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Eixo: 03 – Marxismo e Educação
EDUCAÇÃO, LIBERDADE E POLÍTICA NA REFLEXÃO
MARXIANA
Ariovaldo de Oliveira Santos (UEL)1
Francieli Araujo (UTFPR)2
Resumo: O avanço das políticas identificadas como neoliberais fomentou uma leitura
essencialmente pragmática a respeito da educação. Neste sentido, sua finalidade foi
convertida quase que exclusivamente à necessidade de atender às exigências das
transformações econômicas em curso, para o que se passou a requisitar, em diversos
ramos de atividade, de um trabalhador polivalente ou mais reativo às situações.
Contrapondo-se a esta perspectiva, o artigo desenvolvido procura resgatar o debate da
educação não como instrumento para o mercado de trabalho e sim como mediação
necessária no processo de constituição de seres sociais que, avançando para além da
polivalência ou politécnia, realizem individual e coletivamente a omnilateralidade
humana. Neste sentido, adota como referencial reflexões contidas na obra marxiana e
engelsiana, às quais foram posteriormente reapropriadas por marxistas como V. I. Lênin
ou Antonio Gramsci. Contudo, a perspectiva aqui seguida é de compreender a educação
como processo mais amplo do que aquele que se efetiva dentro de instituições
especificamente voltadas a esta tarefa, como é o caso das escolas. Busca-se, ao longo do
artigo, que trabalha a educação, a liberdade e a política como categorias, apontar para
que a educação é um processo mais amplo, que envolve a totalidade do ser social e que
atua no sentido de distanciá-lo cada vez mais dos outros seres, orgânicos e inorgânicos.
O artigo opera com a hipótese de que educação, liberdade e política não podem ser
dissociadas na obra marxiana e engelsiana, amarrando-se a um determinado projeto que
é o de construção do embate, nas condições capitalistas de produção, à própria
sociabilidade burguesa. Em seu conjunto, a obra marxiana e engelsiana apresentam-se
coerentes neste sentido. Contudo, escapa à finalidade do artigo analisar as condições
concretas nas quais se dá a relação educação-liberdade-política, resguardando-se o
estudo a apresentar apenas alguns elementos neste sentido. O caminho adotado visa
resgatar a necessidade de pensar a educação para além do pensamento único na qual
cada vez mais é encerrado o debate e no qual se perde de vista que educação é uma
manifestação do ser social muito mais ampla do que uma formação para desempenhar
determinada função produtiva.
Palavras-chave: Educação; Liberdade; Política; Luta de Classes; Emancipação Social.
1Ariovaldo de Oliveira Santos, Universidade Estadual de Londrina, Paraná, Brasil. E-mail:
arioliveira2001@yahoo.com.br. 2Francieli Araujo, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Paraná, Brasil. E-mail: franaraujouel@yahoo.com.br
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Introdução
Desenvolveu-se, nos últimos anos, no plano mundial, a compreensão, fomentada
por organismos internacionais e midiáticos, de que a educação é a formação para se
conseguir um espaço no mercado de trabalho, atendendo às necessidades postas e
repostas pela sociabilidade capitalista e, se possível, garantindo conquistas sociais que
reafirmem os princípios da cidadania. Esta perspectiva foi fortemente abraçada pelos
defensores do ideário neoliberal, encontrando repercussões mesmo entre aqueles que
aparentemente se colocam contrários a este tipo de leitura, o que pode ser verificado,
também no plano mundial, na discussão envolvendo “trabalho decente”.
Ao lado desta maneira de apreender o problema, apresenta-se outra, igualmente
problemática, que busca ler a educação a partir da existência de uma instituição
particular voltada à finalidade da socialização, isto é, a escola. Por este caminho, não
apenas a compreensão do papel social da educação fica mutilada em sua amplitude,
como também as análises, na forma como se apresentam, conduz a um certo engano de
que a educação é produto da sociedade capitalista.
Este artigo caminha no sentido oposto. Sua finalidade é a de abordar a educação
como um processo mais amplo que ocorre entre o ser social e as condições objetivas nas
quais se encontra, o que conduz à necessidade de estabelecimento de relações sociais de
produção com outros homens. Para isto recorre-se à leitura da educação, sua vinculação
com a questão da liberdade, e a conquista de ambas via práxis política, recorrendo ao
referencial marxiano e engelsiano de tratamento do problema.
