Post on 30-Jan-2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
MAGNO AUGUSTO JOB DE ANDRADE
EDUCAÇÃO MUSICAL PARA ADULTOS:
representações sociais no ensino de instrumentos para
adultos iniciantes
NATAL-RN
2016
MAGNO AUGUSTO JOB DE ANDRADE
EDUCAÇÃO MUSICAL PARA ADULTOS:
representações sociais no ensino de instrumentos para adultos
iniciantes
Trabalho apresentado ao Programa de Pós-
Graduação em Música da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, na linha de
pesquisa – LINHA 1: PROCESSOS E
DIMENSÕES DA FORMAÇÃO EM
MÚSICA como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Música.
Orientador: Prof. Dr. Jean Joubert Freitas
Mendes.
NATAL-RN
2016
Catalogação da Publicação na Fonte
Biblioteca Setorial da Escola de Música
A553e Andrade, Magno Augusto Job de.
Educação musical para adultos: representações sociais no ensino
de instrumentos para adultos iniciantes / Magno Augusto Job de
Andrade. – Natal, 2016.
107 f.: il.; 30 cm.
Orientador: Jean Joubert Freitas Mendes.
Dissertação (mestrado) – Escola de Música, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, 2016.
1. Música – Instrução e estudo - Dissertação. 2. Educação
musical de adultos - Dissertação. I. Escola de Música da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (EMUFRN). II.
Mendes, Jean Joubert Freitas. III. Título.
RN/BS/EMUFRN CDU 78:37
MAGNO AUGUSTO JOB DE ANDRADE
EDUCAÇÃO MUSICAL PARA ADULTOS:
representações sociais no ensino de instrumentos para adultos
iniciantes
Trabalho apresentado ao Programa de Pós-
Graduação em Música da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, na linha de
pesquisa – LINHA 1: PROCESSOS E
DIMENSÕES DA FORMAÇÃO EM
MÚSICA como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Música.
Orientador: Prof. Dr. Jean Joubert Freitas
Mendes.
Aprovada em: 20/12/2016
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________________________
PROF. Dr. JEAN JOUBERT FREITAS MENDES
(Presidente)
_________________________________________________________
PROF. Dr. MARCUS VINICIUS MEDEIROS PEREIRA
(Externo à instituição)
_________________________________________________________
PROF. Dr. MARIO ANDRE WANDERLEY OLIVEIRA
(Externo à instituição)
Dedico esse trabalho a meus alunos Silvana Karla, Karla Patrícia,
Dona Graça, Maicon Vieira, Cleomar Cabral (a mais desafiadora!) e
todos os meus alunos que me motivaram a buscar respostas para suas
especificidades e contribuir com seu caminho no instrumento e na
música.
AGRADECIMENTOS
A minha esposa Cleomar por me ensinar a ler entrelinhas e conceitos.
A minha filhinha Luiza que deixou o papai trabalhar no computador de vez em quando,
apesar de reclamar.
A meus colegas: Ana, João, Rodrigo, Valdier, Midian, Fernando e Kleber. Irmãos de copo
(de café), de cruz e de caminhada que tanto me ensinaram e me ajudaram.
A meu orientador Jean Joubert e aos nossos dedicados professores do Programa de Pós-
graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
A meus colaboradores que compartilharam e confiaram a mim seus relatos, experiências e
seu precioso tempo sem o qual esse trabalho não seria possível.
A nossa secretária Dejadiere (Deja) Lima sempre atenta e cuidadosa.
Ao café, combustível das madrugadas e das boas conversas.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo identificar/revelar e refletir sobre as representações
sociais que mediam as relações entre a adultez e o ensino de instrumentos musicais de
tradição conservatorial. O interesse é a investigação da dimensão simbólica envolvida no
processo de musicalização de adultos e as técnicas e métodos que fazem parte dos processos
de musicalização ou ensino de música. Para tanto, foram entrevistados alunos e professores
da Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que atuam
no âmbito dos cursos de formação em instrumento. Foi utilizado como referencial teórico o
conceito de representação social de Moscovici (2009) e Jodelet (2001), para definir o objeto
de pesquisa; a teoria de Bourdieu (2008, 2010), e sua aplicação por Pereira (2012), para dar
conta das interações entre as representações estudadas e as estruturas nas quais estão
inseridas; e a teoria sociológica da adultez de Sousa (2012), para definir o adulto em diálogo
com as representações em que ele está inserido. Como metodologia, foi utilizado um
levantamento bibliográfico referente ao tema, que nos forneceu elementos para a aplicação
de entrevistas semiestruturadas, segundo a proposta de Spink (2013) de pesquisa qualitativa
e análise das representações sociais. Dentre os resultados, foram encontradas diversas
evidências de representações expressas e explicitadas em vários trabalhos acadêmicos ao
longo do levantamento bibliográfico, bem como evidências de representações sociais a
respeito da musicalização de adultos dentre alunos e professores da Escola de Música da
UFRN. Tais representações aparecem fortemente associadas à percepção do tempo de estudo
(em anos e em horas cotidianas), e de profissionalização (segundo os ideais e práticas
conservatoriais), que orientam a valoração da iniciação musical na idade mais precoce
possível (“melhor idade para iniciação”), de modo, a garantir o cumprimento das demandas
associadas a formação musical representada pelos entrevistados. Sendo assim, a iniciação de
adultos é representada socialmente no meio pesquisado como uma iniciação problemática
que requer a superação de diversos obstáculos e que não se dá em consonância com o modelo
de aluno e de profissional almejado pelos cursos de formação e pelo meio profissional.
Palavras-chave: Educação musical de adultos; Representações sociais; Música; Adultez.
ABSTRACT
The present work aims to identify/reveal and reflect on the social representations that mediate
the relationships between adulthood and the teaching of musical instruments of conservatory
tradition. The interest is the investigation of the symbolic dimension involved in the process
of adult musicalization and the techniques and methods that are part of the processes of
musicalization or teaching of music. Therefore, students and professors from the School of
Music of the Federal University of Rio Grande do Norte (UFRN) were interviewed, who
work in the basic, technical, higher (baccalaureate) and postgraduate ( Master's degree). The
concept of social representation of Moscovici (2009) and Jodelet (2001) was used as a
theoretical reference, to define our research object; Bourdieu's theory (2008, 2010), and its
application in the field of musical education by Pereira (2012), to account for the interactions
between the representations studied and the structures in which they are inserted; And Sousa's
sociological theory of adulthood (2012), to define the adult in dialogue with the
representations in which he is inserted and with the social context that surrounds him. As a
methodology, a bibliographic survey was used, which provided us with elements for the
application of semi-structured interviews, according to Spink's (2013). Among the results,
we found several evidences of explicit and explicit representations in several academic works
along the bibliographical survey, as well as evidences of social representations regarding the
musicalization of adults among students and professors of the School of Music of UFRN.
These representations are strongly associated with the perception of study time (in years and
in daily hours), and professionalization (according to conservatory ideals and practices),
which guide the valuation of musical initiation at the earliest possible age ("better age for
initiation "), so as to guarantee the fulfillment of the demands associated with the musical
formation represented by the interviewees. Therefore, adult initiation is represented socially
in the researched environment as a problematic initiation that requires the overcoming of
several obstacles and that is not in accordance with the model of student and professional
sought by the training courses and the professional environment.
Keywords: Musical education of adults; Social representations; Music; Adulthood.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Representações sociais do aluno adulto iniciante de instrumento.......57
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10
2 DEFINIÇÃO DOS OBJETIVOS E CONCEITOS CHAVE ....................................... 16
2.1 OBJETIVOS ................................................................................................................... 17
2.2 MUSICALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO INICIAL AO INSTRUMENTO ........................ 18
2.3 HABITUS E CAMPO .................................................................................................... 19
2.4 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS .................................................................................... 21
2.5 HABITUS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS .............................................................. 22
2.6 ADULTO E ADULTEZ ................................................................................................. 23
2.7 EDUCAÇÃO MUSICAL PARA ADULTOS A PARTIR DA LITERATURA ............ 24
3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: A TEORIA E O FENÔMENO .............................. 31
3.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, HABITUS E O CAMPO DA EDUCAÇÃO
MUSICAL ............................................................................................................................ 33
3.2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NA EDUCAÇÃO MUSICAL ................................... 35
3.3 O UNIVERSO CONSENSUAL E O REIFICADO ....................................................... 38
3.4 OBJETIVAÇÃO E ANCORAGEM .............................................................................. 40
3.5 O ADULTO COMO REPRESENTAÇÃO E O CONCEITO DE ADULTEZ .............. 42
3.6 REPRESENTAÇÕES DE EDUCAÇÃO E ADULTEZ ................................................ 43
3.7 O ADULTO INACABADO: REPRESENTAÇÕES CONTEMPORÂNEAS SOBRE O
TEMA 44
4 AS REPRESENTAÇÕES E O TRABALHO DE CAMPO ......................................... 47
4.1 OBJETO E SUJEITOS ................................................................................................... 47
4.2 CONTEXTO ................................................................................................................... 49
4.3 PROCEDIMENTOS DE COLETA E ANÁLISE .......................................................... 52
5 ECLIPSE E ESTRANHAMENTO ................................................................................ 58
5.1 OBSERVAÇÕES INICIAIS .......................................................................................... 58
5.2 SOBRE DIFICUDADES EM PERCEBER O ALUNO ADULTO ............................... 61
5.3 SOBRE A IDADE PARA A INICIAÇÃO MUSICAL ................................................. 63
5.4 SOBRE DIFERENÇAS ENTRE CRIANÇAS E ADULTOS NA INICIAÇÃO
MUSICAL E NA FORMA DE APRENDER MÚSICA ...................................................... 67
5.5 SOBRE PONTOS POSITIVOS E NEGATIVOS NA MUSICALIZAÇÃO DE
ADULTOS ........................................................................................................................... 69
6 TEMPO E TEMPORALIDADE .................................................................................... 71
6.1 TEMPO EM HORAS E TEMPO EM ANOS ................................................................ 73
6.2 O TEMPO COMO CAPITAL ........................................................................................ 74
7 A PROFISSIONALIZAÇÃO E O CONSERVATÓRIO ............................................. 78
7.1 PROFISSIONALIZAÇÃO E O TEMPO ....................................................................... 79
7.2 TRABALHO E HOBBY ................................................................................................ 81
7.3 MENTALIDADE DE CONSERVATÓRIO .................................................................. 85
7.4 SOBRE O QUE SE OUVE ............................................................................................ 89
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 92
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 97
APÊNDICE A - Proposta de roteiro para entrevistas semiestruturada realizada com
os professores: .............................................................................................................. 103
APÊNDICE B - Proposta de questões para entrevista semiestruturada realizada com
os alunos: ...................................................................................................................... 105
APÊNDICE C – Termo de consentimento livre e esclarecido ...................................... 107
10
1 INTRODUÇÃO
O percurso do pesquisador como estudante de música, trilhou o caminho de aprendiz de
violino e viola, onde esteve cercado por professores sérios, dedicados e respeitados que não
formavam apenas alunos, mas discípulos, que logo procuravam reproduzir (conscientemente
ou não) seus ensinamentos, técnicas e sua “filosofia” de fazer música.
Em outra fase de sua vida, em análise das obras de Bourdieu (2008, 2010), foi
descoberto que, o que era transmitido também nesse processo de formação era um habitus, um
conjunto de estruturas que se expressa no agir, no pensar e nas disposições corporais, e que uma
vez estruturadas, agem como estruturas estruturantes. De fato, foram aprendidas e reproduzidas
as mesmas piadas, os mesmos modos de se portar, de vestir, de agir e de pensar em várias
situações. Foi aprendido como se tocar, e por meio da prática do instrumento, foi interiorizado
um conjunto de regras que cerca e orienta o universo musical.
O ambiente que dominou a formação do pesquisador, compreende desde os cursos
básicos de instrumento, o curso de extensão universitária e o curso de bacharelado em
instrumento. O aluno que dominava cedo o repertório do instrumento, era muito valorizado,
sendo chamados de “talentos” ou “prodígios”. Esses jovens, eram vistos como troféus para os
professores e instituições, como uma prova de sucesso no ensino de música. Além disso, eram
tidos como os alunos com mais chances de uma carreira de sucesso.
Em contrapartida, os alunos mais velhos, caso em que se enquadrava este pesquisador,
são vistos como alunos “problema”, uma vez que demoravam a aprender e eram estigmatizados
como alunos que não poderiam se tornar bons músicos. Nesse ambiente, é comum que estes
alunos sejam aconselhados a desistir de estudar o instrumento por serem vistos como demasiado
“velhos” para alcançar um nível “aceitável” de performance.
No entanto, ao longo da atuação profissional deste pesquisador, observou-se que mesmo
os prodígios, dificilmente alcançavam na idade madura a carreira de concertista virtuose
antecipada na juventude. Além disso, aprender a tocar um instrumento não deveria ter como
fim apenas a formação de solistas e músicos de orquestra, mas, a atuação em orquestras ou
palcos parecia o único caminho possível e o único objetivo a ser alcançado.
Também constatou-se através da experiência profissional que, pessoas “fora da idade
adequada” para o início do aprendizado no instrumento, frequentemente desejavam aprender a
11
tocar, uma vez que os seus filhos estavam estudando, estes também frequentaram as aulas como
alunos, mesmo que por pouco tempo.
Geralmente, quando um adulto pergunta se ainda tem idade para aprender música, o
comparativo usado na atuação profissional do pesquisador é que o estudo de um instrumento é
semelhante ao ensino de um idioma. Esta perspectiva é a base da proposta pedagógica de Suzuki
(1983) e seu Método da Língua Materna, que pode ser utilizado para o aprendizado do
instrumento em todas as idades, e que se tornou familiar em muitas escolas de música. Deste
modo fica mais fácil explicar porque embora as crianças possam aprender mais rápido em certa
idade, ainda assim é possível aprender uma língua ou um instrumento em qualquer idade.
No entanto, ensinar a adultos requer do professor reflexões relacionadas metodologia,
didática e os valores e forma de pensar (habitus) aprendidos durante sua formação. Desse modo,
surgem questionamentos, tais como: Se foi aprendido que o caminho do instrumento deveria
levar a uma possibilidade de atuação profissional, como ensinar alguém que supostamente não
alcançaria esse nível? Porque ensinar a esse aluno, se os mais jovens se enquadram melhor aos
métodos à disposição, além da possibilidade de obter o prestígio e visibilidade esperada do meio
musical?
Desse modo, foi constatado empiricamente, através das vivências do pesquisador que
tão importante quanto a didática diferenciada requerida para os alunos mais velhos, existe a
devida importância no que diz respeito ao trabalho do professor, em mostrar que eles eram
capazes de aprender música, e que as dificuldades técnicas que eles enfrentavam eram
enfrentadas também por muitos alunos jovens.
Assim, questionamentos ligados ao modo como esses alunos se viam na qualidade de
estudantes, em processo de iniciação musical e como esses alunos eram percebidos pelos
professores? Além disso, constatou-se que haviam diferentes tipos de acolhimento ao público
adulto e diferentes tipos de tratamento, que variavam, de uma relação profissional aos moldes
do ensino conservatorial, aulas particulares, passando a ter até inclusive uma relação
“terapêutica”, onde o aluno adulto vê a aula como uma terapia antiestresse, ou hobby.
Ressalta-se que não há problema no ensino de música como um hobby ou como uma
atividade terapêutica, o problema é que muitas vezes o ensino de música para adultos é visto
apenas nesta perspectiva. Nesse caso, o interesse deste pesquisador é questionar, como e por
que o ensino de música para um determinado perfil de alunos que começa seus estudos de
12
instrumento depois da infância e antes da velhice é representado e categorizado dessa ou
daquela maneira e quais as implicações dessas representações?
Deste modo, o interesse com este trabalho é transformar em objeto de estudo o
conhecimento informal que circula nas escolas de música a respeito do aluno que se inicia ao
instrumento depois da infância e antes da velhice, na chamada idade adulta. A proposta para
abordar esse conhecimento se dá pelo aporte teórico da teoria das representações sociais como
proposto por Moscovici (2009).
Essas representações são produto de uma estrutura maior historicamente construída que
orienta essas representações e que é também mantida por essas representações, o habitus. Nesta
pesquisa, o habitus será abordado segundo a teoria de Bourdieu (2008, 2010), que será
retomado no desenvolvimento dos próximos capítulos.
Recentemente, Pereira (2012, 2014, 2015) fundamentado nas proposições teóricas de
Bourdieu, analisou os cursos superiores de música e atribuiu o conceito de habitus
conservatorial, para tratar das estruturas construídas historicamente segundo os moldes do
ensino conservatorial, que atuam nos cursos de formação em música orientando práticas,
valores e percepções.
Penna (2003) já apontava nessa direção ao tratar de uma lógica que domina nos cursos
superiores de música ainda era a lógica do conservatório. Tal “lógica” tem como características
a separação entre teoria e prática, a centralidade curricular da música europeia, entre outras.
Este trabalho concorda com o conceito de habitus conservatorial segundo Pereira
(2012), como estruturas estruturadas a partir do modelo de ensino de música que tem por base
o conservatório de música e que uma vez estruturadas se tornam estruturas estruturantes com o
poder de definir valores, maneiras de pensar, maneiras de agir e maneiras de representar o
mundo. Essas estruturas são internalizadas paralelamente a educação musical recebida.
Nesse contexto, não apenas as músicas e a hierarquia entre os saberes e técnicas era
internalizada, mas também valores presentes nesse universo. Dentre as estruturas modeladas
segundo esse habitus estão as representações sociais, que são uma forma de conhecimento
prático que orienta a categorização e a percepção dos membros de um determinado grupo social.
Assim, entende-se que as representações sociais como produtos de um habitus e como uma via
de acesso ao habitus e o habitus como uma via de acesso às representações sociais
(SOBRINHO, 1998).
13
Na ausência de materiais que dessem conta dos questionamentos levantados pelo
pesquisador, esse trabalho surge como uma alternativa para compreender a respeito da
dimensão simbólica que cerca o ensino de música e parece se expressar fortemente nas práticas
orientadas pelo habitus conservatorial, que parece moldar a forma de enxergar e tratar o adulto
iniciante, e esse adulto que começa a procurar cada vez mais o ensino de música.
Aqui uma distinção importante, quando se refere ao ensino de música, remete-se ao
ensino de instrumentos de uma tradição conservatorial adotada na realidade brasileira, ou seja,
os quais a história e as convenções associam à prática orquestral e que são estudados seguindo
os preceitos de uma determinada tradição. Além disso, há uma associação desse ensino ao
aprendizado de um instrumento.
Geralmente se diz “quero aprender piano”, “sempre tive vontade de tocar violino” etc.
Só depois de ingressar no instrumento é que o aluno descobre que por traz do ato de tocar,
existem uma série de fundamentos técnicos, teóricos, históricos, etc., que acabam sendo
introduzidos mesmo quando acontecem “apenas” aulas práticas. A esse respeito, com relação
ao conhecimento do senso comum que se busca estudar através da teoria das representações
sociais e a respeito da iniciação através do instrumento Pereira (2012) cita que:
O senso comum corrobora na afirmação do perfil do músico professor: ninguém pede
para aprender Música, a intenção é sempre de aprender um instrumento em particular.
Movidos por este ideal, todos vamos procurar professores que dominem o instrumento
objeto de desejo: em geral procuramos os melhores instrumentistas creditando à
destreza técnico-instrumental a perícia docente (PEREIRA, 2012, p. 76).
Outro elemento que orienta esta pesquisa, é que o aluno iniciante adulto, está inserido
no universo da “escola de música” e nas representações que esse universo envolve. Pereira
(2012) ressalta que o habitus na teoria de Bourdieu, por meio do habitus conservatorial, está
intrinsicamente relacionado ao campo no qual esse habitus atua. Deste modo, ao estudar as
representações sociais produzidas por esse habitus conservatorial nesse campo específico está
se buscando levar em conta a dinâmica das trocas e disputas simbólicas que engendram as
representações as quais busca-se estudar.
No caso da iniciação de adultos através da prática de canto coral em espaços religiosos
em que estão entrelaçados o campo da educação musical e da prática religiosa devocional, estão
em jogo os valores do campo da educação musical e também os valores do campo das práticas
14
religiosas em que se dá o aprendizado. Deste modo, a socialização, a dedicação ao louvor, a
comunhão, enquanto valores do campo religioso, podem ter mais peso do que valores do campo
da educação musical, tais como a excelência da performance, a técnica vocal e o rigor estilístico.
De modo semelhante, em uma escola particular, os valores de mercado, como a
satisfação do cliente, o atendimento, a oferta de produtos que sejam atraentes, podem ter mais
peso do que valores próprios das escolas de música que seguem os valores constituídos
predominantemente no campo da educação musical voltada à pratica do instrumento.
Ao buscar entender como são representados os adultos na Escola de Música da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, foram procurados, os professores de instrumento
que atuam nos cursos básicos, superior (bacharelado) e na pós-graduação (mestrado),
entendendo que no curso de licenciatura, além da prática instrumental não ser o foco da
formação, existe o entrelaçamento do campo da educação e da pedagogia como o campo da
educação musical.
Neste caso, valores presentes no campo da educação e pedagogia, podem ter mais peso
do que os valores da educação musical voltada à prática de instrumentos, onde historicamente
predomina o habitus conservatorial por ser esse campo historicamente constituído pela
integração do conservatório de música a estrutura da universidade (UFRN, 2016).
Ao tratar do campo da educação musical de instrumentos na Escola de Música da
UFRN, este campo também está entrelaçado a outros campos, como o da educação ou da
pedagogia, no entanto, parto do princípio que nesse campo ainda estejam em vigor
prioritariamente as regras e valores definidos a partir de um habitus conservatorial (PEREIRA,
2012), que por sua vez se manifesta através das representações sociais que pretendo estudar, as
quais se referem ao aluno adulto iniciante ao instrumento.
* * *
No próximo capítulo (2), serão apresentados marcos e fronteiras que definem o escopo
desse trabalho e os seus limites: os objetivos dessa pesquisa (2.1) e conceitos chave tratados ao
longo do texto (2.2 a 2.6) que ajudam esclarecer de que trata essa pesquisa e de que ela não
trata. Por último (2.7), será apresentada uma revisão de literatura no sentido de contextualizar
15
o leitor com o estado das pesquisas sobre educação musical para adultos, destacando temas
recorrentes e buscando uma categorização dos trabalhos encontrados.
No capítulo quatro (3) serão discutidos aspectos teóricos das representações sociais,
habitus conservatorial e o campo da educação musical para instrumentos de tradição
conservatorial (3.1); uma revisão da literatura a respeito do uso das representações sociais na
educação musical (3.2); os conceitos de universo consensual e reificado (3.3); objetivação e
ancoragem (3.4); adultez (3.5, 3.6 e 3.7).
No capítulo três (4) serão apresentadas as abordagens metodológicas os sujeitos e o
objeto (4.1), o locus de pesquisa (4.2) e procedimentos (4.3).
No capítulo quatro (5) serão apresentados o estudo piloto realizado entre graduandos da
Escola de Música da UFRN (5.1), os dados, a categorização e a análise, de acordo com
abordagem teórica e a metodologia utilizada (5.2, 5.3 e 5.4). Nesse capítulo destaca-se o que
Moscovici (2009) chama de eclipse da percepção, percebido através das características das
representações sociais enquanto fenômenos.
No capítulo cinco (6) trata-se do tempo, de sua percepção e de suas dimensões (6.1),
que por sua vez se estabelece como um valor do campo da educação instrumental de tradição
conservatorial (6.2).
Esse tempo está relacionado, por sua vez, às representações de profissionalização que
se formam a partir do habitus conservatorial (7), e será analisado conforme a sua relação com
modelo de profissionalização do campo (7.1). Também relacionado ao universo do trabalho,
será discutido na seção 7.2, a relação entre o trabalho e o hobby, esse último um termo frequente
na literatura e no senso comum. Na seção 7.3 serão abordadas as representações do
conservatório no senso comum e em outros espaços, e por último trataremos de
comportamentos relacionados ao habitus conservatorial e suas representações (7.4).
No capítulo sete (8) as considerações finais, questões que surgiram a partir da pesquisa
e possíveis desdobramentos desse trabalho.
.
16
2 DEFINIÇÃO DOS OBJETIVOS E CONCEITOS CHAVE
Mesmo hoje depois de muitos avanços na área da educação musical, não é raro ouvir
em conversas informais que alguém começou a estudar “muito velho”, que existe uma “idade
certa” para aprender música. Destaca-se que neste trabalho, aqui o verbo “ouvir” enquadra-se
a colocações que geralmente são expressas nas falas do cotidiano e não na literatura da área. De
maneira semelhante, há uma cultura que defende que “música é uma coisa que deve ser
apreendida quando criança” e uma pergunta sempre frequente: “você acha que eu ainda posso
aprender música na minha idade? ”.
Tais discursos, tão comuns nos corredores e salas de aula de diversas instituições, estão
carregados de representações socialmente compartilhadas a respeito do que constitui o processo
de musicalização para adultos. Por sua vez, essas representações parecem ter influência nas
atitudes de alunos, professores e instituições com relação ao processo de musicalização para
esse público.
Ao longo da pesquisa, tem ficado cada vez mais evidente como essas perguntas ou
concepções expressas acima, aparecem de maneiras diversas em discursos de alunos e
professores de música. Mais importante, percebemos que a recorrência desses discursos está
ligada à percepção e ao entendimento de como é representada a educação musical para os
sujeitos. Esse conjunto formado pelas representações desses sujeitos, professores e alunos de
música, orientam comportamentos, escolhas e atitudes que aparecem em vários processos que
envolvem a educação musical.
Neste trabalho, é adotado o conceito de representações sociais (MOSCOVICI, 2009;
JODELET, 2001) para dar conta desse discurso presente no senso comum que expressam
percepções acerca da educação musical ao instrumento para adultos e a maneira como essas
percepções, uma vez categorizadas e incorporadas, como “dispositivos duradouros” (habitus)
orientam os comportamentos e atitudes.
Para ficar claro, este trabalho procura identificar e refletir sobre esse conhecimento do
senso comum, de carácter simbólico, mas também prescritivo, que orienta e que media as
relações entre aqueles classificados como adultos e o ensino de instrumentos musicais de
tradição conservatorial. Não é o caso de comprovar as motivações, possibilidades ou limitações
do ensino de música inicial para adultos, mas procurar compreender a dimensão simbólica que
17
envolve esse processo e como essa dimensão interfere em comportamentos e atitudes de alunos
e professores.
