ESPAÇOS DE REBELDIA: O PUNK NA CIDADE DE SÃO PAULO … · 2015-10-12 · O ano é 1982. O Brasil...

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Sessão temática Cidade ­ 76

ESPAÇOS DE REBELDIA: O PUNK NA CIDADE DE SÃO PAULO (1982)

Andre Abreu da Silva1

Resumo: O trabalho proposto pretende construir um resgate histórico de espaços de práticas do

movimento punk na cidade de São Paulo. O ano de 1982 testemunhou a erupção do punk no cenário

cultural local. Jovens oriundos predominantemente dos subúrbios e das periferias de São Paulo, os

punks se organizaram como movimento, ocupando espaços, produzindo festivais e demarcando

locais de sociabilidade. Para a realização deste resgate, serão utilizados os materiais produzidos pelo

próprio movimento, como gravações musicais, panfletos, publicações, documentário em vídeo,

entre outros. Materiais historicamente datados e reapropriados como fontes documentais para a

produção deste trabalho. Para alcançar o objetivo proposto, contextualizamos os integrantes do

movimento punk, como sujeitos da História, nas dimensões temporais e materiais da cidade.

Palavras-chave: São Paulo; rebeldia; movimento punk.

A emergência de uma expressão rebelde da juventude

Falando muito baixo não vai adiantar

Porque para vencer nós temos que gritar

Gritar com forças pra ganhar

Muitos temem a hora de falar

Mas se não há jeito

Nós temos que gritar!

(CÓLERA, Gritar, 1982).

O início da década de 1980, como período de transição histórica na vida social brasileira, foi de

consecutivas crises econômicas, profunda instabilidade social, e acompanhada de febril

efervescência política. Invariavelmente, a agitação nestes campos demonstra alinhar-se intimamente

com as manifestações culturais e os costumes populares. Esta circularidade entre as diversas formas

de produção e reprodução culturais, e os acontecimentos nas esferas institucionais das organizações

sociais, econômicas e políticas, têm neste período evidências nítidas destes diálogos.

Os países ocidentais, em especial os europeus, experimentavam desde o final da década de 1970

uma onda de governos economicamente liberalizantes (HOBSBAWN, 1995 p. 394), que tentavam

responder a uma série de crises cíclicas das economias capitalistas iniciadas a partir dos primeiros

1 Universidade Estadual do Centro Oeste - UNICENTRO.

Mestrando em História e Regiões - PPGH.

Sessão temática Cidade ­ 77

anos da mesma década. Foram empreendidas ações de flexibilização de leis trabalhistas e uma

diminuição constante do controle econômico estatal e das políticas públicas sociais, para um novo

período de gerenciamento das economias nacionais pelas lógicas liberais e de mercado. Em

decorrência deste período de defasagem na economia e das escolhas políticas definidas para a

tentativa de solucionar as crises, muitos problemas sociais já existentes foram amplificados: crescia

o número de desempregados estruturais, depressão progressiva das economias nacionais e o

desmantelamento de importantes cidades industriais (HOBSBAWN, 1995 p. 402-407). Nos países

de capitalismo avançado, principalmente nos EUA e Europa, ocorria um processo de

desestabilização e empobrecimento da população, com gradativa perda dos benefícios trazidos pelo

Estado de Bem-Estar social alcançado nas décadas anteriores, durante o período pós-guerra

(HOBSBAWN, 1995 p. 393-397).

O ano é 1982. O Brasil vive sob o comando do último presidente da ditadura civil militar. Anêmico,

mas ainda alerta, o regime observa desde o término do Ato Institucional Nº 5 em 1979 (FAUSTO,

2000 p. 272) a saída gradual de seus opositores da sombra da ilegalidade. Há uma vigorosa e

promissora retomada das ruas pelas movimentações políticas pró-democracia.

Em uma roupagem inédita, a resistência popular e os trabalhadores são animados por um ‘novo

sindicalismo’, aglutinador de multidões a cada assembleia convocada. As greves, apesar da

repressão e intimidação dos agentes do regime militar, tem adesão de massa (FAUSTO, 2000 p.

