXI.
A outra alternativa é que forças emergentes, algumas das quais já bastantes
visíveis, consigam desenvolver autonomias satisfatórias para um crescimento que as
conduza a formar centros autônomos de poder. Então, teríamos a possibilidade de
um mundo multipolar que tenderia a se definir em meados do século e caracterizaria
a segunda metade dele como um trânsito do relativo unipolarismo americano da fase
inicial para um novo multipolarismo, eventual, possível, que vamos discutir
brevemente, na segunda metade.
Finalmente, há uma terceira hipótese, que, embora não seja de alta
probabilidade, não pode ser descartada, que chamo de apocalíptica. Uma guerra de
extermínio nas condições nucleares atuais, que se tornam cada vez mais
sofisticadas, certamente não será planejada por ninguém. Nenhum país tomará a
iniciativa, mas ela pode ocorrer em escaladas em cascata que terminem conduzindo
a um apelo da arma nuclear. Uma guerra convencional pode converter-se em guerra
convencional generalizada; uma guerra convencional generalizada pode conduzir a
parte perdedora a ameaçar a outra com arma nuclear, se não houver um armistício
conveniente; esse armistício pode ser negado; e uma deflagração apocalíptica,
embora improvável, não é igual a zero.
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Outro ponto que quero ressaltar é o que considero o império americano, o
problema da possibilidade de um desfecho multipolar do mundo, e, finalmente, a
posição do Brasil. Comecemos pelo império americano, que foi muito bem
examinado pelo Sr. Oliveiros S. Ferreira, na brilhante conferência que acabamos de
ouvir.
O império americano se distingue, como ele bem salientou, dos impérios
precedentes, do romano ao britânico, porque não é um sistema de imposição de
soberanias formais sobre as áreas dependentes. Nesse sentido, o império
americano não é exatamente um império. Caberia talvez apelar para outra
denominação, que chamaria de campo, a exemplo do termo que empregamos
quando falamos de campo magnético, campo gravitacional, ou seja, uma área em
que condicionamentos diversos — econômicos, tecnológicos, inclusive militares —
compelem os atores situados dentro dessa área a atuar de forma compatível com a
vontade e com os interesses da potência hegemônica, sem, entretanto, furtar-lhes a
soberania formal. Apenas condiciona, de forma absolutamente adequada às suas
conveniências.
Já podemos assistir a esses tipos de constrangimentos irreversíveis, e isso
fica evidente no caso brasileiro, à medida que estamos experimentando sobretudo
constrangimentos financeiros, compelindo o País a adotar uma linha política com
poucas alternativas, embora continuemos com absoluta soberania formal no sentido
clássico. O problema, portanto, é precisamente este: é um sistema que se
caracteriza por uma redução das opções nas áreas sob seu predomínio.
Esse sistema tem limitações internas e externas. As limitações internas vêm
da própria natureza da sociedade americana, da sua cultura, das suas instituições,
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ou seja, trata-se de uma sociedade em que valores de procedência ocidental e
democrática impedem formas desinibidas e ostensivas de imposição imperial. Para a
intervenção militar, o estadista necessita em primeiro lugar criar perante sua própria
opinião pública a demonização do adversário. Uma vez demonizado o adversário,
torna-se legítimo, porque falamos de uma sociedade que mantém fundamentalmente
uma visão calvinista do mundo, da luta do bem contra o mal. No “eixo do mal”, um
dos próximos países com possibilidade de sofrer ataque é o Iraque.
Por outro lado, essa capacidade de exercício arbitrário de poder, além de
limitada internamente pela cultura, pelos valores e pelas instituições americanas,
também é limitada por fatores externos. Existe uma resistência européia que não
pode ser completamente ignorada; existe uma resistência chinesa que não pode ser
completamente ignorada; existe uma resistência russa menor, mas crescente; existe
uma resistência indiana menor, mas crescente; uma resistência de certos países
latino-americanos menor, mas crescente. Há resistências até do próprio sistema das
Nações Unidas, que também não podem ser completamente ignoradas. Então, esse
conjunto de resistências, embora nas condições atuais não chegue a gerar um
sistema multipolar, retém dentro de limites inferiores àqueles desejados pelos
Estados Unidos a unipolaridade.
Acrescentemos outro fator interessante na comparação entre a grande
experiência imperial que foi o Império Romano e essa nova experiência imperial que
se faz não mediante impérios formais, mas por intermédio de campos de
condicionamento, e esse é o regime das províncias. Um dos aspectos interessantes
da extraordinária experiência que foi o Império Romano é o fato de que ele se
constituiu por via militar. As legiões ocuparam a Gália, o Oriente Médio, o norte da
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África, em suma, ocuparam, mediante vitórias esmagadoras sobre seus adversários,
as áreas que viriam a compor o Império Romano.
O segundo momento da ocupação foi predatório. General romano não tinha
salário, tinha direito a predar a área que ocupava, e isso foi aplicado por todos os
generais. A apropriação de escravos e de tesouros e a escravização dos povos
eram a remuneração. A primeira fase da ocupação romana foi terrível, de implacável
espoliação das áreas vencidas. Passada essa fase, trocando-se um general por
outro, entravam a racionalidade e a eqüidade romanas, duas grandes distinções que
eram o jus gentium e o pretor peregrinum.
Depois de uma certa fase predatória, as províncias eram submetidas a uma
administração regular, pelo menos desejadamente honesta. Embora houvesse
corrupção, como sempre, ela era objetiva e institucionalmente honesta. As
províncias, depois de violentadas pelas legiões e espoliadas pelos generais,
aderiram ao Império Romano. O último bastião da defesa do Império Romano foi a
Gália, precisamente aquela em que César, quinhentos anos antes, fez milhares e
milhares de escravos. Entretanto, ali houve a resistência final do Império Romano.
Ele ruiu na hora em que deixou de ser favorável para as províncias, que o
sustentaram até o século IV.
Na área americana, a relação de hegemonia da empresa multinacional e da
superpotência sobre as áreas gera uma divisão que não se dava no Império
Romano. Era espoliativa sob certos aspectos, excludente de emprego sob outros,
mais dinamizadora sob outros. Ela não gera um consenso satisfatório de inserção no
sistema, e sim resistência. Uma das resistências ao unilateralismo norte-americano é
a que se faz sentir naqueles campos em que predomina sua influência.
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Bem, feita esta observação, que tipo de perspectivas se abrem para o mundo
no curso deste século? Volto a dizer: existe a possibilidade, bastante observável, de
que se consolide o sistema norte-americano com a eliminação completa de qualquer
foco de resistência possível, processo esse que está encontrando a primeira
modalidade operacional em nome da luta contra o terrorismo. A luta contra o
terrorismo, justificada pelo atentado de 11 de setembro, está levando a ocupações
militares, a alianças forçadas, à exclusão de personalidade. Em suma, em nome do
terrorismo, está-se criando um sistema eliminador de possíveis focos de resistência
contra o sistema norte-americano. Mas, dentro de limites, a luta contra o terrorismo
não está conduzindo a uma influência militar norte-americana na China, não está
conseguindo fazer isso na Índia, nem na Rússia, que adere taticamente à luta contra
o terrorismo em áreas externas, mas aumenta, cada vez mais, o comando do poder
central de Moscou sobre o sistema remanescente do império soviético — a nova
Rússia. A partir da gestão de Vladimir Putin, está havendo indícios de uma
significativa recuperação da economia russa; portanto, das capacidades de um país
que continua sendo uma grande potência nuclear.
O que se passa então? Há a possibilidade de que a China, continuando com
sua extraordinária capacidade de crescimento, depois de vinte anos crescendo à
base de mais de 10% ao ano e evitando uma ação preventiva norte-americana de
destruição de seus centros nucleares — o que não é impossível, mas é altamente
improvável, por muitas razões —, atinja, em meados do século, o que eu chamaria
de regime de eqüipolência. Isso o futuro vai dizer. A China não será uma potência
igual aos Estados Unidos, em inúmeros aspectos, mas disporá de condições de
sustentação econômica e tecnológica interna e de capacidade de retaliação
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suficiente para assegurar plena autonomia internacional dentro dos limites da
compatibilidade entre um grande poder e outro grande poder.
As indicações de que a Rússia recupere sua capacidade de superpotência
são numerosas. A população russa é extremamente educada, as condições naturais
da Rússia são extremamente favoráveis, há todo um substrato de poder que
permanece. Portanto, havendo uma boa administração, que estava faltando depois
daquela forma caótica pela qual o regime soviético se converteu numa capitania de
mercado, haverá possibilidade de crescimento russo, o que fará aumentar a
independência e a autonomia russa.
Algo se pode dizer também em relação à União Européia, que está vivendo
uma fase complexa, em que a conveniência ou mesmo o imperativo de absorver
novos países dentro do sistema atual dos quinze está enfraquecendo
significativamente a capacidade decisória do sistema.
Por outro lado, há que se notar a crescente demanda por parte dos países-
chaves, França e Alemanha, de maior autonomia internacional. Já criaram o sistema
de força internacional, que poderá se desenvolver, e há claramente dentro da
Europa um antagonismo, uma dialética, uma contradição, uma oposição entre a
Europa da Inglaterra e dos países nórdicos e a Europa dos países continentais. Uma
Europa atlanticista e uma Europa europeísta. O que vai predominar? É difícil dizer.
Mas sou levado a crer que haverá uma divisão política da Europa. A manutenção da
Europa como o mercado comum já consolidado, eventualmente com a adesão da
Inglaterra ao euro, não é fundamental. Mas é possível, embora não necessário, que
se forme uma separação significativa de posições de política externa e de política de
defesa, gerando-se um sistema que eu chamaria de latino-germânico, favorável a
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uma posição de autonomia externa e de defesa, bem como um sistema anglo-
saxônico, favorável a uma aliança firme — mas não um regime de deliberada
dependência — com os Estados Unidos.
Menciono en passant que há a possibilidade, bem mais recuada, de que se
forme um certo sistema autonômico na América do Sul. Discutirei o fato
posteriormente.
Vejamos então um pouco do que ocorre neste quadro com um país como o
Brasil. O Brasil se encontra, em prazo muito curto, diante da necessidade de
preservar as condições de sua autonomia ou de abdicar delas; encontra-se, num
prazo apenas ligeiramente menos curto, diante da possibilidade de atingir um
patamar satisfatório de desenvolvimento social e econômico-tecnológico, ou, ao
contrário, de continuar numa evolução muito lenta, em termos de crescimento
econômico, que quase corresponde apenas ao crescimento demográfico.
São alternativas muito importantes: a alternativa de preservação das
presentes margens de autonomia ou a abdicação delas. Isso vai se definir em prazo
extremamente curto. Por outro lado, há a perspectiva de se atingir — dentro de um
horizonte que não vai além de duas décadas, em virtude da crescente
impossibilidade de expansão que os países emergentes têm em virtude de pressões
internacionais — um patamar satisfatório de desenvolvimento.
O que vai acontecer, ninguém sabe, mas vai depender de muitos de nós. Na
medida em que se torne claro para a consciência pública brasileira o fato de que a
preservação da autonomia é requisito absolutamente fundamental para que este
País tenha um destino próprio, o Brasil poderá resistir às pressões para que se torne
um satélite dentro da ALCA. Poderá resistir a pressões para que continue com
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tratados totalmente alienadores da soberania, como o Tratado de Alcântara,
podendo, portanto, preservar condições para que, dentro de um prazo que
infelizmente não vai além de duas décadas, proceda ao seu desenvolvimento
acelerado.
O que o Brasil vai fazer em matéria de política externa é totalmente
dependente dessas duas alternativas. Se ele se converter num satélite dos Estados
Unidos, entrando na ALCA, aceitando a formalização de relações assimétricas, não
terá política externa nenhuma. A política externa norte-americana será apenas uma
forma pela qual pessoas brilhantes terão o direito de viver em Paris com o título de
embaixador. (Muito bem!)
Por outro lado, se, ao contrário, o Brasil preservar a margem de autonomia de
que ainda dispõe e empreender um vigoroso esforço de desenvolvimento que
supere sua terrível marginalidade social, se levar esses 50 milhões de miseráveis a
uma condição de cidadania plena, se atingir um patamar econômico-tecnológico
comparável, num horizonte do ano 2020, ao da Itália de hoje — não da Itália de
2020, mas da Itália de hoje —, ele adquirirá condições de preservar uma
personalidade histórica própria, um protagonismo próprio no mundo que se
desenhará na segunda metade do século XXI.
Se, como eu suponho mais provável, a segunda metade do século XXI
caminhar para uma nova modalidade de multipolaridade e multilateralismo, na
medida em que o Brasil preservar sua autonomia e lograr um patamar satisfatório de
desenvolvimento, ele terá um espaço significativo dentro deste mundo. E, mesmo
se, por acaso, vier a prevalecer a Pax Americana, a inserção dos vários centros
mundiais nessa Pax Americana não será de igual modo; haverá satélites de
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primeira, segunda e terceira classe. O Brasil, se mantiver o mais longamente
possível a sua autonomia e o seu grau de desenvolvimento, será um satélite de
primeira classe. A diferença é significativa. Basta ver a diferença que há hoje entre
os satélites disfarçados de primeira classe, os europeus, e os de segunda classe, os
latino-americanos. Essa comparação permite compreender qual será a diferença
entre satélites de primeira e de segunda classe, na hipótese de uma duradoura Pax
Americana.
