Post on 29-May-2018
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
1/22
1
DIREITOS FUNDAMENTAIS E EFICCIA
Maria Raquel Machado de Souza Thamer1
Resumo: O positivismo jurdico, nos dias atuais, apresenta limites, em especial,no que diz respeito ao entendimento das questes que se referem eficcia dosdireitos fundamentais. Uma anlise exclusivamente dogmtica no alcana aexistncia de fatos exteriores ao ordenamento jurdico, comprovando total
ineficcia dos direitos fundamentais. Analisados, todavia, por um prismainterdisciplinar, pode-se compreender melhor a ineficcia dos direitosfundamentais.
Palavras-chave: Positivismo jurdico. Direitos fundamentais. Eficcia.Ordenamento jurdico. Reviso de mtodos.
Abstract: Nowadays law positivism shows limits, especially the understandingof issues regarding the efficiency of fundamental rights. An exclusivelydogmatic analysis does not reach the existence of facts that underlie legal order,which proves the thorough inefficiency of fundamental rights. However, whenanalyzed under a multifunctional viewpoint, such inefficiency of fundamental
rights can be understood in a better way.Key words: Law positivism. Fundamental rights. Efficiency. Legal order.Method review.
Introduo
Tem a presente pesquisa o objetivo de mostrar os limites do positivismo jurdico,
para entender as questes relativas eficcia dos direitos fundamentais.2
1 Advogada, pedagoga e coordenadora e docente do Curso de Direito do Centro Universitrio Ibero-Americano (UNIBERO).2 Direitos fundamentais sero entendidos como aqueles insculpidos no Ttulo II da Constituio Federal de1988, isto , os direitos e garantias fundamentais. Em decorrncia do 2 do art. 5 da Carta Magna, podem-se tambm entender como parte desse rol no que se refere ao captulo I, isto , aos direitos e deveresindividuais e coletivos os princpios e regimes adotados pela Carta, bem como os tratados internacionais emque o Brasil seja parte.
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
2/22
2
Procurou-se entender dois pontos, como segue; primeiro, como o positivismo, como
sua anlise exclusivamente normativa, encobre causas extramuros ao sistema jurdico que
levam ineficcia quase absoluta dos direitos fundamentais; segundo, na medida em que
uma abordagem interdisciplinar pode levar a um melhor entendimento do fenmeno da
ineficcia quase absoluta dos direitos fundamentais, especialmente no Brasil.
Por outro lado, o que se pretendeu foi desenvolver um repertrio terico para alm
do estudo do direito positivo e, simultaneamente, procurar compreender criticamente o
direito como ordenamento jurdico, de forma que a capacidade de raciocnio amplo esteja
acima da simples anlise do conjunto normativo com vistas sistematicidade. Nesse
mesmo sentido, pretendeu-se desenvolver a capacidade de anlise do fenmeno jurdicocomo algo complexo, passvel e carecedor de mudanas, enraizado na sociedade, fruto da
cristalizao de valores historicamente estabelecidos sob a forma de lei. Nesse segundo
tpico, tratou-se de alargar o conceito de direito e explicitar seu contato com outros
sistemas, como o sistema poltico e o sistema econmico, para entender, por essa viso
abrangente, crtica e interdisciplinar, a questo da eficcia dos direitos fundamentais.
I. O positivismo jurdico
O incio do positivismo jurdico no ocorrer com Kelsen. Pode-se vislumbr-lo
como um movimento simultaneamente histrico e terico anterior a Kelsen. Mas o
refinamento terico, bem como os desdobramentos histricos mais significativos do
positivismo jurdico, encontram em Kelsen um forte pilar de sustentao bem como um
divisor de guas.
O movimento que institui o positivismo jurdico tem razes histricas anteriores a
Kelsen, na medida em que foi criado como resultado das aspiraes pela segurana jurdica,
por um lado, assim como com o fim da crena em direito natural, por outro. De fato, como
concebe Lafer (1991), os conceitos de direito natural, que se constituram como paradigma
do pensamento jurdico desde o sculo V a.C., sofreram uma srie de abalos que levaram ao
seu esfacelamento, principalmente a partir do sculo XIX. A criao das grandes
codificaes o Cdigo de Napoleo o exemplo mais forte nesse sentido , o aumento da
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
3/22
3
complexidade social, bem como a tomada de conscincia do direito como fenmeno
cultural e social, varivel em funo do tempo e do lugar, contriburam para a diminuio
do grau de importncia do jusnaturalismo. No mesmo sentido, o projeto vitorioso da
burguesia aps a Revoluo Francesa levou busca de parmetros aproximadamente
seguros para a prtica dos atos da vida privada. Esses parmetros podem ser entendidos
como o conjunto de leis positivadas por um poder soberano.
O positivismo jurdico tambm tem como fonte um movimento terico na medida
em que, em funo da busca de parmetros seguros para as atividades da vida privada
principalmente as comerciais , foram sendo criadas teorias que buscavam justificar a
importncia do direito como direito positivo, emanado de um poder soberano, parmetro daao e condio da paz social.
No obstante j se poder falar em positivismo jurdico antes de Kelsen, no resta
dvida de que Kelsen foi o responsvel por duas considerveis mudanas no que se pode
denominar paradigma positivista (LAFER, 1991).
Por um lado, trata-se de um autor amplamente influente na maneira de pensar o
direito no sculo XX e ainda, pode-se dizer, no sculo XXI. As teorias a respeito da
cientificidade ou no-cientificidade do direito, aps as reflexes kelsenianas, passam,
praticamente todas, pelo pensamento elaborado por Kelsen. Isso, seja para concordar com
os pressupostos e mtodos do autor, seja para refut-los. Mas isso interessa menos, isto ,
as correntes concordantes ou discordantes do pensamento positivista-kelseniano. O que
deve chamar a ateno do pesquisador interessado no direito como objeto de reflexo a
obra de Kelsen como divisor de guas na histria do pensamento jurdico. H o direito
antes de Kelsen e h o direito depois de Kelsen.
