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FERNANDA HILZENDEGER MARCON
A CONSTRUO DISCURSIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
Uma anlise a partir da teria da ao comunicativa de Jrgen Habermas
CURITIBA
2006
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FERNANDA HILZENDEGER MARCON
A CONSTRUO DISCURSIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
Uma anlise a partir da teria da ao comunicativa de Jrgen Habermas
Dissertao apresentada como requisito
parcial obteno do grau de mestre, no
Curso de Ps-graduao em Direito, do
Setor de Cincias Jurdicas da
Universidade Federal do Paran.
Orientadora: Dra. Katya Kozicki
CURITIBA
2006
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TERMO DE APROVAO
FERNANDA HILZENDEGER MARCON
A CONSTRUO DISCURSIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
Uma anlise a partir da teria da ao comunicativa de Jrgen Habermas
Dissertao aprovada como requisito parcial para a obteno do grau de mestre, no
Curso de Ps-Graduao em Direito, do Setor de Cincias Jurdicas da Universidade
Federal do Paran, pela Comisso formada pelos professores:
Presidente:
Dra. Katya KozickiUniversidade Federal do Paran
Membro:
Dr. Leonel Severo RochaUniversidade do Vale do Rio dos Sinos
Membro:
Dra. Vera Karam de ChueiriUniversidade Federal do Paran
Curitiba (PR), maio de 2006.
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A meus pais, amores de minha vida, cuja
capacidade de renncia a razo jamais
explicar.
A meus irmos, em cujas diferenas
reconheo os limites de minha
individualidade.
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Agradecimentos
Bem o sabem, meus familiares e amigos, que a realizao desta pesquisa representou a
concretizao de um sonho e o desfecho de mais uma etapa de aprendizado, que no se
resumiu s lies dos bancos acadmicos. Por isso, no poderia deixar de agradec-los,
sinceramente, por toda ajuda prestada, especialmente:
A meus pais e irmos, que estiveram sempre presentes e que, com palavras doces ou
amargas, contriburam para o alcance de meus objetivos.
minha orientadora, Katya Kozicki exemplo de capacidade e dedicao , naqual encontrei o principal motivo pelo qual segui-la: a paixo incondicional pelo
direito e pela democracia.
A meus tios Mrcia e Celso, pela acolhida em minhas estadas em Curitiba, e a meus
pequenos e amados Vtor e Laura, cuja energia jamais se negaram a compartilhar.
s amigas Myriam e Tatiana, incansveis companheiras desta longa caminhada.
Aos amigos Ana Paula, Marina, Mauri e Salete, tambm companheiros de magistrio,
pelas preciosas colaboraes quanto pesquisa e reviso deste trabalho.
Aos amigos que fiz durante o curso de mestrado, em especial a Ana Carolina,
Guilherme, Mrcia, Ana Letcia e Joo Marcelo, pelas muitas horas de estudo,
preocupaes e lazer compartilhadas.
Aos amigos Eliana, Virgnia e Frederico, pelo apoio.
A meus familiares, pelas oraes e torcida.
Aos professores do Curso de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal do
Paran, em especial Celso Luiz Ludwig e Katie Silene Crceres Argello, por se
disporem a compartilhar seus conhecimentos.
Aos funcionrios do Curso de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal do
Paran, que sempre estiveram dispostos a ajudar.
A todas as pessoas indicadas e queles eventualmente esquecidos, mas que estiveram,
de algum modo, presentes em minha caminhada, com sincera gratido.
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RESUMO
O presente trabalho tem por objeto a investigao das contribuies oferecidas pelateoria da ao comunicativa, de Jrgen Habermas, discusso dos direitosfundamentais. Assentado sobre o paradigma da intersubjetividade, ele prope umafundamentao procedimental da sociedade moderna, a qual divide entre sistema emundo da vida. Nessa perspectiva, o direito concebido como o elo de ligao entretais esferas, ou seja, entre afacticidade do sistema e a validade do mundo da vida instituda pela obedincia a certos requisitos discursivos. Por isso, sua vinculao questo democrtica e importncia para o estudo da proteo conferida integridadeda vida humana. No segundo captulo, procede-se identificao dos paradigmas da
modernidade, at o advento da ao comunicativa, de modo a situar a propostahabermasiana no contexto filosfico que lhe peculiar e, assim, permitir o melhorentendimento de seus elementos tericos. A isso segue a exposio dos aspectos queinteressam compreenso do Direito e do ideal democrtico que lhe inerente,representado na concepo procedimental de direitos fundamentais. Destacam-se,nessa linha, o processo de formao da autonomia pblica e privada e os diferentescontextos de comunicao, presentes em cada esfera de poder estatal. O terceirocaptulo direciona sua abordagem aos direitos fundamentais, em sentido amplo.Iniciando pelo delineamento dos direitos humanos e sua esfera de proteo, percorreos caminhos de sua incorporao ordem jurdico-positiva, constitucionalizao e
aspectos normativos, para, ento, apresentar a limitao axiolgica da teoriahabermasiana. Todo o estudo conduz, no quarto captulo, apresentao dademocracia deliberativa, tal qual concebida por Habermas, e das crticas dirigidas ssuas digresses. O descompasso entre a situao ideal da comunidade de fala e asituao real de sociedades complexas e desiguais no pode deixar de ser reconhecido.Nesse sentido, sugere-se a pontuao dos problemas apontados a partir das lies deHannah Arendt. Principalmente, no que diz respeito s noes de vita activa eresponsabilidade para com o outro. As ltimas consideraes ficam, ento, a cargo daspropostas de complementao da fundamentao meramente formal por critriosmateriais e morais, de assuno da responsabilidade para com os Outros.
Palavras-chaves: ao comunicativa; Jrgen Habermas; fundamentao; processo;discurso; direito; autonomia; direitos humanos; direitos fundamentais; Constituio;democracia deliberativa; consenso; diferena; responsabilidade.
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ABSTRACT
This present work has as object the investigation of contributions offered by the theoryof the comunicative action, by Jrgen Habermas, to the fundamentals human rightsdiscussion. Settled on the paradigm of the intersubjectivity, it proposes a proceduralfundamentation of the modern society, which one divides between system and world ofthe life. In this perspective, the human rights is concepted as the joining link amongsuch spheres, in other words, it goes among the factibility of the system and thevalidity of the world of the life given by the following to the certain discursivesrequirements. Therefore, its linking to the democratic matter and value to theprotection studies conferred to the integrity of the human being life. In the second
chapter, it proceeds to the identification of the modernity paradigms, until thecomunicative action advent, in order to point out the habermasian proposal in thephilosofic context that is peculiar to this, thus, to permit the best understanding by itstheorics elements. To this it follows the aspects presentation that interest to thecomprehention of the human rights and of the democratic ideal that is inherent toitself, represented in the procedural conception of the fundamentals human rights. Itpoints out, in this line, the process of private and public authonomy formation and thedifferents comunication contexts, present in each sphere of state power. The thirdchapter directs its boarding to the fundamentals human rights, in vast signification.Initiating for the delineation of the human rights and its protection sphere, it takes the
ways of its incorporating to the positive law directive, constitutionalise and normativeaspects, for, then, to present the axiological limits of the habermasian theory. All thestudies leads, in the fourth chapter, to the presentation of the deliberative democracy,such which conceived by Habermas, and of the criticism directed to his digressions.The difference between the ideal situation of the speaking comunity and the realsituation of complex societies and unequal cannot let to be recognized. In this sense, itis suggested to point out the problems noted by the Hannah Arendts lessons. Mostly,in what is stated about the notions ofvita activa and responsability for with the other.The last considerations stand, then, for the complementary proposals of the basedmerely formal by the materials and moral judgments, of assumption of the
responsibility for with the Others.
Key-words: comunicative action; Jrgen Habermas; fundamentation; process; speech;law; autonomy; human rights; basic rights; Constitution; deliberative democracy;consensus; diference; responsability.
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SUMRIO
1 INTRODUO....................................................................................................... 9
2 FUNDAMENTAO E PROCEDIMENTO EM J. HABERMAS................. 14
2.1 Paradigmas filosficos da modernidade..................................................... 14
2.2 Habermas, a sociedade e o agir comunicativo ........................................... 192.2.1 A validade discursiva .......................................................................... 242.2.2 Configurao procedimental do direito .............................................. 282.2.3 Autonomia em diferentes contextos de comunicao.......................... 32
2.3 Direitos fundamentais e ao comunicativa............................................... 36
2.3.1 A ao instituidora do legislativo........................................................ 392.3.2 A ao hermenutica do judicirio ..................................................... 412.3.3 A ao teleolgica do executivo.......................................................... 43
3 AO COMUNICATIVA E DIREITOS FUNDAMENTAIS......................... 45
3.1 Direitos humanos e seus contornos ............................................................. 463.2 Incorporao ordem jurdico-positiva..................................................... 523.3 O fenmeno da constitucionalizao........................................................... 553.4 Dimenses de direitos fundamentais........................................................... 613.5 Aspectos jurdico-normativos...................................................................... 64
3.5.1 Coao ou respeito voluntrio s normas? ........................................... 663.5.2 Configurao de regras e princpios ..................................................... 693.5.3 A aplicao da norma de direito fundamental...................................... 73
3.6 Abordagem axiolgica: limites da teoria habermasiana........................... 78
4 PARTICIPAO DOS SUJEITOS E SUA PROTEO ............................... 824.1 Democracia no contexto da ao comunicativa ......................................... 84
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4.2 O argumento moral da responsabilidade................................................... 924.3 guisa de complementaes ....................................................................... 98
5 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................. 108
6 REFERNCIAS.................................................................................................. 112
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1 INTRODUO
A modernidade1 tem revelado ao mundo as atrocidades da misria e da
excluso social, levando ao questionamento da possibilidade de estabelecer critrios
universais de fundamentao da moral e do direito. O quadro desenhado aponta para a
falncia dos sistemas econmicos, a flagrante desigualdade social, o falseamento das
antigas noes de tempo e espao determinado pelo uso crescente e o
aperfeioamento das redes de comunicao , a massificao cultural, a precariedade
do sistema educacional, o aumento dos ndices de criminalidade, interminveis
conflitos tnicos e religiosos, entre outros. A humanidade e suas instituies parecem
estar em crise, ensejando assim a busca de meios destinados a assegurar a gerao, a
conservao e o desenvolvimento da vida humana em sua integridade.