O que fazer? Em que condições essa autonomia brasileira é possível? É
realizável essa expectativa de um desenvolvimento sustentável e satisfatório? Há
dois tipos de consideração a fazer. Em relação às medidas de prazo curto, o
problema é eminentemente de consciência nacional. É preciso desmistificar, de
maneira clara, todas as formas pelas quais se apresenta como de interesse
brasileiro a hipótese de nos tornarmos um satélite americano dentro da ALCA.
Dizem que é preciso negociar e negociar. Mas que tipo de negociação pode a ALCA
nos oferecer? A ALCA tem duas dimensões claras: a teórica, de que seria uma área
de livre comércio irrestrito entre todos os países da América, e a efetiva, com os
Estados Unidos valendo-se da legislação do seu Congresso, que estabeleceria em
lei não revogável por ato do Executivo restrições protecionistas de toda sorte. Muito
bem. Quando se fala em negociação, presume-se que o representante do Executivo
possa, em entendimento com o representante do Executivo norte-americano, gerar
condições satisfatórias de inserção do Brasil na ALCA, como se o Presidente norte-
americano — supondo que ele tivesse toda a boa vontade — pudesse, por iniciativa
própria, revogar leis aprovadas no Congresso. Ora, o Executivo não pode negociar
senão de acordo com as leis. Sim, a ALCA exige negociação, mas uma negociação
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do Sr. Bush com o seu Congresso. Esta é a negociação possível. Somente quando
o Sr. Bush obtiver do seu Congresso a supressão da legislação protecionista, aí
então será possível ao Brasil negociar com o Sr. Bush, porque o Presidente norte-
americano não estará constrangido por uma legislação protecionista que não
depende dele. A negociação possível é entre Bush e o Congresso norte-americano;
o resto é mistificação.
Em havendo essa negociação — que certamente não acontecerá —, a
entrada do Brasil na ALCA significaria nossa abertura para a supercompetitividade
americana e portas fechadas naqueles pequenos setores em que somos mais
competitivos que os americanos. Naquilo em que o Brasil é competitivo, mercado
fechado; naquilo em que o Brasil não é competitivo, entrada livre para os Estados
Unidos. Isto é a ALCA. Se seguirmos esse caminho, não teremos futuro; seremos
satélites de segunda classe. (Muito bem!)
Vencida essa barreira importantíssima, surge uma outra: como é possível
enfrentarmos os dois decênios, prazo máximo que a história nos dá para nos
tornarmos uma sociedade satisfatoriamente desenvolvida, se teremos de enfrentar
cinco quadriênios presidenciais, cada um deles com características próprias? Como,
num regime democrático, manter a coerência de um projeto desenvolvimentista que,
para obter êxito, depende de taxas de crescimento muito ambiciosas, da ordem de
7%, bem maiores do que as miseráveis taxas que registramos hoje, ente 1,5% e
2%?
A resposta é que não se pode alcançar tudo isso facilmente. Só há uma forma
de o Brasil lograr atingir um patamar de desenvolvimento satisfatório a despeito da
alternância de lideranças nos cinco quadriênios que temos pela frente: formar-se um
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amplo consenso nacional a respeito de metas básicas, as quais todos os grandes
partidos aceitem como fundamentais e se disponham a atingi-las, cada um com seu
discurso, à sua maneira. Não me refiro a um pensamento único quanto ao processo,
mas a um consenso quanto a metas fundamentais. Se esse consenso for alcançado,
a chance de o Brasil atravessar cinco quadriênios caminhando na direção correta é
bastante razoável.
Há um fator auspicioso a esse respeito. Acaba de ser assinado por alguns
dos mais eminentes Parlamentares de todos os partidos brasileiros uma proposta de
projeto de metas consensuais. O documento já foi submetido à apreciação do
Presidente da República e dos candidatos à Presidência. Será objeto de ampla de
divulgação pela imprensa a partir de agora.
A idéia do grupo que formou o Comitê de Consenso é fazer um grande debate
nacional sobre as idéias de consenso apresentadas pelo Comitê e, em seguida,
reformular seu projeto, para aproximá-lo das recomendações resultantes da
discussão com a sociedade. Se conseguirmos fazer isso — e as chances são
bastante razoáveis —, ficarei muito otimista quanto à possibilidade de o Brasil se
desenvolver.
Admitindo-se que consigamos passar no vestibular da “não-satelitização” a
curto prazo dentro da ALCA, julgo fundamental para a política externa brasileira que
ergamos sistemas internacionais de apoio. O Brasil não logrará sobreviver neste
mercado extremamente complicado, sobretudo no período em que será
predominante, particularmente nesta região do mundo onde estamos, com a
hegemonia e a Pax Americana, se não atentar para alguns pontos fundamentais.
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Antes de mais nada é preciso consolidar seriamente o MERCOSUL, para que
seja vantajoso integrá-lo e extremamente desvantajoso deixá-lo. O MERCOSUL não
será sustentado por tratados, por acordos, e sim pela efetiva convergência de
interesses. Se for absolutamente útil para a Argentina permanecer no MERCOSUL,
não haverá Cavallo que a tire do mercado.
O MERCOSUL depende do Brasil. Existem na história somente três tipos de
liderança. A liderança coercitiva encontra exemplo no Império Romano, no império
norte-americano etc. A liderança por sedução, uma forma fantástica de liderança,
pode ser constatada na Florença dos Médicis — uma pequena cidade italiana que
seduziu o mundo — ou na França de Luiz XV, que, embora tenha perdido todas as
guerras do século XVII, tornou-se, graças a nomes como Voltaire e Rousseau, o
berço da cultura universal. Mesmo os ingleses, que a odiavam, falavam francês no
meio aristocrático.
Nós temos um enorme instrumento de sedução, que são nossas lindas
mulheres, mas, infelizmente, isso não é o bastante. (Risos.)
A liderança que o Brasil pode exercer não é nenhuma das duas citadas, é a
terceira forma de liderança: por co-participação. Um regime precisar ser estabelecido
de tal maneira que a proposta brasileira seja extremamente útil para aqueles a quem
ela se dirige, de maneira que pertencer ao MERCOSUL seja bom e não pertencer
seja mau. Isso significa, de certo modo, um intercâmbio: alguns favores econômicos
são dados aos nossos parceiros em troca da vantagem política de formarmos um
sistema que tenha capacidade de resistência autonômica diante das grande
potências. Compramos autonomia com algumas concessões econômicas. Temos de
fazê-lo, ou perdemos também a nossa autonomia.
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Outro ponto fundamental é dar andamento àquela cúpula presidencial havida
em 2001 aqui em Brasília, quando todos os Presidentes de países sul-americanos, a
convite do Presidente Fernando Henrique Cardoso, reuniram-se e firmaram a
decisão de criar um sistema sul-americano de cooperação e livre comércio até 2002.
O ano 2002 já está adiantado e essa intenção ainda não saiu do papel. Mas eis que
também definiram o propósito de fazer a integração física do continente num prazo
de dez anos. E, aparentemente, essa segunda idéia está caminhando melhor que a
primeira.
Não haverá condições de resistirmos à ALCA se não tivermos um acordo de
livre comércio com os países andinos. Estes certamente farão parte da ALCA.
Portanto, já será uma grande vantagem se conseguirmos que o MERCOSUL não a
integre. Então, se os andinos estiverem na ALCA e o MERCOSUL estiver fora, com
o Brasil fazendo parte do MERCOSUL, os Estados Unidos terão favores na
exportação para os países andinos enquanto nós, não. Assim, vamos perder o
mercado andino, que é importante e crescente. Se, entretanto, fizermos um acordo
de livre comércio, ainda que os andinos façam parte da ALCA não ficaremos
prejudicados. O Brasil não é competitivo com os Estados Unidos em território de
influência norte-americana, mas é competitivo em território boliviano e em outros
territórios contíguos ao nosso, caso consigamos acertar um acordo de livre comércio
que não seja inferior ao que esses países deverão fazer com os Estados Unidos.
Isso está a nosso alcance. Depende de conseguirmos negociar o regime de
livre comércio em troca das enormes vantagens que podemos oferecer.
Outro aspecto a ressaltar é a conveniência de algumas alianças
extracontinentais. É preciso articular uma política de interesses comuns aos países
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de dimensões continentais, como Brasil, China, Índia e Rússia. Esses países podem
formar uma frente internacional para defender seus interesses. São todos países
emergentes que estão sofrendo terríveis pressões das grandes potências,
notadamente da superpotência.
Também temos interesses comuns com a Europa. Embora os europeus
adotem uma postura econômica ainda mais mesquinha que a americana,
importantes setores daquela economia, especialmente os que defendem a
autonomia européia, sentem a necessidade política de aumentar sua capacidade
autonômica através do apoio sul-americano. Essa troca de vantagens políticas
permite certos tipos de negociação, independentemente de outras considerações. É
importante estabelecer com a Europa não um acordo econômico, mas um acordo
político que consolide as condições brasileiras de sustentação da sua autonomia.
Meus caros, a política externa brasileira ou será uma política própria, na
medida em que o País preserve e amplie sua margem de economia e consolide seu
desenvolvimento, ou simplesmente não será nada. Muito obrigado! (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Cumprimento o Prof. Hélio
Jaguaribe por sua brilhante exposição.
Solicito a quem tiver perguntas escritas a fazer que as encaminhe para a
Mesa. (Pausa.)
Acabamos de receber uma, endereçada ao Prof. Oliveiros S. Ferreira.
O SR. OLIVEIROS S. FERREIRA - A rigor, a resposta cabe ao Prof. Hélio,
porque eu só falei em ALCA en passant.
Hélio, eu pediria a você que respondesse a esta pergunta: “A ALCA pode ser
uma realidade a fim de aumentar a presença americana na América. Como o senhor
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definiria o contorno que pode tomar essa presença? O que seria a ALCA nesse
contexto — um instrumento de dominação americana?”
O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Como eu já tive a oportunidade de dizer, a
ALCA apresenta um aspecto retórico de liberdade de comércio incondicionada e um
aspecto real de liberdade de comércio de mão única. Os setores mais débeis da
economia norte-americana são protegidos por uma legislação do Congresso que
não pode ser revogada por ato meramente executivo, mas que depende de nova
legislação que revogue a norma vigente. Portanto, nesse quadro já de grande
desequilíbrio entre a alta produtividade e competitividade norte-americana e a nossa
muito mais modesta condição, a relação aberta fica absolutamente inviável caso
aqueles poucos setores em que teríamos privilégios nos sejam vedados.
Recordemos, estimados amigos, que os Estados Unidos, hoje defensores do
livre comércio, foram os mais consistentes adeptos da proteção tarifária. A
independência norte-americana começa com a adoção da Tarifa de Hamilton e
segue com uma série de outras tarifas praticadas durante todo o século XIX.
Enquanto a competitividade americana foi inferior à européia, a tarifa praticada nos
Estados Unidos protegia o crescimento da indústria nacional; no momento em que a
competitividade americana se tornou superior, os Estados Unidos passaram a ser
favoráveis ao livre comércio. A mesma mudança pode ser notada em outros países,
em diferentes períodos históricos. A Inglaterra, por exemplo, foi protecionista até o
momento em que, derrotada a Holanda, tornou-se o maior país mercador do mundo,
passando a ser livre-cambista. Ou seja, os países inteligentes são protecionistas
enquanto precisam crescer, mas livre-cambistas quando já são grandes. E o Brasil
ainda é pequeno.
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O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Muito obrigado, Prof.
Jaguaribe.
Tem a palavra o Prof. Luis Fernandes.
O SR. LUÍS FERNANDES - A pergunta feita é a seguinte: “O que acham da
coincidência de os países correspondentes ao 'Eixo do Mal' serem ricos em petróleo
no seu subsolo?”
Respondo: não há coincidência. Essa pergunta está inserida numa discussão
que todos os integrantes da Mesa levantaram: o retorno da centralização de
objetivos geopolíticos, num sentido mais amplo, na agenda externa norte-americana.
A partir da Guerra do Golfo, os Estados Unidos conseguiram estabelecer uma
presença militar permanente em área que sempre foi desfavorável à sua influência.
Com a guerra no Afeganistão, os Estados Unidos aumentaram sua presença militar
e sua influência numa região próxima ao Mar Cáspio, que é também uma área
riquíssima em produção de petróleo. Não há coincidência. Também não é
coincidência a composição do duro núcleo que responde pela formulação da política
externa norte-americana, que consagra relações históricas com a indústria do
petróleo.
O controle dessas fontes energéticas não é um problema conjuntural. É algo
mais amplo. No entanto, isso não diz respeito unicamente a uma eventual
necessidade de a economia norte-americana descobrir e controlar novas fontes de
petróleo no futuro próximo, mas também ao propósito que têm os Estados Unidos de
manter o controle estratégico dessas fontes de abastecimento com relação aos seus
rivais — que figuram na lista do Prof. Hélio Jaguaribe —, profundamente
dependentes dessas regiões. Refiro-me em particular à Europa e à Ásia, e,
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sobretudo, ao Japão. Por meio do controle dessas fontes energéticas, aumenta o
controle estratégico dos Estados Unidos sobre eventuais forças de resistência, de
contramovimento à sua agenda de dominação.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Podemos acrescentar que,
não por acaso, nas cercanias de países como Colômbia, Venezuela, Bolívia e
Equador existem grandes reservas de petróleo, ainda sob toda a confusão que se
arma.
Acho que já recebemos todas as perguntas. Vou passar a palavra ao Prof.
Oliveiros S. Ferreira e ao Prof. Hélio Jaguaribe, para as respostas.
Tem a palavra primeiramente o Prof. Oliveiros S. Ferreira.