Por outro lado, Kelsen, em sua Teoria pura do direito, foi o responsvel pelo
refinamento terico do positivismo jurdico. A fora de argumentao de Kelsen, para procurar dar cientificidade ao direito, pode ser vista como o ponto alto, a partir da
perspectiva terica, do positivismo jurdico.
O autor do prefcio da primeira edio da Teoria pura do direito,de 1934, assim
se expressou:
H mais de duas dcadas que empreendi desenvolver uma teoria jurdicapura, isto , purificada de toda a ideologia poltica e de todos os elementos
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
4/22
4
de cincia natural, uma teoria jurdica consciente da sua especificidadeporque consciente da legalidade especfica do seu objeto.
Dito de outra forma: o que objetivou o autor da Teoria pura do direito? Trata-se,
como se depreende do excerto acima citado, bem como do refinamento dos conceitos
presentes na obra, de dar carter de cientificidade ao direito. Com efeito, diz Kelsen, o
direito carecia de preciso na medida em que seu estudo se manifestava como um
acoplamento confuso de diversas disciplinas que tinham por objetivo entend-lo. Isso, para
o autor, sinnimo de falta de rigor, bem como carncia de objeto especfico. Se a cincia
fsica uma cincia natural , que estuda as regularidades da physis, isto , do mundo
fsico, tem seu objeto especfico, a saber, o mundo do ser, bem como as demais cincias
tm seus objetos especficos a cincia social, o fato social, a psicologia, a mente humana
etc. , por que o direito, conforme questiona Montans (2004) ainda no teria se constitudo
como cincia?
Caberia, ento, um corte epistemolgico uma reflexo de teoria do conhecimento
para o direito como mtodo para o estabelecimento do princpio de pureza. Caberia ao
direito o estabelecimento de seu prprio objeto de estudo. Isso implicaria, por um lado, um
afastamento do direito daquilo que prprio das cincias naturais: o mundo do ser. Da
que, no prefcio primeira edio da Teoria pura do direito, Kelsen usa a expresso
purificada (..) de todos os elementos de cincia natural (MONTANS, 2004). Por outro
lado, isso implicaria, ainda segundo Montans, um distanciamento do direito de toda
ideologia poltica, isto , de qualquer noo de justia ou injustia, bem como o
afastamento em relao a qualquer noo de fato social, realidade histrica, cincia poltica
etc.
II. A busca da exatido no direito
O nus alcanado pela busca da exatido no direito apenas se explicou com as
lies da histria ocidental do sculo XX. Por meio do direito positivo, regimes totalitrios
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
5/22
5
foram implantados sob a legalidade. Kelsen, na segunda edio da Teoria pura do direito
(apud MONTANS, 2004, p. 44), ainda dentro dos postulados e mtodos, faz o seguinte
comentrio a respeito da legalidade dos regimes totalitrios:
Segundo o Direito dos Estados totalitrios, o governo tem poder paraencerrar em campos de concentrao, forar a quaisquer trabalhos e atmatar os indivduos de opinio, religio ou raa indesejvel. Podemoscondenar com a maior veemncia tais medidas, mas o que no podemos consider-las como situando-se fora da ordem jurdica desses Estados.
Dada a possibilidade, para o direito, de ser uma cincia avessa a qualquer ordemvalorativa, bem como podendo, no limite, passar ao largo de questes relativas vida de
milhares de pessoas, e ainda assim ser considerado direito, houve a necessidade de reviso
de postulados e mtodos cujo refinamento terico ocorrera com Kelsen.
Podem-se conceber dois momentos explicativos para a necessidade desse fenmeno
de reviso de mtodos e postulados do direito positivo.
Um primeiro momento o da mudana da significativa confiana nas instituies
do incio do sculo. Essa confiana sofre um abalo por razes histricas: a confiana no
Estado constitucional, na fora das instituies jurdicas, na consistncia dos ordenamentos
jurdicos e, por fim, confiana na concepo economicista da poltica. H um sculo, no
havia qualquer desconfiana no que se refere s naes organizadas sob o regime de
governo da democracia constitucional, bem como no Estado de direito, tendo em vista o
fato de que essas instituies satisfaziam s aspiraes das naes e dos Estados. Todavia,
sob essa convico, se constituram, sob a forma da mais estrita legalidade no sentido do
direito entendido apenas como direito posto pelo Estado institucionalizado , catstrofes,
como a forma institucional do nazismo e do fascismo na Europa da primeira metade do
sculo XX.
A identificao do direito ao direito normado e a confiana nas instituies foram
abaladas pelo surgimento, no limite, de regimes totalitrios absolutamente legais, que
retiravam sua legitimidade dos ordenamentos jurdicos positivados. O que, alis, no
negado por Kelsen como sendo direito, isto , os ordenamentos jurdicos dos Estados
totalitrios so direito. Kelsen, no se pode negar, absolutamente coerente com seus
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
6/22
6
postulados e mtodos. Com efeito, se a teoria do conhecimento referente ao mundo jurdico
estabelece como objeto do direito apenas e to-somente a norma positivada pelo Estado
institudo, bastante simples verificar que perfeitamente possvel, a partir do postulado de
que o direito o ordenamento jurdico, um regime totalitrio absolutamente legal.
O ponto para o qual se deve atentar : interessa ao direito, aps os acontecimentos
histricos do sculo passado, insistir nos mesmos postulados e mtodos que permitem, no
limite, ao direito, se dar mesmo em um regime totalitrio e como molde formal para sua
atuao?
Paradoxalmente, como assinala Dallari (1996, p. 28), no obstante esses
acontecimentos histricos, o ensino do direito na Amrica Latina se manifesta de formaacrtica e desvinculada da realidade social. Basta que se atente, segundo o autor, para o fato
segundo o qual o ensino jurdico oscila entre dois plos. De um lado, h uma infinidade de
doutrinas, que se do no plano das abstraes. Portanto, totalmente coerentes com mtodos
kelsenianos, isto , estudo de normas com vistas sistematizao do ordenamento. De
outro, h as aulas que consistem em meras informaes sobre artigos de lei. Nessas, o
professor se limita leitura do texto normado, leitura que seguida por comentrios, no
mais das vezes superficiais, que nada acrescem ao sentido j explcito na leitura do artigo
de lei.
