Difamação e Machismo contra Miriam Leitão e Marina Silva

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Difamação e machismo contra Miriam Leitão e Marina Silva

  Mauricio Caleiro

São duas personagens que pouco têm em comum, exceto terem começado a vida napobreza e hoje, na meia idade, ocuparem, por seus próprios méritos, posições de destaquena vida político-econômica do país. Porém, desde a semana passada, Míriam Leitão eMarina Silva vivenciaram uma experiência estranhamente similar: primeiro ocuparam asmanchetes na condição de vítimas de um trauma pessoal de origem política; depoispassaram a alvo de uma intensa campanha difamatória vinda, nos dois casos, tanto desetores da esquerda quanto do conservadorismo.

 A transformação de Marina, de um tanto quanto deslocada vice-presidente de luxo acandidata com chances efetivas de alterar o rumo das eleições presidenciais, obteve granderepercussão não só por seu impacto eleitoral, mas por constituir-se no desdobramentoúltimo de mais um festival de necrolatria pública tão ao gosto da mídia de massas no país.

Já a revelação dos detalhes acerca da prisão e tortura de Míriam Leitão, aos 19 anos egrávida, pela ditadura, embora certamente tenha sido de conhecimento de um públicomenor, reverberou de forma intensa na imprensa e nos meios virtuais. A jornalista já haviase referido, amiúde e de forma breve, à sua prisão, mas seria preciso que Luiz CláudioCunha publicasse, neste Observatório, uma das melhores reportagens deste ano para queinformações detalhadas sobre o episódio viessem a público.Reações histéricas

 As reações iniciais de espanto e de solidariedade ante os detalhes acerca da tortura deMíriam Leitão logo foram superadas, com estridência, por um festival de ataques pessoaise tentativas de desqualificação. Os chiliques à direita não chegariam a surpreender –afinal, há uma turma, muito ativa na internet, cuja ocupação parece ser lamber os coturnos

sujos de sangue e negar ad nauseam a violência do Estado cada vez que a ditadura é citada.Mas desta vez, além desses desmentidos de praxe, grassaram no ciberespaço ataquescontra a jornalista de economia por sua militância na esquerda.

No caso mais difundido, um dos inacreditáveis blogueiros de Veja publicou uma diatribecontra a jornalista, cobrando-lhe satisfações por ter se aliado aos que lutavam contra oregime militar. Errou na mão e o texto foi considerado excessivo mesmo para os padrõesda revista: seu patrão ordenou que fosse retirado do site, ato que seu jovem autor acatoucom resignada submissão. Voz do dono A reação que o caso de Míriam Leitão causou entre esquerdistas e, notadamente, petistas,embora idêntica em virulência, deve-se a outra sorte de fatores. Além de dúvidas quanto àsrazões que ora levam a jornalista a tornar públicos tais aspectos de seu passado,predominou a manifestação de um sentimento entre a incredulidade e a recusa em aceitarque uma das mais populares representantes de uma visão ortodoxa de economia – tão aogosto da direita nativa – pudesse protagonizar tais acontecimentos dramáticos, até entãosupostamente restritos ao passado de seus antagonistas ideológicos do presente.

Para compreender o porquê de tais reações é preciso contextualizar com mais precisão asprincipais projeções simbólicas associadas à figura de Míriam Leitão. Ela consolidou-se,nas três ultimas décadas, como uma das principais representantes, na mídia, de uma visão

normativa da economia, ditada pelo mercado financeiro. Constitui, assim, exemplo cabaldo que Muniz Sodré identifica como “elite logotécnica”, formada por agentes midiáticosneste momento histórico encarregados de fornecer uma retórica de legitimação para o

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neoliberalismo, através de uma lógica discursiva segundo a qual “a economia de mercado étraduzida como resultado de uma natureza eterna e imutável do homem” (trecho do artigo“O globalismo como neobarbárie”, do livro Por uma outra Comunicação, organizado porDênis de Moraes, Record, 2003).Se tal fator ajuda a explicar a antipatia – ou mesmo a repulsa – que Míriam desperta emmeio aos estratos situados do centro à esquerda do arco político brasileiro, ele não se

afigura suficiente, de acordo com uma visão que preserve um mínimo de humanismo, para justificar os ataques a ela derivados da repercussão da matéria sobre sua tortura. Pois eles,por seu grau de virulência e intransigência, transcendem tais questões e inserem-se em umcontexto de ódio disseminado contra a mídia, ora em seu pico histórico no Brasil.