O SR. OLIVEIROS S. FERREIRA – Há a seguinte pergunta: “Considerando-
se que numa tríplice fronteira Brasil-Argentina-Paraguai existiriam células terroristas,
e não tendo o Brasil, supostamente, condições de enfrentamento, qual seria o
cenário em que o Brasil seria incluído no 'Eixo do Mal'?''
Bem, o cenário está traçado. Por ocasião dos atentados a Nova Iorque e da
guerra no Afeganistão, vocês devem ter observado que houve uma pressão da
imprensa, sobretudo da televisão, no sentido de colocar o Brasil em má situação.
Eu ouvi e vou tentar reproduzir uma informação veiculada pelo Jornal
Nacional. Dizia-se que no Paraguai havia sido descoberta uma célula terrorista. Há,
porém, um corte na edição. Mostram um delegado da Polícia Federal em Foz do
Iguaçu dizendo que não havia nada daquilo. Segue-se outro corte. O Serviço
Secreto do Exército argentino afirmava que existia. Depois da guerra no
Afeganistão, vocês devem ter observado isso. De repente, descobriram a fotografia
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de uma catarata no lugar onde estava a tal célula da organização Al Qaeda. Eram as
Catarata do Iguaçu...
Quando o Presidente Fernando Henrique Cardoso estava — não me recordo
bem — na Europa ou nos Estados Unidos, uma jornalista norte-americana
perguntou-lhe de que recursos dispunha o Brasil para combater a célula terrorista na
tríplice fronteira. Criou-se uma situação, um cenário. Até prenderam libaneses que
moravam no Paraguai só porque eles tinham contribuído para um partido político
legal do Líbano que, por sua vez, tem ligações foncier com a causa palestina. Estão
agora presos por terrorismo. O cenário está traçado.
Vou tomar outra pergunta dirigida ao Prof. Hélio Jaguaribe, e assim dou-lhe
tempo para pensar nas muitas que recebeu.
Pela manhã, foi dito pelo Ministro das Relações Exteriores que a ALCA, em
algum momento, terá de ser negociada. Isso é um sinal de que estamos optando por
ser um satélite de segunda categoria? A autonomia e a representatividade a serem
obedecidas nas próximas décadas podem prescindir de boa estrutura militar?
Começo pelo fim. Acho que perdemos a autonomia decisória na política
externa quando resolvemos abandonar todo o esforço militar. Por sorte, ainda
conseguimos manter, sob nosso controle, o domínio do átomo. Mas cometemos, a
meu ver, o equívoco fundamental: assinar o TNP. Antes, havíamos cometido alguns
equívocos nas relações com a Argentina ao colocar toda a nossa pesquisa nuclear
sob o controle daquele país para que pudéssemos submeter todos esses acordos à
Agência Nacional de Energia Atômica.
Ao aderir ao TNP, reconhecemos que há uma divisão do mundo entre os
bem-intencionados e os mal-intencionados; reconhecemos o congelamento de
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poder, que condenamos durante o período de 1964 em diante; assinamos acordos
que nos proíbem, de certa maneira, de fazer pesquisas para foguetes.
Estamos sem expressão militar. Nossa expressão militar é de forças
convencionais, de armamentos que não são de primeira linha. Agora, ter armamento
de primeira linha significa que a sociedade o deseja.
Quanto à questão de nos prepararmos para ser satélite de segunda categoria,
acho que conscientemente ninguém quer ser satélite de segunda categoria, mas há
tantas novas fragrâncias no meio do caminho que acabamos por descobrir que
somos pais de uma criança que não queríamos. (Risos.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Prof. Hélio Jaguaribe, quero
apenas esclarecer sobre essa foto da cachoeira de Foz do Iguaçu. Perguntei ao
General Alberto Cardoso, Ministro responsável pela ABIN. S.Exa. disse que cuidou
de fazer a comparação, e a foto apontada nunca foi nem será de Foz do Iguaçu.
Pode ser de outra cachoeira de qualquer lugar do mundo. (Risos.)
Prof. Hélio Jaguaribe, V.Sa. tem a palavra.
O SR. HÉLIO JAGUARIBE - Infelizmente, vou ter de me retirar às 16h30min,
mas ainda disponho de mais um pouco de tempo para responder às perguntas.
Entre as interessantes questões que me foram dirigidas está a seguinte: “Em
que medida a criação do Estado da Palestina teria efeitos favoráveis na redução do
terrorismo?”
É indiscutível o fato de o terrorismo islâmico ter profunda conexão com as
relações alarmantemente assimétricas que ocorrem entre israelenses e palestinos.
Não creio que a simples construção do Estado palestino, dotado de condições
apropriadas — o que ainda me parece um objetivo longínquo —, eliminasse
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totalmente o terrorismo, mas certamente eliminaria a principal justificativa de dar um
sentido nobre ao terrorismo: defesa nacional, resistência do povo ocupante.
O terrorismo não desapareceria com o Estado da Palestina, mas ficariam
muito reduzidas as motivações mais nobres, ou seja, o Estado da Palestina acabaria
com os homens-bomba, com o suicídio da juventude que, de forma impressionante,
está se matando para protestar contra a ocupação do seu território. Nisso eu creio.
Há várias perguntas a respeito de como posso pretender que o Brasil
disponha de condições, relativamente de curto prazo, para assegurar sua margem
de autonomia, quando o País tem extraordinária dependência do sistema financeiro
internacional e é obrigado a recorrer ao Fundo Monetário Internacional para reforçar
sua capacidade de divisas diante da corrida ao dólar, que está sendo exagerada
pelas perspectivas de eleições, interpretadas por muitos como desfavorável ao
capital estrangeiro. Concordo totalmente.
Considero que o nó górdio brasileiro é a dependência externa, em geral, e
financeira, em particular. Tudo o mais decorre disso. E se trata de algo que exige
resposta extremamente séria.
A respeito desse assunto, a opinião técnica brasileira está dividida, talvez, em
dois campos. O campo representado por pessoas extremamente competentes,
como o Ministro Pedro Malan, o atual Presidente do Banco Central, enfim, a equipe
econômica que está dirigindo o País, formada por pessoas de absoluta competência
e seriedade.
Essas pessoas acham que, se o Brasil administrar sua posição externa com
cautela e obtiver satisfatório apoio internacional, vai aumentar a margem de
superávit da balança comercial, que já está apresentando, pela primeira vez, um
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saldo de perspectivas favoráveis — 6 bilhões de dólares — para este exercício. À
medida que o saldo da balança comercial for crescendo, a dependência externa vai
decrescendo e a dependência de altos juros também. Em suma, haveria uma
solução gradualista, ortodoxa, que permitiria, mediante o incremento da exportação
e a moderação das importações, gerar um futuro equilíbrio nas nossas transações
correntes.
Uma tese respeitável. Apenas confesso que tenho dúvidas a respeito dela,
porque me parece que a probabilidade de formamos, nas condições atuais, saldos
de balança comercial satisfatórios para compensar déficit das transações correntes
ainda é muito baixa.
Por outro lado, há aspectos de que algo está para estourar relativamente em
curto prazo. O problema social brasileiro está ficando gravíssimo; a criminalidade
está ficando gravíssima; outros problemas estão ficando gravíssimos, porque o
Estado brasileiro está completamente engessado pela dependência externa e pela
incapacidade de gerar superávit em moeda nacional. Exemplo: os altos juros estão
correspondendo a 36% da arrecadação federal, que representa 16% do PIB — 1%
do PIB é consumido pelo débito da Previdência Social.
A União, embora esteja arrecadando perto de 100 bilhões de dólares, não tem
um centavo livre, porque está completamente manietada pela dependência externa.
Sem resolver o problema da dependência externa, não há autonomia
possível. Haverá possibilidade de resolvê-la gradualmente? Sim, vamos ver. Creio
que, nesse assunto, deve-se tentar, na medida do possível, as soluções ortodoxas,
mas deve-se ter realismo suficiente para dizer que essas soluções ortodoxas não
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estão dando certo, vamos apelar para o quantum satis de ortodoxia para
superá-las.
Daí entra uma série de medidas não ortodoxas, das quais a mais notória é o
controle total do câmbio pelo Banco Central. A partir do momento em que houver
controle total do câmbio pelo Banco Central, o Banco alocará as divisas de acordo
com prioridades nacionais. Evidentemente, uma das conseqüências será alocar
divisas para compensar déficit de conta corrente, com significativa redução da
margem de divisas destinadas às importações.
As importações vão subir, tudo bem. É melhor que subam e a nossa
independência seja preservada do que continuar a haver importação fácil e, cada
vez mais, perda de autonomia.
Vamos tentar resolver a crise da dependência ortodoxamente e, em ficando
claro que o timing da solução é inferior ao desejável, vamos apelar para as medidas
heterodoxas. Que salvem a República, salus rei publicae, suprema lex esto.
Novamente vou resumir o que me parece ser fundamental a respeito da
ALCA.
O projeto da ALCA, como disse, é abstratamente de livre comércio e
efetivamente de redução de proteção de certas áreas sensíveis.
Os lobistas americanos têm capacidade de influenciar o Congresso, e o
Congresso promulga leis que o Presidente é obrigado a seguir. O próprio Presidente
não pode contrariar frontalmente esse lobby. Não nos olvidemos de que, nos
Estados Unidos, a diferença entre democracy e presidência é muito pequena, de
forma que a mobilização de lobistas a favor de um partido e de um candidato é
decisiva. Por isso o lobby americano é tão poderoso.
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De certa maneira, pode-se dizer que, contrariando as idéias de Rousseau, o
Congresso americano não tem nada a ver com a volonté générale, e sim com a
volonté spécifique. Na verdade, é uma assembléia de lobistas. E, dentro do
lobismo, é ingênuo pensar que o Brasil vai poder motivar o Congresso americano a
abdicar, em detrimento do lobby, de proteções que são, para os lobistas,
fundamentais.
Diante disso, se o Brasil entrar na ALCA, significa aceitar uma dupla
inferioridade: a inferioridade genérica diante da supercompetitividade americana e
nossa menor competitividade geral e especificamente àqueles poucos setores em
que somos mais competitivos, que nos são vedados. Evidentemente, é suicídio
nacional.
Depois de clara exposição da opinião pública brasileira do que representa a
ALCA, este País pode formar uma gigantesca rede de opinião pública que inviabilize
a adesão ao respectivo acordo. Não creio que o futuro Governo assine o acordo
sobre a ALCA, nem que o Presidente Fernando Henrique Cardoso o faça antes do
término de seu mandato.
Creio que esse documento não será assinado pelo Brasil, mas volto a dizer
que a séria decisão de resistirmos à superpotência nos furtando de entrar num
sistema em que somos necessariamente perdedores tem de ser compensada por
algumas outras coisas, senão ficaremos com nossa posição muito vulnerável a
agressões externas.
O Brasil tem de se acostumar à idéia de que sua autonomia nacional se fará
com contínua pressão contrária dos Estados Unidos. Não se trata de relação
antagônica, mas contraditória. É preciso ressaltar essa diferença. Não há razão para
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sermos antiamericanos, mas também não há razão para termos ilusões com o fato
de que a superpotência não deseja que se estabeleça um núcleo satisfatório de
autonomia num país semicontinental como o Brasil. Será sempre com oposição
americana que vamos edificar nossa autonomia.
Para esse efeito, temos de adotar medidas de compensação adequadas.
Refiro-me principalmente a MERCOSUL e América do Sul. É necessário fazer do
MERCOSUL algo fundamental. E como se pode fazer isso? Quando o MERCOSUL
foi constituído, a idéia básica era a de que se criaria um sistema que, com o tempo,
se converteria num mercado comum e se caracterizaria pela otimização da
economia dos participantes; contudo, à medida que o Brasil, a Argentina e a
América Latina como um todo começaram a ser invadidos pela ideologia neoliberal
que assolou o mundo no curso da década de 90, o MERCOSUL foi se convertendo
num sistema de trocas mercantis.
Esse sistema não é satisfatório para os países membros. É deficitário para o
Brasil e insatisfatório para a Argentina, embora ela seja ocasionalmente
superavitária nas trocas com o nosso País.
É preciso criar uma política industrial comum, estabelecer um projeto
industrial que assegure áreas de produção argentina para o mercado do Brasil e, se
a Argentina sair do MERCOSUL, excluí-la do mercado brasileiro. Ou se tem acesso
ao MERCOSUL, industrializando-se muito mais rapidamente, em virtude desse
mercado e de inversões do Brasil na indústria brasileira destinada à exportação
geral, o que vai permitir a reindustrialização desse país vizinho a curto prazo, ou
então a Argentina, não querendo sair do MERCOSUL, paga o preço de perder o
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nosso mercado. Isso é suficiente para garantir sua adesão ao MERCOSUL. Esta é a
primeira jogada fundamental: o MERCOSUL não integra a ALCA.
A segunda jogada, como tenho insistido, é o estabelecimento de um acordo
de livre comércio com os países andinos. Mais uma vez temos a dar a eles o nosso
gigantesco mercado em troca de um acordo de livre comércio. É perfeitamente
negociável. Tanto isso é verdade que os Presidentes andinos que estiveram em
Brasília concordaram com a idéia. É o caso de implementar uma idéia que já tem
acordo firmado com os países andinos. Entretanto, por razões que não são do meu
conhecimento, esse projeto ficou parado.
Creio que se deveria utilizar esse final de governo do Presidente Fernando
Henrique Cardoso, o homem que teve a iniciativa de convocar os Presidentes
andinos para que viessem a esta cidade, para implementar esse projeto. Seria dado
um passo adiante e o próximo Governo continuaria a caminhada.