No mesmo sentido, curiosamente, as propostas inovadoras trazidas pela
Constituio Federal de 1988 (CF/88), bem como pela legislao a ela posterior um
exemplo a lei 8078/90, isto , o Cdigo de Defesa do Consumidor, continuaram a ser
estudadas luz dos conceitos positivistas kelsenianos. Com efeito, o estudo dos direitos
fundamentais, assim como o estudo dos conceitos inovadores de tutela coletiva de direitos
direitos difusos, coletivos e individuais homogneos , continuaram a ser mera tentativa de
sistematizao das leis com vistas ao ideal de coerncia lgica do ordenamento jurdico,
objetivo ideal a ser alcanado pela cincia do direito, por meio de seus estudiosos cientistas,
isto , doutrinadores do direito positivo.
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
7/22
7
III. A eficcia do direito
A questo da eficcia, dados os postulados e mtodos positivistas de estudo do
direito o estudo acrtico, como afirma Dallari na obra citada (1996) , deixada de lado,
o que ocorreu por uma deciso deliberada, funo do corte epistemolgico, o qual
estabeleceu como objeto de estudo da cincia do direito apenas e to-somente as normas
positivadas pelo poder soberano. No por acaso, portanto, do ponto de vista kelseniano, o
fundamento do direito, no limite, no pode ser o fato social, nem mesmo a poltica ou a
histria. A razo simples: esses campos foram excludos, por uma deciso de teoria do
conhecimento, do campo cientfico do direito. Da a polmica teoria da norma hipottica
fundamental, fundamento lgico e ltimo de todo o ornamento jurdico, tautologia
necessria e resultado do mtodo: deve-se obedecer ao ordenamento jurdico porque se
deve obedecer ao ordenamento jurdico.
Isso no implicaria, entretanto, a sada absoluta da questo da eficcia do plano
jurdico. Para que o direito seja um ordenamento, necessrio que ele tenha um mnimo de
eficcia, isto , um mnimo de aplicabilidade no mundo ftico.
Mesmo que normas isoladas no tenham eficcia alguma, seu conjunto oordenamento jurdico de um Estado deve passar pelo crivo da mnima eficcia para que
possa ser considerado direito.
O que se pode concluir, porm, que a questo da eficcia, em Kelsen, como
representante forte do positivismo jurdico, aparece apenas como violao do corte
epistemolgico. Com efeito, se esse mesmo corte foi o responsvel pela excluso do fato
social da anlise do fenmeno jurdico, em nome da cientificidade, com que razo pode o
fato social entrar como uma instncia ad hoc para que a teoria se sustente?
Sem querer entrar em pormenores conceituais, aquilo para o que se quer chamar a
ateno o fato de que o conceito de eficcia aparece apenas de forma indireta na teoria
positivista kelseniana. No problema substantivo.
No obstante os direitos e garantias fundamentais, insculpidos na CF/88, bem como
o surgimento de conceitos que tutelam direitos coletivos, no passou a haver um estudo
interdisciplinar para entender razes exteriores ao direito e que seriam e so
condicionantes de seu funcionamento, de sua eficcia.
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
8/22
8
Em outras palavras: a eficcia dos direitos fundamentais, ou melhor, a implicao
das normas do mundo dos fatos, no ser entendida se no houver um estudo do fenmeno
jurdico que se d tambm fora das amarras do positivismo jurdico. Um estudo meramente
normativo no conseguir explicar que fatores histricos, sociolgicos, polticos e
econmicos levam quase absoluta inexistncia, no mundo real no mundo das pessoas de
carne e osso, vale dizer, no mundo do ser ou dos fatos , de eficcia das previses gerais e
abstratas das normas que instituem direitos fundamentais.
Assim, a questo do direito como fenmeno axiolgico-ftico condio necessria
e talvez suficiente para que se entenda, verticalmente, a relao entre direitos
fundamentais, como previses normativas gerais e abstratas, por um lado, e a questo daeficcia desses direitos, por outro. A eficcia dos direitos fundamentais, com efeito, para
ser efetivamente compreendida, demanda duas ordens de reflexo: em primeiro lugar, uma
compreenso do fenmeno jurdico de forma ampla; em segundo lugar, o estudo de outros
sistemas o poltico, o econmico, o histrico , como fundadores de ordens normativas e,
nesse sentido, dos direitos fundamentais.
Dessa forma, apenas como exemplo da complexa e imbricada relao entre direito
positivo e outros sistemas, Faria e Kuntz (2002), ao analisar as novas formas e funes do
direito, diz, a respeito do lugar dos direitos fundamentais na sociedade contempornea, que
uma das tendncias a regresso tanto dos direitos sociais quanto dos direitos humanos.
Como os direitos humanos nasceram contra o Estado, no intuito de diminuir ou mesmo
coibir sua interferncia arbitrria na esfera dos indivduos, e como as garantias
fundamentais apenas podem ser instrumentalizadas de modo eficaz por meio do poder
pblico, um problema se apresenta.
Tendo em vista uma outra tendncia do direito, o enfraquecimento da soberania do
Estado, em funo da fora de instncias internacionais, e mesmo em funo do poderio das
empresas transnacionais, como poder esse Estado, cujo poder se v enfraquecido, aplicar
polticas pblicas com vistas eficcia dos direitos fundamentais? Isso implica, por
conseguinte, o enfraquecimento do prprio conceito de cidadania e soberania. O mesmo
ocorre com os direitos sociais, visto que o Estado passa a se preocupar antes com questes
como inflao, dficit das contas pblicas, dvida externa e interna, cmbio e juros, e menos
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
9/22
9
com questes relativas a polticas pblicas para a efetivao, ou seja, a eficcia dos direitos
sociais.
Como se pode comprovar, a presente pesquisa se justifica por sua abordagem
interdisciplinar do direito. Apenas se compreender a questo dos direitos fundamentais e
de sua eficcia a partir do momento que as amarras do direito como conjunto de leis isto
, como apenas e to-somente direito positivo, estudo de normas positivadas sejam
desfeitas. Como corolrio, o direito se v exposto a um amplo leque de questes que com
ele se envolvem, bem como o determinam.