Diante desse quadro, pairam no ar algumas perguntas: possvel
proteger todos os seres humanos, de maneira indistinta, contra as vicissitudes da
sociedade moderna2
? Qual a importncia do plano discursivo na determinao dostipos e nveis de proteo? Qual o papel das normas jurdicas nesta empreitada? Esses
questionamentos vm chamando a ateno no apenas da teoria do direito como de
diversas outras reas do conhecimento, cujos contedos mantm com ela estreita
relao, tal qual a filosofia e a sociologia. Uma de suas mais instigantes abordagens
abre-se pesquisa dos direitos fundamentais e seu papel na tarefa de proteger o ser
humano contra as circunstncias que afrontam sua vida e dignidade.
Embora a civilizao ocidental tenha se estruturado, a partir do sculo
XVIII, sob a gide do denominado Estado democrtico de direito, a realidade, no
1 Cumpre esclarecer que o termomoderno e seus derivados sero utilizados aqui e no decorrer do texto comosinnimo do tempo atual, iniciado aps o movimento revolucionrio francs do sculo XVIII, e no no sentidoque normalmente lhe atribudo pela Histria. De acordo com Jrgen Habermas, o conceito de modernizaorefere-se a um conjunto de processos cumulativos e de reforo mtuo: formao de capital e mobilizao derecursos; ao desenvolvimento das foras produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho; aoestabelecimento do poder poltico centralizado e formao de identidades nacionais, expanso dos direitos departicipao poltica, das formas urbanas de vida e da formao escolar formal; secularizao de valores enormas etc. (HABERMAS, Jrgen. O discurso filosfico da modernidade. Traduzido por Luiz Srgio Repa
e Rodnei Nascimento. So Paulo: Martins Fontes, 2002c, p. 5). Hegel foi o primeiro filsofo a empregar o termomodernidade, atribuindo-lhe um carter predominantemente histrico.2 A expresso sociedade moderna corresponder s sociedades marcadas pelo processo civilizatrio euro-americano.
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raras vezes, faz perceber a quebra dos procedimentos democrticos legitimadores do
sistema estatal, j que a esfera pblica parece cada vez mais inacessvel maior parte
da populao mundial. Isso ocorre por mltiplos fatores, desde o simples impedimento
de participao determinado, por exemplo, pela pobreza ou violncia at a
participao desinteressada ou incapaz decorrente da ignorncia do participante.
As desigualdades s quais se fez meno do ensejo incorporao de
um ncleo de direitos, chamadosfundamentais, ordem constitucional, com o objetivo
especfico de dar efetividade proteo da dignidade humana. Isso exige, por bvio, a
atuao integrada de todos os poderes do Estado e a permeabilidade de suas esferas de
deciso, por determinaes emanadas do exerccio da soberania popular.A teoria habermasiana assume papel importante na investigao de
alguns dos aspectos levantados. Filsofo da segunda gerao da Escola de Frankfurt3,
Jrgen Habermas teoriza em torno de uma fundamentao sociolgica da
modernidade. Prope uma fundamentao formal do Direito e da Moral, com
pretenso de universalidade e apoiada sobre o paradigma da comunicao, cuja base
transcende a conscincia do sujeito para estabelecer-se intersubjetivamente. A
linguagem por ele estudada sob o ponto de vista pragmtico (relao entre sujeito e
objeto, sendo a linguagem encarada no mais como mera descrio e sim como
determinante da prpria estrutura da realidade) e tambm de acordo com seu carter
performativo.
Habermas tem absoluta conscincia da complexidade social, sendo
possvel extrair de suas digresses uma teoria da democracia focada na diferenciao
entre Estado e sociedade. Tal teoria baseia-se na percepo de que a democracia est
ligada a um processo discursivo que tem suas origens nas redes pblicas de
comunicao, com as quais os processos de institucionalizao legal e utilizao
3 O movimento filosfico denominado Escola de Frankfurt surge em 1923, como reao razo instrumental deorigem iluminista (cincia; positivismo jurdico), propondo o resgate das investigaes pertinentes fundamentao moral. Todavia, enquanto os primeiros filsofos daquele movimento (Adorno, Horkheimer)
buscavam a fundamentao da moral fora do campo da razo, Apel e Habermas apresentaram propostas que aidentificaram no prprio exerccio da razo e promoveram a substituio do paradigma da conscincia peloparadigma da comunicao. Vide a respeito: MATOS, Olgria C. F. A escola de Frankfurt: luzes e sombras doiluminismo. So Paulo: Moderna, 1993. (Coleo Logos).
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administrativa do poder esto indissoluvelmente ligados.4
Sua opo procedimental justificada a partir da distino entre o bom e
o justo, o tico e o moral. A compreenso daquilo que bom (contedo da tica)
depende de relaes concretas entre os sujeitos, estando assim merc das vicissitudes
de uma sociedade complexa; ao passo que o justo (forma da moral e do direito)
definido pelo respeito a procedimentos essencialmente democrticos. Por isso,
somente uma proposta de carter formal, estabelecida a partir da suposio da
existncia de uma comunidade ideal de comunicao, poderia alar pretenso de
universalidade.5
Em Direito e Democracia: entre facticidade e validade6
, ao proceder explicao da estruturao e do funcionamento da sociedade, ele refere-se aos direitos
fundamentais a partir de uma perspectiva procedimental, equiparando-os assim a
princpios reguladores da ao dos poderes legislativo, judicirio e executivo no
Estado democrtico de direito. Sua tese a de que cada qual corresponde a um
contexto diferenciado de comunicao, em que se percebem diferentes momentos e
formas de participao dos sujeitos.
A partir da proposta habermasiana, ento, procurar-se- verificar em que
medida os direitos fundamentais esto aptos a cumprir o objetivo a que se propem
idealmente, qual seja o de conferir proteo universal vida e dignidade humanas.
Isso porque, num mundo marcado pela diferena, conhecer o papel de cada indivduo
da constituio, interpretao e aplicao dos direitos fundamentais, bem como as
regras que conduzem esses procedimentos e se h necessidade de identificao de um
4 AVRITZER, Leonardo. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrtica.So Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996, p. 15.5 Segundo Habermas, o fato de a distino entre questes morais e ticas fazer diferena no campo da justiapoltica, e no estar simplesmente correndo em ponto morto , fica claro quando se consideram as discussesocorridas hoje no mbito do multiculturalismo, bem como os esforos de paz ante os conflitos tnicos naEuropa Oriental e Meridional ou ainda o exemplo da Conferncia de Direitos Humanos de Viena, em querepresentantes asiticos e africanos discutiram com representantes das sociedades ocidentais a interpretao dosdireitos fundamentais (ou ao menos tidos como fundamentais). (HABERMAS, Jrgen. A incluso do outro:estudos de teoria poltica. Traduzido por George Sperber e Paulo Astor Soethe. So Paulo: Loyola, 2002, p.306)6 Esta constitui a obra central de anlise deste trabalho, j que demarcou a concepo de direito dentro daestrutura social binria j proposta pelo autor, segundo a qual a sociedade divide-se entre sistema e mundo da
vida, como se ver mais adiante. Alm disso, a partir deDireito e Democracia, o direito passa a ser encaradocomo co-originrio em relao moral, e no como simples consectrio desta (HABERMAS, Jrgen. Direito edemocracia: entre facticidade e validade. Traduzido por por Flvio Beno Seibeneichler. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1997, 2 v.).
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fundamento material capaz de conferir proteo independente da vontade da maioria,
constitui ponto certo de discusso.
A primeira medida adotada, neste estudo, ser contextualizar a teoria da
ao comunicativa diante dos paradigmas filosficos da modernidade e explicitar
algumas de suas linhas de argumentao. Nesse norte, com vistas ao esclarecimento da
questo democrtica, assumem destaque a concepo dual da sociedade, o papel das
comunidades de fala na constituio da esfera pblica, os requisitos de validade
discursiva, a concepo de direito, a descrio das esferas de autonomia pblica e
privada e, finalmente, os diferentes contextos de comunicao presentes na estrutura
do Estado.O delineamento da teoria da ao comunicativa permitir, numa segunda
etapa, a anlise de aspectos dos direitos fundamentais especificamente relacionados a
sua constituio e efetividade da proteo que visam conferir dignidade da pessoa
humana. Para isso, ser importante dar conta das propostas de fundamentao que
giram em torno da criao de um ncleo de direitos considerados fundamentais, assim
como da fora normativa que adquirem ao serem incorporados Constituio e de sua
abertura de sentido.
Em vista do marco terico escolhido para esta pesquisa, a anlise
efetuada no segundo momento ser orientada pela compreenso de que, em Habermas,
toda abordagem dos direito fundamentais est limitada esfera procedimental. Em
suma, trata-se dos princpios democrticos relacionados validao do processo de
formao do direito.
A contextualizao dos primeiros captulos dar suporte, num ltimo
momento, ao estudo de questes relacionadas participao de minorias nos processos
de criao do direito e efetividade da proteo especificamente conferida pelos
direitos fundamentais. Tero espao, nesta discusso, as crticas dirigidas teoria
habermasiana e eventuais propostas de complementao.
Esta introduo no poderia deixar de lado a irregularidade com que
filsofos, socilogos e juristas utilizam os termos direitos humanos (a) efundamentais
(b). Para fins de clareza do texto, adotar-se- a compreenso segundo a qual (a) osdireitos humanos dizem respeito a um estatuto universalmente vlido e vinculado
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noo moral de gerao, preservao e desenvolvimento da dignidade humana,
integrando o ncleo das teorias da justia; porquanto (b) os direitos fundamentais
trazem consigo a idia de positivao, isto , de sua incorporao por processos
democrticos a sistemas jurdicos nacionais e internacionais7.
