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ESCOLARIZAÇÃO E DESIGUALDADE SOCIAL: Violência nas ruas e nas salas de aula do Jardim Europa (Toledo - PR)
Autora: Ivone Maria Simonato1
Orientadora: Sheille Soares de Freitas2
Resumo
Esse artigo apresenta os resultados do projeto de pesquisa intitulado “Escolarização e desigualdade social: violência nas ruas e nas salas de aula do Colégio Estadual Jardim Europa”, desenvolvido durante o ano de 2011. O interesse é destacar alternativas e debates construídos sobre as relações dos jovens envolvendo o convívio no bairro e na cidade de Toledo-PR. As experiências dos estudantes e familiares motivaram a organização do projeto, a realização e avaliação final desse processo, que se expressa nesse artigo. Muitas vezes, as tensões e enfrentamentos que possuem ao viverem desigualmente a cidade, seja pelas condições sociais, seja pelas expectativas profissionais e estudantis que constroem/abandonam acabam por motivar relações de poder violentas como resposta à realidade que enfrentam. Na última década isso tem se intensificado, acarretando brigas, mortes, prisões, envolvimento com drogas, em proporções preocupantes, levando a observar com mais afinco essas questões. Foi esse eixo de relações contraditórias dos estudantes do Colégio Estadual Jardim Europa que tentei destacar como desafio profissional e investigação privilegiada nesse trabalho.
Palavras-Chave: Violência; Desigualdade Social; Jardim Europa.
Introdução
Em 2007 a decisão de não realizar o recreio escolar como espaço de
sociabilidade dos estudantes no Colégio Estadual Jardim Europa indicava como a
situação de conflito entre alunos, com profissionais da escola e pessoas da
1 Mestre em Ciências da Educação, Professora de História da Secretaria de Educação do Estado do
Paraná, Pós-graduação em História do Brasil, lotada no Colégio Estadual Jardim Europa Toledo. 2
Doutora em História, Professora Adjunta do Curso de História/UNIOESTE, Campus de Marechal Cândido Rondon.
comunidade, era preocupante. Com essa medida, a redução das brigas foi de 80%,
o que implicou em avaliar como eram os enfrentamentos rotineiros na escola.
Mas, a menção final que acompanha a matéria, divulgada no jornal Folha de
São Paulo, ao mesmo tempo em que justifica a ação, coloca sobre os que vivem no
Jardim Europa uma condição de culpabilidade por ser um local violento, retirando a
dinâmica de desigualdade social em que se veem inseridos:
O Jardim Europa é um dos bairros mais violentos do município de Toledo, na região oeste do Paraná. Levantamento feito pela diretoria da própria instituição de ensino aponta que 58 jovens que estudavam ou já tinham saído da escola foram assassinados no bairro entre
2002 e 2007. A causa: acerto de contas entre grupos rivais.3
Diante disso e do conjunto de experiências acumuladas como docente dessa
Instituição, esse artigo aponta as motivações e os debates promovidos em sala de
aula durante o curso PDE sobre as práticas de violência no Colégio e no bairro
Jardim Europa em Toledo-PR.
O enfrentamento dessa questão instiga a procurar recompor o processo em que essas práticas são formuladas e produzidas como possibilidades de relação social, incluindo o ambiente familiar e de relações de poder mais amplas em que a visibilidade destas disputas e exposição de fragilidades são exploradas, como a discriminação pelo como e onde se vive4
Os estudantes durante o projeto de implementação se posicionaram sobre
essa prática da escola e indicaram como essa restrição indicava, não o fim do
recreio, mas um olhar atento para o que vivenciam na escola e fora dela: “Minha
opinião é que a atitude do professor Eudes foi boa porque no colégio estadual
Jardim Europa está tendo menos brigas, mortes, tráfico, etc. Eu já ouvi falar de
brigas, tráfico de drogas e mortes dentro e fora do Colégio.”5, assim como Luciano,
que indicou: “Acho que foi bom [retirar o recreio], pois diminuiu bastante as
ocorrências na escola, como tiros na frente do colégio e dentro dele.”6
O Bairro Jardim Europa, onde está localizado o Colégio, foi formado por um
conjunto de loteamentos que se constituíram a partir de meados da década de 1970,
3 VALLE, Dimitri do. Escola de Toledo veta recreio no pátio e reduz violência em 80%. Folha de São Paulo [online], 14 de maio 2010. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u735505.shtml, Acesso em: abril de 2011. 4 SIMONATO, Ivone M. Escolarização e Desigualdade Social: violência nas ruas e nas salas do
Jardim Europa. (Toledo-PR). Projeto de Intervenção, PDE/UNIOESTE/SEED-PR, 2011, p. 06. 5 Karoline (pseudônimo), Atividade de implementação, setembro 2011. 6 Luciano (pseudônimo), Atividade de implementação, setembro 2011.