Como visto, apenas para instigar a reflexo sobre a democracia contempornea,
podem ser formuladas as seguintes indagaes: como se pode falar em democracia nomomento em que grande parte dos cidados se v excluda do corpo poltico? Ainda se
pode falar em corpo poltico quando os ditos cidados so sujeitos apoltico (COSTA,
2000), isto , tm apenas uma prtica cidad formal? Uma democracia apenas formal na
qual a participao poltica consiste em que se vote de tempos em tempos pode ser
chamada de democracia? Uma democracia representativa seria mesmo uma democracia?
No seria, em vez disso, uma oligarquia, isto , uma aristocracia que se transformou em
oligarquia porque houve transferncia da potncia do corpo poltico para as mos de
poucos.
Faz sentido que se pense a democracia em uma sociedade dominada pelos interesses
das empresas transnacionais3 e, ainda nos casos dos pases em desenvolvimento, por
polticas econmicas de organismos internacionais? Qual o verdadeiro campo de ao
poltica das democracias de pases em desenvolvimento? O estreitamento do campo de ao
poltica no representaria a anulao da democracia representativa? Uma democracia pode
suportar os altos graus de excluso social e baixos nveis de participao poltica sem se
degenerar em tirania travestida de democracia? Que conseqncia poltica de aes
3 O termo transnacional perfeitamente abrangente para designar a organizao das corporaesempresariais no campo internacional. O termo multinacional no mais atende o fenmeno. Pode-se entenderhoje, por multinacional, uma empresa que atende mltiplos Estados. Sua manufatura se estabelece em pasesem que a mo-de-obra farta e barata, porm seus diretores se estabelecem em pases que do formaointelectual mais slida a seus cidados.
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
10/22
10
humanas se d, em larga medida, no campo estrito do privado? Um regime democrtico
pode suportar altos graus de violncia imediata4 e mediata?
IV. Evoluo histrica do direito positivo
Na segunda metade do sculo XX, o direito foi entendido como direito positivo, ou
seja, um conjunto de leis emanadas do Estado segundo normas para produo de normas
por pessoas em funo legislativa constituindo, assim, o ordenamento jurdico, que foi
demasiadamente revisitado, mormente no que se refere a seus postulados e mtodos.
O estudo do direito como direito positivo chegou a apoteose de seu momento
terico com Kelsen em sua Teoria pura do direito. Sabe-se que Kelsen teve como
objetivo principal de sua obra fazer que o princpio de pureza fosse aplicado ao direito
como condio de sua cientificidade. A autonomia do direito frente s demais cincias
deveria ser alcanada para que o direito no se tornasse o recinto em que todas as cincias
tm participao, tornando a anlise do fenmeno jurdico algo obscuro e ausente de
cientificidade. A conseqncia dessa relao muito prxima entre o direito como direito posto e psicologia, sociologia, moral, histria, entre outras disciplinas, seria a perda da
exatido e objetividade para o direito. Nesse sentido, o direito no poderia ser uma cincia
rigorosa.
Como visto, o significado do direito seria encontrar seu objeto de estudo, para alm
das cincias naturais, haja vista que o direito no uma cincia como objeto no mundo do
ser, mas tem a peculiaridade de ter como objeto de estudo o dever ser, o que significa dizer;
a conduta positivada
e, simultaneamente, para alm de qualquer conceito metafsico dedireito natural, de qualquer valorao tico, poltica, prxima de um conceito de justia.
4 Entenda-se por violncia imediata o conjunto das prticas coibidas pelos institutos de direito penal, comoroubo, furto, latrocnio etc. Pode-se entender por violncia estrutural ou mediata condies histricas e muitasinstitucionalizadas, que impossibilitam uma prtica cidad, tal como a impossibilidade, a todos os cidados,de um mnimo cultural crtico para o exerccio da ao tica, bem como um mnimo material para amanuteno da dignidade humana.
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
11/22
11
Sendo o dever ser, objeto da cincia jurdica, a norma posta instituda pelo Estado
seria a expresso da vontade do legislador. Eis a a matria bruta do direito, que cincia
jurdica caberia lapidar por meio da sistematicidade prpria a toda cincia. Kelsen explicita,
em sua Teoria pura do direito, que o direito no detm a exclusividade no mundo do
dever ser, uma vez que a moral tambm se apresenta como mandamento da conduta.
Todavia, deve-se lembrar que a moral tambm formada por um conjunto de padres de
comportamentos, em que no h uma instncia responsvel pela aplicao da sano que,
no limite, pode utilizar a fora fsica. Quando se trata de direito, o Estado e alguns rgos,
a instncia responsvel pela aplicao da sano caso haja infrao da norma, ou seja,
ocorra o comportamento ilcito, inclusive o uso da fora fsica, se necessrio.Nessa senda, Kelsen define o objeto da cincia do direito como norma positivada
pelo Estado, sua pedra bruta, pois se trata da vontade do legislador objetivada. Ressalte-se
tambm que a moral, com seu conglomerado de padres de conduta, muitas vezes advindos
da tradio, no se confunde com a tica. Kelsen entende a tica como cincia, cujo objeto
de anlise sua matria prima a moral. Logo, assim como a cincia do direito tem
como objeto a vontade do legislador objetivada, a cincia tica, para Kelsen, tem por objeto
moral.
V. A crise da organizao estatal e os novos direitos
No interstcio entre 1976 e 1990, o Brasil dobrou sua populao, quando se
consolidou o processo de industrializao substitutiva dos anos 1940 sob a direo do
Estado instrumentalizado, entre outros dispositivos, por uma complexa malha de incentivo,subsdios, crditos favorecidos, zoneamento de mercados, proteo tarifria etc. Como se
pode perceber, foi implantado um modelo de investimento centrado no poder incontestvel
dos investidores, organizados, e planejador do Estado; ao longo de todo o perodo histrico
o pas reestruturou-se ocupacionalmente e reordenou-se socialmente. Tal processo trouxe
como conseqncia um desordenado e incontido processo de migrao e urbanizao,
quando as desigualdades sociais ganharam vulto e expresso, donde pode-se constatar a
eroso das identidades coletivas, dos grandes agregados sociais.