Em que pesem as opinies divergentes, optou-se por incluir na ordem
dos direitos fundamentais os preceitos inerentes ao sistema internacional. Afinal, a
transposio de uma ordem normativa no escrita para a forma escrita requer a adoo
de processos formais de discusso, dos quais participam sujeitos determinados. Mesmo
sem estar resguardada por sanes equivalentes s existentes na ordem interna, de se
considerar que tais processos instauram entre os Estados participantes e os organismosinternacionais um certo vnculo obrigacional, que os equipara ordem jurdico-
positivas interna.
Mesmo adotadas como marco terico as digresses de Jrgen Habermas,
especialmente no que dizem respeito teoria da ao comunicativa, este trabalho no
tem o objetivo de analisar exaustivamente a obra do referido autor. Os elementos da
ao comunicativa sero apresentados, portanto, como ponto de partida para a
investigao dos processos democrticos inerentes constituio de direitos humanos
e fundamentais, com nfase nos princpios de liberdade e igualdade e seu papel no
respeito e na proteo dos interesses divergentes presentes em sociedades modernas, as
quais so inquestionavelmente marcadas pela complexidade de sua estrutura e
instituies.
7 Vide a respeito: BOROWSKI, Martin. La estructura de los derechos fundamentales. Traduzido por CarlosBernal Pulido. Bogot: Editora da Universidad Externado de Colombia, 2003, p 30-33. (Serie de TeoraJurdica y Filosofa del Derecho n. 25)
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2 FUNDAMENTAO E PROCEDIMENTO EM J. HABERMAS
No estudo dos elementos que informam a constituio e a aplicao de
direitos fundamentais, destaca-se investigao de questes relacionadas considerao
das concepes de mundo e condies materiais de vida de cada sujeito, bem como
necessidade do estabelecimento de consensos como condio sine qua non para a
existncia perpetuada daquele conjunto normativo. Sob este aspecto que se apresenta
a contribuio de Jrgen Habermas e sua teoria da ao comunicativa.
Amparado em matriz filosfica intersubjetiva, o referido autor procede anlise do direito sob uma perspectiva eminentemente formal. Em outras palavras: a
partir de um modelo dual, que divide a sociedade em espaos institucionalizados e de
participao democrtica, o direito concebido como um elo de ligao estas duas
esferas e sua validade condicionada ao respeito de determinados requisitos discursivos.
A compreenso da teoria habermasiana exige, todavia, a explicitao
preliminar dos paradigmas da filosofia moderna, de modo a situar a proposta estudada
num contexto terico-filosfico mais amplo, identificando seus pressupostos e linhas
de argumentao.
2.1 Paradigmas filosficos da modernidade
A possibilidade do estabelecimento de um fundamento ltimo constitui
tema recorrente da Filosofia, diante do exerccio da razo. Existe alguma chance de
obter-se certeza quanto justificao da origem de aes e pensamentos? Ou, ao
contrrio, toda tentativa de fundamentao acaba por cair no vazio e no infinito das
respostas oferecidas pelo denominado Trilema de Mnchhausen8? Essas preocupaes
8O trilema de Mnchhausen correspondente crtica racionalista segundo a qual todo processo de
argumentao desemboca inevitavelmente num trilema: a via que conduz num regresso infinito (a), pois oltimo fundamento requer seu prprio fundamento sempre penltimo pelo que irrealizvel a pretensofundante; o procedimento do crculo lgico (b) insatisfatrio, pois o fundamento de uma proposio, mostra-sepor seu turno, carente de fundamentao; e, por fim, na atitude de interrupo do processo (c) em dado
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justificam-se pela necessidade de identificar, ao longo da histria, os paradigmas
caractersticos das especulaes filosficas constitutivas da base do pensamento
jurdico da atualidade.
O primeiro deles, inerente filosofia clssica e medieval est atrelado a
uma concepo ontolgica9 do mundo. Firmando-se no denominado paradigma do
ser esta vertente acredita que os objetos possuem significado em si mesmos, de modo
que tudo o que se possa dizer a seu respeito constitui mera revelao de uma realidade
preexistente. Neste sentido, o conhecimento no dispe de qualquer fora criadora;
metafsico em sentido estrito10, estando condicionado pela essncia daquilo que se
observa.Na esfera do direito, tais prerrogativas vm ao encontro das justificaes
apresentadas para ordens naturais ou divinas, cuja legitimidade assenta-se em foras
estranhas conscincia humana, aceitas por imposio de uma moral transcendental.
No h espao para a criao de direitos, mas apenas para a revelao de um contedo
preexistente.
A modernidade marcada pela mudana paradigmtica que transfere o
centro das investigaes filosficas doser para osujeito. Nesta linha, j no se admite
que o conhecimento verdadeiro esteja impregnado numa realidade ontolgica, ideal,
distanciada de fatores empricos. Ao contrrio, ele resulta da observao racional de
cada sujeito. Isto fruto do processo de racionalizao do mundo, da noo de que o
homem um ser pensante e de que toda a realidade s pode ser esboada a partir da
atividade humana cognitiva.
A subjetividade passa a constituir a marca dos tempos modernos a partir
momento, tido este como dogma seguro de onde se parte na deduo de tudo mais, configura atitude dogmticanegadora do fundamento enquanto ltimo. (LUDWIG, Celso Luiz. Formas da razo: racionalidade jurdica efundamentao do Direito. Tese de doutorado. UFPR. Curitiba, 1997, p. 11)9 Plato [...] o primeiro a insistir sobre o carter a priori (em sentido mais geral, como visto, o termo significaindependncia da experincia sensvel), indispensvel a todo conhecimento, principalmente se este se pretendeepistmico, isto , com objeto e metodologia delimitados, sistematizvel e transmissvel, em suma: apodtico.[...] Para Plato, as idias constituem a verdadeira realidade, vlida no em si mesma mas sim enquanto participado ser essencial (ideal), imperceptvel pelos rgos dos sentido. [...] Pela expressoontolgico sugerida percebe-se que as idias platnicas so consideradas existentes por si mesmas, independentemente de qualquerpensamento, de qualquer sujeito ou forma de conhecimento; ao contrrio, a existncia prvia das idias quecondiciona o ser e o conhecer no mundo emprico. (ADEODATO, Joo Maurcio. Filosofia do direito: uma
crtica verdade na tica e na cincia. 3. ed. rev. e ampl. So Paulo: Saraiva, 2005, p. 48-49)10 Quanto controvrsia existente sobre o uso do termo metafsica, cujo sentido estrito refere-se idia derealidade objetiva revelada e o sentido amplo tambm teoria da conscincia, vide: HABERMAS, Jrgen.Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 21-27.
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da obra de Hegel, assumindo quatro conotaes: o individualismo que guia as aes
humanas, as quais revelam sempre a inteno de satisfao de pretenses particulares;
o direito de crtica, que representado pela necessidade de legitimao; a autonomia
da ao, qual est atrelada a noo de responsabilidade; e a opo por uma filosofia
idealista, caracterizada pela idia de autocompreenso11.
Nenhuma verdade existe a priori sendo ela constituda pela infinita
capacidade de especulao e criao da qual dispe o ser humano. Por este motivo, a
cincia passa a ocupar o lugar que antes pertencia religio e s determinaes de
origem natural, inquestionveis sob o prisma da experimentao e da crtica.
O advento da perspectiva racional coloca em evidncia o meio pelo quala realidade apresentada, passando este a constituir um dos principais elementos de
investigao filosfica a partir do sculo XIX: a linguagem.
Uma vez negada a origem ontolgica do conhecimento e admitido que a
realidade no simplesmente revelada, mas conscientemente construda, torna-se
necessrio analisar signos, significantes e significados atravs dos quais ela
representada. Isto proporciona a superao das propostas de fundamentao subjetiva,
uma vez que toda especulao filosfica passa a estar assentada sobre a base estrutural
da linguagem. Substitui-se o ponto central do debate, com a sada de foco das relaes
sujeito-objeto para a entrada daquelas estabelecidas entre a linguagem e o mundo ou
entre as proposies e o estado de coisas12.
Nessa linha, somente a compreenso dos elementos que compem a
linguagem permitir determinar qual seja o conhecimento verdadeiro, sendo duas as
etapas desta investigao: a primeira, predominante at meados do sculo XX,
caracteriza-se pela adoo da perspectiva analtica, de estudo semntico e sinttico; j
a segunda preocupa-se com o uso ordinrio que lhe conferido.
Na perspectiva da denominada filosofia da linguagem analtica, signos,
significantes e significados so estudados isoladamente, sem qualquer conexo com o
uso que lhes conferido ordinariamente. A anlise , assim, tomada no sentido de
decomposio de um complexo de proposies, com o intuito de evidenciar seus
11 HABERMAS, 2002c, p. 25-26.12 HABERMAS, 1990, p. 15.
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elementos constituintes e sua forma lgica, mitigando os problemas referentes
relao entre o real e sua representao lingstica13.
A idia possibilitar a construo de uma espcie de metalinguagem, de
base lgico-matemtica, capaz de conferir objetividade descrio da realidade,
eliminando todo grau de subjetivismo ou imperfeies prprias da representao
decorrente do uso da linguagem ordinria.
A obra de Ludwig Wittgenstein assume papel importante na passagem da
perspectiva analtica para a filosofia da linguagem ordinria. Embora numa primeira
etapa representada pela publicao de seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921)
suas lies estivessem limitadas ao estudo sinttico e semntico, num segundomomento Wittgenstein empenhou-se com a anlise contextual da linguagem e o uso
ordinrio que lhe conferido.
Essa nova abordagem por ele exposta em Philosophisce Intersichugen
(Investigaes Filosficas), publicada em 1953. De acordo com Katya Kozicki14,
Podemos notar duas mudanas significativas entre um e outro perodo. A primeira que, no Tractatus, WITTGENSTEIN acreditava que a estrutura interna da realidade
determinava a estrutura da linguagem. Esta concepo foi depois abandonada,passando ele a acreditar que ocorre justamente o contrrio: a linguagem quedetermina a estrutura da realidade, uma vez que atravs da linguagem que as coisasso vistas. A segunda alterao se refere teoria da linguagem. De incio,WITTGENSTEIN acreditava que as lnguas partilham de uma estrutura lgicauniforme, apresentam uma essncia comum. Posteriormente, passou a acreditar queisto no se verificava; a linguagem no possui uma estrutura comum e, se a possuir,ela ser to nfima que no permitir explicar as relaes entre as suas vrias formas.Estas duas alteraes marcam a mudana de mtodo entre uma fase e outra.