como também de mutirões realizados em 1988 (29 casas) e 1990 (324 casas). O
que indica a presença de trabalhadores no bairro e que vivenciaram certo
empobrecimento na década de 1980.7
É importante destacar que hoje parte desses antigos moradores residem no
local. O bairro apresenta uma grande rotatividade da população e, sendo
trabalhadores, avaliam as possibilidades de trabalho para se manter ou mudar para
bairros vizinhos e até mesmo para outros lugares, como Mato Grosso, Rondônia,
Movimento Sem Terra, e ainda para o país vizinho, Paraguai.
O interesse é destacar como e por que a violência se relaciona com o modo
de vida dos trabalhadores de bairros “populares”, sendo estes considerados, muitas
vezes, “perigosos”. A intenção foi problematizar esse estigma e identificar os limites
de mudança dessas relações violentas, como também as pressões que mantêm
essas práticas como algo comum na rotina dos bairros e escolas de famílias de
trabalhadores na sociedade contemporânea.
Ao fazer isso, as relações familiares, as condições e expectativas de vida
desses estudantes farão parte do enredo em que se situa mortes, agressões e
vícios, como também necessidades, lutas e sonhos ao frequentar a escola e viver no
Jardim Europa.
Aprendendo a viver no Jardim Europa: violência e desigualdade em questão
O conceito de violência oferecido por Chauí é bastante abrangente e
provocativo sobre a reflexão proposta, sobretudo ao ser utilizado na análise de
relações de poder:
Entendemos por violência uma realização determinada das relações de força, tanto em termo de classes sociais, quanto em termos interpessoais. Em lugar de tomarmos a violência como violação e transgressão de normas, regras e leis, preferimos considerá-la sob dois outros ângulos. Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade, com fins de dominação, de exploração e opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação que
7 Prefeitura Municipal de Toledo, contrato de posse da casa nº 18, 1987.
trata um ser humano não como sujeito, mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência. 8
A colocação da autora ajuda a pensar como a condição de desigualdade
pressiona posicionamentos frente à exploração, distinções que muitas vezes
violentam aqueles que reconhecem as injustiças presentes no modo como vivem e
se relacionam. Durante as atividades que traziam à tona as interpretações dos
estudantes sobre as práticas de violência na escola e no bairro, em alguns
momentos foram mencionados o modo como avaliavam a postura de outros
moradores da cidade quando indicavam ou poderiam indicar que viviam no Bairro
Jardim Europa, “Quanto a questão de trabalho muitas pessoas procuram emprego e
quando falam que moram no Jardim Europa a empresa nem chama para fazer a
entrevista”.9 Assim como a avaliações como a de Pedro:
Não é só nesse bairro que acontece esse tipo de coisa, mas como o é bairro de maioria classe baixa é mais divulgado as brigas, mas elas acontecem em qualquer lugar a diferença é que nem sempre isso é divulgado, há pessoas que aproveitam os alunos do Colégio para fazer o que não é certo.10
A crítica a essa visão dos que moram no Jardim Europa é construída pelo seu
próprio convívio na cidade “Mudar de colégio é pior pois fica difícil o aluno fazer
amizade, quando sabem de que bairro veio” (Pedro) e, muitos deles, reconhecem
que a imprensa contribui para manter essa distinção, divulgando massivamente que
o bairro é violento e onde os bandidos estão.