2.1 OBJETIVOS
Delimitando essa pesquisa a cidade de Natal (Rio Grande do Norte), mais
especificamente na Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, lugar
onde se dá a formação musical que é referência na cidade e a qual traz na sua história também
como referência o ensino conservatorial (como será explicado adiante), o objetivo desta
pesquisa é: identificar as representações sociais que mediam as relações entre a adultez e
o ensino de instrumentos musicais de tradição conservatorial na Escola de Música da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte na cidade do Natal-RN. Esse objetivo
pressupõe os seguintes objetivos específicos:
• Identificar representações sociais a respeito da musicalização de adultos entre
professores da Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande no Norte na
cidade do Natal-RN;
• Identificar representações sociais a respeito da musicalização de adultos entre
estudantes de instrumentos de tradição conservatorial considerados adultos da Escola
de Música da Universidade Federal do Rio Grande no Norte na cidade do Natal-RN
• Identificar relações entre as representações sociais a respeito da musicalização de
adultos e os comportamentos, valores e atitudes que permeiam os processos de ensino-
aprendizagem de alunos adultos iniciantes em cursos de instrumentos de tradição
conservatorial da Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande no Norte
na cidade do Natal-RN.
Compreendido o que esta pesquisa se propõe a analisar, na próxima seção, são apresentados
alguns conceitos utilizados nesse trabalho para evitar confusão no que diz respeito a sua
aplicação ao longo do texto.
18
2.2 MUSICALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO INICIAL AO INSTRUMENTO
Ao se iniciar em um instrumento, alguém que nunca teve contato com a música,
certamente será musicalizado pela via do instrumento que escolheu. No entanto na área de
educação musical ao instrumento poucas vezes esse tipo de iniciação é tratado como um
processo de musicalização.
Nesse trabalho, a escolha do termo “educação inicial ao instrumento”, tem o mesmo
sentido de “musicalização” embora haja consciência que trazer esses termos forçosamente
evoca as representações dos grupos de educadores que os empregam. Esse tipo de ressalva tem
sido necessária porque algumas vezes os educadores que ouviam as primeiras construções desse
trabalho diziam “por que ‘educação inicial’ se isso é musicalização? ”.
De maneira semelhante, muitos professores de instrumento associam a musicalização
apenas ao tipo de educação musical que se faz com crianças no ambiente escolar. Esse trabalho
não pretende discutir o uso desses termos nem os conceitos a eles associados. Quanto a
musicalização, esse trabalho adota o conceito de musicalização segundo Penna (2010), como
um:
Processo educacional orientado que se destina a todos que, na situação escolar,
necessitam desenvolver ou aprimorar seus esquemas de apreensão da linguagem
musical – mesmo que sejam adolescente ou adultos. Necessitam porque foram
privados socialmente das condições para desenvolver tais esquemas e sua vivência
prévia à escola, cabendo, portanto, aproximá-los da música, em suas diversas
manifestações (inclusive eruditas) (PENNA, 2008, p. 41).
Esse conceito abrange não apenas a situação escolar, pois engloba os adultos como
sujeitos privados das condições para desenvolver esquemas de apreensão da linguagem musical
na situação escolar (PENNA, 2008).
Quando emergir no decorrer do texto o termo “educação inicial” de adultos, esse termo,
é um sinônimo para musicalização, como apresentado acima, embora ambos os termos estejam
relacionados nesse trabalho, a iniciação musical ou musicalização através do instrumento em
um ambiente onde predomine o habitus conservatorial.
Outro ponto assumido nesta pesquisa, é que a educação inicial de adultos ou a
musicalização, além de usadas como sinônimas, também pressupõe pelo menos dois atores, o
professor e o aluno. Desse modo, entende-se enquanto processo construído a partir da relação
19
social entre, no mínimo, dois sujeitos. Outro pressuposto é que esses atores estão em contato
direto e possuem suas maneiras de perceber, categorizar e representar o processo de educação
musical no qual estão envolvidos. Essas maneiras compartilhadas de categorizar, perceber e
representar trataremos aqui como representações sociais.
2.3 HABITUS E CAMPO
Quanto ao habitus, uma das implicações da abordagem escolhida e do recorte usado
nesse trabalho é que, ao considerar o processo de musicalização de adultos em um contexto no
qual predomine o habitus conservatorial (PEREIRA, 2012), fica fora do escopo desse trabalho
os processos de educação musical autodidata conduzidos por adultos, como por exemplo,
aqueles mediados por revistas ou por recursos digitais, assim como processos de educação
musical informais.
Entende-se que a educação musical informal é aquela realizada no ambiente familiar ou
no convívio entre amigos, na qual não existe um processo sistemático ou intencional e no qual
predomine a transmissão oral (COFFMAN, 2002). A discussão a respeito do que seria educação
formal, informal e não-formal ou educação espontânea e intencional foge completamente ao
escopo desse trabalho.
A ideia de excluir outros tipos de educação musical é focar nos modelos de educação
musical nos quais predomine o habitus conservatorial e observar como se são representados
adultos iniciantes ao instrumento nesse modelo. Essa distinção, como enunciada acima tende a
delimitar o habitus conservatorial e o campo no qual esse habitus está inserido. Neste caso,
procurou-se delimitar a educação musical instrumental como um campo de disputas simbólicas
(BOURDIEU, 2008; 2010) no qual são valorizados determinados capitais, práticas e valores,
como também seus atores estão constantemente em disputa pelo poder de definir as regras que
correspondem a seus interesses.
Vale lembrar que, campo aplicado segundo a teoria social de Bourdieu (2010), nesta
pesquisa, se refere a um espaço simbólico que é lugar de disputas (simbólicas) e possui regras
específicas para a sua constituição. Além disso, são chamadas de disputas simbólicas, o
conjunto de disputas dentro de um campo a respeito dos aspectos que compõe as definições do
20
que é valorado no campo. Campo é entendido como “um universo social relativamente
autônomo que é produto de um lento processo de constituição” (BOURDIEU, 2010, p. 285).
O ensino de instrumentos de tradição conservatorial é visto como um campo de disputas
simbólicas, seus principais atores são os alunos, professores, instituições e imprensa. A
qualidade da performance dos alunos, é um dos elementos de valor deste campo, e a primazia
pela melhor qualidade de ensino, ou por ser a referência enquanto instituição reconhecida pela
sociedade e por outros atores do campo, são alguns dos elementos simbólicos disputados dentro
do campo. Não confundir com contexto, que nesse caso é a cidade do Natal-RN.
O campo da educação musical, é um só, dependendo do recorte que se dá os atores
mudam, serão diferentes as instituições e professores na cidade de Londres, mas também em
Londres existe um campo de educação musical de tradição conservatorial sujeito ao mesmo
tipo de análise. Ao falar de Natal como contexto, delimita-se a abrangência dos atores do campo
a ser analisado e, ao mesmo tempo, estabelece-se que esses atores são influenciados por essa
realidade, que é a do município de Natal. Diferente de Londres, aqui a organização escolar, ou
número de instituições, ou perfil dos alunos, se apresentam de outra forma.
Desta maneira, as instituições capazes de formar, músicos de excelência, de preferência
reconhecidos pela maior quantidade de pessoas possível, possuem dentro desse campo, que é o
do ensino de música instrumental, um capital simbólico que é usado na disputa pelo poder de
ditar as regras do campo.
Fazendo uma relação com a questão da idade, tomando como exemplo o próprio
Amadeus Mozart, que por sua precocidade atraiu a atenção e olhares para seu professor e pai,
pode-se notar como seu pai, Leopold Mozart, capitalizou essa atenção de modo a promover o
filho e a se próprio, consolidando a sua posição de referência no campo da educação musical e
da performance.
Sendo assim, certos tipos de musicalização de adultos ficam fora do foco da pesquisa,
porque, embora exista o processo da musicalização, não existe a influência do habitus
considerado como estruturas autoreprodutoras que contribuem para o surgimento e a difusão
das representações que pretendo estudar.
No caso das práticas de canto coral em locais de trabalho, como nos corais de empresas
para a festa de Natal, ou no caso da prática do canto coral em ambientes religiosos. Nesses casos
o processo de educação musical se dá em um espaço social no qual se entrelaçam o campo da
21
educação musical instrumental e o campo da prática religiosa devocional, que imprime seus
próprios valores.
De maneira semelhante acontece com a iniciação de adultos, por meio da prática de
canto coral em espaços nos quais o campo da educação musical está entrelaçado como o campo
mais amplo da educação ou da pedagogia, ou com o campo próprio da atividade profissional,
no caso de corais de empresas. Nesses casos, também as regras próprias do campo da educação
musical instrumental (ou vocal) são menos importantes do que as regras do campo em que estas
práticas estão entrelaçadas.
No caso da prática de canto coral com os funcionários de uma empresa, para as festas
de fim de ano, provavelmente são mais importantes a integração, motivação, identificação
afetiva com a empresa, recreação e socialização dos funcionários do que propriamente a
excelência estilística, a técnica vocal ou a precisão na articulação, que são valores trabalhados,
desejados e disputados no campo da educação musical voltada a práticas vocais.
No caso da Escola de Música da UFRN, trata-se de um universo amplo, e que o ensino
de instrumentos é um dos muitos ensinos oferecidos por essa instituição. Vale destacar também
que, na qualidade de campo, o ensino de instrumentos, não apenas da Escola de Música da
UFRN, mas em todas as universidades brasileiras, está contido no espaço social em que se
entrelaça com o campo da educação da pedagogia e o campo da educação musical, entre outros.
Dado a sua origem, como um conservatório incorporado a universidade (UFRN, 2016)
e às evidências de um habitus conservatorial (PEREIRA, 2012) que ainda se manifesta nas
instituições superiores, os cursos voltados à prática de instrumento de tradição conservatorial
na Escola de Música da UFRN, ainda são predominantemente representativos do campo, ou
subcampo, da educação musical instrumental de tradição conservatorial e de seus valores e além
disso, esse campo está fortemente relacionado ao habitus conservatorial.
2.4 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
O processo de musicalização, ou educação inicial ao instrumento, em sua dimensão
simbólica pressupõe não apenas a existência de uma ou várias representações do que seja a
educação musical, como também a existência de uma ou várias representações do que seria esse
adulto que participa da aula de música.
22
Outro ponto que deve ser esclarecido logo é que, representação social, se refere a uma
teoria, a um fenômeno, e a um conceito. Para tentar facilitar o entendimento e evitar confusões
a esse respeito, quando houver referências à teoria das representações sociais será utilizada a
abreviação “TRS”, quando estiver me referindo ao fenômeno vou usar em negrito
representações sociais e quando houver referência ao conceito, será adotado a escrita sem
alterações, como por exemplo, a representação social de adulto.
A Teoria das Representações Sociais (TRS), constitui um modelo teórico proposto por
Serge Moscovici (2010) que trata do estudo do conhecimento do senso comum (senso comum
é usado pelo autor em oposição ao conhecimento científico). Esse conhecimento se constitui
diferentemente do conhecimento científico em uma espécie de conhecimento “prático” que
orienta as percepções, reações e comportamentos relacionados a um objeto. Essa teoria estuda
o fenômeno das representações sociais.
Como fenômeno, as representações sociais tendem a convencionalizar e prescrever (de
modo impositivo) nossa forma de ver o mundo, interpretá-lo e reagir em relação a esse mundo
(MOSCOVICI, 2010). Elas são produto de nossas ações e comunicações, respondem a estrutura
e social e são reforçadas pela tradição, constituindo segundo Moscovici (2010) uma realidade
sui generis. Jodelet (2001) define as representações sociais como:
Uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo
prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto
social. Igualmente designada como saber de senso comum ou ainda saber ingênuo,
natural, esta forma de conhecimento e diferenciada, entre outras, do conhecimento
científico. (JODELET, 2001, p. 22).
É nesse sentido que será interpretado o conhecimento do senso comum tratado nesse
trabalho.
2.5 HABITUS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
A articulação da teoria de Bourdieu, com a de Moscovici, não é recente. Ambos
receberam a influência de Durkheim e trabalham com a dimensão simbólica articulando a
sociedade e o indivíduo e o universo simbólico. Por um lado, Bourdieu e sua teoria do habitus
descrevem uma estrutura que orienta a percepção do mundo, a formação de um sistema de
23
valores, e de disposições segundo a posição que o sujeito ocupa no espaço social (BOURDIEU,
2010).
Por outro lado, Moscovici, embora, não trate especificamente do habitus como um
conceito, trata de várias das características daquilo que Bourdieu chama de habitus quando,
reconhece que “vivemos em um mundo social e não dispomos de nenhuma informação que não
tenha sido distorcida por representações ‘superimpostas’, [...] transmitidas no decurso do tempo
por sucessivas gerações” (MOSCOVICI, 2009, p. 33 e 37).
Também Moscovici reconhece as representações sociais como condicionantes ou
respondentes de uma estrutura social e que são reforçadas pela tradição (MOSCOVICI, 2009,
p. 41). Em Bourdieu, essa estrutura social que condiciona e responde às representações sociais
é o habitus.
Mary Jane Spink (2013), pesquisadora das representações sociais, trata das
representações sociais como “uma expressão da realidade intraindividual; uma exteriorização
do afeto. São nesse sentido uma, estruturas estruturantes que revelam o poder da criação e da
transformação da realidade social” (SPINK, 2013, p. 98). Não é difícil encontrar referências na
teoria de Bourdieu que se relacionem ao conceito de representações sociais de Moscovici ou de
referências em Moscovici que podem ser relacionadas com a teoria do habitus de Bourdieu.
Por fim, temos ainda Moisés Domingos Sobrinho (1998) que trata as representações
sociais como uma via de acesso ao habitus e o habitus como uma via de acesso às
representações sociais.
Pereira (2012) estudou o habitus conservatorial através de suas manifestações nos currículos
dos cursos de música, aqui considera-se as representações sociais como manifestações de um
habitus e como uma via de acesso a esse habitus. De maneira semelhante, há concordância com
Sobrinho (1998), que o habitus enquanto estrutura estruturada que atua como estrutura
estruturante, também é uma via de acesso às representações sociais.
2.6 ADULTO E ADULTEZ
Por último, dentre os conceitos que formam o objeto de estudo desse trabalho, a
representação social da musicalização de adultos ao instrumento é um conceito que emerge
como um objeto a ser representado como sendo a musicalização de adultos ao instrumento. Os
24
sujeitos que representam esse objeto, nesse trabalho, os alunos e professores dos cursos de
instrumento da Escola de Música da UFRN.
Outra definição importante é que o adulto é pensado aqui em sua dimensão simbólica
e por causa de sua dimensão simbólica. Porque a condição de estar na idade adulta, ou a adultez
(SOUSA, 2012), (que de define os comportamentos e atitudes que pretende-se estudar) é
definida também por questões do universo simbólico.
Para analisar esse adulto, concorda-se com Coffman (2002), que a concepção do que é
ser adulto passa por questões de ordem física, psico-fisiológica, cognitiva, histórica, social,
entre outras, no entanto é Sousa (2012) que fornece ferramentas para a conceituação desse ser
adulto de acordo com os papeis que representa na sociedade e de acordo como ele é
representado pela sociedade. Portanto, o conceito do que é ser adulto neste trabalho também
pode ser entendido como uma representação social e será mais desenvolvido adiante.
2.7 EDUCAÇÃO MUSICAL PARA ADULTOS A PARTIR DA LITERATURA
Por fim, resta mostrar a perspectiva acadêmica ao se referir a educação musical para
adultos procurando dentre os trabalhos, aqueles que se referem a educação musical de adultos
iniciantes e refinando os resultados que se aproximem da educação musical inicial de adultos
ao instrumento.
Para tanto o primeiro passo da pesquisa foi buscar na literatura, trabalhos que tratassem
do objeto da pesquisa ou de aproximações do objeto iniciação de alunos adultos ao instrumento.
Até o presente, a revisão da literatura não localizou trabalhos que tratem especificamente das
representações musicais da musicalização de adultos, a busca foi dividida focando em duas
palavras-chave: “educação musical para adultos”, filtrando trabalhos que tratem a respeito da
musicalização ao instrumento; e representações sociais na educação musical.
Na internet foram buscados os termos: “educação musical para adultos”; educação
“musical+adultos”; “musicalização+adultos”; “música+adultos”;
“aprendizado+música+adultos”; “educação musical+representações sociais”;
“música+representações sociais”; “aprendizado de instrumentos+representações sociais”;
“musicalização+representações sociais” e seus equivalentes em inglês: “musical
25
education+adult”; “music+leraning+adult”; “adulthood+music”;
“adulthook+music+education”; “social representations+musical education”;
Entre os termos já mencionados acima. Foram pesquisados, o Banco de Teses da
CAPES, Google, Google acadêmico, Portal de Periódicos da CAPES, Revista da Associação
Brasileira de Educação Musical, Revista Opus, Anais dos encontros da Associação Brasileira
de Educação Musical, e diversos acervos virtuais de bibliotecas universitárias e programas de
pós-graduação em música de universidades brasileiras.
Também foi realizado um levantamento bibliográfico no acervo físico da Biblioteca da
Escola de Música da UFRN, e a medida que foram encontrados materiais sobre tema, as
referências dos trabalhos frequentemente conduziam a novas referências e assim a busca foi se
expandindo.
Apesar dos trabalhos apresentados a seguir não terem uma relação direta com o tema dessa
dissertação, a proposta de trazer esses estudos aqui é apresentar de forma breve um apanhado
dos estudos que envolvem a educação de adultos, principalmente na realidade brasileira e a
partir desses trabalhos e de suas lacunas, apresentar algumas considerações de como é tratada
a educação de adultos do ponto de vista das representações sociais pelo olhar de professores e
de alunos.
Deste modo, a contribuição desses trabalhos é fornecer as pistas das representações que
pretende-se estudar. Muitas vezes essas pistas foram encontradas nas falas dos pesquisadores e
de alunos pesquisados, nas questões levantadas ou omitidas e nos próprios temas pesquisados.
Vale lembrar que, como o objeto se apresenta no âmbito do simbólico, a grande contribuição
dos trabalhos apresentados a seguir foi revelar a percepção dos pesquisadores e dos pesquisados
a respeito do fenômeno das representações sociais da musicalização de adultos. Essas
percepções foram observadas na abordagem do tema, na especificação ou generalização dos
sujeitos, nas transcrições de falas dos próprios sujeitos pesquisados, entre outros. A seguir uma
primeira categorização dos trabalhos encontrados.
Quanto à primeira palavra-chave que norteia a pesquisa, educação musical para
adultos, sob a perspectiva da iniciação musical ou musicalização, a escolha desse tema nos
trouxe algumas dificuldades com relação ao material bibliográfico.
A primeira dificuldade trata-se de generalizar educação musical de adultos, ainda que
tratando dos processos de musicalização, é tentar colocar sob o mesmo signo diversas visões a
26
respeito do que é ser adulto e como esse adulto se relaciona com a música sob o ponto de vista
de sua transmissão e recepção (KRAMER, 2000).
Outra dificuldade é que ser adulto pressupõe histórias de vida dos sujeitos em seus
determinados contextos, que muitas vezes são tão únicos, que é quase impossível colocar lado
a lado alguns trabalhos. Muitas vezes esses sujeitos e contextos são tão singulares que torna
impossível dizer que certos trabalhos que tratam a respeito da educação musical de adultos
possam ser entendidos como parte de mesmo tema. Apesar disso, essas são as primeiras pistas
para entender esse universo.
Para fins de melhor compreensão, o trabalho de Coffman (2002) refere-se a uma grande
referência por ser fruto de um projeto de fôlego a partir de uma importante conferência de
educadores musicais, Adult Education de Don D. Coffman (2002), e faz parte do The new
handbook of research on music teaching and learning. Aqui Coffman (2002) traz uma grande
revisão dos estudos a respeito do tema.
No entanto, o adulto de Coffman (2002) é um sujeito, fruto da educação norte-
americana, que já teve acesso à educação musical quando criança e na idade adulta continua se
relacionando com a música através de associações musicais, como orquestras e coros amadores,
ou continua de forma diletante. As pesquisas citadas, em sua grande maioria, têm relação com
a neurociência ou psicologia experimental. Mesmo as pesquisas cujo interesse está nas práticas
e relações do adulto com a música tratam dos aspectos motivacionais dessas relações e práticas
e usam abordagem quantitativas.
Em outra perspectiva com relação aos estudos de educação para adultos, Jáderson Aguiar
Teixeira (2012) analisa como o adulto que ingressa no curso de licenciatura em música no Ceará
vai conseguir aprender música, pois nunca teve contato formal com ela, e deve estar apto a
ensinar música ao final do curso? Esse adulto citado por Teixeira (2012) é diferente do adulto
estudado por Coffman (2002), embora compartilhem alguns pontos em comum também citados
por outros autores no que diz respeito principalmente pelo aprendizado ativo em relação a
música.
De maneira semelhante, não apenas o sujeito das pesquisas em educação musical para
adultos é bastante diverso, mas também os temas e o escopo, são muito diversos. Temos de um
lado pesquisas que envolvem adultos em um tema amplo como o trabalho de Beatriz Ilari
27
(2007), que cita o envolvimento de adultos, jovens e crianças para tratar das funções e
concepções de educação musical na América Latina.
Em perspectiva oposta, Carmen Vianna dos Santos (2006) tratou de um tema e de um
contexto bem específico, abordando estratégias metodológicas para a iniciação musical de
adultos em práticas coletivas que aconteceram na disciplina: Instrumento Musicalizador-
Teclado nos Cursos de Licenciatura da ESMU/UEMG.
No tocante ao conceito de adulto abordado na literatura, a grande a maioria dos trabalhos
encontrados que tratam da educação musical de adultos na literatura brasileira não tem a
preocupação de definir o que é ser adulto, com a exceção de Souza (2009) que também usa a
abordagem de Sousa (2012)1.
Sousa (2012) vai dizer quanto a isso que a idade adulta é representada como óbvia e por
isso mesmo até recentemente não foi alvo de estudos na área da sociologia. Na área da educação
musical, pode-se observar um fenômeno semelhante nos trabalhos que tratam do adulto,
frequentemente a definição do que é o adulto para o autor é omitida o que dá a entender que ela
é tomada como óbvia, do conhecimento de todos e que não requer maiores explicações. Outras
vezes a definição do adulto estudado é apresentada de forma breve, como definição operacional
do trabalho.
No entanto, quanto mais pensa-se no que é ser adulto, mais complicada fica a definição
e menos óbvia é a resposta. Sendo assim o que queremos dizer quando fala-se em adultos? De
fato, não foi observado nos trabalhos encontrados, autores que abordassem essa questão. Ser
adulto parece outra representação óbvia que aparece nos discursos, define comportamentos e
atitudes e não aparece nas análises.
Coffman (2002) afirma que definir o que é ser adulto é complicado, porque ser adulto
depende de fatores biológicos, sociais, históricos, psicológicos, entre outros. Se uma pessoa de
16 anos pode ser considerada como adulto dependendo da sua cultura ou dependendo das
convenções adotadas no momento histórico em que vive. Imagine se essa pessoa mesmo na
nossa cultura pode ser tratada como adolescente ou como adulto dependendo de certas
condições como a maternidade ou paternidade, ou as responsabilidades que essa pessoa assume
diante de sua família ou comunidade e da sua maturidade física e psicológica.
1 Aqui a grafia pode confundir, Souza (2009) é Alba Chistina Bonfim Souza, que traz a pesquisa: O perfil de
adultos em aulas de instrumentos de cordas friccionadas e Sousa (2012) é Filomena de Sousa com seu trabalho
Sociologia da Adultez.
28
Nesse trabalho o conceito de adulto é também uma representação social que se dá sobre
um período da vida humana. Enquanto representação social ela muda conforme o grupo na qual
a representação se dá. Nesse período histórico em particular o conceito de adulto e a sua
representação social está sofrendo mudanças mais rápidas devido aos avanços nas condições de
saúde, de trabalho, de relacionamento pelas quais estão passando as gerações que vivem
atualmente (SOUSA, 2010). Esse conceito será adotado nesta pesquisa.
Fernandes (2006), em sua pesquisa a respeito da situação do campo a partir das
dissertações e teses dos cursos de pós-graduação stricto sensu brasileiros, citou apenas dois
trabalhos que tratam de adultos, que são: de Carvalho (1982), sobre “Análise do Desempenho
Rítmico Musical em Adultos de Prática de Ensino de Educação Artística”, e Monteiro (1998),
sobre “Registro Gráfico e Produção Musical: um Estudo junto a Crianças e Adultos”.
A revisão também localizou outros trabalhos mais próximos ao tema que tratam de
adultos em processo de musicalização. Destaca-se o trabalho de Torres (1995): “Processo de
musicalização de adultos: os sentimentos e as motivações”. A autora estudou adultos de idades
entre 34 e 64 anos e sua pesquisa foi no sentido de compreender o que leva esses adultos a
buscar aulas de música e suas implicações.
Embora autores como Torres (1995), Souza (2009), Costa (2004), entre outros,
reconheçam que a educação de adultos já não representa mais novidade, vale lembrar que esse
ainda é um tema bem pouco estudado em relação a outras áreas da educação musical, como
educação no ensino básico, ou educação infantil, dentre outros. Essa última afirmação também
é citada por Dias (2014) com relação às pesquisas em educação musical no Brasil. Na revisão
da literatura brasileira em educação musical destaca-se alguns eixos que apareceram com mais
frequência:
• motivação: Albuquerque (2011), Costa (2004), Torres (1995);
• técnicas, métodos e repertórios: Santos (2006), Monteiro (1998), Carvalho
(1995), Kebach (2008, 2009), Dias (2014, 2015)
• caracterização do adulto: Souza (2009), Renner (2007);
• prática de adultos em espaços públicos: Nogueira (2004, 2005), Ribas (2006).
29
Quanto à educação musical na musicalização de adultos em espaços públicos têm-se
Nogueira (2004, 2005), que trata dos aspectos da educação musical para adultos no ensino
noturno das escolas municipais do Rio de Janeiro, e Ribas (2006), que trata do repertório,
convergências, divergências de interesses na Educação de Jovens e Adultos – EJA em oficinas
de música no município de Porto Alegre. Nogueira (2004, 2005) aborda com mais profundidade
problemas específicos das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro e a inserção da música
nessa realidade, e Ribas (2006) trata dos adultos, suas relações e negociações nas oficinas de
música da EJA através da convivência dos adultos com outros alunos de diferentes idades.
No tocante a musicalização através de aulas de instrumentos de teclado temos, além de
Santos (2006) citada acima, Albuquerque (2011) com seu trabalho: “Aprendizagem musical a
partir da motivação: um estudo de caso com cinco alunos adultos de piano da cidade de Recife”;
e Costa (2004): “Aprendizagem pianística na idade adulta: sonho ou realidade?”. Em ambos os
trabalhos o papel da motivação assume um grande destaque, assim como o papel das aulas de
música como uma atividade de características terapêuticas, desafiadoras e como um hobby para
seus participantes. Recentemente temos também analisando adultos ao piano os trabalhos de
Dias (2014, 2015) que seguem um caminho semelhante ao de Costa (2004).