276-282). As cidades industriais do ABC paulista fervilham. A sociedade civil, movimentos sociais

e operários clamam pelo fim da repressão e pela volta da democracia. Diretas Já! Mas quem manda

ainda é a ditadura.

Neste contexto, o país continuava a sofrer seriamente com uma grave instabilidade e desvalorização

da economia, índices crescentes de desemprego, e uma alta generalizada dos índices inflacionários

(FAUSTO, 2000 p. 278-279), fatos que acentuavam ainda mais as disparidades e injustiças sociais

históricas locais. Adversidades econômicas e sociais que se aprofundariam ainda mais no decorrer

da década seguinte (FAUSTO, 2000 p. 291-292).

Na cidade de São Paulo, a partir do início da década de 1980 e inserida nesta conjuntura, ocorre

uma transformação significativa na dinâmica econômica e material da cidade: um intenso processo

de desindustrialização local, que transferiu grande parte da produção de bens e mercadorias para

outras localidades. De pólo industrial, a cidade passa a ser reconhecida como núcleo administrativo

Agência financiadora: CAPES.

Sessão temática Cidade ­ 78

de grandes empresas, negócios e setor de serviços. Neste processo de desindustrialização da cidade,

os índices de desemprego subiram consideravelmente (DEDECCA, 2004 p. 238 – 263), juntamente

com um acelerado aumento da população (FAUSTO, 2000 p. 295), o que seria o prenúncio de uma

grave situação de instabilidade social.

Neste cenário de adversidade presente em boa parte das grandes cidades ocidentais, o punk,

inicialmente uma manifestação artística de caráter essencialmente estético através da música e da

moda (BIVAR, 1982 p. 41-55), passa por um fenômeno de popularização internacional (BIVAR,

1982 p. 84-92), e encontra solo fértil para se disseminar entre uma parcela da geração de jovens

rebeldes dos subúrbios operários e periferias das grandes metrópoles, principalmente dos países

ocidentais que, salvo as devidas proporções e especificidades locais, vivenciavam períodos de crise

econômica, autoritarismo governamental, perda de direitos sociais e constante defasagem nas

condições básicas de existência.

Boa parte dos jovens das grandes cidades brasileiras neste contexto, especificamente das regiões

periféricas mais empobrecidas e carentes de investimentos em infraestrutura, encontravam-se à

deriva. A escola geralmente não os reconhecia. As vagas de emprego escassas, e quando existia

alguma, o salário era pouquíssimo convidativo e as jornadas extenuantes, além da baixa

possibilidade de barganha perante a constante ameaça de desemprego. Nos seus bairros e vilas, as

oportunidades eram ainda mais raras. Equipamentos públicos de lazer comunitário e diversão, uma

boa parte abandonados, ou até mesmo inexistentes. Muitas vezes considerados como vagabundos e

marginais, a vigilância e a repressão policial eram incessantes no cotidiano jovem. A inserção

social, econômica e cultural era um desafio tão intrincado quanto à capacidade de sobreviver em

uma sociedade rigidamente conservadora e regrada pelo militarismo.

O ano de 1982 pode ser considerado como a data em que o punk consolidou-se como movimento no

Brasil, tendo a cidade de São Paulo como seu núcleo duro irradiador. Anteriormente a esta data os

punks já circulavam pelo espaço urbano, mas demasiadamente dispersos em sua maior parte. As

primeiras bandas punk, surgidas no final da década de 1970 nas periferias da cidade de São Paulo,

executavam os seus primeiros acordes ruidosos. Os jovens territorializados em seus bairros

associavam-se em gangues. Os primeiros anos da década de 1980 expuseram conflitos em série

entre estes grupos na cena urbana, e aos poucos o punk estigmatizou-se através das construções

Email: andre.vol4@gmail.com.

