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Revista Brasileira de Histria das Religies. ANPUH, Ano V, n. 14, Setembro 2012 - ISSN 1983-2850http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/index.html
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ESPELHOS DA ALMA: FISIOGNOMONIA, EMOES E SENSIBILIDADES
Maria Izilda Santos de Matos*
RESUMO: O objetivo deste artigo apresentar a conferencia sobre as relaes histria,sensibilidades e corporeidade, proferida no III Encontro do GT Nacional de Histria dasReligies e Religiosidades ANPUH, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) de20 a 22 de Outubro de 2010.
PALAVRAS CHAVE: Histria, rosto, expresses faciais, histria da cincia.
MIRRORS OF THE SOUL: PHYSIOGNOMY, EMOTIONS AND SENSIBILITIES
ABSTRACT: The objective of this paper is to present the conference, about on the history,sensibilities and corporality, delivered at the III Meeting of the GT Nacional de Histria dasReligies e Religiosidades ANPUH, at the Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),October 20-22, 2010.KEYWORDS: History, face, facial expressions, historyofscience
"a expresso uma marca do movimentodas almas, o que torna visveis os efeitosda paixo".Charles Le Brun
Na contemporaneidade, o corpo vem adquirindo uma centralidade, objeto de
exposio, admirao, desejo e interferncias, tornando-se uma verdadeira sensao. H
um sculo, os corpos eram modelados por ombreiras, enchimentos, espartilhos, como
smbolos sociais e tticas disciplinares estes elementos adelgavam, davam volume e
destacavam formas. Hoje, com permissividades e excessos, aperfeioam-se tcnicas de
controle e manipulao destinadas a conhecer, interferir e embelezar os corpos e rostos.
Especialistas e campos disciplinares construram sistemas de compreenso einterpretao sobre o corpo e seu desenvolvimento, criando como modelo e padro - o
corpo/rosto jovem-saudvel-belo, a partir dele, os outros foram definidos e excludos,
tambm foram constitudos modelos e normas de bom uso, valores normativos e
reguladores maneiras de se comportar, se expressar, se cuidar, se alimentar, de rezar,
etc..
Nos ltimos 50 anos, novas inquietaes tornaram o corpo/rosto um tema-
questo, para diferentes disciplinas e reas do conhecimento, alm das tradicionais
*Professora Titular do Departamento de Histria da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo
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cincias mdicas. Na historiografia tais inquietaes emergiram com a abertura da
histria para "outras histrias", focalizando novos objetos e abordagens. Os sujeitos
histricos adquiriram corporeidade e o corpo/rosto tornou-se sujeito da histria,
preocupando-se com a construo da sua historicidade. A antiga sacralidade do corpoficou obsoleta, este deixou de ser visto apenas como um suporte da alma.
Corpo e ser so indissociveis, a condio humana corporal, o vetorda relao com o mundo, no s pelo que o corpo decifra atravs daspercepes sensoriais ou da sua afetividade, mas tambm pela maneiracomo os outros nos interpretam diante dos diferentes significados quelhes enviamos: sexo, idade, aparncia, movimentos, mmicas, etc. (LEBRETON, 2008)
A vida uma experincia histrica que se tem com e no corpo/rosto. Nesta o
nascimento, crescimento, funcionamento do organismo, envelhecimento, doena, morte
leva-se a pensar o corpo como uma constante, mas as formas como essas necessidades e
funes so vivenciadas, entendidas e tratadas contm diversidades, com dimenses
invariveis e variveis (temporais, gnero, tnicas, identitrias, entre outras) .Tambm,
percebe-se no processo de construo do corpo a ao de princpios ticos (conteno,
abstinncia, moderao, disciplina, frugalidade, persistncia) sobre os quais foram
erguidos princpios estticos (como bom gosto, elegncia, beleza, sade, limpeza, moral,
higiene, sexualidade, prazer, erotismo e naturalidade).Para alm destas dimenses e princpios se entrecruzam as sensibilidades,
percepes, sensitividades, canais culturais de comunicao (movimentos, expresses,
gestos, linguagens), usos e prticas, tornando o corpo/rosto como ancora de emoes e
paixes.
