Post on 29-Nov-2018
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
DOUTORADO EM EDUCAO
IZAR MLLER BEHS
(DES)CONEXES NA EDUCAO PARA A SADE
INTEGRAL: UM ESTUDO DE CASO COM CATADORES DE UMA
COOPERATIVA
Porto Alegre
2014
IZAR MLLER BEHS
(DES)CONEXES NA EDUCAO PARA A SADE INTEGRAL: UM
ESTUDO DE CASO COM CATADORES DE UMA COOPERATIVA
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor, pelo Programa de Ps-Graduao em Educao da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.
Orientadora: Profa. Dra. Leda Lsia Franciosi Portal
Porto Alegre, 2014
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
B421d Behs, Izar Mller (Des)conexes na educao para a sade integral : um
estudo de caso com catadores de uma cooperativa / Izar Mller Behs. Porto Alegre, 2014.
154 f.
Tese (Doutorado em Educao) Faculdade de Educao, PUCRS.
Orientador: Prof. Dr. Leda Lsia Franciosi Portal.
1. Educao e Sade. 2. Sade Pblica. 3. Sociologia Educacional. I. Portal, Leda Lsia Franciosi. II. Ttulo.
CDD 370.19
Ficha Catalogrfica elaborada por Vanessa Pinent
CRB 10/1297
IZAR MLLER BEHS
(DES)CONEXES NA EDUCAO PARA A SADE INTEGRAL:
UM ESTUDO DE CASO COM CATADORES DE UMA COOPERATIVA
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor, pelo Programa de Ps-Graduao em Educao da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.
Aprovada em 26 fevereiro 2014.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________ Orientador(a): Profa. Dra. Leda Lsia Franciosi Portal PUCRS
_________________________________________________________ Examinador(a): Profa. Dra. Bettina Steren dos Santos PUCRS
_________________________________________________________ Examinador(a): Profa. Dra. Esalba Maria Carvalho Silveira PUCRS
_________________________________________________________ Examinador(a): Prof. Dr. Rogerio Foschiera IFRS
_________________________________________________________ Examinador(a): Profa. Dra. Rosangela Barbiani UNISINOS
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela vida.
A Ivan Cesar Behs, meu esposo, por sua constante presena,
companheirismo e cumplicidade.
Aos catadores, pela acolhida, pela oportunidade de ouvir as suas
experincias e pelo enriquecimento que deram a este trabalho.
Aos professores do Programa de Ps-Graduao da Pontifcia Universidade
Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS), que contriburam para que este estudo
fosse uma realidade.
AGRADECIMENTO ESPECIAL
Professora Leda Lsia Franciosi Portal, pela amizade, pelos
aconselhamentos e, sobretudo, pelos conhecimentos socializados durante a nossa
convivncia.
RESUMO
Este estudo caracterizou-se por uma abordagem investigativa estudo de
caso vinculado linha de pesquisa Pessoa e Educao do Programa de Ps-
Graduao na Educao da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Com o objetivo de compreender as condies de trabalho dos catadores
de uma cooperativa de triagem de lixo reciclvel, situada na cidade de Canoas, no
Estado do Rio Grande do Sul, e a sua relao com a educao para sade integral,
os sujeitos da pesquisa foram observados e entrevistados. A pesquisa obedeceu ao
princpio da triangulao de evidncias, e os dados foram coletados por meio da
observao participante com registro, em dirio de campo, de entrevistas individuais
semiestruturadas e da aplicao de um questionrio socioeconmico, bem como de
uma sesso de grupo focal. Para a organizao e a anlise dos dados, foram
utilizadas duas estratgias: a primeira, mais restrita e de carter quantitativo, teve
como objetivo a organizao estatstica dos dados obtidos pelo questionrio
socioeconmico, a segunda, com objetivos mais amplos, foi de natureza
essencialmente qualitativa e seguiu o mtodo da anlise de contedo de acordo
com Bardin (2008). A decomposio, a estruturao e o entrecruzamento do material
coletado propiciaram o agrupamento das expresses, ideias e falas que foram
classificadas em unidades de significado, surgindo, assim, as quatro categorias
deste estudo: 1) identidade e profisso: que aborda as concepes dos catadores
sobre a sua identidade e profisso; 2) ambiente de trabalho: no qual foram
agrupados termos sobre o enfrentamento do risco e da doena ocupacional, assim
como apresentadas as reflexes acerca das formas de enfrentamento dos riscos, dos
sentimentos de sofrimento e do prazer no ambiente de trabalho; 3) representao da
sade integral: o que os catadores elaboram, a partir das estruturas do corpo e da
mente, das doenas e de seus tratamentos; 4) educao para sade e a diversidade
de espaos: relativo s experincias e vivncias dos catadores que geraram
oportunidades de aprendizado, orientao preventiva e cuidados relacionados
perspectiva da sade integral. Os resultados mostraram que a educao para sade
integral deve ser tratada sob os mais diferentes olhares, seja o da cincia, por meio de
vrias disciplinas; do senso comum; do ponto de vista objetivo ou subjetivo; seja em
abordagens individuais ou coletivas. No mbito da educao, trata-se da valorizao
do saber do outro, entendendo que o conhecimento um processo de construo
coletiva e, no mbito da sade, quando vista no sentido ampliado corpo e alma ,
se apoia na compreenso das necessidades humanas fundamentais, materiais e
espirituais. A educao para sade, considerada como socialmente produzida e
relacionada a um conjunto de valores, passa a exigir uma ao coordenada,
combinada com metodologias de interveno, implicadas com diferentes grupos
sociais. Valorizar a dimenso educativa pode dar um novo sentido ao trabalho do
catador, sua produo e sua prpria vida. Assim, a educao a servio da vida
deve integrar a tica da solidariedade e integridade da pessoa.
Palavras-chave: Educao para sade. Educao social. Integralidade do catador.
Sade integral.
ABSTRACT
The current research is characterized by an investigative approach a case
study that is part of the research line Person and Education of the Post-Graduation
Program in Education of Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Aiming to understand the conditions of the garbage collectors work in a
sorting cooperative of inorganic garbage, located in Canoas City, in the Rio Grande
do Sul State, and its relation to the integral health education, the subjects of the
study were observed and interviewed. The study followed the principle of
triangulation of evidences, data were collected through a participant observation, as
well as individual semi-structured interviews were recorded in a field diary, and a
social economic questionnaire, and a focus group session were applied. In order to
organize and analyze data, two strategies were used: the first, that is more restrict
and has a quantitative feature, aimed the statistical organization of data, which were
collected through social and economic questionnaire; and the second, whose
objectives are broader, is particularly qualitative, and the content analysis was used
accordingly to Bardin (2008). Decomposition, structuring, and interweaving of the
collected material enable the expression, idea and statement grouping, that were
classified in meaning units, so that four categories emerged in the current study: 1)
identity and occupation: focusing on the garbage collectors conception related to
their identity and occupation; 2) work environment: in which many words were
grouped, related to coping the risk and the occupational diseases, as well as to the
presentation of the reflections associated to the way they face risks and also the
feelings of pain and pleasure in the work environment; 3) representation of integral
health: the ideas that garbage collectors create about mental and body structures, as
well as diseases and their treatments; 4) health education and diversity of spaces:
they are related to the garbage collectors experiences that trigger learning
opportunities, preventive orientation and care, considering integral health
perspective. The results showed that education for integral health has to be treated
from different perspectives, that can be science, through many subjects; common
sense; from objective and subjective views; and in individual and collective approach.
Regarding to education, the focus is on how to value the knowledge of the other
person, comprehending that knowledge is a process of collective construction and,
taking into account health, when it is analyzed in a broader sense body and soul
its basis is on the understanding of human beings fundamental, material and spiritual
needs. Health education, considered as socially produced and associated to a set of
values, requires a coordinated action, in combination with intervention
methodologies, which are related to different social groups. The valorization of
education can produce a new perspective to the garbage collectors, to their
production and their own lives. Thus, education for life should integrate the persons
solidary and integrality ethic.
Key-words: Health education. Social education. Garbage collectors integrality.