Sessão temática Cidade ­ 79

imagéticas externas diversas, como agrupamentos de jovens vândalos, violentos e marginais

(BIVAR, 1982 p. 92 - 106).

O ano aqui discutido, 1982, foi marcado pela organização de festivais de música, pela produção e

distribuição de fanzines e gravações musicais, além da constituição de redes de contatos postais, que

entre outras ações colaboravam na aproximação dos grupos e bandas punks com afinidades

ideológicas em comum (BIVAR, 1982 p. 106).

Os fanzines são as principais ferramentas de comunicação escrita do movimento punk, distribuídos

nos encontros e apresentações, e posteriormente também através de intercâmbios postais. Em São

Paulo, os primeiros fanzines foram Factor Zero, Vix Punk e SP Punk, confeccionados de forma

artesanal e distribuídos pelos diversos pontos de encontro punk da cidade (BIVAR, 1982 p. 98).

As produções tecnicamente mais complexas, como gravações musicais, prensagem dos discos de

vinil e posterior distribuição, tinham os custos divididos entre os integrantes das bandas e as

gravadoras independentes, dos quais os proprietários, em sua maior parte, eram integrantes das

próprias bandas, ou indivíduos que possuíam algum envolvimento pessoal direto com o movimento.

O primeiro registro sonoro oficial fora uma coletânea em vinil de doze polegadas, com o título

‘Grito Suburbano’, lançado em São Paulo através da gravadora independente ‘Punk Rock Discos’

neste mesmo ano. Participaram desta compilação três bandas punk: Olho Seco, Cólera e Inocentes

(BIVAR, 1982 p. 97).

Dentre as características essenciais do movimento punk, estão a independência e autonomia nos

processos de criação e produção artística. Artefatos culturais em sua grande parte elaborados de

maneira insubordinada, que naturalmente se distinguem das construções simbólicas usuais da

juventude determinadas pelos interesses da indústria cultural, quase sempre influenciada pelos

apetites do mercado.

O punk surgia para os jovens dos subúrbios e periferias como uma forma autêntica de expressão, de

acesso ao lazer escasso, um modo próprio de se relacionar, de se reconhecer e pertencer a um grupo.

Possibilitou a criação de uma identidade simbólica comum, a oportunidade aberta da participação, e

uma chance para que os seus brados pudessem ser ouvidos.

Com o início do intercâmbio de produtos culturais entre os grupos e indivíduos, redes de contatos

locais e internacionais (BIVAR, p. 106) foram sendo estabelecidas: O movimento ganhou poder de

articulação, e de forma descentralizada se multiplicava a cada dia pela cidade, e com ela

desenvolvia uma relação cada vez mais intensa.

Sessão temática Cidade ­ 80

Houve também uma atenção da grande mídia no fenômeno punk em 1982, com matérias veiculadas

em jornais, revistas e programas de televisão.

Nos anos seguintes o punk continuou a movimentar-se, contudo, alternando momentos de maior e

menor intensidade no cenário cultural urbano.

Buscaremos a seguir uma construção narrativa à partir da experiência (THOMPSON, 1978 p. 180 -

201) in loco dos integrantes e grupos distintos do movimento punk inseridos na lógica material da

cidade de São Paulo. A respeito deste processo relacional entre os punks e São Paulo, ao

entendermos a cidade como:

(...) a projeção da sociedade sobre um local, (...) percebido e concebido pelo

pensamento que determina a cidade e o urbano, e que esta projeção (...) não é

apenas uma ordem distante, uma globalidade social, um modo de produção, um

código geral. É também um tempo, ou vários tempos, ritmos. Escuta-se a cidade

como se fosse uma música tanto quanto se a lê como se fosse uma escrita

discursiva. (LEFEBVRE, 2001 p. 62).

O movimento punk quando contextualizado nas dimensões temporais e materiais da cidade, nos

permite apreender no campo das representações uma reconstituição, ou reconstituições de aspectos

históricos específicos da cidade, compreendidos nesta abordagem como lugares que comportam

múltiplos espaços praticados (CERTEAU, 1998, p. 172) e palcos das construções históricas do

movimento punk.