Desenvolvimento
Considerações iniciais feitas, convém ressaltar, de início, que é frequente na
literatura o estabelecimento de uma íntima ligação entre educação e formação escolar.
Neste sentido, o processo educativo estaria dado, essencialmente, pela presença de uma
determinada instituição, encarregada de transmitir às gerações mais novas os
conhecimentos sistematizados e reconhecidos como socialmente válidos por uma
determinada sociedade. Através deste processo estariam dadas as condições gerais para
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que todo e qualquer indivíduo estivesse em condições de participar de uma determinada
estrutura social.
Esta leitura se acentua quando se tem em consideração que a instituição escolar
ganha cada vez mais espaço na transição da Idade Média para o mundo moderno ou,
mais precisamente, na passagem do modo de produção feudal para o modo de produção
capitalista. Neste trânsito, ao lado da transmissão geral e sistematizada de
conhecimentos, voltados essencialmente aos membros de uma determinada classe
social, conviveu com o processo educativo a implementação de mecanismos de
disciplinarização social, mediante o qual os valores hierarquizados da sociedade
pudessem ser solidificados.
Contudo, focar neste tipo de leitura, ainda que ele contenha elementos
importantes para a compreensão do processo educativo, torna-se limitado uma vez que,
restaria a seguinte pergunta: se a educação está ligada à existência de uma determinada
instituição, no caso, a escola, e se inicialmente esta vinculação está direcionada a
estabelecer um processo que atua essencialmente e inicialmente sobre os filhos da classe
dominante, isto significa que não houve educação em outros tempos históricos ou houve
debilmente naquelas sociedades nas quais a escola não tivesse comparecido mediação
institucionalizada pela sociedade?
Romper com esta leitura e, mesmo com a ideia do “aluno como invenção”,
pressupõe uma reflexão mais abrangente do que é educação e o processo educativo. É
somente caminhando dentro de outra perspectiva que os problemas inicialmente
colocados podem ser pensados e, mais ainda, que se torna possível uma discussão
efetiva da educação como prática da liberdade. Caminho que aponta para a necessidade,
muito menos do que escolha arbitrária, de se pensar a educação não no plano de práticas
institucionalizadas, ainda que ela seja atravessada por esta dimensão, e sim como
momento ontologicamente essencial de constituição do ser social no processo histórico
genético na qual está inserido.
Neste sentido, é necessário reconhecer, inicialmente, que a liberdade aqui tratada
não confunde-se com uma leitura abstrata e ligada essencialmente ao indivíduo. Por
outras palavras, do que se trata aqui não é da liberdade em seu matizamento liberal.
Igualmente, liberdade e educação não se constituem, na leitura proposta por este artigo,
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em conceitos adaptáveis a esta ou aquela situação. Pelo contrário, embora seja possível
conceituar em seus traços gerais educação e liberdade, aqui eles são tratados na
condição de categorias, não apenas em razão de sua íntima ligação com os processos
econômicos, no sentido de que participam diretamente da produção e reprodução do ser
social, mas também por se constituírem em determinações inelimináveis de todo e
qualquer ser social, independentemente da forma de sociabilidade à qual se esteja
fazendo referência.
Se a educação é pressuposto da liberdade, no sentido aqui tratado, é necessário
igualmente reconhecer que ela não se esgota entre os muros da escola. Antes, é um
processo que percorre a constituição mesma do ser social. Neste sentido, ela está posta e
reposta, ao longo da história dentro da relação que o ser social estabelece com as
condições objetivas ou as condições materiais de sua existência, mediatizadas cada vez
mais pelo trabalho.
Vista a partir desta perspectiva, é forçoso reconhecer que no processo pelo qual
o ser social se objetiva no mundo ele aprende e cada aprendizado tem por consequência
direta ampliar potencialmente o grau de conhecimento deste mesmo ser em relação às
condições objetivas e em relação ao próprio gênero do qual ele faz parte. Nas teses
sobre Feuerbach encontram-se indicações significativas da dimensão educativa contida
na práxis do ser social para responder às necessidades que se colocam no plano da vida
cotidiana.