Integral health.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Dimenses da sade integral ................................................................... 41
Figura 2 - Esquema grfico do estudo ..................................................................... 59
Figura 3 - Regies do municpio de Canoas/RS ...................................................... 62
Figura 4 - Populao por quadrante municpio de Canoas/RS ............................. 63
Figura 5 - Entrada do bairro Guajuviras ................................................................... 63
Figura 6 - Nmero de responsveis pelos domiclios com renda at 1/2 salrio mnimo ..................................................................................................... 64
Figura 7 - Nego, o recepcionista .......................................................................... 78
Figura 8 - Enfeites decorativos ................................................................................. 80
Figura 9 - Avaliao da oferta de escolas pblicas na vizinhana por bairros e total de Canoas ........................................................................................ 88
Figura 10 - Avaliao da oferta de servios pblicos de sade na vizinhana por bairros e total de Canoas ........................................................................ 89
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Referenciais de interveno educativa para sade ................................ 31
Quadro 2 - Comparativo entre o referencial curativo e o emancipador .................... 32
Quadro 3 - Categorias e subcategorias de anlise .................................................. 77
Quadro 4 - Identidade e profisso ............................................................................ 91
Quadro 5 - Ambiente de trabalho ............................................................................. 97
Quadro 6 - Representao da sade integral......................................................... 106
Quadro 7 - Educao para sade e a diversidade de espaos .............................. 117
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Caracterizao dos sujeitos .................................................................... 74
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
AIDS Sndrome de Deficincia Imunolgica Adquirida
C - Catador
CBO Classificao Brasileira de Ocupaes
CLT Consolidao das Leis do Trabalho
DVD Digital Versatile Disc/Disco Digital Verstil
EPI Equipamentos de Proteo Individual
FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador
FEE Fundao de Economia e Estatstica
HPS Hospital de Pronto Socorro
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
INSS Ministrio da Previdncia Social
MNCR Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reciclveis
OMS Organizao Mundial de Sade
ONG Organizao no Governamental
PAC2 Programa de Acelerao do Crescimento
PETI Programa de Erradicao do Trabalho Infantil
PNSB Pesquisa Nacional de Saneamento Bsico
PRONASCI Programa Nacional de Segurana com Cidadania
PUCRS Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul
REFAP Refinaria Alberto Pasqualini
RS Rio Grande do Sul
SUS Sistema nico de Sade
UNICEF United Nations Childrens Fund/Fundo das Naes Unidas para Infncia
UPA Unidade de Pronto Atendimento
SUMRIO
1 INTRODUO ...................................................................................................... 15
2 FUNDAMENTAO TERICA ............................................................................ 19
2.1 EDUCAO PARA SADE ............................................................................... 19
2.1.1 Educao e sade: duas reas, uma associao ....................................... 19
2.1.2 Referenciais que educam para sade ......................................................... 28
2.1.3 A construo da abordagem integradora ................................................... 34
2.2 O CATADOR: SEU TRABALHO E SUA SADE ............................................... 44
2.2.1 Catador: quem esse trabalhador? ............................................................ 44
2.2.2 A sade do catador na atividade da unidade de triagem ........................... 48
3 MARCO METODOLGICO .................................................................................. 56
3.1 OBJETIVOS ....................................................................................................... 56
3.1.1 Objetivo geral ................................................................................................ 56
3.1.2 Objetivos especficos .................................................................................... 56
3.2 CARACTERISTICAS DO ESTUDO ................................................................... 56
3.3 CENRIO DO CASO.......................................................................................... 59
3.4 SUJEITOS DO ESTUDO .................................................................................... 65
3.5 OBTENO DOS DADOS ................................................................................. 66
3.6 PROCEDIMENTO DE ANLISE DOS DADOS .................................................. 73
4 RESULTADOS E ANLISE .................................................................................. 78
4.1 NOTAS SOBRE O OLHAR E A SUA PECULIARIDADE NO ESTUDO ............. 78
4.1.1 O discurso dos sujeitos ................................................................................ 82
4.2 PERFIL SOCIOECONMICO ............................................................................ 84
4.3 CATEGORIAS: ANLISE DOS DISCURSOS .................................................... 91
4.3.1 Identidade e profisso .................................................................................. 91
4.3.2 Ambiente de trabalho .................................................................................... 97
4.3.3 Representao da sade integral .............................................................. 105
4.3.4 Educao para sade e a diversidade de espaos .................................. 117
5 CONCLUSO: EDUCAO PARA SADE INTEGRAL COMO EFEITO TRANSFORMADOR ........................................................................................... 123
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5.1 SNTESE DOS RESULTADOS ........................................................................ 123
5.2 RELEVNCIA DO ESTUDO: CONTRIBUIO NA CONSTRUO DE UMA PROPOSTA EDUCATIVA PARA SADE INTEGRAL ............................ 125
5.3 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................. 129
REFERNCIAS ...................................................................................................... 132
APNDICE A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ......................... 141
APNDICE B - Termo de Autorizao de Uso de Imagem ................................ 142
APNDICE C - Entrevista Semiestruturada ........................................................ 143
APNDICE D - Levantamento Socioeconmico ................................................ 144
APNDICE E - Roteiro das Questes Provocadoras na Conduo do Grupo Focal ............................................................................................. 153
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1 INTRODUO
Este estudo est vinculado linha de pesquisa Pessoa e Educao do
Programa de Ps-Graduao na Educao da Pontifcia Universidade Catlica do
Rio Grande do Sul (PUCRS) (2012)1, na qual
estuda-se a educao como um processo amplo, implicado o desenvolvimento, a formao e a autoformao da pessoa, destacando seus entrelaamentos com a sade, a espiritualidade, as histrias de vida. Acolhe estudos e pesquisas interdisciplinares que potencializam a dimenso pedaggica da experincia humana em suas interaes com os aspectos biolgicos, psicossociais, biogrficos, culturais dos sujeitos e das subjetividades na sociedade contempornea.
A temtica investigativa focaliza a educao para sade integral em um
contexto organizacional, em situao de vulnerabilidade social. A gnese do
interesse por tal temtica est relacionada trajetria de vida da pesquisadora,
compreendida no entrecruzamento entre o seu ser pessoal e profissional.
A formao de enfermeira permitiu a ela viver dois momentos bem definidos:
o primeiro, bastante natural para quem fez a opo por esta profisso, na qual
atuava como ator assistencial e entendia a prtica como dever da funo. Naquele
momento, no considerava o aprendizado e o desenvolvimento interpessoal como
uma oportunidade de evoluo e, com isto, no tinha interesse pelo global, mas, sim,
pela tarefa. O segundo, de amor e, por que no dizer, de paixo pela profisso
escolhida. Nesse segundo momento, foram traadas metas para a evoluo
profissional: a proposta era fazer a diferena.
Nas metas traadas, o objetivo estava muito claro: trabalhar com pessoas
de maneira que pudesse entrelaar sade e educao. Na atuao com pessoas,
um dos atributos de maior valor a tica, mais do que isto, ao demonstrar atitudes
de proteo criao de vnculos, desenvolve-se a sensibilidade e a ampliao do
entendimento de que cada pessoa um ser nico e individual.
1 PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL (PUCRS). Disponvel em: . Acesso em: 17 dez. 2012.
http://www3.pucrs.br/portal/page/portal/facedppg/ppge
16
Na atuao como primeira enfermeira, leiga de um hospital gerido por uma
entidade de confisso religiosa, a pesquisadora, na funo de supervisora noturna e
com a vontade de crescer, buscou novas oportunidades de trabalho. Dois anos
aps, contratada por um hospital referncia na capital e com inquietude por saber
mais, cursou a especializao em Administrao dos Servios de Enfermagem.
A experincia de aliar a educao formal com a prtica do dia a dia em um
ambiente, onde as relaes eram intensas sob todos os aspectos, mas
principalmente, nas relaes de poder e de sentimentos que envolviam vida e morte,
reforou o seu interesse pelas pessoas.
Nessa oportunidade, foram aprofundados os estudos sobre o cuidado
humano e a assistncia integral, os quais foram incorporados, gradualmente, nas
atitudes e na prtica diria, dimenses de valor, percebidas como comprometimento,
tica e espiritualidade. De tal forma, foi desenvolvido um melhor entendimento sobre
a pessoa, a partir do qual se compreendeu que a confiana, a segurana, o respeito,
o acolhimento, a ateno e a sensibilidade so elementos essenciais nas relaes,
quando se atua com educao e sade.
Nessa configurao, a pesquisadora evoluiu por meio do conhecimento
tcnico, da capacidade de liderar pessoas, de tomar decises e de propor
mudanas. Tal dinmica favoreceu o seu crescimento pessoal e profissional,
possibilitando, assim, a ascenso do cargo de supervisor para gerente, e, deste,
para o de superintendente. A posio de gerente exigiu conhecimento na rea
administrativa, o que a levou ao aprofundamento na educao formal, optando pelo
Curso de Mestrado em Administrao.
A titulao e a vivncia hospitalar proporcionaram a participao em um
projeto para a implantao dos cursos da rea da sade em um Centro Universitrio
da regio metropolitana de Porto Alegre. Com a rotina e o acmulo de atividades,
pelo menos, por doze horas dirias de trabalho, que eram cumpridas regularmente,
inclusive aos sbados, constituiu-se uma experincia cansativa, mas que lhe
proporcionava muito prazer e muitas convivncias satisfatrias. O cansao venceu, e
a qualidade de vida, que j era questionvel, influenciou a opo pela academia.
17
Ento, o convite para ser pr-reitora comunitria trouxe o desafio em primeiro lugar,
de poder optar por um caminho, em segundo, de poder trabalhar em uma rea
desafiadora, a rea da educao superior.
Em 2010, um novo desafio se estabeleceu: desenvolver um projeto inovador
na rea das Tecnologias Sociais. Inicialmente, a proposta era assustadora e, de
imediato, surgiu a pergunta: Em que uma enfermeira, professora, capacitada para
gesto, pode contribuir? Aos poucos, depois de muita leitura e estudo, veio o
entendimento de que havia chegado a hora de fazer a diferena, ou seja, a
oportunidade de harmonizar, em uma s prtica, educao e sade.