Nesse sentido, o desafio entender como o corpo/rosto foi construdo,
representado e vivido, e principalmente, focalizar o corpo/rosto enquanto processo,
destacando-se como suas experincias foram constitudas por conhecimentoscientficos, saberes populares, tradicionais, pessoais, sociais e culturais e que estes como
foram subjetivados (CERTEAU, 2002, P. 408). Dessa forma, pretende-se enfocar as
tenses-relaes entre corpo, rosto, alma nos estudos da fisiognomonia.
I- Fisiognomonia: rostos e enigmas
A fisiognomonia a rea do conhecimento que estuda os traos e expresses do
rosto, buscando nelas compreender, apreender e reproduzir as sensibilidades, decifrandodesejos e paixes, revelando defeitos e qualidades, foras e fraquezas. Nesse sentido, a
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fronte foi identificada como o espelho da alma, invlucro visvel da alma invisvel
(COURTINE; HAROCHE, 1988), sendo a fisiognomonia a possibilidade de
aproximao com as inclinaes da alma, visando identific-las, analis-las, control-
las numa pedagogia de cunho moral; estabelecendo uma dinmica entre sentimentos esuas demonstraes, num movimento de mo dupla entre o interior-exterior, o invisvel-
visvel, de um lado a alma (experincia interior, subjetiva), de outro, inscrito no rosto
seus efeitos perceptveis e objetivos (LE BRETON, 2008).
O homem visto por uma dualidade que o toma como visvel einvisvel, como interior e exterior. Mas, existe um lao entre suainterioridade oculta e sua exterioridade manifesta, ou seja, osmovimentos das paixes, que habitam o interior do homem, serevelam na superfcie de seu rosto. (SOUZA, s/d)1
A fisiognomonia se caracterizou por constantes tentativas de revelar e desvendar
a linguagem das expresses faciais (emoes vividas, eloquncias e silncios), uma
analogia entre a superfcie e a profundidade, experincias interiores exteriorizadas.
Apesar de percebidas como naturais estas expresses foram aprendidas e transmitidas
social, cultural e historicamente, logo dotadas de intencionalidades, perpassadas de
conceitos e constituindo-se como dispositivos polticos(FOUCAULT, 1989).
Cabe lembrar que a fisiognomonia (ou fisiognomonomia ou fisiognomia2) um
conhecimento antigo, caracterizado por ambivalncias entre o racional e o mstico, o
mdico-cientfico e o mgico-religioso. Na sua trajetria histrica, as anlises do rosto
foram formuladas em tratados filosficos, mdicos e anatmicos, manuais artsticos,
msticos e de civilidade, alvo de observaes detalhadas e pormenorizadas que visaram
revelar o que seria autntico ou imposto, o que exprimia ou ocultava, a espontaneidade
e o silncio das emoes, sempre procurando desvendar os segredos da alma.
Na Antiguidade, as obras de Aristteles buscaram elementos que possibilitassem
identificar caractersticas internas (ticas e morais) do humano a partir dos traos do
rosto, observava-se que todas as inclinaes naturais transformam simultaneamente o
corpo e a alma; e assim os traos do rosto, ou as dimenses de outros rgos, so sinais
que remetem a um carter interno.
J na Idade Mdia e inicio da poca Moderna, atravs da metoposcopiavisava-
1SOUZA, Olmpia Maluf. Fealdade e anatomia: sentidos instalados a partir de uma histria do rosto, in
Histria, Subjetividade e EstticaIII ENALIHC. Disponvel em:http://www.unemat.br/prppg/linguistica/docs/publicacoes/olimpia_maluf_artigo1.pdf2 ECO, Humberto. A linguagem do rosto. In: Sobre os espelhos e outros ensaios, RJ, Nova Fronteira,1989.