Estes ritmos específicos das intervenções, das práticas, das transgressões das disciplinas, das formas

de uso e do consumo do espaço urbano pelos punks, eventualmente nos revelam representações

distintivas da cidade. Estes sistemas de imagens urbanas construídas através dos fazeres e discursos

incorporados nos produtos culturais do movimento punk, e posteriormente reproduzidos como

prática cultural, nos permitirá redescobrir e retomar uma parcela das dimensões humanas nas suas

relações com o ambiente urbano. Além disso, apreenderemos aspectos históricos muitas vezes

ocultos, através da experiência vivenciada e, de alguma forma, indispensavelmente registrada por

esta categoria de personagens da cidade.

Percursos punk na cidade de São Paulo

Pânico em SP, pânico em SP, pânico em SP

As sirenes tocaram, as rádios avisaram que era pra correr

As pessoas assustadas, mal informadas se puseram a fugir

Sem saber por quê...

(INOCENTES, Pânico em SP, 1982).

Viajante da noite, cidade subúrbio

Na porta dos bares, encostada no muro

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Pedindo esmola, com uma perna ferida

Carrega a pistola, que vai tirar sua vida

Assim é que vive, como um animal

Nas ruas escuras, matando a pau

A noite é deles, do ébrio vagal

Da mulher do muro, do homossexual

Subúrbio geral, subúrbio geral

(CÓLERA, Subúrbio geral, 1982).

O sábado do dia 27 de novembro de 1982 amanhecera agradável no bairro da Pompéia em São

Paulo. A princípio, era um dia livre da agitação local tradicional do bairro, muito por conta da

ausência do fluxo de torcedores dos jogos de futebol ocorridos no Estádio Parque Antárctica,

localizado bem no cruzamento entre a Avenida Pompéia e a Avenida Francisco Matarazzo que,

mais adiante após o entrelaçamento das vias, se converte na Rua Clélia, cujo itinerário se estende

até a Lapa de baixo.

No início da mesma Rua Clélia, quase no entroncamento com a Avenida Pompéia, área atualmente

nobre e valorizada, localiza-se o SESC fábrica Pompéia. Uma antiga edificação fabril recentemente

transformada pela instituição em um centro de cultura e lazer.

Às dezenove horas deste dia, o SESC receberia o primeiro de dois dias do festival ‘O Começo do

Fim do Mundo’, organizado pelo jornalista Antonio Bivar em conjunto com várias bandas e grupos

punks2.

Seria o primeiro grande festival a buscar selar oficialmente a paz entre as bandas, grupos e gangues

da cidade de São Paulo e da região do ABC paulista, alguns deles com rixas e rivalidades entre si

por conta de confrontos diversos acumulados durante os anos anteriores. Além das bandas musicais,

o festival iria promover uma série de ações paralelas, como exposição de fotografias, revistas e

fanzines, somado a exibição de vídeos e outros materiais do universo cultural punk. Seria uma

primeira tentativa de trazer o punk rock à cena cultural oficial da cidade, inclusive contando com

certa divulgação em alguns dos periódicos de grandes empresas de comunicação. Cena cultural

anteriormente restrita, na maior parte das vezes, aos clubes de bairro e bares periféricos, e

eventualmente algumas casas de show nas localidades centrais degradadas.

No interior do movimento, o assunto fundamental foi a expectativa do encontro com todas as

bandas e gangues em um mesmo festival, e as possibilidades de reconciliar definitivamente os

punks das cidades de São Paulo e do ABC, ou de uma explosão de violência que poderia colocar em

2 Ver o panfleto ‘O começo do fim do mundo’ e o fragmento de matéria da Revista Kaprikórnio de 1985, parte do

material digitalizado a partir do arquivo movimento punk do Cedic/PUC-SP. Figuras 1 e 2.