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
12/22
12
A infra-estrutura social do pas acarretou agressividade de comportamentos, a
emergncia de estruturas paralelas, mormente o aparecimento de novas demandas por
segmentos sociais desfavorecidos e ausentes de gerao de receita. A conseqncia mais
significativa dessas alteraes advindas de forma atabalhoada a ineficcia de uma ordem
jurdica em face da emergncia de novos comportamentos a rigor ilegais, frente essa mesma
ordem. Essa sociedade modernizada no garante espaos para a permanncia de instituies
obsoletas e, simultaneamente, h que se refletir no sentido de que as rotinas e os atores
conseqentes do cenrio que se apresenta no permitem desvendar a distribuio do poder
especfico no ordenamento jurdico apto a atender as novas demandas sociais.
Como se v, o ambiente social apresenta-se conflitante sob a forma de presses emfavor de gastos pblicos, o que acarreta expressivo acrscimo da carga tributria para
atend-los; isso comprova fato gerador de uma sria e conseqente crise fiscal, ao criar
impostos de legalidade duvidosa, destinados ao financiamento de polticas sociais, em
princpio para amenizar os conflitos sociais entre os extremos da desigualdade. Trata-se,
portanto, de um regime discriminador e inquo.
Acrescente-se que os fatos relatados no assolam somente a sociedade brasileira. As
diferenas quantitativas e qualitativas esto presentes na sociedade global como um todo. O
crime organizado, por exemplo, muito mais complexo do que qualquer fenmeno
aparentado que se tenha conhecido em outros tempos. O trfico de drogas, o contrabando
de armas e os mecanismos de lavagem de dinheiro compem uma economia paralela que
ultrapassa de longe, em complexidade e em sofisticao, os velhos e eficientes sistemas
utilizados pela Mfia e organizaes semelhantes.
Outro fato advindo da modernidade o terrorismo internacional, para o qual deve-
se encaminhar uma leitura de expressiva relevncia. Seu alcance, suas novas estratgias e
sua organizao levaram os governos de forma indeclinvel adoo de novas respostas,haja vista que os velhos sistemas de segurana nacional se comprovam ineficientes diante
desse novo adversrio. Invadem-se outros Estados, em forma de retaliao ou de
preveno, quando o inimigo opera em rede, dispe de ativos distributivos pelo mundo e se
articula como organizao no governamental.
Pode-se afirmar que o terrorismo e o crime organizado em redes internacionais so
duas novas dimenses da ilegalidade, que afetam a segurana dos Estados por vrios
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
13/22
13
processos que ultrapassam seus meios de controle. Contudo, os ordenamentos jurdicos
globais tambm se multiplicam em desafios s novas formas tradicionais de organizao
poltica.
Held (2003) afirma que, no nvel internacional, ocorrem disjunes entre a idia de
Estado inicialmente como capaz de determinar o prprio futuro e a economia mundial, as
organizaes internacionais, as instituies globais e regionais, o ordenamento jurdico
internacional e as alianas militares que operam para restringir as opes dos Estados-
naes individuais.
O mesmo autor apresenta disjunes caractersticas do mundo atual. A primeira
advm das condies de operao da economia, que limita a eficcia dos meios tradicionaisda poltica econmica e, por extenso, da autoridade formal do Estado. Isso no significa
dizer que as polticas fiscal e monetria tenham perdido utilidade, tampouco que as
polticas de desenvolvimento tenham perdido sentido. Na realidade, o que verdadeiramente
ocorre a integrao cada vez mais estreita dos vrios mercados, que sujeita as economias
s conseqncias das decises tomadas fora do territrio nacional. Nesse cenrio, podem-se
acrescentar direitos associados regulao de mercados que tendem a perder eficcia, uma
vez que se alteram as condies de proteo dos detentores formais dos direitos
trabalhistas, por exemplo.
O segundo segmento de disjuno apontado por Held assenta-se entre a teoria do
soberano e o sistema global contemporneo: um impossvel mensurvel conjunto de
regimes e organizaes internacionais estabelecidos para administrar reas inteiras de
atividade transacional e problemas coletivos de poltica. A influncia desses regimes e
organizaes varivel e a obedincia a suas normas e diretrizes no constitui,
necessariamente, uma perda de soberania. Em muitos casos, a interveno dessas
instituies ocorre por solicitao do governo interessado. Todavia, vista desse contexto,h uma grande tenso entre a idia de Estado soberano e a natureza das decises em nvel
internacional. Essa tenso ganha expressiva relevncia no caso de associaes, a exemplo
da Comunidade Europia, com mandato para legislar para todos os pases membros. Cabe
ressaltar que os poderes da Comunidade originaram-se de uma entrega voluntria de
aspectos de soberania pelos pases que a compem, deciso que garantiu a sobrevivncia da
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
14/22
14
nao estado europia, diante da dominao dos Estados Unidos no ps-guerra do
expoente econmico em que se colocou o Japo.
Na terceira disjuno, pode-se dizer que ope as normas internacionais, ainda que
no sustentadas por instituies com poder de coero, s condies tradicionais de
autonomia legal dos Estados. A idia de que nenhum Estado est sujeito a jurisdio
externa vem sendo substituda por tratados ou acordos internacionais e at mesmo
contestado por tribunais internacionais; logo, de concluir a existncia do hiato que hoje se
apresenta em face da soberania dos Estados.
A quarta disjuno apresenta-se no contraste entre a idia obsoleta do Estado como
unidade militar e estratgica independente e a existncia de grandes potncias e de blocosde poder, a exemplo da Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN), que qualifica
de maneira diferente cada Estado em razo dos compromissos assumidos com a
organizao e das caractersticas transgovernamentais envolvidas na operao e em suas
decises.
Observe-se que o cenrio descrito por Held (2003) ainda se finca na idia de
Estados soberanos, porm dotados de menor autonomia. Registra os fatos e prope a
construo de uma nova ordem democrtica devidamente adequada a essas novas
condies e demandas.