Mídia PandoraTrata-se de um fenômeno de longa gestação, represado ao menos desde a aliança tácitaentre a Rede Globo e a ditadura e açulado, por um lado, pelos graves problemas estruturaisde monopólio do setor midiático que pesquisadores como Venício A. de Lima e BernardoKucinski identificaram com rigor; e, por outro lado, por uma sucessão de episódios gravescomo a não-cobertura das Diretas-Já pela Globo ou sua edição malandra do debate entre

Collor e Lula.

Com a chegada do petismo no poder, concomitante ao boom da blogosfera política, o ódioà mídia deixa necessariamente de guardar relação com análises criteriosas e ponderadas daação dos meios para estabelecer-se como sentimento justificado a priori  e elementocotidiano da prática política: a mídia passa a ser, então, definida de antemão como PIG(Partido da Imprensa Golpista).Ódio retroalimentadoTal processo instaura um mecanismo tão simplista quanto eficaz de desqualificação damídia e de retroalimentação do ódio contra ela. Mesmo o fato de grande parte do ônus pelacontinuação dessa situação recair sobre a aliança petista – que em 12 anos no poder não

mexeu uma palha no sentido de regulamentar as comunicações – não impede que aautointitulada esquerda governista continue a praticar diariamente o saudável esporte demalhar a mídia, seu bode expiatório favorito a adiar uma cada vez mais necessáriaautocrítica. Enquanto isso, os grandes grupos midiáticos continuam a ser regiamenteremunerados com recursos públicos, via Secretaria de Comunicação Social da Presidênciada República (Secom).

O fato de nos encontrarmos em um momento histórico em que o culto ao ódio contra amídia é prática cotidiana, estimulada pela burocracia partidária e levada a cabo poragentes de mídia e blogueiros travestidos de progressistas ajuda a entender – mas jamais a

 justificar – o ódio que tomou conta das caixas de comentários e dos blogs por conta de umamulher revelar que, ao 19 anos e grávida, foi presa por militares a paisana, humilhada,surrada, ameaçada de estupro coletivo e de morte, sendo mantida durante horas em umquarto escuro, nua, na companhia de uma jiboia.

Malhação de Judas As reações ao anúncio da candidatura presidencial de Marina Silva, por sua vez, uniramtucanos, petistas e a esquerda representada pelos pequenos partidos que lutam por umlugar ao sole temem perder para ela parte de seus já escassos votos: “A ideia é desmoralizá-la a todo custo, pintando-a como uma fanática religiosa, cínica e oportunista, que traiu opovo e pode levar o país às trevas”, assinalou Marcos Augusto Gonçalves, em artigo

na Folha de S. Paulo. Tem sido um massacre.“Malhar Marina é o esporte ‘progressista’ da hora”, prossegue Gonçalves, apontando comsutileza que, ao contrário do que se tornou parte do senso comum, a agressividade

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desmedida, essencialmente antidemocrática pois tolhedora do debate civilizado depropostas e programas, não é exclusividade do ambiente inflamado das redes sociais emperíodos eleitorais. Ela também vem sendo promovida pelos chamados blogs“progressistas”, os quais muitos ainda confundem com porta-vozes da esquerda – quando,na verdade e em sua ampla maioria, toraram-se mera corrente de transmissão do petismo.Isso fica uma vez mais evidente através das sucessivas tentativas de desqualificar Marina

Silva que ora ganham destaque em suas páginas, com ataques pessoais baratos e modusoperandi  muito similares aos do jornalismo marrom de Veja, que justificadamente tantocriticam. Acusações frágeisDo cipoal de acusações, duas são tão insistentes quanto contraditórias, ainda mais quando

 vêm do petismo: a alegada ligação da candidata com a cúpula do banco Itaú e a supostaameaça à laicidade do Estado que Marina representaria por professar a fé neopentecostal.