Na ltima etapa de sua obra, Wittgenstein15 elimina a hegemonia dos
mtodos de anlise sinttica e semntica da linguagem, focando sua ateno no uso
que lhe conferido em contextos de comunicao, ou seja, na perspectiva pragmtica.
A linguagem passa, portanto, a ser estudada no apenas como o meio atravs do qual a
conscincia da realidade se expressa, mas tambm como um objeto que , ele prprio,
construdo pela comunidade de falantes.
13 MARCONDES, Danilo. Duas concepes de anlise no desenvolvimento da filosofia analtica. In: Maria
Ceclia M. de (org.). Paradigmas filosficos da atualidade. Campinas: Papirus, 1989, p. 35.14 KOZICKI,Katya. H. L. A. Hart: a hermenutica como via de acesso para uma significao interdisciplinardo direito. Florianpolis: UFSC, Dissertao de mestrado, 1993, p. 10.15 KOZICKI, 1993, p. 7-26.
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Esse novo modo de conceber a linguagem impossibilita a determinao
de um cdigo lgico e universal de anlise lingstica, na medida em que impe a
considerao de circunstncias empricas como tempo, espao e sujeitos, as quais so
absolutamente variveis. Neste sentido, para que possa se adaptar aos contextos de
fala, preciso que o significado das expresses seja sempre aberto vago e ambguo
, revelando os processos de escolha contidos nos atos de fala. A isto corresponde a
noo de jogos de linguagem, os quais evidenciam a confluncia entre a vontade
individual e os apelos exteriores, prprios da vida em comunidade.
A compreenso de que o uso da linguagem e sua prpria estrutura so
determinados pelo contexto em que ocorrem impe, por conseqncia, a superao dasconcepes de mundo individualistas prprias da primeira fase do pensamento
filosfico da modernidade e o advento do paradigma filosfico intersubjetivo.
No a fala pura e simples de cada indivduo que constitui a realidade,
mas a fala considerada em determinado contexto comunitrio, fruto da interao entre
o sujeito e o outro com quem se fala. Privilegia-se o processo argumentativo em
detrimento da mera contemplao. Portanto, a filosofia deve preocupar-se com o
aspecto interativo da circunstncia da vida em comunidade e no simplesmente com o
ato isolado de pensar. Afinal, o verdadeiro conhecimento j no reside no objeto ou no
sujeito, mas no consenso obtido validamente no seio de uma determinada comunidade.
Karl-Otto Apel pode ser apontado como um de seus precursores. Assim
como Peirce, tambm Apel ressalta o fato de que o falante sempre pertence a uma
comunidade lingstica e, sendo sujeito de um sistema de regras lingsticas, o que
deve valer, em ltima anlise, no o indivduo e sim uma comunidade, ou seja, um
sujeito coletivo16. Suas lies sugerem uma fundamentao transcendental-
pragmtica do princpio do discurso, ou seja, com recurso s condies ticas do
mundo da vida17.
16 RD, Wolfgang. O problema da fundamentao ltima na filosofia contempornea: o debate entreracionalismo crtico e pragmtica transcendental. In: Maria Ceclia M. de Carvalho (org.). Paradigmas
filosficos da atualidade. Campinas: Papirus, 1989, p. 130.17 MOREIRA, Luiz (org.); APEL, Karl-Otto; OLIVEIRA, Manfredo Arajo de. Com Habermas, contraHabermas: direito, discurso e democracia. Traduo dos textos de Karl-Otto Apel por Cludio Molz. SoPaulo: Landy, 2004, p.. 38.
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Em linha paralela, embora distinta, segue Habermas. Sua obra
principalmente a partir da publicao de Direito e Democracia: entre facticidade e
validade (1992) pe em destaque a idia de que as relaes de interao entre os
sujeitos sociais so constitutivas da realidade que os circunda, de forma complementar
conscincia individual. Isto impe o abandono do solipsismo em prol da
compreenso de que as aes humanas so determinadas pelo resultado da interao
entre a vontade individual, cujas motivaes no podem ser identificadas por critrios
cientficos de observao, e fatores exteriores, presentes no espao pblico de
comunicao.
Cumprindo o fim a que se prope esta pesquisa, a teoria habermasianapassar a ser apresentada como constitutiva de um quarto paradigma filosfico: o
paradigma da ao comunicativa.
2.2 Habermas, a sociedade e o agir comunicativo
Habermas18 no se contenta com a perspectiva pragmtica. Vai alm
dela, descrevendo a sociedade sob o pano de fundo da razo comunicativa, a qual
considerada fonte das normas do agir somente na medida em que exige que o sujeito
que age comunicativamente esteja amparado em pressupostos contrafactuais de
validade. Ao aspecto factual da ao humana somam-se assim elementos idealizados,
que permitem apreender a realidade contextualizada a partir de fatores comuns de
anlise, conferindo-lhe ou no validade intersubjetiva.
Na tenso entre o ideal e o real19 est a possibilidade de obteno dos
consensos constitutivos da esfera de comunicao social. Afinal, a ao somente deixa
de ser guiada por interesses para estar voltada ao entendimento quando existe algo a
determinar a unificao das vontades particulares, que consiste, de acordo com a
18 HABERMAS, Jrgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Traduzido por Flvio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 1, p. 20-21.19 Sobre a diferena entre o real e o verdadeiro, Habermas esclarece que real o que pode ser representado emproposies verdadeiras, ao passo que verdadeiro pode ser explicado a partir da pretenso que levantada porum em relao ao outro no momento em que assevera uma proposio. (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 32)
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proposta habermasiana, nos pressupostos formais de validade discursiva, j que
difcil estabelecer os motivos subjetivos que levam os indivduos a agirem desta ou
daquela maneira. Destacando o aspecto interativo da ao comunicativa, o prprio
autor afirma que
se pudermos pressupor por um momento o modelo da ao orientada ao entendimento,[...] deixa de serprivilegiada aquela atitude objetivante em que o sujeito cognoscentese dirige a si mesmo como a entidades no mundo. Ao contrrio, no paradigma doentendimento recproco fundamental a atitude performativa dos participantes dainterao que coordenam seus planos de ao ao se entenderem entre si sobre algo nomundo. O ego ao realizar um ato de fala, e o lter ao tomar posio sobre este,contraem uma relao interpessoal. Esta estruturada pelo sistema de perspectivasreciprocamente cruzadas de falantes, ouvintes e presentes no participantes no
momento. A isto corresponde, no plano da gramtica, o sistema de pronomes pessoais.Quem se instruiu nesse sistema aprendeu como se assumem, em atitude performativa,as perspectivas da primeira, segunda e terceira pessoas, e como elas se transformamentre si.20
A compreenso de que, em algum momento, a ao estar voltada ao
entendimento faz com que Habermas descreva a sociedade em dois diferentes nveis:
sistema e mundo da vida. O primeiro corresponde ao espao de predomnio da tcnica,
regido por mecanismos diretores auto-regulados, onde no h o desenvolvimento deaes marcadas pela interao entre os sujeitos. Nele esto compreendidas a economia
e as relaes estatais de poder.J o mundo da vida coincide com os espaos guiados
pela perspectiva da comunicao, cujos procedimentos so mediados lingisticamente.
Ele constitui um horizonte e, ao mesmo tempo, oferece um acervo de evidncias
culturais do qual os participantes da comunicao tiram, em seus esforos de
interpretao, padres exegticos consentidos21.
No mundo da vida aflora a intersubjetividade, sempre pautada natentativa de obteno do consenso. Jos Marcelino de Rezende Pinto22 esclarece que
seus componentes estruturais so a cultura, a sociedade e a pessoa. A primeira
corresponde ao arcabouo de conhecimento atravs do qual os atores sociais procuram
compreender as coisas mundanas; a segunda, s ordens legtimas das quais eles se
20 HABERMAS, 2002c, p. 414.21 HABERMAS, 2002c, p. 416-417.22 PINTO, Jos Marcelino de Rezende. Administrao e liberdade: um estudo do conselho de escola luz dateoria da ao comunicativa de Jrgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p. 15-76. Videtambm: HABERMAS, 2002c, p. 417-418.
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valem para regular suas relaes sociais; e a ltima, s competncias que conferem ao
sujeito a capacidade de constituir sua prpria personalidade, ao falar e agir na esfera
social.
A distino proposta contempla duas espcies de racionalidade: (a) a
instrumental, caracterizada pela previsibilidade e calculabilidade de seus resultados,
relaciona-se ao funcionamento auto-regulado do sistema, sobre o qual no h
ingerncia direta da vontade poltica dos sujeitos; e (b) a comunicativa, que se refere
ao universo dos atos de fala, da ao poltica propriamente dita, em relao qual se
faz necessrio observar os procedimentos democrticos, sendo esta a caracterstica
predominante do mundo da vida e de sua relao com o sistema.No campo da racionalidade comunicativa, a linguagem abandona
contornos meramente descritivos, para assumir sua capacidade performativa. O
indivduo (inter)age no mundo da vida: isto significa dizer que sua fala absorvida
pelos demais integrantes da sociedade tanto quanto sofre influncia destes e das
circunstncias concretas da vida, numa espcie de via de mo-dupla, cujo resultado
a constituio de uma verdade democrtica23.
A tenso entrefacticidade e validade isto , entre sistemas de coao
externos e a fora legitimadora das aes racionalmente motivadas o que tipifica
as sociedades modernas, na viso de Habermas. Ela passa a existir no momento em
que a razo confere autonomia s aes humanas, desvinculando-as das determinaes
exteriores que lhe exigiam simples obedincia.
A conscincia da liberdade coloca o sujeito diante de diferentes
possibilidades de escolha, impondo-lhe a necessidade de motivar suas opes todas as
vezes que seu comportamento estiver voltado tentativa de obteno de acordos. Isto
traduz a idia de legitimao, especificamente presente no ambiente discursivo
caracterstico do mundo da vida. Sua presena capaz de garantir a integrao no
violenta da sociedade.