O pai ou mãe que fala na letra D [É muito importante conhecer a história do bairro porque de repente a mídia, o jornal, comunica coisa lá fora que não é a verdade], fala uma coisa que na maioria das vezes é verdade, por que o jornal ou mídia não falam realmente a verdade. ou o que acontece, sempre aumentam um pouco para denegrir o lugar.11
8 CHAUÍ, M. Participando do Debate Sobre Mulher e Violência. In: CHAUÍ, Marilena; CARDOSO,
Ruth; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Perspectivas antropológicas da mulher. Volume 4. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 35. 9 Caio (pseudônimo), Atividade de implementação, setembro 2011.
10 Pedro (pseudônimo), Atividade de implementação, setembro 2011.
11 Rita (pseudônimo), Atividade de implementação, setembro 2011.
Mas a perspectiva de avaliar o bairro levou Regina a reconhecer a presença
de uma condição difícil para certos trabalhadores, colocando ai certa parcela da
dificuldade e notoriedade que o bairro tem, por distinção de classe:
Eu acho um pouco também por causa da pobreza, nosso bairro tem família muito carente muito pobre, aí às mães vão trabalhar os filhos ficam sozinhos e ela não pode manter a casa, tem família que não vai pra esse lado, eles criam ali, mas têm uns filhos que vai pra esse lado, eu penso que se o bairro fosse mais rico um pouco não acontecia tudo isso.12
Mesmo que na avaliação de alguns trabalhadores como Regina, que vivem no
bairro há cerca de 30 anos, a avaliação seja de que esses problemas lhes são
externos, “igual aqui do Jardim Europa, aqui é um lugar bom, lá no centro acha que
tudo o que acontece é aqui no Jardim Europa, eu criei meus filhos aqui e não tenho
o que reclamar, graças a Deus até agora são gente boa então não tenho o que
reclamar”, é possível observar como na criação dos filhos, na ausência familiar por
horas de trabalho, há o reconhecimento do receio sobre o que poderia acontecer
com esses adolescentes.
Regina ao mencionar a condição do bairro, associa esta às condições dos
trabalhadores que vivem no Jardim Europa; aos problemas vivenciados nas ruas,
lares e escolas, como a morte de tantos jovens nos últimos anos, destaca pelo
diretor da escola na matéria do jornal destacado no início deste texto. A condição de
“pobreza” que menciona durante a entrevista, se formula avaliando a ausência dos
pais em casa em razão do trabalho, as condições de moradia, sustento.
Regina faz essa avaliação julgando sua própria condição, mencionando suas
dificuldades com o filho, seja quando não tinha tempo para ficar com ele, “Quando
eu mudei aqui os meus filhos estudaram na André Zenere aqui era bem melhor,
porque os meus pias foram criados sozinhos, eu tinha que trabalhar e eles
estudaram no André Zenere graças a Deus nunca vi nada era um bairro bem
sossegado em vista de hoje.”, ou quando este decidiu parar de estudar.
olha o meu menino não queria ir ao colégio, ele tinha 17 anos, o conselho vai vim atrás, não da mãe, eu não vou estudar, o prof. Eudes veio falar e eu falei para o conselho “eu não posso pegar ele e levar no colégio, se fosse pequeninho levava, mas com 17 anos vai dar um tapa?”, então ela falou para mim, “ele não vai estudar e a
12
Regina (pseudônimo), Entrevista realizada pela autora, agosto 2011.
senhora vai pagar a cesta básica” e é justo isso, não é? Aí ele foi pro colégio de volta. Então é como eu falo, a maioria das vezes quem guia os filhos são os pais, eu sempre falo aqui em casa, um pouco vem da criação, porque os filhos eles fazem chantagem pros pais e eles [pais] ficam com medo, que não vão pro conselho, não dão um tapa, porque o conselho vem atrás e assim fica tudo errado.13
Mas o que fazer diante da fala de Regina sobre sua atuação com o filho?