Deve-se concluir, contudo, que a soberania no resultado somente de mudanas
tecnolgicas, econmicas, estratgicas e organizacionais que afetam a hodierna sociedade
internacional. Essas mudanas, entretanto, vm sendo acompanhadas de uma reavaliao da
soberania como valor, o qual foi aceito de forma incondicional, porm raramente
contestada do ponto de vista de sua eficcia.
Nos dias atuais, a contestao da soberania centra-se na questo dos direitos
humanos, da proteo do ambiente, da ajuda humanitria e at mesmo da constituio dasoberania de Estados fracos. O enfoque dado aos Estados fracos advm do ataque ocorrido
em 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos; as aparentes fraquezas so concretamente
ameaadoras para os Estados fortes, pois acabam transformando-se em abrigos para o
extremismo e a alimentao do terror.
No que tange transnacionalizao dos mercados, pode-se deparar com um
processo com mltiplas faces e paradoxal que caminha em ciclos, na mudana dos
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
15/22
15
paradigmas tecnolgicos e da criao de estruturas polticas internacionais capazes de
disciplinar os fluxos de comrcio de capitais.
Quanto maior se apresenta a expanso das inovaes tcnico-cientficas, de
aumento da diversidade dos bens e servios e do potencial de explorao da natureza, maior
a possibilidade da obteno de resultados no pretendidos e no previstos e maiores as
incertezas, as dvidas, as perplexidades e os perigos em relao a seus efeitos e gesto de
seus desdobramentos, especialmente no que se pode pensar em matria de bem-estar social
e segurana econmica. Quanto maior o avano da engenharia econmica, maior a
possibilidade de degradao econmica, bem como dos demais segmentos da humanidade
como um todo, comprometendo sobretudo o futuro das geraes futuras.Tais acontecimentos so ocasionados por foras transnacionais impossveis de
identificao, portanto igualmente difceis de serem penalizadas pelas tcnicas
convencionais de preveno e segurana; esses riscos ultrapassam fronteiras, classes sociais
e geraes. Dessa forma, indiscutivelmente ocorre a coliso frontal com o prprio conceito
de cidadania limitado nao, dito de melhor forma, a todas as pessoas que residem num
dado territrio. Por extenso, tambm pe em xeque as normas jurdicas e os mecanismos
judiciais de imputao, culpabilidade e punio forjados pelo direito positivo nos ltimos
150 anos. Os danos morais e materiais causados pelas contingncias so danos
potencialmente no indenizveis, colocando assim as instituies jurdicas e judiciais do
Estado-nao contemporneo, com jurisdio transcrita de forma territorial, frente ao
desafio de criar alternativas institucionais e oferecer respostas nacionais para questes de
ordem global, de modo a enfrentar esses problemas com o mnimo de efetividade.
Outra conseqncia a flagrante reduo da margem de autonomia das polticas
macroeconmicas nacionais e o esvaziamento das polticas monetrias independentes, em
razo da dolarizao crescente da economia mundial. Na medida em que o comrciomundial ultrapassa a produo industrial global, na qual os mercados de insumos, bens
manufaturados e servios se integram escala global e a competio nesses termos ganha
espaos mais acirrados, na qual a oferta do crdito alcana patamares internacionais, os
capitais se tornam mais volteis e a possibilidade de riscos sistmicos que afetam o
sistema financeiro cresce e, por extenso, as incertezas no que se refere liquidez
dissolvem a confiana sustentvel dos passivos financeiros globais. As instituies
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
16/22
16
financeiras passam a utilizar meios de pagamento de modo a facilitar transaes, reduzir
custos, controlar as finanas internas etc.
importante perceber a indiscutvel tendncia dos agentes financeiros dos
mercados globais a dolarizar suas atividades, encaminhando-se para uma harmonia
internacional das diferentes formas de ativos e auferio de rentabilidade.
sabido que a moeda apresenta-se como um dos mais emblemticos e tradicionais
smbolos polticos e econmicos de soberania e nacionalidade e, no contexto em comento,
acaba por ser privatizada.
Uma terceira e grave conseqncia reside no aumento, em progresso geomtrica,
do alcance da velocidade do processo de diferenciao socioeconmica, ocasionando aformao de esferas e nveis de ao diversificados, especializados e interdependentes. Na
sociedade informacional subjacente economia transnacionalizada, em maior escala os
sistemas administrativo, tcnico, cientfico, produtivo, comercial e financeiro se
fragmentam em novas especializaes. Ao atuar em reas especficas subsistemas , cada
um define suas prprias regras e procedimentos normativos, neutralizando, assim,
interferncias de outros subsistemas.
Essa autonomia funcional dos diferentes subsistemas amplia notoriamente a
complexidade do sistema jurdico, sobretudo o trabalho de produo normativa por parte do
legislador, no sentido de encontrar uma medida neutralizadora, por meio de regras gerais e
abstratas, com especial relevncia aos mecanismos processuais rgidos e hierarquizados, s
presses, s tenses e aos conflitos decorrentes dos vnculos pluridimensionais entre os
diferentes nveis sociais. Ressalte-se que a legislao existente se efetiva de modo
condicionado aceitao de suas prescries, justamente pelos distintos sistemas que ela
deveria disciplinar, enquadrar, regular e controlar. Pode-se entender com isso que a
autonomia funcional , por definio, auto-regulao, comprometendo a aplicao dodireito positivo.
Relevo se deve tambm dinmica da reorganizao industrial, da reordenao dos
espaos econmicos e dos novos padres tcnicos, gerenciais e organizacionais do
capitalismo globalizado, bem como fragmentao que se comprova nos meios de
produo. Esse fato particularmente importante porque, no mbito da nova diviso
internacional do trabalho, em que os sistemas flexveis de automao e gesto maximizam a
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
17/22
17
capacidade de articulao entre inovao cientfica, criatividade decisria, fluxo do
processo industrial, comercializao, finanas, publicidade e desenvolvimento, o
acirramento da competio levou empresas e conglomerados a procurarem extrair todos os
efeitos possveis da localizao de suas unidades fabris, no sentido do custo da mo-de-
obra, preos de matrias-primas, incentivos fiscais, subvenes estatais, neutralizaes e
presses trabalhistas, inexistncia ou inefetividade de leis ambientais. Isso acaba resultando
num policentrismo decisrio que hoje caracteriza a economia globalizada, com hierarquias
flexveis, entidades nacionais e supranacionais hbridas e estruturadas de comando
diferenciadas e diversificadas, e o crescente predomnio da lgica financeira sobre a
economia real; o estado-nao vem sendo substitudo pelo mercado como instncia decoordenao da vida social.