O intercâmbio do ser social com as condições objetivas e com os demais seres
do gênero coloca em evidência, desde o princípio, um aprendizado fundamental: o de
que a realidade pode ser compreendida concretamente pelo pensamento, de tal modo
que este pode elaborar, ao menos aproximativamente, uma compreensão racional do
fenômeno. Assim, práxis e conhecimento não se dissociam nesta perspectiva. Pelo
contrário, encontram-se em íntima ligação e atuam como condição fundamental para
criar as possibilidades de distanciamento do ser em relação ao senso comum ou ao que
Marx denomina por misticismo. Estes elementos se revelam com clareza na segunda
tese sobre Feuerbach quando Marx afirma:
O problema de se ao pensamento humano se pode atribuir uma
verdade objetiva, não é um problema teórico, sim um problema
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prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade, isto
e, a realidade e o poderio, a terrenalidade de seu pensamento. O litígio
sobre a realidade ou irrealidade de um pensamento que se isola da
prática, é um problema puramente escolástico (MARX, 1974, p.7-8).
A segunda tese é acompanhada, na terceira, pela consideração direta do
problema da educação na qual os laços entre ser social e condições objetivas são
aprofundados, de tal modo que não está posto para esta compreensão da educação a
existência de um dado primário e secundário, mas sim a articulação entre os “homens” e
as “circunstâncias” e a “educação”. Assim, de acordo com Marx,
A teoria materialista de que os homens são produtos das
circunstâncias e da educação, e de que, portanto, os homens
modificados são produtos de circunstâncias distintas e de uma
educação modificada, esquece que são os homens, precisamente, os
que fazem com que mudem as circunstâncias e que o próprio educador
necessita ser educado (MARX, 1974, p.8).
Vê-se, nesta terceira tese, que a questão da educação está posta em plano
abstrato, uma vez que os princípios enunciados por Marx compreendem toda e qualquer
forma de sociabilidade, isto é, de classes ou não, está distante de reduzir. O foco
enunciado por Marx não é uma ou outra forma de sociabilidade e sim um processo
contínuo que ocorre na cotidianidade. O intercâmbio que este estabelece com as
condições objetivas e que o impulsiona, inclusive, a estabelecer laços não meramente
gregários com outros seres pertencentes ao gênero, forja o terreno das experiências, do
aprendizado e, com ele, o da própria educação enquanto conjunto operacional de
conhecimentos a serem transmitidos para as gerações posteriores.
A referida tese aponta, logo de início, um princípio básico que norteia o processo
educativo em toda e qualquer forma de sociabilidade. Trata-se do reconhecimento de
que o pensamento busca traduzir aproximativamente o concreto, porém, não se
autonomiza deste. Portanto, a realidade não é uma construção do pensamento ou
realização do mundo das ideias. Do mesmo modo que a educação não é a expressão do
pensamento puro ou de um ser que paira imaginariamente sobre o mundo. Angulação
que será exaustivamente combatida por Marx e Engels no livro A Ideologia Alemã, não
sendo outro o sentido da passagem na qual afirmam: “Conforme anunciam os ideólogos
alemães, a Alemanha teria passado nos últimos anos por uma revolução sem igual”. E,
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depois de descrever as transformações no solo alemão, arrematam: “Tudo isso teria
acontecido no terreno do pensamento puro” (MARX; ENGELS, 2007, p. 85).
Rompidos os referenciais fornecidos pelo idealismo, tratava-se, pois de
compreender o ser dos homens, resultante, “produto”, das circunstâncias (leia-se,
condições concretas, particulares, efetivamente existentes) e da educação. Por outras
palavras, o ser social age, mas na medida em que atua, aprende e coloca em movimento
novas mediações que fazem com que o momento posterior jamais seja idêntico ao
anterior. A cada intervenção, diferentemente dos demais animais, o que resulta é uma
experiência que aporta modificações no ser, ainda que estas sejam imperceptíveis e
venham a ser clarificadas, por vezes, após dezenas de anos ou séculos de
desenvolvimento do ser social. Daí a afirmação marxiana do caráter não instintivo do
processo educativo que se efetiva, isto é, de que “os homens modificados são produto
de circunstâncias distintas e de uma educação modificada”. Ou seja, nem o ser social,
nem as condições objetivas, permanecem as mesmas ao final do processo.