Somente quando o Conselho Tutelar determinou o pagamento de cestas básicas, a
volta do filho para a escola aconteceu, seja porque o gasto indicaria reduções no
orçamento da família, seja porque o filho teria que arcar com tal despesa. A
indicação que sempre há diálogo, não retira de questão que em casa se evite pautar
ações conflitantes ou, muitas vezes, os receios que avizinham o cuidar dos filhos
(vícios, desistência dos estudos, prostituição etc.) que pressionam para que os
consentimentos aconteçam.
Uma das atividades desenvolvidas com os estudantes da 8ª série e familiares
foi a Palestra e debate com o Juiz da Vara da Infância e Família. Ao debater com os
alunos e seus pais sobre a violência, ele procurou mostrar aos pais que a lei é bem
diferente do que se comenta por aí, deixou claro o que acontece com os filhos e pais
que chegam até sua sala de audiência, sugerindo que esse momento deve ser
evitado e, por isso, era necessário mudar a postura de pais e filhos. Pediu aos pais
que não se deixem levar pelo constrangimento dos filhos.
Porém Regina, durante a entrevista destaca as limitações que a própria lei
coloca ao restringir o trabalho dos jovens e os castigos dos pais:
Eu acho que um pouco é a violência com os jovens e depois os pais não podem dizer nada com os filhos, não pode por prá trabalhar porque a própria lei não deixa e daí, trabalhar não podem, mas usar drogas, roubar eles podem, a lei não permite que eles trabalhem, igual a mim graças a Deus eu não tive problemas com meus filhos até hoje, só que foram criados bem rígidos eu quando dava um tapa neles eu falava que quem manda aqui em casa sou eu, enquanto vocês estiver aqui no meu teto quem manda sou eu.14
Talvez o Promotor não estivesse fazendo nenhuma revelação que os pais e
filhos não soubessem, mas provavelmente há outros elementos que atuam para
dificultar posturas mais firmes sobre a criação dos filhos, como, por exemplo, a
condição de ficarem ausentes durante grande parte do tempo em que os filhos estão
13
Regina (pseudônimo), entrevista realizada pela autora, agosto 2011. 14
Regina (pseudônimo), entrevista realizada pela autora, agosto 2011.
expostos a propostas de ganhos em maior vulto e com contraditórias “facilidades”
para adquirir certa visibilidade que altere ou dispute com a compreensão do lugar
onde vivem.
Ao pertencer e circular por certos grupos, convivendo com uma rotina que
nem sempre sua condição de classe permite acesso, nova expectativas vão
formulando alternativas, pouco tranquilas, de conviverem com as normas indicadas
pelo Promotor. Seu José destaca que “a primeira escola tem que ser na família e os
alunos que não tem uma boa educação em casa lá na escola é muito difícil, o pai e
mãe que tem 2 ou 3 filhos é difícil, então pior”.15
Aumentar conflitos familiares, muitas vezes, fortalece a aproximação e
vivência de possibilidades que, como diz Méllani, está sempre muito acessível, “tem
droga dentro da sala, tem, mas ninguém é obrigado a usar, usa só quem quer [...] é
só os pais virar as costas que os filhos viram um diabo.” (Méllani (pseudônimo),
Atividade de implementação, (setembro e outubro 2010), ou mesmo como destaca
Cristian “Eu acho que muitos alunos entram na violência por causa da família”
(Cristian (pseudônimo), Atividade de implementação, (setembro e outubro2011)
O Promotor indicou, como uma autoridade externa, erros na relação familiar,
isentando de sua colocação as pressões sociais que atuam para a promoção da
violência. Elegeu como seus interlocutores a serem “orientados” familiares e
estudantes, destacando o desrespeito, a vulgaridade e ausência dos pais e/ou
responsáveis como explicação para a realidade dos jovens hoje.
Abramovay e Ruas (2003) apontam que um dos fatores que dificulta a análise
da violência escolar é que não existe consenso sobre o significado da violência. A
caracterização da violência pode variar em função do estabelecimento escolar, bem
como por quem é descrita, se por professores, alunos, diretores, etc, havendo,
também, variações em função da idade e sexo. Além disso, isolar essa análise por
espaço físico, não apreende a complexidade de relações e pressões que os
estudantes vivenciam para avaliar suas práticas e os sentidos que atribuem à escola
nesse bojo.