Era o que tinha a dizer.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Creio, aliás, Prof. Hélio
Jaguaribe, que esse foi um dos objetivos da reunião de Guaiaquil, no Equador. Se o
Brasil entrar para a ALCA, aceitará uma dupla inferioridade. E menciono a
inferioridade genérica de retomar em alguns aspectos essa proposta da reunião de
Brasília, principalmente no que se refere à aceleração da área de infra-estrutura.
Para uma última resposta, concedo a palavra ao Prof. Luis Fernandes.
O SR. LUIS FERNANDES - Tenho duas perguntas. Uma é sobre a relação
entre ALCA e MERCOSUL, que foi amplamente respondida pelo Prof. Hélio
Jaguaribe. Só quero destacar um ponto: em última instância, temos dois projetos —
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nesse caso, sim, antagônicos — de integração regional materializados na ALCA e
no MERCOSUL.
O antagonismo não é com os Estados Unidos ou com a sociedade americana.
Mas há dois projetos. Se vingar a ALCA, aquilo que hoje estrutura debilmente o
MERCOSUL, que é a Tarifa Externa Comum, terá de ser desarticulado. Então,
inviabiliza-se o MERCOSUL.
Cabe verificar qual é o interesse do Brasil nessa integração. O MERCOSUL
nos possibilita uma integração menos assimétrica que pode servir de embrião para
uma integração sul-americana e, quiçá, mais ampla, atraindo outros setores da
América Latina. Quanto a isso, é a aceitação de uma integração absolutamente
assimétrica que inviabiliza nosso desenvolvimento e inclusive nossa voz no cenário
internacional.
Outra questão: como resistir? Há o problema da negociação. O Brasil, a partir
de novembro, estará na presidência das comissões de negociação. Taticamente,
pode ser uma boa posição, para o Governo atual e para o que vier a ser eleito,
participar das negociações de forma firme e expor as exigências do Brasil — no
mínimo, eqüidade.
Como disse o Prof. Hélio Jaguaribe, para conceder o Trade Promotion
Authority, a autoridade de negociação, o Congresso norte-americano, impôs
condições que inviabilizam a agenda brasileira na negociação com a ALCA.
A tendência é que não se concluam as negociações por absoluta
incapacidade do próprio Poder Executivo americano fazer qualquer concessão séria
às demandas não só do Brasil, mas também de boa parte dos países
sul-americanos.
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Foram feitos aqui interessantes questionamentos. Existe um movimento
terrorista internacional? Qual é o seu eixo de comando? Quais são os objetivos?
Essas perguntas mostram o embuste da estruturação da política externa
norte-americana em torno deste antagonismo: guerra global contra terrorismo. O
terrorismo é uma forma de luta abjeta, porque envolve a vitimização da população
civil em decorrência de objetivos políticos, mas é utilizado por inúmeros movimentos
em inúmeros Estados.
Então, erigir a luta contra o terrorismo como eixo da política externa é um
embuste, porque, na verdade, em meio a tudo isso se encobre uma predisposição
crescente ao uso da força para imposição de objetivos geopolíticos daquele Estado,
em nome da guerra global contra o terrorismo.
No caso específico do movimento terrorista que atingiu os Estados Unidos em
11 de setembro, se formos procurar seus financiadores, treinadores, estimuladores,
vamos bater na sede da CIA, porque esse grupo foi treinado, financiado, estimulado
pela política externa norte-americana na época da Guerra Fria para combater
regimes seculares que sofriam influência da União Soviética na região da Ásia
Central, em particular no Afeganistão.
O próprio Estado norte-americano tem responsabilidade no estímulo a esse
tipo de ação terrorista. Então, erigir a luta contra o terrorismo como eixo global de
política externa é um embuste que encobre outros objetivos. A aceitação desse
embuste é absolutamente criminosa, porque retira da agenda de discussão
internacional temas que são prioritários: desenvolvimento, defesa dos direitos
humanos, eqüidade no sistema internacional. Eles são retirados de pauta por essa
agenda que quer impor uma luta global contra o terrorismo, cabendo ao Estado
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norte-americano determinar que alvos serão atacados no mundo e quando. Isso
representa a perda completa de autonomia e de respeito aos princípios multilaterais
no sistema internacional.
Eram esses os dois pontos sobre os quais eu queria falar. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Muito obrigado, professor.
Concedo a palavra ao Prof. Oliveiros S. Ferreira.
O SR. OLIVEIROS S. FERREIRA - Como estamos encerrando, eu gostaria
de deixar uma provocação ao Presidente no sentido de que agendasse um
seminário. Falou-se muito em ampliar o MERCOSUL. Pergunto: por que não temos
a coragem política de propor a Confederação do Prata?
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Muito bem, professor, bela
provocação.
Agradeço mais uma vez aos Profs. Luis Fernandes, Oliveiros S. Ferreira e
Hélio Jaguaribe, que demonstraram como valeu a pena o esforço para organizar
este seminário. Deram-nos grande contribuição para clarear não só o presente, mas
os horizontes da política externa do nosso País.
Suspenderemos a reunião por dez minutos, após o que abordaremos o
próximo tema.
Agradeço, mais uma vez, aos conferencistas. (Palmas.)
(É suspensa a reunião.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Recebemos a cobrança de
que a Mesa dos trabalhos não providenciou uma apresentação mais rigorosa dos
nossos conferencistas. De fato, registramos essa falha.
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Com atraso, apresentamos muito sucintamente os conferencistas da manhã:
o Ministro de Estado das Relações Exteriores, Celso Lafer, que fez a conferência de
abertura; Profa. Letícia Pinheiro, do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro; Profa. Maria Regina Soares de Lima, do
IUPERJ; Prof. Hélio Jaguaribe, que trabalhou no ISEB nos anos 60, foi Ministro de
Estado e é professor do Instituto de Estudos de Políticas Sociais; Prof. Luis
Fernandes, do Instituto de Relações Internacionais da PUC do Rio de Janeiro e
Diretor da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio
de Janeiro; e o escritor Oliveiros S. Ferreira, professor da Faculdade de Ciências
Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Vamos compor a Mesa para a realização do painel “Perspectivas das
Relações do Brasil com as Organizações Internacionais”, que engloba os seguintes
temas: as relações do Brasil com o sistema de segurança internacional da ONU,
com o Conselho de Segurança das Nações Unidas e organismos de
não-proliferação; o Brasil e as alianças militares internacionais; e o Brasil e as
organizações reguladoras da economia internacional, como a Organização Mundial
do Comércio, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.
Registramos que estava presente até há pouco o Prof. Renato Lessa,
Diretor-Presidente da FAPERJ, uma das instituições organizadoras deste seminário.
O Prof. Luis Fernandes, diretor da mencionada fundação, continua presente, assim
como o Ministro Carlos Henrique Cardim, Diretor do Instituto de Pesquisa de
Relações Internacionais — IPRI, do Itamaraty.
Convidamos para integrar a Mesa o Prof. Antônio Celso Alves Pereira, da
Universidade Veiga de Almeida, e o embaixador Luiz Augusto de Araújo Castro,
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Subsecretário-Geral de Assuntos Políticos Multilaterais do Ministério das Relações
Exteriores. (Palmas.)
Registramos que a Profa. Mônica Herz, por motivo de saúde, não pôde
comparecer, assim como o embaixador José Maurício Bustani. Mas temos absoluta
convicção de que o Prof. Antônio Celso Alves Pereira e o embaixador Luiz Augusto
de Araújo Castro atenderão as expectativas sobre o painel desta tarde.
Inicialmente, passo a palavra ao Prof. Antônio Celso Alves Pereira pelo tempo
de vinte minutos, agradecendo a prontidão com que atendeu o convite da Comissão
de Relações Exteriores, do IEPES e da FAPERJ.
O SR. ANTÔNIO CELSO ALVES PEREIRA - Sr. Presidente, Deputado Aldo
Rebelo; Sr. Embaixador Araújo Castro, senhoras e senhores, abordaremos nesta
palestra o Tribunal Penal Internacional, um tema polêmico principalmente
considerando-se as reações da superpotência hegemônica, que não aceita, de
forma alguma, os termos de seu estatuto.
Inicialmente, abordarei a posição brasileira sobre a criação de uma jurisdição
internacional para tratar de determinados crimes graves, sobretudo contra a
humanidade, genocídios, etc., que são objeto do estatuto do Tribunal Penal
Internacional. Falarei ainda sobre como se deu a constituição desse tribunal e as
reações a ele, principalmente a norte-americana.
Em julho deste ano, o Brasil ratificou o estatuto do Tribunal Penal
Internacional. Foi um passo importantíssimo da política externa brasileira, porque
sinaliza para o mundo que estamos preocupados com o assunto e aceitamos a
existência de mecanismos de controle, o monitoramento dos direitos humanos por
organismos internacionais.
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Há algum tempo o Brasil vem reformulando velhos conceitos, mudando
velhas posições, o que, ao longo do nosso processo de transição democrática, vem
se consolidando. Hoje podemos dizer que o Brasil tem uma posição bastante segura
nessa matéria, na medida em que já ratificou as convenções internacionais mais
importantes. Conseqüentemente, estamos dentro do corpus juris constituído a
partir da criação das Nações Unidas, principalmente a partir de 1948, com a entrada
em vigor da Carta Internacional dos Direitos Humanos, que compreende,
obviamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e os Pactos
Internacionais sobre Direitos Políticos e Civis e o sobre Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais.
O art. 4º, inciso II, da nossa Constituição estabelece que a República
Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, pela prevalência dos
direitos humanos.
Foi exatamente em cumprimento a essa diretriz constitucional que o Brasil,
com uma delegação bastante ativa e importante, chefiada pelo Embaixador Gilberto
Saboia, na Conferência de Roma de 1998, somou-se aos Estados que votaram
favoravelmente à adoção do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal
Internacional.
É importante salientar que essa ação do Brasil foi tão coerente que no art. 7º
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da nossa Constituição está
escrito: “O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos
humanos”. Essa foi uma diretriz para a política externa brasileira, ou seja, apoiar a
criação de um tribunal penal internacional.
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Para assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, nossa Carta
Magna também determina, no art. 5º, inciso XLI, que “a lei punirá qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.
A ratificação da criação do tribunal se deu no dia 12 de junho de 2002.
Estamos vivendo hoje processo de consolidação da democracia em nosso País. Em
1992, já no processo de transição democrática, o Brasil tornou-se parte da
Convenção Americana de Direitos Humanos, também muito importante para o País.
O documento foi adotado em 1969. Vejam como estamos defasados, em
decorrência de questões políticas internas. Em 1998, um passo muito importante foi
dado: o Brasil declarou à OEA que a partir daquela data passaria a aceitar a
jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em pleno
funcionamento apesar de pouco conhecida aqui. Ela é presidida por um ilustre jurista
brasileiro da Universidade de Brasília, o Prof. Antônio Augusto Cançado Trindade,
que dá uma contribuição jurisprudencial muito importante sobre direitos humanos em
âmbito regional e internacional.
O Brasil tem tradição nessa área. Já em 1948, na IX Conferência
Internacional Americana, realizada em Bogotá, o Brasil fez aprovar moção de
criação da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ela foi criada, e quase vinte
anos depois o Brasil passou a aceitar a sua jurisdição.
Temos alguns problemas, sobre os quais falarei rapidamente. Por exemplo:
prospera ainda no País a cultura de pouco conhecimento dos órgãos multilaterais,
principalmente os que tratam dos direitos humanos. Ilustres membros da
magistratura brasileira ainda vêem os tribunais internacionais, como a Corte
Interamericana de Direitos Humanos e o Tribunal Penal Internacional, de forma
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bastante desconfiada, aferrados à idéia de que aceitar a jurisdição internacional
seria permitir interferência indébita, capitis diminutio para a soberania nacional.
Isso ocorre porque não estão atualizados com a melhor doutrina sobre direitos
humanos que prospera em todo o mundo.
Na medida em que o homem é reconhecido como pessoa internacional; que a
sua subjetividade internacional é acatada pela doutrina e, hoje, pelas convenções
internacionais; que passa a ter não só direitos, mas também deveres com a ordem
pública internacional em relação aos direitos humanos, é preciso, obviamente, criar
cortes que julguem as violações aos direitos humanos praticadas por Estados e
indivíduos.
Logo após a Primeira Guerra Mundial, na década de 20, ao ser criada a Corte
Internacional de Justiça — na época chamada de Corte Permanente de Justiça
Internacional —, pensou-se em criar uma câmara para julgar o indivíduo. Mas
àquela época ainda prosperava, fruto da arraigada filiação aos princípios hegelianos
do positivismo voluntarista do século XIX, muito forte ainda ao término da Primeira
Guerra Mundial, a idéia de que só o Estado era pessoa internacional e podia ter
subjetividade internacional; de que o homem só poderia buscar apoio dos tribunais
internacionais pelo mecanismo tradicional do apoio diplomático, por intermédio do
seu Estado. Não se concebia o homem individualmente perante os tribunais
internacionais.