23 Aqui reside a idia de reconhecimento representado pela possibilidade de fazer-se reconhecer na diferenaperante o outro , cuja existncia condio sine qua non para o alcance do consenso. Esta questo introduz adiscusso acerca da possibilidade do reconhecimento das diferenas e suas limitaes diante da necessidade deobteno de consensos sociais.
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possvel, ainda, afirmar que a oposio entre sistema e mundo da vida
gera diferentes possibilidades de integrao24. A primeira seria a integrao social,
caracterizando-se pelo consenso obtido normativa ou comunicativamente a partir do
mundo da vida. Em sentido contrrio viria a integrao sistmica, como resultado da
determinao no-normativa de decises individuais, imposta por mecanismos auto-
regulados como o mercado e a burocracia.
A prevalncia dessa ltima forma de integrao constitui o mal da
modernidade, que Habermas denomina colonizao do mundo da vida, ensejando
assim a tentativa de resgate das condies de moralidade e conseqente legitimidade
social. Proposta que ser formulada por Habermas atravs do conceito de agircomunicativo, uma vez que, de atravs dele, todo entendimento, toda integrao social
dar-se- por meio de uma linguagem intersubjetivamente compartilhada que acopla
critrios pblicos de racionalidade25.
O desequilbrio na tenso entre sistema e mundo, designado como um
processo colonizador, assume feies concretas no confronto entre as perspectivas
marxista e habermasiana. A construo terica de Karl Marx funda-se na noo de
dialtica materialista, a qual tem por pressuposto a anlise das relaes materiais da
vida, que caracterizam a sociedade civil26 e seu movimento histrico. Tais relaes so
aquelas firmadas com o intuito de satisfazer necessidades humanas involuntrias,
compondo a estrutura do sistema; ao passo que a sociedade civil tomada como a
esfera em que os possuidores de mercadorias interagem ou onde se do as relaes
materiais da vida, formando a superestrutura. As conscincias poltica e jurdica so,
portanto, sempre decorrentes de fatos econmicos, no interessando inicialmente
construo de uma teoria calcada na idia de determinismo econmico.
24 PINTO, 1996, p. 80.25 MOREIRA, Luiz. Fundamentao do direito em habermas. 2. ed.. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002,p. 117.26 A sociedade civil corresponde ao nvel onde se d o relacionamento dos possuidores de mercadorias, asrelaes materiais da vida ou o metabolismo social. Ela constitui a antomia ou a base da estrutura social. Masa sociedade burguesa (o termo alemo , tambm, como se viu, brgerliche Gesellschaft) rene, para Marx, no
somente o modo burgus de produo como tambm as relaes jurdicas, o Estado burgus, etc., que implica.Em sua realidade histrica, a brgerliche Gesellschaft a sociedade capitalista, com todas as formaes sociaisque lhe so prprias. (MARX, Karl. Para a crtica da economia poltica. 4. ed. So Paulo: Nova Cultural,1987, p. 27-32, p. 29, nota 15).
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Habermas27 critica a tese marxista, aduzindo que embora nas primeiras
etapas do capitalismo tenha se verificado a total ingerncia do sistema econmico
sobre as demais esferas sociais, tal constatao no se aplica fase avanada de seu
funcionamento, denominada capitalismo tardio28. Segundo ele, a evoluo histrica
demonstrou a falsidade da suposio marxista, de que o capitalismo seria capaz de se
auto-regular eternamente, e, em funo das crises verificadas em seu prprio seio, o
Estado viu-se obrigado a intervir na sociedade, provocando o desfazimento das
fronteiras prprias da lutas de classe. Com isso, algumas questes antes relacionadas
economia, a exemplo da determinao dos salrios, acabam flutuando para campos
como a poltica, a qual passa a constituir, no interior do paradigma habermasiano dacomunicao, uma dimenso prtico-moral capaz de estabelecer os fundamentos da
emancipao humana 29.
Uma das principais diferenas entre as concepes apontadas reside na
aceitao da formao da vontade coletiva. Como ressalta Leonardo Avritzer30, a
imposio econmica em que se ampara a teoria marxista impede a visualizao da
constituio de uma vontade que supere a esfera individual. Isto ocorre, porque o
comportamento dos sujeitos estaria sempre e apenas guiado pela necessidade da
consecuo de meios para a satisfao de suas necessidades pessoais, de forma que
qualquer manifestao coletiva significaria nada mais do que a soma de vontades
particulares eventualmente coincidentes.
As noes marxistas contrariam frontalmente a proposta habermasiana,
segundo a qual possvel que o indivduo fundamente sua ao em outros requisitos,
que no os de carter meramente econmico. Pautado na idia de ao comunicativa,
Habermas admite que o homem seja capaz de justificar seu comportamento no s por
interesses particulares, mas tambm direcionado ao entendimento. Circunstncia
correspondente pretenso de atingir resultados justos e corretos a partir de discusses
27 HABERMAS, Jrgen. A crise de legitimao no capitalismo tardio. 2. ed. Traduzido por VamirehChacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002a, p. 39-56.28 A noo de capitalismo tardio ope-se posio liberal. Enquanto esta pressupe um sistema econmico auto-organizado e auto-regulado, aquela outra perspectiva assenta-se na existncia de um Estado apto a intervir no
mercado para corrigir as distores provenientes do livre desenvolvimento das relaes entre capital e trabalho.29 AVRITZER, Leonardo. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrtica.So Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996, p. 27.30 AVRITZER, 1996, p. 28-33.
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estabelecidas em ambientes democrticos, em que se faa possvel o reconhecimento
da alteridade e, a partir da, a obteno de consensos moralmente vlidos,
representativos de uma vontade coletiva.
2.2.1 A validade discursiva
A ao comunicativa imps ao pensamento filosfico da modernidade
importante alterao de seu eixo de investigao, o qual deixa de estar apoiado sobre aconscincia individual para adotar uma perspectiva intersubjetiva.
No que diz respeito linguagem, a Habermas interessa mais a
investigao das condies discursivas em que se encontram os sujeitos e o contexto
de sua fala, do que o estudo se sua estrutura. Por esse motivo, decompe os atos de
fala nos seguintes elementos: (1) oproposicional denota a relao entre a realidade e o
contedo da fala, sua capacidade de expor estados de coisas; (2) o ilocucionrio
representa a capacidade de instituir relaes interpessoais; e (3) o lingstico revela a
inteno dos falantes31. O segundo deles assume lugar de destaque na teoria da ao
comunicativa, pois revela o papel essencial da linguagem na constituio da
coletividade.32
por inserir-se no mundo da vida que a fala assume feio ilocucionria.
Isto ocorre, porque o ser humano no costuma direcionar naturalmente sua ao para o
entendimento e sim para a satisfao de interesses pessoais, de modo que somente a
circunstncia de pertencer ao mundo da vida obriga-o a agir com vista obteno de
acordos.
31 HABERMAS, 2002c, p. 434. A identificao dos elementos que compem a estrutura dos atos de fala, nestapassagem do texto de Habermas, no coincide com a tipologia apresentada por Austin, segundo o qual os atos de
fala classificam-se entre: (a) atos locucionrios, que correspondem a oraes enunciativas, com as quais se dizalgo; (b) atos ilocucionrios, que correspondem a aes de seu emissor, normalmente representadas pelo uso de
verbos realizativos como te prometo, te ordeno, etc.; e (c) atosperlocucionrios que possuem tambm aspectosobrigacionais, tal qual ocorre nas decises judiciais (ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurdica edemocracia. So Leopoldo: Editora Unisinos, 1998, p. 24)32 HABERMAS, 1997, v. 1, p. 36.
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A explicao para isso reside no fato de que toda motivao racional para
o acordo assenta-se na possibilidade de dizer no proposta que apresentada
coletivamente; possibilidade que, em sociedades marcadas pela complexidade e pela
diferena, pode gerar profundo dissenso e a inviabilidade da integrao por meio no
violento. Apenas num espao em que toda pretenso de validade est atrelada noo
de consenso e condicionada ao respeito de requisitos democrticos a coeso social no
violenta estaria garantida. O que se d no mundo da vida.33
Aproximando-se da idia weberiana de tipo ideal34, Habermas analisa as
condies de validade discursiva a partir da descrio de uma comunidade ideal de
fala. Trata-se de um ambiente ilusrio, onde se pressupe estarem presentes todos oselementos essenciais formao de consensos vlidos, e seu fundamento ltimo a
plena realizao do ideal democrtico.
Tanto a moral quanto o direito so tomados como sistemas normativos
advindos de atos de comunicao operados no mundo da vida, acerca dos quais
preciso estabelecer bases de validao que permitam atribuir-lhes carter universal.
Esto inscritos em todo discurso pressupostos transcendentais. Estes resultam do fato
de que as expectativas pressupostas na ao lingstica orientada para o entendimento
so exigidas em toda situao ideal de fala35.
Os pressupostos do discurso consistem na inteligibilidade, veracidade,
verdade e respeito participao de todos os sujeitos que integram a comunidade de
fala, os quais traduzem o ideal democrtico e foram sintetizados no princpio
universalizante (U):
Que uma norma s vlida quando as conseqncias presumveis e os efeitossecundrios para os interesses especficos e para as orientaes valorativas de cada
33 HABERMAS, 1997, v. 1, p. 40-41.34 Trata-se de modelos cientficos de comparao frente realidade, constitudos pela otimizao dascaractersticas essenciais e ideais do objeto observado. Quanto a sua utilizao, evidente a improbabilidade deque a realidade venha a se equiparar a um tipo ideal puro, mas no h como negar a contribuio desta propostapara o alcance de um mtodo (at certo ponto) universal de investigao da realidade social. Juan Carlos Agulladestaca que los tipos ideales son conceptos construidos racionalmente a partir de la experiencia, que contienenlos caracteres ms generales y tpicos de la accin. Es decir, son elementos obtenidos dela realidad emprica peroen su conjunto son extraos a ella. Son como una caricatura: muestran los rasgos ms importantes,
exagerndolos. (AGULLA, Juan Carlos. Teora sociolgica. Buenos Aires: Depalma, 1987, p. 207-208)35 LUDWIG, Celso Luiz. Razo comunicativa e direito em Habermas. Curitiba: UFPR, 1997. Retomada daexposio feita por ocasio do Seminrio A Escola de Frankfurt e o Direito, realizado em julho/97 (trabalhono publicado).