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se desvendar a alma atravs do rosto. Acreditava-se, que a anlise dos traos cunhados
na fronte pelos astros (cosmologia), possibilitava identificar os homens de bom ou mau
carter, revelar as marcas do destino, prever a boa ou m fortuna, a doena e a sade. 3
A partir do sculo XVI, difundiu-se a acepo de que o rosto fala (COURTINE;HAROCHE, 1988), atravs de uma linguagem paradoxal que exprimia e ocultava,
revelava e mascarava, ampliando a ideia de que a fisiognomonia poderia predizer,
indicar, desnudar o ntimo.
Na expanso do individualismo de costumes (ARIS, 1986) associou-se o
rosto como elemento de identificao do sujeito, ampliando as possibilidades das
revelaes, mas tambm habilidades e estratgias de dissimulao das paixes da alma
(COURTINE; HAROCHE, 1988).
A fisiognomonia tornou-se a arte do conhecimento do carter das pessoas
pelos traos da face, pretendendo-se por ela descobrir a localizao exata e as
caractersticas da alma.4 Com diferentes motivaes, estas questes envolveram
artistas como Leonardo da Vinci, Miguel ngelo, Giambattista Della Porta, Charles Le
Brun, Peter Paul Rubens, pensadores como Ren Descartes, Johann Kaspar Lavater,
literatos como Johann Goethe, mile Zola, Pierre de Marivaux e Honor de Balzac,
particularmente, mdicos e cientistas.
3SOUZA, Olmpia Maluf. Fealdade e anatomia: sentidos instalados a partir de uma histria do rosto, inHistria, Subjetividade e EstticaIII ENALIHC,
http://www.unemat.br/prppg/linguistica/docs/publicacoes/olimpia_maluf_artigo1.pdf4 Gian Paolo Lomazzo iniciou o processo em 1584, seguido do telogo Nicolas Coeffeteau (1620),aparecendo depois o mdico Marin Cureau de La Chambre (1640-1662) e Ren Descartes (1649).BALTRUSAITS, J. Aberrao ensaios sobre a lenda da forma. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1999.
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Giambattista Della Porta
Na busca da cartografia da face e da alma Giambattista Della Porta, em De
Humana Physiognomia (1586), relacionou a humanidade aos reinos animal
(zoomorfismo) e vegetal, mostrou imagens de homens-animais como deformaes,
acentuando seu lado bizarro e caricato.De Leonardo da Vinci5a Le Brun, pintores aperfeioaram tcnicas de retratos e
tambm de caricaturas, delataram as foras e fraquezas humanas e aperfeioando os
princpios da fisiognomonia. Na Thorie de la figure humaine (1773), Peter Paul
Rubens retomou referncias cosmogonicas na fisiognomonia, bem como a
interiorizao da fora bestial - a bestializao da alma- , recompondo frontes inquietas
e agitadas, cujos esboos inseriu no seu tratado.
Durante toda a poca Moderna, a busca do controle das expresses ocorreu
atravs de exigncias religiosas, normas sociais, polticas e estticas, tendo as obras de
fisiognomonia convivido com os manuais de civilidade e boas maneiras, da arte da
conversao e livros de civismo, que reforavam o rosto como elemento da percepo
de si e das sensibilidades.
Os estudos fisiognomonia conectaram a medicina s artes, mesmo se utilizando
de mtodos distintos observaram rostos buscando humores, paixes e desvios, na sua
historicidade o campo foi se constituindo como uma cincia das paixes.6
Na Religio medici (1635), o mdico Sir Thomas Browne negou a influncia
planetria, afirmando que os caracteres do rosto exprimiam o temperamento e as
referncias da alma.