Quanto aos bancos, Lula e Dilma não cansam de sustentar, com orgulho, que eles nuncafaturaram tanto quanto em seus governos e, como mostra a prestação de contas dacampanha eleitoral de Dilma Rousseff em 2010, o Itaú foi seu terceiro maior doador. E soa

no mínimo pouco criterioso que o petismo acuse Marina de ser refém do poder religiosoquando não faz tantos dias que a própria Dilma, após um mandato em que sacrificou asquestões de gênero no altar dos pactos com a bancada religiosa, foi ao megatemplo daIgreja Universal pedir as bençãos do “bispo” Macedo, com quem deixou-se fotografar.

Tais acusadores exploram, assim, uma confusão recorrente entre a obrigaçãoconstitucional de manter a laicidade do Estado e o direito individual de liberdade dereligião, do qual o cidadão que ocupa a Presidência da República não está privado. Háprecedentes históricos: Ernesto Geisel era espírita, Fernando Collor e Eurico Dutracatólicos, todos praticantes – isso não ameaçou a laicidade do Estado. Na eventualidade deser eleita, as relações da Marina com o poder religioso, pela sua própria condição de

evangélica, talvez tendam a ser fiscalizadas com mais atenção do que as dispensadas aosobscuros tratos da atual mandatária com a bancada religiosa.

PalimpsestoPara além de tais críticas, assiste-se, há dias, a um verdadeiro festival de baixarias,caracterizado pelo esvaziamento da discussão de questões programáticas em prol decatarses, nas quais o ódio serve de alimento a agressões pessoais. Aumenta a perplexidadea constatação de estas hoje se dirigem contra quem fora, durante décadas, correligionária ecompanheira de luta, além de uma das principais responsáveis pela expansão inicial do PTna Amazônia.

Não é só o longo passado de Marina junto à esquerda e ao PT que pouco ou nada parece valer a seus detratores. Isso também vale para o fato, praticamente esquecido, de Marina,no segundo turno de 2010, ter resistido a intensa pressão e, numa decisão rara nopanorama politico brasileiro, preferido se manter neutra a apoiar Serra no segundo turno,opção que, mesmo com a transferência de uma pequena fração dos votos que obtivera,poderia ter decidido o pleito em favor do adversário de Dilma (e feito de Marina sócia dopoder).

Questões no arDecerto há muito a se questionar – ou mesmo a criticar – em relação à candidatura de

Marina Silva, ainda mais nas circunstâncias excepcionais em que se consolidou. Suasligações com economistas ortodoxos – Eduardo Giannetti da Fonseca à frente – talvezpossam ser interpretadas das como indícios de uma política econômica de filiação ainda

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mais estrita aos preceitos do neoliberalismo, o que pode vir a ser desastroso, só ponto de vista social.

Também sua habilidade em separar suas opiniões pessoais sobre temas polêmicos e suapostura republicana como presidente ainda precisa ser provada. E, não obstante os seteanos à frente do Ministério do Meio Ambiente, sua capacidade propriamente

administrativa é um enigma (mas, sejamos justos: também o eram as de Collor, FHC, Lulae Dilma – ou seja, de todos os presidentes eleitos após o final da ditadura).

(M)achismo e apelaçãoPorém, para além dos fatores já elencados, a forma virulenta e impiedosa, sem poréns ouressalvas respeitosas, com que Marina Silva e Míriam Leitão vêm sendo atacadas talvezderive também de um insuspeito denominador comum aos atacantes, sejam eles homensou mulheres: o machismo, este traço fundador só aparentemente reprimido, mas renitentena cultura política do país, com seu rancor ancestral e indiscriminado.

Seja como for, o grande problema, tanto no caso das reações à candidatura de Marina Silva

quanto às revelações do passado de Míriam Leitão é que denotam a predominância daagressividade e do irracionalismo em relação ao exercício racional da crítica e à práticaética da política. A impressão que se tem, neste momento, é praticamente não haver espaçopara a reflexão ponderada. Da enorme quantidade de artigos e posts sobre Marina eMíriam, contam-se nos dedos de uma mão os que se valeram de uma críticasfundamentadas e que não apelaram para preconceitos, achismo, ou hipóteses sem base desustentação Tem sido um massacre, mas cujo vencedor é o ódio, e não a razão.

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Mauricio Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela UFF; seu blog