Poder contribuir para a qualidade de vida das pessoas, para o bem-estar
fsico e o desenvolvimento humano, permitiu a aproximao com os catadores2.
No entrelaamento das reas de educao e sade, surge, portanto, o
problema desta pesquisa: Como se configuram as condies de trabalho dos
catadores no ambiente de uma cooperativa, na perspectiva de uma educao para a
sade integral?
Desta forma, esta tese foi construda a partir da observao dos catadores de
uma cooperativa de catadores de lixo na cidade de Canoas/RS. A observao teve
como base a crena de que a educao para sade desempenha um papel
importante na esfera social da comunidade e possibilita pessoa adotar
comportamentos saudveis e preventivos, desde que respeitadas as crenas, o
estilo de vida e o ponto de vista dos membros dessa comunidade.
A hiptese inicial de que a sade integral do catador, quando relacionada ao
seu ambiente e s condies de trabalho, melhoraria, se, nas oportunidades de
(re)conduzir sade esses sujeitos tivessem contato com um referencial de
educao para sade, baseado em suas prprias experincias.
2 A categoria profissional catador de material de reciclvel foi includa na Classificao Brasileira de Ocupaes (CBO), sob Cdigo 5192-05, podendo aquele tambm ser denominado catador de ferro-velho, catador de papel e papelo, catador de sucata, catador de vasi lhame, enfardador de sucata (cooperativa), separador de sucata (cooperativa) e triador de sucata (cooperativa). (ZANIN, 2011, p. 367).
18
Essa introduo, por conseguinte, consiste na primeira parte desta
investigao. A segunda a fundamentao terica, que contm dois captulos de
reviso de literatura, destinados compreenso do contexto e do objeto deste
estudo: o primeiro, dedicado inter-relao da educao e sade e ao conceito de
educao para sade na abordagem integradora; o segundo, dissertando sobre o
catador e o seu espao de trabalho.
A terceira parte o marco metodolgico, no qual se descrevem os objetivos,
as caractersticas gerais do estudo e do caso estudado, os sujeitos do estudo, as
tcnicas e os instrumentos para coleta de dados e, por fim, as estratgias utilizadas
para a organizao, a anlise e a interpretao dos resultados.
A quarta parte composta por trs sees: a primeira, que abrange uma
descrio do caso, a partir da observao participante no ambiente da Cooperativa
unidade de triagem das atividades do catador e dos seus discursos; a segunda
que apresenta o perfil socioeconmico dos catadores; e a terceira se dedica a
analisar os discursos, a partir das categorias: identidade e profisso, ambiente de
trabalho, representao da sade integral e educao para sade, bem como
diversidade de espaos.
Por fim, a quinta parte faz um exerccio de sntese dos resultados da
pesquisa, reflete sobre a relevncia do estudo e a sua contribuio na construo de
proposta educativa para sade integral, evoluindo para o fechamento com os
comentrios finais e a concluso do trabalho.
19
2 FUNDAMENTAO TERICA
2.1 EDUCAO PARA SADE
Este captulo dissertar sobre o que associa, em sua prpria denominao, o
campo da educao e da sade, contexto no qual emergiram a multidisciplinaridade
dos programas de educao para sade e a evoluo para uma abordagem
integradora.
2.1.1 Educao e sade: duas reas, uma associao
Abordar a temtica educao para sade passa pela contextualizao da
educao para sade, como promoo para sade, e sade, como qualidade ou
estado pessoal, apoiado pelo conceito amplo da Organizao Mundial de Sade
(OMS, 1946), no qual a sade considerada um estado de completo bem-estar
fsico, mental e social e no, apenas a ausncia da doena ou enfermidade. Desta
forma, o foco exclusivo na doena, que sempre dominou a pesquisa na rea da
sade, vem cedendo espao ao estudo das caractersticas adaptativas, como
resilincia, esperana, sabedoria, criatividade, coragem, espiritualidade e crenas
pessoais que no so temas alheios ao conceito de sade integral, sendo, na
verdade, uma de suas dimenses.
Crema (1995, p. 107) resume sade como:
[...] a condio natural da humanidade. Significa estar em harmonia com ns mesmos e com o nosso universo. Quando em harmonia, sentimo-nos mais dispostos, alegres e sadios. Se no reconhecermos esse estado, preciso que faamos. esse o sentido da cura. Quanto maior a nossa capacidade de alinhamento com que o somos, mais saudveis seremos.
Nesta perspectiva, para Garcia (2000), a sade est relacionada qualidade
de vida, e o bem- estar a consequncia da relao entre as condies objetivas de
vida e certas variveis mais subjetivas e pessoais, que tm como resultado
determinado ndice de satisfao dos indivduos. Assim, sade, na perspectiva da
qualidade de vida, um conceito que inclui todos os aspectos de vida dos
indivduos, tais como: sade, famlia, trabalho, habitao, situao financeira,
20
oportunidades educativas, autoestima, criatividade, competncia e sentimento de
pertena.
Garcia (2000, p. 36), quando trata dos conceitos e das definies de
educao para sade, define qualidade de vida como:
La percepcin que un individuo tiene de su lugar en la existencia, en el contexto de la cultura y del sistema de valores en los que vive y en relacin com sus objetivos, sus expectativas, sus normas, sus inquietudes. Se trata de un concepto muy amplio que est influenciado de modo complejo por la salud fsica del sujeto, su estado psicolgico, su nivel de independencia, sus relaciones sociales, asi como su relacin com ls elementos esenciales de su entorno.
Por sua vez, bem-estar um conceito subjetivo, definido pela comparao
com o mal-estar, e influenciado pelos padres individuais e pelos padres de bem-
estar da comunidade, na qual o indivduo est inserido. Segundo Almeida Filho
(2011), conceitos de sade, como valor em si, na perspectiva de estado ou
situao altamente desejvel para o ser humano, tem sido criticado por alguns
autores, devido ao seu carter idealista ou utpico.
Como Boff (2007) destaca, os movimentos ecolgicos alertam que dar valor
sade nem sempre ajuda a orientar as pessoas e aos grupos na tomada de deciso
quanto s suas vidas e, por muitas vezes, nos coloca perante a nossa
responsabilidade individual e coletiva na destruio de grande parte do nosso
habitat. O autor segue dizendo que, sendo os humanos a espcie da racionalidade,
somos simultaneamente uma das espcies mais vulnerveis, sobretudo, pela nossa
enorme capacidade afetiva.
Neste sentido, Pelizzoli (2010) diz que no podemos reduzir a
complexidade do humano a uma leitura objetiva da vida, negligenciando os
fatores emocionais, psicolgicos, culturais, simblicos e mgicos que interferem
na existncia humana. Assim, toda inovao tecnolgica que no considere esse
carter de integralidade congnita da vida humana reducionista e limitada. Com
isto, segue explicando o autor que urge a construo de formas de educao
para sade que tm como objetivo o equilbrio e a autorregulao da vida. Crema
(1995, p. 107) refora esse entendimento, quando diz que a educao provm do
21
latim educare, significando trazer para fora a sabedoria inerente ao indivduo:
atualizar o seu potencial inato.
Assinala-se, portanto, que no h como educar para sade sem valorizar
atitudes individuais e coletivas. Conforme Garcia (2000), a generalizao de
comportamentos no saudveis parte do princpio de no nascemos para ter esses
comportamentos, quando se trata da sade individual. Os referidos comportamentos
so produzidos, porque se trata, em primeiro lugar, de um comportamento
aprendido. O autor ainda enfatiza que, se podemos aprender comportamentos no
saudveis, do mesmo modo, poderemos aprender comportamentos saudveis.
Sampaio (2004) e Garcia (2000) se complementam, quando o primeiro
defende a posio de que a pauta do educador deve passar do mundo artificial para
o mundo das necessidades humanas e ainda refora que os problemas humanos
no se resolvem no nvel da racionalidade, mas, no nvel afetivo. O segundo autor
supracitado complementa, ensinando que, desenvolvendo estilos de vida saudveis,
os indivduos podem se transformar em poderosos agentes primrios de educao
para sade em seu ambiente de trabalho, em sua famlia, em sua comunidade, entre
outros, contribuindo, assim, por meio de seus exemplos, para que outros membros
da comunidade aprendam comportamentos que favoream a sade em sua
integralidade.
Neste contexto, Garcia (2000, p. 43) assinala que
El educador para la salud se transforma, asi, en un facilitador de elementos cognitivos y de instrumentos para la accin de los individuos y grupos, para que stos determinen por si mismos si cambiam o no sus pautas de conducta y ls determinantes ambientales em relacin a la mejora de su salud.
Um indivduo, autoeducado para sade, apresenta, como primeira
caracterstica, o tipo de pessoa conhecedora e no ignorante, e, como segunda, a
de uma pessoa sensvel, atenta s alteraes que o meio ambiente propicia, bem
como a sua dinmica, como sujeito de uma informao e uma educao
(MOSQUERA; STOBUS, 1983).
22
Com isto, o conceito de educao para sade tem adquirido conotaes
diversas que partiram de construes sobre os significados da natureza do corpo e de
suas funes, bem da estrutura sobre as relaes corpo-esprito e pessoa-ambiente.