O ser social, ao interiorizar elementos da realidade que tem diante de si, já se
modifica em relação ao momento pretérito, mesmo que seja no plano estrito do
reconhecimento de que ele passa a elaborar ideias que não possuía anteriormente. De
posse das ideias, às quais precisa submeter à prática para obter as confirmações
necessárias, inicialmente essencialmente intuitivas, sem se perder de vista que neste ser
a intuição, ou o “instinto”, são já instintos conscientes, o ser social, ao intervir,
modifica, igualmente, as condições concretas de sua existência tal como elas estavam
postas anteriormente.
Na compreensão marxiana é importante observar que, embora trate a educação
abstratamente, Marx não pretende indicar, com isto, que o processo educativo
manifeste-se de forma idêntica em toda e qualquer parte na qual o ser social estabeleça
relações com as condições objetivas e com outros seres pertencentes ao gênero.
Circunstâncias distintas produzem, igualmente, formas de educação distintas, ou, para
utilizar aqui expressão do próprio Marx, uma “educação modificada”.
Embora as condições concretas sejam o terreno a partir do qual o ser social
colherá os elementos iniciais para a reflexão, a educação possui, no interior deste tipo de
reflexão, um papel ativo. Ao mesmo tempo em que as condições objetivas atuam sobre
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os seres sociais, estes agem, por sua vez, sobre estas mesmas condições, modificando-
as. Daí ser necessário lembrar, na referida tese terceira a necessidade de não se esquecer
“que são os homens modificados, produtos de uma educação modificada”, os
responsáveis por fazerem com que “mudem as circunstâncias”, isto é, as condições
concretas possíveis.
Observe-se que os homens não representam, no interior do pensamento
marxiano, o indivíduo isolado ou atomizado. Homens aqui são considerados enquanto
gênero. Portanto, é da ação do gênero e não de indivíduos isolados que brotam as
transformações significativas que operacionalizam sobre as condições objetivas, mas
também e decisivamente sobre o próprio ser social. Soma-se a isto que a obtenção de
respostas é apenas o ponto de partida para a construção de novas perguntas e,
consequentemente, busca de novas respostas. É dentro desta perspectiva que se torna
possível compreender o processo educativo como aquele no qual “o próprio educador
necessita ser educado”. Por outras palavras, se a realidade é movimento e cada resposta
conduz à emergência de novos problemas, o ser que age está colocado na condição,
igualmente, de refletir sobre as novas condições, sob pena de ver comprometida a
própria espécie.
Entendida nesta perspectiva, a educação apresenta-se como pressuposto
fundamental para a construção da liberdade, a qual é igualmente tratada no campo das
determinações concretas. Ou, como afirmam Marx e Engels, “Só é possível conquistar a
libertação real no mundo real e pelo emprego dos meios reais”. Portanto, “a ‘libertação’
é um ato histórico e não um ato do pensamento, e é ocasionada por condições históricas,
pelas com[dições] da indústria, do co[mércio], [da agricul]tura, do inter[câmbio]”
(MARX; ENGELS, 2007, p. 29).
Educação e liberdade formarão duas categorias indissociáveis para o pensamento
marxiano. Porém, só podem ser adequadamente compreendidas em suas interrelações
dentro das condições concretas nas quais se manifestam. Os mesmos processos que
criam as condições para que o ser social aprofunde em si o campo da educação,
potencializando suas necessidades humanas e as condições para efetivação de sua
humanidade em patamares verdadeiramente humanos, são aqueles que estabelecem
obstáculos a tais efetivações. O mesmo é válido no que se refere à liberdade, entendida
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no interior daquela forma de pensamento como o distanciamento do ser em relação às
condições materiais imediatas. Por outras palavras, os mesmos processos que produzem
as condições para que o ser social se distancie cada vez mais, por exemplo, dos demais
animais, são os que criam barreiras para que o desestranhamento social possa ocorrer ou
possa ser efetivada a sociabilidade na qual a unilateralização do ser possa ser vencida
pela omnilateralidade, alegoricamente traduzida por Marx e Engels na afirmação de que
na sociedade comunista, dada a cota de contribuição social de cada um para a existência
do coletivo, o homem poderá pescar pela manhã, caçar à tarde ou mesmo fazer poesias e
literatura de madrugada.