5Leonardo da Vinci fez estudos na rea sem intuito para-cientfico, mas utilizou-os para caricatura. Elecriticava a fisignomonia como um processo de adivinhao que pudessem prenunciar o carter e o perfil
moral das pessoas, mas aceitava que traos do rosto podiam exprimir doura, bondade e outrosdenotariam tenso, violncia, lascvia, inveja, preguia, displicncia, nos seus estudos de caricaturasgrotescas.6Disponvel em:http://corpoesociedade.blogspot.com/2008/03/rostos-fisiognomonia-iii.html
http://corpoesociedade.blogspot.com/2008/03/rostos-fisiognomonia-iii.htmlhttp://corpoesociedade.blogspot.com/2008/03/rostos-fisiognomonia-iii.htmlhttp://corpoesociedade.blogspot.com/2008/03/rostos-fisiognomonia-iii.htmlhttp://corpoesociedade.blogspot.com/2008/03/rostos-fisiognomonia-iii.html8/10/2019 ESPELHOS DA ALMA FISIOGNOMONIA, EMOES E SENSIBILIDADES.pdf
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InvejaThedore Gricault
As interfaces entre a arte e a cincia adquiriram destaque na obra Thedore
Gricault (1791-1824), quando o mdico psiquiatra e precursor da psicanlise tienne-
Jean Georget (17951828) encomendou-lhe uma srie de retratos de doentes mentais,
para utilizar nas suas aulas e estudos sobre as "monomanias" (sequestrador,
cleptomanaco, viciado em jogos, mulher "consumida com a inveja"). Da mesma forma,
na obra Anatomia descritiva (1834-1836), do francs Jean Cruveilhier (1791-1874).
apareceram vrios registros imagticos.
No sculo XIX, Charles Darwin atribuiu a fisiognomonia novas referncias de
cientificidade, baseando-se em estudos anatmicos; na sua obra A Expresso das
Emoes no Homem e nos animais (1872) argumentava que as manifestaes externas
das emoes eram vestgios de manuteno de hbitos previamente adquiridos pelos
ancestrais animais dos seres humanos. Ao enfocar a fisiologia nervosa e ancestralidade
animal de emoo, Darwin retomou a teoria das origens das espcies, esvaziando asexpresses emocionais das conexes com a alma e rompendo a relao entre as
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caractersticas faciais e o carter individual (ECO, 1989).
Outras anlises continuaram a buscar no rosto a visibilidade da alma boa ou m,
visando descobrir instintos e observar desvios. Em 1875, a obra Luomo delinquente
(2007)7
, de Cesare Lombroso (1835-1909), tinha como proposio estudar caracteresfisico-psquicos, que conjuntamente com influncias externas, esclareceriam o fato
delituoso. Observando o individuo na sua unidade de corpo e esprito, destacava como
os aspectos morfolgicos, fisiolgicos e psicolgicos permitiriam reconstituir a
descrio do criminoso nato.
A fisiognomonia busca a relao entre a alma e o rosto, entre osuperficial e o profundo, o oculto e o manifesto, o moral e ofsico, o contedo e o que contm, a paixo e a carne, a causa e oefeito. Ou seja, o homem possui duas faces: uma visvel e outra
que escapa ao olhar e que , pois, a que cuida a fisiognomonia.(SOUZA, s/d)
No processo de constituio do campo cabe destacar a trajetria e a obra de
Charles Le Brun, bem como suas repercusses.
II- Charles Le Brun (1619-90)
Charles Le Brun desde a infncia revelou vocao para a pintura, desenvolveu
seus talentos com mestres franceses e italianos (1642 a 1645), entre as suas primeirasencomendas destaca-se na decorao do palcio de Vaux-le-Vicompte, de Nicolas
Fouquet, ento Superintendente das Finanas da Frana.
Charles Le Brun
Le Brun foi Diretor da Manufatura Real dos Gobelins(1660) coordenando mais
de 250 trabalhadores, selecionados entre os melhores artistas, pintores, douradores e
tapeceiros. Em 1662, recebeu a honraria de Premier Peintre du Roi, com vrias regalias
7LOMBROSO, Cesare. O homem delinqente. So Paulo: cone, 2007.
http://pt.wikipedia.org/wiki/1619http://pt.wikipedia.org/wiki/16198/10/2019 ESPELHOS DA ALMA FISIOGNOMONIA, EMOES E SENSIBILIDADES.pdf
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(elevada penso), estatuto de nobreza, posio e membro do squito real, sendo
encarregado pela decorao dos palcios de Versailles, Vaux, e Hesselin. Com sua obra
imps o Estilo de Lus XIV.
