Post on 09-Nov-2018
Evo Morales
e a Democracia
Boaventura de Sousa Santos*
Pela terceira vez na história do país (1937, 1969, 2006),a Bolívia acaba de decretar a nacionalização dos seusrecursos naturais. A medida terá, para já, um impactoeconómico significativo apenas no caso do gás natural,de que a Bolívia detém as segundas maiores reservasdo continente. Qualquer democrata que se preze –ouseja, alguém para quem a democracia deve ser levada asério, sob pena de ser descredibilizada e sucumbirfacilmente a aventuras autoritárias– deverá saudar estamedida. Por três razões principais.
Em primeiro lugar, porque ela foi uma das promessaseleitorais que levaram ao poder o Presidente Evo Morales.Se as promessas eleitorais não forem cumpridas, o quetem vindo a ser recorrente no continente, a democraciarepresentativa deixará a prazo de ter qualquer sentido.Acontece que, neste caso, o não cumprimento dapromessa eleitoral seria particularmente grave porque osbolivianos mostraram de forma eloquente (com osacrifício da própria vida) em várias ocasiões nos últimos
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anos a sua determinação em porem fim à pilhagem dosseus recursos: os protestos massivos entre 2000 e 2005,que levaram à demissão de dois presidentes eculminaram com o referendo vinculante de Julho de2005, em que 89% dos participantes se pronunciou afavor da nacionalização dos hidrocarbonetos.
A segunda razão para saudar esta medida é que se ademocracia não é sustentável para além de certo limitede exclusão social, podemos dizer que a Bolívia estápróximo desse limite, já que cerca de metade dapopulação vive com menos de um euro e meio por dia. Oempobrecimento agravou-se nas duas últimas décadascom o neoliberalismo, cujo cerco à sobrevivência do paísnão cessa de se apertar. Com a recente assinatura dostratados bilaterais de livre comércio dos EUA com aColômbia e o Peru, a exportação de produtos agrícolas(sobretudo soja) para os países vizinhos terminará. Écerto que a nacionalização não basta, porque se bastasseas nacionalizações anteriores teriam resolvido osproblemas do país. Deve ser complementada com umapolítica progressista de redistribuição social e deinvestimento na saúde, na educação, nas infraestruturasbásicas, na segurança social. Se tal complementaridadeocorrer, o contexto para a nacionalização não podia sermelhor, dado o aumento do preço dos recursosenergéticos. Neste domínio, a democracia e a justiçasocial têm outro ponto de contacto: é moralmenterepugnante que as empresas energéticas colham frutosfabulosos –a vender o barril de petróleo acima de 70dólares com base em contratos de exploração em que opreço de referência é muito inferior a 20 dólares–enquanto o povo morre de fome e de doenças curáveis.
A terceira razão para saudar o decreto do PresidenteMorales é que esta nacionalização é muito moderada(não envolve expropriação) e visa repor a segurançajurídica, que deve ser um dos pilares da democracia. Asprivatizações da década de 1990, além de terem sidoruinosas para o país, foram ilegais, como acabam de
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declarar os tribunais, já que os contratos de exploração não foram aprovados pelo poderlegislativo, como manda a Constituição. Em termos jurídicos, a nacionalização é condiçãomínima para que o governo da Bolívia possa renegociar os contratos com as empresasenergéticas de modo mais justo, a fim de que estas renunciem aos seus superlucros(não aos seus lucros) para que o povo empobrecido possa viver um pouco melhor.
Perante a força destas razões, cabe perguntar pelo porquê da reacção hostil dos paísesmuito mais ricos e aparentemente muito mais democráticos que a Bolívia. ¿Será quequando a democracia interfere com os nossos negócios são estes que prevalecem?
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© David Mercado