Sessão temática Cidade ­ 82

risco a existência do punk como movimento, e neste cenário hipotético, a chance da consolidação

definitiva da imagem do punk e seus integrantes como simples grupo de delinquentes e vândalos.

Uma multidão começou a se aglomerar em frente ao local do evento, no pacato bairro de classe

média da zona oeste da cidade. A movimentação dos punks, na maior parte do tempo, causou

grande admiração e estranhamento aos moradores e transeuntes costumeiros do local.

Com suas falas, gestos, maneiras peculiares de vestimenta e comportamentos em boa parte das

vezes provocativos, os punks reproduziram no local uma parcela de suas experiências da vida nos

subúrbios e periferias da cidade. Localidades bastante carentes de investimentos em infraestrutura

urbanística e que, em sua maior parte, possuíam oferta escassa de espaços adequados para os lazeres

e as sociabilidades de seus moradores.

Como disse Antonio Bivar, em uma matéria de divulgação do evento em jornal publicado um dia

antes do início do festival, justificando as razões do visual e comportamento dos punks:

‘Machucados e apagados, de que maneira chamariam a atenção dos outros se não agredissem

visualmente as pessoas com suas roupas negras e seus cabelos estranhos?’3

O sábado era fervilhante na Rua Clélia. Independentemente da tensão no ar, as bandas tocavam para

um aglomerado de jovens, bradando discursos e palavras de ordem em meio ao caos sonoro peculiar

produzido pelos punks em cima do palco. Havia danças, empurrões, gritos, provocações, gestos

obscenos e, naturalmente, muita diversão.

Uma curiosidade folclórica permeava o ambiente do bairro, e um misto de sentimentos antagônicos

oscilava entre a simpatia e a repulsa da vizinhança para com os inusitados visitantes. Apesar disso, o

primeiro dia do festival terminou de forma pacífica, e sem maiores problemas.

O dia seguinte seria de elevada expectativa, tanto para os organizadores quanto por parte das bandas

e público.

Terminaria o festival sem uma rusga ou desentendimento mais grave sequer? Estaria o movimento

punk prestes a se tornar o responsável por uma grandiosa renovação da cultura popular, promovida

por uma juventude proveniente das margens? Ou o mundo estaria prestes a realmente desabar? E se

acabasse, o movimento punk tomaria a dianteira para o impulso seminal da construção de um novo

mundo?

Se no dia anterior os acontecimentos intercorreram livres de intempéries, no domingo as

provocações mútuas entre alguns indivíduos de gangues rivais ali reunidas eram constantes. Um

3 Matéria veiculada em jornal para divulgação do evento, 1982. Arquivo movimento punk do Cedic/PUC-SP.

Sessão temática Cidade ­ 83

barril de pólvora estava prestes a explodir em plena Pompéia. Seria enfim, o começo do fim do

mundo?

A tolerância da vizinhança com a festa dos jovens periféricos já havia excedido os limites da

conveniência do bairro. Em alerta, contingentes das forças policiais se posicionavam próximo às

estações de trem, e vigiavam as ruas e avenidas dos arredores.

O que alguns já esperavam, e outros se preocupavam, finalmente aconteceu. Uns afirmaram que foi

por conta de um esbarrão que derrubou uma garrafa de vinho. Outros, disseram ter testemunhado

uma discussão de trânsito na rua, em meio ao tráfego que já se tornara caótico na Rua Clélia.

Um início de briga deflagrou uma ameaça de tumulto, e um pavor generalizado. Não poderia haver

justificativa mais oportuna encontrada pela polícia militar para entrar em ação e reprimir os jovens

com violência. Logo após, os policiais adentraram o espaço do festival e decretaram seu

encerramento. Pânico em SP.

‘Tropa de choque, cães. Foi triste. Tive que voltar para o centro pela linha do trem, pois tinham

emboscadas da PM por todas as estações próximas, esperando os punks chegar para prender’4.