A fim de converter os programas de educao para sade em um dos
principais instrumentos de formao de hbitos e comportamentos saudveis, a
posio pedaggica de Sampaio (2004, p. 47) contribui para isto, quando diz que
[...] preciso desenvolver a autoconscincia para que cada indivduo assuma o comando da prpria vida com responsabilidade espiritual e divina. E esse processo se d na integrao do homem com os nveis fsico, emocional, mental e espiritual [...].
Segundo Garcia (2000), o conceito mais atual de educao para sade
descrito por Tones (1994), no qual incorpora, implcita e explicitamente, muitos
fatores que influenciam a tomada de deciso que vo alm da socializao do
conhecimento e do apoio a um conjunto de aes para mudana de atitudes,
trabalhando as convices pessoais, as crenas e os valores individuais.
Tones (1994 apud GARCIA, 2000, p. 38):
La educacin para salud es toda actividad libremente elegida que participa en un aprendizaje de la salud o de la enfermedad, es decir, en un cambio relativamente permanente de las disposiciones o de las capacidades del sujeto. Uma educacin para la salud, eficaz, puede as producir cambios a nivel de los conicimientos, de la comprensin e de las maneras de pensar; puede o clarificar los valores; puede determinar cambios de actitudes y de creencias; puede facilitar la adquisicin de competencias; incluso puede producir cambios de comportamientos o de modos de vida.
Para escapar dos impasses conceituais, ao atribuir valor ao conceito de
educao para sade, nos defrontamos, de imediato, com a questo da distribuio
desigual de renda e, muitas vezes, perversa na sociedade capitalista.
Almeida Filho (2011, p. 90), neste contexto, explica que:
Vida longeva e plena, com qualidade e desempenho, produtividade e satisfao, representa o ideal platnico de sade como valor social e poltico que, numa sociedade estruturalmente desigual e injusta, implicaria disparidades de acesso, distribuio e controle de recursos, bens e servios.
23
Conforme Barata (2009), a posio social dos indivduos e grupos sociais,
medida por indicadores de classe social, a partir das condies de vida ou dos
determinados espaos geogrficos, um poderoso determinante do estado de
sade das populaes. A autora ensina que estudos, que buscam explorar a relao
entre o nvel de riqueza, a distribuio de renda e a satisfao com a vida ou o bem-
estar, mostram que, embora o nvel geral de satisfao e bem-estar aumente com o
crescimento do nvel de riqueza do pas, para o mesmo nvel de riqueza, a
satisfao e o bem-estar so maiores nos pases que apresentam menor
desigualdade na distribuio de renda.
Indicadores econmicos, sociodemogrficos, isolados ou combinados, podem
revelar medidas objetivas da realidade concreta do bem-estar ou da integralidade da
sade de um indivduo, de um determinado grupo, comunidade ou nao,
apresentando um diagnstico de suas condies de vida. Porm, ser que nos basta
o conhecimento desses indicadores objetivos situacionais? Ou, alm deles, nos
interessa entrar em contato com as percepes e os pensamentos das pessoas,
envolvendo uma srie de fatores psicolgicos, as suas avaliaes subjetivas,
atribuies e significados, bem como as crenas e os julgamentos acerca dos mais
variados componentes e contedos dos inmeros domnios da vida?
Eco (2001) considera que os parmetros desses julgamentos dependem de
nossas razes, de nossas preferncias, de nossos hbitos, de nossos afetos e
experincias. De acordo com o pesquisador, existe a crena de que o
desenvolvimento tecnolgico, a expanso dos contedos e a rapidez dos transportes
seriam um valor. Neste sentido, a globalizao uma fase capitalista, na qual se
busca uma racionalizao global, inclusive, dos padres culturais, e tais padres
culturais mundializados no podem ser apreendidos, em funo dos bens sociais
concretos.
Essa racionalizao exclusiva impede que aqueles que educam para sade,
muitas vezes, manipulem o seu espao e, tambm, favoream novas formas de
pensar o conhecimento. Nesta perspectiva, o ato de educar para a sade fica
fragilizado, no intuito de abrir caminhos para alternativas condizentes com o seu
conceito contemporneo, j que a definio que cada indivduo tem sobre sade
24
influencia no s na perspectiva sobre educao para sade, mas tambm, na forma
como nos envolvemos nas prticas nesse campo. Conforme Garcia (2000), ao
assumirem essa questo, os educadores para sade devem desenvolver as
estratgias pedaggicas mais adequadas para os programas de educao para
sade, levando em considerao o meio sociocomunitrio em que o indivduo est
inserido e os princpios bsicos para uma interveno socioeducativa democrtica e
respeitosa. Desta forma, de acordo com o autor, os educadores para sade
colaborariam com as comunidades, favorecendo o seu desenvolvimento no
encaminhamento das mudanas nas condies sociais, polticas, econmicas e de
meio ambiente e, consequentemente, do bem-estar individual e coletivo.
Para Sampaio (2010, p. 23),
as ideologias que dominam o planeta, decorrentes de todo o processo da inconscincia humana, desumanizao e fragmentao esto voltadas para as questes externas materiais, econmicas, de domnio e competio, sem levar em considerao o respeito pela vida, pela natureza, pela dignidade do ser humano.
Freire (2001), neste contexto, afirma que a racionalidade faz parte de um
contexto dito moderno, mas isto no significa menosprezar a formao de um
sujeito-no-mundo que se sinta responsvel por si prprio perante a sociedade.
Uma viso dinmica a respeito do contexto social e ambiental fundamental
na educao para sade, visto que se torna importante serem analisados os
determinantes de sade e da doena nos indivduos e comunidades. Nesta linha, a
Organizao Mundial de Sade (OMS) (1978, p. 62) afirma que
ainda h muito que avanar para conseguir compreender as relaes entre sade e os componentes de estilos de vida especficos. Numerosos estilos favorecem a sade, desenvolvem o bem-estar fsico e mental e protegem o indivduo do stress. Outros englobam comportamentos que podem ser prejudiciais sade.
A OMS adotou um conjunto de metas que tem como finalidade proporcionar a
todos os habitantes um nvel saudvel, que lhes permita uma vida social e
economicamente produtiva, e, dentre as estratgias, a educao para sade se
destaca. Cabe a reflexo que o fator de melhoria do bem-estar fsico dos indivduos,
25
das comunidades e, por conseguinte, do nvel de sade integral, a sade.
Contudo, interroga-se sobre o tipo de educao que permite alcanar um bom nvel
de sade integral.
Assim, o que precisa ser resgatado, neste contexto, a emergncia do
homem ser o sujeito de sua prpria educao, e, neste sentido, o foco integral nutre-
se, fundamentalmente, das teorias da Psicologia Cognitivista, Humanista e do
modelo dialgico de Paulo Freire. Freire (1979, p. 30), diz que, quando o homem
compreende a sua realidade, pode levantar hipteses sobre o desafio dessa
realidade e procurar solues para ela.
Seguindo o pensamento de Freire (1979), neste enfoque, preciso associar a
ideia de sujeito inseparvel das relaes sociais, conforme esclarece Sampaio
(2010), ao risco de erro e iluso. Desta forma, os diversos nveis educacionais
precisam trabalhar pela sustentabilidade social do planeta e a integrao do ser
humano consigo mesmo e com o pensar-sentir-agir.
Qualquer ao, no sentido de trabalhar hbitos de sade e estilo de vida,
implica mudana individual e comunitria. Quando somente o aspecto individual
trabalhado, raramente, ocorre uma resposta positiva da pessoa. A educao para
sade deve, desta forma, estabelecer uma ligao com a histria de vida das
pessoas, as suas crenas, os seus valores e relacionamentos, enfim, tudo que as
rodeia.
Freire (2001, p. 61) pergunta e, ao mesmo tempo responde: Como chegar a
isto? Utilizando um mtodo ativo de educao, um mtodo de dilogo crtico e que
convide crtica modificando o contedo dos programas [...].
Seguindo uma lgica semelhante, Sampaio (2010) acredita que a integrao
do educador e do educando favorece a fora que impulsiona o ser humano para
uma nova ordem social. Essa simbiose deve permear as aes de quem educa para
a sade, e este educar deve considerar o essencial e reconhecer a formao da
cultura e de novas relaes sociais. O prprio processo educativo, portanto, conduz
sade do homem, o qual se insere, tambm, no seu projeto de vida. A educao
26
v-se como uma das melhores formas, para elevar a qualidade de vida e o nvel de
sade das pessoas. Ento, o papel do educador criar condies, para que o
homem possa desenvolver as suas capacidades.
Ao desenvolver suas capacidades, conforme Freire (2001, p. 42),
[...] o homem se cria, se realiza como sujeito, porque esta resposta exige dele reflexo, crtica, inveno, eleio, deciso, organizao, ao [...] todas essas coisas pelas quais se cria a pessoa e que fazem dela um ser ou no somente adaptado realidade aos outros, mas integrado.
Entendemos que a educao um processo dinmico e que, concretamente
na educao para sade, tal caracterstica busca ensinar o homem a pensar e
decidir por si mesmo perante situaes e momentos da sua vida individual e coletiva.