Ainda sobre o assunto da musicalização de adultos ao piano, destaca-se também um
interessante livro escrito por um adulto que descreve extensamente, suas motivações, sua
iniciação e sua experiência como estudante de piano: “Memoirs of a Secret Pianist”, de Robert
M. Fells (2012).
Neste caso, o autor é um americano que iniciou seus estudos musicais apenas na idade
adulta. Mesmo de uma realidade distante seu relato é muito rico porque aborda e aprofunda da
perspectiva de um aluno muitos dilemas, problemas e soluções citados de forma breve em
trabalhos anteriormente na realidade brasileira e pelos colaboradores dessa pesquisa.
Quanto ao processo de musicalização de adultos em instrumentos de corda, Souza
(2009) com seu trabalho: “O perfil dos adultos em aulas de instrumentos de cordas friccionadas-
violino, viola, violoncelo e contrabaixo” merece destaque. Nesse trabalho, a autora também
chega a um perfil de participantes condizente com outros trabalhos na realidade brasileira.
O trabalho de Romanelli, Ilari e Bosísio (2008), no qual os autores expõe ideias de Paulo
Bosísio (um importante professor de violino que é referência para diversos profissionais da
área, incluindo eu próprio) sobre aspectos da educação musical instrumental. Embora os autores
30
não toquem na educação de adultos especificamente, a discussão a respeito da idade para o
início dos estudos de instrumento é bastante relevante para esse trabalho, por expor algumas
concepções implícitas no meio musical que nos servirão ao longo dessa dissertação.
Também pode-se citar da revisão, o trabalho de Renner (2007): “O tempo musical no
tempo do sujeito: ouvindo os fazedores de música de idade madura”. Esse trabalho traz algumas
contribuições no sentido de tratar de facilidades e dificuldades da educação musical do adulto
do ponto de vista neuropsicológico e motor. Além desse, Kebach (2008, 2009) trata da
observação dos processos de musicalização em uma Oficina de Musicalização Coletiva. Essas
atividades foram realizadas com adultos, na tentativa de ilustrar os mecanismos que
desenvolvem os seres humanos em qualquer idade.
O critério que norteou a seleção desses trabalhos foi a busca pelo ensino de música a
adultos voltado para instrumentos na realidade brasileira. Sabe-se que muitas buscas em inglês
retornam sites em escolas e universidades nas quais se oferecem cursos para adultos,
principalmente nos Estados Unidos e Europa. No entanto, lembrando novamente Coffman
(2002), muitas vezes se trata de outro adulto, alguém que muito provavelmente já teve uma
iniciação musical na escola e que está na idade adulta retomando seus estudos ou buscando
coisas novas em música. Embora esse movimento seja importante, o tema foi considerado fora
do escopo desse trabalho por abranger outros sujeitos, outras realidades e outros problemas.
Quanto à revisão da literatura em língua inglesa, não foram encontrados trabalhos que
pudessem contribuir com as questões abordadas aqui, pois os estudos levantados tratavam da
cognição ou neurologia. De modo semelhante, propostas como lifelong learning, na qual
algumas propostas de educação musical para adultos estão contidas, não puderam ser abordadas
nesse trabalho, embora a representação contemporânea de adulto inacabado que contempla essa
filosofia seja abordada mais adiante. Essa exclusão se deve ao recorte escolhido para o trabalho
e pelo contexto em que se localiza a pesquisa.
Ainda são muitas as lacunas a serem exploradas ao tratar de educação musical inicial de
instrumentos para adultos, ou mesmo de educação musical para adultos de uma forma ampla.
Esse trabalho procura contribuir para o entendimento desse subcampo da educação musical
através da pesquisa dos aspectos simbólicos observados a partir das experiências e do olhar dos
atores envolvidos no processo de ensino/aprendizagem.
31
3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: A TEORIA E O FENÔMENO
A TRS que fundamenta o olhar para o objeto de pesquisa desse trabalho foi desenvolvida
primeiramente por Moscovici (2009) para tentar responder algumas contradições nas
pressuposições do pensamento científico da psicologia social de sua época, a saber: “1) os
indivíduos normais reagem2 a fenômenos, pessoas ou acontecimentos do mesmo modo que os
cientistas ou os estatísticos, e; 2) compreender consiste em processar informações”
(MOSCOVICI, 2009, p. 30). Moscovici (2009) no entanto observou que alguns fatos comuns
contradiziam esses pressupostos. O primeiro deles é que:
[...]nós não estamos conscientes de algumas coisas bastante óbvias; de que nós não
conseguimos ver o que está diante de nossos olhos. É como se nosso olhar ou nossa
percepção estivessem eclipsados, de tal modo que uma determinada classe de
pessoas, seja devido a sua idade – por exemplo, os velhos pelos novos e os novos
pelos velhos – ou devido a sua raça – p. ex. os negros por alguns brancos, etc. – se
tornam invisíveis quando, de fato, eles estão “nos olhando de frente”. (MOSCOVICI,
2009, p. 30, grifo do autor)
Esse processo é bastante pertinente ao problema dessa pesquisa, porque afinal é isso que
acontece cotidianamente: um certo perfil de aluno que nos parece invisível ao olhar da educação
musical brasileira embora esteja “nos olhando de frente”.
Em segundo lugar, “nós muitas vezes percebemos que alguns fatos que são acatados sem
discussão, que são básicos ao entendimento e comportamento, repentinamente transformam-se
em meras ilusões” (MOSCOVICI, 2009, p. 31).
Merece atenção a carência de discussões a respeito dos adultos na educação musical. A
existência de uma discussão mais profunda na área da educação musical a respeito da idade
“certa” para apreender. Esse último ponto, além de invisível, quando aparece é apresentado sem
discussão.
Da mesma maneira, o que é ser adulto não é algo óbvio, embora muitas vezes aceita-se
como se fosse. Nesse momento, estão ocorrendo rápidas transformações na maneira como se
dá o processo de envelhecimento (SOUSA, 2012) e que o campo da educação musical no Brasil
2 A palavra “reagir” pode parecer estranha ao contexto da educação pelo fato de considerarmos o sujeito um ser
dotado de criticidade, etc.. No entanto lembramos que aqui o contexto do qual emerge essa palavra é o da
psicologia, que na época era dominado pela psicologia cognitiva como nos lembra Moscovici (2009).
32
já se expande em diversos temas (FERNANDES, 2006), é fundamental questionar esses
pressupostos.
Por último, Moscovici (2009) nos chama a atenção para o fato de que “nossas reações aos
acontecimentos, estão relacionadas a determinada definição, comum a todos os membros de
uma comunidade à qual nós pertencemos” (MOSCOVICI, 2009, p. 31). É aqui que se encaixa
a pergunta: como reagimos, na posição de alunos ou professores, em relação a definição de
educação musical que é comum a comunidade à qual se pertence quando a adultez (SOUSA,
2012) está em questão? Desde modo Moscovici (2009) conclui-se que, nesses casos
Notamos a intervenção de representações que tanto nos orientam em direção ao que é
visível, como àquilo a que nós temos de responder; ou que relacionam a aparência à
realidade; ou de novo àquilo que define essa realidade. (MOSCOVICI, 2009, p. 31-
32)
Por isso a escolha desse referencial para lidar com os aspectos simbólicos que orientam a
percepção e prática com relação à educação musical inicial de adultos. Uma distinção que deve
ser notada é que, como teoria, o constructo teórico das representações sociais orienta o olhar
sobre a realidade.
Esse olhar é fundado em uma epistemologia mais próxima a sociologia de Durkheim, que
se opõe a corrente da psicologia cognitiva que, ainda hoje orienta, muitas das pesquisas em
psicologia social e, que na época do desenvolvimento da teoria por Moscovici (2009), era uma
corrente muito forte nos Estados Unidos da América (MOSCOVICI, 2009). No entanto, o que
a teoria nos fornece é um meio de observar e analisar fenômenos.
Na qualidade de fenômenos, as representações sociais desempenham a função
convencionalizar os objetos representados. “Elas lhes dão uma forma definitiva, as localizam
em uma determinada categoria e gradualmente as colocam como um modelo de determinado
tipo, distinto e partilhado por um grupo de pessoas” (MOSCOVICI, 2009, p. 34).
Na educação musical, temos um exemplo dessa função no discurso de Teixeira (2012)
quando o autor se refere a uma “lógica implícita que norteia (..) uma educação musical pra
crianças” (TEIXEIRA, 2012, p. 135). Tal lógica deve ser tratada como uma representação social
(representação social aqui entendida como objeto de pesquisa), corrente no meio que tende a
associar, ou segundo Moscovici (2009), convencionalizar a educação musical atrelando-a ao
ensino de crianças.
33
As representações sociais também desempenham funções prescritivas, “isto é, elas se
impõem sobre nós como uma força irresistível. Essa força é uma combinação de uma estrutura
que está presente antes mesmo que nós comecemos a pensar e de uma tradição que decreta o
que deve ser pensado” (MOSCOVICI, 2009, p. 36).
Nesse sentido, faz-se uma relação com o conceito de habitus, de Bourdieu (BOURDIEU;
PASSERON, 2014; BOURDIEU, 2008; BOURDIEU, 2010) e relaciona-se ao tema da
educação musical através do conceito de habitus conservatorial de Pereira (2014, 2015). Sendo
assim, as representações podem ser pensadas dentro de uma estrutura maior que é o habitus.
Especificamente do habitus conservatorial (PEREIRA, 2012) formado dentro do campo da
educação musical.
Por essa razão o locus de pesquisa é a Escola de Música da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, onde espera-se encontrar manifestações desse habitus e evidências dessa
função convencionalizadora.
Também a razão da escolha da Escola de Música é abordar os professores, os quais
segundo Moscovici (2009) tem uma função ativa na criação e na transmissão das representações
sociais, ainda que não tenham consciência desse papel. Nesse sentido, o papel do professor
também é citado por Bourdieu e Passeron (2014) ao afirmarem o protagonismo do professor,
como uma autoridade pedagógica na inculcação de um habitus.
3.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, HABITUS E O CAMPO DA EDUCAÇÃO MUSICAL
Representações sociais podem ser definidas como “uma forma de conhecimento,
socialmente elaborada e partilhada tendo um objetivo prático e concorrendo à construção de
uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p. 43). Essa representação não
acontece em um vazio social e, embora seja formada também através de processos cognitivos
individuais, ela também é formada pelas interações desse indivíduo no espaço social. Essa
representação, ou essas representações, orientam os indivíduos quanto à maneira de dar sentido
e de agir no mundo ao nosso redor.
Dessa forma, o campo da educação musical - considerando campo como um espaço
autônomo formado historicamente segundo as regras definidas por seus membros
(BOURDIEU, 2010, 2008) - possui, no caso do ensino de instrumentos praticado nas
34
universidades, um conjunto de estruturas formadas que por sua vez atuam como reprodutoras
das suas próprias condições de existência, o habitus conservatorial (PEREIRA, 2014, 2015),
que funcionam como uma via de acesso as representações sociais (GUARESCHI;
JOVCHELOVITCH, 2013) e contribuem para a formação das representações sociais a respeito
da musicalização.
Esse habitus conservatorial, que enquanto habitus, se apresenta como uma “estrutura
estruturada que tende a agir como estrutura estruturante” (BOURDIEU, 2008, p. 54). Em
Moscovici (2009), a relação entre comportamento e estrutura social, que é desenvolvida de
outra forma por Bourdieu (2008), aparece da seguinte forma:
Longe de refletir, seja o comportamento ou a estrutura social, uma representação
muitas vezes condiciona ou até mesmo responde a elas. Isso é assim, não porque ela
possui uma origem coletiva, ou porque ela se refere a um objeto coletivo, mas porque,
como tal, sendo compartilhada por todos e reforçada pela tradição, ela constitui uma
realidade social sui generis. Quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza
convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna. (MOSCOVICI, 2009, p. 41)
Pereira (2012, 2014, 2015) considera o habitus conservatorial como um conjunto de estruturas
autoreprodutoras, baseadas nos modelos de ensino conservatorial e que se manifesta nos
currículos das instituições através da valorização da escrita, da primazia da música europeia, de
uma estrutura curricular que separa teoria e prática, entre outras, que se mantém como base dos
currículos dos cursos superiores.
Nesse momento deve-se lembrar que segundo Bourdieu (2008, 2010) e Bourdieu e
Passeron (2014) o habitus se estende em várias dimensões (hexis, heidos e ethos), afetando
diversas esferas do aprendizado. Vale lembrar que, não apenas se destacava no processo de
formação a primazia de música europeia, característica de habitus conservatorial, como
também um conjunto de valores relacionado com esse ensino que se estende muito além do
entender da música clássica.
Sendo assim, entende-se que as representações sociais se articulam com o conceito de
habitus concervatorial. Para Pereira (2012), elas tanto são produtos do habitus quanto uma via
de acesso a ele (SOBRINHO, 1998). Ou seja, um habitus, pressupõe maneiras de agir, de
pensar, de atuar e essas maneiras são também maneiras de compreender e representar
socialmente os objetos socialmente compartilhados.
Da mesma forma, compreender o surgimento ou a função de uma representação social
também é compreender um aspecto da realidade e das estruturas subjacentes a construção dessa
35
realidade. Por isso, as representações sociais são uma via de acesso ao habitus. Ao atuar no
meio, compartilhando essas maneiras de agir, de pensar e de perceber, também se está
compartilhando as representações construídas nesse meio e, com o passar do tempo, se reproduz
essas representações nos discursos e a forma de agir. Dessa forma, as representações e o habitus
se relacionam no mesmo sistema.
3.2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NA EDUCAÇÃO MUSICAL
De um modo geral, a TRS tem um campo muito vasto e pode-se encontrar referências
de seu uso nas áreas de medicina, educação, psicologia, enfermagem, comunicação, entre outros
exemplos. De fato, a TRS assim como concebida por Moscovici (2009), têm diversos
desdobramentos (GUARESCHI; JOVCHELOVITCH, 2013; SÁ, 1989), isto se dá porque as
representações sociais, como fenômenos, agem diretamente na forma como é compreendido
com relação a realidade que nos cerca.
Ao tentar compreender as representações sociais a respeito de um objeto, de uma teoria,
ou de um conceito, busca-se compreender, não o conceito ou fenômeno em si, mas a forma
como ocorre a formação, seu entendimento e compartilhamento quanto as representações desse
objeto. De fato, Moscovici (2009) afirma que nossa percepção do mundo é mediada por
representações.
Na educação musical, as representações sociais são aplicadas de diversas maneiras, a
revisão desenvolvida tem como finalidade, além da busca por trabalhos que possa dar suporte
a proposta de pesquisa, de situar o leitor com relação ao uso da TRS na área da educação
musical. Se por um lado, a multiplicidade de abordagens, temas e objetos dificulte o uso desses
trabalhos como suporte, por outro lado, essa mesma multiplicidade dá uma ideia do estado do
uso da TRS na educação musical.
No tocante às “representações sociais” como palavra-chave, relacionada a educação
musical, a revisão da literatura da educação musical começa por Fernandes (2006), que cita,
Arroio (1999): “Representações Sociais Sobre Práticas de Ensino e Aprendizagem Musical: um
Estudo Etnográfico Entre Congadeiros, Professores e Estudantes de Música” e o trabalho de
Silva (1998): “Samba: Alma do Povo e Seus Reflexos no Cotidiano Escolar na Perspectiva das
Representações”, como os únicos dois trabalhos com essa temática em sua revisão.
36
Mais próximo, da perspectiva que pretende-se abordar nessa pesquisa estão os trabalhos
de Duarte (1997, 1998, 2011), como também dessa autora em parceria com Mazzotti (2002,
2006). Embora os autores não tratem especificamente das representações sociais que cercam a
musicalização de adultos, eles tratam das representações sociais do que é considerado
“apropriado” entre os que formam o campo da educação musical, quando afirmam que “os
professores, ao atribuírem a qualidade ‘apropriado ao uso escolar’ a determinadas práticas e
objetos musicais, partem de critérios para afirmar o que é ser ‘educado musicalmente’ e o que
é ‘musical’”. (DUARTE, 2002, p. 32). Isso nos é particularmente apropriado porque a
musicalização de adultos que trata-se aqui parece caminhar ainda em busca de uma definição e
de um lugar na educação musical brasileira.
Nesse sentido, Duarte (2002), nos chama a atenção para esses “critérios”, frutos de
classificações a respeito de si mesmos que são formadas e negociadas pelos próprios alunos e
pela sociedade que os cerca. Como diz Duarte (2002): “os critérios utilizados pelos sujeitos
expressam os acordos estabelecidos entre eles e, desse modo, orientam as classificações
escolares. São acordos sobre a classificação dos educandos entre musicais e não musicais,
indicando o que é preciso para que venham a sê-lo”. (DUARTE, 2002, p.32). É nesse sentido
que pretende-se entender a musicalização do adulto: como eles entendem a si mesmos, como
são percebidos e classificados, ou melhor: como são representados socialmente?
Essa delimitação da pergunta nos faz reconhecer que, se por um lado são vários os
trabalhos que tratam das representações sociais e música, por outro lado poucos nos dão
suporte no que diz respeito às especificidades do problema (a musicalização de adultos) a partir
da abordagem teórico-metodológica (a teoria das representações sociais).
Sousa (2009) também faz uso da abordagem das representações sociais para identificar
o seu objeto de estudo no seu trabalho a respeito da educação de adultos em instrumentos de
cordas friccionadas usando também o referencial teórico proposto por Sousa (2012).
Portanto, trabalhos como os de Haddad (2009): “Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto
(SP): representações e significado social”; Mazzarin (2010): “Coro da Universidade Estadual
de Londrina: cantando e contando suas representações”; Silva (1998): “Samba: Alma do Povo
e Seus Reflexos no Cotidiano Escolar na Perspectiva das Representações”; Arroyo (1999):
“Representações Sociais Sobre Práticas de Ensino e Aprendizagem Musical: um Estudo
Etnográfico Entre Congadeiros, Professores e Estudantes de Música”; Westrupp (2012):
37
“Representações sociais de música em processos de educação musical formal e não formal de
uma escola de educação básica”; e tantos outros, apesar de trazerem aspectos da teoria das
representações sociais ao campo da educação musical, a revisão fornecem poucos elementos
aplicáveis ao problema.
Essa dificuldade na aplicabilidade de outros trabalhos se dá porque ao aprofundar as
representações daquele fenômeno ou tema, muitas vezes as especificidades do tema e do grupo
social no qual se dão as representações permitem que o pesquisador possa generalizar suas
conclusões dentro do tema e não fora dele.
Semelhante ao que descreve Geertz (2013) a respeito da descrição densa que, ao
alcançar as “teias de significado” a partir do olhar daqueles que partilham esses significados,
propicia a generalização apenas no âmbito dos fenômenos estudados. Dessa forma, quanto mais
profunda a descrição menos geral ela se torna. De fato, segundo Moscovici (2009), as
representações sociais têm funções simbólicas, por isso o aprofundamento traz o risco da
dificuldade de generalização. Além disso, os vários desdobramentos da TRS (GUARESCHI e
JOVCHELOVITCH, 2013 e SÁ, 1989), frequentemente conduzem a diferentes abordagens e
diferentes soluções para o mesmo problema.
Os problemas que mais se encontra em na revisão referente aos trabalhos em educação
musical no Brasil aparecem relacionados com:
• Representações sociais de grupo ou gênero, como em Silva (1998) e Westrupp (2012);
• Representações sociais e identidade, como em Matsunaga (2006) e Bonfim (2015);
• Representações sociais na escola ou no ambiente acadêmico como em Arroyo (1999), Del-
Ben (2012), Duarte (1997, 1998, 2011) e Duarte e Mazzotti (2002, 2006).
Na ausência de estudos das representações sociais de adultos na educação inicial ou do
estudo das representações sociais e idade, a pretensão aqui é construir a abordagem a partir da
TRS, partindo da proposição de Moscovici (2009) e analisar os fenômenos observados e sua
relação aos trabalhos mencionados acima. Por esse motivo, a aproximação com Duarte (1997,
1998, 2011) e Duarte e Mazzotti (2002, 2006). Não apenas esses autores nos fornecem
38
ferramentas que podem ser aplicadas no objeto de estudo, como um diálogo prévio entre a TRS
e a educação musical no Brasil.
3.3 O UNIVERSO CONSENSUAL E O REIFICADO
Pensar em representações sociais pressupõe a existência de um espaço para que essas
representações aconteçam, como, espaços de conversação em que as pessoas possam se
expressar. Um desses espaços é o chamado universo consensual onde as pessoas são vistas
pertencentes a um grupo “de pessoas que são iguais e livres, cada um com possibilidade de falar
em nome do grupo e sob seu auspício” (MOSCOVICI, 2009, p. 50).
Esse princípio, que pressupõe a possibilidade dos membros de um grupo falarem em
nome do grupo será importante aqui, pois ao considerar no estudo as entrevistas a alunos e
professores, considera-se como membros do grupo, que ao falarem em nome dele, expressam
as suas representações. Spink (2013) vai tratar esses membros como “sujeitos genéricos”.
No caso estudado aqui, esse universo consensual se dá por, na cantina da escola de
música ou nos corredores nos quais grupos de alunos ou professores conversam livremente sem
preocupações de hierarquia entre si. Ao longo do tempo a conversação cria os chamados nós de
estabilidade e recorrência, formando uma base comum de significância entre os praticantes
dessa conversação (MOSCOVICI, 2009). Dessas recorrências se formam as suas
representações.
Outra dimensão desses espaços de troca de significados é o chamado universo reificado,
no qual a “sociedade é vista como um sistema de diferentes papéis e classes, cujos membros
são desiguais [...], nos quais confronta-se com organizações preestabelecidas, cada uma com
suas regras e regulamentos” (MOSCOVICI, 2009, p. 51-52).
Como exemplos desse universo, pode-se observar nas escolas de música as aulas, os
ensaios, as palestras, nos quais pesa mais a opinião dos professores e maestros. Mesmo entre
esses atores se estabelecem diferentes hierarquias que conferem, por sua vez, diferentes pesos
aos discursos dos atores.
Também faz parte desse universo reificado as comunicações entre músicos e imprensa,
no qual os últimos ampliam o alcance do discurso conferindo ao músico status de especialista.
Da mesma maneira temos, as trocas entre os conhecimentos médicos, ou psicológicos quando
39
interpretados por músicos nos quais os especialistas e as especialidades têm suas próprias
regras, sistemas e especialidades.
No estudo o universo reificado se dá, em uma sala de aula na qual o professor exercendo
sua autoridade acadêmica (BOURDIEU; PASSERON, 2014) ao afirmar uma determinada ideia
ou conceito o faz utilizando as regras ou conceitos de seu grupo, o dos professores, e os
exprimem em uma situação na qual a sua autoridade torna o diálogo livre impossível.
Observando um ensaio de uma orquestra não é raro o maestro, vez por outra, fazer uma
declaração ou, mais comum ainda, uma piada inapropriada. Presenciou-se muitas vezes
enquanto músico momentos em que certas declarações ou piadas se mostraram inadequadas ou
constrangedoras, no entanto, na posição que ocupava o maestro nesse espaço reificado, não era
possível que eu, nem qualquer membro na orquestra ou mesmo de fora dela, intervisse para
expressar a inadequação do comentário ou da piada, no máximo era permitido que os músicos
rissem ou não.
Os mais desejosos a agradar ou àqueles mais expansivos naturalmente riam, e com o
tempo, caso repetido o comentário ou a piada, muito frequentemente esse seria repetido pelos
músicos, porque afinal fora proferido por uma autoridade e que além disso, pareceu agradar a
alguns.
Em um espaço consensual, se um colega expressa uma opinião inapropriada ou uma
piada sem graça, posso expressar com mais liberdade a posição do pesquisador, sem que isso
vá contra as regras do espaço social que ocupa-se e possa ser desrespeitoso para mim ou para
meu colega.
Outro exemplo que ilustra o universo reificado pode ser percebido através dos trabalhos
sobre cognição ou saúde, que tem por objetivo o estudo ou os efeitos da música em
determinadas áreas. Quando um estudo é publicado, ele geralmente descreve procedimentos
específicos, os resultados coletados por esses procedimentos, sua margem de erro etc. Ao
apresentar, geralmente, dentre as conclusões do experimento que notaram “melhora
estatisticamente significativa em trinta por centos dos pacientes nos quadros de hipertensão
após seções de musicoterapia com o uso de música romântica”.
Quando esse estudo é descrito por jornalistas, são apreendidos os elementos que podem
ter mais destaque para o leitor, formando uma representação a partir do estudo científico,
“cientistas confirmam que música reduz hipertensão”. Quando essa matéria jornalística é
40
resumida e vista por um músico, ou pelo público em geral, os aspectos percebidos são as
representações formadas pelo jornalista, que por se tratarem de um estudo científico chegam ao
público como uma “verdade absoluta” e que por sua vez irão se transformar nas representações
sociais do público. Caso alguém discorde, facilmente se diz que saiu na revista tal ou que é “um
fato científico”. “Eu li no jornal que música faz bem para o coração, então é verdade”.
Tanto no universo reificado quanto no universo consensual, as trocas simbólicas
contribuem para a circulação e para a formação de representações sociais. Moscovici (2008)
chamou inicialmente esse universo reificado de “esfera sagrada - digna de respeito e
veneração” e o universo consensual de “esfera profana, em que são executadas atividades
triviais e utilitaristas”. São essas esferas “que determinam o que pode-se mudar e o que nos
muda; o que é obra nossa e o que é obra alheia” (MOSCOVICI, 2008, p. 49.
Essa classificação tem contato com a sociologia de Durkheim e com o espaço que a
ciência tem ocupado na sociedade contemporânea, na qual, é a ciência e não mais a religião a
“portadora da verdade”.
Nesse trabalho a definição desses universos serve para mostrar os espaços simbólicos
nos quais o conhecimento do senso comum circula, se forma e é apreendido, ora em interações
unilaterais, nas quais a imposição predomina, ora em relações bilaterais nas quais a predomina
a informalidade e igualdade entre os sujeitos.
3.4 OBJETIVAÇÃO E ANCORAGEM
Quando algo novo é introduzido no repertório representacional, o sistema de
representações age de modo a acomodar essa novidade a alguma categoria já conhecida. Os
parisienses do século passado estudados por Moscovici (2008), foram introduzidos ao conceito
de psicanalista, alguns associavam esse profissional com a figura de um padre, para o qual os
analisados, a exemplo dos pecadores, confessavam seus pecados e falavam sigilosamente para
se redimir, ou se curar, dos males; outros associavam o psicanalista a uma espécie de médico,
que curava os pacientes através da conversa.