Silva16, ao definir indisciplina escolar, afirma que todas as vezes que um aluno
desrespeita as regras da instituição é considerado indisciplinado. Ainda para este
autor, a violência é considerada também uma forma de indisciplina, a mais
15
José (pseudônimo), entrevista realizada pela autora, setembro 2011. 16
SIVA, N. P. Ética, Indisciplina & Violência nas Escolas. São Paulo: Edição Própria, 2003.
preocupante na atualidade. Acredito que, muito mais que “indisciplina”, “violência
escolar”, ou um “desvio de conduta”, temos em questão sentidos e significados
sendo construídos e/ou confrontados com práticas que regulam esse modo de agir
sem atentar-se às privações e motivações que são forjadas cotidianamente em
relações desiguais, convívio familiar tenso e inconstante, falta de expectativas em
relação às possibilidades de alterar sua condição social, trabalho etc.
Segundo Charlot17, o conceito de violência escolar pode ser classificado em
níveis. No primeiro deles, estaria a violência propriamente dita, cuja definição mais
se aproxima daquela do senso comum, representada por golpes, ferimentos,
violência sexual, roubos, crimes, vandalismo, etc. O segundo nível seria o das
incivilidades, cuja forma de expressão seriam as humilhações, as palavras
grosseiras, a falta de respeito, etc.
Finalmente, no terceiro nível, teríamos a violência simbólica ou institucional,
compreendida como a falta de sentido de permanecer na escola por tantos anos; o
ensino como um desprazer, que obriga o jovem a aprender matérias e conteúdos
alheios aos seus interesses; as imposições de uma sociedade que não sabe acolher
os seus jovens no mercado de trabalho; a violência das relações de poder entre
professores e dos professores, a obrigação de suportar o absenteísmo e a
indiferença dos alunos.
A existência da Patrulha Escolar no país aponta como vem sendo
encaminhada a resolução da violência na escola ou nos portões das instituições
escolares. O que, de certo modo, não tem favorecido o fim das agressões, mas
indica que, em grande medida, temos associado essas ações como uma questão de
polícia, principalmente nas escolas públicas e em bairros tidos como “populares”.
O diretor do Colégio Estadual Jardim Europa aponta uma relação de parceria
com a comunidade e a Patrulha Escolar, que atua no em torno do Colégio, "Todos
aqui têm o mesmo objetivo: dedicação total ao ensino e à aprendizagem, contando
para isso com a participação da comunidade e com o apoio das associações de
moradores, o que nos permite trabalhar com segurança".
O incômodo com as razões de se vivenciar essa realidade não aparecem, as
relações que são construídas para se entender esse processo demandam diálogo,
17
CHARLOT, B.. CHARLOT, Bernard. Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Porto Alegre,
Artmed, 1997.
nem sempre tranquilos e possíveis, mas o diretor apresenta que esse é um costume
da instituição, "Fazemos reuniões frequentes com os pais. Se o aluno apresenta
uma mudança de comportamento, chamamos os responsáveis na escola para
conversar e, se não vierem, vamos até a casa dele".18
O grande desafio dessa proposta é apresentar essa condição social e
perceber possibilidades para mudança desse modo de se relacionar e construir
relações de poder, pensando em possíveis mudanças na relação professor-aluno e
entre os próprios estudantes. Ao analisar os valores e práticas desses estudantes e
familiares no intuito de entender que os chamados problemas educacionais
ultrapassam os muros das escolas e são produzidos no que é experiência e
condição comum para disputar espaço, modo de viver e sobreviver.