A educao para sade deve, pois, constituir um processo interativo, reconhecido e
aceito pela comunidade, e adquirir uma postura de participao ativa e de parceria.
Educar pessoas para sade criar condies para que elas se transformem,
mostrando-lhes que podem aprender, e se sensibilizem quanto importncia dos
conhecimentos.
Nesta perspectiva, segundo Freire (2001), a cultura uma aquisio
sistemtica da experincia, crtica e criadora e no, uma justaposio de
informaes. O autor segue dizendo que ningum luta contra as foras que no
compreende. Ao contrrio desse entendimento, os anos 80 foram marcados pela
crise do Estado que agravou as desigualdades sociais e acentuou a intensificao
das prticas em educao para sade, guiada por procedimentos preestabelecidos,
estandardizados e derivados, apenas, dos conhecimentos cientficos.
Ainda, nesta perspectiva, temos de considerar que essas prticas invadem a
vida das pessoas, inclusive, aquilo que considerado sagrado no discurso liberal, a
privacidade dos indivduos, indo de encontro da prtica social de culto democracia.
Assim, devem ser considerados outros espaos de cidadania, com novas
prticas em educao para sade. Isto, sem dvida, pressuporia novas formas de
participao ou, ainda, para Zanin (2011), pressuporia promover o prolongamento do
27
conceito de cidadania, no sentido de eliminar os mecanismos de excluso ou ainda
de se buscar a combinao de formas individuais com formas coletivas.
Vrias tcnicas podem ser usadas a servio desse processo, porm mais
importante do que o uso das tcnicas o processo em si, ou seja, a possibilidade de
as pessoas manifestarem-se como sujeitos e de sentirem-se capazes de ajudar a
encontrar novas solues ali, onde, muitas vezes, as certezas absolutas tornam-se
obstculos para o desenvolvimento das possibilidades da prpria vida. O alcance de
iniciativas de educao para a sade, orientada de modo a viabilizar aes de sade
integral, sero tanto maiores quanto mais estiveram articuladas, para lidar com a
complexidade e a incerteza.
Parece claro que o fator base do melhoramento dos indivduos, das
comunidades e do seu nvel de sade a educao. No entanto, podemos continuar
interrogando sobre qual o tipo de educao permitir alcanar esses objetivos. Mais
uma vez, Freire (2001) responde essa questo, ao distinguir dois processos
contraditrios de educao: aquele, no qual os homens caminham, no sentido de se
tornarem cada vez mais sujeitos, pessoas, tudo; e aquele, no qual so reduzidos a
se tornar, cada vez mais, objetos, coisas, nada.
Nessa abordagem, percebe-se a complexidade dos tempos atuais. Isto
implica dificuldade de proceder a uma anlise que se volte para a crtica em relao
ao poder institudo, na perspectiva de um envolvimento orgnico. Por isso, adverte
Minayo (2003) que os desafios que nos so colocados exigem que saiamos desse
pndulo de no guiar nem servir. Em vez da distncia crtica, a proximidade crtica;
em vez de compromisso orgnico, o envolvimento livre; e, em vez de serenidade
autocomplacente, a capacidade de espanto e de revolta.
Para a autora, essa a situao complexa que afeta os programas de
educao para a sade. H posies alienadas que defendem que a educao para
a sade deve constituir-se em instrumento no processo de transformao social; h
tambm posies que defendem que a prioridade deve ser a pesquisa bsica e
aplicada. O conhecimento reside, em ltima instncia, no prprio objeto, sendo o
28
papel da cincia descobrir a realidade e produzir um conhecimento verdadeiro sobre
as propriedades do mesmo.
Entrelaando os pensamentos de Freire (2011, 2001, 1979), Minayo (2003) e
Almeida Filho (2011, 2000), podemos entender a prtica da educao para a sade
como um caminho integrador que constitui um espao de reflexo-ao, fundado em
saberes tcnico-cientficos e populares, culturalmente significativos para o exerccio
democrtico, capaz de provocar mudanas individuais e prontido, para atuar na
comunidade, contribuindo, assim, para a transformao social. Seguindo o
pensamento de Freire, o exerccio de uma prtica educativa crtica, como
experincia especificamente humana, constitui uma forma de interveno no mundo,
comprometida com o princpio da democracia que rejeita qualquer forma de
discriminao, dominao e integra uma atitude de inovao e renovao na crena
de que possvel mudar.
Neste sentido, compreendemos a educao para sade, inspirada nos
pensamentos de Freire, coerente e competente, que testemunha o seu gosto pela
vida, a sua esperana em um mundo melhor, que atesta a sua capacidade de luta, o
seu respeito s diferenas da realidade e a maneira consistente com que vive a sua
presena no mundo.
Desta forma, educar para sade estar aberto ao contorno geogrfico, social,
poltico e cultural do indivduo, bem como da comunidade.
2.1.2 Referenciais que educam para sade
Os Programas de Educao para Sade devem ser norteados por desafios
em trs planos que incluem: religar saberes inter-poli-tranculturais (MORIN, 1999),
construir solidariedade e, sobretudo, deixar atravessar os valores que devem ser
dinamizados na prtica.
Ao longo do tempo, a educao para sade trouxe, em sua prtica, uma
influncia de aes multidisciplinares, por muitas vezes, focalizada apenas na parte
doente, esquecendo-se da ideia que o indivduo um todo. O que se busca na
29
proposta da educao para sade integral uma integrao da cincia social com a
cincia da sade, envolvendo profissionais distintos em um trabalho interdisciplinar,
complementar e cooperativo.
Alm disso, destaca-se que uma nova disciplina jamais surge do nada, e ela
passa a se alimentar de outras disciplinas, as chamadas disciplinas me. A
educao para sade, desta forma, situa-se na interseo dos diversos aportes
tericos e prticos que a configuram, e, neste enfoque, est como uma disciplina e
uma prtica profissional ecltica. Sendo assim, recebe ideias, teorias e mtodos,
procedentes de muitas reas do conhecimento, nos quais podemos assinalar a
psicologia, as cincias da sade, a educao e a comunicao que, por sua vez,
possuem suas razes em muitos outros componentes das cincias humanas
(GARCIA, 2000).
A educao para sade associa, em sua denominao, as cincias da
educao e da sade, portanto o desafio de quem educa para sade passa pela
criao de mecanismos, capazes de liderar o processo de modernizao do
conhecimento e resolver os problemas mais simples da maioria da populao. Logo,
o conhecimento passa a ser o elemento imprescindvel para a promoo da sade
integral.
Segundo Freire (1979, 2011), a resposta se possvel comea a ser
articulada, quando se tenta desconstruir o (suposto) saber, para reconstru-lo em
uma perspectiva histrica, transformando o conhecimento em um instrumento que
possa contribuir para a conscincia crtica. Ao objetivar a emancipao dos
indivduos, dos grupos e da sociedade, a educao para sade permite a
contradio e o conflito, sintetizando uma nova prxis integrando a qualidade de
vida aos processos da sociedade. por meio do processo de educao que o ser
humano levado a investir e responder de acordo com a sua cultura ou extrato
social. Assim que ele constri as suas referncias.
Freire (1979, 2001, 2011), ento, defende um modelo educativo, no qual as
pessoas so estimuladas a desenvolver uma conscincia crtica, pelo processo de
anlise coletiva de problemas, na busca de solues e estratgias conjuntas para a
30
mudana da realidade. Essa pedagogia evidncia a formao de um indivduo mais
crtico e questionador.
Sampaio (2004, p. 102), ao comentar sobre o assunto, assevera que, na
vida, o homem busca obter excelncia e, assim, satisfazer a principal aspirao
humana. A excelncia no competir com os outros, mas, consigo mesmo. A
excelncia uma atitude diante da vida e pode ser aprendida.
Devido importncia das mudanas comportamentais, quando se fala de
educao para sade integral, remete-se necessidade de analisar condutas e
estratgias para a construo de um modelo socioeducativo que integre distintas
teorias e que sirvam para abrir os caminhos da reflexo e permitam estabelecer
planos de desenvolvimento. As estratgias devem, por conseguinte, ser eficazes na
produo de resultados para aquelas pessoas que tm expectativas de resolver as
suas necessidades, a partir da realidade que pertencem.
No Quadro 1, so apresentadas as propostas dos referenciais de interveno
segundo Garcia (2000).
31
Quadro 1 - Referenciais de interveno educativa para sade
Referenciais de Interveno Educativa para Sade
Informativo Motivacional Poltico-econmico-ecolgico
Conceito de sade Ausncia de enfermidade.
Objetivo vital. Recurso vital.
Anlise da realidade Papel das condies fsicas e ambientais.
Orienta-se pelas normas sociais
dominantes. No considera os efeitos
ambientais.
nfase nos efeitos dos fatores sociais e fsicos da sade.
Objetivos Proporcionar informao sobre
normas de higiene e conduta.
Fazer com que o educando adquira
habilidades que outros consideram benficas
para a sade.
Desenvolver a capacidade de anlise
que desenvolvam habilidades para a gerao de sade.
Metodologia Transmisso de conhecimento, normas
e valores.
Persuaso, para que assuma uma nova
conduta.