Ele participou da fundao da Academia de Artes (1648), tornando-se Chancelerda Academia Real de Pintura e Escultura da Frana em 1663, tambm foi membro
criador da Academia da Frana em Roma (1665). Deste a ascenso ao trono de Luis
XIV, a instituio passou por readequaes, assumindo a finalidade de representar e
trabalhar para o Estado, glorificando sua grandeza e a de seu soberano, que cultivava o
mecenato.
Os estudos de fisiognomonia Le Brun foram sistematizados na apresentao
proferida na Academia em 1668, a Conferncia sobre Expresses das Paixes da Almaem Geral e Particulares, na qual ele buscou decifrar as expresses dos rostos que
considerava a chave para compreender as emoes e virtudes da alma, propondo uma
doutrina das expresses, relacionando as paixes aos movimentos faciais.
Ele fundamentou as bases do academicismo, atravs da formulao e
estabelecimento de mtodos e regras assumiu a funo de regulamentar, ensinar e
difundir estes preceitos. A Conferncia fazia parte de um programa para a organizao
didtica, oferecendo aos artistas os cdigos iniciais, estabelecendo o formalismo e os
cnones das expresses presente nos movimentos da fronte, ensinando o que e como
deveriam ser representados.
III- Conferncia sobre Expresses das Paixes da Alma em Geral e Par ticulares
Na obra Conferncia sobre Expresses das Paixes da Alma em Geral e
Particulares, Le Brun sistematizou os traos expressivos de paixes universais. Suaproposta apropriou-se das reflexes de outros artistas, pensadores e autores, com
destaque para os mestres italianos, particularmente Giambattista Della Porta; tambm
foi influenciado por Cureau de la Chambre, Plato, Jean Franois Senault e Descartes,
apesar de que devido a restries e censuras, alguns destes nomes no foram citados
explicitamente na obra (LE BRETON, 2003).
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Observa-se as apropriaes das proposies platonianas, nas referncias a parte
racional e parte sensitiva da alma, com a identificao do thumos e a epithumia. Da
mesma forma, os escritos de Jean Franois Senault, em especial da obra De lusage des
passions(1641), aparecem nas consideraes em torno da categorizao das paixes em
simples e compostas.
No caso de Descartes, no ocorreram referncias diretas, o que se torna
compreensvel devido ao contexto imprprio, j que a obra As Paixes da Alma(1649)foi proibida na Frana e o pensador viveu cerca de trinta anos no exlio, receoso das
persecues de Lus XIV.
J as menes a Cureau de la Chambre foram explcitas, ele foi figura
emblemtica na Corte de Lus XIV, alm de mdico e fisiognomista, exercitava funes
divinatrias, seus dons eram utilizados constantemente pelo rei, tambm foi um dos
mentores da Academia, buscando uma aproximao entre medicina e arte.
Apesar de Descartes admitir a existncia de sinais exteriores das paixes, elereconhecia as dificuldades de identific-los, coube a Le Brun o desafio de represent-
los. Ele comps em 41 mscaras, as imagens das paixes da alma, organizadas em
paixo simples e derivadas, incorporando as paixes suaves (que no alteram seus
traos); paixes generosas (que imprimem neles uma marca particular) e paixes
condenveis e atrozes (que degradam o rosto).