Na TRS esse fenômeno é conhecido como ancoragem e se caracteriza pela acomodação
do novo às categorias pré-existentes.
41
No momento em que determinado objeto ou ideia é comparado ao paradigma de uma
categoria, adquire características dessa categoria e é reajustado para que se enquadre
nela. Se a classificação, assim obtida, é geralmente aceita, então qualquer opinião que
se relacione com a categoria irá se relacionar também com o objeto ou com a ideia.
(MOSCOVICI, 2008, p. 61)
Categorizar alguém ou alguma coisa significa escolher um dos paradigmas estocados
em na memória e estabelecer uma relação positiva ou negativa com ele. (MOSCOVICI, 2008,
p. 63). Certa vez em uma igreja, perguntado sobre a ocupação do pesquisador, este se apresentou
como músico, que trabalhava em uma orquestra, etc, e logo foi convidado a trabalhar com o
coro.
Para aquelas pessoas, o membro recém-chegado já houve uma classificação, que seguia
de acordo com a que as pessoas usavam lá. De maneira semelhante, ocorre com um professor
de música ao chegar em uma escola nova que nunca ofereceu aulas de música. Se para a escola
a música é uma espécie de aula de artes ou uma espécie de aula de coral, o professor certamente
vai ser categorizado segundo as categorias preexistentes.
A objetivação é outro processo distinto no qual o novo é cristalizado, se tornando
familiar e tratado com um elemento da realidade. A objetivação “une a ideia de não-
familiaridade com a de realidade, torna-se a verdadeira essência da realidade” (MOSCOVICI,
2008, p. 71).
Quando o não-familiar passa a ser aceito, esse núcleo figurativo que é simbólico é aceito
pela sociedade, ou grupo social, e as palavras relacionadas a esse novo paradigma passam a ser
usadas mais frequentemente, formando clichês que sintetizam esse paradigma (MOSCOVICI,
2008).
Um exemplo citado por Moscovici (2008) é o da psicanálise que com o passar do tempo
foi ficando mais familiar à sociedade a tal ponto que seus termos se popularizaram e seu
paradigma figurativo foi separado do seu ambiente original de forma independente. Quando se
fala que alguém é complexado, de tanto se usar a palavra, a imagem ou ideia se torna separada
de seu sentido original e ganha independência se tornando outro objeto. Essa nova ideia é aceita
como uma realidade que é convencional. Jodelet (1984, apud SÁ, 1995, p.41) descreve os
estágios em que se dá a objetivação:
42
• seleção e contextualização: os indivíduos se apropriam do conhecimento por
conta de critérios culturais; a partir de experiências e conhecimentos que esse
grupo já possui ocorre uma construção seletiva da realidade, porém em uma
sociedade nem todos têm acesso às informações, ou ainda podem diferenciar
quanto à compreensão das mesmas;
• formação de um núcleo figurativo: o indivíduo recorre a informações e dados
que já possui para compreender aquilo que é novo;
• naturalização dos elementos do núcleo figurativo: a partir desse momento, o
abstrato se torna concreto, quase que palpável. O conceito está cristalizado e
passa a ser considerado como elemento da própria realidade. (JODELET,
1984, apud Sá, 1995, p. 41)
Talvez entre os clichês da educação musical brasileira esteja, o Método Suzuki, que
passou a designar dentro da área um objeto, ou vários, que muitas vezes não correspondem a
seu significado original (núcleo figurativo), mas que é aceito como um objeto da realidade.
Nesse trabalho esses conceitos servem para perceber de que forma a representação de
um objeto novo (no caso o aluno adulto iniciante de instrumento de tradição conservatorial) é
assimilado no sistema simbólico e como esse objeto por se transformar em outro independente
de seu significado original.
Particularmente útil aqui, é o conceito de ancoragem que pressupõe uma adequação do
novo objeto aos paradigmas pré-existentes. Ao longo do texto, temos em alguns momentos
exemplos desse processo e das implicações negativas ou positivas de acordo com a posição que
o novo objeto representado ocupa em relação ao paradigma pré-existente.
3.5 O ADULTO COMO REPRESENTAÇÃO E O CONCEITO DE ADULTEZ
Como já foi destacado anteriormente a respeito de trabalhos sobre adultos em educação
musical, assim como Dias (2014) encontra-se poucos trabalhos na literatura a esse respeito.
Ampliando o olhar um pouco mais, pode-se notar que também é escassa a literatura a respeito
do adulto em outras áreas, como observa Sousa (2012, p. 1):
Um primeiro facto a constatar em relação ao estudo social das idades da vida é a
inexistência de uma estrutura teórica organizada sobre a vida adulta. Se é com alguma
facilidade que se encontra uma extensa bibliografia sobre o tema da infância, da
adolescência, da juventude e da velhice, o mesmo não se passa em relação à idade
adulta.
43
Citando Boutinet (2000, apud SOUSA, 2012), até os anos 1990, tratar do adulto era tido
como algo “banal” tanto na academia, quanto no senso comum. Da mesma forma, a idade
adulta, uma vez definida como idade de referência era considerada uma idade “sem problemas”.
Dessa forma, o estudo do adulto seria marginalizado porque envolve um incômodo
processo de desconstrução que implica em ver a vida adulta fora da “normalidade” que ela
representa. Sendo assim, trataremos essa etapa da vida, não apenas como uma fase de
autonomia e oportunidades, mas também de complexidade e incerteza.
Nesse trabalho, será considerado o ser adulto como um ser em um estado da vida que é
descrito através do entrelaçamento de diversas esferas: biológica, social, histórica (COFFMAN,
2002). Para articular essas esferas trataremos nesse trabalho o adulto a partir da definição de
Filomena de Sousa (2012), que define a adultez (o ser adulto) como uma categoria social, que
considera o adulto a partir dos papeis, representações e funções que ele desempenha na
sociedade.
Desta maneira, defende-se que a adultez implica especificidades, problemas e
características próprias que devem ser objeto de atenção, de estudo e de intervenção política e
social (SOUSA, 2012).
Pensar o adulto dessa forma, nos permite o diálogo com as representações envolvidas
na percepção do que é a vida adulta e nos permite pensar em hipóteses da representação da
musicalização de adultos no campo da educação musical. Também essa abordagem permite
pensar que a vida adulta é ela própria composta por diversas representações sociais. Mais
adiante serão apresentadas articulações entre essas representações da vida adulta e a educação
musical inicial de adultos.
3.6 REPRESENTAÇÕES DE EDUCAÇÃO E ADULTEZ
Pensando a educação atrelada à função de formar um cidadão (RODRIGUES, 2001) e
que apenas recentemente começa a se fortalecer a ideia de que a formação deve ser entendida
como um processo que dura toda a vida (CAMBI, 1999), já pode-se inferir como uma percepção
da formação escolar um processo comum e necessário à infância e juventude que se
44
transforma em uma representação da educação (e por extensão educação musical) como apenas
destinada às crianças e jovens.
Se a pessoa não está crescendo então não precisa ser educada. Sousa (2012), a esse
respeito, nos lembra que a palavra “adulto”, de origem latina adultus, definida por “aquele que
terminou de crescer”, o conceito normativo e tradicional do adulto padrão assenta na ideia de
que é possível atingir uma maturidade e realização definitivas. Esse adulto padrão pode ser
definido como o indivíduo equilibrado, estável, instalado e consequentemente rotineiro
(SOUSA, 2012, p. 128).
Esse adulto, anteriormente chamado de adulto certo, era produto da confiança ilimitada
no progresso, na possibilidade de controlar e projetar todas as dimensões da vida humana. Até
então o adulto era tido como aquele que atingiu a maturidade biológica, psicológica, sexual,
social e sua independência financeira. Sousa (2012) afirma que, embora essa definição de adulto
não possa ser definida exclusivamente em termos etários geralmente é associada ao intervalo
entre 25 aos 65 anos. Esse adulto padrão ou adulto certo expõe o sujeito a uma tripla
marginalização:
(a) biológica – seria o adulto aquele cujo organismo atingia a maturidade e entraria
em degradação gradual: (b) pedagógica – aquele que deixaria de ser objeto de
educação (por ser o “adulto que sabe”), que já adquiriu os conhecimentos necessários
à realização do seu percurso de vida (nomeadamente os conhecimentos práticos
adquiridos pela experiência que, por si só, levariam ao desconhecimento estável da
sua carreira profissional) e (c) patológica – seria adulto aquele que agiria de acordo
com a “normalidade”, caso contrário ser-lhe-ia diagnosticada alguma patologia, sendo
considerado “doente”. (SOUZA, 2010, p. 128)
Ao trazer para o caso da educação musical, pode-se inferir que essa marginalização
pedagógica pode se apresentar nas representações sociais do meio em relação a musicalização
para adultos.
3.7 O ADULTO INACABADO: REPRESENTAÇÕES CONTEMPORÂNEAS SOBRE O
TEMA
Atualmente o adulto, longe de se constituir em um ser acabado, tem que se renovar
continuamente de forma criativa para ser capaz de absorver as exigências de um mundo em
45
constante transformação (MASI, 2012). Portanto, nem a educação nem o adulto podem ser
pensados da mesma forma.
Após a Segunda Grande Guerra, nas décadas de 1960 e 1970, o (a) adulto padrão
começou a ser substituído pelo conceito de adulto inacabado, um ser que está em contínuo
processo de aprendizado e desenvolvimento (SOUSA, 2012). Posteriormente e até os últimos
30 anos esse adulto inacabado é visto de duas maneiras: (b) o adulto em perspectiva do perene
desenvolvimento vocacional e (c) o adulto como problema do caos vocacional.
Na literatura da educação musical para adultos e na literatura em educação em geral a
noção (e não conceito, tendo em vista que raramente se define o que é o ser adulto) de adulto
inacabado aparece em diversos trabalhos, muitas vezes em busca de um sonho (COSTA, 2004),
ou complementando a sua educação (NOGUEIRA, 2004, 2005; RIBAS, 2006).
Embora não esteja tão claro em muitos trabalhos em educação e em educação musical
que lidam com o adulto, começa a ficar evidente para a análise que o adulto de hoje já não é
mais “o adulto de antigamente”.
Esta noção tende a ficar mais visível em trabalhos com idosos, crianças e adolescentes,
nos quais os pesquisadores tendem a levar em consideração o meio cada vez mais dominado
pelas tecnologias da informação e as trocas e possibilidades que elas oferecem (principalmente
no caso das crianças e adolescentes) ou a longevidade (no caso dos idosos).
Com os adultos também ocorre coisa semelhante, a vida já não pode ser tratada como um
período linear, os grandes marcos que definiam a passagem para a vida adulta, como casamento,
ingresso no mercado de trabalho, paternidade/maternidade, estão cada vez mais incertos e a
vida está se tornando mais longa em duração e ao mesmo tempo mais curta pela impressão de
que não se tem tempo para nada.
Para os estudiosos da vida adulta esse é justamente um dos maiores problemas: a vida
adulta já não é mais o que era. O grande desafio é aceitar essa mudança “ou, pelo menos, lidar
com ela (tanto ao nível do desenvolvimento conceptual e teórico como ao nível das
representações e práticas sociais).” (SOUSA, 2012, p. 126).
Em uma pesquisa preliminar na cidade do Natal, pode-se notar como são escassos os
cursos de musicalização pensados para adultos em instituições de referência e mesmo em editais
nacionais e projetos sociais. Ainda são poucos os espaços que acolham e sejam pensados para
essa categoria de público.
46
Apesar das dificuldades, pode-se observar na experiência diversos casos de procura por
um processo de musicalização na idade adulta. Justamente essa procura por parte do adulto na
sua formação, nos conduz a questão da autonomia e da autoconsciência de sua condição
apontados nos estudos de Coffman (2001).
Diferente da criança, que em geral é conduzida à escola ou à prática do instrumento, o
adulto é dotado de autonomia e autoconsciência. Isso o faz participar da percepção dos valores
no campo da música e também o torna apto a exercer sua autonomia no sentido de procurar
alternativas que melhor resolvam suas questões. Esses fatores podem conduzir os alunos
também a lutar por uma prática que represente seus interesses.
Para Bourdieu (2010, p. 291-292), essa disputa se dá através das lutas simbólicas dentro
do campo, tendo em vista que: “a utilização que se faz dessas categorias [idade] e o sentido que
se lhes dá dependem dos pontos de vista individuais, situados social e historicamente, muitas
vezes, perfeitamente irreconciliáveis, dos seus utilizadores”.
No âmbito da educação de adultos em condições desfavoráveis em relação às regras
estabelecidas temos a pedagogia de Paulo Freire (1970), que pode nos oferecer suporte teórico
quanto aos caminhos para o desenvolvimento da autonomia do sujeito como instrumento de
luta política, mas também nesse caso, de luta simbólica.
No próximo capítulo serão tratados dos procedimentos teórico-metodológicos para a
construção do problema e os meios usados para coleta de dados e análise.
47
4 AS REPRESENTAÇÕES E O TRABALHO DE CAMPO
4.1 OBJETO E SUJEITOS
Conforme Sá (1998, p. 24), “a proposição teórica representada é sempre de alguém (o
sujeito) e de alguma coisa (o objeto)". No caso, o objeto a ser representado é o que chama-se
de “educação musical inicial de adultos ao instrumento” e queremos saber como esse “objeto”
(ou constructo) é representado por sujeitos, são eles professores de música da Escola de Música
da UFRN e alunos de música da UFRN, considerados adultos ou que tivessem se iniciado em
uma idade considerada tardia.
Buscando as representações sociais manifestadas no campo da educação musical de
instrumentos de tradição conservatorial, foram procurados professores de instrumento de
tradição conservatorial (cordas friccionadas, madeiras, metais e piano).
Inicialmente o critério para a escolha dos professores entrevistados foi em primeiro
lugar o instrumento que lecionavam e em segundo lugar o seu tempo de atuação como
professores da instituição.
No caso dos instrumentos de cordas friccionadas foi adicionado mais um professor por
se tratar de um profissional cuja iniciação se deu por volta dos 20 anos, o que, pelos próprios
relatos da área, é incomum nesse meio, o que poderia contribuir e fornecer elementos cruciais
ou complementares para a pesquisa.
Os professores entrevistados atuam nos cursos básico, técnico, superior e pós-
graduação. Sendo que o curso básico atualmente funciona para poucos instrumentos e apenas
um atuava também no curso de pós-graduação (mestrado) no momento da pesquisa.
No primeiro momento, foram entrevistados dois professores representantes de
instrumentos de cordas friccionadas, um professor representante da seção das madeiras, um
professor representante da seção metais e um professor de piano. Nesse sentido, ao dizer que
eles são representantes de tais instrumentos, considerando esses sujeitos como sujeitos
genéricos (SPINK, 2013), ou seja, representantes de um grupo de professores/instrumentistas
que compartilha um mesmo campo de atuação (ensino de violino, etc) e que compartilham,
processos de formação, de trabalho e diálogo com outros membros de seu grupo.
48
Ao final das entrevistas foi solicitado que os professores indicassem algum aluno que
eles considerassem adulto ou que tivesse se iniciado no instrumento em uma idade mais tardia
(excluindo, caso ocorram, indicações de alunos da terceira idade, que constituem um grupo com
características distintas).
Para esses alunos serem considerados adultos ou que se iniciaram em uma idade tardia
foi considerado o critério de classificação de seu professor de instrumento. Essa indicação por
parte do professor também serviu como via de acesso a seu sistema de categorização baseado
em representações.
Foram indicados um aluno de piano e um de violino. Os outros professores relataram
não ter entre seus alunos estudantes que pudessem ser considerados adultos para os fins dessa
pesquisa. Nesse momento, para entender o que o professor entendia sobre os alunos adultos ou
que começaram fora da idade regular, não definimos para os professores as características
operacionais usadas ou as representações às quais esse aluno deveria se enquadrar.
Dos dois alunos indicados, um havia começado o estudo do instrumento aos 20 anos,
depois de uma breve musicalização em outro instrumento aos 17 anos e o outro aluno teve uma
iniciação musical aos oito anos com outro instrumento voltando ao estudo sistemático do
instrumento atual na adolescência. Essa discrepância no perfil dos selecionados corrobora os
estudos exploratórios realizados por nós e a literatura nos quais a definição do aluno adulto é
imprecisa e subjetiva.
Inicialmente só conseguimos dois alunos indicados, no caso dos metais o professor
relatou que nunca tinha ensinado o perfil de aluno adulto em processo de iniciação, seus alunos
frequentemente chegavam no curso técnico ou superior após uma iniciação no período ainda da
infância.
No caso das madeiras, o professor também relatou uma situação semelhante mas citou
que no passada haviam na Escola de Música da UFRN cursos básicos em instrumentos de
madeira. Dessa forma através de me rede profissional encontrei uma ex-aluna de um dos cursos
básicos de instrumentos de madeira havia se iniciado no instrumento aos vinte e quatro anos,
passando por uma breve musicalização um ano antes, também na Escola de Música da UFRN3.
3 No início dessa pesquisa, quando ainda não havia sido definido o projeto final ou mesmo a metodologia, eu
comentei com um colega que estava pesquisando a iniciação de adultos na música. A esposa desse colega, que
estava presente na ocasião, prontamente se ofereceu dizendo que gostaria de contribuir porque o tema lhe parecia
muito importante e que sua história com a música havia se iniciado de forma tardia. Um ano e meio depois, ao
49
Sendo assim, foram entrevistados um aluno de cordas friccionadas, um de piano e uma aluna
de sopros.
Para resguardar a identidade dos entrevistados e identificar no texto o discurso de alunos
e professores, o nome dos colaboradores foi substituído por uma letra mais um número
aleatório. Desta forma, em vez de usar o nome do professor ou do aluno, usaremos A1, A2 e
A3 para os alunos e P1, P2, P3, P4 e P5 para os professores. Todas as entrevistas foram
realizadas no período de 18 de agosto a 7 de setembro de 2016.
4.2 CONTEXTO
Após enunciados o objeto a ser representado e os sujeitos, devemos considerar “o
contexto sociocultural para a formação e manutenção da representação” (SÁ, 1998, p. 25).
Nesse caso, o contexto não apenas define o locus de pesquisa, mas principalmente descreve um
conjunto de características socioculturais que contribui para a circulação, formação e
reprodução das representações sociais entre os sujeitos. Nesse caso, esse contexto é a Escola de
Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, situada em Natal - RN.
Segundo os dados constantes na página de apresentação da Escola de Música (UFRN,
2016), ela foi fundada em 1962 e incorporada a UFRN em 1968. Em 1982, suas atividades eram
curriculares e extracurriculares com a seguinte estruturação: Curso de Iniciação Artística, Curso
Preparatório, Curso Médio e Curso Final (UFRN, 2016).
Já em 1991, foi para sua nova sede no campus universitário. Em 1997, inicia o curso
superior de bacharelado e no ano seguinte, o curso técnico em música. No ano de 2002 torna-
se Unidade Acadêmica Especializada, e no ano de 2004 iniciam-se as atividades do curso de
licenciatura em música. Mais recentemente, em 2010, inicia os cursos de especialização e em
2013, o curso de Mestrado em Música.
final das entrevistas, eu percebi que não havia indicações de alunos dos instrumentos da família de metais e de
madeiras. Acabei descobrindo que no passado havia cursos básicos de instrumentos de madeira na Escola de
Música da UFRN e que essa colaboradora, que se ofereceu no início da pesquisa, tinha participado de uma dessas
turmas com mais dois alunos adultos e uma criança. Sendo assim, a questão da escolha do aluno pesquisado nesse
sentido se deu pelo interesse dessa ex-aluna de contribuir com a pesquisa, por se tratar de um caso que me despertou
o interesse porque na experiência dela, sua turma tinha quatro alunos no qual a criança era a minoria, o que
contraria a minhas próprias representações em associar o adulto à minoria numérica, e porque ao final era um
exemplo de uma aluna de um instrumento que eu pretendia pesquisar.
50
Essa breve história da Escola de Música da UFRN se assemelha a diversos outros
departamentos de música que iniciaram como conservatórios e que com o passar do tempo
foram incorporados às universidades no Brasil, como o Conservatório Brasileiro, que foi
incorporado a Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O modelo de conservatório adotado no Brasil em 1841, ano em que Francisco Manuel
da Silva, autor do Hino Nacional, inicia o processo de criação do Conservatório de Música,
financiado pelo fundo da loteria e subordinado ao Ministério do Império, que foi inaugurado
em 1848 (OLIVEIRA, 1992), naquele momento era importado o modelo de conservatório de
música, bastante difundido, calcado nos moldes do Conservatório de Paris, fundado em 1795
(PENNA, 2003).
Esse modelo continuou em voga durante o Séc. XIX, ainda que modificado pela
influência do movimento Escola Nova que seguia as ideias pedagógicas de Dewey (MARTINS,
1993). Pereira (2012) observa que esse modelo não consiste apenas em uma estrutura curricular,
mas também em um sistema de valores reprodutor de estruturas que se manifestam em várias
dimensões, o habitus. Nesse caso, Pereira (2012, 2015, 2014) define essas estruturas como
habitus conservatorial.
Neste sentido, embora a Escola de Música da UFRN se constitua em uma unidade
acadêmica especializada e tenha em muitos sentidos várias diferenças em relação a um
conservatório, muito de sua estrutura ainda pode ter sido modelada a partir do habitus
conservatorial.
Em outros casos estudados por Pereira (2012, 2014), esse habitus se manifesta no
individualismo no processo de ensino, no poder concentrado nas mãos do professor, na figura
do músico professor como objetivo final do processo educativo, entre outros (PEREIRA, 2012,
2014). Nesse trabalho, buscou-se o “conservatório” na Escola de Música da UFRN, ou seja, os
cursos de instrumento de tradição conservatorial de modo a procurar dentro desse ambiente o
habitus conservatorial e as representações de iniciação de alunos adultos ao instrumento
engendradas por ele.
Ressalta-se que o interesse nesse habitus também considera o campo no qual ele é
produzido. Na Escola de Música da UFRN existem, todo um setor dedicado a educação musical
no qual se entrelaçam o campo da educação musical com o da pedagogia e o campo
hipercomplexo da educação. Nesses casos, no espaço social formado pelo entrelaçamento
51
desses campos predominam valores diferentes daqueles cultivados historicamente pelo campo
(ou subcampo) da educação musical de instrumentos de tradição conservatorial.
Para esta pesquisa, a percepção desse contexto e seu habitus é importante porque as
representações sociais também podem ser entendidas como manifestações desse habitus ou
como estruturas estruturantes resultantes dele (GUARESCHI; JOVCHELOVITCH 2013).
A vida como estudante de música do pesquisador, se deu em um contexto semelhante
que cultivava e reproduzia fortemente o habitus conservatorial, de tal maneira que a autoridade
do professor era um elemento central e não podia ser questionada em hipótese alguma. Nesse
contexto, enquanto alunos, estes levados não apenas a reproduzir técnicas, mas também modos
de pensar e de agir em relação à música, tais como: cultivar a pontualidade, estudar até a
exaustão e não questionar a autoridade.
Em um contexto em o que o professor fala “é lei” (universo reificado), esse professor
não apenas reproduz e ensina a maneira de fazer música que lhe foi ensinado, mas também as
ideias que lhe foram ensinadas, muito do que é dito em sala tem um peso geralmente decisivo.
Se um professor nesse contexto tivesse aprendido (pela experiência, ou pelo processo
de ensino-aprendizagem) que um aluno mais velho não seria um “bom músico”, não apenas ele
reproduziria essa ideia, mas também transmitiria aos alunos essa ideia junto com outros
ensinamentos, e o aluno, por sua vez, poderia ser mais um reprodutor dessa ideia.
O conhecimento compartilhado que se constitui em estruturas estruturadas e que depois
vão se converter em estruturas estruturantes (ou seja, que vão orientar e estruturar as percepções
e ações, julgamentos, etc.) é o habitus.
Nesse caso específico, essa “ideia” (de que um aluno mais velho não ter capacidade para
se tornar um bom músico) pode ser entendida como “uma forma de conhecimento prático
orientado para a compreensão do mundo” ou como “elaborações de sujeitos sociais [no caso,
professores] sobre objetos socialmente valorizados [um bom músico]” (GUARESCHI,
JOVCHELOVITCH, 2013, p.95), ambos os casos tratam de uma representação social. Deste
modo, a representação é formada com o habitus e é também uma manifestação e uma via de
acesso a esse habitus (SOBRINHO, 1998).
52
4.3 PROCEDIMENTOS DE COLETA E ANÁLISE
O problema aqui, é verificar quais são as representações sociais para o tema educação
inicial de adultos e verificar como elas interferem no processo de musicalização de adultos.
Para isso, considerou-se dois grupos de sujeitos (alunos e professores da Escola de Música da
UFRN) e suas representações a respeito do objeto “aluno adulto iniciante de instrumento”.
As experiências, as referências e o contexto apontam na direção de um habitus
conservatorial relacionado a emergência dessas representações, por isso o recorte busca os
instrumentos de tradição conservatorial através do recorte feito entre os cursos de uma
instituição que traz em sua história também a tradição conservatorial.
Neste trabalho, buscou-se a descrição do conteúdo cognitivo de uma representação
relacionando à análise das condições socioculturais que favorecem sua emergência sem nos
aprofundar no estudo da natureza epistêmica que cercam essas representações (SÁ, 1998). Essa
delimitação aqui se deve a estabelecer um norte dentre os diversos trabalhos que usam a TRS.
A natureza epistêmica indica de onde vem as representações e é naturalmente mais aprofundada
em estudos que tratam da passagem do conhecimento científico para o senso comum.
Descrever o conteúdo cognitivo é diferente de descrever o núcleo central de uma
representação, que já pressupõe outro aparato metodológico. Aqui a descrição do conteúdo
cognitivo se refere às associações de ideias que são evocadas através das representações,
semelhante ao núcleo central, mas que nos permite entender também o papel dos investimentos
afetivos como motores da transformação das representações (SPINK, 2013)
Segundo Sá (1998), a construção da pesquisa pode ser vista como um processo
decisório, pelo qual transformou-se um fenômeno do universo consensual, em um problema do
universo reificado e, em seguida, selecionou-se os recursos teóricos e metodológicos a serem
usados no problema. (SÁ, 1998, p. 26).
Para relembrar, no universo consensual no qual as pessoas são vistas pertencentes a um
grupo “de pessoas que são iguais e livres, cada um com possibilidade de falar em nome do
grupo e sob seu auspício” (MOSCOVICI, 2009, p. 50). Nesse sentido, utilizou-se esse
pressuposto para pesquisar as representações, que compreende parte do objeto de estudo,
através de entrevistas semiestruturadas realizadas com dois grupos, de um lado professores da
Escola de Música da UFRN, e de outros alunos dessa instituição.