Em conseqncia, a transnacionalizao dos mercados, os conflitos de interesses e
os poderes constitudos pelos agentes econmicos levam os governos a perderem a
capacidade de esgotar os recursos tributrios da economia interna, de pensar
estrategicamente o futuro, de estabelecer objetivos em longo prazo, de garantir condies
fsicas mnimas indispensveis a qualquer projeto de crescimento, de promover a idia de
justia pela ao fiscal e de assegurar bases fundamentais de sua legitimao, no plano
poltico das instituies democrticas com forte tendncia ao esvaziamento.
Do ponto de vista social, a distncia a que o Estado tem condies de realizar seus
feitos de maneira a atender a sociedade ganha feies assustadoras no plano institucional. A
questo da soberania nos moldes traados pelo Tratado de Westflia, no sculo XVII, como
supremacia, incondicionalidade, inalienabilidade, indivisibilidade, centralidade e unidade
do Estado, so progressivamente enfraquecidos. Conseqentemente, no plano jurdico, o
direito positivo e as instituies judiciais passam a enfrentar enormes limitaes estruturais.
A maior e mais significativa de todas as limitaes apresentadas assenta-se nareduo de uma parte expressiva de sua jurisdio. As normas e cortes encarregadas de
aplic-las foram concebidas para atuar dentro dos limites territoriais; todavia, seu alcance e
sua eficcia encontram-se nitidamente diminudos na proporo em que as interaes
globais se aprofundam e se intensificam, mormente pelo intercruzamento de novos centros
de poder, assumindo o risco de rompimento do vnculo entre cidadania e nacionalidade, e
em que novas identidades locais e regionais, projetos especficos de natureza poltica e
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
18/22
18
social e novas formas de vida e de convivncia, forjadas em torno de uma proeminncia dos
direitos s razes, vo emergindo.
A celeridade desse processo vem acarretando ao direito positivo e aos tribunais uma
ntida dificuldade de superar os dficits de funcionalidade e rendimento, sendo, por esse
motivo, atravessados em seu papel garantidor de controle da legalidade por justias
paralelas e normatividades justapostas.
As questes emergentes nos espaos infra-estatais, advindas das necessidades reais
de diversos setores sociais, cujos interesses substantivos e expectativas normativas j no
so mais recepcionados nas instituies jurdico-judiciais oficiais, so postas em prtica,
haja vista, pela adeso a um amplo conjunto de diretrizes comportamentais sem qualquerinterferncia estatal.
A justia e as normas soforjadas fora do ambiente supra-estatal e/ou supranacional,
produto de processos de convergncia legislativa, harmonizao normativa, padronizao
tcnico-organizacional e unificao burocrtica prprias do fenmeno da globalizao
econmica, formao dos grandes blocos comerciais, s experincias de integrao
regional, proliferao de instituies intergovernamentais e multiplicao de
organismos transnacionais no emanados diretamente da autoridade dos Estados.
Pode-se, com isso, perceber o crescimento dos mais variados procedimentos
negociais, mecanismos informais e rgos paraestatal de resoluo de conflitos, sob a
forma de tcnicas de mediao, conciliao, arbitragem, autocomposio de interesses e
auto-resoluo de divergncias e at mesmo da imposio da lei do mais forte nas regies
perifricas sob inteiro controle do crime organizado e do narcotrfico direito marginal,
contradireito.
importante perceber que o protagonismo das relaes internacionais, como se
apresenta, no mais exclusividade dos Estados nem mesmo das instituiesintergovernamentais, razo pela qual outras normas se expandem com celeridade. Uma
delas o corpo de prticas, costumes, regras, cdigos de conduta, clusulas contratuais,
termos padronizados e princpios mercantis forjados por empresas de diferentes portes nas
redes transnacionais, com o objetivo de conduzir e disciplinar suas transaes criando
critrios, mtodos e procedimentos para a resoluo de conflitos no comrcio internacional.
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
19/22
19
Outra normatividade que merece relevncia composta pelo conjunto das tcnicas
desenvolvidas para atender s exigncias de padres mnimos de qualidade, transporte e
segurana dos bens e servios em circulao no mercado transnacionalizado.
Na mesma senda, outra limitao estrutural do direito positivo e suas instituies
judiciais refere-se discrepncia entre seu perfil arquitetnico e a crescente complexidade
do mundo contemporneo. Suas normas tradicionalmente padronizadas, editadas com base
no princpio da impessoalidade, da generalidade, da abstrao e do rigor semntico e
organizado sob a forma de um sistema unitrio, lgico, fechado, hierarquizado, coerente e
posto como isento de lacunas, so por demais simplistas para atender a pluralidade social
da atualidade global.O formalismo excessivo dirige-se no sentido de impedir a viso da complexidade
socioeconmica, bem como a percepo da celeridade com que caminham os conflitos,
sobretudo em contextos delineados por alteraes tambm cleres, chegando at mesmo
radicalidade.
Os princpios gerais, as regras e os procedimentos adotados j no conseguem
regular, disciplinar nem controlar, acarretando distores significativas em todos os
segmentos sociais.
Ressalte-se tambm que muitas das prescries assentadas em sanes de carter
punitivo-repressivo, aplicadas por tribunais submetidos a ritos processuais excessivamente
detalhistas e bastante morosos, so incompatveis com as exigncias de celeridade,
flexibilidade e adaptabilidade dos novos paradigmas de produo e dos novos padres de
funcionamento dos segmentos sociais globalizados.