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um, decorrentes do cumprimento geral dessa mesma norma, podem ser aceitos semcoao por todos os atingidos em conjunto.36
De acordo com o princpio da inteligibilidade, o discurso deve sercompreendido pela totalidade dos membros da sociedade em que est sendo
implementado. Trata-se, portanto, de anlise lingstica, inafastvel diante da
necessidade do consenso, pois este s surgir validamente quando cada indivduo
participante daquele processo puder se fazer compreender pelos demais, bem como
internalizar o contedo das manifestaes do outro e aquelas resultantes da vontade da
maioria. Contedo ao qual sabe estar submetido desde o momento em que aceitou
viver socialmente.
A veracidade traduz-se na sinceridade que deve estar presente durante a
formao do discurso. De nada adiantaria a compreenso de seu contedo se as
intenes manifestadas na discusso que o precedeu forem mentirosas. Primeiro,
porque ningum age contra sua prpria vontade ou contra a vontade da maioria, o que
fatalmente ocorreria se fosse conferida validade a uma fala obtida a partir de
elementos destitudos de sinceridade. Depois, porque a mentira macula a prpria idia
de consenso, na medida em que vicia as manifestaes de vontade.
Quanto a este segundo princpio, deve-se considerar que cada indivduo
tem seus motivos para aceitar ou negar o discurso defendido pelos demais e, ainda, que
tomar esta atitude baseado em argumentos apresentados no ambiente de discusso.
Isso justifica a insistncia habermasiana com relao sinceridade das manifestaes
proferidas na esfera pblica, pois os resultados de um consenso podem ser
prejudicados diante de um discurso no sincero.Na teoria do discurso, a verdade interpretada em sentido formal, como
um resultado a ser obtido consensualmente. Todavia, necessria uma conformao
mnima com o mundo ftico-objetivo, para que a comunidade no caia em contradio
lgico-performativa. Nesse ponto, Habermas destaca a imbricao existente entre o
objeto e o sujeito que o descreve, chamando a ateno para o carter instituidor e
transformador da linguagem. Em suas palavras:
36 HABERMAS, 2002c, p. 56.
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[...] na compreenso de enunciados elementares relativos a estados ou acontecimentosno mundo, a linguagem e a realidade se interpenetram de uma forma que, para ns, indissolvel. No existe nenhuma [sic] possibilidade natural de isolar as limitaesimpostas pela realidade que fazem verdadeiro um enunciado, das regras semnticasque estabelecem as condies de verdade dele mesmo. S podemos explicar o que um fato com ajuda da verdade de um enunciado sobre fatos; e o que real s podemosexplic-lo em termos do que verdadeiro. Ser , como disse Tugendhat, serverdadeiro. [...] Dado que no podemos confrontar nossas oraes com nada que no, ele mesmo, impregnado lingisticamente, no podem distinguir-se enunciadosbsicos que tiveram o privilgio de legitimar-se por si mesmos e puderam servir comobase de uma cadeia linear de fundamentao.37
Por fim, a validade do discurso repousa sobre o princpio democrtico,
que ser alcanado quando observados os critrios de ampla e irrestrita participao
dos indivduos nas esferas pblicas de discusso. Para tanto, no basta que os sujeitos
estejam presentes no momento do debate ou que seja garantida sua no excluso
arbitrria do grupo, fazendo-se necessria a proteo ao direito de livre manifestao
de sua vontade. Essa perspectiva fundamenta a concepo de democracia deliberativa,
cujas dimenses centrais correspondem pretenso de conciliao entre a soberania
popular e o Estado de direito, tanto quanto ao enfoque no momento dialgico de
justificao das decises polticas38.
Habermas sugere a procedimentalizao da democracia em nvel
societrio, constituindo-a como o substrato normativo da poltica na medida em que a
obedincia a seus processos, tal qual anteriormente explicitados, confere comunidade
a capacidade de autolegislao39. Nessa esteira, pressupondo que a ao comunicativa
traz, em si, competncias morais de determinao da vontade coletiva, de se concluir
que a democracia ser tanto mais aprofundada quanto mais enfronhada no contexto do
mundo da vida.
37 Traduo livre da verso espanhola: Incluso en la comprensin de enunciados elementales relativos a estadoso sucesos en el mundo, el lenguaje y la realidad se interpenetran de una forma que, para nosotros, es indisoluble.No existe ninguna posibilidad natural de aislar las limitaciones impuestas por la realidad que hacen verdadero unenunciado, de las reglas semnticas que establecen las condiciones de verdad del mismo. Slo podemos explicarlo que es un hecho con ayuda de la verdad de un enunciado sobre hechos; e lo que es real slo podemosexplicarlo en trminos de lo que es verdadero. Seres, como dice Tugendhat, ser veritativo. [...] Dado que nonpodemos confrontar nuestras oraciones con nada que no est, ello mismo, impregnado lingisticamente, nonpueden distinguirse enunciados bsicos que tuvieran el privilegio de legitimarse por s mismos y pudieran servircomo base de una cadena lineal de fundamentacin (HABERMAS, Jrgen. Verdad y justificacin: ensayosfilosficos. Traduzido por Pere Fabra e Luis Dez. Madrid: Trotta, 2002, p. 237).38 SOUZA NETO, Cludio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa: Um estudo sobre opapel o direito na garantia das condies para a cooperao na deliberao democrtica. Tese de doutorado.UERJ. Rio de Janeiro: 2004, p. 48.39 AVRITZER, 1996,p. 46-47.
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A violao de qualquer dos requisitos mencionados macula a validade
discursiva, seja pela constatao de sua inverdade, ilegitimidade ou ausncia de
veracidade de seu contedo.
O ouvinte pode negar in toto a manifestao de um falante, ao contestar quer averdade do enunciado nela firmado (ou das pressuposies de existncia do contedode seu enunciado), quer a justeza do ato de fala em relao ao contexto normativo damanifestao (ou a legitimidade do prprio contexto pressuposto), quer a veracidadeda inteno manifesta do falante (isto , a adequao entre o que deseja dizer e o quediz)40.
Compreendida a fundamentao discursiva da proposta habermasiana,
possvel concluir que na razo prtica corporalizada em procedimentos e processos41
est inscrita a referncia a uma justia (entendida tanto em sentido moral quanto
jurdico) que apontapara alm do ethos concreto de determinada comunidade ou da
interpretao de mundo articulada em determinada tradio ou forma de vida42. Com
isso, evidencia-se a tenso entre facticidade e validade, que determinar o contedo
direito e de seu papel na realizao da justia.
2.2.2 Configurao procedimental do direito
Toda anlise de fundamentao, estrutura e funcionamento do direito
deve levar em conta que, na concepo habermasiana, ele constitui o elemento de
ligao entre o sistema e o mundo da vida.Procurando acrescer compreenso pragmtica da sociedade uma
dimenso de validade, Habermas impe a observao de procedimentos normativos
cuja linguagem prpria do direito. No se trata de superar ou simplesmente
abandonar a factibilidade inerente ao sistema, mas de som-la aos aspectos discursivos
40 HABERMAS, 2002c, p. 435.41 Parece possvel associar a noo de razo prtica corporalizada em procedimentos e processos de razocomunicativa, na qual se baseia a teoria habermasiana. A razo comunicativa, ao contrrio da figura clssica
da razo prtica, no uma fonte de normas do agir. Ela possui um contedo normativo, porm somente namedida em que o que age comunicativamente obrigado a apoiar-se em pressupostos pragmticos de tipocontrafactual (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 20).42 HABERMAS, 2002b.
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prprios do mundo da vida. Por esse motivo, seu estudo acerca do direito restringe-se
esfera jurdico-positiva. Somente nela possvel apreender concretamente a
possibilidade de integrao entre as instituies e a organizao prprias do sistema e
as determinaes decorrentes da participao subjetiva em esferas pblicas de
discusso. A normatividade transita entre estes dois ambientes, de modo a tornar
possvel a legitimao pelo procedimento.
O ideal de justia, que acompanha o direito desde seu surgimento,
encarado pela teoria habermasiana sob a perspectiva exclusivamente procedimental.
Ele no se confunde com qualquer escolha referente aos valores guias da vida humana,
mas to-somente com o respeito ao princpio democrtico, que assegura a todo serhumano a possibilidade de ingressar, participar e se retirar da esfera pblica.
Disso resulta a concluso de que direito e moral so coisas distintas, pois
esta se restringe ao mbito subjetivo enquanto o primeiro diz respeito a determinaes
de carter intersubjetivo isto , obtidas por meio aes e negociaes reguladas pelo
procedimento. No que o direito deixe de contemplar aes subjetivas, mas o aspecto
no-cognoscitivo dos motivos que ditam tais escolhas impede a sistematizao
necessria do conhecimento acerca da integrao entre sistema e mundo da vida. Neste
horizonte, preciso apenas no perder de vista a noo da co-originalidade entre
direito e moral, representada pela compreenso de que ambos surgem da livre
manifestao da vontade humana, que somente atinge diferenciao diante da
pretenso de validade da qual se imbuem as aes praticadas naquela primeira esfera.
Ao falar da transcendncia da realidade pelo procedimento, Habermas
identifica no direito o meio apto a promover a integrao legtima entre a facticidade e
a validade. Neste sentido, o medium do direito apresenta-se como um candidato para
tal explicao, especialmente na figura moderna do direito positivo. As normas desse
direito possibilitam comunidades extremamente artificiais, mais precisamente,
associaes de membros livres e iguais, cuja coeso resulta simultaneamente da
ameaa de sanes externas e da suposio de um acordo racionalmente motivado43.
No direito encontram-se as determinaes irracionais prprias do sistema
e a exigncia de internalizao normativa a partir do consenso validamente obtido. A
43 HABERMAS, 1997, v. 1, p. 25.
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aceitao deste argumento implica o abandono de concepes que insistem em sua
subordinao a motivaes exclusivamente econmicas ou burocrticas, uma vez que
sua origem tambm passa a estar vinculada solidariedadeprpria dos ambientes de
comunicao.