Apesar da repressão, os punks de São Paulo e ABC alcançaram o seu ponto culminante naquele

final de semana. Centenas de jovens, anteriormente invisíveis em sua maioria, estamparam seus

rostos, vestimentas e gestos nas fotografias e vídeos não apenas do evento, mas também das

coberturas midiáticas.

O acontecimento teve grande veiculação nos órgãos da imprensa internacional especializada, que o

considerou como um dos maiores festivais dedicados ao punk ocorridos na história, fato ‘que

colocou o punk paulistano no mapa-múndi’5.

Uma parcela da atenção voltada ao festival foi também da grande imprensa local, com coberturas

insidiosas e ávidas por sensacionalismo, que na maior parte das vezes dedicou enfoque muito maior

aos incidentes e atitudes torpes com uma abordagem policialesca, e o notado silenciamento e

desprezo quase completo de toda a movimentação e valor cultural do evento.

Impulsionados pelo impacto da reunião, e apesar do desânimo e indignação de alguns organizadores

punks decepcionados tanto com o empenho da mídia de massa em difamar e insistir nas

repercussões negativas dos acontecimentos, quanto da violência incorporada ao próprio movimento6

4 Reprodução da fala de Português, membro da banda Garotos Podres, presente no documentário Botinada – A origem

do punk no Brasil, de 2006. 5 Reprodução da fala de Antonio Bivar, no documentário Botinada de 2006.

6 As discussões e reflexões sobre a confusão ocorrida e o posterior encerramento do festival, e que resultou na

impossibilidade do retorno dos punks ao Sesc e outros locais para abrigar os encontros do movimento devido a

Sessão temática Cidade ­ 84

que, de certo modo legitimou uma ação de repressão policial mais severa nos momentos derradeiros

da festa, o ano para os punks não acabara nas ruas da Pompéia.

Outras duas festas aconteceriam nos dias 03 e 04 de Dezembro. Na sexta feira dia 03, as bandas

Inocentes, U.T.I., Lixomania, Extermínio e Neuróticos se apresentariam na Rua Arruda Alvim no

bairro de Pinheiros, reduto também elitizado pertencente à zona oeste da cidade. O espaço,

originalmente de um curso destinado aos estudantes, em sua maior parte, da classe-média para o

vestibular universitário, receberia as manifestações sonoras dos punks.

E no dia seguinte, como já havia se tornado costume, a festa aconteceria em um anexo do DCE da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no alto da Rua Monte Alegre no bairro de Perdizes,

a alguns poucos quilômetros do local do festival que acabara de se tornar um marco histórico do

movimento. As bandas Ratos de Porão, Cólera, Fogo Cruzado, Psycóze e a participação especial do

Olho Seco, celebrariam o pré-lançamento do LP SUB7, mais uma coletânea musical punk

independente organizada pelas próprias bandas, que seria lançada no ano novo que se aproximava.

Este evento marcou a retomada deste espaço pelo movimento, após um breve período em que os

punks foram acusados de atear fogo, criminosamente, em uma das dependências da PUC. O

incidente ocorrera durante uma apresentação de reconciliação entre os punks de São Paulo e do

ABC ocorrida em 28 de agosto, nas vésperas da organização do festival ‘O começo do fim do

mundo’8.

Mais adiante, de acordo com os punks9, o incêndio consistiu em um atentado da polícia a mando da

ditadura, numa tentativa de destruir os registros documentais que relatou uma invasão da

universidade pelos militares em 1979. Ao responsabilizar os alunos do DCE e os punks pelos danos

causados na instituição, poderia se buscar legitimidade para o afastamento destes indivíduos do

ambiente estudantil, opositores declarados do regime, e ao mesmo tempo ensejar destruir os

documentos que o comprometeria. A acusação do militares aos punks e estudantes encontrou

respaldo na imprensa.