53
Estes últimos, foram também indicados pelos professores. Segundo Spink (2013, p. 105)
“trata-se do que chamamos de ‘sujeitos genéricos’ que, se devidamente contextualizados, tem
o poder de representar o grupo no indivíduo”.
Ainda segunda essa autora, tendo em vista a necessidade de compreensão dos conteúdos
que circulam nos diferentes tempos anteriormente definidos – o tempo da interação, o habitus
e o imaginário social - a coleta de dados exige entrevistas semiestruturadas acompanhadas de
levantamentos paralelos que informam os indivíduos enquanto sujeitos sociais. (SPINK, 2013).
Sendo assim, uma vez definido o contexto social, foram entrevistados cinco professores
da escola de música sendo dois de cordas friccionadas, um de piano, um de metais e um de
madeiras. Nesse momento esses professores foram solicitados a indicar alunos que eles
considerassem adultos para a segunda etapa de entrevistas.
Apesar dessa pesquisa não ter colhido mais dados entre os alunos da instituição, como
previsto no projeto inicial, notou-se que ao evocar o tema da inicialização musical entre os
professores entrevistados muitos deles se aprofundaram na sua história pessoal como estudantes
fornecendo muitos elementos para a análise de como são (ainda hoje) percebidos, categorizados
e tratados alunos conforme a sua idade de iniciação.
De maneira semelhante, entre os alunos entrevistados, todos desenvolviam atividades
profissionais com a música concomitante ao seu estudo, os dois alunos de piano e violino na
época da pesquisa já exerciam atividades como professores particulares de música durante a
pesquisa, sendo um deles até empreendedor em diversos projetos de música em sua
comunidade, ambos com mais de um ano de experiência no ensino de seu instrumento.
A outra participante, ex-aluna de Escola de Música da UFRN, também trabalhava com
música na época de sua estada na Escola de Música como realizadora e bolsista de projetos na
instituição. Sendo assim, muitas vezes esses alunos também forneceram precioso material de
análise a respeito da maneira como alunos adultos procuram o estudo do instrumento fora da
instituição, além de fornecerem elementos que permitem a compreensão da sua posição como
professores em relação a esse público.
Dessa forma, embora tenham sido entrevistados professores e alunos, muitos
professores trouxeram um rico relato da sua percepção como alunos e a maioria dos alunos
acabou contribuindo também como professores, principalmente em relação ao público adulto
com o qual esses alunos já têm contato.
54
Mesmo que essas experiências, as dos professores entrevistados na posição de alunos e
a dos alunos entrevistados na posição de professores, tenham ocorrido fora do locus de
pesquisa, notou-se como essas histórias de vida são determinantes para a formação das
percepções, representações e atitudes dentro do locus de pesquisa.
Aqui, essa distinção se faz necessária porque, em certas narrativas transcritas aqui, os
professores narram situações que viveram enquanto alunos, nas quais a autoridade pedagógica,
prática, comportamentos e atitudes censuráveis pela ética e pedagogia contemporânea e, busca-
se deixar claro, que esses comportamentos e atitudes não aconteceram na Escola de Música da
UFRN.
São essas experiências anteriores que contribuem para definir a afiliação ou rejeição aos
paradigmas que esses profissionais adotam e para a construção de suas representações a respeito
do ensino de música ao instrumento. Consequentemente, essa experiência coletiva é
incorporada a Escola de Música da UFRN, formando o ambiente no qual circulam as
representações.
Para a criação do roteiro das entrevistas foram observadas referências e experiências
anteriores que apontam para algumas questões centrais nos discursos observados na literatura e
nos discursos do senso comum, tais como: a idade “ideal” para aprender, as diferenças de
tratamento com relação a essa idade, entre outras.
Também observou-se em diversas referências a dificuldade na percepção da condição
de adulto, por outro lado notou-se (SOUSA, 2010) que ao mesmo tempo em que características
como trabalho e paternidade/maternidade aparecem relacionadas a adultez, também aparecem
em relatos (FELLS, 2012; COSTA, 2004) como empecilhos ao estudo da música. Baseado
nessas pistas, a proposta de questionário para os professores procurou meios de levantar essas
questões.
Procurou-se também verificar as fontes às quais os sujeitos atribuem suas respostas e
até que ponto suas respostas refletem a educação na qual eles se formaram e a visão de seus
colegas (grupo social em que se compartilham as representações). Vide o apêndice A. De
maneira semelhante, o apêndice B traz o roteiro de perguntas para os alunos que buscou também
complementar os dados colhidos na entrevista com os professores e evocar o conteúdo
representacional trazido pelos alunos.
55
Todas as entrevistas foram realizadas após um contato anterior com o colaborador que
sugeriu o local e horário da entrevista conforme conveniência do entrevistado. Todos os
colaboradores foram informados e esclarecidos a respeito da pesquisa e consentiram sua
participação, no qual foi utilizado o termo de consentimento livre e esclarecido em anexo (vide
apêndice C).
Com relação aos professores colaboradores, o pesquisador, como músico
instrumentista, já havia estabelecido uma relação profissional anterior por compartilhar muitas
vezes os palcos e salas de ensaio com esses profissionais. Em um primeiro momento, isso
facilitou a comunicação devido ao fato de que o colaborador já me conhecia como músico.
Nenhum desses colegas que se tornaram colaboradores tinha uma relação próxima
comigo e os contatos anteriores geralmente se resumiam a um breve comprimento. No ato da
entrevista essa relação anterior serviu para abreviar explicações com relação a locais, escolas
de música e profissionais que faziam parte do repertório comum de referências.
Entre os alunos, a mediação do professor que o indicou para a entrevista, tornou a
entrevista, com o fato de conhecer pessoalmente apenas no dia da entrevista, em um primeiro
momento mais direto e “burocrático” que se dissolveu ao longo da entrevista.
Um dos alunos se encontrava em uma fase na qual o trabalho e a necessidade de gerar
renda exerciam um forte impacto em seu discurso por isso era para ele uma situação
relativamente nova. Esse aluno começou na música aos oito anos e só na adolescência começou
a estudar o seu instrumento “seriamente” buscando a profissionalização.
Com ele, ao mesmo tempo em que se tinha um relato muito rico das condições de estudo
de um aluno “típico”, pude perceber o significado do trabalho e da necessidade de
independência que são características da adultez e estavam começando a ser vividas agora como
aprendiz de um instrumento diferente do que ele conheceu na infância.
Outro aluno foi um exemplo de foco, suas respostas sempre foram muito diretas e sua
experiência profissional, assim como no caso do colaborador anterior, foi enriquecedora no
sentido de mostrar como a sua história de vida implica na formação da representação dos alunos
adultos de instrumento com os quais ele trabalha.
A ex-aluna, apesar de ter demonstrado interesse em participar da pesquisa se portou de
maneira reflexiva e direta, demostrando muita maturidade ao se descrever e descrever seus
sentimentos e experiências vividas. Talvez pela distância temporal entre as situações descritas,
56
que era maior do que a dos outros alunos colaboradores, essa colaboradora rendeu um rico
relato.
A aplicação do roteiro de entrevistas resultou em entrevistas de durações diferentes
conforme os entrevistados. Em alguns casos o colaborador respondia sucintamente as perguntas
principais e seus desdobramentos de modo que tentativas de aprofundamento em alguns temas
resultaram em respostas repetidas.
Outras vezes a evocação de um tema transportava o entrevistado a experiências com
profunda carga afetiva o que resultava em entrevistas mais longas. Não necessariamente o
conteúdo evocado tinha referência ao tema proposto, nesses casos, optou-se por dar voz ao
colaborador e retomar o roteiro em seguida.
Desta maneira, algumas entrevistas duraram mais de uma hora, outras nos renderam
cerca de quinze a vinte minutos de conversa. Mesmo assim, seguindo os procedimentos da
análise de discurso (ORLANDI, 2001; FREIRE, 2014), observou-se em todas as entrevistas a
saturação do discurso relacionado ao tema proposto.
A articulação entre a teoria da análise do discurso e a TRS pode ser justificada pelo
tratamento do conteúdo simbólico na TRS e pela forma com a qual a teoria da análise de
discurso liga a língua, discurso e a ideologia segundo a tradição de Pêcheux (ORLANDI, 2001,
p. 17).
Nesse caso, a ideologia da qual trata Pêcheux é definida segundo Althusser como “uma
relação imaginária (a imagem que temos das coisas), transformada em práticas guiadas por essa
relação” (FREIRE, 2004, pos. 145). Para Althusser “há um assujeitamento do indivíduo à
ideologia e, a partir do momento em que ele é assujeitado, ele passa a falar da posição
determinada por ela” (FREIRE, 2004, pos. 148).
Spink (2013) propõe o uso da análise de discurso aplicada à TRS como uma forma de
pesquisa qualitativa que possa ser aplicada em poucos sujeitos considerando esses sujeitos
como via de acesso às representações sociais do grupo do qual eles pertencem.
Segundo a autora existem duas perspectivas para o estudo das representações sociais
enquanto processo: “de um lado a perspectiva tradicional de estudar muitos para entender a
diversidade; de outro o estudo de casos únicos para buscar na relação representação-ação os
mecanismos cognitivos e afetivos da elaboração das representações sociais (SPINK, 2013, p.
100).
57
Nesse sentido, ao considerando os relatos de vida de professores da Escola de Música
da UFRN na sua fase de estudantes, esteve-se procurando por esses mecanismos cognitivos e
afetivos, os quais considerados na dinâmica do processo de formação das representações, têm
peso importante para a formação do conteúdo representacional do sujeito. Para Spink (2013) a
análise do discurso segue os seguintes passos:
1. Transcrição da entrevista;
2. Leitura flutuante do material, intercalando a escuta do material gravado com a leitura
do material transcrito de modo a afinar a escuta deixando aflorar os temas, atentando
para a construção, para a retórica, permitindo que os investimentos afetivos emerjam;
3. Retornar aos objetivos de pesquisa e definir o objeto da representação;
4. Construção de mapas que transcrevem a entrevistas;
5. Transportar essas associações para um gráfico pontuando as relações entre elementos
cognitivos, as práticas e os investimentos afetivos. (SPINK, 2013, p. 105-108)
Foram seguidos esses passos na análise que resultaram na Figura 1, abaixo.
Figura 1 – Representações sociais do aluno adulto iniciante de instrumento
Fonte: O autor (2016)
58
5 ECLIPSE E ESTRANHAMENTO
[...] nós não estamos conscientes de algumas coisas bastante óbvias; de que nós não
conseguimos ver o que está diante de nossos olhos. É como se nosso olhar ou nossa
percepção estivessem eclipsados [...]. (MOSCOVICI, 2009, p. 30)
Nesse capítulo serão feitas as primeiras análises do material representacional. Esse
capítulo tratará dos problemas relacionados à percepção dos objetos da representação e sua
relação com os sujeitos formadores das representações.
5.1 OBSERVAÇÕES INICIAIS
No sentido de investigar de forma exploratória, observou-se uma discussão sobre a
percepção dos estudantes de graduação (licenciatura e bacharelado) com relação ao que eles
entendiam as diferenças entre o ensino de música para jovens e para adultos.
As observações foram realizadas na disciplina Metodologia da Pesquisa, na qual realizei
meu estágio docência, ofertada aos alunos dos cursos de licenciatura e bacharelado em Música,
por ocasião de um exercício de prática de entrevista semiestruturada. O tema sugerido pela
professora da disciplina (não por mim) foi “diferenças entre o ensino de música para jovens e
para adultos”. Gravei o exercício e pedi formalmente a permissão para relatar aqui uma breve
descrição e análise.
A turma tem 46 participantes compostos por alunos dos cursos de licenciatura em
música e bacharelado em música, sendo predominantemente compostas por alunos dos cursos
de licenciatura do terceiro período por fazer parte da grade curricular desse curso e ser optativa
para os alunos de bacharelado. A disciplina tem 30 créditos distribuídos em uma aula semanal
de 2 horas/aula nas quartas feiras nos últimos horários do turno da noite.
Para a atividade a turma foi dividida em dois grandes grupos (Grupo 1 e Grupo 2) que
iriam elaborar o roteiro de entrevista e em seguida foram designados quatro participantes de
cada grupo para aplicarem a entrevista e serem entrevistados. Cada grupo elaborou quatro
perguntas centrais que poderiam ser desenvolvidas. No primeiro turno os quatro participantes
do Grupo 1 aplicaram uma das quatro perguntas a um dos participantes do Grupo 2, de modo
59
que cada participante do Grupo 1 aplicou uma pergunta a um participante do Grupo 2. No
segundo turno o Grupo 2 perguntou ao Grupo 1 usando o mesmo sistema.
Ambos os grupos interpretaram “ensino de música para jovens e adultos” como aulas
de música no contexto da Educação de Jovens e Adultos – EJA, modalidade da educação básica
nas etapas do ensino fundamental e médio (BRASIL, 2000).
Ambos os grupos também basearam suas perguntas e respostas nas diferenças e
dificuldades de trabalho com jovens e adultos: “Qual a principal dificuldade de difundir
conhecimento musical para jovens e adultos?”; “Em sua opinião existe diferença no ensino de
música para um jovem e para um adulto? Quais seriam?”; Essas dificuldades eram de dois tipos:
ou relacionadas às características de aprendizado, centralizadas nas dificuldades com relação a
lentidão na assimilação dos assuntos quando se tratam de alunos mais velhos; ou dificuldades
com às condições de trabalho próprias das escolas públicas que recebem a EJA.
Os alunos concordaram com que existem diferenças entre jovens e adultos, foram
levantadas as necessidades de obedecer ao tempo necessário de cada aluno assim como seus
interesses. No entanto, não ficaram claras as diferenças entre esses jovens e adultos. Ora os
alunos adultos eram associados a representação de idosos, ora alunos de 30 anos eram
considerados jovens. Também foi levantada a música representada na escola como lazer ou
como uma atividade terapêutica em contraste com a “seriedade” de outras disciplinas.
Transcrevo aqui um trecho do exercício de entrevista:
Aluna do Grupo 1 pergunta: “Em sua opinião existe diferenças entre o ensino da
música para o jovem e o adulto? Quais seriam?”
Aluno Grupo 2 responde: “Pegando gancho na sua resposta [em referência a resposta
da aluna no turno anterior, que relatou uma experiência de uma amiga que afirmava
que ao ensinar uma pessoa ‘de mais idade’ precisava elaborar a aula de forma diferente
porque essa pessoa demandava mais tempo para o aprendizado do conteúdo]: é claro
que vai existir essa questão muito bem colocada por você aqui...existe uma
diferença...é...não saberia dizer se cognitiva...mas principalmente motora...né...em
relação a apreensão daquele conhecimento que você quer passar. Então o jovem por
ainda tá no início de sua vida...tá naqueles...no início de sua juventude...ele vai ter
uma... como é que eu vou dizer...uma facilidade maior de apreender aquilo ali do que
uma pessoa, (isso não sou eu que estou dizendo, isso é cientificamente provado, né),
quanto mais ...é...idade você tem, mais dificuldade você tem de apreender algum
conteúdo que você não tenha tido acesso na sua juventude.”
Aluna do Grupo 2: “Você já teve essa experiência? Percebeu isso?”
Aluno do Grupo 1: “Não, nunca tive essa experiência”.
60
Mais adiante perguntei para esse aluno do Grupo 1, o que ele considerava como um
aluno jovem? Sua reposta ficou indecisa e por fim, ele respondeu que “jovem era alguém até
30 anos”.
Nesse pequeno trecho temos exemplos das representações sociais em relação ao ensino
de adultos encontrados no contexto da Escola de Música da UFRN. A própria ancoragem do
tema proposto a EJA revela um tipo de categorização. Observem que a diferença está atrelada
a uma dificuldade.
Essa dificuldade é “comprovada cientificamente”, caracterizando uma espécie de
representação social a partir da ciência que se tornou uma forma clássica dentro da teoria das
representações sociais a partir dos estudos de Moscovici (2009). Ou seja, o respondente, não
tem acesso ao material científico que estuda esse fenômeno, apenas às representações
circulantes que supostamente são corroboradas por esse material científico.
Mais adiante, a aluna que fazia o papel de entrevistadora pergunta se essas dificuldades
citadas já foram observadas pelo sujeito, o qual responde que não. Nesse caso o respondente
tinha era um aluno com traços físicos característicos da meia idade, que demonstrava já ter
experiência profissional em outros momentos, portanto se encaixa na representação
compartilhada socialmente de idade adulta.
Mais adiante, após a entrevista enquanto a turma se dispersava, alguns alunos me
procuram para comentar as suas experiências como estudantes de música adultos. Os três alunos
que me procuraram relataram a sua grande dificuldade em aprender música na fase adulta e a
sua pouca disponibilidade de tempo para praticar, devido às suas responsabilidades com o
trabalho e com a família. Ao serem perguntados se eles sentiam alguma dificuldade motora na
idade adulta ou dificuldade na assimilação do conteúdo, todos negaram.
Deste modo, se de um lado as dificuldades relatadas que fazem referência aos estudos
científicos estão associadas às dificuldades de ordem biológica tais como dificuldades motoras
ou cognitivas, na prática elas aparecem como resultado de sua situação socioeconômica e das
limitações de tempo advindas dessa situação:
Aluno: “Não dá para me comparar a um jovem que tem todo o tempo do mundo...hoje
eu trabalho, tenho responsabilidades...quando eu era menino tinha tempo para
estudar...”
Eu: “E hoje você sente alguma dificuldade de aprender os conteúdos, para “pegar” as
músicas ... ou você sente que sua musculatura está diferente...?”
Aluno: “Não …só o tempo pra estudar mesmo...”
61
5.2 SOBRE DIFICUDADES EM PERCEBER O ALUNO ADULTO
No estudo preliminar que se deu através do registro de uma atividade com graduandos
(vide 3.3) também observou-se que muitas vezes os próprios alunos se encontravam ou
passaram por um processo de musicalização em idade adulta4, tinham que conciliar o
aprendizado de música com as obrigações e responsabilidades da vida adulta e ao mesmo tempo
não enxergavam a si mesmos como alunos adultos de música.
Mais ainda, eles reproduzem representações a respeito do aluno adulto a partir de
representações sociais baseadas na popularização da ciência5 que são contrárias à sua própria
experiência. Outro aspecto é que ao refletir a respeito da educação musical para adultos esses
alunos se afastam ainda mais de si ao ancorarem o tema à educação musical no contexto das
aulas para jovens e adultos em escolas públicas, onde eles não dão aulas, mas tem notícias de
colegas que ensinam lá.
A partir daqui, será tratado a análise do material das entrevistas, nas quais percebemos
que também o tema é de difícil percepção para os entrevistados que não vivenciaram as
dificuldades de uma iniciação musical na idade considerada “boa”.
Para os entrevistados que tiveram a sua iniciação ao instrumento na idade considerada
pelos próprios entrevistados como sendo a adequada, ou próxima a que eles consideravam
adequada, a percepção de que existe uma distinção para aqueles que começaram seus estudos
de música fora dessa idade considerada adequada é eclipsada e a relação entre idade do aluno e
a iniciação musical tem uma conotação distante.
No entanto, para outros, em que a sua iniciação se dá fora da idade que os próprios
consideram adequada, a relação entre idade, iniciação musical e desenvolvimento é
continuamente apontada no seu discurso. Nota-se:
Com que idade você começou a estudar música?
P4: Dez anos.
4 Considerando a própria classificação dos alunos como adultos a descreverem a sim mesmos e seus problemas
cotidianos. 5 Na área de estudos da TRS existe uma corrente de pesquisadores, incluindo o próprio Moscovici em seu estudo
clássico a respeito da psicanálise, que estuda os processos sociais pelos quais a ciência e a tecnologia são
transformados em senso comum. No exemplo acima o aluno não tinha conhecimento científico a respeito de
estudos cognitivos ou motores a respeito do aprendizado de música em adultos, mas compartilhava a representação
de que “é cientificamente provado” de que “quanto mais ...é... idade você tem, mais dificuldade você tem de
apreender algum conteúdo que você não tenha tido acesso na sua juventude”.
62
Na sua experiência qual a idade que você considera melhor para a iniciação no seu
instrumento?
P4: Olha ...eu considero assim... a partir de dez anos, mas com muito cuidado. Muito
cuidado. [...] (Entrevista realizada em 2016, grifo do autor)
De modo contrário, os alunos ou professores que se iniciaram em uma idade percebida
como tardia, carregavam nos seus discursos essa percepção e as consequências dessa iniciação
tardia:
Qual a idade que você começou a estudar?
P1_Eu comecei com 20 anos de idade.
[...] (Sobre a idade melhor para começar o instrumento)
P1:Ah, com certeza cedo. A partir dos 8 anos 9 anos [...] Mas eu acho que música
assim, a gente tem que musicalizar as crianças mesmo. [instrumento] inclusive eu
acho que é um instrumento que a pessoa pode começar bem cedo.
[...]Eu antes de entrar aqui quando eu comecei, eu ouvi várias vezes que eu não
devia...como eu comecei com vinte aos de idade eu devia parar de tocar... e fazer outra
coisa... [...] (Entrevista realizada em 2016, grifo do autor).
Nesse caso, a relação entre a idade em que se deu uma iniciação considerada tardia,
pelos entrevistados, e as implicações aparecem muito claramente para aqueles que sofreram as
consequências dessa iniciação enquanto são diluídas no discurso daqueles que não passaram
por essa experiência.
Outros aspectos desse eclipse da percepção e desse estranhamento são mais fortes e
evidentes quando aquele que forma a representação não é o aluno nem o professor, mas um
membro próximo da família desse aluno mais velho.
Eu queria ter começado a estudar música antes, mas minha família não tem ninguém,
nenhum músico, muito menos músico da área erudita. Então meus pais achavam que
tocar [instrumento] era coisa que não existia. [...] meus pais tentaram me dissuadir
muito também...eles não entenderam quando eu quis largar o meu outro curso e eu
mudei de cidade para estudar com esse outro professor da graduação...Não era a
cidade em que eu morava, eu morava em [cidade] ele dava aula em [cidade]. E eu
cheguei a passar em [cidade em que morava], mas eu falei: ‘não esse professor aqui é
melhor e eu quero mudar para estudar com ele’. E ...tive vários problemas...vários
problemas...Meu pai parou de me mandar dinheiro...tive que trabalhar...trabalhei de
carreto, de técnico de informática, dei aula de inglês, fiz o que deu...e tocava muito
em casamento. E por falta dessa cultura...meus pais pra você ter uma ideia não sabiam
nem que tinha curso superior de música. Meu tio que é jornalista uma vez veio me
perguntar se eu podia fazer faculdade de [instrumento]. (P1 - Entrevista realizada em
2016).
[...] quando eu disse que eu ia estudar música, né, durante aquele ano, enquanto
chegava o vestibular, aí foi um Deus nos acuda. Que ‘música é coisa de vagabundo,
de preguiçoso’, que eu não ia chegar a lugar nenhum com música que eu fosse fazer
algo de futuro, que eu fosse procurar um emprego de vendedora num shopping. Então
assim, a família toda caiu em cima. [...] (A3 - Entrevista realizada em 2016).
63
Nesse último caso, a falta de conhecimento a respeito do tema, aliado às representações
negativas com relação ao estudo de música e sua profissionalização, tiveram consequências
marcantes nas vidas dos alunos e nas relações familiares daqueles que sofreram essas
dificuldades.
Esses exemplos também são interessantes para se notar o quão marcante pode ser esse
tipo atitude na vida de um estudante de música e como após isso esse tema pode adquirir um
carácter pessoal para aquele aluno em particular, o que pode contribuir para que o tema de
musicalização na idade adulta, ou avançada, seja tão evidente para aqueles que sofreram
consequências negativas dessa prática.
Nesse caso, essa representação por parte da família também revela representações da
música e da educação musical em um contexto mais amplo no qual música “é coisa de
vagabundo”, música “não é coisa de futuro”, no sentido de que a música não se enquadra nas
categorias usadas pelos os familiares para definir ocupações que possam garantir uma segurança
financeira e por não ser categorizada como uma atividade acadêmica. Ou seja, diga de ter
investimentos de tempo e dinheiro que possam ser posteriormente convertidos em capitais
culturais ou financeiros.
5.3 SOBRE A IDADE PARA A INICIAÇÃO MUSICAL
Teixeira (2012) chega a se referir a uma “lógica implícita” que associa a educação
musical a educação musical para crianças. O que o autor chama de “lógica implícita” é o
trataremos aqui como representações sociais a respeito da condição do adulto e da criança
enquanto aprendizes iniciantes de música.
Essas representações a respeito do adulto como iniciante, nos parecem intimamente
relacionadas com uma representação a respeito de uma “idade certa” para aprender música,
acima da qual seria inviável começar o estudo de música. Essa representação aparece muito
claramente no texto de Souza (2009), bem como a experiência do pesquisador como estudante
e profissional da área:
Quando iniciei meus estudos de violoncelo era habitual escutar por parte de
professores e colegas de escola de música, que só seria possível aprender violoncelo
64
se o indivíduo começasse o seu processo educacional na meninice. À luz dessa forma
de pensar, se o aluno não fosse solista até a adolescência seria praticamente inviável
se tornar profissional. (SOUZA, 2009, p.12).
Interpretando essas falas sob a teoria das representações sociais, Duarte e Mazzotti
(2002, p. 32) nos lembram que:
Os professores, ao atribuírem a qualidade “apropriado ao uso escolar” a determinadas
práticas e objetos musicais, partem de critérios para afirmar o que é ser “educado
musicalmente” e o que é “musical”. [...] Propor, recusar e redefinir critérios são
movimentos que têm caminhado junto com a nossa própria definição enquanto
indivíduos e enquanto coletividade.
De fato, é o que os professores frequentemente fazem, de um modo ou de outro, como
pode-se observar no texto abaixo:
G&B – Falemos um pouquinho sobre a educação musical instrumental. Qual é a
melhor idade para uma criança começar a tocar um instrumento?
PB – É, acho que é como tudo na vida, não tem uma idade padrão pra se começar e
depende da criança que está na frente: - se ela demonstra interesse, se ela é capaz de
se concentrar, e se tem também quem a assista fora da sala de aula. Por isso uma
criança de três anos de idade, por exemplo, que fora da sala de aula não tem quem a
assista, não vale a pena, vocês sabem muito bem. Quer dizer, na verdade, na minha
época era dito assim: “aprende-se a tocar violino junto com a alfabetização”. No meu
tempo era isso. E isso era uma coisa que não era questionada, mas a gente sabe que
sempre houve muita gente que começou muito cedo, não só grandes violinistas como
Heifetz, mas também violinistas ‘não grandes’ que começaram muito cedo também.