Participao, trocas colaborativa.
Aprendizagem contextual.
Prtica educativa Protecionista. Unidirecional.
Unidirecional. Controlada
tecnologicamente.
Bidirecional. Busca a autonomia das
pessoas.
Papel do educador Prescritivo. Detm o conhecimento e por
isto decide.
Controlador do processo de
aprendizagem.
Mediador junto com a comunidade.
Papel do educando Obediente. Passivo. Responsvel pela m conduta em sade.
Passivo em relao ao conhecimento. Ativo
no ajuste do prescrito.
Participativo. Verdadeiro e
protagonista da ao educativa.
Fonte: Adaptado pela autora, a partir de MARTINEZ, Alfonso Garcia; Juan SEZ CARRERAS, Juan; HARO, Andra Escarbajal de. Educacin para la salud: la apuesta por calidad de vida. Madrid: Arn, 2000, p. 180.
De acordo com Almeida Filho (2011), a educao para a sade integral deve
ser orientada por um modelo educativo emancipador que promova a qualidade de
vida e responda s necessidades sociais, diferentemente da tendncia curativa,
desenvolvida por meio de programas verticais.
Sampaio (2010, p. 100) complementa o supracitado autor, quando diz que a
pedagogia do ser sinaliza um caminho para transformao humana que se d no
processo de integrao do ser humano consigo mesmo, com o outro e com o
ambiente em que vive.
32
O Quadro 2, a seguir, apresenta uma comparao entre o modelo curativo e o
modelo emancipador, a partir dos diversos elementos norteadores do processo de
educao para sade integral.
Quadro 2 - Comparativo entre o referencial curativo e o emancipador
Elementos Curativo Emancipador
1. Usurio Indivduo Grupos da populao
2. Iniciativa Doente Profissionais e comunidade
3. Possibilidade de escolha Ampla Restrita
4. Acesso Difcil Fcil
5. Assistncia Pontual Continuada
6. Continuidade Mnima Alta
7. Atitude do usurio Obedincia Participante
8. Atitude dos profissionais Tecnocrtica Democrtica
9. Tcnicas Diagnstico + Tratamento Identificao e soluo dos problemas atravs da educao e da mudana
10. Enfoque Individual Comunitrio, grupal
11. Caracterstica Relao mercantil Autonomia da ao
12. Financiamento Direto do usurio ou pblico Pblico ou recursos comunitrios
13. Avaliao Melhora do doente Aumento de qualidade de vida
14. Juzo de valor Qualidade Melhora e desenvolvimento da comunidade ou do grupo
15. Tendncia Ideolgica Liberal Democrtica radical
Fonte: Adaptado pela autora, a partir da obra de BOSI, Maria Lucia Magalhes; MERCADO, Francisco J. (Orgs.). Avaliao qualitativa de programas de sade: enfoques emergentes. 2. ed. Petrpolis: Vozes, 2006, p. 161-228.
As posies de Garcia (2000) e Bosi (2006) indicam a importncia de uma
relao dialgica e permanente entre sujeitos, conceitos prvios, experincias e
contextos, como a base do aprendizado humano no que se refere ao tema
educao para sade. Por este motivo, exigem uma especial proximidade entre os
mtodos didticos e a vida real do aprendiz, bem como a valorizao dos seus
saberes prvios e a reflexo crtica e diuturna sobre a prtica objeto central da
preocupao de Paulo Freire, educador brasileiro, cujas contribuies alertam para o
compromisso dos profissionais de todas as reas com a sociedade.
33
Freire (1979, p. 17) afirma que
[...] no h homem sem mundo, nem mundo sem homem, no pode haver reflexo e ao fora da relao homem-realidade. Esta relao homem-realidade, homem-mundo, ao contrrio do contato animal com o mundo, como j afirmamos, implica a transformao do mundo, cujo produto, por sua vez, condiciona ambas, ao e reflexo.
De acordo com Barata (2009), no desenvolvimento da educao para a sade
integral, devem ser observadas as alteraes sociopolticas e a evoluo dos fatores
de risco. No contexto dos fatores de risco, a educao para sade que segue o
modelo informativo considera, de maneira protecionista, que os hbitos e os
comportamentos no saudveis tm origem na falta de informao.
A proposta de Barata (2009) considera a educao para a sade centrada na
mudana de comportamento. O seu objetivo obter comportamentos saudveis, e a
informao , apenas, um elo do processo. A sade integral, neste foco,
considerada resultante do comportamento do indivduo, determinado por estmulos
do meio onde est inserido.
Por ltimo, a educao para sade integral denominada crtica, que surgiu
ante as insuficincias das abordagens anteriores, prope alternativas de mudanas
sociais, ligando a morbimortalidade estrutura econmica, tenta reduzir as
desigualdades e potencializar a participao comunitria.
Conforme Freire (2003), nessa ao, os atores no chegam ao mundo
popular como invasores, mas, sim, para conhec-lo com o povo e no, para ensinar,
ou transmitir, ou entregar nada ao povo. O propsito, entretanto, no a
manipulao, mas, a construo de uma sntese, mediante ao conjunta e criativa
dos sujeitos. Ao invs da imposio de modelos e prescries, os sujeitos decidem
juntos quanto ao que exercero sobre a realidade.
Evidentemente que essa aproximao corresponde ao que Buber (1974)
nomeia Eu-Tu e no pode ser mantida indefinidamente, devendo ser alternada com
o distanciamento, atitude Eu-Isso.
34
Sem desconsiderar as demais prxis educativas, fazemos referncia ao
reconhecimento do papel dos processos de educao como elemento de
transformao, por mais complexos que sejam os contextos. Destacamos, assim, o
papel revolucionrio do cotidiano, cabendo, evidentemente, como sensibilizar os
catadores, sujeitos que, nesta proposta, queremos valorizar, sendo este um desafio,
uma vez que no comporta solues simplistas nem tampouco generalizveis.
Bosi e Mercado (2006, p. 104), neste sentido, enfatizam que
[...] a construo de prticas centradas na integralidade e humanizao demanda, conforme j assinalado, um processo complexo de formao que deve, tambm, permitir que o aluno eduque suas emoes, aprendendo a lidar com o seu sofrimento, as suas fragilidades e imperfeies e reconfigurando sua compreenso no sentido fenomenolgico-hermenutico do termo uma vez que s se pode compreender (e, por conseguinte, aceitar e respeitar) verdadeiramente algum no ato de ser o que se com tudo o que isto implica.
Um referencial centrado na integralidade indica que quem educa para sade
um facilitador, e por que no dizer um cuidador, considerando que encaminha, junto
aos seus educandos, a compreenso das condies em que vivem e, juntos,
determinam o que pode ser alterado.
Nesse modelo, as dinmicas dos processos de ensino e aprendizagem
buscam inspirao freiriana, norteadas no mais adequado para o estabelecimento
de uma educao transformadora para a mudana social.
2.1.3 A construo da abordagem integradora
O sculo XX assistiu a um notvel desenvolvimento econmico e tecnolgico,
sobretudo nos chamados pases industrializados. Apesar do ritmo acelerado
observado nesse sculo, pode-se dizer que parte das mudanas comeou a ocorrer
a partir do sculo XIX, poca em que se deflagrou a Revoluo Industrial.
A medicina, especificamente, beneficiou-se, no sculo XIX, de
acontecimentos, como a disseminao das vacinas e as descobertas da anestesia e
da existncia dos microorganismos. Esses avanos, aliados a uma euforia positivista
35
em uma era de f na cincia e em sua capacidade promissora de tornar melhor a
vida do homem, fizeram-se acompanhar de uma unio bem sucedida e estvel.
Tal unio fez com que as condies de vida e sade, no ltimo sculo,
melhorassem de forma continua e sustentadas na maioria dos pases, isto tambm
ocorreu, devido aos progressos polticos, econmicos, sociais e ambientais, assim
como aos avanos na sade pblica e da tecnologia na medicina.
Por vezes, ouvimos dizer a seguinte frase: Sade no doena, sade
qualidade de vida. Por mais correta que esteja tal afirmativa, costuma ser vazia de
significado e, frequentemente, revela a dificuldade que temos de encontrar algum
sentido terico e epistemolgico fora do marco referencial do sistema mdico.
Ser que temos a dimenso precisa do significado dessa expresso, com a
qual nos deparamos e a qual recorremos, s vezes, com frequncia abusiva. Temos
conscincia do que ela representa para cada indivduo? Qual ser o sentido
individual que cada um coloca para a integralidade da sua sade e de ser saudvel?
Para Wilber (2007, p. 46), algumas doenas tm causas e curas amplamente
fsicas (atropelamento por nibus, fratura na perna), no entanto a maioria das doenas
tem, entre suas causas e curas, componentes emocionais, mentais e espirituais.
Leloup (2012a, p. 16) complementa a ideia acima, ao esclarecer que,
dessa maneira, denomino anamnese essencial a arte e a prtica de lembrar-se do Ser, por meio das memrias do corpo fsico e das marcas psicolgicas deixadas nele. Porque o corpo humano se recorda de todos os momentos que atravessou e viveu.