Hoje estão em vigor no mundo duas cortes de direitos humanos regionais: a
Corte Interamericana de Direitos Humanos com sede em São José, Capital da Costa
Rica, que tem como função exatamente monitorar a violação dos direitos humanos
de acordo com a Convenção Americana dos Direitos Humanos; e a Corte Européia
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de Direitos Humanos. E agora o Tribunal Penal Internacional. As duas cortes ad hoc
funcionarão enquanto todos os criminosos não forem julgados e foram criadas à
imagem e semelhança dos Tribunais de Tóquio, principalmente do Tribunal de
Nuremberg, e sua legalidade é bastante questionável. Elas estão em pleno
funcionamento, mas seria importante criar jurisdição internacional permanente, não
ad hoc como essas duas cortes regionais, para julgar violações individuais, a fim de
ser julgada a responsabilidade penal individual por violações aos direitos humanos e
por crimes capitulados no Estatuto de Roma de 1998.
O Estatuto foi ratificado pelo Brasil, mas alguns problemas constitucionais
colocados em pauta para criar obstáculos não foram de todo superados. Nesta
palestra não poderei entrar em detalhes sobre as relações e conflitos entre o Direito
interno e o Direito internacional ou sobre as brigas entre as correntes dualistas e
monistas em torno dessa questão porque o tempo não permite.
Mas o Brasil simplesmente ratificou o Estatuto, sem entrar em maiores
detalhes principalmente em relação à entrega do nacional e à prisão perpétua.
Tramita emenda constitucional sobre o assunto, e no Ministério da Justiça uma
comissão está tratando do processo de implementação do Tribunal Penal
Internacional.
A nossa magistratura pode ficar absolutamente tranqüila porque a
implantação dessa corte não significará invasão da soberania e da jurisdição
nacional. A ratificação do Estatuto de Roma, pelo Brasil, foi uma afirmação de
soberania e se deu segundo a sua vontade; não houve qualquer pressão. Pelo
contrário: hoje, as pressões são no sentido de que ele não seja ratificado.
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Este País deverá manter a necessária autonomia, mencionada há pouco pelo
professor, para ter maior margem de manobra na política externa. O Brasil
autonomamente ratificou-a e agora trata de sua implementação, aguardando a
Conferência dos Estados Partes, da qual participará, em novembro. À ocasião,
serão discutidos o funcionamento do tribunal, previsto para entrar em funcionamento
em 2003, e a escolha dos juízes. O princípio da jurisdição é universal, originou-se do
esforço dos Estados para combater a pirataria, reprimir o corso e depois o tráfico de
escravos.
Na ata final do Congresso de Viena, em 1815, em nome dos princípios
universais da moralidade e da humanidade, as potências participantes resolveram
declarar ilegal o tráfico de escravos, estendendo obviamente aos traficantes uma
jurisdição internacional. Eis parte da ata do Congresso de Viena:
“Quem apanhasse poderia punir, para pôr termo a um
flagelo que durante tanto tempo desolou a África,
degradou a Europa e afligiu a humanidade”.
Documentos anexos apontam que, de 1650 a 1800, 12 milhões de africanos
foram aprisionados e transportados de forma desumana para o Ocidente.
Posteriormente, no Ato de Berlim, de 1890, e no Ato Geral de Bruxelas,
antiescravagista, do mesmo ano, a ilicitude do tráfico também foi confirmada. O
princípio de jurisdição universal está lá.
Nos primórdios do Direito Internacional, na obra de Hugo Grotius, um de seus
fundadores, vamos encontrar a seguinte afirmação: “De jure belli ac pacis”, ou seja,
era necessário punir quem cometia o crime de pirataria. Diz o texto de Hugo Grotius
que, quem cometer crime de pirataria longe de terra ferma ou de terra firme, não
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terá proteção de qualquer Estado. A segurança das comunicações marítimas é,
obviamente, um bem jurídico por excelência. Elas não podem correr perigo.
Hoje, na tentativa de construção de uma cidadania universal, diante da
realidade da transnacionalização das atividades humanas lícitas e ilícitas, de um
mundo que se dinamiza em redes transnacionais de toda a natureza, precisamos
obviamente repensar a vinculação do direito ao espaço. Não podemos mais apelar
para a soberania absoluta do modelo westfaliano, no qual vigorou, até o final do
século XIX e praticamente até a Primeira Guerra Mundial, o princípio de que apenas
se podia aceitar a exclusividade nacional de jurisdição; jamais a interferência de
jurisdição internacional ou externa nos assuntos do Estado.
A Primeira Guerra Mundial foi importante ponto de partida. Já foi mencionado
pelo Prof. Oliveiros S. Ferreira o kaiser Guilherme II, que, ao término da guerra,
refugiou-se na Holanda. De acordo com o art. 277 do Tratado de Versalhes, o
imperador alemão deveria prestar contas pelos crimes que cometera, ou seja, ser
submetido a julgamento. Conseqüentemente, os arts. 228 e 229 determinavam a
criação de um tribunal para julgar os criminosos de guerra alemães da Primeira
Guerra Mundial.
A Holanda, como se sabe, não extraditou o kaiser nem disse o motivo.
Àquela altura não seria realmente de estranhar o fato de a Holanda não extraditá-lo.
Fracassaram todas as tentativas de criação desse tribunal internacional para julgar
os criminosos alemães. Lei alemã concedeu à Suprema Corte daquele país
competência para julgar 21 mil alemães acusados de crimes de guerra. Esse
número foi reduzido, depois, para 895 e posteriormente para 45. Somente 21 foram
de fato julgados e 13 foram condenados a 3 anos de cadeia, uma pena leve.
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Isso mostra como as jurisdições nacionais não cumprem seu papel. É
inconcebível que, de um rol de 21 mil criminosos de guerra, ninguém tenha sido
absolutamente apenado.
Para não repetir o fracasso da tentativa de criar esse tribunal, em 1943, na
Declaração de Moscou, os aliados resolveram criar um tribunal ad hoc, depois do
acordo firmado em Londres, em 8 de agosto de 1945. Trata-se do Tribunal de
Nuremberg e do Tribunal de Tóquio, criado por iniciativa do general norte-americano
procônsul no Japão para julgar os criminosos de guerra japoneses.
Há muitas críticas contra o Tribunal de Nuremberg, mas ele foi um tribunal de
vencedores. Apenas foram julgados os perdedores de guerra. Os vencedores
fizeram o julgamento, criaram o tribunal e só julgaram quem quiseram. Questão
bastante duvidosa. Alguns dos ilícitos pelos quais os criminosos alemães foram
condenados à época não eram considerados pelas normas do Direito Internacional
comum. Há, portanto, mais esse problema. A consciência daquele momento mundial
era de tal ordem que esses criminosos precisavam ser punidos. O holocausto não
estava apenas na mente das pessoas, mas também estampado em todos os jornais
e noticiários de todo o mundo. E assim permanece até hoje; não nos podemos
esquecer dele. Os criminosos nazistas precisavam de imediata punição. Todas as
questões legais mais sofisticadas foram esquecidas. O tribunal entrou em ação e
desempenhou seu papel.
Atualmente, estamos diante de dois tribunais ad hoc: um para a ex-
Ioguslávia, para julgar os crimes cometidos naquela nação, ou seja, o desrespeito às
leis de guerra, às normas do Direito Humanitário, principalmente os chamados
crimes de genocídio e contra a humanidade; e outro para Ruanda. Esses dois
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tribunais, obviamente, logo que completarem seu papel, vão ser encerrados,
liquidados, assim como foram os Tribunais de Tóquio e de Nuremberg.
Precisava manter-se viva a idéia de uma jurisdição internacional. Voltou-se a
pensar, então, na criação de um tribunal internacional. Foi imediatamente instalada
conferência para tratar do assunto. Pensou-se em criar, inicialmente, esse tribunal
numa reforma da Carta da ONU, principalmente do art. 108, mas haveria
desvantagem, porque teria a mesma natureza jurídica da Corte Internacional de
Justiça, que apenas julga ações entre Estados. Essa Corte julgaria indivíduos, mas
ficaria dentro do sistema das Nações Unidas, numa dependência direta, podendo
sofrer interferência maior ainda do que o tribunal pode sofrer do Conselho de
Segurança. Pensou-se também em criar o tribunal por resolução da Assembléia
Geral, o que seria mais plausível, porque ela reúne todos os 189 países membros da
ONU. Dessa forma, o tribunal teria mais legitimidade.
Planejou-se, então, criar tribunal semelhante aos dois tribunais ad hoc, por
resolução do Conselho de Segurança. Optou-se pelo melhor caminho: tratado
mutilateral que dotasse o tribunal de autonomia absoluta e transformasse a
instituição, por força do seu estatuto, a sua carta constituidora, em organização
internacional com total independência para cumprir seus objetivos.
Cento e vinte Estados votaram favoravelmente, inclusive o Brasil. Estados
Unidos, Filipinas, China, Índia, Israel, Turquia e Sri Lanka votaram contra e 21
países se abstiveram. Estados Unidos — ao apagar das luzes do Governo Clinton —
e Israel assinaram o Estatuto de Roma. Apenas isso. Esperava-se que
posteriormente viessem a retificá-lo, o que seria uma grande vitória porque foram
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dois dos países que mais se opuseram e criaram as maiores dificuldades durante a
conferência.
O Presidente Bush começou o seu governo manifestando ferrenha oposição à
matéria, tratando-a de forma diferente. Agora tentou praticar ato inusitado no que se
refere ao Direito Internacional. Ele queria apagar a assinatura, quer dizer, a doutrina,
com liquid paper. Isso é inédito. Nunca se ouviu falar de algo assim. Simplesmente
resolveu não ratificar o acordo. Não precisava apagar a assinatura. A oposição à
criação do tribunal é de tal ordem que simplesmente passaram a borracha no
assunto.
O tribunal está sediado em Haia, Holanda, e tem jurisdição sobre os crimes
de extrema gravidade que ameacem a paz, a segurança e o bem-estar da
humanidade. De acordo com o art. 5º do Estatuto de Roma, os crimes que estão na
mira desse tribunal são o genocídio, os crimes contra a humanidade, os de guerra e
a agressão.
O Estatuto pode ser facilmente adquirido. Nele os senhores verão cada uma
dessas categorias de crime detalhadamente explicadas e conceituadas. O crime de
agressão depende ainda da aprovação de dispositivo que venha a defini-lo
exatamente. Isso será feito ao longo do processo de implantação do tribunal.
O art. 12 é muito importante e resultou, obviamente, em compromisso
possível. Mas deu muito trabalho aprová-lo durante a conferência, porque levanta
questões relativas à forma segundo a qual os Estados podem se eximir durante o
período da jurisdição do tribunal. Refiro-me ao sistema opt out contido no art. 124,
combinado com o art. 12. Durante sete anos, qualquer Estado pode declarar que
não aceita a jurisdição do tribunal para crimes de guerra, quando alegadamente
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tenham sido cometidos por seus nacionais ou em seu território. É uma tentativa de
aplacar o ânimo dos Estados Unidos, que declararam não aceitar, durante sete
anos, a jurisdição do tribunal.
É importante salientar que os princípios do Direito Penal são todos
respeitados pelo tribunal. O Estatuto aplica-se a todos os indivíduos, por igual, não
importando o grau da função oficial exercida. Ou seja, qualquer autoridade do
Estado que violar um dos direitos capitulados no art. 5º estará sujeita à jurisdição do
tribunal.
Actione tempus. O tribunal só julgará crimes a partir da sua entrada em
funcionamento, em respeito ao princípio da não-retroatividade. Ou seja, só vai julgar
os fatos daqui para a frente.
Ratione personae. Apenas pessoas com idade acima de 18 anos serão
julgadas pelo tribunal.
Outro ponto bastante interessante: ele inova em matéria de Direito Processual
Internacional. Até agora, todas as normas, procedimentos e provas do tribunais
internacionais têm sido criados pelos próprios juízes. Pelo Estatuto de Roma,
apenas a Assembléia dos Estados Parte vai determinar a mudança da forma de
apresentação de provas e dos procedimentos do tribunal. Isso é interessante,
porque no tribunal ad hoc da Iugoslávia são constantemente mudadas as regras, o
que dá instabilidade processual ao andamento do processo. As normas
estabelecidas pelo Tribunal de Ruanda não foram mudadas até hoje. O Tribunal
Penal Internacional só poderá mudar qualquer norma ou procedimento de produção
de provas com a aprovação dos Estados Parte.
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Ainda persistem muitas objeções e críticas ao Tribunal Penal Internacional,
apresentadas, durante a Conferência de Roma, por vários Estados. O ponto
fundamental, meus amigos, é soberania. A jurisdição internacional do tribunal
ameaça a exclusividade das jurisdições nacionais, o que é absolutamente
improcedente. Está amplamente consagrado que não cabe a nenhum Estado
invocar direitos soberanos para justificar descumprimento de compromissos
internacionais em matéria de direitos humanos.
Os Estados Unidos, por exemplo, têm cometido algumas arbitrariedades por
causa do exercício de seu incontrastável poder hegemônico e, por razões mais do
que conhecidas, acabam por exercer enorme controle sobre os organismos
multilaterais com os quais mantêm relações bastante difíceis, principalmente agora,
com sua política unilateral, seu globalismo unidetalhista e sua política de intervenção
em todos os organismos multilaterais que não puderam controlar de forma
absolutamente rigorosa. Daqui a pouco vamos mencionar algumas arbitrariedades
cometidas pelos Estados Unidos. A situação radicalizou-se em relação aos órgãos
multilaterais depois do atentado terrorista de 11 de setembro.
Ora, o Tribunal Penal Internacional é um órgão multilateral, um organismo
internacional semelhante a qualquer outro. Como o Governo Bush não aceita essas
leis, conseqüentemente, a política externa americana procura violá-las de todas as
formas. Não vou entrar em detalhes. Havia escrito algo, para comentar, mas deixo
de fazê-lo, uma vez que o assunto já foi bastante explorado.