Para Paulo Freire, este processo é apresentado como sendo necessário
constatando a realidade de maneira crítica, não para adaptar-se ao mundo, mas ao
constatá-la em sua “feiúra”, perceber-se capaz de interferir para construir o mundo
de nossos sonhos, mais humano: “A leitura crítica do mundo é um que fazer político-
pedagógico [...] A denúncia e o anúncio criticamente feitos no processo de leitura do
mundo dando origem ao sonho porque lutamos”. 19
Muitas vezes, a indicação de hábitos de castigos e “rigidez” são reconhecidos
como preocupação e presença dos familiares nas práticas desses estudantes, tidas
como mais eficientes, até mesmo pelos próprios estudantes:
Eu gostei das respostas dadas nas perguntas das letras C, E, F, porque nesses depoimentos os pais falaram que foram rígidos com os filhos, por isso agora eles são pessoas de bem, que estudaram e trabalham e que nunca tiveram problemas, pois é melhor bater num filho de pequeno prá mais tarde eles serem pessoas honestas e dignas do que não impor nem uma lei, deixar os filhos livres para depois se tornarem ladrões, traficantes.20
Há ainda uma relação direta entre rigidez e jovens trabalharem para não
estarem expostos a outras práticas. A aceitação dessa combinação fortalece, em
grande parte, a disciplina para o trabalho e este como fim último para as
possibilidades dos estudantes, filhos de trabalhadores, até mesmo em avaliações
dos próprios pais, que se veem pressionados a avaliar que melhor os jovens no
trabalho do que disponíveis ao tráfico, roubo, prostituição, “o 1º passo que nós
18
Entrevista com o diretor do Colégio Estadual Jardim Europa, 2007. 19
FREIRE, Paulo. 1979, p.49. 20
Pedro (pseudônimo), Atividade de implementação, setembro 2011.
precisávamos é arrumar trabalho porque as pessoas que tem trabalho não têm
tempo pra pensar, por isso a juventude fica na rua porque não pode trabalhar”.21
O colégio localizado no Bairro Jardim Europa, oferece Ensino Fundamental
(do 6º ano ao 9º ano e para o ensino Médio e Técnico) tem cerca de 1400 alunos. O
colégio obteve uma melhora significativa no IDEB – Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica – passando de 4,6 em 2005, para 5,2 em 2007. "Temos violência
no entorno do Colégio, mas quando o aluno chega para estudar, procuramos
entender a realidade dele [...] Transmitimos tranquilidade e eles se sentem seguros
dentro do Colégio”22, destaca o diretor, indicando que a maior preocupação é manter
o interesse dos alunos na aprendizagem.
Para isso, foi amplamente discutido entre gestor e docentes formas de
valorizar a produção das turmas. Uma das estratégias foi a instalação de murais nos
corredores do Colégio onde são expostos os materiais preparados pelos estudantes
ao final de cada projeto didático e cultural, como o que fizemos durante a
implementação desse projeto.
Nesse trabalho, as entrevistas que realizaram provocaram momentos em que
se sentiram pequenos diante das respostas colhidas, sendo confrontados com suas
próprias ações e sentimentos, “Eu mudei a respeito de notas escolares, mas nas
atitudes que piorei. Antigamente eu era mais quieta, não pensava em sair de casa
em nem um instante, era a filha perfeita, mas hoje eu discuto com meus pais e saio
a hora que quero.”23
As questões foram trabalhadas pelos alunos em grupo, entrevistaram
pessoas jovens e de idade mais avançada. As respostas colocaram em questão
suas práticas, as dificuldades familiares, o modo como vivem e o resultado da
violência, muitas vezes se sentiram envergonhados das respostas que tinham que
escrever ou analisar.
De acordo com o gestor, um ponto fraco é não conseguir a manutenção da
equipe de funcionários por mais de um ano, "Aqui, a rotatividade de professores é
grande”, temos 90 docentes, explica o diretor. O que dificulta conhecer os
estudantes, a realidade do bairro para que o trabalho seja contínuo e não apenas
uma exposição de conteúdos em sala. Se o Promotor indicava a responsabilidade
21
José (pseudônimo), entrevista realizada pela autora, outubro 2011. 22
Entrevista com o diretor do Colégio Estadual Jardim Europa, 2008. 23
Lisandra (pseudônimo), Atividade de implementação, setembro 2011.
de pais e estudantes pela irregularidade nos estudos, brigas e vícios dos estudantes,
a direção indica que o “compromisso da equipe com a educação” é o que determina
o “bom desempenho da escola”24.