O quanto educação e liberdade encontram-se obstaculizadas dentro de uma
manifestação histórica concreta é dada pela dimensão que ocupam no interior da
sociedade burguesa. Do mesmo modo que destas condições concretas brotam as
possibilidades de romper o confinamento no qual estão encerradas educação e liberdade.
Assim, Engels destaca que:
A existência das classes se deve à divisão do trabalho, e esta última,
sob sua forma atual, desaparecerá inteiramente, já que, para elevar a
produção industrial e agrícola ao mencionado nível não bastam só os
meios auxiliares mecânicos e químicos. É preciso desenvolver
correlativamente as aptidões dos homens que empregam estes meios.
Igual ao que ocorreu no século passado, quando os camponeses e os
operários da manufaturas, em razão de terem sido incorporados à
grande indústria, modificaram todo seu regime de vida e se tornaram
completamente outros, a direção coletiva da produção por toda a
sociedade e o novo progresso de referida produção que resultará disto
necessitarão homens novos e os formarão. A gestão coletiva da
produção não pode ocorrer sob responsabilidade dos homens tais
como são hoje, homens que dependem cada qual de um ramo
determinado da produção, estão aferrados a ela, são explorados por
ela, desenvolvem nada mais que um aspecto de suas aptidões à custa
de todos os outros e só conhecem um ramo ou parte de algum ramo da
produção. A indústria de nossos dias está já cada vez menos em
condições de empregar tais homens. A indústria que funciona de
modo planificado às custas do esforço comum de toda a sociedade
pressupõe com mais motivo homens com aptidões desenvolvidas
universalmente, homens capazes de orientar-se em todo o sistema da
produção. Por conseguinte, desaparecerá do todo a divisão do
trabalho, minada já na atualidade pela máquina, a divisão que faz com
que um seja camponês, outro sapateiro, um terceiro, operário fabril, e
um quarto, especulador da bolsa. A educação dará aos jovens a
possibilidade de assimilar rapidamente na prática todo o sistema de
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produção e lhes permitirá passar sucessivamente de um ramo de
produção a outro, segundo sejam as necessidades da sociedade ou suas
próprias inclinações. Por conseguinte, a educação os libertará desse
caráter unilateral que a divisão atual do trabalho impõe a cada
indivíduo. Assim, a sociedade organizada sobre bases comunistas dará
a seus membros a possibilidade de empregar em todos os aspectos
suas faculdades desenvolvidas universalmente (ENGELS, 1974, p. 94,
grifo do autor).
Formando um par indissolúvel, educação e liberdade, dadas as processualidades
históricas que marcaram e continuam a atuar sobre os seres sociais, só podem realizar-se
em patamares efetivamente humanos dentro de uma nova forma de sociabilidade que
esteja para além da sociedade de classes. Contudo, a finalidade desta observação
engelsiana não está direcionada a reconhecer que educação e liberdade sejam um tema
para o futuro e sim busca apontar como, por mais contraditório que seja o processo de
desenvolvimento histórico social, a sua efetivação mais plena decorre das próprias
possibilidades contidas no mundo moderno com o advento da grande indústria
capitalista. Este estágio de desenvolvimento do capitalismo ao mesmo tempo em que
cria mutilações físicas e mentais para os trabalhadores, colocam objetivamente as
condições para que, dentro de outra lógica societal, aquela dada pela sociedade
comunista, as conquistas obtidas no modo de produção anterior possam ser utilizadas no
sentido de realização das potencias humanas adormecidas.
Esta questão se explicita com maior clareza ainda em O Capital, quando Marx
afirma que o sistema fabril fez
germinar a educação do futuro, a educação que unirá para todas as
crianças acima de uma certa idade o trabalho produtivo com a
instrução e a ginástica, e isto não somente como método de acrescer a
produção social, mas como exclusivo e único método de produzir
homens completos (MARX, 1982, p. 461).