Depende muito da situação, do meio. Por outro lado, também, a criança tem que ter
uma infância com menos obrigações, mas se ela demonstra vontade e tem quem a
assista, até com três anos de idade, não é? Eu acho apenas que quando ela começa
muito tarde, as coisas se tornam naturalmente um pouco mais difíceis - não
impossíveis, mas um pouco mais difíceis - e acredito que sete anos de idade, oito anos
de idade também é uma idade muito boa de uma maneira geral para dizer que se possa
começar a estudar violino. (ROMANELLI, ILARI, BOSÍSIO, 2008, p. 10)
Essas representações da “idade certa” também fazem parte do discurso de alunos
estudados em trabalhos de outros autores, conforme aparece na revisão no trabalho de Souza
(2009, p.59) ao entrevistar a aluna Ana: “[...] Eu falava que era a idade, que tem que começar
quando é criança e tudo...”
No entanto, são questões que, embora apareçam nas falas de professores e alunos, é algo
passa sem discursão ou mesmo sem que seja percebido, por causa da característica que as
representações têm de eclipsar a visão das pessoas, como discutido acima.
Por outro lado, uma vez identificadas essas ideias, ou como trataremos aqui, essas
representações, são praticamente palpáveis como objetos de estudo. Como representações
65
sociais essas ideias se apresentam como estruturas invisíveis que orientam práticas e percepções
nos processos de educação musical.
Nesse trabalho, a necessidade de questionar a respeito da percepção de uma idade “boa”
para a iniciação musical se deve a pergunta inicial a respeito de “como é percebido um adulto
no seu processo de musicalização?”. A revisão da literatura aponta no sentido de uma
“naturalização” da educação musical na infância (TEIXEIRA, 2012).
De fato, quando perguntados a respeito de qual seria a melhor idade para a iniciação
musical no seu respectivo instrumento segundo sua experiência pessoal todos os colaboradores
situaram essa idade na infância, variando conforme adequação de aspectos físicos (tamanho do
instrumento em relação ao tamanho da criança, capacidade física-respiratória, etc.), aspectos
cognitivos (desenvolvimento da linguagem, compreensão, formação dos sentidos e gostos), e
aspectos motivacionais (interesse dos pais e da criança). Abaixo algumas respostas que ilustram
esses resultados:
Há, com certeza cedo. A partir dos 8 anos 9 anos, já dá se você tiver um instrumento
que seja do tamanho da criança eu acho que é válido. (P1- Entrevista realizada em
2016).
Mas eu acho que música assim, a gente tem que musicalizar as crianças mesmo.
[instrumento] inclusive eu acho que é um instrumento que a pessoa pode começar bem
cedo. (P1 - Entrevista realizada em 2016).
O ideal, cara seria antes dos dez. Se você pretende viver só daquilo, entendeu? Só de
música ... Também eu acho que depende um pouco do objetivo...Se você quer ser um
músico de ponta, se destacar você tem que começar o quanto antes. (A2 - Entrevista
realizada em 2016).
Eu acredito assim, que quando se tem uma iniciação musical boa assim - não
necessariamente no instrumento, mas de música, aspectos musicais como solfejo, por
exemplo – dez anos, beleza. (P4 - Entrevista realizada em 2016).
Com o instrumento, eu acho que onze doze anos já dá pra gente ir começando legal.
Ai quem vem mais tarde um pouco, se for muito tarte, tipo dezenove, vinte anos é
muito complicado. (P4 - Entrevista realizada em 2016).
Eu acho que é... é muito relativo. Mas se eu pudesse escolher, e escolheria que o aluno
tivesse já uma iniciação musical com leitura, teoria musical, e ele começasse numa
idade – não necessariamente assim... tantos anos – mas numa idade, por exemplo que
ele já pudesse pegar um instrumento inteiro. (P5- Entrevista realizada em 2016).
Eu sempre achei que instrumento você tem que começar cedo. Mas eu também acho
que você devia dar uma experimentada. [...] acho que para começar, uns dez, doze
anos dá pra você começar bem [instrumento]. (A3 - Entrevista realizada em 2016).
Eu acho que como tudo o que você começa mais novo, você consegue desenvolver
melhor. [...] Mas eu percebo que você começar cedo é essencial pra você se
desenvolver bem. (A3 - Entrevista realizada em 2016).
66
Acho que os pais os pais e a criança devem ter vontade, sabe? Ter clima pra isso. Hoje
em dia, isso não é minha prática, mas hoje em dia se consegue ensinar crianças muito
jovens, crianças quase bebês. Mas pra minha experiência ache que a faixa boa é a
partir dos seis, sete anos. Pra minha experiência que eu saberia lidar com a linguagem
dessa criança. (P2 - Entrevista realizada em 2016).
Cara essa é uma pergunta difícil pra se responder porque eu não sei, não existe uma
receita pra cada pessoa, mas...tem pessoas que acham que de crianças mesmo é a idade
pra se começar na música por causa da educação musical, da etapa da musicalização,
do contato com a música, da criação do gosto. [...] Por isso muitos defendem que a
melhor hora é na infância que você tá passando por esse descobrimento do mundo
através do ouvido. (A1 - Entrevista realizada em 2016).
A pergunta “qual a idade que o senhor considera mais adequada a iniciação em seu
instrumento?” foi equivalente a se tivéssemos perguntado: “qual a idade que o senhor considera
mais cedo para se iniciar ao instrumento?”. Melhor, mais adequado, nesse caso se transforma
em um sinônimo de mais cedo. Desse modo temos mais cedo percebido e representado com
o mesmo sentido de melhor.
A hipótese a partir de referencial teórico, é que justamente essa seja a representação
social compartilhada a respeito da “melhor idade para a iniciação musical” ou “idade mais
adequada para a iniciação musical”. Melhor ou mais adequado, nesse caso, remete a
representação de mais cedo, mais precoce possível conforme as limitações a serem consideradas
(sejam elas de ordem física, cognitiva etc.). O limite para o “mais cedo possível” é regulado
pelo critério do professor ou do aluno, conforme sua experiência e seu conhecimento, mas
sempre o mais cedo representa o melhor.
Retomando a fala do professor Paulo Bosísio (ROMANELLI, ILARI, BOSÍSIO, 2008,
p. 10, grifo do autor): “[...] não tem uma idade padrão para se começar e depende da criança
que está na frente [...]”.
Embora não exista um padrão definido a iniciação musical é representada, na literatura
e no discurso dos entrevistados, sempre relacionada com a ideia de infância. Musicalização é
sempre associada à criança. Daí pode-se notar que a invisibilidade de outros públicos que não
a criança, como relação ao processo de musicalização se dá porque no centro dos discursos a
respeito de musicalização está a associação à criança e ao período da infância.
Nesse momento lembremos de Sousa (2012) que traz o adulto representado como
alguém que parou de crescer, por isso não é visto como alguém que precisa mais estudar.
Quando se estabelece o novo paradigma do adulto inacabado (SOUSA, 2012), a prioridade
67
dessa contínua reconstrução é a adaptação a um mundo continuamente em movimento, no qual
o que se aprende na universidade ou na escola já não serve mais “pra vida toda” e o adulto é
continuamente exposto a um processo de educação continuada de modo a atualiza-lo conforme
as necessidades do mercado. Nesse caso não se trata de necessariamente de aprender coisas
novas, mas estar apto e competitivo para exercer a sua função em um mundo em rápido
movimento.
Mais recentemente vem surgindo a partir da possibilidade de uma vida ativa e produtiva
mais longa (SOUSA, 2012) a realização das atividades complementares que podem também
tomar a forma da realização dos sonhos de infância. Alguns trabalhos tratados anteriormente
(COSTA, 2004; ALBUQUERQUE, 2011; DIAS, 2014) tendem a categorizar o interesse pela
educação musical fora da infância nesse sentido.
Novamente aqui o perigo de uma marginalização do adulto em relação a educação
musical e em relação ao que esse adulto pode atingir com essa educação. Uma coisa é esse
adulto pensar na música com uma atividade terapêutica, outra coisa é ele ser limitado porque
na idade dele a música só pode ser uma atividade terapêutica.
5.4 SOBRE DIFERENÇAS ENTRE CRIANÇAS E ADULTOS NA INICIAÇÃO MUSICAL
E NA FORMA DE APRENDER MÚSICA
Todos os entrevistados foram questionados a respeito das diferenças que eles percebiam
entre os alunos que se iniciam mais jovens ou mais velhos no instrumento assim como a respeito
das dificuldades e facilidades apresentadas por essas diferentes categorias de alunos. As
respostas a ambas as perguntas se mostraram complementares porque as diferenças percebidas
no processo de ensino-aprendizagem estão relacionadas a percepção das características dos
alunos e dos problemas e facilidades encontrados nesse aluno.
De modo geral foram percebidos pelos colaboradores diferenças no aluno mais velho
com relação a comunicação (mais fácil se comunicar com adultos que com crianças), à forma
como aprende música (adultos tem mais dificuldades em incorporar a música) e ao tempo que
ele necessita para aprender música (adultos aprende mais demoradamente que crianças).
Eu vejo que – e isso foi meu caso também quando eu comecei a estudar – o problema
da pessoa mais velha é a relação dela com o corpo – eu conheço pessoas mais velhas
68
que eu dei aula que tinham muita dificuldade em ter consciência corporal para tocar
um instrumento, mesmo pessoas que já eram musicalizadas que já tocavam outros
instrumentos. E elas tentam racionalizar demais também. A criança geralmente você
fala ela faz. O adulto sempre tá perguntando o porquê dele estar fazendo aquilo...e
tem dilemas existenciais e tem que pagar conta...Então é mais complexo. [...] Mas em
geral são problemas de consciência corporal. Os alunos têm facilidade, por exemplo,
de ouvir uma música, de entender a estrutura musical, de entender aspectos mais
abstratos, mas quando vai passar aquilo pro corpo geralmente é mais difícil. (P1 -
Entrevista realizada em 2016).
Eu acho que nos alunos mais velhos, os muito adultos, a dificuldade que eu velho é –
para o [instrumento]- é ...transforma a melodia...é ter ao instrumento a mesma
intimidade da melodia cantada. Nos mais jovens esse conceito, essa experiência é mais
fácil de acontecer. Os dois percebem. A resposta dos mais jovens parece ser... em
menor prazo do que nos muito adultos. Deve, aí eu não sei, mas penso que há algumas
interferências, sabe, entre a sua percepção e o seu fazer. (P2 - Entrevista realizada em
2016).
A diferença que eu consigo ver é que eles [os alunos mais jovens] são mais rápidos,
eles conseguem tocar mais rápido do que eu, por exemplo, que eu não tive o ritmo
deles durante esses anos que se passaram. Eu no caso, por exemplo, preciso estudar
uma peça, dependendo da dificuldade em torno de três a quatro dias para tocar o que
eles tocariam em um dia. Esse tipo de coisa. (A2 - Entrevista realizada em 2016).
[No mais novo a assimilação é mais fácil e a comunicação mais difícil] Já o mais velho
a vantagem é que a comunicação é mais fácil, mas nem sempre a assimilação é tão
fácil. (P5 - Entrevista realizada em 2016).
Em relação ao estudo exploratório com alunos de graduação (licenciatura e
bacharelado), se mantém a associação entre uma idade mais avançada e a dificuldade de
assimilação, no entanto dessa vez essa associação é baseada nas experiências de alunos e
professores ao contrário de uma explicação baseada em uma representação social de origem
cientifica:
[...] o jovem por ainda tá no início de sua vida...tá naqueles...no início de sua
juventude...ele vai ter uma... como é que eu vou dizer...uma facilidade maior de
apreender aquilo ali do que uma pessoa, (isso não sou eu que estou dizendo, isso é
cientificamente provado, né), quanto mais ...é...idade você tem, mais dificuldade você
tem de apreender algum conteúdo que você não tenha tido acesso na sua juventude.”
(Aluno registrado durante observação em sala de aula, vide cap. 3.3)
Nos discursos a respeito das diferenças entre alunos mais jovens e mais velhos está a
associação entre aluno mais velho e dificuldade. Quanto mais velho mais difícil.
69
5.5 SOBRE PONTOS POSITIVOS E NEGATIVOS NA MUSICALIZAÇÃO DE ADULTOS
No sentido de complementar a forma como professores e alunos representam a
musicalização de adultos, buscou-se que os colaboradores respondesses a respeito dos pontos
positivos e negativos da musicalização em idade adulta. Professores e alunos entrevistados
responderam e caracterizaram de forma semelhante as dificuldades e facilidades da iniciação
de alunos que se iniciam em música na infância.
No entanto, apenas os alunos ou professores, que se iniciaram em uma idade que os
próprios considerassem mais avançada em relação a idade ideal, identificaram vantagens ou
pontos positivos na iniciação de um aluno mais velho.
Esse dado parece ter relação com o ponto acima que se refere à percepção dos
colaboradores a respeito da iniciação musical na idade adulta. Da mesma forma que os
entrevistados que haviam se iniciado em idade considera por eles como a mais adequada (ou
próximo a essa idade) tendem a ter dificuldade de perceber a iniciação de alunos mais velhos
que essa idade, esses colaboradores também tendem a não enxergar nenhum ponto positivo na
iniciação de um aluno mais velho. Analisando a transcrição do colaborador P4, citado acima:
_Você percebe alguma vantagem em se iniciar o instrumento numa idade mais
madura?
P4 _Não.
_É mais pesado mesmo?
P4_É mais pesado.
_Geralmente você tem esse tipo de aluno?
P4_Não. Porque aqui é por conta também do perfil do curso que nós temos, né?
De forma complementar, os professores e alunos entrevistados que percebiam a sua
iniciação musical fora da idade ideal para o instrumento, apontaram tanto dificuldades quanto
facilidades da iniciação de um aluno mais maduro. Entre os colaboradores foram apontados
como principais vantagens da iniciação musical de um aluno maduro o foco nos estudos, foco
nos objetivos de estudo e a consciência do processo pelo qual estavam passando. Nota-se
As vantagens...eh...uma das poucas vantagens que tem é que você já está com a sua
personalidade, sua parte mental desenvolvida, e você já tem seu senso crítico. Isso pra
mim é uma faca de dois gumes, eu já tive muitos alunos mais velhos que questionavam
demais e não conseguiam tocar direito por causa disso. E eu acho também que a pessoa
– isso eu acho que foi uma das coisas também que me ajudou muito... como eu
70
comecei muito tarde eu estava muito consciente do meu processo de aprendizagem.
Eu acho que isso me possibilitou depois me tornar um bom professor. Porque eu sei
como eu aprendi. Eu não aprendi com oito anos de idade e aquilo não sei se parte da
minha memória consciente, entendeu? Então, eu acho que tem a ver com isso. (P1).
_o que você achou que foi vantagem de ter começado no [instrumento] com vinte e
um anos?
A2_ “O foco. Eu comecei focado em evoluir pra ser profissional. Ainda tô no
caminho, lógico, mas...”
Qual foi a vantagem grande? Eu quando eu comecei eu já tinha quinze, ai eu fiz
dezesseis anos, já perto do vestibular eu sabia o que queria. Então não fiquei mais
perdendo tanto tempo, eu queria estudar eu queria ser [instrumentista]. Coisa que é
muito difícil você exigir de uma criança de sete, oito anos, ainda mais nessa realidade
brasileira. (P5)
Outra desvantagem no que diz respeito a musicalização de alunos que começaram em
uma idade mais tardia é com relação ao “tempo” ou a “falta de tempo” associada a vida adulta.
Um ponto unânime nos discursos dos colaboradores foi com relação à falta tempo para o estudo
do instrumento, no caso de alunos adultos esse “tempo” tem duas implicações: a curto prazo as
demandas da família, trabalho e responsabilidades que pesam sobre o adulto reduzem a prática
necessária a dedicação ao instrumento; a longo prazo o adulto teria menos anos de estudo
necessários para adquirir a as habilidades necessárias a uma prática considerada de excelência
e sua iniciação tardia é apontada diversas vezes no meio musical como um impedimento à
profissionalização.
Na próxima seção, será retomado esse tópico, não mais apenas como uma desvantagem,
mas como um ponto central no discurso dos colaboradores, que é determinante para a formação
da representação social da musicalização para adultos.
71
6 TEMPO E TEMPORALIDADE
Ao longo da pesquisa, o tempo assumiu um papel de valor que se expressa no campo da
educação musical na sua dimensão medida em horas e em outra dimensão medida em anos.
Essa última dimensão em anos aparece sempre associada ao o ideal de formação profissional
definido pelo campo e buscado por professores, alunos e instituições. Tais ideais e valores se
impõe no campo modelando suas representações e as atitudes como se verá a seguir.
Esse tempo aqui é apreendido por um sujeito que, consciente da sua existência, dá
sentido à sua percepção de passado e futuro, criando um tempo que não é absoluto, mas ao
contrário é relativo e pensado a partir das representações de mundo de cada sujeito. Deste modo,
essa percepção define a existência, não de um tempo único, tempo físico, independente, mas
uma temporalidade a partir da percepção desse sujeito e de sua organização da realidade. Esse
conceito é expresso de forma mais clara por Marques (2008):
Se o tempo físico independe de nós, pois é o tempo da natureza, ele na verdade sequer
precisaria ou mesmo poderia ser por nós percebido. É o presente absoluto da ação, já
que não é passado nem futuro. O passado não existe, pois já se foi; o futuro também
não existe, pois ainda não acontece. Assim, estes dois conceitos apenas fazem sentido
dentro da experiência vivida, dentro da racionalização e consciência do seu decorrer
– constituem, portanto, o valor da memória e da projeção, causa e consequência do
momento presente, medido pelo ser humano –, ou seja, o tempo psicológico. Isso
significa, em primeiro lugar, que só o presente é real, mas também que qualquer tempo
por nós vivido só tem sentido se comparado com o tempo que ainda não é, ou não
mais existe – o que se constitui no processo fundamental da consciência humana e,
num plano mais restrito e aqui relevante, da apreensão da história. Este tempo é, em
suma, a temporalidade. (MARQUES, 2008, p. 45)
Heidegger (2005) vai chamar esse sujeito que interpreta a sua realidade como o ser da
pre-sença (um conceito ontológico que pressupõe o ser estando em jogo com o próprio ser)
que perfaz o movimento de compreensão de si mesmo a partir da temporalidade.
Nesse trabalho essa distinção se faz necessária porque a percepção de tempo, que é
central nos discursos dos colaboradores, se dá na articulação que esses sujeitos fazem entre o
passado, presente e futuro conforme interpretam a si mesmos e a realidade que os cerca. Nota-
se:
72
É a questão do desenvolvimento, porque o [instrumento], pra que você venha a tocar,
fazer as coisas ...significa que você vai ter que desenvolver sua técnica, de [técnica]
por exemplo e sua [técnica], que é um dos aspectos mais importantes pra gente. Pra
você desenvolver isso, isso vai levar tempo. Vai levar muito tempo. Vai levar anos as
vezes, dependendo da pessoa também. Mais de dois anos até pra você adquirir
consistência. Então é por isso que leva desvantagem, né? Porque, por exemplo, o cara
que começou com vinte anos...o que começou com doze anos ele já tem mais estrada
aí... já tá mais desenvolvido. S7
Esse tempo é percebido aqui, não a partir de sua dimensão linear, mas a partir da
articulação entre passado, presente e o porvir. A expressão “vai levar muito tempo” faz
referência a experiência que é relativa porque varia conforme os alunos e suas condições. Em
contraste com a fala: “Mais de dois anos até pra você adquirir consistência”.
Se por um lado, dois anos, não parece “muito tempo”, esse tempo é expresso aqui a
partir de uma articulação feita entre a experiência de administrar os esforços diários necessários
para a aquisição de uma determinada técnica e o resultado futuro desse esforço. Não são “dois
anos” lineares, mas dois anos nos quais o tempo é empregado de determinada maneira e que
faz parte de um processo mais amplo, nesse caso o processo de formação musical.
Esse tempo é a “racionalização e consciência do seu decorrer – (..) o valor da memória
e da projeção, causa e consequência do momento presente, medido pelo ser humano –, ou seja,
o tempo psicológico” (MARQUES, 2008, p. 45), ou seja, é temporalidade. De maneira
semelhante percebemos no colaborador P3:
Quanto o aluno é criança, eu...geralmente você adota até o próprio ritmo de estudo,
né? Se for com doze, treze anos de idade, dez anos...então há uma expectativa
diferente, né? Em relação aquele que tem dezoito. Que aí com vinte anos, ele não tem
mais aquela expectativa de tempo que se espera para construir um profissional. Mas
quando você tem doze, treze anos, você tem mais...uma metodologia que eu vou dizer
assim, sem pressão, né? Pelo menos é a maneira como eu vejo. [...] Quem tem mais
idade o tempo vai ser sempre contra. Contra que eu digo, vai trabalhar sempre contra
ele. Em relação ao cara que é mais novo e tem mais tempo, para decidir, tomar
decisões. (P3)
No exemplo acima notou-se como as expectativas com relação ao desenvolvimento são
moldadas conforme a articulação entre o que é representado para formar, “construir um
profissional” e os recursos necessários para a sua formação, dos quais o tempo em suas
73
dimensões em anos e em horas de estudo se torna um recurso decisivo. Também a metodologia
aparece aqui em função desse tempo, como elemento que o estrutura.
6.1 TEMPO EM HORAS E TEMPO EM ANOS
A seguir, as transcrições ilustram dois aspectos do tempo para o adulto e as suas
respectivas dificuldades: a falta de tempo em horas para estudar e a falta de tempo em anos para
se desenvolver e se profissionalizar:
Principal dificuldade, na minha opinião própria é o tempo. O tempo pra você estudar
e dar conta do que você tem que dar, entendeu? Você conhece bem, né? Repertório
de orquestra algumas peças elas têm uma dificuldade um pouco alta, ai você diz: se
eu não estudar eu não vou poder somar com a orquestra. Vai acabar atrapalhando aí
eu, particularmente, não me sinto bem.
[...]
Se você quer ser um músico de ponta, se destacar você tem que começar o quanto
antes.
(Por que?)
Porque você tem mais tempo para estudar. No caso a vida adulta ela é cheia de
pormenores...e aí você acaba tendo que resolver alguma coisa. Pronto, tem um estudo
para fazer ou um concerto no final de semana, mas aí na tua semana acontece muitas
coisas que você precisa resolver, entendeu? Isso na faze adulta, aí acaba tirando um
pouco o foco, mas...é isso. Quando jovem os problemas são bem menos, né? Esse tipo
de problema raramente acontece. Há não ser uma necessidade de ir ao médico, que é
mais raro. (A2 - Entrevista realizada em 2016).
A questão era que eu ainda não trabalhava, então eu tinha mais tempo, conseguia
assim, digamos, me virar. Depois que eu entrei na graduação comecei a trabalhar aí
dificultou um pouco o estudo. Porque aí, freelancer, por exemplo, eu que toco em
eventos (casamentos, formaturas) você tem que estar sempre pronto pra horários que
são inesperados. Ontem mesmo [quinta] teve um evento que eu fui saber na quarta-
feira. E eu dependo disso, né? Dependo dessa renda de freelancer. E as aulas também.
Embora a gente faça de tudo pra que seja previsível, mas às vezes o aluno vai viajar,
às vezes acontece alguma coisa que ele não pode, o aluno desiste, não tá se adaptando
bem, prefere fazer menos aulas, a gente tem que ir se adaptando quanto a isso, né?
[...]
Se você casa ou se você tem filhos, você tem fazer uma cerimônia pomposa, você tem
que fornecer uma boa educação, uma boa moradia pra sua família e isso gera um
senso, não um senso, gera uma grande responsabilidade na pessoa que demanda tempo
e energia. E às vezes, mesmo a pessoa tem tempo, eu vi muito isso, que eu conversei
com um deles até, que ele disse que ele tinha tempo para estudar sim, mas a energia
que ele gasta cuidando dos filhos e estando lá pra esposa dele era algo que dificultava
74
muito ele pegar, mesmo que uma hora por dia, pegar uma partitura e dedicar, se
concentrar naquilo. Dificultava muito. (A1 - Entrevista realizada em 2016).
A percepção do tempo, seu uso para o estudo da música e para a profissionalização tem
sido uma constante nos discursos dos entrevistados, no estudo preliminar e em certos relatos
encontrados na revisão da literatura. Como elementos para a análise observou-se que o tempo
na sua dimensão em horas de estudo, que medem o trabalho cotidiano tende a ser mais
valorizados pelos alunos mais maduros por conta da percepção de que é um recurso que tende
a se tornar escasso diante das responsabilidades da vida adulta.
Na qualidade de professores, os entrevistados também se remetem continuamente a essa
dimensão do tempo em horas, ressaltando a dedicação exigida para o aperfeiçoamento técnico.
No entanto aparecem muitas vezes que nem sempre o aluno mais jovem que teria mais tempo
disponível faz bom uso desse recurso.
Um sujeito que trabalha tem seu horário de trabalho então... sobra muito pouco tempo
ou um tempo.... digamos se ele conseguir... um adulto não consegue ter duas horas
diárias seis dias na semana. E às vezes os jovens também não conseguem isso e quanto
ainda tem estão muito excitados pelas outras obrigações. (P2 - Entrevista realizada em
2016).
Quanto ao tempo em anos, essa dimensão tende a aparecer nos discursos em relação ao
desenvolvimento médio do aluno e a sua inserção no mercado de trabalho. Sendo assim o tempo
em anos é evocado em relação a atuação profissional e o tempo em horas de estudo é evocado
em relação ao desenvolvimento técnico cotidiano avaliado a cada aula.
6.2 O TEMPO COMO CAPITAL
Ao longo das entrevistas e da análise ficou cada vez mais evidente o valor do tempo
para os alunos e professores. Semelhante ao conceito de capital de Bourdieu (1986), o tempo
ou mais especificamente a quantidade de tempo disponível a um aluno, a exemplo do capital, é
percebida como determinante para as chances de sucesso para práticas musicais e pode, sob
certas condições, se transformar em capital cultural (segundo Bourdieu (1986) no seu estado
institucionalizado esse capital é objetivado na forma de títulos, diplomas e certificados, etc.).
75
Nesse sentido o aluno que tem mais tempo para estudar no seu cotidiano tem mais
“recursos” para o sucesso no estudo de música. A longo prazo o aluno que tem mais tempo
disponível em anos, que começa mais cedo, tem mais “recursos” para seu sucesso profissional.
Essa atribuição de valor ao tempo pode ser percebida diversas vezes ao longo dos
discursos dos colaboradores e parece ser de fundamental importância para orientar a percepção
que os professores tem de seus alunos em relação a viabilidade de seu estudo e da
profissionalização do aluno e dos próprios alunos orientando-os práticas para economizar o
tempo e valorá-lo. Abaixo alguns exemplos do tempo sendo usado como capital.