Essas abordagens não mencionam a participação do Estado no conjunto de
tensões que os motivam a esse diálogo e explicação, não mencionam as políticas
educacionais, as condições de vida de trabalhadores empobrecidos como parte
desse processo. Para recompor valores deteriorados e conseguir estimular os
jovens a enfrentar os limites de expectativas para sua vida, a escola não pode
ignorar a violência em suas próprias práticas e precisa trazer as questões do mundo
para a sala de aula e debater soluções com seus alunos. Como destacadas por
Caio,
Na escola atualmente muito se fala em educação de qualidade, é uma da deficiência no país a educação de qualidade pois os jovens usam a escola não como meio de ensino, mas como lugar de ser contra professores e colegas e porque não dizer contra si mesmos.25
Alunos agredidos, livros roubados, alunas assediadas, funcionários
humilhados, ofensas entre professores e alunos, estudantes mortos. Todos esses
são exemplos de situações internas à escola que precisam ser enfrentadas com a
mesma firmeza com que debatemos os conflitos que permeiam seus muros e as
casas desses estudantes, com agressões domésticas, abandono dos pais,
problemas com vício entre familiares, dívidas, desemprego. Se em um primeiro
momento essas questões podem não aparecer, ao longo da conversa, Regina deixa
demonstrar como o campo de possibilidades de problemas com os filhos é
compartilhado com outros que considerou terem mais problemas:
Ah eu também acho que professores e pais tem que ser mais amigos com a família porque se o filho da gente falar da escola a resposta da gente é conversar com o professor e se o filho da gente mata aula o professor tem que telefonar avisando a gente, olha o teu filho não está vindo na escola, comigo aconteceu, meu filho meu filho não porque era ruim, mas não frequentava a aula aí o que a gente tem que fazer, o filho é filho, então nessa hora os professores foram muito bons, inclusive a senhora e também os outros professores, eles ligaram pra mim.26
24
Entrevista com o diretor do Colégio Estadual Jardim Europa, 2008. 25
Caio (pseudônimo), Atividade de implementação, outubro 2011. 26
Regina (pseudônimo), entrevista realizada pela autora, outubro 2011.
Assumir essa experiência não foi fácil durante a entrevista, mas ao indica-la
como algo que foi superado tornou possível mencionar tal enfrentamento com a
“rebeldia” do filho, pois ao final, ele seguiu um “bom caminho” permitindo relativizar
esse momento de tensão, valorizando sua atuação com os professores e direção
que impediram problemas maiores.
Numa sociedade violenta, a escola deve se contrapor abertamente à cultura
de agressões, eis a colocação da direção para as reuniões com pais e mestres. Algo
que também foi compartilhado com outros professores, no GTR – Grupo de Trabalho
em Rede – realizado durante o programa PDE, composto por professores de outras
escolas públicas no Paraná que se interessaram em acompanhar o desenvolvimento
do projeto e discutir suas possibilidades e diálogo com o que enfrentam nas
instituições em que trabalham:
Muito oportuna essa contribuição para ajudar nos debates com os alunos, pais, professores e direção sobre o tema muito presente nas salas de aula nos dias atuais. Vejo o nosso trabalho de docentes muito prejudicados diante desses inoportunos momentos que acontecem nas escolas hoje. A violência esta tomando conta do respeito, da dignidade e da ética dos estudantes. Eles não se preocupam com o conhecimento, mas com a disputa.27.
Ao retratar tal colocação o professor Guido apresenta uma preocupação com
o espaço da sala de aula e destaca o elemento que mais se enfatiza na sociedade
atual, a disputa. Se reconhecermos que as disputas se dão desigualmente, a
utilização de relações de poder onde isso se efetiva, muitas vezes, torna comum e
natural ser violento, associando classistamente essa noção a quem a exerce e como
ele visto e socialmente avaliado.
Para uns isso pode indicar ser competitivo e atuante no mercado de trabalho
e nas relações sociais, para quem se confronta com as pressões capitalistas, vai
depender de onde mora, que trabalho exerce, ou seja, como vive, para que isso
signifique, em muitos momentos, falta de cidadania, desordem, perigo. Os
estudantes reconhecem esses enfrentamentos no seu dia a dia enquanto uma
contradição, que recoloca suas expectativas perante os limites de classe: “No
mundo de hoje há pessoas que desistem dos sonhos antes de sonhar. E ainda há
pessoas que pensa que tem a capacidade de conseguir realizar seus sonhos.”28
27
Prof. Guido (pseudônimo), Atividade GTR, 2011. 28
Gregório (pseudônimo), Atividade de implementação, outubro 2011.