Se a grande indústria moderna desenvolveu a politécnia, que não deve ser
desprezada por se tratar de habilidades criadas no trabalhador para responder
essencialmente às necessidades da sociedade capitalista, é necessário, contudo, diz
Marx, ir para além dela. Para ele, superar esta situação é “uma questão de vida ou de
morte” pois,
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[...] a grande indústria obriga a sociedade sob pena de morte a
substituir o indivíduo espedaçado, portador de desgraças, porte-
douleur de uma função produtiva de detalhe, pelo indivíduo integral
que saiba fazer frente às exigências mais diversificadas do trabalho e
não dá, em suas funções alternadas, nada mais que uma livre expansão
à diversidade de suas capacidades naturais ou adquiridas (MARX,
1982, p. 465).
Uma vez que o par educação-liberdade se amarra diretamente à produção e
reprodução da vida material, e estando dadas as limitações crescentes para que ambos se
efetivem na sociedade burguesa em patamares voltados para o omnilateralidade em
detrimento da unilateralidade, o debate sobre o problema lança Marx e Engels
diretamente na necessidade de pensar a articulação destas dimensões com a política e,
mais especificamente, com a luta de classes. Sem esta perspectivação torna-se
impossível compreender, inclusive, as referências que ambos os autores fazem à
educação e à liberdade contrapondo aquela que existe na sociedade capitalista e a que
deveria ser o parâmetro dentro de uma sociedade comunista, conforme destacado em
citações anteriores deste artigo.
Desta forma, educação e liberdade, ainda que integrando o processo de formação
do ser social desde suas origens, assume, na sociedade moderna, a sociedade burguesa,
um problema a ser discutido, também, no âmbito da política e, mais particularmente, da
política de classe a ser conduzida pelo proletariado organizado.
Ao traçar a ligação direta entre a luta do proletariado e o conjunto da sociedade,
isto é, da humanidade, uma vez que a vida social universaliza-se cada vez mais, estão
postas para Marx tanto as possibilidades de superação do homem burguês, mesquinho,
quanto as condições para uma efetiva igualdade entre os homens que esteja para além
do domínio da “consciência pura”. É na ação do proletariado, norteada pelo devido salto
de consciência de sua genericidade humana, que se coloca, pois, a questão decisiva da
liberdade. Marx destaca, neste sentido, que a
igualdade, é a consciência que o homem tem de si mesmo no domínio da
prática, isto é, por conseguinte, a consciência que um homem tem de outro
homem como sendo seu igual e o comportamento do homem a respeito de
um outro homem como frente a frente de seu igual. A igualdade é a
expressão francesa para traduzir a unidade essencial do ser humano, a
consciência genérica e o comportamento genérico do homem, a identidade
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prática do homem com o homem, isto é, por conseguinte, a relação social ou
humana do homem com o homem (MARX; ENGELS, 1972, p. 50).
Homem e sociedade, desta forma, não comparecem à reflexão marxiana como
termos antitéticos, assim como não o são o par educação-liberdade. Em sua
complementaridade desvendam-se preocupações éticas na fundamentação do possível
vir a ser homem do homem uma vez que não se trata de garantir a existência do
indivíduo egoísta e sim do ser social enquanto constitutivo e constituinte da humanidade
genérica. E, mais ainda, na luta política faz-se necessária a criação de uma nova
consciência social, impossível de ser efetivada nos marcos da sociedade burguesa.
Como essa não nasce por geração espontânea, está implícita nesta problematização que
a luta política não está reduzida a um conflito armado mas, mais ainda, à construção
educativa de um novo tipo de ser, capaz de pensar a destruição de uma determinada
sociedade, a burguesa, na perspectiva de constituição de uma outra, onde o gênero
humano esteja pautado como horizonte a ser continuamente perseguido.
A verificação é de fundamental importância uma vez que, comumente, atribui-se
a Marx o demérito de ter extirpado da história o indivíduo, colocando em seu lugar as
grandes estruturas ou mesmo obstrui-se a compreensão de que uma revolução, vindo a
tornar-se possível, necessitaria de sujeitos com graus de consciência que encontram-se
em ruptura com o egoísmo burguês.