Na dimenso de validade do direito, a facticidade interliga-se, mais uma vez, com avalidade, porm no chega a formar um amlgama indissolvel como nas certezasdo mundo da vida ou na autoridade dominadora de instituies fortes, subtradas aqualquer discusso. No modo de validade do direito, a facticidade da imposio dodireito pelo Estado interliga-se com a fora de um processo de normatizao dodireito, que tem a pretenso de ser racional, por garantir a liberdade e fundar alegitimidade. A tenso entre esses momentos, que permanecem distintos, intensificada e, ao mesmo tempo, operacionalizada, em proveito do comportamento.44
O direito promove a ligao entre o sistema e o mundo da vida, pois sua
validade e eficcia dependem da presena de duas circunstncias essenciais: a sano e
a legitimao.
A primeira imposta pelo Estado e suas relaes de poder, estando
vinculada noo de sistema. Garante o respeito ao direito pela coao (fora fsica).
Mas certo que a sano no satisfaz em todas as medidas sua explicao, exigindo,
portanto, a investigao das razes pelas quais, em determinados casos, os indivduos
se submetem voluntariamente ao direito.
Da porque falar na necessidade de legitimao, ou seja, na discusso
pblica e na constituio de consensos representativos da aceitao da ordem jurdica
vigente. Este o ambiente prprio do mundo da vida, onde prevalecem as relaes
dialgicas e as aes conscientes dos sujeitos, sejam elas voltadas ao entendimento ou
meramente guiadas pelo interesse.De acordo com Luiz Moreira45:
A caracterstica bsica do Direito moderno, na opinio de Habermas, a exigncia, aum s tempo, de positivao e de fundamentao, o que, para ele, vai possibilitar oaumento das vias de fundamentao, como tambm de um apelo no apenas esfera
jurdica quando da pergunta pela fundamentao, mas pergunta pela instncia moralque d sustentao e validade ao ordenamento jurdico. E para ele fica muito claro oporqu da desconexo entre sistema e mundo da vida. Ao ser entendido simplesmentecomo um medium regulativo, logo, como um instrumento que, atravs da ameaa de
44 HABERMAS, 1997, v. 1, p. 48.45 MOREIRA, Luiz. Fundamentao do direito em Habermas. 2. ed.. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002,p. 61.
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sano, garante a convivncia entre as pessoas, no se levanta a pergunta pelafundamentao, mas apenas pela gnese de sua formao em termos processuais.Assim sendo, a desconexo entre sistema e mundo da vida harmoniza-se com aestrutura do Direito.
A facticidade e a validade relacionam-se dinamicamente no interior do
direito. Diante da exigncia de legitimao, que questiona sua imposio arbitrria e
vincula a efetividade do ordenamento internalizao subjetiva das normas vigentes,
tais elementos ocupam plos opostos na discusso.
A sano caracterstica da facticidade no suficiente para a
justificao da validade do sistema, sendo necessria a adoo de procedimentos
democrticos capazes de convencer os sujeitos a se submeterem determinada ordem
normativa, garantindo assim uma integrao social no violenta. Por outro lado, deve-
se considerar que a facticidade, representada pela existncia de meios de coao
prprios do direito, em certa medida, induz participao em espaos pblicos de
discusso para fins de estabelecimento de consensos que permitam uma convivncia
social pacfica.
Quando age, o sujeito pode mover-se por interesses particulares ou com
vista ao entendimento, circunstncia em que influenciar e se deixar influir pelas
manifestaes de outros sujeitos. Acontece que, somente o contexto do mundo da vida,
cujo pano de fundo estampa a idia de consenso, capaz de levar o ser humano a
renunciar a seus interesses em prol da coletividade. E isto pode ser observado na forma
pela qual a norma jurdica interpretada.
Um indivduo que deseje pautar seu comportamento em interesses
particulares proceder a uma interpretao objetiva, encarando a norma como umlimite ftico de sua ao. Neste primeiro modo, a liberdade parece ser contemplada
acima de qualquer outro valor. Outra seria a forma de interpretao caso seu
comportamento estivesse direcionado ao entendimento; nesta hiptese, a norma
assume carter performativo, no apenas limitando, mas tambm determinando o
modo de agir dos sujeitos.46
Na concepo habermasiana, a noo de liberdade encarada como a
possibilidade de igual participao dos sujeitos nas esferas de discusso em que o
46 HABERMAS, 1997, v. 1, p. 51-52.
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contedo da norma ser determinado. Trata-se de pressuposto formal de constituio
da ordem jurdica, cujo respeito determinar a extenso da noo de reconhecimento e
a possibilidade de emancipao social.
Quanto maior a garantia de participao em espaos de discusso,
maiores sero as possibilidades de fazer com que os sujeitos reconheam
reciprocamente as particularidades de cada um e construam, a partir da, uma realidade
representativa de interesses coletivos, j desvinculados da vontade subjetiva dos seres
que integram a comunidade. Nesta medida, o direito moderno nutre-se de uma
solidariedade concentrada no papel do cidado que surge, em ltima instncia, do agir
comunicativo.47
Parece possvel considerar, a partir da teoria da ao comunicativa e da
observao de que vivemos numa sociedade complexa e dinmica, que o direito torna
evidente a mtua influncia entre o sistema e o mundo da vida, a tcnica e a ao, de
modo que (a) a sano s poder ser efetivamente imposta se amparada em processos
de legitimao e (b) a manuteno de uma ordem jurdica legtima (confluncia de
interesses e aes individuais), numa sociedade marcada pela complexidade, verificar-
se- tambm pelo fato dos indivduos estarem premidos pela coao estatal. A
variao dos nveis de influncia entre os dois componentes sociais sistema e
mundo da vida depender da espcie de direito em questo e da exigncia de aes
negativas ou positivas por parte do Estado.
2.2.3 Autonomia em diferentes contextos de comunicao
A complexidade social exige o estabelecimento das fronteiras de
contemplao de interesses particulares e coletivos, sempre marcado pela necessidade
de integrao entre a liberdade de ao atribuda a cada indivduo e a igualdade
correspondente realizao da justia.
47 HABERMAS, 1997, v. 1, p. 54.
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No se trata de tarefa fcil e tampouco j cumprida pela doutrina; ao
contrrio, as dificuldades inerentes ao tema se revelam na prpria fragilidade do
balanceamento entre direitos subjetivos e pblicos ou mesmo na relao controvertida
entre direitos humanos abordados em sua origem histrica, a partir da perspectiva
liberal e soberania popular.
Na viso habermasiana, algumas concepes tendem, equivocadamente,
a direcionar o direito satisfao prevalecente de uma nica categoria de interesses;
isto , ou se posicionam a partir dos chamados direitos subjetivos e humanos,
defendendo a idia particularista de uma autodeterminao moral, ou a partir dos
direitos pblicos e da soberania popular, destacando a necessidade da subordinao deinteresses privados ao coletivo. Contudo, sua teoria pretende superar a dicotomia
apresentada, promovendo, a partir da ao comunicativa, a integrao entre as esferas
de ao privada e pblica.
Habermas esclarece que a ao comunicativa revela a existncia de
esferas de autonomia privada e pblica, representadas a partir das noes de direitos
fundamentais e soberania popular, respectivamente. Os primeiros apresentam-se como
um ncleo de direitos subjetivos tambm denominados liberdades pblicas , que
garante a cada sujeito o livre exerccio de sua ao, protegendo-o contra os desmandos
de seus semelhantes e do prprio Estado. Em sentido contrrio deve ser compreendida
a soberania do povo, cujas resolues resultam de aes subjetivas coordenadas,
sempre voltadas para o entendimento.
Enquanto a autonomia privada parece percorrer os caminhos da moral,
que inerente compreenso individual do mundo, a autonomia pblica assenta suas
bases sobre princpios tico-discursivos, prprios de procedimentos democrticos.
luz da teoria do discurso, o princpio moral ultrapassa os limites histricos casuais,diferenciados socialmente, traados entre domnios vitais pblicos e privados; nela seleva a srio o sentido universalista da validade das regras morais, pois se exige que aaceitao ideal de papis que, de acordo com Kant, todo indivduo singular realiza
privatim seja transportada para uma prtica pblica, realizada em comum portodos.48
48 HABERMAS, 1997, v. 1, p. 144-146.
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Existem trs diferentes nveis de ao a serem compreendidos nesta
seara: o moral, o tico e o poltico. O primeiro corresponde s aes que, embora
revelem um comportamento conscientemente voltado realizao do bem comum,
originam-se de vises subjetivas e universalizantes do mundo. Para a delimitao de
seu contedo pode-se recorrer ao imperativo categrico kantiano, segundo o qual um
comportamento ser considerado moralmente correto na medida em que o sujeito que
age o faz considerando ser isto o esperado pelos demais membros da sociedade.
Apesar de buscar o que bom para todos, a definio do que seja
moralmente correto est invariavelmente atrelada a escolhas individuais. Sua diferena
em relao tica reside no fato de que esta no traduz o que seja bom para todos, maso que seja bom para ns. Este nvel de ao corresponde soma de aes individuais
para fins de satisfao de interesses tambm individuais.
Somente no nvel poltico ou tico-poltico seria possvel falar na
existncia de uma vontade coletiva autnoma, formada a partir da interao decorrente
dos diversos contextos de comunicao. Trata-se aqui de uma perspectiva no mais
subjetiva, mas que, pela obedincia a requisitos democrticos de participao
discursiva, permite a visualizao de uma esfera comportamental autnoma,
estabelecida intersubjetivamente e que, a partir de sua criao, deixa de estar sujeita
interferncia de escolhas individuais.
A assuno da perspectiva intersubjetiva faz com que a legitimidade
normativa passe a estar vinculada ao cumprimento do princpio democrtico, pelo qual
se justificam racionalmente as escolhas procedidas sobre questes prticas, em
contraposio ao princpio moral, que serve justificao de questes morais.