O punk começou a adentrar os espaços acadêmicos e universitários com mais frequência, e a

estabelecer vínculos com os movimentos estudantis politizados. Alguns deles, principalmente

membros dos DCEs de universidades, reconheceram na movimentação juvenil periférica dos punks

costumeira violência comportamental das gangues, fora intensamente debatido nas publicações e relatos dos punks após

o ocorrido. Ver Figura 3. 7 Panfleto de 1982, arquivo movimento punk do Cedic/PUC-SP.

8 Idem.

9 Depoimentos de Clemente da banda Inocentes, e Ariel da banda Restos de Nada, no documentário Botinada, 2006.

Sessão temática Cidade ­ 85

importantes aliados para as trincheiras da luta contra a ditadura civil-militar, e a favor da reabertura

política10

.

Sinto, sinto, sinto!

Medo de alguém, não sei quem é

É você? Eu não sou, eu não sou!

Venha marchar ao meu lado

Um tiro na praça e despedaça

A sua carcaça

Se for mais um, não sei quem é

É você? Eu não sou, eu não sou!

(OLHO SECO, Sinto, 1982)

No lado oposto da cidade, já no início da área periférica da zona leste no bairro operário de

Ermelino Matarazzo, ocorreria o último festival punk do ano no dia 17 de dezembro. Para os que

viessem de longe, ou para os desfamiliarizados com o bairro, a explicação era sucinta:

Local: Associação Atlética Ermelinense. Endereço: Avenida Assis Ribeiro, Nº 5. Pegar o

trem e descer na estação de Ermelino, ou ônibus Praça do Correio – São Miguel CMTC

(saída debaixo do viaduto Santa Efigênia, descer no último ponto da Avenida Assis

Ribeiro)’. Ou então a alternativa do ônibus Metrô Tatuapé – Ermelino (Descer no ponto

final).

Seria a festa para a comemoração de cinco anos da gangue punkids, e para desabafar toda a

‘paranoia’, como atestava o panfleto de convocação da comemoração. Talvez por conta de tantos

eventos ocorridos no decorrer do ano, principalmente o festival da Pompéia. A sessão de desafogo

seria mediada pelo som de dez bandas punk através da noite e durante toda a madrugada,

provavelmente regada a muito álcool11

.

No início de 1982, poucos dos punks provavelmente iriam prever tudo o que experimentariam no

decorrer daquele ano.

Desde as festas realizadas no Teatro Luso-brasileiro localizado na Rua da Graça, bairro do Bom

Retiro, antigo reduto operário e fabril da cidade, ocorridas nos meses de Janeiro e Outubro12

, ao

encontro de bandas punk no feriado de aniversário da cidade de São Paulo (mas nem por isso

motivo de comemoração), numa segunda-feira à tarde de verão na Avenida Deputado Emílio Carlos

no Bairro do Limão, subúrbio da zona norte13

. Das célebres festas no diretório estudantil da PUC,

área nobre da zona oeste ao lado dos estudantes politizados, passando pela discotecagem de músicas

punk promovida no Clube Iguaçu na Vila Rosa, no caminho para a zona leste14

, até finalmente a

10

Depoimentos de Redson da banda Cólera, e Português da banda Garotos Podres, no documentário Botinada, 2006. 11

Panfleto de 1982, arquivo movimento punk do Cedic/PUC-SP. Ver Figura 4. 12

Panfletos de 1982, arquivo movimento punk do Cedic/PUC-SP. 13

Panfleto de 1982, arquivo movimento punk do Cedic/PUC-SP. 14

Cartaz de 1982, arquivo movimento punk do Cedic/PUC-SP.

Sessão temática Cidade ­ 86

ocupação política da Praça da República pelas bandas punks, com o apoio de um ascendente Partido

dos Trabalhadores no centro da cidade no mês de Novembro15

.

Foram alguns dos trajetos percorridos pelos punks na cidade em 1982, ora fascinantes, ora

tortuosos, num dos períodos mais emblemáticos e que marcou significativamente os percursos

históricos do movimento.