Pra você ter tempo de chegar na faze adulta com um nível bom. É diferente de você
começar com vinte e quatro anos ter que dar conta de uma outra universidade, ainda
ter que trabalhar, eu era bolsista, tinha que me sustentar. Eu só acho que pra você ser
instrumentista eu acho que você tem que começar cedo e tem que ter tempo pra se
dedicar [...]. (A3)
Eu penso assim: que seu um adulto que nunca tocou um instrumento, pretende ter aula
pra se tornar um profissional de concerto isso eu acho que é bem difícil, não é tão
plausível. Já na criança, ou adolescente ou jovem isso já é mais possível porque a uma
série de coisas envolvidas: o sujeito ainda não definiu uma profissão; o sujeito pode
lidar com o tempo de estudante se tiver apoio em casa, estrutura em casa melhor ainda;
e aquilo pode ser uma profissão com um lugar certo. Mas um adulto você tem que ter
uma outra realidade. [...] Um sujeito que trabalha tem seu horário de trabalho então...
sobra muito pouco tempo ou um tempo…digamos se ele conseguir ...um adulto não
consegue ter duas horas diárias seis dias na semana. E às vezes os jovens também não
conseguem isso e quanto ainda tem estão muito excitados pelas outras obrigações. [...]
Há e tem uma coisa importante, nas universidades, nas escolas como a nossa, a gente
tem assim: 18 semanas você mude de grau. O fator tempo pra mudar de grau é
muito importante isso faz parte do sistema. É uma quantidade de tempo pra você
cumprir os objetivos de um determinado repertório. Isso é um grande problema.
Se você é um sujeito que você tem uma grande aptidão pra aquilo, natural, digamos
assim, disposição, não é aptidão, disposição para o instrumento você consegue fazer
bem direitinho. Senão você não consegue cumprir, se desenvolver num tempo. Se
desenvolveria, mas talvez com o dobro de tempo ou com aquele tempo, mais a metade
dele. Então isso é um grande problema e com aquelas coisas que eu falei: a falta de
tempo, que todo mundo precisa ganhar dinheiro ou trabalha e ainda está estudando e
tal...Tem uma complicação disso. Os currículos pedem o desenvolvimento num
determinado espaço de tempo. E as pessoas tem que se adequar a isso. Isso eu acho
que os conservatórios poderiam ser mais felizes nisso. Dar tempo pra o tempo do
sujeito. E não o sujeito de qualquer forma se encaixe naquele limite de tempo. (P2)
Essa percepção do tempo forma o pilar das representações sociais a respeito da
musicalização de adultos. Ao relacionar com os pontos anteriores, nos parece que tanto
76
estudantes quanto professores percebem o tempo, suas dimensões e implicações para o estudo
do instrumento da mesma maneira. A distinção que observou-se é que os alunos, que se
iniciaram em um momento em que tinham menos o capital tempo a seu favor ou que tem
problemas com a falta de capital tempo para seu estudo, tendem a adotar um foco mais preciso
nos estudos e procurar uma consciência maior do seu objeto de estudo para driblar essa
desvantagem:
Você sabe que você decide uma coisa, eu tirando por mim...dezesseis anos eu sabia
qual era coisa que eu queria eu sabia que eu não podia mais perder tempo. Meus
amigos que eram da minha idade, que tocavam vinte vezes mais do que eu. Eu sabia
que eu tinha que correr contra o tempo, eu sabia que eu tinha que me esforçar,
trabalhar mais para tentar chegar no nível deles e estar tocando junto no caso
na mesma [instituição] lá [lugar]. Essa é a vantagem. (P5 - Entrevista realizada em
2016, grifo do autor).
[...] como eu comecei muito tarde eu estava muito consciente do meu processo de
aprendizagem. Eu acho que isso me possibilitou depois me tornar um bom professor.
Porque eu sei como eu aprendi. Eu não aprendi com oito anos de idade e aquilo não
sei se parte da minha memória consciente, entendeu? (P1 - Entrevista realizada em
2016).
No entanto a ênfase nesses aspectos, ou a própria percepção dessas estratégias como
aliadas no estudo dos adultos apareceu apenas nos alunos ou professores que fazem uso delas.
Deste modo, todos os colaboradores percebem o tempo como um capital e como elemento de
suma importância para o estudo da música.
Com relação ao tempo cotidiano em horas para o estudo, a percepção é unânime no
sentido de que se o aluno não tem um estudo sistemático e cotidiano o aprendizado musical não
acontece de modo adequado. No entanto, no que diz respeito ao tempo em anos, necessário para
a profissionalização, apenas os que enfrentaram ou enfrentam a ausência desse capital como
obstáculo tendem a perceber o tempo como fator importante, mas não determinante do
sucesso profissional.
Ao considerar que todos os entrevistados que se iniciaram fora de uma idade
considerada ideal para o instrumento estavam trabalhando com música quando estudantes (no
caso da ex-aluna entrevistada) ou atuam no momento dessa pesquisa com atividades
profissionais em música, mesmo os alunos, a questão da iniciação na infância como fator
77
determinante para a profissionalização se constitui efetivamente como uma representação social
negativa que se impõe para formar a representação social da musicalização para adultos.
Ao lembrar da educação musical como um campo (BOURDIEU, 2010), uma área
autônoma constituída historicamente em torno de um conjunto de valores, observou-se que
nesse campo é um valor a dedicação em horas ao estudo do instrumento. Percebemos que o
valor tempo em anos disponíveis para a profissionalização está relacionado ao ideal de
profissionalização do campo e será discutido em seguida.
Lembrou-se também que, frequentemente, o capital econômico também pode ser
convertido no capital tempo. Isso é particularmente válido se a posição que o sujeito ocupa no
espaço social lhe proporcionar recursos suficientes para assegurar que o tempo gasto (ou
investido) no estudo de um instrumento não afetará a renda para sua subsistência. Popularmente
se diz: tempo é dinheiro, inversamente lembrou-se que dinheiro é tempo.
78
7 A PROFISSIONALIZAÇÃO E O CONSERVATÓRIO
Observou-se entre alunos e professores duas tendências em seus discursos, professores
se referem sempre a necessidade de formação voltada à execução instrumental. Para eles é
importante que o aluno desenvolva as competências necessárias à execução. Notou-se que
alguns professores citam a necessidade de adequar o repertório aos alunos, respeitando suas
particularidades, mas o valor aqui é a excelência da execução ao instrumento.
Se isso parece óbvio estando os professores em atuação nos cursos técnicos e superiores
(bacharelado) da Escola de Música da UFRN, esse modelo de formação nem sempre
corresponde às aspirações e à realidade profissional expressas no discurso de seus alunos, que
muitas vezes já exercem atividades profissionais no meio musical, principalmente o ensino de
música, que não está contemplado na proposta de formação do curso superior nem tão pouco
do curso técnico, mas que representa para os alunos entrevistados o objetivo da formação ou
um meio de subsistência durante a formação. Segundo a UFRN:
O perfil requerido para o Bacharel em Música é o do músico, na mais ampla acepção
da palavra: aquele que é sábio, douto ou perito na arte da música. Em outras palavras,
o do profissional apto a exercer sua condição de músico, capaz de articular o
conhecimento musical nas suas diversas áreas de abrangência, aproveitando o melhor
de suas potencialidades. Isto significa que ele estará não somente credenciado a
desempenhar a carreira concertística e acadêmica, como também preparado para
incursões mais específicas e detalhadas em nível de pós-graduação. (UFRN, 2006, p.
16)
Esse documento teve o cuidado de explicitar que o curso de música não é “empenho
orientado formação ou a modificação da conduta do músico, e que não se limita à mera
acrobacia de músculos e dedos” (UFRN, 2006, p.13). No entanto o exposto acima parece
reforçar a colocação de Pereira de que “merece destaque a falta de clareza, no decorrer da
história e até mesmo hoje, do que seja um músico artista, um músico professor (também artista),
e um professor de música – e as funções e espaços de atuação de cada um. (PEREIRA, 2012,
p. 77).
O que os professores ressaltam em seus discursos é que o aluno precisa tocar, e que tem
um tempo rígido para fazer isso dentro da academia. Quando perguntados dos objetivos da
79
formação que desejam para o aluno suas respostas variam entre o desenvolvimento de
habilidades técnicas ao desenvolvimento de habilidades musicais abstratas, frequentemente
ressaltando a adequação às capacidades e potencialidades do aluno.
A definição do que seria um bom profissional ou um nível de performance considerado
“profissional” também é imprecisa, algumas vezes aparece relacionada com a capacidade de
executar um o repertório solista ou orquestral, por exemplo (P6), outras vezes permanece
indefinido tanto nos discursos de alunos quanto professores.
No caso dos alunos, a meta vem primeiro associada a obtenção de um determinado
trabalho com música e não necessariamente aos atributos ou requerimentos técnico-artísticos
desse trabalho. Eles dizem, “quero me tornar professor universitário, ou maestro”, ao invés de
“quero tocar concerto tal ou sinfonia tal”.
Fica claro, porém, que essa meta demanda tempo. Um tempo organizado e
multifacetado.
7.1 PROFISSIONALIZAÇÃO E O TEMPO
Como visto anteriormente, a valorização do capital tempo em anos e sua relação de
importância para a profissionalização, assim como a sua percepção de que, embora importante,
ele não é determinante para a profissionalização se refere a uma percepção de profissionalização
ao instrumento diferente daquele cujo foco é apenas a performance. Aqui a profissionalização
não é sinônimo de uma carreira de virtuose como solista internacional, e sim um lugar no
mercado de trabalho onde se pode viver fazendo música. Para a maioria dos entrevistados esse
espaço de trabalho está prioritariamente na carreira docente que é vista também como uma área
mais aberta ao aluno que se inicia adulto e a experiência que ele traz.
_O que você pretende alcançar com teu estudo na música?
A2 _Eu pretendo fazer pós-graduação e o meu foco principal é atividades acadêmicas.
Eu quero estar trabalhando a nível acadêmico.
_Você quer se profissionalizar pra ser professor de música na universidade?
A2 _Exatamente.
[...] Na verdade o mercado de trabalho é um pouco restrito, né?. Ele é mais aberto pra
questão dos docentes, eu acho que você deve saber disso. O pessoal que trabalha mais
80
na parte de execução de peças, eles tem dificuldade de trabalho, de ganhar uma grana
legal. Mesmo com um nível bom, mas ele encontra dificuldade, em algumas barreiras
que a gente sabe que são políticas...
De fato, a experiência docente faz parte da vida profissional tanto dos alunos
entrevistados quanto, obviamente, dos professores que se iniciaram em uma idade considerada
fora dos padrões do instrumento. No caso de nossa pesquisa entrevistamos professores que se
iniciaram ao instrumento aos 15 e aos 20 anos que reconhecem que a iniciação deve se dar bem
antes dessa idade.
Outro argumento que reforça a possibilidade do aproveitamento da consciência e do
foco nos estudos atribuído ao aluno adulto é exposto abaixo:
Bons professores que eu tive, começaram tarde, ou se não começaram tarde passaram
por um processo de readequação numa idade relativamente avançada. Isso possibilitou
a eles estar consciente de como eles aprenderam pra poder ensinar. Eu acho isso
importante. (P1 - Entrevista realizada em 2016).
A profissionalização relacionada com o capital tempo distribuído em anos de estudo
aparece frequentemente relacionada a um ideal de performance, que também aparece nos
discursos dos professores como objeto dos cursos de música na Escola de Música da UFRN.
Esse ideal que orienta o uso do tempo e seu valor parece não considerar outras formas de
realização profissional paralelas à performance, como a docência da qual todos os
colaboradores estão envolvidos.
(..).é igual quando a gente é criança e botam na cabeça da gente que a gente quer ser
rico, que ser rico é bom. Tem gente que é rico e é absolutamente infeliz ...então eu
acho que ser rico ...você tem que saber porque que você quer ser rico. ‘há...eu quero
ser solista’ ‘por que é que você quer ser solista?’ ‘só porque você quer subir na frente
de uma orquestra, tocar uma peça difícil e todo mundo bater palma?’, entendeu? Eu
acho muito mais interessante trabalhar ajudando as pessoas...dando aula...seja lá o que
for, sabe? desenvolver um projeto, na minha visão, ou tocar numa orquestra...Assim
essa mentalidade elitista que tem no meio erudito tem haver com isso, é bem vazio,
sabe? Acho que as pessoas que pensam assim, tem pouca reflexão. E eu conheço muita
gente que pensa assim, muita gente que é muito importante também, sabe? Assim: ‘se
você não conseguir estudar fora do Brasil, você não é ninguém’. (P1 - Entrevista
realizada em 2016).
81
Sendo assim, enquanto campo (BOURDIEU, 2010), os valores dominantes na educação
musical na área de formação ao instrumento ainda estão fortemente ligados um ideal de
performance, que pressupõe um capital tempo em anos para ser alcançado. Esses valores
incluem outras possibilidades da aplicação do conhecimento adquirido pelo adulto.
7.2 TRABALHO E HOBBY
Foi observado entre os entrevistados que era comum ao iniciarem os estudos de música
a existência de alunos mais velhos ou alunos adultos compartilhando o ambiente de aulas,
interessados em aprender música sem compromisso e outros com a intenção de se
profissionalizarem em música, como afirma o aluno entrevistado A2: “todo mundo tinha mais
ou menos a tua idade e todo mundo já entrou para se profissionalizar...A ideia era essa...”.
Esse aluno adulto em processo de musicalização que deseja se profissionalizar em
música é praticamente ausente nas pesquisas ou, por vezes, substituído pelo aluno que deseja
aprender por hobby, os quais “sem desejo de profissionalização, os alunos adultos procuram o
aprendizado de um instrumento pelas mais diversas razoes” (DIAS, 2015, p. 408).
Com exceção de Souza (2009), a percepção de que existe o interesse em
profissionalização no aluno que se inicia na fase adulta não é apontada, além de ser
frequentemente desencorajada por não fazer parte dos anseios dos alunos.
A profissionalização não deve ser o critério norteador do ensino de piano, e os sujeitos
envolvidos na aprendizagem desse instrumento, devem ser compreendidos em seus
respectivos contextos, particularidades, experiências e realizações. O ensino de
música na maturidade faz parte da pirâmide do conhecimento musical e da prática
musical. Nesse contexto, a prática musical é realizada de forma amadorística, e a
prática amadora é um componente essencial para o campo da música, uma vez que
nem todos que estudam um instrumento pretendem seguir carreira na área de música.
(DIAS, 2015, p. 411).
Fells (2012) relata o sentimento que tem de seu aprendizado musical ser classificado
exclusivamente como um hobby: “Engraçado, quando crianças têm aulas de piano ninguém diz
que é um ‘hobby’. As aulas de piano parecem ser outro curso suplementar à sua educação
82
escolar regular” (FELLS6, 2012, pos. 28, tradução do autor). Essa fala nos revela muito de como
ainda estão sendo pensados os adultos em relação a educação musical inicial. Em muitos
contextos aprender música é “estranho” se você for adulto. O autor ainda ressalta que:
A verdade é que ninguém sabe onde esses estudos vão levar o estudante no futuro.
Mas numa idade mais avançada da vida, muito avançada no meu caso, não existem
esperanças ou ilusões. Aprender piano na minha idade é estritamente um hobby.
(FELLS, 2012, pos. 33, tradução do autor7).
Frequentemente encontrou-se em muitas das pesquisas anteriormente citadas, a
representação social da educação musical de adultos como um “hobby” a ser exercido
descompromissadamente, geralmente por razões terapêuticas. Nas falas de adultos é comum
encontrar evidências dessa função terapêutica.
Nos relatos dos colaboradores de Albuquerque (2011, p.79): “ela [a Música] me ajuda
nessa função que estou te dizendo, de relaxamento, de distração”. Outro colaborador também
ressalta esse ponto, quando afirma que: “[...] eu espero isso mesmo, eu toco pra... é... pra
esparecer, pra diminuir o estresse, porque eu gosto, e que em faz bem, então eu espero isso
assim, eu nunca vou progredir não, é só pra ficar tocando pra mim mesmo” (ALBUQUERQUE,
2011, p. 68)
Embora o autor reconheça que “dizer que o adulto só aprende música para seu lazer e
terapia não é o suficiente” (ALBUQUERQUE, 2011, p.89), sua é conclusão é imprecisa ao
afirmar que “o estudar faz parte sim das metas do adulto pelo piano, as expressões e o desejo
de transmitir os materiais absorvidos, são objeto do agir musical dos adultos” (Albuquerque,
2011, p.89).
6 Essa referência corresponde ao livro: Memoirs of a Secret Pianist: Learning the Piano in Later Life de Robert
Fells (em tradução livre: “Memórias de um pianista secreto”). Este não é um trabalho acadêmico, é um relato das
experiências de um senhor que aprendeu piano na idade madura e compartilha, desde sua rotina de estudo, até
dicas de repertório dentre vários aspectos de sua experiência musical. Embora não seja um trabalho científico, do
ponto de vista da TRS, ele é extremamente rico por trazer no seu relato experiências muito próximas as
experiências descritas na realidade brasileira devidamente comentadas, as quais nos permitem uma via de acesso
ao conteúdo simbólico que é compreende o objeto de estudo. 7 “The truth is that nobody knows where these music studies will lead the student in the future. But in later life,
much later in my, case there are no such hopes or illusions. Learning the piano at my stage in life is strictly a hobby
[...]” (FELLS, 2012, pos. 33)
83
Além disso, Albuquerque (2011), Costa (2004), e Dias (2014), sugerem que ao pensar
música como terapia, isso possa funcionar como uma forma de evitar as expectativas
enfrentadas pelos adultos, a frustração e a ansiedade.
Pensando nos alunos adultos que perguntam se ainda têm idade para estudar, se
esquivando das exigências “de fazer música seriamente”, da vergonha, da pressão e da
ansiedade de se tornarem objeto de riso ao iniciarem o estudo de um instrumento, pode-se
imaginar como o status de hobby poderia servir para aliviar essas pressões, tendo em vista que
“a pressa em aprender e a busca pela perfeição na execução das peças pode gerar uma
autocrítica exagerada” (DIAS, 2014, p. 178).
Uma outra implicação da educação musical inicial para adultos ser tratada como um
sonho de infância revivido como hobby ou uma terapia anti-estresse, é que nesse sentido fica
também eclipsado a percepção de que a música pode representar também uma possibilidade de
compreensão de mundo. Lembremos que até a matemática pode ser uma terapia ou um hobby,
o sudoku é um exemplo disso, mas o estudo da matemática é necessário porque o mundo e a
relação como ele estão repletos de conteúdos tratados na matemática.
De maneira semelhante, a educação musical também tem a função de fornecer uma
compreensão de mundo mais ampla, porque afinal o mundo está repleto de música e a relação
com o mundo é mediada também pela música. A diferença aqui é que mesmo os que não tem
talento inato para a matemática podem e frequentemente são obrigados a apreender seus
conceitos mais básicos para se orientar no seu dia-a-dia.
Longe de discutir os objetivos da educação musical é salutar ilustrar como em relação à
educação musical ainda aparece de forma muito presente a representação de que a música é
algo “hermético”, que é acessível “apenas para os poucos dotados que são capazes de apreende-
la”.
Nas entrevistas dos colaboradores o hobby aparece também como uma alternativa ao
estudo voltado à profissionalização, por este demandar mais investimento de tempo, o qual se
configura como um capital escasso diante das responsabilidades da vida adulta.
É bem mais difícil [se o aluno for adulto]. Ai realmente é a realidade ...é mais difícil
pra ele alçar um...Principalmente se ele tiver filho ou filhas, as responsabilidades da
família e de trabalho...ele não tem...o tempo que ele precisava ele não tem. Ai talvez
seja o fator que... se o cara vai começar do zero...O cara tem que pensar, se for para
seguir como uma profissão é muito mais difícil, né? Ai ele precisa realmente né...é
muito mais complicado. Se bem que muita gente as vezes procura, se tem família e
84
vai começar do zero de repente é como um hobby, não vai seguir uma profissão, pra
se profissionalizar. (P3 - Entrevista realizada em 2016).
No caso do adulto e sua relação com a música, frequentemente não se está devidamente
atento para o fato de que o hobby representa em na sociedade uma oposição ao trabalho e está
indissociavelmente ligado a ele (ADORNO, 2002).
O hobby é representado como uma atividade que deve ocupar o tempo livre sem ser
tomada tão “seriamente” quanto o trabalho. Mais ainda, o hobby deve contribuir para que o
sujeito esteja mais disposto e apto ao trabalho. Adorno (2002) acrescenta ainda considerações
de como o tempo livre é usado para alimentar a indústria e de como o capitalismo se aproveita
desse tempo instituindo nele novas modalidades de consumo.
Com relação ao aprendizado da música, dizer que a música na fase adulta é um hobby
também implica em considera-la, não como uma parte integral da vida do indivíduo, mas como
uma atividade que, por não manter relação direta com o trabalho gerador de renda, deve servir
para exclusivamente para o lazer, tendo em vista que o trabalho, na maioria das vezes, não é
representado como o lugar do prazer, e da realização, pelo contrário é o lugar dominado pela
seriedade e do esforço árduo. A respeito disso, Adorno coloca que:
Aquilo com o que me ocupo fora da minha profissão oficial é, para mim, sem exceção,
tão sério que me sentiria chocado com a ideia de que se tratasse de hobbies, portanto
ocupações nas quais me jogaria absurdamente só para matar o tempo, se minha
experiência contra todo tipo de manifestações de barbárie — que se tomaram como
que coisas naturais — não me tivesse endurecido. Compor música, escutar música, ler
concentradamente, são momentos integrais da minha existência, a palavra hobby seria
escárnio em relação a elas. Inversamente, meu trabalho, a produção filosófica e
sociológica e o ensino na universidade, têm-me sido tão gratos até o momento que
não conseguiria considerá-los como opostos ao tempo livre, como a habitualmente
cortante divisão requer das pessoas. (ADORNO, 2002, p. 105-106).
Talvez por isso, a ideia de profissionalização de estudantes adultos ainda pareça de
forma tão opaca, pois dar ao estudo de música a chancela de uma atividade “séria”, ou seja, um
não-hobby, é desafiar a representação de oposição que essa atividade deve ter em relação ao
trabalho formal (ADORNO, 2002) e estar apto em seguida a desafiar as representações de
profissionalização, de realização musical e de aluno que circulam no campo da educação
musical. A função terapêutica também se relaciona com a ideia de tempo livre em Adorno:
85
Por um lado, deve‐se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer
disparates; sobre essa base, repousou outrora o trabalho assalariado, e suas normas
foram interiorizadas. Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para que
depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em nada o trabalho. (ADORNO, 2002,
p. 108)
Nesse caso a terapia faz parte das atividades que não lembram o trabalho, por serem
opostas a ele, mas que ao mesmo tempo o servem, possibilitando que o sujeito possa trabalhar
melhor.
7.3 MENTALIDADE DE CONSERVATÓRIO
Longe de refletir, seja o comportamento ou a estrutura social, uma representação
muitas vezes condiciona ou até mesmo responde a elas. Isso é assim, não porque ela
possui uma origem coletiva, ou porque ela se refere a um objeto coletivo, mas porque,
como tal, sendo compartilhada por todos e reforçada pela tradição, ela constitui uma
realidade social sui generis. Quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza
convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna. (MOSCOVICI, 2009, p. 41)
A percepção desses valores, descritos acima não acontecem em um vazio, são produtos
e são produtores de sentido em uma realidade específica, que no caso, é a Escola de Música da
UFRN. Essa escola, por sua vez tem sua história e deve seus valores a uma tradição que é
continuamente revista e transformada.
Quanto a isso existem nos depoimentos e relatos diversos exemplos de uma mudança
em andamento com relação à didática herdada para a didática praticada atualmente e aos
objetivos de estudo dos alunos. Todos os entrevistados expressaram uma grande disposição
para o acolhimento de seus alunos, independentemente da idade e uma visão acolhedora em
relação ao paradigma da educação do conservatório.
Olhe, nossas formações foram perfeitas por causa das falhas que elas tiveram. Porque
justamente a gente é uma ponte entre os professores ou alunos de professores que
estudaram na Europa e todo mundo ia ser um grande virtuose E eles não estudaram
pra ser professor e tinham muitas falhas na pedagogia. E são essas falhas que, penso,
que estão movendo a didática no momento. Se você não repetir esses não ditos e esses
comandos ...é como é que se diz... marciais... de uma didática que tá provado que não
funciona. (P2 - Entrevista realizada em 2016).
86
Apesar disso, no mesmo ambiente em que se desenvolve essa transformação também
notou-se a clara percepção de um modelo baseado nas práticas conservatoriais, reforçado pelas
representações românticas de talento que ainda aparecem associadas às formas de pensar e às
práticas da educação musical.
A mentalidade do conservatório, das escolas de música. [...] É uma mentalidade
elitista inculcada na cabeça das pessoas, que inclusive gera muita frustração. [...]
Assim, essa mentalidade elitista que tem no meio erudito tem a ver com isso, é bem
vazio, sabe? Acho que as pessoas que pensam assim, tem pouca reflexão. E eu
conheço muita gente que pensa assim, muita gente que é muito importante também,
sabe? Só que antes, quando a gente é mais novo, essas coisas entram na cabeça e fica
de uma maneira muito prejudicial. [...] então eu acho que isso tá melhorando cada vez
mais. Mas tem um certo preconceito. Que eu acho que não tinha só haver com idade
não, tinha haver com outras coisas, falta de conhecimento. (P1, grifo do autor)
Não sei se isso passou pela sua cabeça, mas cria-se uma espécie de mito, né...Um
adulto chega pra você e quer começar do zero, entendeu? Ele acha que não vai
conseguir, ele acha que ... Por exemplo, muitas pessoas chegam pra mim perguntando:
‘ [nome do entrevistado] e aí? Tu acha que dá pra mim aprender cara? Nessa idade?
(A2, grifo do autor)
“A1_Eu acho que adulto, jovem, como eu falei a gente deve abandonar mais o
misticismo, que é uma visão romântica, de que alguns nascem com talento e tem que
aproveitar aquele talento naquela hora, porque se não vai dar certo, nunca vai ser um
grande [instrumentista]. Eu acho que esse é um mito do herói romântico que a gente
deveria ter abandonado isso a muito tempo.
-Você ainda ouve isso pelos corredores?
A1_Ouço bastante, ouço bastante. Inclusive, como eu falei, alunos meus que são
adultos às vezes veem um pouco dessa visão romântica: de que existe um herói, aquele
virtuose que nasceu pra aquilo e ele é que deve ser o cara que vai seguir aquilo. Você
deve fazer apenas em casa com os seus amigos.
-Você acha que existe ainda essa visão na Escola de Música?