Dizia Jéssica, em uma de suas produções sobre a violência na escola e o
modo como vivem: “Somos muito novos para enfrentar esta dura realidade”.29
Imagino que mudanças devem acontecer e, com certeza, a disposição para produzir
mudanças deve ser incentivada também na sala de aula.
Considerações Finais
Após realizar esse trabalho, proposto no projeto do curso PDE - 2010
“ESCOLARIZAÇÃO E DESIGUALDADE SOCIAL: Violência nas ruas e nas salas de
aula”; com as leituras e discussões de textos sobre o problema enfrentado pelos
estudantes e seus familiares neste espaço de convivência nos anos de 2006 a 2011,
muitos estudantes concordaram com as medidas tomadas pelos pais e direção do
colégio, desde a retirada do recreio ao compromisso de repensar suas escolhas e
como enfrentar as desigualdades e as dificuldades familiares.
Os alunos leram os textos, analisaram as entrevistas, discutiram em grupos
sobre os filmes, imagens e matérias sobre práticas de violência e consideraram que
muitas ações devem ser repensadas. Precisam encontrar outra forma de viver e
pensar o que querem para ter disputa socialmente por uma vida melhor, eles
perceberam que não dá para construir um mundo de fantasias, precisam mudar o
jeito de falar, pensar, se comunicar e analisar melhor suas amizades e onde andam.
Ao assistirem o filme “Entre os Murros da Escola”30; ficaram muito indignados
com o que viram, pois conseguiram aproximar a realidade do filme com a do Colégio
em que estudam. Como resultado, surpreendiam os professores nos corredores
para discutirem respostas urgentes de mudança, isso deixou grande parte dos
docentes, muito satisfeitos com o andamento do projeto e o que o acúmulo do
debate estava promovendo.
Esse trabalhou alterou a visão de mundo que eles possuíam e estavam
querendo uma transformação nas relações na escola e que pudessem também
29
Jéssica (pseudônimo), Atividade de implementação, outubro 2011. 30
CANTET, Laurence. Entre os muros da escola. Roteiro de: Laurent Cantet, François Bégaudeau e Robin Campillo, baseado em livro de François Bégaudeau. França, 2008, 1DVD, 128 min., color.
incluir alterações nas suas relações afetivas com familiares. Aprender a ver os
problemas sob vários ângulos, sem apenas eleger culpados, permite que se
aproxime desses jovens e indique o potencial que possuem para transformações
suas relações sem serem desqualificados por uma avaliação autoritária de seus
atos, o que comumente acontece quando são julgados pelo que fazem, pelo onde e
como vivem.
Fizeram criticas à mídia, ao governo e a certas relações na cidade, de
trabalho, sociabilidade e com a própria escola. Este trabalho não irá resolver os
problemas sociais que vivenciamos na sociedade capitalista contemporânea, mas
permitiu abrir para o debate e estimular ações que alterem a leitura e forma de se
enfrentar a desigualdade nas famílias de trabalhadores, em particular, no bairro
Jardim Europa, em Toledo.
FONTES
- Discussões promovidas no GTR, 2011.
- Atividades de Implementação, setembro 2011.
- CANTET, Laurence. Entre os muros da escola. Roteiro de: Laurent Cantet, François Bégaudeau e Robin Campillo, baseado em livro de François Bégaudeau. França, 2008, 1DVD, 128 min., color.
Entrevistas realizadas pela autora (José e Regina, setembro e outubro 2011)
- Entrevista realizada com o Diretor do Colégio, 2007.
- VALLE, Dimitri do. Escola de Toledo veta recreio no pátio e reduz violência em 80%. Folha de São Paulo [online], 14 de maio 2010. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u735505.shtml, Acesso em: abril de 2011.
REFERÊNCIAS
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