Na busca por uma definio de paixo, Le Brun ressaltava:
Primeiramente, a paixo um movimento da alma, que reside na partesensitiva, movimento que se faz para seguir o que a alma pensa serbom para si mesma, ou fugir daquilo que ela pensa ser mau para si; e
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habitualmente o que causa alma paixo, provoca no corpo algumaao. (LE BRUN, 1994, p. 52)
A proposta aspirava racionalidade das conexes entre a alma e os movimentos
do rosto, identificando seus pontos de inflexo e descrevendo detalhadamente oprocesso de desenvolvimento destas vinculaes.
verdade que a maior parte das paixes da alma produz aescorporais, necessrio que ns saibamos quais so as aes do corpoque exprimem as paixes, e o que ao.A ao no outra coisa que o movimento de alguma parte, e amudana s se faz pela mudana dos msculos; os msculos s tmmovimento porque so atravessados pelas extremidades dos nervos,os nervos s agem em funo dos espritos que esto contidos nascavidades do crebro, sendo que o crebro recebe os espritos dosangue que passa continuamente pelo corao, que o aquece e o
rarefaz, de tal sorte que produz um certo ar suril que se dirige aocrebro e que o preenche.O crebro, assim preenchido, envia esses espritos s outras partesatravs dos nervos, que so como pequenos filetes ou tubos que levamesses espritos aos msculos, mais, ou menos, segundo a necessidadeexistente para produzir a ao qual so chamados.Portanto, aquele que atua mais, recebe mais espritos e, porconseqncia, torna-se mais inflado que os outros que deles estoprivados, e que, por esta privao, parecem mais relaxados e maisdistendidos que os outros.Ainda que a alma esteja ligada a todas as partes do corpo, existem,entretanto, diversas opinies no tocante ao lugar onde ela exerce mais
particularmente suas funes.Uns asseguram que numa pequena glndula que est no meio docrebro, porque esta parte nica, e todas as outras so duplas e,como ns temos dois olhos e duas orelhas, e os rgos dos nossossentidos exteriores so duplos, preciso que haja algum lugar aondeas duas imagens que vm pelos dois olhos, ou as duas impresses quevm de um s objeto pelos dois rgos dos outros sentidos, possamreunir-se em uma, antes que ela alcance a alma, a fim de que ela nolhe apresente dois objetos no lugar de um.Outros dizem que no corao, porque nessa parte que sentimos aspaixes; e minha opinio que a alma recebe as impresses das
paixes no crebro e que ela sente seus efeitos no corao. Osmovimentos exteriores que eu observei reforam esta minha opinio(LE BRUN, 1994, p. 52-55)8
Para fundamentar suas alegaes, Le Brun reportou-se ao modelo cartesiano de
funcionamento do corpo e sua relao com a alma9, localizando-a na glndula pineal,
centrada no crebro, aonde a alma receberia as imagens das paixes, mas os reflexos
seriam manifestados nas sobrancelhas.
8
Grifo da autora9MIRANDA, Carlos Eduardo Albuquerque de. A Fisiognomonia de Charles Le Brun a educao da facee a educao do olhar, in Pro-Posies. v. 16, n. 2 (47) - maio/ago. 2005,www.proposicoes.fe.unicamp.br/~proposicoes/.../47_dossie_mirandacea.pdf.
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Mas se verdadeiro que exista uma parte onde a alma exerce maisimediatamente suas funes e que esta parte seja o crebro, podemosdizer da mesma forma que a face a parte do corpo onde ela faz vermais particularmente o que ela sente.E da mesma forma como dissemos que a glndula que est no meio do
crebro o lugar onde a alma recebe as imagens das paixes, assobrancelhas so a parte de toda a face onde as paixes se fazemmelhor conhecer, embora muitos tenham pensado que fossem osolhos. verdade que a pupila, por seu brilho e movimento, revela aagitao da alma, mas ela no permite conhecer a natureza dessaagitao. A boca e o nariz tm muita participao na expresso, mas,comumente, estas partes servem apenas para acompanhar osmovimentos do corao, como o destacaremos na seqncia destaexposio. (LE BRUN, 1994, p. 60-61)10
Entre as paixes simples (Admirao, Amor, dio, Desejo, Alegria e Tristeza), a
Admirao aparece como uma paixo mais controlada ... uma surpresa que faz a almaconsiderar com ateno os objetos que lhe parecem raros ou extraordinrios ... faz com
que o corpo se torne imobilizado como uma esttua... (LE BRUN, 1994, p. 55-56).