Dizer, portanto, que o conceito de sade integral tem relaes ou deve estar
mais prximo da noo de qualidade de vida e que sade no mera ausncia de
doena j um bom comeo, porque manifesta o mal-estar com o reducionismo
biomdico (MINAYO; HARTZ; BUSS, 2000).
36
Boff (2007, p. 45) assume, assim, o conceito de homem integrado, ao dizer
que ele
no deve ser somente perfeito no equilbrio de suas tenses para fora de si mesmo. Ele deve ser integrado na harmonia de seus dinamismos interiores conscientes e inconscientes. O homem se apresenta, em si mesmo, como um n de tenses e paixes.
preciso compreender sade como qualidade vital que afeta a integralidade
da vida, e so muitos os fatores que interferem no estado de sade, so eles:
fsicos, mentais, espirituais, sociais, culturais, econmicos, entre outros que no
podem ser analisados e sistematizados a partir de uma nica teoria. Entretanto,
comum conceituar sade a partir das carncias, da a definio que popularmente se
escuta de sade como ausncia de doena.
Segundo Garcia (2000, p. 19), En efecto, la salud es un estado, esto es, una
cualidad vital que afecta a la totalidad de la vida misma y, en tanto que tal,
representa un desafio permanente para cualquier definicin precisa y medible.
Na tecitura das leituras dos autores, Almeida Filho (2011), Boff (2007, 2012,
2011, 1999), Capra (2002), Crema (1995), Frankl (2008), Leloup (2012a, 2012b),
Morin (1999), Wilber (2007), Pelizzoli (2010) e Torralba (2009), com o vis de
formao e da vivncia da pesquisadora na rea de educao e sade, arrisca-se
entender a abordagem integradora da educao para sade como uma posio que
promove a interdisciplinaridade, pois os problemas de sade das pessoas no esto
organizados de forma congruente com os interesses corporativos. A posio
integradora prope uma dialtica entre corpo-esprito, que se refere a uma
interpretao e integrao entre as vrias dimenses do ser humano. No h
fronteiras entre o fisiolgico, o psicolgico e o social, visto que eles constituem-se
em um todo integrado. Os pensamentos, as crenas e os sentimentos esto
encarnados no corpo. As vivncias pessoais da pessoa, o seu ambiente, os seus
pensamentos, os sentimentos e as crenas vivem intimamente com os seus
msculos, tendes, ossos, nervos, hormnios e posturas corporais.
Assim, as vivncias culturais e pessoais esto impregnadas no corpo. O termo
atitude, por exemplo, etimologicamente, evoluiu no sentido de significar disposio
37
do esprito, traduzida pela do corpo, isto , a postura ou o ngulo em que a pessoa
est inclinada a partir da vertical. Neste contexto, curar no curar o corpo-objeto,
mas, a pessoa.
Essa viso integrada da pessoa v qualquer processo, seja um conflito
psicolgico ou social ou um sintoma fsico, como parte de um todo, que inclui
aspectos biolgicos, psicolgicos e sociais. Assim, algo que ocorre no domnio da
mente, como sentimentos e hostilidade, inclui uma expresso fsica, como os
padres de postura ou tenso corporal, a forma como a pessoa respira, as
alteraes cardacas, a expresso social e a deteriorao de relaes interpessoais.
As referidas dimenses so consideradas partes integradas em um todo que do
origem a uma expresso unitria.
Essa incurso sobre integralidade nos remete, inevitavelmente, a uma breve,
mas necessria, considerao sobre a noo de cuidado que permeia toda esta
reflexo, fundada na proposio de que o cuidado transcende o mbito prtico da
educao para sade. Boff (2012) assinala que o cuidado to ancestral como o
universo, e nele reside a essncia do humano. Portanto, cuidar de algum mais
que construir um mtodo ou definir um programa de interveno. Para cuidar, h que
se considerar e construir programas de educao para sade que sustentem, ao
logo de algum tempo, uma certa relao.
As metodologias que buscam educar para sade integral devem juntar todos
os aspectos da pessoa, de forma que esta possa experienciar um organismo
unitrio, em vez de uma mistura de partes, as quais, em que todas as dimenses,
tm de ser conectadas ou ligadas dialeticamente, para promover e facilitar o
processo preventivo ou de tratamento. Para Torralba (2009), seria necessrio
revisar, a fundo, os processos formativos e introduzir conhecimentos novos para o
aprofundamento na essncia do universo pessoal.
A construo do conceito de sade integral tem despertado interesse
cientfico e uma conscientizao cada vez maior, recebendo a devida considerao
em uma abordagem integrada e interdisciplinar, na tentativa de solues holsticas e
voltadas para o bem-estar do ser humano.
38
Segundo o Ministrio da Sade (2002), a viso integral de sade,
apresentada em contraposio ao modelo biomdico, pressupe que todos os
sistemas e as estruturas que regem as condies sociais e econmicas, assim como
as condies do ambiente fsico, devem ser considerados quanto ao seu impacto
nas condies de sade e na qualidade de vida dos indivduos e da coletividade. A
viso integral da sade, enquadrada como um componente fundamental da
qualidade de vida, remete importncia da intersetorialidade de medidas que
enfatizam a necessidade da participao social e o fortalecimento do poder local e
das comunidades.
A partir da dcada de 70, com a crise nos servios de sade e a necessidade
de rever essa concepo limitada do processo de sade-doena, o governo do
Canad publicou um documento sobre a nova perspectiva de sade dos
canadenses, conhecido como Informe Lalonde (1974), no qual a sade era
relacionada a diversos fatores que deveriam ser analisados em conjunto. Esse
documento decompe o campo da sade em quatro componentes que so: a
biologia humana, o meio ambiente, o estilo de vida e a organizao da ateno
sade. Lalonde (1974, p. 4) conclui que,
at agora, quase todos os esforos da sociedade para melhorar a sade, assim como a maior parte dos gastos diretos em matria de sade, tem se concentrado na organizao da assistncia mdica. Entretanto, as causas principais de enfermidade e morte tm a sua origem nos outros trs componentes: a biologia humana, o meio ambiente e o estilo de vida.
Estudos nas comunidades carentes, de acordo com Vasconcelos (1998),
demonstraram que a interao entre profissionais que educam para sade e a
populao, com a troca de conhecimentos e saberes, favorece traar estratgias
mais adequadas s realidades locais. As referidas estratgias, ressalta o autor,
no se restringiram aos cuidados tradicionais de higiene, ao tratamento e
preveno das doenas, mas ampliaram a atuao dos profissionais educadores
para sade para as dimenses psicossociais dos problemas, responsveis pelo
adoecimento e o sofrimento crnico da populao. Esses profissionais enfatizam o
cuidado e o apoio social das famlias, com objetivo de ajud-las a reconstruir os
seus caminhos de vida.
39
Dentro dessa abordagem, torna-se possvel organizar prticas de educao
para sade, voltadas para a integralidade na ateno e no cuidado, o que
necessariamente implica rever a teoria de sade-doena que sustenta essas
prticas (ALMEIDA FILHO, 2001). Nesse sentido, acrescenta o autor que a
promoo da sade, como paradigma orientador das prticas sanitrias, somente
se viabiliza a partir da concepo positiva de sade, tanto no nvel individual como
coletivo.
O que significa, ento, sade integral? Quais dimenses estariam envolvidas
e prioritariamente deveriam ser atendidas?
Enquanto, para alguns, significa boa condio financeira, que possibilite uma
vida de conforto material e acesso a bens de consumo, para outros, poderia
significar a realizao pessoal ou profissional, satisfao na vida ou, ainda, para
alguns outros, seria sinnimo de ter um emprego, da possibilidade de trabalhar e
de garantir o seu prprio sustento. J, para tantos outros, poderia ser a
possibilidade de uma vida saudvel, a recuperao da sade fsica ou mental e a
paz interior.
Neste contexto, somando-se a exploso dos custos na sade e as suas
consequentes dificuldades financeiras, cria-se abertura para uma pergunta chave:
De onde vem a qualidade de vida base da sade integral? Ou seria o inverso?
A introduo do conceito de qualidade de vida, como medida de desfecho
em sade integral, surgiu a partir da dcada de 1970, no contexto do progresso da
medicina. Ele trouxe um prolongamento na expectativa de vida, na medida em que
as doenas, anteriormente letais (por exemplo, infeces), passaram a ser
curveis ou a ter, pelo menos, controle dos sintomas ou do retardo no seu curso
natural.
Conforme Almeida Filho (2009), seis grandes vertentes convergiram para o
desenvolvimento do conceito de sade integral: 1) estudos de base epidemiolgica
sobre a felicidade e bem-estar; 2) busca de indicadores sociais; 3) insuficincia das
40
medidas objetivas de desfecho em sade; 4) satisfao do cliente; 5) movimento de
humanizao da medicina; e 6) Psicologia positiva.
Diante dessa discusso, poderamos conceituar integralidade, como um
princpio pelo qual as aes, relativas sade, devem ser efetivadas no nvel do
indivduo e da coletividade, buscando atuar nos fatores determinantes e
condicionantes da sade, garantindo, por conseguinte, que as atividades de
promoo, preveno e recuperao da sade sejam integradas em uma viso
interdisciplinar que incorpore, na prtica, o conceito ampliado de sade.