O Governo Bush ainda não conseguiu chegar a uma maior integração, que
possibilite relações mais razoáveis com os órgãos multilaterais. Um professor da
Kennedy School, da Universidade de Harvard, fez recente declaração, publicada no
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jornal O Globo, de 3 de julho de 2002, explicando por que os Estados Unidos
rejeitam o Tribunal Penal Internacional. Com “sutileza” — entre aspas —, criou
imagem que reproduz a alma troglodita do Governo Bush: “um gorila de 350 quilos
não gosta de nada que restrinja sua liberdade de ação, a menos que ache que
possa controlar isso”.
Em relação ao tratamento dispensado aos órgãos multilaterais pelos Estados
Unidos, que não aceitam qualquer interferência em sua soberania, devemos nos
lembrar do que aconteceu na Organização para a Proibição de Armas Químicas —
OPAQ. É uma pena que o Embaixador José Maurício Bustani não esteja presente,
pois eu queria render a S.Exa. minhas homenagens pelo trabalho realizado à frente
daquela organização. Sabemos que o Embaixador foi afastado exatamente por
contrariar os interesses dos Estados Unidos, já que administrava o órgão de forma
correta, digna e independente.
Da mesma forma, os americanos investiram contra a permanência da Sra.
Mary Robson, Comissária para Direitos Humanos da ONU. A antiga Presidenta da
Irlanda caiu em desgraça, em razão de críticas ao tratamento dado pelos Estados
Unidos a prisioneiros talibãs e a membros da Al Qaeda encarcerados na Base de
Guantánamo, em Cuba, que não têm os direitos consagrados na Convenção de
Genebra sobre direitos humanos.
Pressionado pelos conservadores, o Governo Bush suspendeu a verba de 34
milhões de dólares que o Congresso destinara ao Programa de Planejamento
Familiar da ONU e repassou-a à Agência de Desenvolvimento Internacional do
Departamento de Estado. O superpoder hegemônico tem profunda dificuldade em
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aceitar que determinadas situações sejam resolvidas com apelo a mecanismos
legais internacionais.
Acadêmicos e políticos mais conservadores — já citei um deles — não
admitem a existência de justiça internacional autônoma, fora do controle dos
Estados Unidos.
Henry Kissinger, em artigo sobre jurisdição universal publicado na revista
Foreign Affairs, alerta para o fato de que tal justiça ameaça os processos nacionais
de reconciliação e transição democrática, porque os tribunais internacionais são
palco para a atuação interesseira e politizada de promotores inescrupulosos, que os
transformam em instrumento de instabilidade política. Kissinger é frontalmente
contra os poderes concedidos ao promotor para instaurar processos tanto no
Tribunal Penal Internacional, quanto nos dois tribunais ad hoc criados pelos próprios
Estados Unidos.
Lembro ponto importante: o Tribunal Penal Internacional não é concorrente
das jurisdições nacionais. Ele atuará apenas nos casos de violação dos crimes
previstos no art. 5º — genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e
crimes de agressão —, quando a jurisdição nacional deliberadamente deixar de
reconhecê-los ou agir de forma irresponsável durante o processo, enfim, quando
falhar de todo.
Se isso ocorrer, o Tribunal vai complementar a ação da jurisdição nacional,
baseado no princípio da complementaridade. Se os países não agirem corretamente
ou se um tribunal penal brasileiro, por exemplo, violar qualquer princípio
estabelecido pelo art. 5º, basta que nosso Governo prenda, julgue, absolva ou
condene o culpado. Entretanto, é fundamental que o faça corretamente, seguindo o
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devido processo legal, de acordo com o Direito Internacional e com as normas
internas. Dessa forma, não haverá qualquer problema.
Se, amanhã, um soldado dos Estados Unidos vier a cometer grave crime
contra o Direito Internacional — seja crime de guerra, seja outra categoria —, basta
que o julguem. Mas não se admite, em hipótese alguma, que ele seja julgado por
tribunais não nacionais, ou seja, por jurisdição internacional.
O ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos pede revisão do Estatuto do
Tribunal Penal Internacional e propõe ao Conselho de Segurança da ONU —
inclusive no artigo publicado na Foreign Affairs — a criação de tribunais regionais,
que substituam aquele. Dessa forma, os Estados Unidos, mediante poder de veto no
Conselho de Segurança, poderiam controlá-los e impedir que prosperassem, caso
viessem a ser criados.
O Tribunal Penal Internacional, apesar da oposição norte-americana, obteve
mais de setenta ratificações, o que surpreendeu o mundo. Conseqüentemente, o
órgão não está fadado ao fracasso, mas terá de superar muitas dificuldades para se
consolidar.
Outro professor americano, da Universidade de Stanford, acusa o Tribunal
Penal Internacional de incapacidade para fazer a avaliação política das situações em
que se veja envolvido. Afirma ele que o Tribunal representa alto risco e que é
ingênuo acreditar que as relações internacionais possam ser regidas por processos
legais.
Não concordo com essa afirmação. É utopia querer basear essas relações
apenas em aspectos legais, diante da hegemonia dos Estados Unidos e da natureza
do sistema internacional em que vivemos. A política externa norte-americana
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volta-se agora, exclusivamente, para o combate ao terrorismo, conforme muito bem
explicado pelo Prof. Luis Fernandes. Aquela seria uma filiação irresponsável a uma
escola idealista à qual não pertenço, mesmo sabendo que é importante que as
normas internacionais sejam respeitadas.
O Direito pode integrar-se à política, de forma que se estabeleçam limites
civilizados de ação. Basta que os senhores atentem para o que acontece na União
Européia, cujo sucesso foi assegurado exatamente por normas do Direito
Comunitário e do Direito Regional Europeu. Houve importante casamento da ação
política com a legal, com o objetivo de se constituir aquela comunidade.
Podemos ter um sistema internacional norteado por normas, principalmente
no campo dos direitos humanos. Diante da atual sociedade de informação, ligada
em rede e transnacionalizada, é inconcebível que qualquer país viva de forma
autárquica e isolada, aferrado a normas jurídicas inaplicáveis ou a posições políticas
indefensáveis.
O Tribunal é realidade e funcionará a partir de 2003. O Brasil fez belo papel
na Conferência, ao ratificar soberanamente o órgão. Dessa forma, mostramos que
nossa política externa está afinada com a manutenção dos direitos humanos, a
única ideologia legítima neste início de milênio.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Muito obrigado, Prof. Antônio
Celso.
Passamos a palavra ao Embaixador Luiz Augusto de Araújo Castro,
Subsecretário-Geral de Assuntos Multilaterais do Ministério das Relações Exteriores,
a quem agradecemos a presença.
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O SR. LUIZ AUGUSTO DE ARAÚJO CASTRO – Em primeiro lugar,
agradeço a V.Exa., Deputado Aldo Rebelo, Presidente da Comissão de Relações
Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, a oportunidade de
dialogar com o Parlamento sobre temas de interesse da sociedade brasileira.
Para nós, diplomatas profissionais, é gratificante debater temas centrais para
a política exterior nos próximos anos. Esse intercâmbio será valioso para o Itamaraty
em reuniões com organismos internacionais, inclusive os da Organização das
Nações Unidas.
A palestra que acaba de ser feita pelo Prof. Antônio Celso é importante,
porque aborda a questão do Tribunal Penal Internacional. O Itamaraty, o Ministério
da Justiça, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal tiveram profícua
inter-relação ao tratar o tema. Julgou-se, de um lado, a conveniência de se criar
instância para julgar crimes de guerra e, de outro, a necessidade de se preservarem
normas constitucionais vinculadas às liberdades e aos direitos fundamentais.
Esse debate não ocorreu apenas no Brasil, mas em diversos países. A
grande maioria chegou à conclusão de que o bem maior seria a criação do Tribunal,
que não afetaria as liberdades internas.
Em nome do Itamaraty, agradeço ao Congresso Nacional a cooperação,
exemplo de que, ao trabalhar juntos, podemos chegar a boas conclusões.
É com grande satisfação que o Brasil, na qualidade de ratificante do Estatuto
de Roma, participará da Primeira Conferência dos Estados-Partes, que terá lugar em
Nova Iorque, a partir de 3 de setembro.
Foi-me solicitado comentário sobre o tema “O Brasil e o Sistema de
Segurança Internacional das Nações Unidas, do Conselho de Segurança e dos
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Organismos de Não-Proliferação”. Prometo ser breve, para que haja tempo
suficiente para perguntas e respostas.
É fundamental para a política externa brasileira a inserção do País no
sistema internacional. Refiro-me, obviamente, ao Sistema das Nações Unidas, ao
Sistema Interamericano — criado no final do século passado — e a diversas outras
organizações. A Liga das Nações foi um ensaio para a criação da política central da
ONU e das agências especializadas, inclusive das áreas econômica e financeira,
instaladas sobretudo a partir do final da 2ª Guerra Mundial.
A participação do Brasil em organismos multilaterais tem sido vetor essencial
da política externa ao longo dos anos, independentemente de mudanças de
governo, ideologia ou orientação política. Esses organismos oferecem dois valores
fundamentais para um país com as características e as dimensões do nosso. Eles
vêm confirmando-se e foram consagrados, inclusive, na Constituição.
O primeiro é o fato de que a Carta das Nações Unidas e a Carta da OEA
asseguram o respeito às normas básicas de Direito Internacional. São princípios
essenciais o não-uso da força e a não-ameaça quanto a esse uso. Parece óbvio,
mas não é. Nos termos das duas Cartas, a solução de controvérsias exige formas
pacíficas conhecidas.
Segundo, todos os Estados têm de ser respeitados como unidades
soberanas, com igualdade de direitos, apesar de diferenças econômicas, políticas e
outras. É o princípio da não-intervenção nos assuntos que pertencem à esfera de
decisão interna do Estado, assim como nas relações externas.
É claro que, com o passar do tempo, uma série de acordos soberanamente
concluídos pelos Estados foram redefinidos no contexto cooperativo internacional,
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em benefício da maior proteção de certos direitos. Um caso clássico é o dos direitos
humanos, que evoluiu desde a adoção da vaga e decorativa Declaração Universal
dos Direitos Humanos até os dias atuais, em que há mecanismos precisos e, em
muitos casos, intrusivos dos relatores especiais da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, entre outros, o que é muito bom.
Não admitíamos interferência externa sobre esses pontos de soberania
nacional até meados da década de 80, época da redemocratização. Entretanto,
passamos a aceitar a jurisdição de órgãos internacionais e fomos um dos primeiros
países a fazerem o chamado convite permanente aos organismos de fiscalização de
direitos humanos da Organização das Nações Unidas em casos de tortura,
desaparecimento forçado e violência contra a criança. Os relatores especiais da
entidade estão convidados a vir ao Brasil a qualquer hora. Basta agendar a visita,
para que organizemos o programa. Essa iniciativa foi tomada apenas por quatro
países latino-americanos e alguns europeus.
Voltando ao tema do seminário, a participação no sistema multilateral visava,
de um lado, fornecer garantias à atuação da Organização das Nações Unidas, da
OEA e de outras instâncias multilaterais. Refiro-me a todos os países que ganhavam
prestígio internacional e respeitavam as normas básicas de Direito Internacional já
consagradas em suas Constituições. Se eles perdessem credibilidade, aquelas
instâncias, que defendem as normas básicas de convívio internacional, também a
perderiam.
Um país de dimensões continentais como o Brasil, como dizia o Ministro
Celso Lafer, tem reflexão especial a fazer. Nosso poder de influência poderia
levar-nos a menosprezar os vizinhos menores. Entretanto, ao longo do século —
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sobretudo nas últimas décadas —, o País tem escrupulosamente respeitado os
princípios do não-uso da força e da solução pacífica de controvérsias.
Tal procedimento remonta, no caso da diplomacia, ao Barão do Rio Branco,
Ministro das Relações Exteriores entre 1902 e 1912, quando faleceu. Em 2002,
portanto, comemoramos o centenário do início de sua extraordinária gestão, que se
pautou, essencialmente, pela consolidação do relacionamento pacífico e confiável
com os dez países vizinhos. Nenhum apresentava real ameaça, mas o Barão
entendeu que, para se desenvolver em paz e ter credenciais para se inserir no
contexto internacional, era fundamental que o Brasil primeiro consolidasse suas
fronteiras. Assim foi feito. Portanto, é com toda justiça que celebramos o centenário
da gestão desse excepcional diplomata, respeitado em toda a América Latina.
Quando Embaixador no Uruguai, observei, num lugar de grande destaque em
Montevidéu, monumento que celebra o acordo promovido pelo Barão do Rio Branco,
definindo, de uma vez por todas, a divisão das águas da Lagoa Mirim e do Rio
Jaguarão. É curioso ver um diplomata nosso homenageado em país vizinho. Muito
menor que o Brasil, o Uruguai jamais representou ameaça militar, mas o Barão
percebeu que era importante manter com ele relação de confiança e que, para isso,
era necessário resolver aquela pendência, que poderia ser fator de constante atrito.
Voltando aos dias de hoje, o Brasil respeita as normas de Direito
Internacional, consagradas no art. 4º da Constituição, não por defender valores
éticos superiores aos de outros países, mas por convicção intrínseca à natureza do
nosso povo.
Os princípios das Cartas da ONU e da OEA estão também consagrados. Na
medida em que o Brasil é visto como país que respeita o Direito Internacional, são
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maiores nossas credenciais para exigir o mesmo tratamento de outros países. Ao
cumprir as normas dos organismos multilaterais, procurando aperfeiçoar os
mecanismos existentes e promover negociações sobre temas de interesse comum,
sentimo-nos no direito de exigir o mesmo respeito.