A1_Existe, existe. Acho que existem visões muito diferentes em cada canto
da...Assim, não é cem por cento, mas em geral existe muito, é muito cultivada essa
visão ainda. De que existe o talento que a música é uma linguagem específica pra
aqueles que escutaram esse chamado. Se a gente deixasse essa visão de lado a gente
aproveitaria cada momento da música em sua essência, aproveitar cem por cento.”
Na revisão da literatura, notou-se também traços desse habitus conservatorial na
abordagem dos temas e problemas de pesquisa, nota-se: “Aprendizagem pianística na idade
adulta: sonho ou realidade?” (COSTA, 2004). Em diversos trabalhos a motivação sempre
focada nos interesses, sonhos ou expectativas dos alunos (muitas vezes percebidos como
87
“sonhos”, algo intangível ou de difícil alcance), que tende a minimizar o papel dos professores,
instituições, familiares e amigos nesse processo. Algo semelhante a perguntar sobre o que faz
um adulto querer, se motivar, a estudar música se isso é algo tão distante para ele?
Quanto a Costa (2004) a reposta para a pergunta, se é sonho ou realidade aprender a
toca piano na idade adulta, a resposta é:
“Depende. Minha resposta não é nem afirmativa nem negativa, porque o processo de
aprendizagem, por ser pessoal, depende de uma série de fatores que estão além da
predição de qualquer professor ou pesquisador. Pode ser possível se a pessoa quiser
que ele seja, se ela estiver suficientemente motivada para isso, se estiver em boas
condições fisiológicas e emocionais, se conseguir administrar seu tempo, se estiver
disposta a enfrentar obstáculos, se estiver inserida num ambiente que a estimule e,
sem sombra de dúvida, se encontrar um professor que saiba lidar com todas essas
questões relativas ao universo do adulto. (COSTA, 2004, p. 95)
Em seguida, Gardner (1999, apud COSTA, 2004), em a sua teoria das inteligências
múltiplas aponta para o talento (usando pelo autor com o mesmo sentido de inteligência musical
na teoria de Gardner) como uma solução para da motivação, considerado um problema central
para o estudo de música para adultos segundo o autor.
A teoria das inteligências múltiplas nos dá uma grande contribuição no primeiro caso
[sobre a motivação], pois através dela podemos desenvolver a percepção de quais são
os talentos naturais dos nossos alunos, aqueles que "brotam" espontaneamente na sua
expressão, e assim direcioná-los a atividades satisfatórias. (COSTA, 2004, p. 95-95)
.
Sendo assim, “um indivíduo que se dedica a uma atividade para a qual possui algum
talento é naturalmente motivado, certamente terá progresso e evitará frustrações” (COSTA,
2004, p. 96). Essa solução reforça as representações de tradição romântica, do talento inato
como necessário para o aprendizado bem-sucedido da música.
Essa solução reduz a responsabilidade do professor, e mesmo do aluno, no processo de
aprendizagem porque é o “destino” (a sorte de ter essa inteligência de forma inata), que
determina o componente crucial para o sucesso na música e a motivação necessária à sua
prática.
Outra consequência também dessa abordagem ao mudar a palavra “talento” para
“inteligência musical” ocorre o perigo do reforço de um comportamento associado ao habitus
88
conservatorial (“o forte caráter seletivo dos estudantes, baseado no dogma do ―talento inato.
(PEREIRA, 2012, p. 124)) ser agora tratado como “fato científico”. Para Pereira (2012):
O conservatório, desde a sua criação, tem dado o tom da educação musical, instituindo
as práticas possíveis, organizando os significados, valores e ações referentes ao ensino
musical. E o consenso sobre estas práticas conservatoriais perpassa não somente os
cursos de Licenciatura em Música, como também as escolas especializadas, projetos
sociais e as representações do senso comum sobre música e ensino musical.
(PEREIRA, 2012, p. 121)
Aqui observou-se que esse habitus pode estar contido, além desses espaços citados
acima, nos trabalhos acadêmicos reforçando as representações do senso comum. Notou-se
também que, dentro do campo (BOURDIEU, 2010) da educação musical para instrumentos a
introdução de novos elementos e a disputa entre novos valores que situam a profissionalização,
o ideal de formação e o ideal de aluno, ora em uma perspectiva mais inclusiva hora em uma
perspectiva mais romântica.
É interessante notar nesse ponto que o professor com um dos discursos mais inclusivos
que demostrou plena consciência da existência de um paradigma que precisa ser transposto (P2)
indicou um aluno seu (A1) que ainda percebe claramente as representações e valores associados
a esse paradigma.
Nesse caso, isso não implica em afirmar que o discurso de um não corresponde a prática
do outro, mas que no mesmo campo que constitui a educação musical na Escola de Música da
UFRN estão em disputa valores e representações opostos com relação a um ou vários objetos.
No caso, um desses objetos é a representação social de musicalização para adultos, que
hora é vista por uma ótica mais abrangente e inclusiva, hora é vista segundo a tradição
conservatorial, que afirma que se um aluno começa no instrumento “muito velho” ele não tem
chances de crescimento ou profissionalização.
O discurso mais abrangente e inclusivo corresponde a formação de novos valores a
partir de questionamentos de pesquisadores como os da área da educação musical, tais como
Penna (2008), Pereira (2014), entre outros.
Também é formado a partir de discussões entre professores de instrumento, no entanto
nesse caso a pesquisa aponta para a existência de “ilhas” formadas pelos professores de um
determinado instrumento que, muitas vezes reproduzem entre eles os valores relacionados ao
sistema conservatorial e em outras vezes os questiona. Nota-se, o colaborador P2 afirma que
89
“hoje temos professores de [instrumento] mais preparados para serem educadores do que a vinte
anos”. Outro professor de outro instrumento já afirma exatamente o contrário:
Eu acho que no Brasil, hoje em dia, tem muito mais bons [instrumentistas] do que
bons professores. (..)grande parte dos professores hoje em dia, não só de
[instrumento], em geral, foram pessoas que tocam bem e que dão aula. A maioria não
estudou pra isso, não reflete criticamente sobre maneiras melhores de ensinar os
alunos, já vi muito preconceito com ...gente que estudou mais velho. (P1 - Entrevista
realizada em 2016).
Outros ainda afirmam que não existe discussão a respeito da musicalização no seu
instrumento entre seus pares e outros ainda que afirmam reproduzirem e concordarem com a
forma de ensinar que receberam de seus professores da graduação.
No que diz respeito a questão da musicalização na idade adulta, os professores
entrevistados que tiveram sua iniciação em uma idade considerada mais velha para o
instrumento ou já próximo da idade adulta afirmam ter uma opinião contrária ou única em
relação a seus pares.
Nesse sentido, ambos os professores nessa situação demonstram uma abordagem e uma
percepção dos alunos mais velhos segundo a experiência pessoal deles, de modo a evitar os
constrangimentos e as adversidades que passaram na sua experiência como alunos.
7.4 SOBRE O QUE SE OUVE
Os resultados dessas representações negativas a respeito das possibilidades de sucesso
no meio musical baseadas no tempo a longo prazo como um capital determinante para o sucesso
do aluno em um ideal de profissionalização restrito podem ser observados através de relatos,
de atitudes e de práticas de professores de música no sentido de dissuadir os alunos do estudo.
Por vezes, essas atitudes beiram a humilhação. A seguir relatos vividos por alguns dos
colaboradores que hoje são professores da Escola de Música da UFRN:
P1_ Eu antes de entrar aqui quando eu comecei, eu ouvi várias vezes que eu não
devia...como eu comecei com vinte aos de idade eu devia parar de tocar... e fazer
outra coisa....
_Você ouviu isso de quem?
90
P1_Foi de professores, professores de festival...isso no começo...Ouvi de muita
gente...de professores que depois vieram a se tornar meus colegas, entendeu, mas que
falaram: ‘olha profissionalizar não vai dar certo, você já está muito velho.’ Eu ouvi
isso mais de uma vez, numa época. Depois eu parei de escutar isso. Mas é... já ouvi
isso de muita gente.
Em outro momento:
“Eu cheguei, eu tava estudando a um ano [instrumento] tava tocando [método], estava
com vinte e um anos de idade e ai eu fui fazer uma audiçãozinha que todos os alunos
tinham que tocar pr’os professores, porque tinha três orquestras de três níveis
diferentes. E aí os professores botavam os alunos: ‘esse aqui é iniciante, vai pra
orquestra tal...esse aqui é avançado...’. E aí todos os alunos tinham que tocar, você
tocava uma peça e ai eles te botavam numa orquestra. E ai eu entrei na sala, eu lembro
disso como se fosse ontem, e na sala tinham três professores de [instrumento] ...dos
três professores um já foi meu colega de orquestra agora, outro é meu colega e outro
eu nunca mais vi, mas enfim...E ai quando eu cheguei eu toquei a [música] do
[método] ...tocava muito mal porque eu estava nervoso, e tal...E ai eu lembro que eles
me perguntaram, eles fizeram tipo uma entrevista comigo: ‘tudo bem? Quantos anos
você tem?’ ai eu ‘tenho vinte e um’, ‘quanto tempo você toca?’ ‘Um ano’ ai um dos
professores me perguntou: ‘por que que você toca [instrumento]? O que você faz da
vida?’ ai eu ‘faço publicidade e propaganda, comunicação social, mas esse ano eu
resolvi que quero fazer vestibular pra [instrumento] quero me profissionalizar e tal..’
E ai as pessoas falaram: ‘olha você já está velho demais...eu não conheço ninguém
que começou na sua idade e conseguiu se profissionalizar...se eu fosse você eu
continuava com a publicidade ... tratava o [instrumento] como um hobby’ ...entendeu?
Eu ouvi várias e várias dessas coisas. E entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Eu
sabia que eu queria, as pessoas nunca tinham me visto na vida. Mas com certeza eles
me falaram isso por causa da minha idade não foi porque eu toquei mal. Se eu tivesse
oito anos de idade e tivesse tocado mal eles iam falar: ‘beleza, você tem oito anos de
idade, você tem muito tempo pela frente, se preocupa não.’ (P1, grifo do autor)
Em outro caso:
Então eu tinha efetivamente, quando eu comecei [instrumento] eu tinha quinze anos.
E aí o que é que acontece, comecei a estudar comecei a gostar só que foi a coisa que
eu mais ouvi na minha vida: ‘muito tarde para começar. Muito tarde, quinze anos já
não dá mais...’. Por que? Porque todos os colegas tinham começado com sete anos,
oito anos O pessoal já tocava concertinhos de Bach, concertinhos de Haydn eu tocando
[música], né? [...] Eu tive um professor antes de [nome] que se eu tivesse
continuado com ele mais um semestre eu tinha desitido. Eu entrava na sala e ele
dizia assim: ‘tá muito velho...’ Quando você desligar o gravador eu digo quem foi.
Após a gravação segue relato do entrevistando narrando as aulas em que chegava e o
professor dizia: ‘tá muito velho para o [instrumento]’. (P5)
91
Dessa forma, se por um lado percebemos que as representações negativas em relação a
musicalização de adultos podem gerar atitudes práticas nocivas, por outro lado notou-se o
quanto essas atitudes fortalecem naqueles que as superam a percepção de que existem outras
ferramentas capazes de se contrapor à falta de tempo em anos para desenvolver os estudos de
música. Dentre essas ferramentas talvez a mais importante seja acreditar que é possível a
iniciação musical de um aluno mais velho:
Então se você quer botar seu filho de quatro anos de idade para estudar, bota. Se tiver
cinquenta e seis e quiser aprender a tocar um instrumento, aprende. Então é isso. (P1
- Entrevista realizada em 2016).
E contra tudo e contra todos, todo mundo dizendo que não dava, tudo ...eu botei na
cabeça que dava e fui. E isso, de uma certa forma foi tão bom pra mim que eu hoje
quando chega alguém mais velho eu já me vejo ali, sabe? Então eu procuro dar todo
apoio, tudo, porque eu sei que é possível. Eu acho que é possível. (P5 - Entrevista
realizada em 2016).
Acima no item 4.2 também citam-se relatos de como representações negativas por parte
da família geram atitudes extremamente nocivas para a prática musical. Também notou-se no
caso da família representações negativas associadas a ideias pré-estabelecidas de
profissionalização e trabalho, mas que naquele caso não se referem aos paradigmas do modelo
conservatorial.
92
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quanto ao objetivo geral desse trabalho - identificar as representações sociais que
mediam as relações entre a adultez e o ensino de instrumentos musicais de tradição
conservatorial na Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte na cidade
do Natal-RN – Notou-se que as representações sociais do aluno adulto iniciante de instrumento
estão associadas com a ideia de dificuldade.
Essa dificuldade está relacionada com a forma com a qual o campo da educação musical
de instrumentos de tradição conservatorial percebe o tempo como capital fundamental e
necessário para o desenvolvimento ao instrumento. Esse tempo é percebido na sua dimensão
em anos, que se relaciona com o desenvolvimento profissional e com sua dimensão em horas,
que se relaciona à prática diária ao instrumento.
De uma forma geral, quanto menos tempo o aluno tem para se desenvolver, mais difícil
será seu processo de formação e pior será categoria em que será classificado quanto estudante
de iniciação.
Apesar de fundamental, o tempo não se apresenta como elemento único necessário ao
“bom desempenho” e à profissionalização em música. Para parte dos colaboradores que tiveram
em sua trajetória que lidar com uma iniciação tardia ao instrumento, outras estratégias são
apresentadas para alcançar os resultados desejados, tais como, o foco nos estudos e a
consciência sobre o processo de ensino. Para os colaboradores que não vivenciaram a escassez
de tempo é mais difícil perceber possibilidades de profissionalização para àqueles que
começaram tardiamente.
Não notou-se diferenças entre as representações compartilhadas por professores ou por
alunos considerados adultos, os dois grupos valoram da mesma maneira o tempo de estudo e
reconhecem como difícil a iniciação de um aluno como mais idade.
A única diferença quanto as representações sociais dos dois grupos estudados nesse
trabalho (professores de instrumento e alunos de instrumentos adultos) foi que se o sujeito,
professor ou aluno, vivenciou dificuldades na sua formação que tiveram relação com a idade,
esse sujeito tende a perceber as diferenças, problemas e vantagens dessa condição.
De forma semelhante, se o professor vivenciou dificuldades com relação a idade em que
se deu a sua iniciação ao instrumento ele tenderá mais a sentir empatia pelo aluno que passa
93
pelo mesmo problema e sua percepção com relação ao ensino de instrumento tende a ser
divergente em relação aos professores de sua área e os procedimentos considerados como
negativos dos professores de sua formação.
O ideal de profissionalização que baliza a percepção, medição do tempo e sua aplicação
para o desenvolvimento do instrumento aparece associado à performance quando descrito por
professores e associado a outras possibilidades de inserção profissional quando percebido por
estudantes. Dentre essas possibilidades destaca-se a prática docente, o que vai de encontro aos
objetivos dos cursos de formação e sugere a necessidade de revisão do ideal almejado pela
instituição.
Dentro do campo de ensino de instrumentos de tradição conservatorial são encontrados
valores associados ao habitus conservatorial, como excelência na performance, mas também
aparecem com frequência valores associados ao campo da educação e pedagogia como o
princípio de adequação dos procedimentos, repertórios e métodos aos alunos e a inclusão. A
presença desses valores é positiva para a educação musical ao instrumento e deveria ser
discutida e reforçada como parte da formação ao instrumento.
Os resultados possibilitam referências a teoria das janelas de oportunidades de Gardner
(1983 apud ILARI, 2003) como apresentados por Ilari (2003), que descreve os períodos em que
as crianças parecem ter maiores facilidades para desenvolverem cada tipo de inteligência, no
caso, a inteligência musical.
As representações sociais de melhor idade para o início do aprendizado do
instrumento correspondem às representações de idade mais cedo para o início do
instrumento. É possível ainda que esse conceito, juntamente com pesquisas semelhantes, tenha
contribuído para a formação da representação de quanto mais cedo melhor para aprender
música, de modo semelhante ao descrito no chamado efeito Mozart (BANGERTER; HATH,
2004).
No entanto, a ideia complementar a essa teoria, de que o desenvolvimento de uma
inteligência não se limita apenas àquele período de abertura da janela, não aparece com tanta
força simbólica quanto a primeira representação, muito pelo contrário. Isso reforça a
necessidade de trabalhos na área de educação musical como Renner (2007), que propõe outros
olhares a respeito das relações entre adultos e a música ao longo da vida.
94
Atualmente, o paradigma do trabalho oposto ao lazer e ao desenvolvimento de
atividades criativas e prazerosas é questionado por Massi (2012) que propõe um modelo de
ocupação produtiva que possa unir o trabalho, o jogo e o aprendizado no chamado ócio criativo.
Esse modelo apresenta grande sintonia com a representação contemporânea de adulto
inacabado e com a filosofia do aprendizado ao longo da vida livelong learnig, que tem como
base proposições teóricas presentes em documentos como: Learning: The treasure within
(UNESCO, 1996).
Essas novas maneiras de abordar o trabalho e as oportunidades de crescimento, das quais
a educação musical pode fazer parte, podem contribuir para outras possibilidades de inserção
da música na vida de adultos e para a formação de novos modelos e paradigmas para a educação
musical nos quais a música possa representada em outras categorias e não apenas como um
hobby/terapia ou uma atividade profissional.
Ao realizar esse trabalho tive descobertas inesperadas, como os relatos dos
colaboradores de citaram vários colegas adultos, ou quase, que se iniciaram ao instrumento já
focados na profissionalização e que seguiram esse caminho, muitas vezes alcançando a meta.
As referências a partir da literatura sugeriam uma frequência bem menor.
Outra surpresa foi a maturidade dos discursos dos professores com relação à percepção
de sua formação e de suas fragilidades. Me surpreendeu ter hoje profissionais refletindo a
respeito de seu papel e a respeito de possibilidades de envolver os alunos no processo de
formação.
Muitos colaboradores deixaram claro que essa reflexão tinha sido fruto das lacunas na
sua formação. Essa atitude poderia ter feito a diferença na vida de muitas pessoas no passado
que abandonaram a música por não poderem se adaptar a carga de exigências imposta por
profissionais que tinham um entendimento diferente.
Um aspecto que permeia vários pontos desse trabalho é o poder simbólico e com ele a
questão da violência simbólica (BOURDIEU, 2008, 2010). Essa violência se apresenta, através
da aceitação de um arbitrário cultural por aqueles que são excluídos justamente por esse
arbitrário (BOURDIEU, 2010).
Aqui, usando arbitrário cultural no sentido de Bourdieu e Passeron (2014), como um
conteúdo que é ensinado, inculcado, através do processo educativo e que, apesar de poder ser
qualquer outro, corresponde aos interesses de uma classe dominante que detêm o poder no
95
campo. Esse arbitrário é concebido para se adequar aos interesses dos dominantes e é legitimado
através das autoridades pedagógicas e instâncias formativas, de modo que, mesmo as classes
oprimidas por esse conteúdo o consideram legítimo (“certo”) e o defendem em detrimento de
seus próprios interesses e experiências formativas.
A música europeia pode ser entendia como um arbitrário cultural. Ela corresponde aos
interesses de uma classe dominante e em vários contextos, mesmo aqueles oprimidos por esse
arbitrário ainda o consideram como modelo legítimo de música em detrimento de outras
expressões mais significativas para eles. Isso é um exemplo de poder simbólico (BOURDIEU,
2010).
A violência simbólica se dá através da coerção que esse poder exerce, a qual permite
que se obtenha “de forma quase mágica” a mesma coerção exercida pelo uso da força física, só
que aqui essa violência, por ser simbólica, é ignorada como tal porque a própria vítima a percebe
como legítima. Segundo Bourdieu (2010, p.14-15),
O poder simbólico como poder de construir o dado pela enunciação, de fazer ver e
fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, desse modo, a ação
sobre o mundo, portanto o mundo, poder quase mágico que permite obter o
equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica) graças ao efeito
específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como
arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos «sistemas simbólicos»
em forma de uma «illocutionary force» mas que se define numa relação determinada
– e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer
dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença.
O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou
de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia,
crença cuja produção não é da competência das palavras (BOURDIEU, 2010, p. 14-
15).
Será que, a ideia de que se aprende música apenas na infância não corresponde também
a um arbitrário, o qual apesar de contrariar a experiência e os interesses de muitos alunos,
corresponde a um padrão único e correto para todos?
Por fim, esse trabalho revela a necessidade de questionar a forma de perceber a realidade
e de encarar os alunos adultos iniciantes de instrumento de tradição conservatorial. Esses
questionamentos deveriam ser refletidos durante o processo de formação e estar presentes
durante a vida profissional, de preferência, incentivados por professores e instituições.
Ao longo desse trabalho, nas oportunidades que tive de expor alguns conceitos básicos
relacionados ao tema, por ocasião de congressos ou seminários, a ideia de que a “idade certa
96
para começar um instrumento”, é uma representação, embora evoque uma forte carga afetiva e
vários relatos, ainda carece de base teórica para ser compreendida e aproveitada no meio da
educação musical.
Talvez isso, possa sugerir que, além do domínio técnico no instrumento ou domínio
metodológico e pedagógico, os currículos de formação em música, tanto no bacharelado quanto
na licenciatura, possam incluir ferramentas que possibilitem ao profissional o trabalho com o
universo simbólico que cerca esse campo e a dimensão simbólica da qual a própria arte faz
parte. Nesse sentido, a teoria de Bourdieu (2008, 2010) ou a de Moscovici (2008) podem
fornecer uma base para futuros desdobramentos e pesquisas que trabalhem a dimensão
simbólica, seus problemas e conteúdos.
97
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Universidade do Estado
103
APÊNDICE A - Proposta de roteiro para entrevistas semiestruturada realizada com os
professores:
1. Sócio-culturais:
a. Qual sua faixa etária:
i. 18 a 25 anos
ii. 26 a 30 anos
iii. 31 a 36 anos
iv. 37 a 40 anos
v. 41 a 45 anos
vi. 46 a 50 anos
vii. 50 a 60 anos
viii. 60 a 70 anos
ix. Acima de 70 anos
2. Com que idade você iniciou o estudo em música?
a. Como era esse estudo? (em casa, na escola, etc)
b. Quais os motivos de você começar a estudar nessa idade?
3. Qual a idade que o senhor(a) considera melhor para a iniciação de seu instrumento?
a. Por que?
4. Seus alunos nos últimos dois anos estão dentro dessa idade?
5. O senhor acha que dependendo do instrumento, a idade melhor para a iniciação pode
ser diferente?
a. Por que?
6. Existe alguma variação na maneira de ensinar os alunos que estão nessa idade para os
que estão acima ou abaixo dessa idade?
a. Quais seriam as principais dificuldades e facilidades que acompanham essas
faixas etárias, os mais novos e os mais velhos?
7. Como o senhor(a) acha que deve ser a iniciação de alunos adultos no seu instrumento?
a. Quais são os pontos mais importantes a serem considerados? (técnica, tempo
de estudo, talento, etc)
8. Quais as vantagens ou prejuízos de se começar o estudo de música na idade adulta?
a. (Em que o senhor(a) baseia essas respostas?)
104
9. Como o senhor(a) vê a interferência do trabalho (no caso de uma aluno que trabalha)
em relação ao aprendizado do instrumento?
10. Quais os objetivos do estudo? O que ele deve alcançar, tecnicamente,
profissionalmente?
a. Como o efeito da idade pode alterar esse objetivo
11. Como o senhor vê a interferência da maternidade ou paternidade em relação ao estudo
do instrumento?
12. O senhor(a) considera que a sua visão a respeito desse assunto corresponde a dos seus
colegas professores?
13. O senhor (a) considera que a sua visão desse assunto corresponde a de seus
professores de música no período de sua formação?
14. O senhor(a) deseja acrescentar alguma coisa com relação ao tema da iniciação ao
instrumento em idade adulta?
105
APÊNDICE B - Proposta de questões para entrevista semiestruturada realizada com os
alunos:
1. Sócio-culturais:
a. Qual sua faixa etária:
i. 14 a 17 anos
ii. 18 a 25 anos
iii. 26 a 30 anos
iv. 31 a 36 anos
v. 37 a 40 anos
vi. 41 a 45 anos
vii. 46 a 50 anos
viii. 50 a 60 anos
b. Você trabalha?
i. Na área de música?
c. Têm filhos?
2. Com que idade você iniciou o estudo em música?
a. Como era esse estudo? (em casa, na escola, etc)
b. Quais os motivos de você começar a estudar nessa idade?
3. Qual a idade que o senhor(a) considera melhor para a iniciação de seu
instrumento?
a. Por que?
4. Houve alguma dificuldade no seu ingresso na Escola de Música?
a. Se houve, quais?
5. Você percebe se tem as mesmas condições de estudo de um aluno que começa
mais jovem que você ou mais velho?
a. Quais as diferenças na sua opinião entre os alunos mais velhos e mais
jovens que você?
6. Quais as suas principais dificuldades no estudo do seu instrumento?
7. Você acha que seus colegas compartilham as mesmas dificuldades suas?
a. Por que?
8. O que você deseja alcançar com seu estudo musical?
106
9. Você acha que seus professores de música compartilham de suas opiniões a
respeito de suas dificuldades e facilidades?
10. Você acha que sua família compartilha de suas opiniões a respeito de suas
dificuldades e facilidades?
11. Você acha que seus colegas de turma compartilham experiências semelhantes de
suas dificuldades e facilidades?
12. Você acha que alunos da mesma idade que você sente as mesmas dificuldades no
seu instrumento?
107
APÊNDICE C – Termo de consentimento livre e esclarecido
Convidamos o(a) Sr.(a)_______________________________________________
para participar da pesquisa de mestrado intitulada provisoriamente “Educação musical para
adultos: Representações sociais sobre idade e musicalização”, sob a responsabilidade do
pesquisador Magno Augusto Job de Andrade, devidamente matriculado (matrícula número:
2015103213) no curso de Pós Graduação (mestrado) em Música pela UFRN.
Sua participação é voluntária e se dará por meio de conversas informais e entrevistas
guiadas que poderão ser feitas em situações específicas e de seu conhecimento.
Se depois de consentir sua participação o Sr. (a) desistir de continuar participando
tem o direito e a liberdade de retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, seja
antes ou depois da coleta de dados, independente do motivo e sem nenhum prejuízo a sua
pessoa.
Os resultados da pesquisa serão analisados e publicados, mas sua identidade não será
divulgada, se assim o quiser, sendo guardada em sigilo.
Eu, _______________________________________________________________,
fui informado(a) sobre o que o pesquisador quer fazer e porque precisa da minha colaboração,
e entendi a explicação. Por isso, eu concordo em participar deste projeto de pesquisa na
condição de colaborador e pesquisado.
Data: ______/________/_______
Assinatura do participante:_____________________________________________________
Assinatura do pesquisador
responsável:_____________________________________________________