Como enfatiza Wilber (2007), a abordagem integral envolve o cultivo do corpo
no self, na cultura e na natureza. Para Pelizzoli (2010), o alerta de Wilber
importante, quando consideramos ser ele, hoje, um dos portadores da bandeira de
um novo paradigma da complexidade do que seja integral e, tambm, de uma
sade integral que considere igualmente os aspectos subjetivos e objetivos da
realidade humana.
De acordo com Almeida Filho (2011), com o conceito de sade, publicado
pela OMS em 1946, produziram-se grafismos, trusmos e tautologias das mais
variadas e exticas formas, como o caso em que a sade aparece como uma
mandala, totalizante das virtudes e dos valores humanos, como apresentado na
Figura 1, a seguir.
41
Figura 1 - Dimenses da sade integral
Fonte: ALMEIDA FILHO, Naomar de. O que sade? Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011, p. 10.
Segundo o autor, a partir dessa anlise crtica, a sociedade literalmente bate
porta das instituies acadmicas e cientficas, que supostamente deveriam saber
o que , como se mede e como se promove a sade integral.
A viso filosfica do ser humano, da existncia e da vida dirige todo o trabalho
de aproximao e compreenso do conceito de sade integral. Torralba (2009, p.
44) diz que,
quando se pergunta filosoficamente o que a pessoa humana, pergunta-se sobre o sentido que tem a sua existncia, sobre a sua interioridade, sobre o invisvel da pessoa, pergunta-se qual o fundamento ltimo de seu ser, de seu obrar, de seu fazer, de seu pensar.
Tericos, como Nietzsche, por exemplo, apresentam o homem como algo que
no pronto, mas, sim, um conjunto de possibilidades que vai se atualizando no
decorrer de sua existncia, a qual instvel, incerta e, at mesmo, contraditria. O
existir entremeado de escolhas, s vezes, fceis e, outras vezes, exigindo
decises que trazem ansiedade e angstia.
42
Para Torralba (2009, p. 62), talvez, na filosofia contempornea, o pensador
que abordou com mais penetrao intelectual a questo da finitude do ser foi Martin
Heidegger em Ser e Tempo. Heidegger (2001) define o homem como o ser-no-
mundo, um ente particular que s existe e pode ser compreendido em sua relao
com o mundo, relao na qual cria o mundo, enquanto criado por ele.
De fato, o nosso viver dirio nos revela que nossas vivncias no esto
contidas apenas dentro de ns mesmos, mas se manifestam e esto intimamente
relacionadas ao nosso ambiente, s pessoas e s situaes em que nos
encontramos ou s quais nos reportamos por meio da memria ou da imaginao.
Segundo Pelizzoli (2010), para o bem-estar, as condies intensas so muito mais
importantes, pois o estado da mente que interpreta a situao externa.
Na verdade, embora no se possa negar a essncia do homem, no por
meio dela, de princpios e verdades imutveis, colocadas acima de qualquer
existncia, que podemos chegar ao ser. O homem transcende um determinado
mecanismo e o adota de uma forma muito peculiar. Se seu significado aparece em
funo da pessoa, este ser existente que escolhe a sua prpria existncia pela
relao que mantm com a verdade e a realidade interpretadas por ele.
Frankl (2008) uma inspirao neste momento, quando aborda as trs
atitudes facilitadoras da relao teraputica: a considerao positiva, a coerncia e a
empatia, que auxiliam a pessoa na busca do sentido para sua vida, com um respeito
especial pelo que eminentemente existencial. Boff (1999, p. 18), neste sentido,
assevera que [...] o crescimento material ilimitado, mundialmente integrado, sacrifica
2/3 da humanidade, extenua recursos da Terra e compromete o futuro das geraes
futuras vindouras, o que traz, conforme ele, um sintoma doloroso de difuso mal-
estar da civilizao.
Boff (1999, p. 25) segue a reflexo, explicando que,
[...] aps sculos de cultura material, buscamos hoje ansiosamente uma espiritualidade simples e slida, baseada na percepo do mistrio do universo e do ser humano, na tica da responsabilidade, da solidariedade e da compaixo, fundada no cuidado, no valor intrnseco de cada coisa, no
43
trabalho bem feito, na competncia, na honestidade e na transparncia das intenes.
O autor acrescenta que o cuidado abrange mais que momentos de ateno e
de zelo, sendo mais que um ato e, sim, atitude de responsabilizao, de
ocupao, preocupao e envolvimento afetivo, atingindo a dimenso material,
pessoal, social, ecolgica e espiritual.
Neste contexto, oportuno lembrar Capra (2002), quando considera que
cuidar uma viso de mundo que reconhece o valor inerente da vida no humana.
Todos os seres vivos so membros de comunidades ecolgicas, ligadas umas s
outras, em uma rede de interdependncias. Quando essa percepo ecolgica
profunda torna-se parte de nossa conscincia cotidiana, emerge um sistema de
tica.
Retomando Heidegger (2001), o filosofo do cuidado por excelncia, em seu
famoso livro Ser e Tempo, diz que cuidar significa um modo-de-ser essencial,
sempre presente, em uma dimenso frontal, originria e ontolgica. Para esse
filsofo, o cuidado entra na natureza e na constituio do ser humano, propondo que
no temos cuidado, mas somos cuidado. Mostrou que realidades fundamentais,
como o querer e o desejar, se encontram enraizados no cuidado essencial, como
subjacentes a tudo que o ser humano empreende, projeta e faz.
Cuidar, querer e desejar parecem os pilares das condies gerais que
facilitam ou no, o desenvolvimento humano, pretendido para sade integral, para a
satisfao com a vida como um todo, mesmo na impossibilidade da eliminao total
do sofrimento, o qual faz parte do processo vital.
Apesar de no se estabelecer um nico conceito, certamente devido
complexidade do tema que polissmico, multidimensional, multidisciplinar e
intrinsecamente subjetivo, podemos dizer que o conceito de sade integral tambm
passa pelo valor da opinio dos indivduos sobre si mesmos, privilegiando os
aspectos subjetivos nele contidos e estimulando estudos e discusses.
44
Os educadores para sade devem se sentir autorizados a reagir
racionalmente frente a determinadas inrcias que maculam a eminente dignidade da
pessoa humana e o respeito que ela merece, especialmente, se ela sofre uma
situao de mxima vulnerabilidade. Sobre a vulnerabilidade do ser humano,
Torralba (2009, p. 58) se refere nos seguintes termos:
O ser humano vulnervel, mas, alm de s-lo, pode ser consciente de sua vulnerabilidade, ou seja, pode refletir acerca dela, tratar de buscar solues e frmulas, para combater o desalento, o cansao, a doena, a insegurana e tudo que est relacionado com a vulnerabilidade. Um ser vulnervel um ser quebradio, cuja integralidade est constantemente ameaada por elementos externos e internos.
Na abordagem integradora, o educador deve congregar a capacidade e a
habilidade de desenvolver nos diferentes grupos, mesmo naqueles na mais
vulnervel condio social, acordos comuns, favorveis manuteno de uma
sade integral. Vila e Vila (2007) reforam a relevncia da abordagem integradora
ao assinalarem que estudos em educao para sade objetivam suscitar o
envolvimento de uma determinada comunidade e promover transformaes,
orientando-se para aes, cuja essncia est na melhoria da qualidade de vida.
2.2 O CATADOR: SEU TRABALHO E SUA SADE
A seo, a seguir, discorre acerca do catador e do seu trabalho, alm do
ambiente da unidade de triagem, refletindo a respeito dos riscos e agravos deste
ambiente para a sua sade.
2.2.1 Catador: quem esse trabalhador?
A transformao do trabalho e as estratgias de convivncia com o
desemprego fizeram surgir, ao longo do tempo, novas atividades de gerao de
renda. Catar, selecionar e coletar lixo urbano tm sido uma alternativa de muitos,
surgindo, assim, a atividade dos catadores. Em seu estudo sobre as transformaes
no mundo do trabalho, Marinho (2005, p. 27) afirma que o trabalho passou a ser o
sentido da vida, possibilidade de enriquecimento futuro, e, para alm do problema
da sobrevivncia, ainda que heternomo, proclamado como virtude. Logo, catar
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lixo, como qualquer atividade informal que agregue valor sociedade
contempornea, trabalho.
A relevncia social dessa temtica encontra subsdios a partir de dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) Pesquisa Nacional de
Saneamento Bsico (PNSB) 2000, segundo os quais se estima que, no Brasil, haja
em torno de 24.500 pessoas trabalhando nos locais de disposio final lixes,
aterros e unidades de triagem, dentre outros.
So muitas as pessoas que sobrevivem da coleta, separao, classificao e
venda de material reciclvel. Na verdade, sempre estiveram presentes os que
carregavam carrinhos ou sacos de objetos variados, objetos resgatados daquilo que
a sociedade prefere descartar. Por muitos anos, pensava-se que coletavam coisas
inteis ou de pouco valor e no despertavam a ateno e talvez, por vezes, nojo.
De acordo com os dados do Movimento Na