Um quarto elemento se faz necessário resgatar para a compreensão da questão
aqui proposta. Trata-se do papel educativo da teoria no processo de construção da
liberdade. Esta dimensão do problema precisa ser resgatada na medida em que, não
raras vezes, tem sido pautado pelo pensamento que corteja com a pós-modernidade ou
simplesmente com a fenomenologia, que ciência e senso comum possuem praticamente
o mesmo estatuto.
Esta preocupação, presente a todo momento no pensamento de Marx e Engels,
sendo uma expressão disto os esforços que desenvolveram à frente da Liga dos
Comunistas e, em momento posterior, nos anos de 1864 a 1871, nas fileiras da
Associação Internacional dos Trabalhadores, transcendeu a estes autores, o que revela a
importância da teoria na construção do tripé educação-liberdade-política. Porém, da
teoria que, colocando-se ao real, aponte para a possibilidade de constituição de saltos
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críticos no processo de construção da autonomia e criticidade por parte do conjunto do
trabalho.
Assim, não é de se estranhar que uma das primeiras ações dos comunistas
revolucionários da Rússia czarista tenha sido a formação de militantes preparados para
alfabetizar no campo e na cidade. O mesmo é possível se verificar, de outra parte, na
obra gramsciana e seus esforços de constituição dos intelectuais orgânicos da classe
trabalhadora, cujos delineamentos escapam aos objetivos deste artigo. No caso de Lênin
é ilustrativa a passagem segundo a qual uma das
hipocrisias da burguesia é a crença segundo a qual a escola pode ser
apartada da política. Vocês sabem tão bem quão falsa essa crença é. A
própria burguesia, a qual advoga esse princípio, faz sua própria
política burguesa a pedra angular do sistema escolar, e tenta reduzir a
escola ao treino de servos dóceis e eficientes à burguesia, reduzir a
educação universal para o fim de treinar servos dóceis e eficientes
para a burguesia, ou escravos e instrumentos do capital. A burguesia
nunca pensou em dar à escola o sentido de desenvolver a
personalidade humana. (Lenin12 [Discurso proferido em 14/01/1919 e
publicado em forma de relatório resumido no nº 13 da revista Izvestia
em 19/01/191], 2002, p.1)13 (apud OYAMA, 2014, p. 53).
Verifica-se, pois que, na extensa tradição decorrente do pensamento e engelsiano
estruturou-se a discussão do tripé educação-liberdade-política dissociando-se da
perspectiva que atrela a primeira como reduzida às necessidade do mercado de trabalho.
Para o eixo marxiano e marxista, educação é, sobretudo, um momento, assim como a
liberdade e a política, no processo de formação de uma nova individualidade que se
encontra intimamente ligada ao social.
Conclusão
Contrariamente ao que está largamente defendido pelo “pensamento único” ou,
mais geralmente, pelo pensamento neoliberal, cuja sobrevivência tem se estendido ao
longo destas primeiras décadas do século XXI, a educação pode revestir-se de outra
finalidade que não seja dada por aquela de atender às necessidades do mercado. Mais
ainda, sua efetiva plenitude para o ser social só pode ocorrer se ela estiver para além da
lógica de mercado e, portanto, da própria sociedade de classes. Contudo, ainda que este
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seja o horizonte a ser defendido no campo da ciência, resta sempre a reconhecer que nas
bases da sociedade atual são postas, ainda que jamais plenamente efetivadas, as
condições para o nascimento da educação em seu sentido mais amplo, isto é, de
perspectiva emancipatória.
Referências
ENGELS, F. Princípios do Comunismo. In: MARX, K; ENGELS, F., Obras Escogidas I.
Moscú, Editorial Progreso.
MARX, K. ; ENGELS, F., A ideologia alemã. S.P., Boitempo Editorial, 2007.
MARX, K.; ENGELS, F., Critique de l’éducation et de l’enseignement. Paris, Maspero,
1976.
MARX, K. Le Capital 1, Moscou, Éditions du Progrès, 1982.
MARX, K. Tesis sobre Feuerbach. In: MARX, K; ENGELS, F., Obras Escogidas I. Moscú,
Editorial Progreso.
OYAMA, E. R. A perspectiva da educação socialista em Lenin e Krupskaia. In: Marx e o
Marxismo. v.2, n.2, jan/jul 2014.