Outro ponto importante é que os organismos internacionais servem como foro
para deliberação, negociação e adoção de acordos, tratados, convenções e normas
que afetam as mais diversas áreas. Estas incluem o desarmamento — cerne da
política internacional — e outras como saúde, comunicação, comércio internacional,
finanças, direitos humanos, proteção ao meio ambiente e promoção do
desenvolvimento sustentável.
O papel regulador também é essencial no contexto das Nações Unidas,
principal órgão do sistema internacional. O Brasil sempre atribuiu grande importância
ao Conselho de Segurança da ONU, que tem como principal responsabilidade a
preservação da paz e da segurança internacionais. Por isso, ao adotar a Carta das
Nações Unidas, em São Francisco, os Estados-membros decidiram atribuir poderes
extraordinários àquele órgão.
Não pretendo expor a evolução histórica do Conselho de Segurança, mas é
importante refletir sobre seu atual papel, que evoluiu muito. Chamo a atenção dos
senhores para o fato de que, sobretudo na última década, após a queda do Muro de
Berlim e o fim da Guerra Fria, tem havido processo de auto-ampliação dos já
enormes poderes do órgão. Esse fato é preocupante para muitos.
O Conselho tem sucessivamente redefinido seu papel, adotando caráter
mandatório. Do ponto de vista jurídico, é curioso que a Carta da ONU tenha
estabelecido os poderes do Conselho no capítulo VII e, ao mesmo tempo, tenha-lhe
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dado ilimitado poder de decisão quando se tratar de ameaça à paz e à segurança
internacional.
Ao longo da última década, o Conselho interveio em conflitos internos de
vários países. A Carta deixa claro que seu poder para usar meios coercitivos se
restringe a casos em que um país é ameaçado ou agredido por outro. É evidente
que ele não pode intervir em situações internas, mas isso ocorreu diversas vezes.
Um dos exemplos mais evidentes é o da Somália, que não era ameaçada por
outro país, mas vivia pavoroso conflito interno. A violação dos direitos humanos era
aberrante e insustentável. A CNN mostrava, diariamente, o assassinato de crianças
e o trucidamento entre bandos. Enfim, uma situação absolutamente insustentável.
Técnica ou juridicamente, seria muito difícil argumentar que na Somália havia
ameaça à paz e à segurança internacional.
Sem invocar o Capítulo VII, não poderia haver intervenção militar legítima,
com a bandeira das Nações Unidas ou não. Como o caso era gritantemente
aterrador e exigia ação da comunidade internacional, houve o entendimento de que
realmente era necessário ação internacional, o que justificaria uma interpretação
flexível e generosa dos termos da Carta. Estou citando acontecimentos da primeira
metade dos anos 90, mas há exemplos bastante recentes.
No caso do desmoronamento da antiga Iugoslávia, também houve redefinição
das atribuições das Nações Unidas pelo fato de ter havido intervenção, primeiro,
dentro de um de seus Estados-membros, já que a própria Iugoslávia começava a se
desfazer. A Eslovênia e outras antigas Repúblicas da Iugoslávia — Repúblicas no
sentido de Estados federados, como qualquer Estado federado brasileiro; só que lá
chamavam-se Repúblicas — foram-se desgarrando ou proclamando a sua
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independência. Alguns países reconheciam a independência dessas ex-repúblicas,
começando pela Eslovênia, que foi prontamente reconhecida por dois ou três
Estados da Europa Ocidental, o que provocou uma série de ações no sentido de
procurar qualificar como conflito internacional o que estava acontecendo. Quer dizer,
quando o Governo Central da Iugoslávia atuou militarmente para procurar impedir a
secessão da Eslovênia, como alguns países já haviam reconhecido a independência
daquela República, foi caracterizado um conflito internacional com ameaça à paz e à
segurança internacional.
Quanto à atuação no Kosovo, a ação militar não foi feita pelas Nações
Unidas, pelo Conselho de Segurança, mas pela OTAN. É importante notar que, ao
longo dos anos 90, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, em suas reuniões
de cúpula ou de chanceleres, fez sucessivas reinterpretações do seu tratado
constitutivo. Elas também ampliam os casos de atuação da OTAN, que era
essencialmente uma aliança militar defensiva voltada contra o bloco soviético.
Claramente, o propósito era ter um mecanismo militar de aliança para fazer face ao
Pacto de Varsóvia.
Terminados o Pacto de Varsóvia e a ameaça soviética, a OTAN se redefiniu
como aliança militar, mas com outras funções. Por exemplo, no caso do Kosovo, em
que novamente não havia ameaça militar a nenhum país membro daquela
Organização, foi tomada a decisão de acordo com as novas reinterpretações da
OTAN, que resultaram nas ações militares a que nós todos assistimos pela
televisão, inclusive com ataques a Belgrado etc. Isso também é preocupante, na
medida em que uma seqüência de eventos dessa natureza amplia os poderes do
principal órgão responsável pela paz e pela segurança internacional.
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O professor mencionou a criação dos tribunais especiais para a antiga
Iugoslávia e para Ruanda. Nesses dois casos, o Brasil, entre outros países,
expressou preocupação, porque não cabia ao Conselho de Segurança, nos termos
da Carta das Nações Unidas, criar tribunais ad hoc. Sempre entendemos que a
idéia da jurisdição internacional para áreas específicas ou para áreas mais gerais
deveria nascer de um tratado, de uma convenção, em que os Estados livremente,
abdicando em parte da sua soberania, criassem uma nova instância penal que
permitisse julgar os crimes mais horrorosos, os crimes de guerra, os crimes contra a
humanidade, o que efetivamente ocorreu. Daí a importância do que foi feito com o
Estatuto de Roma, no sentido de abrir caminho para o processamento desses
crimes mais detestáveis.
Tem sido, e deve continuar a ser, sobretudo nos dias atuais, uma das
diretrizes centrais da nossa política externa, da inserção do Brasil no mundo, da
visão que o País tem de si no mundo a insistência em participar das principais
instâncias internacionais e intergovernamentais, nas quais são deliberadas as
grandes questões políticas, econômicas, financeiras e comerciais de nosso legítimo
interesse. Um país como o Brasil tem de ser ouvido, tem de participar. Isso é reflexo
da necessidade de democratização das relações internacionais.
Muitos outros países têm feito um grande esforço, desde a redemocratização
do Brasil, na década de 80, no sentido de consolidar as suas instituições
democráticas e garantir o respeito à lei, o império do Direito internamente no País.
Sentimo-nos titulados a exigir a democratização das relações internacionais e o
respeito internacional às normas do Direito.
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A democratização das relações internacionais, a abertura das instâncias
decisórias à participação de países como o Brasil, para nós, é essencial e se coloca
em diferentes instâncias, desde a área financeira, em que apoiamos a criação do
novo mecanismo do G-20, que inclui, além do G-7 — os sete países mais prósperos
do mundo —, um grupo de treze países em desenvolvimento, entre os quais o
Brasil, e que se refere especificamente à agenda financeira internacional de grande
importância. O País ajudou nessa nova criação, da qual temos participado
ativamente.
Por outro lado, no caso do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o
Brasil foi um dos primeiros a propor a ampliação do número de seus membros
permanentes e não-permanentes tanto a países desenvolvidos como a países em
desenvolvimento. O País tem indicado sua disposição e seu vivo interesse de vir a
ser um dos novos membros permanentes do Conselho de Segurança.
Estamos plenamente conscientes da extrema dificuldade desse processo.
Não temos ilusão de que isso venha a ser decidido de um dia para outro, porque são
muito grandes os interesses envolvidos e bastante delicadas as situações regionais
de alguns países do mundo. O Brasil entende que reúne as condições e está
disposto a assumir a responsabilidade de membro permanente do Conselho de
Segurança. Enquanto isso não acontece, temos participado ativamente do trabalho
das Nações Unidas e do Conselho de Segurança.
Fomos membros não-permanentes — os mandatos são de dois anos — em
1988 e 1989; depois, novamente, de 1993 a 1994 e de 1998 a 1999. Se tudo der
certo, vamos ser eleitos no ano que vem para o mandato de 2004 a 2005. O Brasil é
o país que mais tem participado dos trabalhos do Conselho de Segurança como
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membro não-permanente. Creio que estamos atualmente empatados com o Japão.
Há uma disputa. Quando o Brasil é eleito, passa à frente do Japão. Depois o Japão
novamente se equipara ao Brasil. Brasil e Japão são dois países muito cotados
como possíveis novos membros permanentes do Conselho de Segurança. A
Alemanha vem atrás, pois demorou a ser admitida como membro das Nações
Unidas. Havia duas Alemanhas, a Ocidental e a RDA, enfim, diversas dificuldades.
O Brasil tem participado de operações de paz das Nações Unidas desde a
sua criação e ultimamente tem dado prioridade às operações nos países de língua
portuguesa. Estivemos presentes, com importantes contigentes, em Angola, em
Moçambique e mais recentemente em Timor Leste.
Discursando na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados,
que tem papel importante no processo de relações exteriores e defesa nacional,
creio que num futuro próximo precisamos encontrar meios orçamentários e
financeiros que permitam uma participação mais intensa do Brasil nas operações de
paz das Nações Unidas. No caso do Timor Leste, houve um debate interno sobre a
significativa presença brasileira nas operações das Nações Unidas.
Há restrições orçamentárias em praticamente todas as áreas de atividade do
Governo, mas creio que a própria projeção internacional do Brasil e o nosso
interesse em exercer papel positivo e construtivo no mundo justificariam um esforço
especial de encontrar soluções para as dificuldades orçamentárias nessa área.
A vontade política de participar existe. Estão todos de acordo em relação a
isso. Não há uma discrepância entre Governo, Congresso, diferentes áreas
governamentais, Forças Armadas e Itamaraty. Eu sei que o Congresso gostaria de
participar, mas precisamos encontrar soluções.
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Preocupa-nos, no contexto atual, a importância de fortalecer as instâncias
multilaterais, a importância dessa dimensão, das relações. Há sinais negativos
quanto ao multilateralismo, que parecem indicar uma tendência a recorrer a
soluções unilaterais. Isso é preocupante nas áreas política, comercial e em outras.
Os sinais não são sempre muito claros; às vezes, são contraditórios.
Por exemplo, a Conferência da OMC em Doha, em novembro de 2001,
produziu resultados muito positivos. Não são os ideais, mas houve forte presença e
a participação do Brasil e de países em desenvolvimento. Foi possível chegar a
entendimentos com os países europeus, os Estados Unidos, o Canadá e outros e se
conseguiu adotar um conjunto de decisões em Doha que fortalece muito esse
processo. O mesmo ocorreu na Conferência de Monterrey sobre financiamento para
o desenvolvimento. Estamos preocupados com a Conferência de Johanesburgo, que
se realizará daqui a duas semanas na África do Sul. Não estão muito claras as
perspectivas de êxito, mas, ao lado de Doha e de Monterrey, ela seria a terceira
grande conferência desse tripé de esforço cooperativo internacional em áreas de
interesse dos países em geral e dos países em desenvolvimento de forma muito
particular.
Tem havido, como já foi mencionado, sinais negativos de tendências
unilaterais ou de rejeição a soluções multilaterais. O caso do TPI já foi amplamente
mencionado. Eu citaria dois ou três casos recentes, ligados ao desarmamento, que
foram motivo de grande preocupação para nós. Essa área mexe com o próprio
poder básico, o poder militar, as questões de segurança. Por isso é um tema
extremamente sensível, e o Brasil, ao longo dos anos, de forma muito coerente, com
bastante seriedade e credibilidade, tem atuado de forma positiva.
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No início dos anos 60, em 1962 ou 1963 — hoje as pessoas se esquecem
disso — , o Brasil foi um dos primeiros a propor o que finalmente veio a ser o
Tratado de Proibição de Armas Nucleares na América Latina, o Tratado de
Tlatelolco, e o próprio Tratado de Não-Proliferação Nuclear. O Brasil, junto com um
pequeno grupo de países não alinhados, originalmente propôs as diretrizes daquilo
que achávamos que seria um TNP não discriminatório, que criasse direitos e
obrigações equilibradas tanto para potências nucleares quanto para potências não
nucleares.
No caso de Tlatelolco, o resultado foi positivo. Associamo-nos ao processo de
Tlatelolco, muito embora ele só tenha entrado em vigor, para o Brasil, em 1994. É
uma história longa. Não sei se terei tempo de comentá-la.
No caso do TNP, perdemos a negociação. Finalmente, em 1968 foi imposta a
solução a partir dos co-presidentes, que eram os Estados Unidos da América e a
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que impuseram uma solução, o texto
que finalmente foi adotado depois de um processo de deliberação — é até difícil
dizer essa palavra. Fomos muito ativos e um dos responsáveis, por exemplo, pelo
art. 6º do TNP, que contrabalança todas as outras obrigações e cria também a
obrigação de promover o desarmamento nuclear.
Menciono também que finalmente, em 1998, o Brasil aderiu ao TNP, depois
de um longo e muito interessante intercâmbio com o Congresso Nacional, em que
diferentes partidos tinham diferentes posições. Não foi um processo simples, mas
extremamente importante no sentido de dialogar com a classe política, com todos os
partidos diferentes. O Congresso Nacional adotou posições muito claras em relação
ao tema, inclusive aprovando o Tratado de Não-Proliferação, mas com uma ressalva
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— não uma emenda —, no entendimento de que o art. 6º, que fala no
desarmamento nuclear, tem de ser cumprido. O Brasil deve trabalhar nesse sentido.