Ocasiões onde fora impiedosamente estigmatizado e criminalizado pelos grandes meios de

comunicação e o senso-comum, reprimido pelas forças autoritárias, e resistido a toda sorte de

violências cotidianas. E ao mesmo tempo, a aquisição do aprendizado com as experiências e

práticas que resultaram no estabelecimento de suas relações identitárias, de confiança, e das

conquistas de espaços tanto físicos quanto imagéticos.

Através de seus sentidos legítimos de representação de um universo simbólico próprio,

(BOURDIEU, 2004 p. 07 - 15) foram responsáveis pela declaração da existência coletiva e a

incorporação de uma parcela do imaginário cultural da juventude dos subúrbios e das periferias da

cidade.

15

Panfleto de 1982, arquivo movimento punk do Cedic/PUC-SP. Ver Figura 5.

Sessão temática Cidade ­ 87

[Figura 1 – Chamada para o festival ‘O começo do fim do mundo’, 1982. Arquivo movimento punk – Cedic/PUC-SP]

[Figura 2 – Fragmento de matéria, Revista Kaprikórnio, 1985. Arquivo movimento punk – Cedic/PUC-SP]

Sessão temática Cidade ­ 88

[Figura 3 – Fanzine Alerta Punk Ed. 03, São Paulo – SP, 1983. Arquivo pessoal]

Sessão temática Cidade ­ 89

[Figura 4 – Chamada para festival, 1982. Arquivo movimento punk – Cedic/PUC-SP]

Sessão temática Cidade ­ 90

[Figura 5 – Panfleto, 1982. Arquivo movimento punk – Cedic/PUC-SP]

Sessão temática Cidade ­ 91

Publicações, fontes iconográficas e sonoras

5º ANIVERSÁRIO DA PUNKIDS. Panfleto de festival. In: Arquivo movimento punk, São Paulo:

Cedic/PUC, 1982.

3º ENCONTRO DE BANDAS PUNK. Panfleto de festa. In: Arquivo movimento punk, São Paulo:

Cedic/PUC, 1982.

A FESTA DOS PUNKS. Matéria em jornal. In: Arquivo movimento punk, São Paulo: Cedic/PUC,

1982.

____________________. Fragmento de matéria em jornal. In: Arquivo movimento punk, São

Paulo: Cedic/PUC, 1982.

ALERTA PUNK FANZINE. Fanzine, Ed. 03. São Paulo: Arquivo pessoal, 1983.

BOTINADA – A ORIGEM DO PUNK NO BRASIL. DVD, São Paulo: ST2, 2006.

CÓLERA. Gritar. In: Grito suburbano. LP, São Paulo: Punk Rock Discos, 1982.

CÓLERA. Subúrbio geral. In: Grito suburbano. LP, São Paulo: Punk Rock Discos, 1982.

ESTRANHOS NO NINHO. Fragmento de matéria da Revista Kaprikórnio. In: Arquivo movimento

punk, São Paulo: Cedic/PUC, 1985.

INÍCIO DO FIM DO MUNDO – PRIMEIRO FESTIVAL PUNK DO SESC FÁBRICA DA

POMPÉIA. Cartaz de festival. São Paulo: Arquivo pessoal, 1982.

INOCENTES. Pânico em SP. In: Grito suburbano. LP, São Paulo: Punk Rock Discos, 1982.

O COMEÇO DO FIM DO MUNDO. Panfleto de festival. In: Arquivo movimento punk, São Paulo:

Cedic/PUC, 1982.

OLHO SECO. Sinto. In: Grito suburbano. LP, São Paulo: Punk Rock Discos, 1982.

PUNK´S. Cartaz de festa. In: Arquivo movimento punk, São Paulo: Cedic/PUC, 1982.

PUNK EM SÃO PAULO. Panfleto de festa. In: Arquivo movimento punk, São Paulo: Cedic/PUC,

1982.

PUNK NA PRAÇA DA REPÚBLICA. Panfleto de festival. In: Arquivo movimento punk, São

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Sessão temática Cidade ­ 92

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