Nesse sentido, o Estado no pode deixar os conflitos ocorrentes desprovidos de
controle, sob pena de colocar em risco a estabilidade e a coeso social, o que o leva a
recorrer cada vez mais a conceitos jurdicos indeterminados, a normas de carter programtico com textura e tipologia abertas, o que descaracteriza os tradicionais papis
exercidos pelos princpios do direito para a resoluo dos casos difceis. Deve-se tambm
apontar para a edio sucessiva de normas ad hoc para casos que guardam em seu bojo a
mais absoluta peculiaridade, fornecendo respostas pragmticas a questes pontuais e
imediatas. Quanto mais a produo normativa caminha nese segmento, mais aumenta o
nmero de textos legais com alcance bastante circunscrito do ponto de vista territorial e
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
20/22
20
espacial, o que acaba por gerar presses disfuncionais sobre os tribunais, ocasionando uma
expanso por demais confusa e contraditria do direito positivo.
Concluso
Como se pode concluir, o estilhaamento dos espaos polticos e sociais
anteriormente unidos pelos mecanismos coercitivos das instituies estatais, na dinmica
do processo de globalizao excludente, parcial, redundou na reduo do tamanho do
alcance do direito positivo; a paralela expanso do Direito Internacional decorreu na
emergncia do Direito da Integrao Regional ou comunitrio.
O Direito da Produo fez ressurgir a Lex Mercatoria, a proliferao de normas
tcnicas produzidas por organismos multilaterais e o direito marginal, melhor dizendo, a
norma autoproduzida em guetos, vigentes hoje na cidade do Rio de Janeiro e nas favelas da
cidade de So Paulo, nos cintures da Cidade do Mxico, Bogot, Lima, Caracas, Buenos
Aires e Johanesburgo; a ordem jurdica contempornea encontra-se nitidamente
fragmentada nos mais diversos sistemas normativos independentes e simultaneamentecolidentes entre si justia paralela.
Diante de todas essas afirmativas, pode-se indagar se factvel continuar agindo e
pensando com base no paradigma formalista e normativista at hoje prevalecente nos meios
jurdicos tradicionais, nos centros de operao do direito e nas instituies em que ocorre o
ensino do direito.
As crescentes dificuldades enfrentadas pelos cursos jurdicos para compreender e
enfrentar a evoluo da complexidade social, econmica, poltica e cultural, o vaziointelectual como resposta s realidades emergentes e aos problemas delas resultantes, a
incapacidade de pensar o impensado, as mudanas ocorridas tanto no arcabouo quanto no
contedo dos sistemas legais e a crise generalizada dos direitos conduzem a uma resposta
negativa. Indaga-se, contudo, quais seriam as alternativas possveis para esses paradigmas.
Como revitalizar o ensino jurdico que, organizado em bases frgeis e incapazes de atender
as contingncias da realidade, leva confrontos doutrinrios a se converterem em
verdadeiros campos de batalha profissional e, por extenso, a academia?
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
21/22
21
Com base no fenmeno da transnacionalizao dos mercados e das configuraes
histrico-sociais e jurdico-institucionais por ele produzidas, como a perda progressiva da
autonomia do Estado na fixao de suas decises e a notria impotncia dos governos para
impor limites ao jogo econmico e formular polticas fincadas no atendimento do interesse
geral, alguns doutrinadores apresentam suas teses de uma educao jurdica despolitizada,
ou seja, de um ensino jurdico estruturado na acriticidade a servio da lgica mercantil e da
racionalidade gerencial subjacente aos imperativos da economia globalizada. Nesse sentido,
o direito tem sido visto como um conhecimento de natureza tcnico-instrumental,
estruturado na tica da eficincia, o que encarrega o jurista e os doutrinadores do
fornecimento do instrumento terico e do suporte prtico necessrios tanto na operaoquanto na sua justificao do direito.
Por outro lado, o direito tem sido concebido como instrumento de emancipao e
promoo de incluso social, de garantia da autonomia do mundo da vida com relao ao
mundo da moeda, de recusa de pensamento nico e do globalismo economicista de
fortalecimento de uma esfera pblica pluralista, de constituio de modos de vida
livremente compartilhados, de reafirmao dos valores da liberdade, igualdade, da
solidariedade e da justia social.
Diante do cenrio de transformaes arquitetnicas na seara jurdica, bem como de
suas instituies judiciais, quais so as possibilidades que cada um desses pr-paradigmas
efetivamente tem de tomar o espao at hoje ocupado de modo hegemnico pelo
formalismo e pelo normativismo nos cursos jurdicos?
Referncias
ANDRADE, Fernando Dias. Pax spinozana: direito natural e direito justo em Espinosa.Tese de Doutorado (Filosofia). So Paulo: Universidade de So Paulo, 2001.
BRAGA, Luis Carlos Montans. Democracia necessria: ontologia, direito e liberdade emEspinosa. Dissertao de Mestrado (Filosofia). So Paulo: Universidade de So Paulo,2004.
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e democracia. So Paulo: Max Limonad, 2000.
______. O direito na sociedade complexa. So Paulo: Max Limonad, 2000.
8/9/2019 Eficacia e Direitos Fundamentais
22/22
22
COSTA, Jurandir Freire. A tica e o espelho da cultura.Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
DALLARI, Dalmo. O poder dos juzes. So Paulo: Saraiva, 1996.
FARIA, Jos Eduardo. Sociologia jurdica: crise do direito e prxis poltica. Rio deJaneiro: Forense, 1984.
______. O direito na economia globalizada. So Paulo: Malheiros, 2002.
______; KUNTZ, Rolf Nelson. Qual o futuro dos direitos? So Paulo: Max Limonad,2002.
HELD, David. Democracy, the Nation State and the Global System. In: KUNTS, Rolf.Repblica, direitos e ordem global. Lua Nova Revista de Cultura Poltica, n. 60, 2003.KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3. ed. Trad. Joo Cretella Jr. e Agnes Cretella.So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
______. Teoria pura do direito. 6. ed.Trad. Joo Batista Machado. So Paulo: MartinsFontes, 1998.
LAFER, Celso. A reconstruo dos direitos humanos. So Paulo: Cia. das Letras, 1991.