Além disso, para terminar, porque já passei um pouco dos meus quinze
minutos, mencionaria outras instâncias referentes ao desarmamento, nas quais tem
havido manifestações unilaterais. Uma foi a questão das armas biológicas. Como
todo mundo sabe, criamos a Organização para a Proibição de Armas Químicas —
OPAQ, nos anos 90.
A OPAQ nos parece um exemplo muito bem acabado de como deve ser uma
organização não discriminatória e democrática, que cria obrigações para todos e é
eficaz e séria no seu processo de verificação do cumprimento das obrigações
contidas na convenção.
Tentou-se fazer a mesma coisa no campo das armas biológicas, mas, ao final
de um processo de negociação, ou quando já muito adiantado, a delegação dos
Estados Unidos opôs-se à proposta de criar uma organização parecida com a
OPAQ. Mutatis mutandis, armas químicas têm natureza diferente. Mas, enfim, a
idéia era criar um mecanismo desse tipo.
O caso do CTBT, que é o Tratado para a Proibição Completa dos Testes
Nucleares, desde o Tratado de Moscou, entre Kennedy e Kruchev, já era um
elemento central. Quando daquele tratado que proibia as explosões nucleares na
atmosfera, começou-se a discutir a proibição das explosões subterrâneas.
Finalmente, nos anos 90, chega-se à conclusão quanto a esse tratado. Ele é
aprovado por uma grande maioria de países, mas nos Estados Unidos, que são a
maior potência nuclear e um país essencial para a viabilidade do sistema criado pelo
Tratado para a Proibição Completa dos Testes Nucleares, há uma objeção total,
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uma decisão do próprio Senado americano de rejeitar e outra do novo governo
americano de reiterar e de nem tentar reabrir a questão.
Finalmente, no caso da OPAC, tivemos a retirada, por iniciativa dos Estados
Unidos e de alguns outros poucos países, do Embaixador José Maurício Bustani das
suas funções como Diretor-Geral da organização. Nós reagimos a isso, afirmando e
reafirmando nossa defesa em relação ao Embaixador Bustani e à sua gestão,
porque nos parecia que as acusações e as críticas feitas não tinham nenhum
fundamento. Isso foi dito objetivamente, como Estado-membro, e sabíamos que
essa posição era compartilhada por muitos países.
Ao mesmo tempo, nós víamos, nessa tentativa de destituição de um diretor-
geral eleito e reeleito de uma organização multilateral de grande responsabilidade na
área do desarmamento, um fator que poderia afetar a própria credibilidade do
sistema multilateral de não-proliferação de armas de destruição em massa. O
resultado os senhores conhecem: foram feitas as gestões, e eu mesmo chefiei a
delegação do Brasil nas reuniões de 21 e 22 de abril, em Haia, em que fomos
derrotados por grande maioria de votos, que asseguraram a derrubada do meu
colega José Maurício Bustani.
Mais recentemente houve a notícia de que foi eleito um novo diretor para a
organização, o diplomata argentino Rogelio Pfirter. Na ocasião, o Brasil fez uma
breve declaração, para deixar claro que não apoiava esse ou qualquer outro
candidato, tendo em vista as circunstâncias em que se havia dado o afastamento do
anterior diretor-geral.
Menciono isso para dar um pouquinho de tempo — se é que nós o temos
sobrando — para perguntas e respostas. Haveria muitos outros temas para
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apresentar. A temática, na minha opinião, foi fascinante. Como faltaram um ou dois
oradores, achei que poderia estender-me um pouco. Mas não incorrerei na ira do
ilustre Deputado Aldo Rebelo.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Obrigado, Embaixador Araújo
de Castro.
Sem delonga, solicito que as perguntas porventura existentes sejam
encaminhadas à Mesa, para que os nossos expositores possam respondê-las.
Confirmo para amanhã o painel sobre as perspectivas das relações do Brasil
com os Estados Unidos e os países do NAFTA, com a presença do Embaixador
Samuel Pinheiro Guimarães, ex-Presidente do Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais do Itamaraty — IPRI, e do Embaixador Clodoaldo Hugueney, nosso
Subsecretário-Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio
Exterior, do Ministério das Relações Exteriores. O Embaixador Clodoaldo, aliás,
passou boa parte do dia conosco.
Já temos as primeiras perguntas. O Prof. Antônio Celso e o Embaixador
Araújo Castro já podem respondê-las, se assim o desejarem.
O SR. ANTÔNIO CELSO ALVES PEREIRA – A pergunta é a seguinte: uma
vez que os Estados Unidos não aceitam a jurisdição do Tribunal Penal Internacional,
ao cometerem qualquer crime contra os direitos humanos — quer dizer, deve ser
algum cidadão americano —, como genocídio, crime de guerra etc., teria o tribunal
força para obrigá-los a responder por esses atos?
O grande problema está exatamente no seguinte: os Estados Unidos não
ratificaram isso e não vão ratificar, pelo menos por ora, a não ser que mude a
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política externa americana, que amanhã surja um novo presidente, enfim, que as
diretrizes de política externa daquele país mudem radicalmente. Pelo menos é o que
se pode antever, diante dos acontecimentos.
Os Estados Unidos estão agora pressionando os países com os quais têm
acordo de ajuda militar, por meio de ameaças e chantagens, dizendo que
suspenderão as ajudas militares caso esses países não assinem com eles tratados
bilaterais que permitam ao cidadão americano que comete crime tipificado no art. 5º
do estatuto — crime de guerra, genocídio, crime contra a humanidade —, no
território de um país membro, ser entregue por esse país ao Tribunal. As Filipinas
inclusive botaram a boca no mundo, porque a ajuda militar de 30 milhões de dólares
que recebem é importantíssima por causa das questões que lá existem, como
guerrilhas e tudo o mais. Os jornais estão estampando todos os dias esse episódio,
que é mais uma investida do governo americano contra os países que ratificaram ou
que poderão vir a ratificar o estatuto. Mas o Tribunal não tem condições de impor
nada aos Estados Unidos. Primeiro, porque os Estados Unidos não fazem parte e,
segundo, porque a potência hegemônica dificilmente se curvará diante de um órgão
mutilateral da estatura de um tribunal, na medida em que hoje eles estão tendo uma
política de completa hostilidade a qualquer decisão de qualquer órgão mutilateral
que contrarie seus projetos e sua política externa.
Portanto, não vejo como forçar os Estados Unidos, a não ser no caso em que
um cidadão seu cometa um crime, ou os seus soldados, por exemplo — é uma
grande discussão também —, que podem provocar prejuízos para as tropas de paz
da ONU. Os Estados Unidos querem que seja dado um estatuto especial que proteja
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ou que tire do alcance da jurisdição do Tribunal os seus soldados que fazem parte
das tropas de paz das Nações Unidas.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Obrigado, professor.
A Comissão de Relações Exteriores recebeu informações de que a Câmara
dos Deputados dos Estados Unidos teria aprovado projeto de lei — não sei se já em
caráter terminativo — que diz que os Estados Unidos usarão da força em qualquer
circunstância para impedir que qualquer cidadão americano seja submetido ao
Tribunal Penal Internacional. Essa foi a resposta legislativa mais imediata adotada
em relação à iniciativa do TPI.
Concedo a palavra ao Embaixador Araújo Castro.
O SR. LUIZ AUGUSTO DE ARAÚJO CASTRO – Sobre esse mesmo ponto,
efetivamente, o Presidente Bush assinou, na semana passada, uma lei que se
chama American Service Members Protection Act, a lei de proteção ao militar
americano, exatamente sobre isso. Ela contém uma cláusula que está causando
grande constrangimento, inclusive na Europa, porque autoriza o presidente dos
Estados Unidos a usar todos os meios necessários e apropriados para resgatar
qualquer norte-americano que venha a ser detido pelo Tribunal Penal Internacional
ou em nome desse Tribunal.
Estou citando a lei oficialmente adotada com o título de Ato de Proteção do
Militar Norte-Americano, que a imprensa americana ironicamente está definindo
como a lei de invasão da Holanda — obviamente não é o caso —, porque está
causando certo constrangimento entre os países que são parte do Tribunal, que tem
inclusive o próprio governo holandês como sede.
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Estou com uma pergunta aqui. Quais são as condições para um país tornar-
se membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas? Por que
países como Japão e Brasil, tão ativos, não são ainda membros permanentes do
Conselho?
Eles ainda não são membros permanentes do Conselho porque o processo é
longo. A idéia foi lançada inicialmente no final da década de 80. O Presidente
Sarney, no último discurso que fez no plenário da Assembléia Geral das Nações
Unidas, já lançava a idéia de que era preciso ampliar o número de membros
permanentes do Conselho de Segurança e que o Brasil se achava em condições de
ser um desses membros. Foi a primeira vez que o tema foi mencionado formalmente
em um discurso, em um debate no plenário das Nações Unidas. Em 1993, foi criado
um grupo de trabalho da Assembléia Geral das Nações Unidas, que está há nove
anos discutindo essa questão.
Há basicamente dois grupos de países: o dos que são a favor da ampliação e
encontram diferentes fórmulas, buscam saber quantos países seriam. O Conselho
hoje tem 15 membros. Fala-se que a solução mais viável seria ampliá-lo para 24 ou
25 membros, que incluiria cinco ou seis novos membros permanentes e o resto seria
de novos membros não-permanentes, para dar oportunidade a quem não entrar
como membro permanente de poder concorrer — como o Brasil tem feito até hoje —
a um desses assentos não-permanentes. Há clara idéia de que essa ampliação deve
incluir um ou dois nomes e sobrenomes de países altamente desenvolvidos — fala-
se sempre no Japão e na Alemanha — e pelo menos um país da América Latina, da
África e da Ásia. Nada disso está definido. É mais ou menos o entendimento, pois há
dúvida de quantos seriam por região, mas a idéia é essa. E sempre que se fala de
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um país da América Latina, praticamente todos vêem o Brasil como o nome natural
para preencher isso, o que não quer dizer que está todo mundo de acordo. Há
outros países que prefeririam manter essa situação. O outro grupo de países prefere
que não haja nada, que tudo seja mantido como está.
Os próprios cinco membros permanentes do Conselho de Segurança — e é
importante notar que qualquer emenda da Carta depende da sua ratificação por
parte desses cinco países; portanto, eles têm direito de veto, não adianta negociar
um acordo que não será aprovado pelos cinco atuais membros permanentes —, no
início, tinham atitude de que possuíam um privilégio que não estavam dispostos a
diluir atribuindo a outros países, mas, com o passar do tempo, todos evoluíram e
reconhecem que é necessária uma reforma do Conselho de Segurança. Todos
reconhecem que o Conselho precisa ser ampliado, as fórmulas são diferentes.
Dos atuais cinco membros do Conselho, os países que publicamente utilizam
um discurso mais parecido com o brasileiro são a Rússia, o Reino Unido e a França.
Todos dizem o que acabei de dizer: tem de haver novos membros desenvolvidos,
em desenvolvimento, novos não-permanentes, um resultado final mais ou menos por
volta de 24, 25 membros. A China tem sido muito discreta, tem feito poucos
pronunciamentos, é muito cautelosa, tem milênios de prudência e de boa
diplomacia. Respeitamos muito a diplomacia chinesa nesse e em vários campos,
mas temos um diálogo constante com eles.
E os Estados Unidos, que tinham inicialmente um pouco a atitude de que já
que está funcionando, melhor não mudar, às vezes, dão a indicação de que estariam
dispostos a flexibilizar sua posição.
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Para o caso do Brasil, é importante lembrar que em janeiro deste ano, quando
o Presidente Fernando Henrique esteve em Moscou, assinou com o Presidente
Vladimir Putin uma declaração conjunta, na qual o Governo russo dá seu respaldo
ao Brasil como um novo membro permanente do Conselho de Segurança. Em
março ou abril, quando esteve aqui o Chanceler Schröeder, da Alemanha, assinou
com o Presidente da República um documento, um plano de ação, no qual os dois
países, que são candidatos, respaldam-se reciprocamente. Quer dizer, a Alemanha
apóia o Brasil e o Brasil apóia a Alemanha. São evoluções recentes.
Reconhecemos que o processo é difícil e um pouco complicado,
principalmente após o atentado de 11 de setembro, que criou novas prioridades,
novas realidades na agenda internacional, retirando esse tema da primeira fileira das
grandes preocupações nessa área, mas continua a deliberação. Há algumas idéias.
Os japoneses têm falado na possibilidade de se fazer, em 2003, uma grande
reunião, talvez em âmbito ministerial, para tentar dar impulso ao processo decisório.
Muito obrigado.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Não havendo mais perguntas,
renovo os agradecimentos ao Prof. Antônio Celso Alves Pereira e ao Embaixador
Araújo Castro pelas exposições que fizeram em nosso seminário, bem como a todos
os presentes.
Convido todos a participar da reunião de amanhã, a partir das 9h, com o
tema: “Perspectivas das Relações do Brasil com os Estados Unidos e os Países do
NAFTA”, que contará com a presença dos Embaixadores Samuel Pinheiro
Guimarães e Clodoaldo Hugueney.
Nossos trabalhos serão realizados no Auditório nº 2.
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Relação Exteriores e de Defesa Nacional - SeminárioNúmero: 0738/02 Data: 13/8/2002
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Até amanhã e muito obrigado.
Está encerrada a presente reunião. (Palmas.)