Enquanto o princpio moral opera no nvel da constituio internade um determinado jogo de argumentao, o princpio da democracia refere-se ao nvel dainstitucionalizao externa e eficaz da participao simtrica numa formaodiscursiva da opinio e da vontade, a qual se realiza em formas de comunicaogarantidas pelo direito.49
Aqui reside a exata distino entre moral e direito e, conseqentemente,
entre as decises que devem ser atribudas autonomia privada e autonomia pblica.
49 HABERMAS, 1997, v. 1, p. 146.
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Enquanto as questes morais sobrecarregam o indivduo, em virtude de sua
indeterminao cognitiva, excessiva vinculao vontade do sujeito e dificuldade de
imposio em carter universal; o direito caracteriza-se pela sistematizao de suas
motivaes fruto do trabalho parlamentar, jurisprudencial e doutrinrio e pela
organizao que permite a imposio de suas determinaes ainda que contra a
vontade individual.50
A distino apresentada no significa, todavia, que a autonomia privada
esteja margem do direito. Ela estar contemplada sempre que se permitir ao sujeito
agir guiado pelo interesse no sucesso e no pelo interesse no consenso. fcil
visualiz-la em enunciados que asseguram o status libertatis, anunciados comodireitos negativos.
De acordo com suas determinaes, todo sujeito poder agir livremente,
se necessrio, invocando a proteo do Estado at mesmo contra o prprio Estado
sempre que sentir invadida sua esfera privada de ao. Sua ao no possui
contedo pr-definido ou consentneo com uma determinao coletiva da vontade,
mas apenas uma fronteira: a lei. Trata-se de situao oposta quela gerada pelo direito
caracterstico da autonomia pblica. Neste caso, a ao no apenas encontra limite na
lei, mas tem seu prprio contedo determinado por ela.
A deciso de passar de um plano de ao privada para universos pblicos
de comunicao marcada pela disposio individual de ligar a coordenao de seus
planos de ao a um consentimento apoiado nas tomadas de posio recprocas em
relao a pretenses de validade e no reconhecimento dessas pretenses, somente
contam os argumentos que podem ser aceitos em comum pelos partidos
participantes51. Com isso, Habermas destaca a fora perlocucionria52 dos discursos
inerentes esfera pblica e da dimenso da autonomia, seja ela pblica ou privada.
O sujeito pode escolher no participar de ambientes de discusso,
colocando-se na posio de mero observador. Contudo, caso deseje participar, deve ter
sua liberdade garantida na mesma medida dos demais, de maneira que possa integrar
50 HABERMAS, 1997, v. 1, p. 150-154.51 HABERMAS, 1997, v. 1, p. 156.52 Habermas utiliza a expresso obrigaes ilocucionrias, aqui substituda pelo termo perlucionrias, paraindicar as conseqncias da escolha subjetiva referente participao em ambientes pblicos de discusso.(HABERMAS, 1997, v. 1, p. 156)
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os espaos discursivos e expressar sua vontade de forma livre e sincera. Nesse norte,
de se concluir qua a pretenso de validade dos atos de fala est submetida garantia de
participao subjetiva na esfera pblica, traduzida em princpios democrticos.
A opo pela participao que decorrente da autonomia privada53
cria para o sujeito a obrigao de obedecer s decises provenientes da esfera pblica,
pois todo aquele que age publicamente o faz com pretenso de validade e esta somente
pode ser concebida a partir da estabilidade e do respeito a seus procedimentos. No
momento em que o consenso validamente obtido, seu contedo deixa de estar ao
alcance de escolhas individuais, assumindo feies obrigacionais que amarram a
autonomia privada s determinaes de uma esfera pblica, tambm autnoma.
2.3 Direitos fundamentais e ao comunicativa
Habermas atribuiu ao direito uma nova condio de legitimao,
caracterizada pelo respeito s condies de participao subjetiva em ambientes de
discusso. Sob esse aspecto, o uso da linguagem e as regras do discurso tornam-se
elementos essenciais no estudo do direito. So estes os fatores que determinaro a
capacidade e o grau de proteo conferido por determinado estatuto histrico,
independente das diferenas verificadas quanto s condies concretas de vida de cada
ser humano.
A partir da compreenso de que direitos fundamentais so normas
incorporadas Constituio e de que sua configurao resulta de comunicaes
condicionadas pelo processo democrtico, possvel apontar a existncia de condies
de legitimidade diferentes da mera verificao de sua legalidade. Assim, ao invs de
observar apenas elementos de ordem tcnica, sua verificao passa a exigir a
considerao de elementos discursivos, ou seja, de uma dimenso poltica que permeia
a criao, a interpretao e a aplicao do direito.
53 Segundo Habermas, a autonomia privada de um sujeito do direito pode ser entendida essencialmente como aliberdade negativa de retirar-se do espao pblico das obrigaes ilocucionrias recprocas para uma posio deobservao e de influenciao recproca. (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 156)
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A questo da legitimao constitui uma das preocupaes centrais das
anotaes fragmentrias de Max Weber, a partir das quais Habermas analisar o
processo de racionalizao do direito e seu funcionamento diante dos diferentes
contextos discursivos da sociedade e do Estado. A originalidade do mtodo weberiano
est justamente na conscincia de que os fatos analisados no possuem uma
significao prpria e antecedente, mas apenas aquela que lhe atribuda pelo cientista
e pelo contexto da realidade em que ambos objeto e observador encontram-se
imersos54.
Weber sustenta que a sociedade atual marcada pelo processo de
desencantamento do mundo. Fenmeno caracterizado pela perda do sentido ontolgicoda ao social, decorrente do uso crescente da racionalidade lgico-instrumental. Em
cada uma dessas esferas institucionais, a racionalizao produziu a despersonalizao
das relaes sociais, o refinamento da tcnica de clculo, o aumento da importncia
social do conhecimento especializado e a extenso do controle tecnicamente racional,
tanto de processos naturais quanto de processos sociais55. No h um sentido nico de
progresso em sua implementao. Ao contrrio, existem diferentes perspectivas sob as
quais os processos de racionalizao podem ser analisados, o que determina que ele
seja, em alguns casos e de acordo com a espcie com a qual se est lidando,
considerado um retrocesso social.
Trs tipos de ao social so por ele identificados: tradicional, afetiva e
racional. As duas primeiras no esto sujeitas verificao por padres racionais
lgicos, uma vez que determinadas pelo costume e pela emoo, respectivamente. A
ao racional, por sua vez, orienta-se em razo dos valores ou dos fins a serem
alcanados. 56 Esta ltima corresponde ao tipo ideal da ao social, porque representa o
grau mximo de conscincia da relao entre a adequao dos meios utilizados e os
objetivos a serem alcanados pelo sujeito.
Ao instituir padres de calculabilidade dissociados dos valores
particularmente adotados pelo sujeito que age, a ao racional permite a objetivao da
54 COLLIOT-THLNE, Catherine. Max Weber e a histria. Traduzido por Eduardo Biavati Pedro. So
Paulo: Brasiliense, 1995, p. 71.55 ARGELLO, Katie Silene Crceres. O caro da modernidade: direito e poltica em Max Weber. So Paulo:Acadmica, 1997, p. 15.56 AGULLA, 1987, p. 208.
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conduta social, mas sem deixar de resgatar o sentido perdido com o advento da razo
lgico-instrumental. Suas principais caractersticas so o monoplio da violncia
legtima, a crescente burocratizao e o conflito sempre presente entre a poltica e a
burocracia57.
A crtica habermasiana referida proposta tem como principal
fundamento a preocupao estritamente formal com que Weber descreve a
legitimao, o que acaba por confundi-la com a legalidade e a afasta da esfera
poltica58. De acordo com Jess Souza59:
O lugar central do direito na teoria habermasiana da modernidade, assim como na sua
crtica a Weber, decorre precisamente do fato de que a ele cabe efetuar, no mundomoderno, a comunicao entre esses dois momentos. Para Habermas, Weber percebeunicamente a problemtica da institucionalizao do aspecto racional-instrumental,deixando de contemplar a institucionalizao do momento prtico-normativo nomundo contemporneo. A causa principal dessa desateno a desvinculao entredireito e moralidade ou, o que o mesmo em outras palavras, entre legalidade elegitimidade. [...] Para Habermas, legalidade pode produzir legitimidade apenas namedida em que a ordem jurdica institucionaliza procedimentos abertos a um discursomoral. O argumento habermasiano contra o positivismo jurdico, seja de um Weber,seja de um Luhmann, fundamenta-se numa anlise histrica do direito como umaesfera que se define por meio de uma unidade tensa entre imparcialidade einstrumentalidade ou, em outras palavras, entre moral e direito.
Quando a questo diz respeito a direitos incorporados ao ordenamento
jurdico interno tal qual os direitos fundamentais , a investigao referente ao
comunicativa e seu papel na constituio, interpretao e aplicao normativas supera
a anlise dos ambientes particulares de discusso, atingindo as prprias esferas de
poder do Estado. Isso ocorre, porque a positivao faz com que toda determinao
incorporada ordem jurdico-positiva tramite em cada um dos poderes estatais, a fim
de receber parcelas de contribuio para sua formao.
Em virtude de sua necessria utilidade e coerncia, os processos
legislativos, judicirios e executivos prevem formas diferenciadas de participao
57 ARGELLO, 1997, p. 70.58 Weber sustenta que a poltica constitui atribuio especfica daqueles que ocupam posies no parlamento, ouseja, da classe de polticos por vocao (WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada:crtica poltica da burocracia e da natureza dos partidos. Traduzido por Karin Bakke de Arajo. Petrpolis:
Vozes, 1993).59 SOUZA, Jess. O direito e a democracia moderna: a crtica de Habermas a Weber. In: Edmundo Lima deArruda Junior (org.). Max Weber: direito e modernidade. Florianpolis: Letras Contemporneas, 1996, p. 203-204.
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subjetiva, que privilegiam aes (a) voltadas ao entendimento, (b) de justificao e
controle e (c) aes teleolgicas.
Referindo-se aos princpios do Estado de direito e lgica da separao
de poderes, Habermas esclarece:
No princpio da soberania popular, segundo o qual todo poder do Estado vem do povo,o direito subjetivo participao, com igualdade de chances, na formao democrticada vontade, vem ao encontro da possibilidade jurdico-objetiva de uma prticainstitucionalizada