Na descrio alm de destacar as poucas modificaes da face, observava que se
produzia uma suspenso de movimento para dar alma tempo de deliberar sobre o que
ela tem a fazer, e para considerar com ateno o objeto... (LE BRUN, 1994, p. 66).
AdmiraoLe Brun desenvolveu toda uma argumentao a respeito de como as emoes e
paixes da alma se manifestavam na face, nas descries que acompanham os desenhos
buscava explicitar um movimento interno, mesmo que com sinais de carter efmero e
momentneo de exteriorizao da paixo da alma. As partes da fronte que
constantemente se destacavam na expresso das paixes eram particularmente as
sobrancelhas, mas tambm estavam envolvidos os olhos, pupilas, plpebras e a boca,
em alguns casos at o nariz e as narinas (COURTINE; HAROCHE, 1988, p. 78).
10Grifos da autora.
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J em outras paixes, como o Desespero, o pintor se utilizou de vrios elementos
do rosto inclusive os cabelos, alm das partes internas como msculos e veias, se por
um lado se aproxima do anatomista, por outro estabelece relaes entre os movimentos
da face e expresses animalescas ou demonacas (MIRANDA, 2005).
Desespero
Os estudos de Le Brun visavam um carter pedaggico do governo do
corpo/rosto e das paixes da alma. Ciente que pela vontade se podia controlar os efeitos
das paixes e suas expresses na fronte alegava que alguns seriam mais capazes de se
autogovernar, enquanto outros enfrentariam dificuldades, mas todos deveriam aprender
desde que no fossem acomodados e titubeantes (MIRANDA, 2005).Desenhando os traos e moldando a forma, Le Brun buscava um controle das
expresses do rosto suscitadas pelos efeitos das paixes, desta compreenso resultou a
associao do homem ao esprito dos animais (SOUZA, s/d).
Postumamente, em 1806, foram descobertos nos arquivos da Academia vrias
pranchas de Le Brun, referentes ao Trait du Rapport de la Figure Humaine avec celle
des Animaux. Embora o conjunto de desenhos ainda esteja conservado no Museu do
Louvre, o texto original foi perdido, restou uma sntese na dissertao de Louis-Jean-Marie d'Arleux Morel (1755-1827) curador destes desenhos e gravuras. Neles pode-se
perceber a influncia direta do zoomorfismo de Della Porta.
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As pranchas reproduzem esboos de vrios animais e sua transmutao em
humano, mantendo traos anteriores e vinculando caracteres nobres e impulsos
negativos dos animais aos homens, buscava aproximar o humano do animal, como um
espelho animal, assemelhando homens a cachorros, porcos, carneiros, camelos, lees,
entre outros. Estabeleceram-se correlaes entre os traos subjetivos decorrentes dessas
semelhanas, vinculando as imagens do leo s representaes de coragem, ousadia,
combatividade, valentia, bravura, mas tambm a impulsos negativos como orgulho,
agresso e concupiscncia, enquanto o burro simbolizava estupidez, ignorncia,teimosia e tolice, j o boi/touro concebia a fora, rudeza e instinto.
Nas imagens o animal se reconfigurava no humano como seres selvagens,
mantendo traos, caractersticas (pelos/penas, focinhos/bicos, orelhas, olhos, contornos),
rememorando os bestirios. A natureza do animal nas expresses humanas era
apreendida nos ngulos formados pelas linhas que se cruzavam no eixo dos olhos e nos
contornos da face.11
Todos estes estudos se encontram diretamente experimentados na ampla
11 http://petruscamper.com/glossary.htm
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produo imagtica de Le Brun, quer seja em obras de Cenas histricas, nas de Temas
Religiosos, como nas que privilegiavam a Corte e o Rei.
Madalena (C. Le Brun)
Lus XIV (C. Le Brun)
A proposta de Le Brun no se limitava a uma descrio das emoes, se
tornaram referncias normativas e pedaggicas na conduo das paixes. Centrando-se
no desvendamento das relaes rosto-alma, considerava a alma provida de vontade
prpria e neste sentido devia controlar o rosto, corrigir falhas, harmonizar funes,
aprimorar o ser humano. Para tanto o desafio era revelar o funcionamento da alma,educ-la para que racionalmente e metodicamente governasse o corpo, modificando -
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Sua anlise apropriou-se dos escritos de Le Brun, a quem fez referncias
constantes. Por seu lado, a obra de Lavater repercutiu no pensamento filosfico ereligioso, particularmente inspirou Allan Kardec.
IV- Circularidade de imagens: Brasil
Nos incios do sculo XIX, a chegada da Famlia Real portuguesa ao Brasil
significou um marco transformador sob diferentes aspectos, a Abertura dos Portos
dinamizou um maior fluxo e circulao de pessoas e do processo civilizatrio (ELIAS,
1994).No campo da cultura, alm dos talentos portugueses que acompanharam a Corte,
gradativamente vieram artistas estrangeiros que visitaram vrias regies do pas. Merece
destaque a Misso Artstica Francesa (1816), com a presena de mestres, artistas,
artesos, gravadores que trouxeram novas prticas e estilos em voga na Europa,
dinamizando o contato com os nacionais desencadeando transformaes. A Misso, sob
a mediao de Joachin Lebreton, se constituiu por uma convergncia de dois interesses,
por um lado, um conjunto de artistas desempregados com competente formao
acadmica, por outro, uma Corte isolada nos Trpicos, carente de representaes
(SCHWARCZ, 2008).
Entre os integrantes da Misso Francesa, Nicolas Antoine Taunay era o mais
afamado dos artistas, sua obra impressionava pela qualidade da execuo e o apuro da
tcnica, demonstrando experincia.13 No Brasil, ele produziu cerca de 50 obras,
13
No processo de mudanas no academicismo francs, identificam-se trs fases: o perodo inicial com afundao da instituio e mecenato real, o declnio na primeira metade do XVIII e as reformasiluministas. A difuso do academicismo francs foi rpida e extensa, vrios prncipes passaram a financiarsuas academias. Idem.
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condutor da percepo das expresses faciais e intrprete dos silncios e manifestaes
da linguagem interior (COURTINE; HAROCHE, 1988).
As influncias da fisiognomonia numa contnua trajetria prosseguem se
fazendo presente em diferentes reas, nas artes plsticas (pintura, escultura, charges,caricatura) e cnicas (cinema, teatro, mnima, teledramaturgia), literatura (romance,
humor, poesia), cartunismo (mang, banda desenhada, quadrinhos), publicidade e meios
de comunicao, no campo mdico (diagnstico teraputico, psiquiatria, cirurgia
plstica e esttica), na rea jurdica e criminalstica e em muitos escritos de autoajuda e
divinatrios.
Contudo, os estudos de fisiognomonia produziram efeitos paradoxais, se por um
lado, ansiavam pela transparncia expondo a expresso individual observao, poroutro, codificavam condutas, controlavam expresses e comportamentos (SOUZA, n/d).
Na nossa contemporaneidade, outros paradoxos se colocam: o aperfeioamento
da tecnologia teraputica de reprogramar os circuitos que comandam os sentimentos
(com drogas como Prozac, Lexotan e Ritalina) gerou efeitos imediatos nas expresses
bloqueando todo o direito sobre as demonstraes de tristeza, melancolia, luto, medo,
ansiedade e outros mais. Somando-se a ampla tecnologia esttica que se compromete
com os sonhos de juventude e beleza, plastificando rostos com botox, restilene e outras
interferncias, no permitindo mais as expresses da alma. Reforando o paradoxo j
formulado por Deleuze entre a diferena absoluta e a repetio insuportvel dos
modelos (DELEUZE, 1988).
REFERNCIAS
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